gÊneros textuais e ensino-aprendizagem

248
v. 6, n. 3, p. 337-584, set./dez. 2006 Tubarão - SC ISSN 1518-7632 Programa de Pós-graduação em Ciências da Linguagem - Unisul Gêneros textuais e ensino-aprendizagem Adair Bonini Maria Marta Furlanetto (Orgs.)

Upload: marcos-philipe

Post on 26-Jun-2015

1.764 views

Category:

Documents


2 download

TRANSCRIPT

Page 1: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

v. 6, n. 3, p. 337-584, set./dez. 2006

Tubarão - SC

ISSN 1518-7632

Programa de Pós-graduação em Ciências da Linguagem - Unisul

Gêneros textuais e ensino-aprendizagem

Adair BoniniMaria Marta Furlanetto

(Orgs.)

Page 2: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

Elaborada pela Biblioteca Universitária da Unisul

Linguagem em (Dis)curso / Universidade do Sul de Santa

Catarina. - v. 1, n. 1 (2000) - Tubarão : Ed. Unisul,

2000 -

Quadrimestral

ISSN 1518-7632

1. Linguagem - Periódicos. I. Universidade do Sul de

Santa Catarina.

CDD 405

Ficha Catalográfica

Pede-se permuta

We ask for exchange

On demande l´échange

Se pide intercambio

Contato:

Unisul - Universidade do Sul de Santa Catarina

Campus Tubarão

Biblioteca Universitária - Setor de Periódicos

Av. José Acácio Moreira, 787 - Dehon

Tubarão - SC - Brasil - 88704-900

Fone: (48) 3621-3030 / 3621-3060

Fax: (48) 3621-3187

http://www.unisul.br/biblioteca

E-mail: [email protected]

Os textos publicados na revista são indexados em: LLBA - Linguistics & Language Behavior Abstracts

(Cambridge Scientific Abstracts); MLA International Bibliography (Modern Language Association); Ulrich’s

Periodicals Directory; Clase (Universidad Nacional Autónoma de México); Latindex; Directory of Open Access

Journals (DOAJ); Social and Human Sciences Online Periodicals (UNESCO); GeoDados (Universidade Estadual

de Maringá); e Portal de Periódicos da CAPES.

The journal and its contents are indexed in: LLBA - Linguistics & Language Behavior Abstracts (Cambridge

Scientific Abstracts); MLA International Bibliography (Modern Language Association); Ulrich’s Periodicals

Directory; Clase (Universidad Nacional Autónoma de México); Latindex; Directory of Open Access Journals

(DOAJ); Social and Human Sciences Online Periodicals (UNESCO); GeoDados (Universidade Estadual de

Maringá); and Portal de Periódicos (CAPES).

Page 3: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

Reitor

Gerson Luiz Joner da Silveira

Vice-Reitor

Sebastião Salésio Herdt

Pró-Reitor de Administração

Marcus Vinícius Anátocles da Silva Ferreira

Pró-Reitor Acadêmico

Sebastião Salésio Herdt

Chefe de Gabinete do Reitor

Fabian Martins de Castro

Diretor dos Campi de Tubarão e Araranguá

Valter Alves Schmitz Neto

Diretor dos Campi da Grande Florianópolis e Norte da Ilha

Ailton Nazareno Soares

Coordenador do Curso de Mestrado em Ciências da Linguagem

Fábio José Rauen

Antônio Carlos Gonçalves dos Santos (Adjunto)

Av. José Acácio Moreira, 787

88704-900 - Tubarão - SC

Fone: (48) 3621-3000 - Fax: (48) 3621-3036

Homepage: http://www.unisul.br

Page 4: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

Comissão EditorialAdair Bonini, Editor-chefeFábio José Rauen, Editor-assistenteDébora de Carvalho Figueiredo, Editora-assistenteSheila Teresinha Viana Bardini, Secretária

Programa de Pós-graduação em Ciências da Linguagem - Unisul

Conselho Editorial

Equipe de Revisão e TraduçãoEmy Soares – EspanholFernando Simão Vugman – InglêsMaria José Werner Salles – FrancêsTodos os editores – Português

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 337-584, set./dez. 2006

Ana Zandwais (UFRGS)Angela Paiva Dionisio (UFPE)Anna Rachel Machado (PUC-SP)Belmira Rita da Costa Magalhães (UFAL)Bernardete Biasi-Rodrigues (UFC)Bethania Sampaio Corrêa Mariani (UFF)Carmen Rosa Caldas-Coulthard (Un. ofBirmingham)Désirée Motta-Roth (UFSM)Edair Maria Gorski (UFSC)Freda Indursky (UFRGS)Heloísa Pedroso de Moraes Feltes (UCS)Heronides Maurílio de Melo e Moura (UFSC)Ingedore Grunfeld Villaca Koch (UNICAMP)Ingo Voese (UNISUL)Jair Antonio de Oliveira (UFPR)José Luiz Meurer (UFSC)José Marcelino Poersch (PUC-RS)José Carlos Junça de Morais (Un. Libre deBruxelles)Lêda Maria Braga Tomitch (UFSC)

Leila Bárbara (PUC-SP)Leonor Scliar-Cabral (UFSC)Lourenço Chacon Jurado Filho (UNESP)Luiz Paulo da Moita Lopes (UFRJ)Mailce Borges Mota Fortkamp (UFSC)Manoel Luiz Gonçalves Corrêa (USP)Márcia Teixeira Nogueira (UFC)Maria Cristina Lírio Gurgel (UERJ)Maria Elias Soares (UFC)Maria Izabel Santos Magalhães (UNB)Maria Marta Furlanetto (UNISUL)Mônica Magalhães Cavalcante (UFC)Pedro de Moraes Garcez (UFRGS)Pedro de Souza (UFSC)Régine Kolinsky (Un. Libre de Bruxelles)Sílvia Ines Coneglian Carrilho de Vasconcelos (UEM)Solange Maria Leda Gallo (UNISUL)Telma Nunes Gimenez (UEL)Vera Lúcia Lopes Cristóvão (UEL)Vera Lúcia Menezes de Oliveira e Paiva (UFMG)Vilson José Leffa (UC-Pel)

Marcos Baltar (UCS).

Consultor Ad hoc

Projeto Gráfico e capaBarcelos Ateliê Editorial

Sistema Integrado de Comunicação - SICEditora UnisulDiretor:Tiragem: 1000 exemplares

Page 5: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

341

Sumário/ Contents

347

375

389

413

343Apresentação

ARTIGO DE PESQUISA/ RESEARCH ARTICLE

Construindo propostas de didatização de gênero: desafios e possibilidades/The construction of genre literacy proposals: challenges and possibilities

Ana Maria de Mattos Guimarães

Circuito de gêneros: atividades significativas de linguagem para odesenvolvimento da competência discursiva/ Genre chain: significant

language activities for the development of discursive competence

Marcos Baltar, Fabiele Stockmans de Nardi, Luciane TodeschiniFerreira e Maria Eugênia Gastaldello

Gêneros discursivos e conhecimento sobre gêneros no planejamento deum curso de português instrumental para ciências contábeis/ Discursive

genres and genre knowledge in the planning of a course on Portuguese

for specific purposes for the accounting area

Orlando Vian Jr.

Práticas discursivas e ensino do texto acadêmico: concepções de alunosde mestrado sobre a escrita/ Discursive practices and the teaching of

academic writing: notions about writing presented by master students

Débora de Carvalho Figueiredo e Adair Bonini

Page 6: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

342

447

463

495

519

547

Práticas discursivas em conclusões de teses de doutorado/ Discursive

practices in concluding chapters of PHD theses

Antonia Dilamar Araújo

As relações oral/escrita nos gêneros orais formais e públicos: o caso daconferência acadêmica/ The relationship between orality/writing in

formal and public oral genres: the case of the academic conference

Roxane Rojo e Bernard Schneuwly

ENSAIO/ ESSAY

O ensino de produção textual com base em atividades sociais e gênerostextuais/ The teaching of writing based on social activities and genres

Désirée Motta-Roth

Argumentação e subjetividade no gênero: o papel dos topoi/ Argumentation

and subjectivity in genre: the role of the topoiMaria Marta Furlanetto

RETROSPECTIVA/ RETROSPECTIVE

A construção de modelos didáticos de gêneros: aportes e questionamentospara o ensino de gêneros/ The construction of didactic models of genre:

constributions and questions to genre teaching

Anna Rachel Machado e Vera Lúcia Lopes Cristovão

Page 7: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

343Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 343-345, set./dez. 2006

Apresentação

A presente edição temática de Linguagem em (Dis)curso – com o tópicoGêneros textuais e ensino-aprendizagem – é a concretização de uma das metastraçadas para o biênio 2004-2006 pelo GT de Lingüística Aplicada (GT-LA) daAssociação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Lingüística (ANPOLL)– subgrupo “Teorias de gênero em práticas sociais”... O GT-LA é composto dosseguintes subgrupos: (1) Ensino-aprendizagem de línguas, (2) Teorias de gênero e(3) Formação de professores.

Com o presente tema, privilegia-se o lugar dos gêneros na ação pedagógicade ensino/aprendizagem de línguas (LE e LM: leitura, produção textual, avaliação eelaboração de material didático, etc.), reunindo substanciais experiências e reflexõesde pesquisa de estudiosos de várias instituições brasileiras. Espera-se que essestrabalhos possam subsidiar atividades de professores de língua materna e de línguaestrangeira, bem como os trabalhos de professores e pesquisadores dos cursos depós-graduação e seus pós-graduandos.

A divulgação de tais trabalhos reflete a intenção do grupo de ir além da puraelaboração teórica para pensar o modo como as teorias relacionadas ao conceito degênero textual podem ajudar a transformar o ensino de línguas e linguagem noBrasil. Ao trazer a público essa produção acadêmica, o grupo também tem em contaa necessidade de se aumentar a visibilidade da Lingüística Aplicada no país.

Neste número, o leitor encontrará seis artigos de pesquisa, dois ensaios euma retrospectiva.

Ana Maria Guimarães (UNISINOS) propõe uma reflexão sobre experiênciacom seqüências didáticas baseadas em gêneros textuais, em um grupo de criançasacompanhadas longitudinalmente da 3ª à 5ª série do ensino fundamental, mostrandoo que significa trabalhar com gêneros textuais segundo a proposta teórica dointeracionismo sociodiscursivo.

Marcos Baltar, Fabiele Stockmans De Nardi, Luciane Todeschini Ferreira eMaria Eugênia Gastaldello (UCS), tendo como base conceitual o quadro dointeracionismo sociodiscursivo, analisam uma atividade de sala de aula que vemsendo sistematizada no projeto de pesquisa-ação UCS-PRODUTORE, cujo propósitoé investigar a natureza da formação inicial e continuada de professores. aguardar

Page 8: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

344 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 343-345, set./dez. 2006

Orlando Vian Jr. (PUC-SP/UniFECAP) relata uma experiência no planejamentode um curso de português instrumental em um curso de Ciências Contábeis,mostrando como foram operacionalizados, para sua implementação pedagógica,certos conceitos adotados: gênero discursivo na perspectiva sistêmico-funcional delinguagem, conhecimento sobre gêneros e conhecimento partilhado pelos usuáriosao utilizarem gêneros escritos. Apresenta ainda algumas atividades desenvolvidas,bem como as percepções dos alunos sobre tais atividades.

Débora de Carvalho Figueiredo e Adair Bonini (UNISUL) relatam umaexperiência de ensino de produção textual acadêmica escrita, surgida a partir desua observação, como professores de pós-graduação, da dificuldade de mestrandosem produzir textos que possam ser reconhecidos como gêneros do meio, entre eleso “artigo de pesquisa”.

Antônia Dilamar Araújo (UECE) reflete sobre recursos discursivos utilizadospor escritores na redação de teses de doutorado nas línguas inglesa e portuguesa,focalizando na análise o capítulo de conclusão de dez teses da área de análise dodiscurso e lingüística de texto.

Roxane Rojo (UNICAMP) e Bernard Schneuwly (FAPSE/UNIGE*) propõemum exercício de análise de um gênero oral formal e público – a conferênciaacadêmica – em termos das relações entre oral-escrita, oral-oral e escrita-escritana constituição da conferência e em sua retextualização como transcrição. Defendema posição de que oralidade e escrita mantêm uma relação complexa de mútuo efeitoe interferência nos gêneros orais formais públicos.

Désirée Motta-Roth (UFSM) procura examinar o conceito de gênero textualadotado nos Parâmetros Curriculares Nacionais, bem como analisar algumasatividades de redação em língua portuguesa propostas na literatura, para encorajaro debate sobre as possibilidades que uma concepção de gênero textual, pressupondoo de atividade social, traz para o ensino de linguagem.

Maria Marta Furlanetto (UNISUL) focaliza o conflito entre ser impessoal edefender um ponto de vista (opinião), tal como quando se propõe ao estudanteelaborar uma “dissertação” na escola, tentando demonstrar, do ponto de vistadiscursivo, que há uma escolha para que certa direção seja indicada ao interlocutor,sendo relevante o uso de certos operadores. Põe em contraste o modelo da dissertaçãoescolar e a caracterização dialógica do conceito de gênero em Bakhtin.

* Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação (FAPSE) da Universidade de Genebra (UNIGE), Suíça.

Page 9: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

345Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 343-345, set./dez. 2006

Anna Raquel Machado (PUC/SP) e Vera Lúcia Lopes Cristovão (UEL) procuramtraçar um quadro ilustrativo de pesquisas brasileiras desenvolvidas para a construçãode “modelos didáticos de gêneros”, de suas respectivas seqüências didáticas e detrabalhos didáticos de intervenção desenvolvidos, na perspectiva do interacionismosociodiscursivo (ISD).

Esperamos que os artigos aqui publicados tenham boa acolhida junho aospesquisadores e profissionais que se ocupam das questões de ensino e aprendizagemde Língua Portuguesa (escrita, fala, leitura, escuta e metalinguagem).

Adair BoniniMaria Marta Furlaneto

(Organizadores)

Page 10: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM
Page 11: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

347Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 347-374, set./dez. 2006

Guimarães

CONSTRUINDO PROPOSTAS DE DIDATIZAÇÃO DE

GÊNERO: DESAFIOS E POSSIBILIDADES

Ana Maria de Mattos Guimarães*

Resumo: Desde a publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais, a noção de gênero comoinstrumento de ensino-aprendizagem passou a ser um tópico freqüente no debate didático de comoensinar Português. Este trabalho relata uma pesquisa longitudinal de um grupo de criançasacompanhadas da 3ª à 5ª série do ensino fundamental. Nessa pesquisa, foi desenvolvida umaexperiência de ensino com seqüências didáticas baseadas em gêneros textuais. A análise dessaexperiência possibilita mostrar o que significa trabalhar com gêneros textuais dentro da propostateórica do interacionismo sociodiscursivo (BRONCKART, 1999, 2004, 2005).Palavras-chave: gênero de texto; modelo didático; seqüência didática; ensino fundamental;interacionismo sociodiscursivo.

1 INTRODUÇÃO

O desafio do trabalho com gêneros textuais tem sido motivo de muitos estudosno campo de ensino/aprendizagem de língua materna, como bem mostra Bezerra(2002). A publicação pelo MEC dos Parâmetros Curriculares Nacionais, em 1998,em que as diretrizes curriculares para o Ensino Fundamental brasileiro apóiam-sefortemente em concepções teóricas relativamente recentes e inovadoras, trouxe anoção de gênero para o primeiro plano do debate didático. A noção de gênero comoinstrumento de ensino-aprendizagem é central nessa proposição: “Todo o texto seorganiza dentro de determinado gênero em função das intenções comunicativas,como parte das condições de produção dos discursos, os quais geram usos sociaisque os determinam” (BRASIL, 1998, p.21). O objetivo do presente artigo é refletirsobre uma experiência didática com gêneros textuais na escola, tomando por base aproposta teórica do interacionismo sociodiscursivo (BRONCKART, 1999).

Proponho uma reflexão sobre o desenvolvimento de seqüências didáticaslevadas a efeito em uma escola municipal da periferia da região metropolitana dePorto Alegre, dentro da proposta do projeto por mim coordenado: “Desenvolvimento

* Professora da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Doutora em Lingüística Aplicada.

Page 12: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

348 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 347-374, set./dez. 2006

Construindo propostas de didatização de gênero...

da narrativa e o processo de construção social da escrita” 1. O objeto de investigaçãoda pesquisa foi o acompanhamento longitudinal de um grupo de alunos, da 3ª até a5ª série do Ensino Fundamental2. O objetivo principal do projeto foi analisar oprocesso de textualização da ordem do NARRAR sob dois ângulos: o do produtotexto (oral e escrito) e o da interferência da escola neste processo. Procurou-severificar o papel que desempenham as intervenções formativas3 (aquelas que sedesenvolvem em situações didáticas ou naturais), especificamente no desenvolvimentoda escrita, de forma a poder propor novas formas de intervenção didática no campodo ensino-aprendizagem de língua materna. O presente artigo refletirá sobre essesdois pontos: a aplicação de seqüências didáticas e a análise de textos produzidospelos alunos como resultado dessas seqüências.

2 DE QUE GÊNERO DE TEXTO ESTAMOS FALANDO?

A proposta do interacionismo sociodiscursivo (BRONCKART, 1999, 2004,2005) analisa a linguagem como prática social, em que as condutas humanasconstituem redes de atividades desenvolvidas num quadro de interações diversas,materializadas através de ações de linguagem, que se concretizam discursivamentedentro de um gênero.

O ponto de partida para a discussão desta noção de gênero é estabelecidopor Bakhtin:

A utilização da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos)[...]. O enunciado reflete as condições específicas e as finalidades de cadauma dessas esferas [esferas da atividade humana], não só por seu conteúdo(temático) e por seu estilo verbal, ou seja, pela seleção operada nos recursos

1 Agradeço a colaboração da mestranda Daiana Campani, do PPG Lingüística Aplicada da UNISINOS, e dos bolsistasde iniciação científica Rafaela F. Drey (UNIBIC) e Márcio Gerhardt (FAPERGS) no desenvolvimento deste projeto.Agradeço ainda ao CNPq e à FAPERGS o apoio recebido nos projetos “A construção da escrita em ambientessociais diversos: o interacionismo sociodiscursivo em questão” e “Desenvolvimento de narrativas e a construçãosocial da escrita”, cujos dados foram essenciais para a elaboração deste artigo.

2 Foi escolhida a 3ª série como ponto de partida do estudo longitudinal, pois trabalho de pesquisa anterior daautora já havia estudado o desenvolvimento da linguagem da criança em fase de letramento (dos 5 aos 8;11 anosde idade), com ênfase em narrativas (Cf. GUIMARÃES, SIMÕES, COSTA E SILVA, 1998).

3 Ainda que a palavra ‘intervenção’ não me pareça apropriada quando se fala da situação escolar (prefiro utilizar‘instrumentalização’ em seu lugar), vou empregá-la, pois, no caso do projeto, fica marcada essa possibilidade,pelo fato de os professores da escola pedirem aos pesquisadores que assumissem o papel docente, em seu lugar,durante as seqüências didáticas.

Page 13: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

349Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 347-374, set./dez. 2006

Guimarães

da língua – recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais –, mas também, esobretudo, por sua construção composicional. Estes três elementos(conteúdo temático, estilo e construção composicional) fundem-seindissoluvelmente no todo do enunciado, e todos eles são marcados pelaespecificidade de uma esfera de comunicação. Qualquer enunciadoconsiderado isoladamente é, claro, individual, mas cada esfera de utilizaçãoda língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendoisso que denominamos gêneros do discurso. (BAKHTIN, 1979, p. 279).

Bronckart recoloca a questão do gênero, sob o rótulo de gêneros de texto4,perseguindo a idéia de que tais gêneros podem ser facilmente reconhecidos nas práticassociais de linguagem. Caracterizados por sempre apresentarem tema, construçãocomposicional e estilo específicos, os gêneros tornam a comunicação humana possível.Embora a teoria oscile, por vezes, em seu tratamento (como bem mostra o artigo deMachado (2004)), sua relação com a escola é reafirmada em artigo de Schneuwly eDolz (2004, p.74), quando consideram que “é através dos gêneros que as práticas

de linguagem materializam-se nas atividades dos aprendizes”. Essa releitura doconceito de gênero, sistematizada, sob o ponto de vista da realidade escolar, porSchneuwly e Dolz (1999), enfatiza a questão de sua utilização enquanto um instrumentode comunicação em uma determinada situação, mas, ao mesmo tempo, um objeto deensino/aprendizagem. Tais autores desenvolvem a hipótese de que “quanto mais precisaa definição das dimensões ensináveis de um gênero, mais ela facilitará a apropriaçãodeste como instrumento e possibilitará o desenvolvimento de capacidades de linguagemdiversas que a ele estão associadas” (id, p. 15). Ainda segundo eles (2004, p. 75), ogênero “pode ser considerado como um megainstrumento que fornece um suportepara a atividade nas situações de comunicação, e uma referência para os aprendizes”.

3 O QUE SIGNIFICA TRABALHAR COM GÊNERO DE TEXTO NA ESCOLA?

Em primeiro lugar, é preciso considerar que a introdução de um gênero detexto na escola depende de uma decisão didática, que precisa considerar os objetivos

4 Segundo este autor: “Chamamos de texto toda a unidade de produção de linguagem situada, acabada e auto-suficiente (do ponto de vista da ação ou da comunicação). Na medida em que todo texto se inscreve,necessariamente, em um conjunto de textos ou em um gênero, adotamos a expressão gênero de texto em vez degênero de discurso“ (BRONCKART, 1999, p. 75).

Page 14: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

350 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 347-374, set./dez. 2006

Construindo propostas de didatização de gênero...

de sua aprendizagem, tratando-se, simultaneamente, de “um gênero a aprender, emborapermaneça gênero para comunicar” (SCHNEUWLY; DOLZ, 2004, p, 81). Essa relaçãoestará na base de um modelo didático de gênero, que definirá os princípios (porexemplo, o plano geral do gênero de texto escolhido), os mecanismos enunciativosque se põem em ação e as formulações lingüísticas, ou seja, os mecanismos detextualização que devem constituir os objetos de aprendizagem dos alunos. Três são osaspectos a serem considerados nesta elaboração: os conhecimentos existentes sobregêneros de texto (teoricamente variados e heterogêneos); as capacidades observadasdos aprendizes (daí a relevância de a própria docente da classe ser participante dapesquisa) e os objetivos de ensino. Finalizado o modelo didático, estará definido, então,o saber a ser ensinado. Este modelo didático, definido por Dolz e Schneuwly (2004),assenta-se, pois, sobre um tripé, formado por:

- conhecimentos de referência;- objetivos de ensino;- capacidades observadas dos aprendizes.

A construção deste modelo é a primeira etapa a ser desenvolvida para otrabalho com gêneros na sala de aula. Após é elaborada a seqüência didática referenteàs diferentes atividades previstas para sala de aula.

A seqüência didática (DOLZ; NOVERRAZ; SCHNEWLY, 2004, p. 95-128) devepartir de uma produção inicial, em que os alunos tentam elaborar um primeirotexto do gênero escolhido, de forma a revelar as representações que têm dessaatividade. Essa produção é realizada após discussão de um projeto coletivo deprodução de um gênero escrito, posto como um problema de comunicação a serresolvido, seguida de uma apresentação dos conteúdos deste gênero. Ela é a pistapara a preparação de diversos módulos, que darão conta dos problemas queapareceram na primeira produção, de forma a dar aos alunos os instrumentosnecessários para atingirem o objetivo de produzirem o gênero de texto escolhido. Aseqüência será finalizada por uma produção final, que dá ao aluno a oportunidadede praticar as noções e instrumentos trabalhados durante os módulos e permite aoprofessor uma avaliação do processo.

Essa avaliação pode ser feita a partir da proposta de Bronckart (1999) paraanálise de textos como atividades de linguagem, priorizando-se os aspectos maisenfocados durante a seqüência didática. De acordo com Bronckart, um texto éorganizado de acordo com uma arquitetura interna, que pode ser vista como um“folhado textual”. Tal folhado se organiza em 3 camadas superpostas, mas interativas:

Page 15: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

351Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 347-374, set./dez. 2006

Guimarães

a infra-estrutura geral do texto, os mecanismos de textualização e os mecanismosenunciativos. A primeira camada trata do plano geral do texto, onde se verificam ostipos de discurso e suas articulações, a organização do conteúdo temático, atravésda qual, enfim, pode-se caracterizar o gênero textual ao qual pertence. A segundacamada verifica a progressão do conteúdo temático, apontando as grandesorganizações hierárquicas, lógicas ou temporais de um texto, dentro de três conjuntos:conexão, coesão nominal e coesão verbal. Por fim, a última camada contribui paraa coerência pragmática do texto, apontando posicionamentos enunciativos,articulação das vozes presentes e avaliações do conteúdo temático.

4 RELATO DE UMA EXPERIÊNCIA EM 3 TEMPOS

O projeto “Desenvolvimento de narrativas e a construção social da escrita”objetivou aproximar as pesquisas pensadas sob o prisma de aquisição edesenvolvimento da linguagem para o contexto escolar, transpondo-as para umareflexão pedagógica, a partir do acompanhamento longitudinal de um grupo dealunos, da 3ª até a 5ª série. A escola onde se desenvolveu é municipal5, na periferiade uma cidade da região metropolitana de Porto Alegre, e a maioria dos alunos quea freqüenta é de classes economicamente menos favorecidas. Trata-se de uma escolapequena, em que funciona apenas 1 turma por série, do pré até a 5ª série. Os alunosda 3ª série tinham pais alfabetizados, mas com nível escolar baixo, no máximo ensinofundamental completo. Apenas 40% deles referiam ler em casa e 25%, usarfuncionalmente a escrita (para lista de compras, bilhetes aos pais, etc.).

A turma da 3ª série era considerada uma turma difícil, rotulada comoproblemática. Em número de 20, os alunos eram turbulentos, de idades diferentes(oscilando entre 8 e 13 anos). Até outubro de 2003, apenas 2 textos haviam sidoproduzidos por esse grupo de alunos. Reuniões com a professora de classe permitiramapresentar e discutir a teoria embasadora do trabalho pedagógico e analisar asdificuldades dos alunos que os poucos textos deixaram entrever. A docente, entretanto,alegou problemas pessoais como impeditivos para dar início a um trabalhodiferenciado. Até então no papel de observadora participante, pude constatar que as

5 É preciso referir que o projeto foi concebido sem que a escola onde seria desenvolvido estivesse escolhida. Essa tarefanão foi fácil, em parte pela falta de interesse das escolas em desenvolver projetos de parceria, mas, sobretudo, pelafalta de estímulo do professor da turma, uma vez que entende que só terá mais trabalho e não consegue medir osbenefícios que possa vir a ter com a quebra de seu paradigma docente. Finalmente, quando se chegou a uma escolareceptiva, foi bastante difícil convencer o professor da turma escolhida a participar da intervenção pedagógica.

Page 16: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

352 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 347-374, set./dez. 2006

Construindo propostas de didatização de gênero...

interações da professora com a turma eram repletas de autoritarismo, evidenciadopelo tom de voz muito elevado da docente e pela proposta de trabalhos sempreindividuais, com respostas óbvias. Ainda que transparecesse afetividade nas relações,a docente não permitia que as crianças fossem interlocutoras do processo pedagógico.Eram absolutamente passivas, expostas a longos trabalhos de cópia. O trabalho comlíngua materna focalizava, sobretudo, aspectos gramaticais e ortográficos,desvinculados do contexto de produção. Eram feitas leituras compreensivas de textoscurtos, muitas vezes copiados do quadro, e sempre seguidos por questionário comperguntas de respostas fechadas e previsíveis. Quando perguntadas sobre o queescreviam, mesmo nas entrevistas individuais, respondiam, invariavelmente,“TEXTOS”, sem conseguir explicitar finalidade:

P: Hmmm! E me conta uma coisa, tu gostas de escrever?A: Gosto.P: Ah, é? Bah@d, isso é muito legal. Que é que tu gostas de escrever?A: Eu escrevo [pausa] eu gosto, as coisas que eu mais gosto de escrever éas coisas que a (profes)sora escreve no quadro: os textos, essas coisas.P: E o que tu escreves?A: O que eu escrevo?P: O que é que tu gostas mais?A: Fazer texto.P: Que tipo de texto que tu fazes?A: # Sobre os bichos, essas coisas, sobre, como vou dizer?...(Menino C, 13 anos)

Por menos dogmático que pareça, conversa com a supervisora educacionalda escola em conjunto com a professora indicou a única saída. Cabia-me sair dopapel de observadora e encarar o de docente, com o objetivo de demonstrar quemesmo crianças tidas como difíceis são capazes. A intervenção pedagógicadesenvolvida em 2003, com o grupo na 3ª série, foi desenvolvida dessa forma, massempre planejada em conjunto com a professora.

O mundo discursivo constitutivo das atividades de linguagem a que se dedicouo projeto situou-se no eixo de NARRAR6, mais especificamente relacionado à famíliade gêneros vinculados à narração. Um dos aspectos envolvidos diz respeito a como

6 Para Bronckart (1999), dois arquétipos discursivos estão presentes no eixo do NARRAR: o relato interativo,marcado pela disjunção ao referente, mas implicando uma interação social, e a narração (disjunta em relação aoreferente, mas autônoma em sua relação com a interação social).

Page 17: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

353Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 347-374, set./dez. 2006

Guimarães

se estruturam as narrativas, o que significa ter em mente um esquema narrativo,como apresentado por Adam (1985,1987) e Labov (2001). Esse último conceituanarrativa mínima como aquela que tem uma complicação e uma resolução. ParaAdam (1987), uma seqüência narrativa deve reunir os seguintes constituintes: nomínimo, um ator antropomorfo constante, que garanta a unidade de ação; mudançade estado, através de acontecimentos encadeados; encadeamento dessesacontecimentos em uma sucessão mínima de um tempo t a t+n; processo deconstrução de uma intriga pela integração dos fatos em uma ação única; causalidadenarrativa, em que o acontecimento que vem depois aparece como tendo sido causadopor um anterior; um fim sob forma de avaliação final. Uma seqüência narrativapoderia ser reproduzida como segue:

Figura 1 – Seqüência narrativa.

O diagnóstico dos textos produzidos pela turma na 3ª série apontou que,mesmo sob o rótulo de narrativa e a partir de título sugestivo: “Um passeioinesquecível”, faltava a todos a característica mais marcante da ação complicadora.Essa ausência também é sentida em grande parte das narrativas orais produzidasdurante entrevistas iniciais, em que aparece um relato de ações, sem uma açãocomplicadora:

Ah, é a do Puff que eu me lembro, a do Patinho Feio não é tão boa assim. Ah@ i , o Puff no livrinho dizia que ele era um ursinho que era muito feliz, queele pulava de um lado pro outro com seus amigos que era o Tigrão, oPorco, se eu não me engano é o Coelho e eu não sei os outros que tem. Ah@ i que ele era muito feliz, que ele pulava, no anoitecer ele ia pra casa, eletomava banho, fazia seus dever(es) de casa, e no outro dia, ele alevantavade manhã, tomava banho, se arrumava e ia pro colégio e aí depois que elechegava do colégio ele ia brincar de novo e aí depois de noite ele www sóme lembro essa parte. (Menina S: 10 anos)

Page 18: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

354 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 347-374, set./dez. 2006

Construindo propostas de didatização de gênero...

Uma primeira proposta de trabalho com gêneros textuais em seqüênciasdidáticas, com base em Schneuwly e Dolz (2004); Schneuwly (2002); Bronckart(1999); Cordeiro, Azevedo e Mattos (2004), foi desenvolvida no final da 3ª série.Foram, então, consideradas as regularidades do uso desse gênero em diferentesatividades de linguagem, sob um triplo ponto de vista: a) dos conteúdos econhecimentos veiculados pelo texto; b) das estruturas comunicativas comuns aostextos vistos como pertencentes ao gênero escolhido; c) das configurações específicasdas unidades lingüísticas que compõem o texto (SCHNEUWLY; DOLZ, 2004), parapermitir a construção do modelo didático que seria utilizado.

4.1 Tempo 1: a experiência com contos de fadas7

O gênero escolhido foi o conto de fadas, pelo interesse que as crianças, naentrevista, revelaram ter na leitura de títulos desse gênero. Inicialmente, caracterizou-se o gênero de referência, para estudar como transformá-lo em objeto deaprendizagem. Fica sempre marcante a necessidade de ultrapassar o que Schneuwly(2002, p.238-9) caracteriza como gênero escolar, marcado pelo fato de pertencer,simultaneamente, a dois lugares sociais: o da situação de referência que tentareproduzir o tema proposto e o da situação escolar da escrita, “definida notadamentepelo fato de que o aluno deve escrever para mostrar que ele sabe escrever e poraprender a escrever, de que escreve a mesma coisa e, ao mesmo tempo, quenumerosos outros de seus co-discípulos, de que ele sabe que seu texto correspondea uma ficção de situação à qual ele pode se identificar mais ou menos”, sem que seefetive uma troca comunicacional. Para tal fim, procurou-se, inicialmente, refletirsobre a “escolarização” do gênero de referência.

O gênero “conto de fadas” é considerado um gênero simples (CANVAT, 2003,p.173-174), no qual pode operar uma relação de conformidade, isto é, de duplicação,entre o texto e seu gênero, por se tratar de um gênero fortemente restringido por fórmulaspré-determinadas pela tradição. O uso de recursos lingüísticos é simples e direto. Osnomes de seus personagens representam as suas características (Bruxa Onilda). As palavrasformam uma imagem visual, principalmente na descrição de elementos fantásticos emágicos. A metamorfose das personagens, a magia, o encanto, o uso de talismãs e a forçado destino são também constantes neste gênero (JOLLES, 1993). Os contos de fada clássicosapresentam o mesmo esquema narrativo, no qual as dificuldades materiais do personagemsão apresentadas na situação inicial. A partir do desenvolvimento da ação, esse cotidiano

7 Esta experiência encontra-se descrita com mais detalhes em Guimarães (2004).

Page 19: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

355Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 347-374, set./dez. 2006

Guimarães

é alterado pela interferência do elemento mágico, o que permite a emancipação do heróie o clássico final feliz na resolução e na situação final. As personagens são planas, geralmentepoucas e sem complexidade psicológica. São, na maioria, jovens em idade de casar. Asqualidades físicas ou morais são nítidas em cada personagem. O tempo e o espaço sãoindeterminados, por isso, são comuns expressões genéricas do tipo: “era uma vez”, “hámuito tempo”, “num certo dia” e “num lugar distante” (ZILBERMAN, 1982). Observe-seque se optou pelo uso de contos de fadas ditos renovados, em lugar dos tradicionais, parapermitir uma melhor inserção do mágico na realidade atual.

A seqüência didática sobre o gênero conto de fadas foi organizada em 7 oficinas,a partir de uma ordem determinada para dar conta da dificuldade que se pretendeuvencer (a ausência de complicação no texto narrativo). Foi explicado aos alunos que elesteriam “oficinas de ESCREVER” por 2 meses. Nelas estudariam os contos de fada, sendodesenvolvidas atividades para que refletissem sobre suas características e pudessemproduzir eles mesmos contos de fadas, com acontecimentos mágicos.

O primeiro texto produzido por eles não teve orientação específica, a nãoser que deveriam apresentar um personagem inventado que se encontraria comuma bruxa. Na análise desse primeiro texto, foi possível verificar que a maioriamostrou conhecimento sobre a magia como componente básico dos contos defada, mas em grande parte não foi possível caracterizar a mudança de uma situaçãoinicial, que se dá, sobretudo, por uma ação complicadora. Nas produções finais,foi possível averiguar a reversão desta análise inicial.

Os módulos que compuseram as oficinas ficaram constituídos como segue:

Oficina 1 – O que é um conto de fadas?Apresentação da personagem que acompanhará o trabalho, a partir dadistribuição do livro As memórias da Bruxa Onilda (LARREULA, E.;CAPDEVILLA, R., 2002). Leitura comentada da história. Exploração dasprincipais características do gênero: a presença da magia e do encanto; ospersonagens típicos, as características de tempo e espaço indeterminados;os nomes típicos dos personagens; os momentos de apresentação dospersonagens e suas dificuldades na situação inicial; a presença de umacomplicação que atua sobre a situação inicial, a interferência do elementomágico para resolução deste problema; o final feliz.Escolha pelas crianças de um personagem para os seus contos de fada,que os acompanhará em todas as oficinas. Escrita de texto com a descriçãodeste personagem e apresentação à classe. Distribuição da história: No

Page 20: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

356 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 347-374, set./dez. 2006

Construindo propostas de didatização de gênero...

zoológico, com novas aventuras da Bruxa Onilda, para leitura em casa eescrita de um conto semelhante com seu personagem.

Oficina 2 – Nós podemos escrever um conto de fadas.A partir do sorteio de um dos personagens inventados, composição coletivade uma narrativa em que a Mulher Gata se encontra com a Bruxa Onilda,mediante proposta oral de segmentos, seguida de escrita no quadro. Oobjetivo da oficina foi entender o que é um conto de fadas (presença domágico) e sua característica de complexidade (vários acontecimentos) ea obrigatoriedade de conflito (marca do enredo).

Oficina 3 – Um conto de fadas apresenta vários acontecimentos(modificação da situação inicial e ações que respondem à nova situação)Análise da história A guerra, sob o ponto de vista de seu enredo. Escrita noquadro dos “grandes acontecimentos”. Em grupos de 4, elaboração deuma história coletiva com grandes acontecimentos, que envolvam opersonagem da capa de seus cadernos (personagens galácticos, quedeterminaram a separação dos grupos) e a Bruxa Onilda. Leitura e avaliaçãodessas histórias realizadas pelo conjunto da turma, a partir do critério deapresentarem vários acontecimentos, terem um enredo, um conflito.

Oficina 4 – É preciso reescrever o texto para que ele se aperfeiçoe.Introdução do procedimento de reescrita dos textos. Foi escolhido,aleatoriamente, um dos textos de cada grupo já analisado tematicamente naaula anterior, que foi copiado tal e qual em folha especial. Cada aluno leuindividualmente o texto recebido e assinalou o que imaginava ser um erro,escrevendo a forma certa ao lado. Essa mesma tarefa foi feita em conjunto8.

Oficina 5 – Colocando palavras, melhora...A partir de duas histórias mudas em seqüência (FURNARI, 2002), leituraoral dos quadrinhos e escrita posterior, sempre reafirmando os elementos

8 Ultrapassadas as questões de ortografia diagnosticadas pelos aprendizes (letra maiúscula e trocas), passei a outrosquestionamentos. Nenhuma criança apontou questões de pontuação (blocos de oração estavam presentes emtodos os textos), mas foram capazes de identificar os casos de discurso direto e usaram as convenções paramarcá-lo. Mesmo a necessidade de ponto de interrogação não foi percebida e teve que ser assinalada por mim, apartir de dramatização de leitura. O fenômeno descrito como blocos de oração (FRANCHI, 1990) mereceu umestudo à parte, uma vez que nenhum leitor percebeu-o, tendo feito parte de seqüência didática desenvolvidaposteriormente, a respeito do gênero ‘peça de teatro infantil’.

Page 21: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

357Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 347-374, set./dez. 2006

Guimarães

necessários para um conto de fadas, produção de textos no gênero. Foramavaliadas algumas das histórias escritas sob o ponto de vista de terem (ounão) reproduzido os acontecimentos dos quadrinhos e de apresentaremos elementos necessários para gênero. A história mais complexa foidramatizada, como forma de avaliar sua compreensão.

Produção final: Produção de um conto de fadas, que trouxesse novasaventuras da Bruxa Onilda e apresentasse todas as característicasestudadas. Esse texto foi lido também por duas outras professoras: asupervisora educacional e a professora da classe. Deles foram escolhidostrês contos que foram publicados como um livro infantil e distribuído a todos.

A avaliação das produções finais dos alunos demonstrou que o objetivo deconstrução de um texto inserido no gênero de escolha foi atingido. Apresenta-se, aseguir, uma análise dessas produções, a partir da proposta de Bronckart (1999),tratando do que ele chama de “infra-estrutura geral”, ou seja, o nível mais profundodo texto, de acordo com o gênero de texto escolhido, a pertinência do conteúdotemático desenvolvido no texto e as seqüências que o organizam. Foram investigadasas seguintes características:

Figura 2 – Análise da seqüência narrativa nos contos de fada.

Page 22: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

358 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 347-374, set./dez. 2006

Construindo propostas de didatização de gênero...

Comparando-se os resultados da produção inicial com a final, pode-se projetarum gráfico, como o da figura 3, que mostra a grande diferença entre a representaçãodo escrever como “escrever texto”, verbalizada pelas crianças na entrevista individuale manifestada na sua primeira produção, e a apropriação do gênero conto de fadas,que ocorre após a realização das oficinas.

Figura 3 – Comparação entre as produções iniciais e finais no conto de fadas.

Esses resultados deram-nos alento para a continuidade do projeto, ainda maisque, na primeira produção analisada, não havia mostras de que os alunos conheciamos elementos da seqüência narrativa, muito certamente, em função de que não eratratada adequadamente a questão de produção de qualquer tipo de texto. Nesse sentido,a presença da seqüência narrativa se mostra muito evidente, pelos percentuais elevadosem todos os seus elementos. A escolha de um gênero considerado simples, como é ocaso dos contos de fada, certamente contribuiu para este desempenho.

Por outro lado, foi necessário trabalhar com elementos relacionados a ortografiae pontuação, pois percebemos que os alunos não utilizavam com segurança algumasdessas convenções. Para isso, foram planejadas novas seqüências didáticas voltadaspara uma aprendizagem da escrita que permita ir além do fato de que “escrever seaprende escrevendo”. Este foi o ponto forte das experiências desenvolvidas na 4ª série.9

9 Foi desenvolvido, por uma bolsista do projeto, no ano seguinte, trabalho específico sobre questões de ortografiaque se mostraram recorrentes nas oficinas do conto de fadas. Em turno diverso do habitual, 10 crianças do grupoforam acompanhadas por um semestre.

Page 23: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

359Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 347-374, set./dez. 2006

Guimarães

4.2 Tempo 2: a seqüência didática com peça de teatro infantilAs tarefas propostas pela professora da classe da 4ª série não diferiam muito

das apresentadas na 3ª: ela trabalhava, geralmente, questões gramaticais e ortográficascom os alunos, que copiavam muitos textos do quadro e não exploravam as situaçõesespecíficas de comunicação. Na observação participante realizada pelos bolsistas dapesquisa, notou-se que os alunos vibravam com a possibilidade de participar deatividades de teatro10. Ao mesmo tempo, entendeu-se que o gênero “peça de teatroinfantil” poderia servir também a uma atividade lingüística, relacionada às convençõesde pontuação, que os alunos ainda não haviam construído com segurança. Para isto,partiu-se do pressuposto de que há “uma íntima relação entre o domínio da pontuaçãoe do formato gráfico do texto, tanto na formatação global (externa) quanto naformatação interna”, conforme Rocha (1996, p.24)11.

A caracterização do gênero em questão mostrou que toda peça de teatropara crianças (e adolescentes) deve apresentar um conflito bem delineado, compersonagens bem caracterizadas e uma solução clara (BELINKY; GOUVEIA, 1984).Assim, o espectador, através da identificação com uma das personagens ou comuma situação, sofrerá uma experiência, uma vivência pessoal com a correspondenteparticipação social. Além disso, uma peça teatral infantil, geralmente, apresentapersonagens maléficos, considerados “adversários” necessários. Da mesma forma,para as crianças menores, deve aparecer o final feliz na peça. Para desenvolvernossa seqüência didática, foi escolhida a peça teatral infantil O menino narigudo,de Walcyr Carrasco, como uma adaptação da peça Cyrano de Bergerac, do francêsEdmond Rostand12. Foram realizadas onze oficinas, que exploraram o gêneroescolhido e permitiram diversas atividades, com ênfase no projeto de produzir umapeça. Simultaneamente, foram explorados conhecimentos relacionados com apontuação, conforme as atividades a seguir discriminadas:

10 Naquele ano, a escola oferecia a oportunidade de curso extraclasse de teatro, o que despertou o gosto dascrianças pelas atividades cênicas. Elas só podiam, entretanto, ensaiar teatro fora da sala de aula, no turno oposto.Trazer o teatro para a sala de aula foi algo visto pelos alunos como surpreendente e maravilhoso.

11 Segundo Rocha (1996), o desenvolvimento da pontuação – quantidade e variedade – está relacionado com odomínio do formato gráfico do texto. A aquisição da pontuação segue uma ordem, é adquirida de fora paradentro. Inicialmente, as crianças indicam os limites textuais externos, como o final do texto e de parágrafos.Depois, detalham o texto internamente (frases e partes de frases), atentando para aspectos da fala e funcionais,como diálogos presentes em narrativas. Assim como a pontuação externa aparece antes da interna, também aorganização gráfica externa é anterior às distinções internas mais específicas, como a diferenciação gráfica entrenarrativa e discurso direto.

12 Esta escolha foi conduzida pela facilidade de acesso ao livro, recebido pela escola através do Programa Nacional do Livro.

Page 24: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

360 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 347-374, set./dez. 2006

Construindo propostas de didatização de gênero...

Produção inicial: Os alunos produziram um texto, a partir do que imaginavamser uma peça de teatro, com duas personagens: eu e meu vizinho Sr. X.

Oficina 1 – Conhecendo uma peça de teatroLeitura silenciosa e dramática de partes da peça teatral e depreensão dascaracterísticas mais importantes do gênero. Transformação de um fragmentoretirado da peça em uma narrativa. Relação das diferenças encontradas como texto original, para fixação das características da peça de teatro.

Oficina 2 – Aprendendo a usar as marcas de diálogoÊnfase na questão das marcas do diálogo, na comparação entre a narrativaproduzida na oficina anterior e o texto original. Continuação da leitura dapeça, com leitura dramática.

Oficina 3 – Aprendendo a pontuarPontuação coletiva e individual de partes da peça teatral, juntamente coma continuação da leitura da peça.

Oficina 4 – Criação de falasRetomada dos pontos de interrogação, exclamação e declaração e criaçãode falas em situações de comunicação, usando os pontos estudados. Leiturada poesia presente no ato da peça em análise e questionamentos sobre asdiferenças do gênero poesia. Continuação da leitura da peça e expectativassobre a próxima parte.

Oficina 5 – Crie você o final dessa peçaCriação do final da peça pelos alunos. Leitura dramatizada das criações,usando as pontuações utilizadas para marcação das ênfases.

Oficina 6 – Dramatizando uma peça de teatro.Aperfeiçoamento, em grupo, das histórias mais interessantes, tendo em vistauma futura dramatização. Ensaio e dramatização das histórias aperfeiçoadaspela turma. Leitura da parte final da peça e comentários sobre as semelhançase as diferenças entre o final do livro e o final criado pelos alunos.

Page 25: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

361Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 347-374, set./dez. 2006

Guimarães

Oficina 7 – Proposta de uma peça teatral em grupo.Construção conjunta e explicação das principais características de umapeça de teatro infantil. Em grupos, definição de tema e de personagenspara uma peça teatral. Escrita de uma peça de teatro a partir da propostaelaborada.

Oficina 8 – Aperfeiçoando a peça.Retomada das características de uma peça de teatro infantil, ressaltando apresença do conflito, das instruções de fala, das exigências para umarepresentação. Aperfeiçoamento da peça criada em grupo.

Oficina 9 – Caracterizando personagens e ações.Conclusão e aperfeiçoamento das peças de teatro dos alunos.

Oficina 10 – Dramatização de uma peça de teatro.As peças produzidas pelos grupos foram reunidas em um “livrinho” deteatro. Cada grupo escolheu uma peça, com a condição de não ser a sua,e a apresentou ao conjunto da turma.

Produção final: Crie a sua peça teatral. Criação individual de um atoteatral, para ser inserido na peça O menino narigudo, no qual o próprioaluno deveria se inserir como um novo personagem e dialogar com ospersonagens já existentes.

Dois pontos foram enfatizados na seqüência descrita: a questão do gêneropropriamente dito e a inclusão de uma questão relacionada a sua produção lingüística: apontuação. Com relação a este último aspecto, os progressos foram evidentes (figura 4).

Page 26: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

362 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 347-374, set./dez. 2006

Construindo propostas de didatização de gênero...

Figura 4 – Comparação entre o uso de pontuaçãonas produções iniciais e finais.

Com relação ao gênero peça de teatro infantil, a comparação entre a produçãoinicial e a final apontou resultados significativos em dois aspectos, que se inter-relacionam: a presença de discurso interativo e de diferentes vozes narrativas, com aintrodução das vozes dos personagens e não apenas a do narrador (figura 5).

Figura 5 – Produção inicial e final no gênero peça de teatro infantil.

A aceitação do trabalho motivou a docente a compartilhar outra seqüênciadidática, tendo sido escolhido o gênero história em quadrinhos. Em todas as ocasiõesdessa seqüência didática com teatro, um bolsista de iniciação científica do projetoesteve em trabalho conjunto com a professora da classe.

Page 27: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

363Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 347-374, set./dez. 2006

Guimarães

Esta seqüência didática comprovou, também, os desafios do trabalho comgêneros textuais em sala de aula. Se, por um lado, o desconhecimento dasconfigurações dos textos reconhecidos como pertinentes ao gênero, apresentado naprodução inicial, foi ultrapassado na produção final, em que os aprendizes mostraramreconhecimento dos elementos das estruturas comunicativas e semióticas partilhadaspelos textos reconhecidos como pertinentes às peças de teatro infantis, por outrolado, os conteúdos e os conhecimentos que se tornam dizíveis através do gênero nãoforam apropriados pelas crianças. Possivelmente, uma excessiva preocupação comas marcas formais, também características do gênero, acabou atenuando ouimpedindo discussões do conteúdo temático e da posição enunciativa. A análise doconteúdo temático veiculado nas produções finais parece mostrar que, em vez decaminhar no sentido de abstrair, progressivamente, critérios da forma de um gênero,para elaborar seus próprios critérios semântico-pragmáticos de escolhas temáticas,o aprendiz acabou “copiando” a forma, utilizando frases simples bastante artificiais,sem verdadeiramente compreender as diferentes situações dos jogos enunciativo etemático envolvidos numa peça de teatro infantil.

A título de exemplo, vejam-se extratos das produções inicial e final de umamesma aluna, P., aos 10 anos:

[...] O teatro de bonecos acabou fui direto para o teatro de pessoas contavaa história do Senhor X. as cortinas se abrirão e eu me imprecionei quandovi que o Senhor X era o meu vizinho seu José.Eu chegei em casa fui diretono meu vizinho para ele me contar como é fazer teatro eu fiquei facinadacom o que ele me dizia ele me contou que fazer teatro é maravilhozo eresolvi entrar no grupo de teatro da escola. Era muito divertido aconselhoa vocês entrarem no fantástico mundo do teatro. (Produção inicial)Um dia Roxana e Cirano estavam conversando na escola.O sinal bate eles dois entram e a professora fala:- Hoje temos uma aluna nova na escola!Mirtes pergunta:- Qual é o nome dela?A professora responde- É PriscilaGabi fala:- Mande ela entrar professora [...] (Produção final)

Page 28: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

364 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 347-374, set./dez. 2006

Construindo propostas de didatização de gênero...

4.3 Tempo 3: A seqüência didática com narrativas de detetiveQuinta série, nova docente, grupo básico dos alunos acompanhados

longitudinalmente bastante reduzido, pois eram, agora 11 alunos dos 20 iniciais13.Foi possível, entretanto, sem restrições, continuar o trabalho com gêneros textuais.

A escolha de outro gênero do NARRAR foi motivada pelo grande interessedemonstrado pelos alunos em histórias de mistério. A modelização do gênero“narrativas de detetive” partiu de conceito desenvolvido por Todorov (1970) sobreo que denomina de “história do suspeito-detetive”, que resulta da união de dois“subtipos de romance de suspense”: o chamado romance negro, também conhecidocomo “história do detetive vulnerável”, em que o detetive perde sua imunidade natrama; e o romance de enigma, que analisa um crime pessoal.

A narrativa de detetive (ou de mistério) constitui-se “em uma dualidade[...] esse romance contém não uma, mas duas histórias: a história do crime e ahistória do inquérito” (TODOROV, 1970, p. 96). Essas “duas histórias”, segundo oteórico russo, coexistem paralelamente dentro da narrativa. Enquanto as personagensda história do crime “agem”, “contam o que se passou efetivamente”; as personagensda segunda história, a do inquérito, “descobrem”.

A primeira história, a do crime, é uma espécie de “ponto de partida”, vistoque o interesse principal vem da segunda história, que trata do inquérito, dainvestigação, e que se desenrola no presente.

Na narrativa de detetive, é indispensável a presença de um mistério a sersolucionado, seja ele um crime, o sumiço de algo ou alguém, que garante a intriga, e operigo, a luta, a perseguição para o fim do mistério proposto na situação inicial da trama.

É interessante, ainda, observar o gosto dos alunos por estas histórias a partirda pré-adolescência. As características básicas que as compõem e a necessidade decriatividade e imaginação por parte do leitor na hora da leitura combinam exatamentecom as descobertas e mudanças enfrentadas pelos alunos nessa faixa etária, e aunião de todos estes elementos pode garantir um bom trabalho realizado com históriasde suspense na escola.

O planejamento da seqüência didática sobre narrativas de detetive seguiu osseguintes passos:

Produção inicial dos alunos: O professor fez uma breve introdução,relatando os objetivos do projeto que vai iniciar e perguntando se os alunos

13 Os resultados que serão apresentados nesta seção referem-se aos alunos da 5ª série que freqüentaram todas asoficinas, no total de 15.

Page 29: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

365Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 347-374, set./dez. 2006

Guimarães

conhecem histórias de suspense, mistério, crimes, detetives. A seguir foisolicitada a produção inicial sobre uma história de detetive, tendo sidoescolhido pela turma tema sobre “sumiço do meu colega ...”.

Oficina 1Caracterização do gênero narrativa de detetive com os alunos, a partir deperguntas como “Alguém aqui já leu histórias de detetives, já assistiu na TV, nocinema?”, “Conhecem algum livro, filme, história ou mesmo um detetivefamoso?”, “Quais?”. Leitura de texto do gênero “O Misterioso Telefonema”(Lourenço Cazarré). Proposição de questões sobre o gênero: levantamento devocabulário típico das narrativas de detetive, a presença de suspense, medo,mistério; características do conto, relativas à sua estrutura, como tempo, espaço,complicação, ações, resolução; análise dos personagens: o próprio detetive e opossível antagonista; existência de duas histórias paralelas: uma que está nopassado e diz respeito ao crime ou mistério; e outra, no presente, que rege ainvestigação do crime/mistério existente na primeira história. Análise da capada história com imagens e ilustrações que remontem à presença decaracterísticas de uma história de detetive, como suspense, mistério, investigação.

Oficina 2A partir de três textos de gêneros diversos (conto de fada, narrativa dedetetive e narrativa de terror), identificação do texto que apresentacaracterísticas de narrativa de detetive.

Oficinas 3 a 7Apresentação do livro “O vírus vermelho” (CARR, 1991), que acompanharáo desenvolvimento das oficinas. Análise do título e da capa do livro, a partirdos quais os alunos fazem uma série de inferências sobre o possíveldesenvolvimento da narrativa. Leitura do livro em partes. Em cada oficina,preenchimento de um “diário de leitura”, que auxilia na caracterizaçãodo gênero, pela identificação das ações ocorridas no capítulo e medianteo desafio de inferir as próximas. Após a leitura da narrativa em suatotalidade, montagem de um cartaz, com a seqüência completa da narrativa(situação inicial, a complicação, as ações decorrentes da complicação, aresolução e a situação final). Na última dessas oficinas, os diários de leituraforam reunidos, recebendo uma capa desenhada pelos alunos.

Page 30: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

366 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 347-374, set./dez. 2006

Construindo propostas de didatização de gênero...

Oficina 8Início da etapa de produção de narrativas de detetive. A primeira tarefa foirealizada em duplas e consistiu na construção de um enigma. Os alunosconstruíram as características que antes eram analisadas nas outras históriasde detetive, como as duas histórias paralelas, uso do vocabulário e dostempos verbais adequados, presença de pistas, de mistério, seqüência deações, etc. Ao final desta oficina, o material produzido pelos alunos foirecolhido para verificar o progresso da construção da história, que foicontinuada ao longo das oficinas seguintes.

Oficina 9A partir da releitura dos mistérios produzidos na aula anterior, foipreenchida uma ficha, que constituiu um roteiro para completar umanarrativa de detetive. Neste roteiro, foram estabelecidas as principaiscaracterísticas que uma história de detetive deveria conter, como osculpados, as vítimas, os investigadores, os motivos do mistério/crime, etc.Tanto os mistérios quanto os roteiros foram recolhidos, para análise.

Oficina 10A partir do mistério e do roteiro construídos anteriormente, a produçãofinal da narrativa de detetive é solicitada, de forma individual.

Oficina 11Após a realização da produção final da narrativa de detetive e da análise daprofessora, foi feito um trabalho de autocorreção, visto que os alunosdeveriam buscar soluções com o objetivo de melhorar sua narrativa dedetetive, sobretudo no tocante à organização textual e características dogênero de texto em questão.

Oficina 12As narrativas produzidas foram distribuídas a todos, para leitura ecomentários. Os próprios alunos escolheram três narrativas, para serem“publicadas” em livrinho especial. Os critérios para esta escolha foram ascaracterísticas do gênero.

Page 31: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

367Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 347-374, set./dez. 2006

Guimarães

A tabela a seguir (figura 6) mostra que houve progresso entre a produçãoinicial e a final, mas que nem todos os alunos atingiram as principais característicasdo gênero, ainda que todos apresentassem as marcas narrativas de complicação eresolução em suas produções finais.

Figura 6 – Comparação entre a produção inicial ea final nas narrativas de detetive.

Page 32: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

368 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 347-374, set./dez. 2006

Construindo propostas de didatização de gênero...

Figura 7 – Comparação entre as produções iniciais efinais das narrativas de detetive.

É possível observar que, desde a produção inicial, a grande maioria dos alunosmobiliza o conteúdo temático típico das narrativas de detetives, com exceção dassubcategorias “elaboração da intriga” (40% dos alunos) e “referência temporal”(20 % dos alunos). Após a realização da seqüência didática, o conjunto dos aprendizesdemonstra crescimento, criando situações típicas ao gênero.

Os resultados da figura 7 revelam que, já na produção inicial, os alunosmostram conhecer os princípios de organização de uma seqüência narrativa. Estesresultados confirmam a apropriação da seqüência narrativa, que ocorreu após aprimeira seqüência didática: os alunos habituaram-se a produzir textos orais e escritospertencentes aos gêneros do agrupamento narrar desde a intervenção didáticarealizada na 3ª série. Todos conseguem montar uma narrativa com situação inicial,complicação, ações dela decorrentes e resolução na produção final. No entanto,eles apresentam dificuldades na elaboração de “avaliações”, uma vez que menos de50% as apresentam (ainda que o percentual tenha crescido de 20% para 50%).

5 À GUISA DE CONCLUSÃO

O trabalho desenvolvido comprovou a afirmação de Schneuwly (2002) deque se aprende a escrever a partir da apropriação dos utensílios da escrita, no sentido

Page 33: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

369Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 347-374, set./dez. 2006

Guimarães

vygotskiano de que essa apropriação permite transformar a relação com o próprioprocesso psíquico da produção de linguagem:

As pesquisas em didática mostram que o cacife da aprendizagem da escrita– e, conseqüentemente, de sua aprendizagem – é a transformação do sistemapela construção de um novo sistema que reorganize de outra forma osdiferentes componentes que intervêm na produção de um texto.(SCHNEUWLY, 2002, p. 242)

A análise do produto texto, ao longo das 3 séries do Ensino Fundamental, mostrouque um trabalho com seqüências didáticas em torno de gênero textual determinadotem conseqüências muito produtivas nos textos dos alunos. As entrevistas realizadasdois anos depois, com os mesmos alunos, revelaram duas questões significativas. Porum lado, todas as narrativas orais mostraram-se disjuntas e autônomas em relação àsituação de produção, constituindo-se narrações14 (BRONCKART,1999). Por outro, aavaliação dos alunos sobre as experiências com “oficinas de escrever” foram muitointeressantes, a começar pelo adjetivo usado por todos eles para expressar essa avaliação:legal. Os motivos variam: “Porque antes eu não conseguia muito pensar assim prafazer as história(s). Agora eu (es)tou pensando melhor. Eu invento umas história(s)melhor.” (Menina B, 11 anos, 5ª série); “Agora eu (es)to(u) escrevendo melhor.Antes eu tinha, eu queria terminar tudo bem rápido, sabe? Daí fazia bem ligeiro.Agora eu tenho mais calma de escrever. Eu não escrevo tão rápido” (Menina G, 10anos, 5 série), mas todos referem o crescimento ocorrido. Retomando o exemplo damenina S, agora com 11 anos:

S: Eu achei legais, diferentes... interessante. Eu achei legal as história(s), oque eu mais gostei foi as histórias de detetive e as histórias em quadrinhos.P: Hmhmm. Por quê?S: Porque é uma coisa diferente, sei lá... as histórias em quadrinho(s) porqueeu, eu adoro ler. Eu faço minha mãe comprar pra mim todo mês uma revistaque tem uma história em quadrinho, sabe? E aí eu adoro ler história emquadrinho. Sempre gostei de ler historinha em quadrinho. E de detetiveporque é uma história que daí tu tem que lendo, lendo, lendo cada vez maispra ti descobrir quem é o culpado do que aconteceu.

14 Para Bronckart, configuram-se como tipos discursivos da ordem do NARRAR, o relato interativo e a narração. Amaior diferença entre eles situa-se na sua relação com o ato de produção. Enquanto o relato apresenta marcaslingüísticas de implicação na situação de produção (uso de dêiticos, por exemplo), a narração apresenta “caráterdisjunto-autônomo do mundo discursivo construído” (BRONCKART,1999,p.178).

Page 34: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

370 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 347-374, set./dez. 2006

Construindo propostas de didatização de gênero...

P: Isso mesmo. E tu acha(s) que esse... esses projetos que a gente fez teajudaram em alguma coisa?S: Ajudaram bastante.P: Em...S: No português.

Os resultados da análise das produções dos alunos, ao longo doacompanhamento da 3ª até a 5ª série, após a aplicação das seqüências didáticascorrespondentes, revelam transformações importantes em suas capacidades delinguagem. Os textos analisados mostram que as dificuldades relativas à organizaçãode seqüências narrativas foram praticamente resolvidas e que o domínio do conteúdotemático próprio ao gênero conto de fadas e narrativa de detetive foi atingido. Amaioria dos alunos viu-se capaz de mobilizar o conteúdo temático compatível com ogênero e de organizá-lo de maneira adequada, em função das diferentes fases deuma seqüência narrativa, acrescentando o elemento mágico como encadeador dasações, no conto de fadas, e encadeando as ações das personagens na progressão dasolução dos enigmas, no caso do gênero narrativa de detetive. Como comentadoanteriormente, no caso do gênero peça de teatro infantil, ainda que não tenha havidocom tanta propriedade a mobilização de conteúdo temático, ocorreu a apropriaçãodas estruturas semióticas características do gênero em questão.

Por outro lado, é preciso considerar que na elaboração de seqüênciasdidáticas, o papel do professor é fundamental. Essa foi justamente a maior dificuldadeencontrada na experiência relatada. Os resultados animaram os três docentes queparticiparam dessa caminhada, mas não garantiram sua adesão como proponentesde novas seqüências didáticas. Encontra-se, nessa questão, o obstáculo mais sério àdidatização do gênero, tal como vista pelo interacionismo sociodiscursivo. Há umsuporte teórico muito forte que deve respaldar a ação didática, mas que podepermanecer distante do professor de ensino fundamental, se este não receber apoioespecífico com este fim. Ao mesmo tempo, é preciso estar alerta para o que osprofessores dizem ser trabalhar com gênero (GUIMARÃES, 2005), pois deve estarpresente a diferença entre trabalho sobre um gênero, enquanto unidade comunicativaadaptada a uma dada situação, e trabalho sobre as seqüências15 que estão presentesneste mesmo gênero de texto.

15 Bronckart (1999) propõe que uma das dimensões de análise da infra-estrutura textual seja a da organizaçãoseqüencial ou linear do conteúdo temático. Enfatizando que as seqüências dialogam entre si, apresenta cincoseqüências básicas: narrativa, descritiva, argumentativa, explicativa e dialogal.

Page 35: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

371Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 347-374, set./dez. 2006

Guimarães

Recentes lançamentos didáticos (como BARBOSA, 2001; SOUZA, 2003;MACHADO; LOUSADA; ABREU-TARDELLI, 2004) podem contribuir para ajudar acaminhada docente nesta direção. O investimento no domínio desta prática e nossistemas formativos é longo e deve ser continuado. De qualquer modo, continuoacreditando que o caminho para mudar a realidade da escola brasileira é um trabalhode formação sério, que envolva prática docente e avaliação dessa prática, um fazer erefazer das ações de linguagem, numa interação entre pesquisadores de ensino delíngua materna, preocupados em também serem formadores de docentes, e ospróprios professores da Escola Fundamental.

REFERÊNCIAS

ADAM, J. M. Le texte narratif. Paris: Nathan, 1985.

______. Types de séquences textuelles élémentaires. Pratiques, n. 56, 1987.

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1979.

BARBOSA, J. P. Narrativa de enigma. São Paulo: FTD, 2001. (Coleção Trabalhando comos Gêneros do Discurso)

BELINKY, T.; GOUVEIA, J. Teatro para crianças e adolescentes: a experiência do TESP. In:ZILBERMAN, Regina (Org.). A produção cultural para a criança. 2. ed. Porto Alegre:Mercado Aberto, 1984.

BEZERRA, M. A. Ensino de língua portuguesa e contextos teórico-metodológicos. IN:DIONISIO, A.; MACHADO, A. R.; BEZERRA, M. A.. Gêneros textuais e ensino. Rio deJaneiro: Lucerna, 2002. p. 37-46.

BRASIL. Parâmetros curriculares nacionais de língua portuguesa: terceiro equarto ciclos do ensino fundamental. Brasília: MEC, 1998.

BRONCKART, J. P. Atividade de linguagem, textos e discursos: por uminteracionismo sócio-discursivo. São Paulo: EDUC, 1999.

______. Commentaires conclusifs: pour um développement collectif de l’interacionnismesocio-discursif. Calidoscópio, v. 2, n. 2, p. 113-123, jul/dez. 2004.

______. Les différentes facettes de l’interactionnisme socio-discursif. Conferência deabertura do Congresso Internacional Linguagem e Interação. São Leopoldo, 22 de agostode 2005.

Page 36: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

372 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 347-374, set./dez. 2006

Construindo propostas de didatização de gênero...

CANVAT, K. L’écriture et son apprentisage : une question de genres? Etat des lieux etperspectives. Pratiques, n. 117/118, p. 171-180, jun.2003.

CARR, S. O vírus vermelho. São Paulo: Scipione, 1991.

CARRASCO, W. O menino narigudo. São Paulo: Moderna, 2003.

CAZARRÉ, L. O sumiço do mentiroso. São Paulo: Atual, 1991.

CORDEIRO, G. S.; AZEVEDO, I. C.; MATTOS, V. Trabalhando com seqüências didáticas:uma proposta de ensino e de análise de narrativas de viagens. Calidoscópio, v. 2, n. 1, p.15-27, jun. 2004.

DOLZ, J.; NOVERRAZ, M.; SCHNEUWLY, B. Seqüências didáticas para o oral e a escrita:apresentação de um procedimento. In: SCHNEUWLY, B.; DOLZ, J. Gêneros orais eescritos na escola. Campinas: Mercado de Letras, 2004. p. 95-128.

DOLZ, Joaquim; SCHNEUWLY, Bernard. Gêneros e progressão em expressão oral e escrita:elementos para reflexões sobre uma experiência suíça (francófona) In: SCHNEUWLY, B.; DOLZ,J. Gêneros orais e escritos na escola. Campinas: Mercado de Letras, 2004. p. 41-70.

FRANCHI, E. Redação na escola: e as crianças eram difíceis. São Paulo: Martins Fontes, 1990.

FURNARI, E. A Bruxinha e o Gregório. São Paulo: Ática, 2002.

GUIMARÃES, A. M. M.; SIMÕES, L. J.; COSTA E SILVA, C. L. À procura de marcas danarrativa autônoma. Letras de hoje, v. 33, n. 2, p. 289-298, jun. 1998.

GUIMARÃES, A. M. M. Desenvolvimento de narrativas e o processo de construção socialda escrita. Calidoscópio, v. 2, n. 2, p. 67-74, dez. 2004.

______. Reflexões sobre propostas de didatização de gênero. Signum, v. 8, n. 1, p. 71-88 jun. 2005.

JOLLES, A. Formas simples. São Paulo :Cultrix, 1993.

LABOV, W. Uncovering the event structure of narrative. In: Georgetown UniversityRound Table 2001. Georgetown: Georgetown Un. Press, 2001.

LARREULA, E.; CAPDEVILLA, R. As memórias da bruxa Onilda.10. ed. São Paulo:Scipione, 2002.

MACHADO, A. R. Para (re-)pensar o ensino de gêneros. Calidoscópio, São Leopoldo, v.2, n. 1, p. 17-28, jun. 2004.

______; LOUSADA, E.; ABREU-TARDELLI, L. S. Resumo. São Paulo: Parábola, 2004.

ROCHA, I. L. V. Pontuação e formato gráfico do texto: aquisições paralelas. D.E.L.T.A.,

Page 37: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

373Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 347-374, set./dez. 2006

Guimarães

São Paulo, v. 12, n. 1, p. 1-34, fev. 1996.

SCHNEUWLY, B.; DOLZ, J. Os gêneros escolares: das práticas de linguagem aos objetos deensino. Revista Brasileira de Educação, n. 11, p. 5-16, 1999.

______. Gêneros orais e escritos na escola. Campinas: Mercado de Letras, 2004.

SCHNEUWLY, B. L’écriture et son apprentissage: le point de vue de la didactique - élémentsde synthèse. Pratiques, Metz, n. 115/116, p. 237-253, dez. 2002.

SOUZA, L. M. (Coord.). Letramento em ação. Goiânia: SEE, 2003.

TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. São Paulo: Perspectiva, 1970.

ZILBERMAN, R. Literatura infantil: autoritarismo e emancipação. São Paulo: Ática,1982.

Recebido em 31/10/05. Aprovado em 23/05/06.

Title: The construction of genre literacy proposals: challenges and possibilitiesAuthor: Ana Maria de Mattos GuimarãesAbstract: Since the publication of the National Curricular Parameters (1998), the concept of genrehas become a frequent topic in the didactic debate on how to teach Portuguese in the Brazilianschool context. This work seeks to reflect about a three-year experience with didactic sequencesbased on genres in an elementary school. The analysis of this experience illustrates a proposal ofhow to work with genres from the perspective of socio-discursive interactionism (BRONCKART,1999, 2004, 2005).Keywords: genre; didactic models; didactic sequences; Brazilian school system; socio-discursiveinteractionism.

Tìtre: Construisant des propositions de didactisation de genre: défis et possibilitésAuteur: Ana Maria de Mattos GuimarãesRésumé: Depuis la publication des Paramètres Curriculaires Nationaux, la notion de genre commeinstrument d’enseignement-apprentissage est devenue un point central dans le débat didactiquequi envisage l’enseignement du Portugais. Ce travail fait le rapport d’une recherche longitudinaled’un groupe d’enfants accompagnés de la 3ème à la 5ème classe de l’enseignement fondamental.Dans cette recherche, on a développé une expérience d’enseignement comme si c’étaient desséquences didactiques centrées dans des genres textuels. L’analyse de cette expérience permet demontrer ce qui signifie travailler avec des genres textuels dans la proposition théorique del’interactionisme sociodiscursif (BRONCKART, 1999, 2004, 2005).Mots-clés: genre de texte; modèle didactique; séquence didactique; enseignement fondamental;interactionisme sociodiscursif.

Título: Construyendo propuestas para la didáctica de género: desafíos y posibilidadesAutor: Ana Maria de Mattos Guimarães

Page 38: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

374 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 347-374, set./dez. 2006

Construindo propostas de didatização de gênero...

Resumen: Desde la Publicación de los Parámetros Curriculares Nacionales, la noción de génerocomo instrumento de enseñanza-aprendizaje pasó a ser un tema frecuente en el debate didácticode cómo enseñar portugués. Este trabajo relata una investigación longitudinal de un grupo dechicos acompañados del tercer hasta el quinto año de la enseñanza fundamental. En esta investigaciónse desarrolló una experiencia de enseñanza con secuencias didácticas basadas en géneros textuales.El análisis de esta experiencia ilustra una propuesta de trabajo con géneros textuales dentro de lapropuesta teórica del interaccionismo sociodiscursivo (BRONCKART, 1999, 2004, 2005).Palabras-clave: género de texto; modelo didáctico; secuencia didáctica; enseñanza fundamental;interaccionismo sociodiscursivo.

Page 39: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

375Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 375-387, set./dez. 2006

Baltar, Nardi, Ferreira e Gastaldello

CIRCUITO DE GÊNEROS: ATIVIDADES SIGNIFICATIVAS DE

LINGUAGEM PARA O DESENVOLVIMENTO DA

COMPETÊNCIA DISCURSIVA

Marcos Baltar*

Fabiele Stockmans de Nardi**

Luciane Todeschini Ferreira***

Maria Eugênia Gastaldello****

Resumo: Este estudo, que tem como base conceitual o quadro do Interacionismo Sociodiscursivo,é fruto da análise de atividades de sala de aula que vêm sendo sistematizadas no projeto de pesquisa-ação UCS-PRODUTORE, cujo propósito é investigar a natureza da formação inicial e continuada deprofessores de Língua Portuguesa. O principal objetivo desse artigo é discutir a potencialidade dotrabalho com a ensinagem de diversos gêneros textuais que circulam em diferentes ambientesdiscursivos da sociedade, extrapolando a dimensão exclusivamente escolar, por meio de umaatividade didático-pedagógica denominada Circuito de Gêneros, a qual busca desenvolver nosusuários da língua a sua competência discursiva.Palavras-chave: ensino; estratégia; gênero textual; atividade de linguagem; competência discursiva.

1 INTRODUÇÃO

Este trabalho analisa a experiência oriunda de uma atividade de sala de aula,que vem sendo sistematizada no projeto UCS-PRODUTORE, pesquisa-ação associadaà formação continuada de professores de Língua Portuguesa do Ensino Fundamental,desenvolvida na Universidade de Caxias do Sul. Trata-se de uma proposta de ensinagemcentrada na produção de textos que circulam em diversos ambientes discursivos, apartir da leitura responsiva de um gênero, considerado como texto gerador paraoutras produções.

* Professor da Universidade de Caxias do Sul – UCS. Doutor em Lingüística. E-mail: <[email protected]>.** Professora da UCS. Mestre em Letras. E-mail: <[email protected]>.*** Professora da UCS. Mestre em Comunicação e Semiótica. E-mail: <[email protected]>.**** Professora da UCS. Mestre em Educação. E-mail: <[email protected]>.

Page 40: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

376 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 375-387, set./dez. 2006

Circuito de gêneros ...

O quadro teórico de base é o Interacionismo Sociodiscursivo, teoria cujospreceitos encontram-se em contínua construção e a partir da qual é possível postularque o conhecimento e a apropriação dos gêneros textuais que circulam na sociedadeé uma condição basilar para o desenvolvimento da competência discursiva dosusuários de uma língua.

O artigo inicia com a apresentação do quadro de referências teóricas, seguidodo relato e da análise do trabalho com o Circuito de Gêneros.

2 QUADRO TEÓRICO DO ISD

A proposta de ensinagem da leitura e da produção de textos em língua materna(e, também, estrangeira), dentro do quadro teórico do Interacionismo

sociodiscursivo (ISD), permite estender a prática didático-pedagógica,tradicionalmente circunscrita ao gênero textual redação escolar, na sua configuraçãotradicional: dissertação, narração e descrição, para o trabalho com a diversidadedos gêneros textuais produzidos ao longo do tempo que circulam na sociedade.Trata-se de uma proposta de ensinagem que possibilita o acesso aos textos disponíveisno inventário socioistórico – arquitexto – para serem atualizados à medida que osusuários da língua entrem em interação por meio de uma atividade de linguagem.

O ISD define atividade de linguagem como um fenômeno coletivo deelaboração e prática de circulação de textos, cujo objetivo é estabelecer umacompreensão do contexto e das propriedades das atividades em geral; trata-se deuma meta-atividade que (re) semiotiza as representações humanas no quadro daspossibilidades disponíveis de uma língua natural. Quanto à noção de ação delinguagem, o ISD a define como uma parte dessa atividade, cuja responsabilidadeé imputada a um ator singular.

Como toda ação, a ação de linguagem apresenta ao mesmo tempo umadimensão comportamental ou física (ela requer um ato de tomada da fala ou daescrita de um agente inscrito no espaço-tempo, eventualmente em co-presença comoutros agentes) e uma dimensão social (ela se inscreve em uma forma de interaçãoque pré-determina os objetivos que podem ser almejados e que consagra aosemissores e receptores um papel social específico). Como as outras ações, igualmentea ação de linguagem pode ser vista sob um ângulo externo, isto é o que acontecequando uma situação física, papéis, objetivos, motivos são imputados ao agente/atorverbal ou quando cientistas procedem à descrição-análise desses fatores (que é um

Page 41: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

377Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 375-387, set./dez. 2006

Baltar, Nardi, Ferreira e Gastaldello

caso particular de avaliação social). Mas ela tem também um estatuto interno ouinternalizado que nunca é acessível diretamente ou enquanto tal (e que na investigaçãoé objeto de hipóteses): trata-se das representações de sua situação material e de seuposicionamento social forjadas por esse agente/ator verbal.

As atividades e ações de linguagem são consideradas como pertencentes aum nível de apreensão pré-lingüístico, visto que os fenômenos estudados e as noçõesque correspondem a esses fenômenos devem sempre poder ser analisados e definidossem levar em conta ou sem prejudicar as propriedades lingüísticas das realizaçõesverbais efetivas que as semiotiza, num quadro de uma língua natural dada.

Os lugares ou instituições sociais em que se organizam diferentes formas deprodução com respectivas estratégias de compreensão, em que ocorrem as atividadesa as ações de linguagem, por meio de gêneros textuais e de textos empíricos, sãodenominados ambientes discursivos. Determinadas atividades e ações delinguagem, realizadas potencialmente por gêneros textuais específicos, ocorrem,notadamente, mais em um ambiente discursivo do que em outro.

A noção de texto da qual se utiliza o ISD se assemelha à noção bakhtinianade enunciado/texto/discurso; ou seja, trata-se da unidade comunicativa verbal: oralou escrita, gerada por uma ação de linguagem, acumulada historicamente “no mundodas obras humanas”, que os indivíduos utilizam para interagir uns com os outrosnos diferentes ambientes discursivos da sociedade. Os textos, de acordo com suascaracterísticas estruturais e funcionais, como unidades de interação verbal humana,podem ser classificados em gêneros textuais, o que garante sua indexação noinventário geral historicamente construído pela interação humana denominadoarquitexto. Nesse recorte do mundo das obras humanas estão os textos etiquetadosem gêneros de textos, que são atualizados cada vez que ocorre uma ação de linguagem,e, portanto sempre suscetíveis de uma carga de novo aportada pelo estilo individualdos interlocutores e pelas restrições contextuais das atividades e das ações delinguagem produzidas historicamente. Se não fosse assim, como havia advertidoBakhtin (1997), a cada nova interação seria necessário criar um novo gênero textual.O reconhecimento e a escolha de um gênero que mediatiza o interagir verbal é aprimeira instância da interação verbal humana e é sempre dependente de uma açãogeral não verbal que se processa num determinado tempo e lugar social. Dito deoutra forma, onde há interação verbal há o exercício feito pelos interactantes demobilizar e atualizar um gênero indexado ao arquitexto, cujo produto será um textoempírico, de extensão indeterminada: desde um pedido de “socorro” até um livro

Page 42: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

378 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 375-387, set./dez. 2006

Circuito de gêneros ...

com centenas de páginas, dependendo da atividade interativa que está em jogo. Aduração do texto empírico é limitada pelo momento em que o locutor inicia ainterlocução até o momento em que a finaliza, na oralidade ou na escrita. Suatextualização leva em conta mecanismos de coerência temática: conexão e coesão, eposicionamento enunciativo (modalização e voz), categorias que estão a serviço dainteração verbal entre os interlocutores. A produção de um novo texto empíricosempre modifica o inventário histórico já construído dos gêneros textuais,denominado arquitexto, contribuindo para a sua constante renovação ao longo dahistória da interação humana. Os avanços tecnológicos da sociedade e ascaracterísticas de estilo de cada indivíduo ao mobilizar uma língua natural sãoresponsáveis pelo constante estado ad hoc do arquitexto.

O ISD considera que há espécies de textos, funcionando como unidadesrelativamente estáveis1 disponíveis no arquitexto, criadas historicamente pela práticasocial: atividades gerais e atividades de linguagem, circulando nos diversos ambientesdiscursivos, que os usuários de uma língua natural escolhem e atualizam quandoparticipam de uma atividade de linguagem, de acordo com o efeito de sentido que queremprovocar nos seus interlocutores. É o trabalho de análise e de conceitualização dessasespécies de textos que dá origem à noção empregada pelo ISD de gêneros textuais.

Ao propor o trabalho com a diversidade de textos que circulam nos maisvariados ambientes discursivos da sociedade, o quadro de ISD exposto em Bronckart(1999) permite depreender um trabalho de ensinagem de textos a partir da análisede suas dimensões cotextual (composição infra-estrutural, atitudes discursivaspredominantes, seqüências textuais a serviço da textualização) e contextual (osambientes discursivos, os suportes textuais em que ocorrem as atividades e ações delinguagem, o papel dos interlocutores na interação e o funcionamento dos gênerosnos ambientes discursivos), visando à apropriação dos gêneros como estruturasrelativamente estáveis à disposição dos usuários de uma língua para a interaçãosociodiscursiva.

Nessa perspectiva, o conhecimento dos textos que circulam na sociedade, desuas características e dos efeitos que produzem na interação social entre os usuáriosda língua é condição indispensável para que os professores, na sua atuação comomediadores dos trabalhos de leitura e releitura, de escrita e reescrita desses textos,possam ajudar seus estudantes a desenvolverem sua competência discursiva (BALTAR,2004). Ou seja, à medida que os usuários da língua constatam que determinados gêneros

1 Termo tomado de empréstimo a Bakhtin (1986).

Page 43: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

379Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 375-387, set./dez. 2006

Baltar, Nardi, Ferreira e Gastaldello

textuais circulam em determinados ambientes discursivos e, paulatinamente, seapropriam das estruturas relativamente estáveis em suas reais condições de produçãocomo leitores e produtores responsivos, desenvolverão sua competência discursivapara poder transitar na sociedade. A Competência discursiva é um amálgama decapacidades que o usuário de uma língua natural atualiza e concomitantementedesenvolve, quando participa das atividades situadas de linguagem que ocorrem nosdiversos ambientes discursivos da sociedade. Além de capacidades lingüísticas, textuaise sociocomunicativas, para viver de forma autônoma, esse usuário necessitacompreender as diferentes formações discursivas e os respectivos discursos quecompõem os ambientes discursivos dessa sociedade. Dominar a maior gama possívelde gêneros textuais, orais e escritos, disponíveis no inventário construídosocioistoricamente contribui para o usuário desenvolver sua competência discursiva,já que é por intermédio dos gêneros textuais que se dá toda a interação sociodiscursiva.A competência discursiva do usuário de uma língua abarca todas essas capacidades, édinâmica e está em constante desenvolvimento, pois é atualizada a cada momento emque ele participa de uma atividade situada de linguagem, de forma ativa e responsiva.

Isso vai ao encontro da proposta de Bronckart (1985, 1999, 2004, 2006),considerando a atividade de linguagem como uma característica própria da atividadesocial dos homens. As atividades de linguagem podem ser também consideradascomo eventos discursivos (unidades sociológicas, coletivas) dentro de zonas decooperação social determinadas – os ambientes discursivos ou, ainda, os lugaresdas formações sociais discursivas. Elas são o princípio constitutivo das ações delinguagem (unidades psicológicas, individuais), imputadas aos usuários da línguae organizadas em torno de unidades verbais2: os textos e os discursos.

Esse quadro teórico sugerido por Bronckart (1985, 1999, 2004, 2006) abregrande possibilidade para os professores de língua materna e/ou estrangeira ajudaremseus estudantes a desenvolver a competência discursiva por intermédio do trabalhocom textos, associando a leitura e a produção desses textos às atividades de linguageme aos lugares sociais/ambientes discursivos em que de fato ocorre a interação social.

Além disso, sob o prisma da ensinagem da produção e da recepção, o acessoaos diversos gêneros de textos que estão circulando na sociedade, considerados porSchneuwly e Dolz (2004) como megainstumentos de interação social, possibilita aoprofessor quebrar o paradigma do trabalho monológico com a redação escolar,

2 Embora em Bronckart (1999) se leia ‘unidades verbais’, é conveniente ampliar a noção de textos e discursos paraunidades semióticas, extrapolando a noção do verbal.

Page 44: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

380 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 375-387, set./dez. 2006

Circuito de gêneros ...

gênero de circulação limitada ao ambiente discursivo escolar; e do uso do textocomo pretexto para os exercícios estruturais, quase sempre prescritivos, acerca dagramática da língua.

Esse trabalho possibilita aos estudantes ler e escrever os textos que necessitamsaber para interagir socialmente: desde um bilhete até uma carta de pedido deemprego; desde uma resenha até um artigo científico; desde uma receita até ummanual de instruções; desde um boletim de ocorrência até uma procuração; desdeum anúncio classificado até um conto.

Desse modo, no intuito de ampliar o universo conceitual dos sujeitosenvolvidos no processo de ensinagem, na perspectiva do ISD, cabe antes trabalharcom o desenvolvimento da competência discursiva por meio de atividades e açõesde linguagem significativas e situadas nos variados ambientes discursivos, do quecom a língua apenas enquanto sistema. Essa abordagem permite potencializar aescola e a sala de aula para o trabalho com todos os gêneros textuais possíveis,podendo inclusive contar com a escolha conjunta dos sujeitos envolvidos (estudantese professores) acerca daqueles mais convenientes, segundo o programa de estudosde cada série.

3 CIRCUITO DE GÊNEROS

A atividade que denominamos Circuito de Gêneros surgiu da necessidade decriar um espaço propício para o vicejamento da versatilidade lingüístico-discursivados estudantes ao trabalhar, em um curto espaço de tempo, com vários gênerostextuais que circulam em ambientes discursivos diversos, com um grupo de estudantespara quem o contato com esses gêneros serviria como uma forma de, não sóreconhecer a variedade dos gêneros com os quais interagimos, como tambémexperimentar sua produção, mobilizando os conhecimentos necessários para tanto.Foi com tal propósito que desenvolvemos essa atividade didático-pedagógica, cujonúcleo é a possibilidade de trabalharmos a produção de gêneros variados a partir deum gerador (conto, carta, filme, entre outros), evitando, assim, que a atividade serestrinja à descrição desses gêneros. Partimos, então, de um conto para propor aprodução de novos textos/gêneros, oriundos de atividades de linguagem plausíveis,a partir do desvelamento do enredo da narrativa.

O trabalho com o Circuito de Gêneros inicia pela leitura do texto gerador, emnosso caso, o conto de Calvino (1990) Marcovaldo e as estações na cidade, cujas

Page 45: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

381Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 375-387, set./dez. 2006

Baltar, Nardi, Ferreira e Gastaldello

características possibilitam ao estudante construções operatórias reversíveis, uma vezque seu enredo, revestido de uma aparente simplicidade, guarda uma rica complexidadea ser explorada, tanto no que diz respeito à sua construção como um gênero do ambientediscursivo literário quanto às possibilidades interpretativas que gera.

O processo heurístico que subsidia esse trabalho oportuniza ummonitoramento diferenciado, tanto por parte do professor, quanto por parte dosestudantes, uma vez que envolve atividades metacognitivas de ambos, criando espaçospara atividades de ensinagem auto-reguladas que promovem o desenvolvimento daautonomia interativa dos estudantes.

Assim, fica evidente que o reconhecimento da estrutura do gênero não pode,de fato, ser a finalidade última dessa atividade, que precisa levar o estudante a umtrabalho interpretativo em que ele encontre a possibilidade de expressar o manancialde cenários e representações criadas a partir da compreensão do funcionamento dotexto/gênero textual na atividade de linguagem que está em jogo. As imagensconstruídas mobilizam os saberes por ele já interiorizados, criando a possibilidadede conexões entre esse imaginário descortinado pelo texto literário e suas vivênciasdentro do processo de interação sociodiscursiva.

A imersão no texto também permite a identificação do papel sociointerativodas personagens no conto. Parte-se da imagem que o estudante tem dessaspersonagens para o reconhecimento dos elementos lingüístico-textual-discursivosque subsidiam tal construção, movimento que oferece ao estudante a possibilidadede visualizar, também, o lugar ocupado por essas personagens no enredo e, portanto,construir inferências sobre os espaços da esfera social que o texto reconstrói.

O tratamento com vespas, cujo enredo envolve, em síntese, uma personagemchamada Marcovaldo, que descobre, por meio de uma notícia de jornal lida por umamigo reumático, um possível tratamento para o reumatismo – doença que assola apopulação de sua pacata cidade –, foi escolhido por ser altamente provocativo,gerando cenários variados e podendo desencadear uma série de atividades e açõesde linguagem. O tratamento desenvolvido por Marcovaldo é um procedimento nãomuito convencional que utiliza picadas de abelhas diretamente aplicadas no local dador. A invenção da personagem cria fama e Marcovaldo, envolvendo mulher e filhosno negócio, transforma sua casa em um consultório, passando a atender ali toda apopulação. Eis que de repente acontece um acidente na coleta das abelhas e umenxame raivoso adentra sua casa, atacando os seus pacientes que, juntamente com o“curandeiro”, terminam no hospital.

Page 46: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

382 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 375-387, set./dez. 2006

Circuito de gêneros ...

Como mencionamos acima, após a leitura do conto, o professor orienta aclasse no intuito de desencadear um processo criativo que remeta a atividades delinguagem e a gêneros textuais passíveis de serem atualizados pelos envolvidos nesseenredo. Algumas conjecturas são feitas, tais como a indignação dos pacientes deMarcovaldo que, com o desfecho da história, resolvem dar queixa na polícia,registrando, para isso, um Boletim de Ocorrência. O delegado resolve, então,abrir um Inquérito e despacha uma Intimação para Marcovaldo, que deverácomparecer na delegacia para prestar um Depoimento. Assustado, Marcovaldobusca a ajuda de um advogado que lhe solicita uma Procuração. Na seqüênciapodem surgir outros gêneros textuais do ambiente discursivo jurídico, os quais amaioria dos estudantes ignora, o que indica a possibilidade de um trânsito por esseambiente discursivo muito pouco explorado na escola.

À medida que o professor estimula e legitima a mobilização do universoimaginário dos leitores, a discussão do texto pode, também, encaminhar-se paraoutras direções, como aquela em que Marcovaldo, apesar de reconhecer osproblemas da primeira experiência, não contém seu entusiasmo e decide ir adiantecom a produção de seu “emplasto milagroso”. Vai até a agência publicitária dacidade e encomenda uma campanha para o lançamento de seu produto, o Vespol,Abelhol, ou qualquer que seja o nome do remédio, escolhido pela turma. Surge anecessidade de criar um Rótulo, uma Bula, um Fôlder, um Anúncio Publicitáriopara publicar no jornal da cidade e até um “Outdoor”. Na cidade não se fala deoutra coisa, portanto, o editor do periódico local, depois de ter divulgado a Notícia,na primeira capa do diário, encomenda ao seu repórter mais experiente umaReportagem completa sobre o evento. O repórter sai em busca de pesquisas acercade remédios dessa natureza; Entrevista especialistas, médicos, cientistas; pesquisana internet Artigos de divulgação científica; lê periódicos que publicam Artigoscientíficos para com isso embasar sua matéria. A edição do jornal causou furor nobiólogo da cidade que, indignado, escreve uma Carta de leitor à redação do jornal,protestando contra o uso de animais em práticas ilegais de curandeirismo. Ointelectual envia um Artigo de opinião, o jornal posiciona-se sobre o caso em seuEditorial explicitando a matéria. Os comentários são gerais em todo canto da cidade.Alguns moradores fazem Telefonemas, outros escrevem Cartas, outros ainda enviamE-mails. Um internauta resolve criar um Fórum de Debates sobre o assunto, e oCircuito está desencadeado.

Como é possível observar, essa proposta acaba propiciando um passeio porambientes discursivos muito diversos, fazendo com que os participantes realizem

Page 47: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

383Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 375-387, set./dez. 2006

Baltar, Nardi, Ferreira e Gastaldello

atividades de linguagem variadas, percebendo as adequações necessárias à suaatuação em cada uma dessas situações sociodiscursivas, modulações tais queconstituem etapas da dinâmica de auto-regulagem, potente recurso pedagógico noque tange à conquista de destrezas sociointerativas dos sujeitos envolvidos.

É possível acrescentar, ainda, que essas estratégias didático-pedagógicas, decaráter exploratório, são altamente significativas, visto que permitem acionar oconhecimento prévio do estudante, criando um cenário legítimo de estímulo aoprocesso inferencial, capaz de fazê-lo atualizar os diferentes gêneros que deveriamser mobilizados dentro de atividades de linguagem plausíveis, reconhecendo osambientes discursivos em que poderiam circular essas personagens. Oportuniza-se,assim, a atualização da habilidade de construção-desconstrução-reconstruçãoenvolvendo diferentes níveis de complexidade operatória do estudante, epotencializando seu trânsito entre múltiplas instâncias de saber, condiçãoindispensável à evolução do processo sociointerativo.

Além dos gêneros textuais anteriormente relacionados, são muitos os quepodem vir a ser produzidos em um Circuito de Gêneros, o que dependerá, diretamente,do texto selecionado como gerador da atividade. Enquanto o conto de Calvino propicia,por exemplo, que os estudantes cheguem à construção de um produto a ser colocadono mercado, no caso o medicamento para a cura do reumatismo, o que os leva àconstrução, por exemplo, de uma Embalagem, do Rótulo do medicamento, daBula que o acompanhará, etc.; outros contos, como é o caso de O gato preto, deEdgar Allan Poe, levam os estudantes a buscar gêneros como o Boletim deocorrência, Participação de falecimento, etc., o que revela o potencial desafiadorda atividade proposta, no sentido de oferecer um alto grau de liberdade para amanifestação da verve criativa dos estudantes. Muito produtivo, também, tem semostrado a proposição do circuito partindo do trabalho com um gênero do ambientediscursivo jornalístico: Anúncios classificados, que funcionaria como gerador deReportagem, Entrevista, até de um gênero do ambiente discursivo literário comoo Conto, envolvendo personagens em um enredo que tenha como input o objetoque está sendo anunciado. Considera-se produtivo esse trabalho não pelo fatorquantitativo de textos gerados a partir de um gênero, mas pela capacidade dereconhecimento dos diferentes ambientes discursivos e pela possibilidade daapropriação dos respectivos gêneros textuais que ali circulam. Em outras palavras, otrânsito pelos diferentes ambientes discursivos e o domínio dos gêneros textuais sãocomponentes decisivos para o desenvolvimento da competência discursiva, uma vez

Page 48: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

384 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 375-387, set./dez. 2006

Circuito de gêneros ...

que permitem aos usuários da língua interagir de maneira autônoma e potencialmenteresolutiva na sociedade.

3.1 A testagem da proposta na formação continuadaO trabalho com o circuito de gênero foi operacionalizado no primeiro

semestre de 2005, em duas instâncias sociais distintas: inicialmente na Universidadede Caxias do Sul, com estudantes das disciplinas de Língua Portuguesa Instrumental(doravante LPI) – de diversos cursos de graduação – e Estudo e Produção de TextosII – curso de Letras e, num segundo momento, nas oficinas de ensinagem de gênerostextuais, ministradas aos professores em formação continuada, das redes municipaisde ensino das cidades de Caxias do Sul e de Flores da Cunha, parceiras formais doprojeto de pesquisa-ação UCS-PRODUTORE. O trabalho com os estudantes de LPIfuncionou como “pilotagem” para a aplicação, subseqüente, junto aos estudantes deLetras – formação inicial – e, posteriormente, junto aos professores envolvidos nasoficinas de formação continuada. O foco de análise dos dados obtidos restringir-se-á às experiências vividas junto aos professores que participaram das oficinas deformação continuada.

As oficinas oferecidas, com duração de 20h cada, envolveram, por adesãoespontânea, uma média de 15 professores de Caxias do Sul e uma média de 10professores de Flores da Cunha, atuantes no Ensino Fundamental, nas séries iniciaise finais, em locais e momentos diferentes. Ao longo das oficinas, antes da atividadeenvolvendo o circuito de gêneros foi feita uma explicitação acerca das potencialidadesde ensinagem a partir dos gêneros textuais, valendo-se das contribuições dointeracionismo sociodiscursivo de Bronckart (1985, 1999, 2005, 2006), da teoriado discurso expressa em Bakhtin (1997), bem como do conceito de competênciadiscursiva proposto em Baltar (2004).

As oficinas enfatizaram que a apropriação de um gênero, para odesenvolvimento da competência discursiva, é um processo envolvendo,concomitantemente, a aquisição (o conhecimento do gênero e a apropriação dasua estrutura relativamente estável), o refinamento (a implementação de umprocesso de leitura e releitura, escrita e reescrita, que permita o trabalho do sujeitosobre essa estrutura relativamente estável que é o gênero) e a orquestração de

habilidades (a capacidade de atualização desses conhecimentos adquiridos pelosujeito dentro de uma atividade situada de linguagem na interação social).

Constatou-se de início que os professores conheciam de forma incipientedinâmicas didático-pedagógicas envolvendo a noção de gêneros textuais e que suas

Page 49: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

385Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 375-387, set./dez. 2006

Baltar, Nardi, Ferreira e Gastaldello

expectativas encontravam-se mais centradas em aspectos metodológicos do que emquestões epistemológicas, fatores levados em conta na operacionalização da oficina. Épossível dizer que esse trabalho provocou curiosidade, desencadeou motivação e gerouenvolvimento, acionando a imaginação dos professores para a amplitude das estratégiasde ensinagem a partir do trabalho com os gêneros textuais. Ao acionar a imaginaçãofoi deflagrado um clima de ludicidade entre os participantes, conferindo leveza àexperiência didático-pedagógica. Não obstante essa leveza oriunda do lúdico-prazeroso,a equipe da pesquisa-ação atuou no sentido de sensibilizar os professores paracompreender a necessidade de dominar uma matriz teórica consistente a fim de quepossam fazer os desdobramentos e as adequações didático-pedagógicos de forma criativae inovadora, propondo outras atividades que envolvam a ensinagem de gêneros.

Se, por um lado, o contato do grupo de professores com essa atividade tornouvisível tanto os seus conhecimentos prévios e partilhados quanto suas dificuldades efragilidades em relação à ensinagem dos gêneros textuais, advindas de sua formaçãoinicial, por outro lado, esse contato descortinou para esses sujeitos a possibilidadede ruptura de tradicionais procedimentos didático-pedagógicos os quais provocama varredura do prazer de aprender.

As atividades envolvendo o circuito de gêneros propiciaram a redescobertada dimensão laboratorial do processo de ensinagem, devolvendo à escola suaverdadeira configuração: a de uma instância privilegiada de investigação eexperimentação. Sob essas circunstâncias, o grupo de professores foi provocado arevitalizar sua ação didático-pedagógica que, não mais capitaneada apenas porconteúdos pré-determinados, passaria a incorporar, de forma interativa, os interessese necessidades dos estudantes, delineando o mapeamento do programa de estudos,em direção à competência discursiva.

Diante do interesse demonstrado e da intencionalidade declarada pelosparticipantes da oficina do circuito de gêneros, a coordenadora pedagógica da SMEDde Flores da Cunha solicitou assessoria à equipe do UCS-PRODUTORE, visandosubsidiar o planejamento dos professores para o ano letivo de 2006, no tocante aatividades equivalentes vivenciadas pelo grupo.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A experiência aqui relatada, fruto da pesquisa-ação UCS-PRODUTORE,procurou demonstrar a potencialidade de um trabalho didático-pedagógico deensinagem de gêneros textuais, a partir de atividades significativas de linguagem,

Page 50: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

386 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 375-387, set./dez. 2006

Circuito de gêneros ...

possibilitando de forma lúdica e prazerosa o desenvolvimento da competênciadiscursiva dos usuários de uma língua, extrapolando o ambiente discursivo escolare viabilizando o trânsito dos estudantes em outras instâncias de interação. A atividadedo circuito de gêneros foi desenvolvida com os professores das redes municipais deCaxias do Sul e de Flores da Cunha.

No tocante à formação continuada dos professores que atuam nessas cidades,é possível dizer que o trabalho funcionou como sensibilização acerca dessa propostade ensinagem, o que demanda um monitoramento sistemático tanto por parte dosórgãos gestores quanto por parte dessa equipe de pesquisa-ação. No caso de Caxiasalguns professores têm continuado o trabalho, mantendo interlocução sistemáticacom essa equipe, produzindo projetos de ensinagem por meio de gêneros textuais,como jornais e rádios escolares. Em Flores da Cunha, em decorrência dessa assessoriapara o planejamento da disciplina de Língua Portuguesa no ano letivo de 2006, aconvite da SMED, essa equipe de pesquisa-ação promoveu, no primeiro semestre,uma segunda oficina de ensinagem de leitura de gêneros textuais de diversosambientes discursivos, que será monitorada, como dispositivo integrante dessapesquisa-ação, cuja meta é estender-se para outros municípios da área de abrangênciada Universidade de Caxias do Sul.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

BALTAR, M. A. Competência discursiva e gêneros textuais: uma experiência com ojornal de sala de aula. Caxias do Sul: EDUCS, 2004.

BRONCKART, J.P. et al. Le fonctionnement des discours: un modèle psychologique etune méthode d’analyse. Lausanne: Delachaux & Niestlé, 1985.

______. Atividade de linguagem, textos e discursos. Trad. de Anna RachelMachado. São Paulo: EDUC, 1999.

CALVINO, I. O tratamento com vespas. In: ______. Marcovaldo e as estações nacidade. Trad. de José C. Barreiros. Lisboa: Teorema, 1990. p. 33-38.

SCHNEUWLY, B.; DOLZ, J. Gêneros orais e escritos na escola. Trad. e org. de RoxaneRojo e Glaís S. Cordeiro. São Paulo: Mercado de Letras, 2004.

Recebido em 24/10/05. Aprovado em 28/07/06.

Page 51: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

387Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 375-387, set./dez. 2006

Baltar, Nardi, Ferreira e Gastaldello

Title: Genre chain: significant language activities for the development of discursive competenceAuthor: Marcos Baltar, Fabiele Stockmans de Nardi, Luciane Todeschini Ferreira, Maria EugêniaGastaldelloAbstract: This study, based on the conceptual framework of socio-discursive interactionism, resultsfrom the analysis of school activities currently being systematized in the action-research projectUCS-PRODUTORE, which aims at investigating the nature of pre-service and in-service educationprograms for teachers of Portuguese. The main objective of this article is to discuss the advantagesof teaching, beyond the school dimension, several textual genres which circulate in different discursiveenvironments, through a didactic-pedagogical activity called Genre Chain, which attempts to developthe discursive competence of the language users.Keywords: teaching; strategy; genre; language activity; discursive competence

Tìtre: Circuit de genres: activités significatives de langage pour le développement de la compétencediscursiveAuteur: Marcos Baltar, Fabiele Stockmans de Nardi, Luciane Todeschini Ferreira, Maria EugêniaGastaldelloRésumé: Cette étude, qui a comme base conceptuelle le tableau de l’Interactionisme Sociodiscursif,est le fruit d’une analyse d’activités développées dans les salles de classe qui sont en train d’êtresystématisées dans le projet de recherche-action UCS-PRODUTORE, dont la proposition est celle derechercher la nature de formation initiale et continue de professeurs de Langue Portugaise. L’objectifprincipal de cet article envisage discuter la potentialité du travail avec l’enseignement de plusieursgenres textuels qui circulent dans divers milieux discursifs de la société, dépassant la dimensionexclusivement écolière, par le moyen d’une activité didactique-pédagogique appelée Circuit desGenres, qui cherche à développer chez les usagers de la langue leur compétence discursive.Mots-clés: enseignement; stratégie; genre textuel; activité de langage; compétence discursive.

Título: Circuito géneros: actividades significativas de lenguaje para el desarrollo de la competenciadiscursivaAutor: Marcos Baltar, Fabiele Stockmans de Nardi, Luciane Todeschini Ferreira, Maria EugêniaGastaldelloResumen: Este estudio, que tiene como base conceptual el cuadro del InteraccionismoSociodiscursivo, es fruto del análisis de actividades de clases que están siendo sistematizadas en elproyecto de investigación-acción UCD-PRODUTORE, cuyo propósito es investigar la naturaleza dela formación inicial y continuada de profesores de lengua portuguesa. El objetivo principal de esteartículo es discutir la potencialidad del trabajo como la enseñanza de diversos géneros textualesque circulan en diferentes ambientes discursivos de la sociedad, excediendo la dimensiónexclusivamente escolar, por medio de una actividad didáctico-pedagógica llamada Circuito deGéneros. Esta busca desarrolar en los usuarios de la lengua su competencia discursiva.Palabras-clave: enseñanza; estrategia; género textual; actividad de lenguaje; competenciadiscursiva.

Page 52: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM
Page 53: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

389Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 389-411, set./dez. 2006

Vian Jr.

GÊNEROS DISCURSIVOS E CONHECIMENTO SOBRE

GÊNEROS NO PLANEJAMENTO DE UM CURSO DE

PORTUGUÊS INSTRUMENTAL PARA CIÊNCIAS CONTÁBEIS*

Orlando Vian Jr.**

Resumo: Este artigo tem como objetivo relatar uma experiência de planejamento de um curso deportuguês instrumental na área de Ciências Contábeis. Meu ponto de partida está no conceito degênero discursivo da perspectiva sistêmico-funcional de linguagem (HALLIDAY; HASAN, 1989;MARTIN, 1992; EGGINS, 1994; THOMPSON, 1996; EGGINS; MARTIN, 1997), no conceito doconhecimento sobre gêneros (BERKENKOTTER; HUCKIN, 1995), associado ao conhecimentopartilhado pelos usuários ao utilizarem gêneros escritos (JOHNS, 1997), além de aspectosrelacionados ao planejamento de cursos instrumentais (ROBINSON, 1991; HUTCHINSON; WATERS,1987). Relato, em um primeiro momento, como tais conceitos foram operacionalizados para suaimplementação pedagógica. Em seguida, apresento algumas atividades desenvolvidas, bem comoas percepções dos alunos sobre tais atividades.Palavras-chave: gênero discursivo; aprendizagem; lingüística sistêmico-funcional; portuguêsinstrumental.

“But ‘glory’ doesn’t mean a ‘nice-knockdown argument’, Alice objected.“When I use a word”, Humpty Dumpty said, in rather a scornful tone,

“it means just what I choose it to mean – neither more nor less”.(Lewis Carroll, Through the looking-glass)

1 O ENSINO DE PORTUGUÊS INSTRUMENTAL EM CURSOS DEGRADUAÇÃO

É típico para o professor de ensino superior no Brasil a situação de iniciarum curso e deparar com alunos com uma formação deficitária, que chegam ao nívelsuperior com um embasamento fraco tanto em conhecimentos gerais como emconhecimentos lingüísticos, principalmente devido ao fato de o ensino médio não

* Agradeço aos alunos do 1º ano matutino de Ciências Contábeis de 2005 do Centro Universitário UniFecap pelaparticipação no projeto e disponibilização de suas atividades e exercícios.

** Professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e da UniFECAP. Doutor em Lingüística aplicada. E-mail:<[email protected]>.

Page 54: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

390 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 389-411, set./dez. 2006

Gêneros discursivos e conhecimento sobre gêneros ...

preparar os alunos para a vida acadêmica e também pelo fato de o ensino serdescontextualizado, não lidando com necessidades específicas relacionadas à vidaescolar em si, ao próprio aprender ou a estratégias de estudos requeridas de formamais constante no ensino superior que incite o aprender a aprender.

É claro que contribuem significativamente para esse contexto astransformações pelas quais vem passando o ensino de língua portuguesa, além dasnovas condições sociais de acesso à universidade, também em constante mudançanos últimos anos. Esse panorama dá ao ensino da língua um novo referencial, comoaponta Soares (1998, p. 57):

O quadro referencial para o ensino da língua passa então a ser a teoria da

comunicação, e a concepção de língua é a de instrumento de

comunicação. O ensino-aprendizagem da gramática e do texto, esteconsiderado modelo de língua “bem escrita”, perde sua proeminência; osobjetivos são, agora, pragmáticos e utilitários: trata-se de desenvolver aaperfeiçoar os comportamentos do aluno como emissor-decodificador ecomo recebedor-decodificador de mensagens, pela utilização ecompreensão de códigos diversos – verbais e não-verbais. Ou seja: já nãose trata mais de levar ao conhecimento do sistema lingüístico – ao saber a

respeito da língua – mas ao desenvolvimento das habilidades de expressãoe compreensão de mensagens – ao uso da língua. [aspas e grifos da autora]

Este é o cenário que funciona como ponto de partida para o trabalho relatadoneste artigo: uma experiência desenvolvida juntamente a alunos de primeiro ano deum curso de Ciências Contábeis em uma Instituição de Ensino Superior (IES, daquipor diante) particular na cidade de São Paulo, que utilizam a modalidade escrita dalíngua materna para desenvolver tarefas acadêmicas que não lhes foram previamenteensinadas, uma vez que o ensino de língua materna, mais especificamente no ensinomédio, e principalmente pelo famigerado e desvirtuado vestibular, tende a focar naforma e no produto e nunca no significado ou no processo. Os alunos simplesmentenão aprendem o processo da escrita, mas são apenas solicitados que produzamtextos de gêneros distantes daqueles que circulam em seu cotidiano, como, porexemplo, editoriais de jornal, um gênero pouco provável de ser produzido emcontextos cotidianos por cidadãos comuns. Importante sinalizar, contudo, que oseditoriais podem, dependendo da maneira como abordados na sala de aula, serutilizados a partir de uma perspectiva prática, em que o professor o tome comoobjeto de ensino para discutir a linguagem da mídia no ensino médio, por exemplo.

Page 55: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

391Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 389-411, set./dez. 2006

Vian Jr.

No ensino superior, por seu turno, solicita-se aos alunos que produzammonografias, relatórios, resumos, resenhas e outros gêneros; fazem-no sem nemmesmo lhes dizerem do que se trata ou para que propósitos comunicativos tais gênerossão destinados; isso ainda leva a uma severa crítica, por parte dos própriosprofessores, de que os alunos não estão aptos a produzirem textos, sem ao menosrefletirem sobre o fato de que muitos jamais foram expostos a tais gêneros, ou seja,exigem dos alunos algo a que não foram expostos ou que não lhes foi ensinado. E,no mais das vezes, o comentário do professor está tão-somente no uso da normaculta, relegando questões sociolingüísticas, de uso e de produção textual a outrosplanos. O professor, por outro lado, não leva em conta a relevância da exigência detais tarefas, nem estabelece um vínculo entre a vida acadêmica e a vida profissional,entre teoria e prática.

Com base em análise de necessidades desenvolvida em sala de aula e emminha própria experiência como professor de português instrumental, optei pelapilotagem e implementação de um curso no qual os gêneros do discurso fossem abase, com o objetivo de tentar atingir dois objetivos: (a) trabalhar com gênerosacadêmicos que os alunos supostamente necessitariam em sua vida acadêmica paraas demais disciplinas, baseado em levantamento prévio, assim como (b) gênerosprofissionais com que os alunos deveriam estar familiarizados para sua futura vidaprofissional. Assumo como pressupostos, aqui, e também como apontado por Cintra(1996), três aspectos importantes no ensino de português instrumental: o diagnóstico,o planejamento e a avaliação.

Inicio pela apresentação dos conceitos de gênero discursivo, conformepreceituado pela perspectiva sistêmico-funcional de linguagem, da noção deconhecimento de gêneros, assim como outros tipos de conhecimento com os quaisos interactantes lidam quando desempenham determinados gêneros, além de discutirquestões de planejamento de cursos a partir do prisma instrumental e o tipo deplanejamento adotado para o curso em questão. Descrevo, em seguida, os gênerosescolhidos para serem trabalhados no curso para atingir os objetivos na primeiraparte da experiência – uma vez que a segunda parte encontra-se em desenvolvimento–, algumas atividades desenvolvidas e as percepções dos alunos sobre elas. Concluoapontando alguns resultados preliminares, além de questões relacionadas àoperacionalização e à implementação pedagógica de uma proposta de ensino deprodução escrita com base na perspectiva sistêmico-funcional de linguagem.

Page 56: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

392 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 389-411, set./dez. 2006

Gêneros discursivos e conhecimento sobre gêneros ...

2 ENQUADRAMENTO TEÓRICO1

Três são os preceitos teóricos utilizados para a execução do projeto aquidescrito: (1) o conceito de gênero do discurso na perspectiva sistêmico-funcional(HALLIDAY; HASAN, 1989; MARTIN, 1992; EGGINS, 1994; THOMPSON, 1996; EGGINS;MARTIN, 1997, dentre outros), (2) o conceito de conhecimento sobre gêneros(BERKENKOTTER; HUCKIN, 1997) associado aos conhecimentos partilhados pelosusuários ao utilizarem determinado gênero (JOHNS, 1997) e (3) questõesrelacionadas ao planejamento de cursos instrumentais, conforme preceituado porRobinson (1991) e Hutchinson e Waters (1987).

2.1 Gêneros do discursoPosto de forma simples e direta, os gêneros são vistos como um sistema que

se estrutura em partes, através de meios específicos para fins específicos (MARTIN,1992). Thompson (1996) sinaliza que o gênero pode ser visto como registro maispropósito. Registro, aqui, está associado ao conceito de Halliday (HALLIDAY; HASAN,1989), indicando a variação de acordo com o uso, sendo que essa variação se dá emtrês níveis: campo (a representação das atividades sociais), relações (papéisassumidos pelos participantes da interação) e modo (o papel simbólico e retóricoda linguagem). Resumiríamos, assim, gênero como sendo o que os usuários fazemao utilizar a linguagem em interações sociais específicas e como organizam suasmensagens de modo a atingir seu propósito social.

Ao discutir a noção de Estrutura Potencial do Gênero (HALLIDAY; HASAN,1989) para o ensino da produção oral em inglês como língua estrangeira, apontei(VIAN JR, 2002) que, ao adotarmos uma postura didático-metodológica que tenhaos gêneros como ponto de partida, é necessário que tenhamos clara a distinçãoentre teoria e prática, entre o tecnicismo terminológico e o contexto prático da salade aula, para que não corramos o risco de usar um jargão que seja incompreensívelpara os alunos.

Ao adotarmos uma abordagem sociossemiótica (HALLIDAY, 1978), por outrolado, devemos ter as noções de gênero, registro e linguagem bem claras e, ao mesmotempo, como elas podem ser co-construídas juntamente aos alunos.

1 Partes deste enquadramento teórico foram adaptadas de minha tese de doutorado (VIAN JR, 2002), na qualdiscuto a questão da utilização dos gêneros do discurso – sob uma perspectiva sistêmico-funcional – para oplanejamento de cursos instrumentais de produção oral. no ensino de inglês instrumental.

Page 57: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

393Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 389-411, set./dez. 2006

Vian Jr.

O questionamento que se nos apresenta é: como explorar o conhecimentopossuído pelo aluno como usuário da linguagem para o ensino da produção escritaem língua materna?

A partir da experiência em seu próprio dia-a-dia, por utilizar gênerosdiariamente, a maioria dos aprendizes tem uma noção dos gêneros que circulamnos meios escolares. Estudos sobre situações de atendimentos em serviçosdesenvolvidos por Ventola (1984), e aplicados ao contexto de negócios no ensino daprodução oral para fins instrumentais (VIAN JR, 2002), adotam o uso de fluxogramaspara que se descreva a situação-alvo em que os alunos precisam interagir para que,em um momento posterior, os mesmos fluxogramas sejam usados como subsídiospara elaboração do conteúdo do curso.

Minha premissa para a utilização de fluxogramas é a de que, se os eventossão altamente previsíveis no contexto em que ocorrem, esses fluxogramas podemser produzidos pelos próprios alunos, uma vez que estes possuem o conhecimentoprático sobre a utilização dos gêneros. No mesmo trabalho (VIAN JR, 2002), apresentoalguns fluxogramas produzidos por profissionais em interações e como esseconhecimento pode ser transferido para a sala de aula.

Ao utilizar o fluxograma, o professor estará, ao mesmo tempo, aumentando aparticipação do aluno por ampliar seu papel no ensino e lidando com o seuconhecimento prévio, ao contrário de abordagens que não levam em consideração opapel participativo e colaborativo do aluno no processo de ensino-aprendizagem. Aotratarmos do ensino da produção escrita, estou me referindo especificamente a discutire a incitar os alunos a utilizarem seu conhecimento prévio sobre estrutura textual. Aexperiência tem mostrado que pelo menos o conhecimento da estrutura Exórdio-Desenvolvimento-Peroração proposta por Aristóteles (1941), em suas classificaçõespara a comédia e a tragédia, é demonstrado pelos alunos – é claro que comnomenclaturas como começo-meio-fim ou introdução-desenvolvimento-conclusão.

A partir desse conhecimento, é possível desenvolver em sala de aula a práticacom os alunos para que possam fazer predições sobre o desenvolvimento do textoque deverão produzir, focando, assim, o tão negligenciado processo de escrita esuas fases, dentre elas a geração de idéias e o planejamento do texto.

Essa abordagem com foco na aprendizagem (HUTCHINSON; WATERS, 1987)adaptada para o ensino de português instrumental, como será visto no item (c) aseguir, e que toma como base os gêneros que os alunos precisam utilizar no contextoacadêmico, incita à conscientização do aluno e de seu papel como participante do

Page 58: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

394 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 389-411, set./dez. 2006

Gêneros discursivos e conhecimento sobre gêneros ...

processo social em situações comunicativas presentes em seu cotidiano e leva emconsideração, do ponto de vista teórico, os conceitos propostos por Hasan de gênerode discurso e da Estrutura Potencial do Gênero (HALLIDAY; HASAN, 1989) do eventocomunicativo no qual estará engajado.

2.2 Conhecimento sobre gêneros e conhecimento partilhadoA expressão ‘conhecimento sobre gêneros’ (genre knowledge) refere-se ao

repertório individual que possuímos sobre respostas apropriadas a situações retóricasrecorrentes (BERKENKOTTER; HUCKIN, 1995, p. ix) em nosso cotidiano, ou seja, todavez que interagimos, acionamos determinados conhecimentos pertinentes àquela situação.

O conhecimento sobre gêneros, portanto, é sistemático. Por outro lado, porestarmos tratando de algo abstrato, pois não se pode mensurar ou prever oconhecimento de gênero de cada indivíduo, esse conhecimento é, ao mesmo tempo,complexo e dicotômico, por implicar elementos cognitivos e sociais (JOHNS, 1997,p. 21). Com base nessa sistematicidade, algumas características podem ser atribuídas,entre as quais Berkenkotter e Huckin (1995) citam o dinamismo, uma vez que osgêneros alteram-se em função das necessidades sociocognitivas; o posicionamento,pois sempre que utilizamos um gênero estamos envolvidos em alguma situação emnosso ambiente cultural; a forma e conteúdo, pelo simples fato de o gênero possuiruma estrutura através da qual o conteúdo é desenvolvido; a dualidade deestruturas, aqui referindo-se ao social que constituímos quando nos engajamosem atividades profissionais e, finalmente, a ligação a uma comunidade, pois asnormas de um determinado gênero variam de acordo com as normas epistemológicas,ideológicas e sociológicas de determinado grupo.

Johns (1997) adota uma perspectiva na qual relaciona o ensino da línguaescrita ao papel do produtor e do leitor do texto. Segundo a autora, a interação entreleitores e escritores é marcada pela partilha de alguns conhecimentos sobre gêneros,perspectiva semelhante à adotada por Berkenkotter e Huckin (1995) – apresentadaanteriormente –, ou seja, em ambos os trabalhos há a premissa de que, tanto nalinguagem oral quanto na linguagem escrita, há recorrência de elementos pertinentesàquela situação. É claro que aqui emerge o ponto de que tais recorrências estãoligadas à experiência do interlocutor em dado contexto, pois poderão ocorrersituações em que o usuário depare com eventos para os quais não conheça as atitudes,a linguagem ou os comportamentos esperados, o que nos permite, portanto,questionar a partilha de tais elementos, como sinalizaremos mais adiante.

Page 59: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

395Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 389-411, set./dez. 2006

Vian Jr.

Ao interagirmos socialmente, faremos uso obrigatório de um dentre osdiversos gêneros que circulam em nosso meio social. O simples fato de optar porum deles resulta diretamente no pressuposto de que meu interlocutor tambémconhece esse gênero e pode interagir comigo dentro das normas prescritas para ogênero em questão.

A partir dessa perspectiva, Johns (1997, p. 22-37) afirma que os interlocutorespartilham os seguintes conhecimentos sobre o gênero:

a) nome do gênero que estão utilizando;b) propósito comunicativo;c) papéis desempenhados;d) contexto;e) convenções textuais;f) conteúdo textual;g) registro;h) valores culturais;i) intertextualidade.Consideremos uma situação de interação cotidiana, como, por exemplo, fazer

um pedido de pizza para entrega em domicílio, pelo telefone. Ao fazer o pedido,coloco em ação o meu conhecimento sobre o gênero que irei utilizar, geralmenteanunciado no início da conversa: ‘quero fazer um pedido’, e o meu interlocutorpartilha o mesmo gênero. Ao colocá-lo em funcionamento, tenho uma intenção, queé o de receber a pizza em minha casa. Automaticamente, estão estabelecidos ospapéis de comprador e vendedor, usuário e atendente que cada um vai desempenharna interação e, conseqüentemente, essa interação acontece em um contextoespecífico: eu em minha residência e o atendente na pizzaria, teoricamente em locaispróximos, geralmente no mesmo bairro, para que a entrega seja rápida, fazendoparte, portanto, de uma esfera de atividade. As convenções textuais a serem utilizadasnessa interação também são preestabelecidas e tanto eu quanto o atendentepartilhamos as mesmas convenções.

Diversos são os estudos que tratam dessa convenção textual, como é o casode Halliday e Hasan (1989) e Swales (1990), para quem os gêneros possuemconvenções recorrentes utilizadas pelos usuários e materializadas em seus textos.Hasan (HALLIDAY; HASAN, 1989) utiliza os termos estágios obrigatórios, estágios

opcionais e estágios recursivos para tratar da organização textual, ao passo queSwales utiliza a nomenclatura movimentos e passos. Se considerarmos o ponto de

Page 60: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

396 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 389-411, set./dez. 2006

Gêneros discursivos e conhecimento sobre gêneros ...

vista de Halliday e Hasan, por exemplo, podemos dizer que, no exemplo que estouutilizando, o cumprimento inicial e final são estágios obrigatórios da interação.

Os usuários do gênero em questão também partilham o mesmo registro2, ouseja, as frases e o vocabulário que usarão na interação possuem característicasinformais, assim como as formas de tratamento que serão utilizadas. Associados aesses elementos estão os valores culturais, uma vez que a linguagem cotidiana émarcada por elementos do contexto; ao considerarmos, por exemplo, a escolha dosabor da pizza, diversos valores culturais entram em funcionamento, que podemestar ligados aos ingredientes locais disponíveis, por exemplo.

Finalmente, temos a consciência da intertextualidade, pois a linguagemutilizada na interação traz consigo elementos de experiências discursivas anteriores.Se considerarmos, por exemplo, uma pessoa que nunca tenha feito um pedido depizza por telefone e o faça pela primeira vez, talvez essa atividade possa ser marcadapela ausência de elementos intertextuais, ao passo que alguém que é usuário assíduode determinado fornecedor vai se utilizar de elementos intertextuais desse contexto,como em alguns casos de atendimento informatizado, em que somente dizer o númerodo telefone aciona as demais informações, já armazenadas em um sistema.

Devemos levar em consideração, entretanto, que o trabalho de Johns refere-se à utilização dos gêneros escritos no contexto acadêmico; logo, ao considerarmosum meio social mais amplo, como o exemplo dado acima, alguns dos elementospropostos pela autora tornam-se passíveis de questionamento, como é o caso dapartilha do nome do gênero utilizado, por exemplo. O trabalho de Freire (1998) –em que a autora pesquisa a produção de textos mediada por computador – apontapara o fato de que o nome do gênero que se está utilizando nem sempre é partilhadopelos usuários na mesma comunidade, pelo menos para os profissionais no contextoem que a autora pesquisou. Isso também é observável em sala de aula, principalmenteem atividades de produção escrita, nas quais se pede que os alunos produzam textose estes são materializados diferentemente do esperado, pois não há uma partilha emrelação ao nome do gênero. Outro questionamento que podemos levantar é o deque o indivíduo, ao interagir socialmente, não realiza conscientemente operaçõesque o levem a definir que gênero irá utilizar e todas as convenções sociais e textuaisa ele relacionadas. Pensemos num caso oposto: se solicitássemos a um usuário que

2 O conceito de registro utilizado por Johns (1997) refere-se à predominância de determinadas característicaslexicais e gramaticais em um gênero específico. Diferencia-se do conceito de registro utilizado na gramáticasistêmico-funcional, um conceito tripartite (campo, participantes e modo) relacionado ao contexto de situação(HALLIDAY; HASAN, 1989).

Page 61: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

397Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 389-411, set./dez. 2006

Vian Jr.

desempenhasse uma tarefa que nunca houvesse desempenhado, sua atitude seriabuscar, juntamente a outros usuários que utilizassem aquele gênero, pistas para asua utilização, ou seja, os conhecimentos propostos por Johns seriam inerentes aonovo gênero aprendido, não havendo uma relação unívoca entre convenções textuaise convenções sociais.

No ensino de língua materna, essas premissas também podem ser utilizadas.Relato, especificamente, o problema recorrente que enfrento com os gêneros resumo

e resenha, já que muitos professores costumam confundi-los, solicitando a produçãode um gênero, mas indicando características do outro, colocando os alunos, muitasvezes, num embate terminológico.

No contexto empresarial, esse fato também está presente. Os estudos deBarbara et alii (1996) e de Celani e Scott (1997) revelam que os mesmos documentossão utilizados por diferentes empresas com nomes diferentes. O que é memorandoem uma empresa, por exemplo, pode ser denominada comunicação interna emoutra, embora o propósito comunicativo, assim como outras características textuaise formais, sejam idênticos.

A proposta de utilização dos conceitos de gênero e conhecimentos sobre gênerosestá associada, portanto, ao fato de os alunos, no ambiente acadêmico, produziremtextos pertencentes a gêneros de situações extremamente ritualizadas, cuja linguageme conteúdo são previsíveis. Daí poder basear o ensino da produção escrita nos gênerosdo discurso que os alunos utilizam e usarmos o próprio conhecimento do aluno, comousuário potencial do gênero em questão, como ponto de partida para as aulas,reforçando, assim uma participação mais colaborativa do aluno, acentuando suaparticipação nas aulas e aumentando, simultaneamente, sua motivação.

2.3 Planejamento de cursos instrumentaisPlanejar um curso, na visão de Hutchinson e Waters (1987, p. 21), é

basicamente uma questão de elaborarmos perguntas de forma a fornecer uma baserazoável para os processos subseqüentes de planejamento, produção do material,ensino e avaliação.

Três fatores são essenciais no planejamento de um curso instrumental: oconteúdo, a metodologia e a situação-alvo. Conseqüentemente, o profissionalencarregado de planejar e desenvolver um curso deve ter consciência de todos oselementos imbricados nesses três fatores, pois cada um deles traz consigo uma sériede outros.

Page 62: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

398 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 389-411, set./dez. 2006

Gêneros discursivos e conhecimento sobre gêneros ...

Ao falarmos em conteúdo, é necessária uma visão ampla de métodos deensino e descrição lingüística, para que se opte pelo tipo de método a ser utilizadono curso, e, mais especificamente, neste caso, dos princípios da abordageminstrumental. Ou seja, é necessário que se tenha uma visão macro da evoluçãohistórica dos métodos para que se utilize um critério claro e que atenda àsnecessidades dos alunos. Ao falarmos em metodologia, questões sobre teorias deaprendizagem vêm à tona, tendo em vista que se deve optar pela abordagem queserá utilizada no curso, e esta também pode variar de diversas formas, desde teoriasbehavioristas até as humanistas ou afetivas. Finalmente, quando falamos da naturezada situação-alvo, fatores como para quem o curso será planejado, o porquê, ondeserá ministrado e quando são elementos que merecem atenção e que são solucionadosbasicamente através da análise de necessidades.

Um conteúdo baseado em itens lingüísticos é o mais comum em cursosinstrumentais e baseia-se na análise da situação-alvo e na identificação dos itenslingüísticos característicos dessa situação. No entanto, os autores apontam váriasdeficiências inerentes a esse tipo de planejamento. A primeira delas diz respeito aopapel do aprendiz, que não é considerado no decorrer do curso, mas é apenasusado como um meio para se identificar a situação-alvo; outro problema estárelacionado à inflexibilidade: o curso é montado a partir da análise de necessidadesiniciais, podendo resultar em erros e incorreções, as quais, conseqüentemente,deveria resultar em alterações no curso, mas que, nesse caso, não seriam possíveis.Por fim, o conteúdo baseado em itens lingüísticos da situação-alvo está relacionadoapenas ao nível superficial, revelando muito pouco sobre a competência que subsumeo desempenho (HUTCHINSON; WATERS, 1987, p. 67-68).

O conteúdo baseado em estratégias é um dos mais tradicionais no Brasil,como é o caso do Projeto Nacional Ensino Instrumental em Universidades Brasileiras(CELANI et alii, 1988). Segundo o Projeto, a necessidade dos alunos em universidadesbrasileiras está centrada na leitura de textos em inglês que não se encontramdisponíveis em língua materna.

Dois são os princípios apresentados por Hutchinson e Waters (1987, p. 69)para a abordagem baseada em estratégias. O primeiro é teórico e objetiva focar acompetência que subjaz ao desempenho, apresentando, dessa forma, objetivos deaprendizagem tanto em termos de desempenho como de competência. Pode haver,por exemplo, a meta de fazer com que o aluno esteja apto a identificar e classificartextos de acordo com seu objetivo (no nível de desempenho) e que esteja apto aextrair informações específicas desses textos (no nível da competência). O segundo

Page 63: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

399Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 389-411, set./dez. 2006

Vian Jr.

princípio é a base pragmática dos cursos centrados em estratégias. Portanto, o papelda análise de necessidades em uma abordagem centrada em estratégias será duplo,fornecendo uma base para se descobrir a competência subjacente ao desempenho epermitindo descobrir o conhecimento prévio e as estratégias trazidas pelos alunospara a sala de aula instrumental.

Por fim, os autores propõem uma abordagem centrada na aprendizagem,pois as duas anteriormente apresentadas possuem limitações: a abordagem centradaem itens lingüísticos considera o aluno apenas na identificação da situação-alvo edos itens lingüísticos pertinentes àquela situação, e uma abordagem centrada emestratégias considera o aluno somente na análise da situação-alvo e na análise dasituação de aprendizagem. Todavia, a abordagem proposta pelos autores considerao aluno em todos os estágios, desde a identificação da situação-alvo, sua análise,análise da situação de aprendizagem, planejamento dos materiais e conteúdos, suaprodução, seu ensino e sua avaliação.

Os autores chamam a atenção para a complexidade desse processo, mas,por outro lado, apontam para o fato de que o embasamento para sua adoção está nacomplexidade do próprio processo de aprendizagem, daí ter optado, no planejamentodo curso aqui relatado, por uma abordagem centrada na aprendizagem, consideradas,sem dúvida, as diferenças em se planejar um curso de inglês instrumental e umcurso de língua materna com fins instrumentais.

3 A PESQUISA E SEU CONTEXTO

A idéia para este projeto surgiu de minha experiência em uma IES na cidadede São Paulo, onde ministro as aulas de Português Instrumental nos cursos deAdministração de Empresas e de Ciências Contábeis. Ocorreu, principalmente, emfunção de minha frustração com o desempenho dos alunos, que por muito tempo –mesmo a disciplina tendo a denominação de “instrumental” – foram expostos auma visão estruturalista de ensino de língua portuguesa. Considerei, ainda, asreclamações dos próprios alunos da dificuldade de se aprender a língua, bem comoos comentários dos demais professores de que os alunos não eram competentes nouso da língua. Vislumbrei, pois, a possibilidade de implementação de um curso emque questões mais práticas fossem abordadas.

Esse cenário gerava um grande desconforto, uma vez que, em algunsmomentos, estava claro que a exigência dos professores estava centrada em suas

Page 64: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

400 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 389-411, set./dez. 2006

Gêneros discursivos e conhecimento sobre gêneros ...

representações sobre a norma culta, carregadas de um tanto de preconceitoslingüísticos, pois julgavam que o aluno deveria dominar com precisão a norma culta,embora seja óbvio, pela prática cotidiana, que esta norma é dominada por poucos.Além, é claro, de um desencontro entre o que se ensina e o que se pede em outrasdisciplinas, não havendo preocupação alguma com a interdisciplinaridade, pois nãohavia diálogo entre as disciplinas.

Com esse panorama em mente, associado à minha própria experiência como ensino da abordagem instrumental e também do ensino de língua materna, alémde meu envolvimento com a perspectiva sistêmico-funcional de linguagem, opteipela experiência de planejar um curso que levasse em conta ambas as teorias e que,ao mesmo tempo, pudesse ir ao encontro das necessidades tanto dos alunos comodos professores, como o foco na aprendizagem.

3.1 Perfil do grupoComo as turmas do período noturno na IES em questão possuem maior número

de alunos em sala, optei por uma turma do período matutino, composta de 25 alunos,de modo que o material idealizado poderia ser preparado e pilotado, havendo, ainda,a possibilidade de refacções, caso erros ou inconsistências fossem detectados.

O currículo para o curso de Ciências Contábeis prescreve quatro aulas semanaisde cinqüenta minutos para a disciplina Português Instrumental. O fato de ter quatroaulas também reforçou minha opção, pois no curso de Administração de Empresas háapenas duas aulas semanais, o que restringiria o escopo de minha pesquisa.

3.2 Os gêneros acadêmicos selecionadosUma das tarefas árduas ao se trabalhar com gêneros do discurso no ensino

de língua materna é a de selecionar os gêneros a priorizar. Travaglia (2002, p. 203)aponta que dois são os desafios a serem enfrentados pelo professor:

a) em primeiro lugar, decidir-se por um aparato teórico sobre tipologiatextual que dê sustentação à sua prática de sala de aula;b) em segundo lugar, considerando o imenso número de tipos de textosexistentes em nossa cultura e tendo em vista a impossibilidade absoluta detrabalhar com todos eles no pouco tempo disponível nas aulas, decidircom quais trabalhar em sala de aula, de modo a “instrumentalizar” os alunospara a interação comunicativa competente no maior número possível desituações distintas de interação. [aspas do autor]

Page 65: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

401Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 389-411, set./dez. 2006

Vian Jr.

Feita a opção pela perspectiva sistêmico-funcional como aparato teórico parasustentar a minha prática de sala de aula, foi necessário, em momento posterior,selecionar, dentre os gêneros necessários aos alunos e aqueles solicitados pelosprofessores, os que atendessem mais eficientemente as necessidades de ambos. Dessaforma, três foram os gêneros selecionados: 1) resumo; 2) respostas dissertativas; e3) artigo acadêmico.

A opção pelo primeiro se dá em função de ser um gênero muito solicitadopelos professores como atividade a partir dos textos que os alunos lêem. Considereitambém a importância dos resumos como uma estratégia de aprendizagem, umavez que poderiam ser usados mais tarde para estudos e referência.

Quanto à opção pelas respostas dissertativas, parti tanto da análise denecessidades junto aos alunos como dos comentários de professores de que os alunosapresentavam problemas ao responder a tais perguntas em provas. Utilizei, paraisso, os três exames do Exame Nacional de Cursos (popularmente referido como“Provão”) dos anos de 2002, 2003 e 2004, bem como as experiências de Machado(2000) – na qual se estudam as instruções de questões do “Provão” de Administração,Odontologia, Direito, Letras, Jornalismo, Engenharia Civil, Engenharia Química eVeterinária – e de Fonseca (2002), em que a autora desenvolve uma pesquisa com oobjetivo de caracterizar o gênero “questões dissertativas de provas” para os cursosde Letras, História e Pedagogia e, a partir daí, propor uma abordagem visando aodesenvolvimento de tal gênero na leitura e na produção escrita; ambas as pesquisastomam como base teórica o interacionismo sócio-discursivo.

A opção pelo artigo acadêmico, finalmente, deu-se em função de ser umgênero muito freqüentemente utilizado nos meios universitários, principalmente paraleitura, sendo que, no caso específico da IES onde foi feita a pesquisa, no quarto anoos alunos têm por tarefa a elaboração de um artigo acadêmico. Acrescento, no entanto,que, na disciplina de Português Instrumental, seriam abordados apenas os aspectoslingüísticos e textuais, pois os alunos cursam a disciplina Metodologia de Pesquisa,momento em que serão abordados os aspectos metodológicos para a elaboraçãodos artigos.

4 ALGUMAS TAREFAS DESENVOLVIDAS

Diversas tarefas foram planejadas com o objetivo de familiarizar os alunoscom os gêneros acadêmicos solicitados por professores de outras disciplinas dentro

Page 66: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

402 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 389-411, set./dez. 2006

Gêneros discursivos e conhecimento sobre gêneros ...

do programa do curso. O foco inicial foi colocado nas sete disciplinas do currículo:Contabilidade, Sociologia, Matemática, Psicologia, Direito, Economia, Teoria Geralda Administração e Português Instrumental.

Apresentarei aqui, por uma questão de espaço, apenas três atividades, emtrês momentos distintos, para que possa ilustrar como operacionalizei os conceitossistêmico-funcionais, num primeiro momento, e, em seguida, como os implementeipedagogicamente, de forma que os alunos pudessem realizar as tarefas solicitadas.

4.1 Atividades de conscientização e familiarização dos alunos comos conceitos

Após a seleção dos três gêneros, era necessário que se operacionalizasse oconceito de gênero de discurso, bem como as noções de contexto de cultura e decontexto de situação e demais conceitos relacionados, como registro, campo, relaçõese modo (HALLIDAY; HASAN, 1989), fulcrais na abordagem sistêmico-funcional, eque deveriam se tornar compreensíveis aos alunos, para que, em seguida, pudessemutilizá-los em suas tarefas e também para que a nomenclatura pudesse ser usadamais tarde em enunciados de tarefas.

Na primeira atividade de conscientização, com o objetivo de trabalhar tantoo conceito de gênero como de indicar ao aluno o conhecimento que possui sobre osgêneros que circulam em seu meio sócio-histórico, foram distribuídos aos alunosdiferentes tipos de textos, pertencentes a vários gêneros, dentre eles: horóscopo deum signo para o dia, manual de um aparelho eletrônico, receita de um prato, bulade remédio, trecho de um contrato de locação, trecho de um chat, bilhete daempregada para a patroa comprar algum produto de limpeza, versículo da Bíblia,recado para o chefe, recado para a mãe, email a um(a) amigo(a).

Foi solicitado, na seqüência, que os alunos analisassem os textos do ponto devista textual, discursivo e do gênero, e, para atingir tais objetivos, deveriam comentaro vocabulário de cada texto, o layout e a estrutura de cada um, o produtor, o receptor/consumidor, a fonte, a intenção, a idade do público a que se destina, aspectogramatical, diferenças em termos de linguagem e quaisquer outras informações quechamassem a atenção do grupo, focando, acima de tudo, o porquê de reconheceremtais textos, indicando o conhecimento prévio que possuem sobre os gêneros queutilizam em seu cotidiano.

Depois dessa atividade, os alunos deveriam apresentar seus resultados paraa sala e discutir as diferenças e semelhanças, com o objetivo de perceberem adiferença entre as noções de texto e de gênero discursivo. Trabalhou-se, aqui, com o

Page 67: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

403Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 389-411, set./dez. 2006

Vian Jr.

objetivo de mostrar aos alunos que todos, como usuários da língua, utilizam gêneroscotidianamente e que, ao utilizá-los, colocam em funcionamento algunsconhecimentos sobre aquele gênero, além de partilharem de alguns conhecimentoscom a comunidade discursiva em que interagem, conforme proposto porBerkenkotter e Huckin (1995) e também por Johns (1997), além de dar aos alunosnovas ferramentas para seus estudos, levando-os a perceberem que os textos queutilizam partilham características. Como atividade suplementar, os grupos tambémanalisaram um capítulo do livro didático que utilizam para cada uma das outrasdisciplinas do currículo, como forma de compreender o funcionamento dos capítulose, ao final, produziram um quadro com as características de cada disciplina. Isso osleva, ao mesmo tempo, a desenvolver estratégias de aprendizagem para utilizaçãodessas informações em outros gêneros, como o resumo, por exemplo e, ainda, aperceberem que seu conhecimento prévio exerce grande influência em seudesempenho acadêmico, além de também enfocar a interdisciplinaridade.

Subjazem a essas atividades, como indiquei anteriormente, do ponto de vistateórico, os conceitos de gênero e de registro, bem como as noções de contexto decultura e de contexto de situação, uma vez que, do ponto de vista pedagógico, meuobjetivo era que os alunos compreendessem o papel do contexto e como os elementoscontextuais são imbricados no texto. E, do ponto de vista do planejamento, estoufazendo a passagem da teoria para a prática, passando da operacionalização de umconceito teórico e transformando-o em prática para, no momento seguinte, usá-lono ensino, tratando-se, assim, de sua implementação pedagógica.

4.2 Atividades de conscientização sobre texto e gêneroOutro tipo de atividade pilotada estava associado à conscientização e

manipulação do texto e da noção de seu pertencimento a um determinado gênero.A título de ilustração, apresento a seguir uma atividade em que os alunos

trabalharam com um artigo acadêmico de sua área, cujo foco era, a princípio,apresentar a contextualização da atividade que seria desenvolvida, explorando depoisas noções práticas, como mostra o exemplo abaixo:

Page 68: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

404 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 389-411, set./dez. 2006

Gêneros discursivos e conhecimento sobre gêneros ...

O objetivo dessa atividade está em conscientizar os alunos dos fatores sociaise culturais relacionados ao gênero além das variáveis de contexto que tambéminfluenciam o gênero, nomeadamente, em termos sistêmico-funcionais, o registro esuas três variáveis: campo, relações e modo (HALLIDAY; HASAN, 1989).

O foco central, no entanto, está em incitar os alunos a refletirem sobre arelação entre gênero e texto, dado que as perguntas do primeiro grupo, previamentea leitura do texto, referem-se ao gênero e as demais ao texto.

4.3 Atividades com o gênero artigo acadêmicoApós a atividade somente com a introdução do artigo, foi solicitado que os

alunos lessem todo o artigo e a primeira atividade realizada tinha como meta exploraro propósito social do gênero, que já havia sido explorado anteriormente e, além

O texto que você vai ler é a introdução de A auditoria da contabilidade criativa, deJ.P. Cosenza e I.R.G. Grateron, publicado na Revista Brasileira de Contabilidade no.143. Trata-se de um artigo acadêmico. Leia o texto e, a seguir, responda as perguntasque seguem.Antes de ler o texto, responda às seguintes perguntas:

1. Qual a função social de um artigo acadêmico?2. Você já leu um artigo acadêmico da área de contabilidade?3. Quem lê artigos acadêmicos? Por quê?4. Quem produz artigos acadêmicos? Por quê? Para quem?5. Onde é mais comum a circulação desses artigos?

Agora leia o texto para responder às demais perguntas a seguir:

1. Como o texto está organizado do ponto de vista de seus parágrafos?2. Qual o conteúdo de cada parágrafo?3. Por que a auditoria tem papel importante no contexto internacional?4. Os autores afirmam que “a atividade de auditoria está sendo amplamentequestionada”. A que se devem, em sua opinião, tais questionamentos?5. Os autores explicitam 3 objetivos para o trabalho. Quais são?6. Como eles pretendem atingir esses objetivos?7. Os autores apontam 3 parâmetros para discutir as incidências que as práticasde contabilidade criativa têm para o processo decisório. Enumere-os.

Page 69: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

405Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 389-411, set./dez. 2006

Vian Jr.

disso, desenvolver a idéia de que os gêneros estruturam-se em estágios, pois trata-sede uma atividade sociossemiótica em que os significados são construídosgradativamente, uma vez que não conseguimos transmiti-los simultaneamente; daí anecessidade da estruturação em estágios, conforme preceituado por Martin (1992).Eis a atividade:

A atividade é também uma preparação para o próximo passo, em que seriamexplorados os estágios componentes do gênero artigo acadêmico.

Em relação aos aspectos gramaticais, foram exploradas questões de estruturaoracional e de elementos coesivos, com base no trabalho de coesão de Halliday eHasan (1976), retomando elementos estudados da estrutura dos parágrafosdissertativos, gênero explorado anteriormente a este.

5 AS PERCEPÇÕES DOS ALUNOS

Após algumas das atividades, foi solicitado aos alunos que relatassem as suaspercepções sobre a experiência. Na apresentação da atividade sobre os capítulosdos livros das outras disciplinas, por exemplo, solicitei aos alunos que respondessema duas perguntas:

Page 70: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

406 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 389-411, set./dez. 2006

Gêneros discursivos e conhecimento sobre gêneros ...

a) O que você aprendeu sobre gêneros depois da análise dos textos e dasapresentações de seus colegas?b) Como isso pode ajudar a sua vida acadêmica?

As respostas variaram de acordo com o conhecimento prévio dos alunos, outrasexperiências escolares, conscientização e conhecimento partilhado. Em resumo, osresultados foram muito positivos e sugerem a eficácia e a significância de tais atividades,como podemos inferir pelas seguintes respostas escolhidas aleatoriamente:

(1) Percebemos que os gêneros são diferentes em cada assunto, e variamde acordo com a necessidade de cada um. Com isso, melhoramos odesempenho, entendendo mais dos aspectos de cada texto. (Alexandra B)

(2) É possível compreender que as matérias se complementam e deixam afaculdade mais homogênea e facilitam o estudo, de forma que matériascomo Sociologia e Psicologia são muito parecidas e podem ser estudadascom os mesmos princípios de leitura e compreensão. (Daniel)

(3) A partir da análise do quadro, podemos observar que cada gêneroestudado, apesar de possuírem características em comum, possuiparticularidades distintas. Isso se evidencia nos diferentes mundosdiscursivos em que são usadas expressões típicas de cada tipo textual. Paraexemplificar, vimos que o direito faz uso de termos técnicos, formalidades,já os textos de TGA geralmente são mais explicativos e destinados a umpúblico diversificado. (Eduardo)

(4) A partir da análise do quadro, fazendo a comparação de uma disciplinacom a outra, conclui-se que algumas matérias são parecidas, quandoescritas, se valem da mesma estrutura e formatação. E também se interligamuma com a outra como Sociologia e Psicologia ou Matemática, Contabilidadee Economia, no seu contexto, o que facilita na hora do estudo, pois dá parafazer associações que facilitam o entendimento. (Márcia)

(5) Temos que nos portar de acordo com as exigências do curso. Porém,se por acaso, for em outro lugar, onde as exigências da Contabilidade nãose fazem necessárias, tenho que saber como me comportar de acordo, diantede tal situação. Tenho que ter conhecimentos para saber sobre o assuntoque está sendo tratado, para entender o que será dito na ocasião e o que euposso dizer, para que as pessoas possam me entender também. (Rodrigo)

Como se vê, as respostas mostram diferentes percepções sobre o estudo dosgêneros, mas é possível inferir, a partir de algumas citações, que as noções de gênero,

Page 71: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

407Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 389-411, set./dez. 2006

Vian Jr.

de texto e da relação do texto com o contexto, bem como as exigências de cadacontexto de situação foram, aparentemente, assimiladas por alguns alunos para osfins a que se destinam.

No início do primeiro semestre de 2005, solicitei aos alunos que resumissemum texto de seu livro didático, sem dar nenhum insumo para que elaborassem aatividade, pois meu objetivo era observar as produções e o conhecimento quepossuíam sobre o gênero. Ao final do semestre, depois do trabalho com o gêneroartigo acadêmico, solicitei aos alunos que resumissem o texto que foi objeto deestudo e apontei que deveriam, após a elaboração dos resumos, relatar a experiênciacomparando-a com a atividade realizada anteriormente. Eis algumas impressões:

(6) Fazer esse resumo foi mais fácil que o primeiro, porque adquiriconhecimentos ao longo do semestre como os métodos de apagamento,coesão, vocabulário, etc. (Alexandra B)

(7) Foi mais fácil elaborar o resumo por já ter conhecimento a respeito datécnica de como fazê-lo. Por se tratar de um artigo acadêmico, de grandeinteresse, tornou a leitura e o resumo mais agradáveis, fácil compreensão efixação da idéia. (Rejane)

(8) A elaboração do resumo é mais simples após compreender osmecanismos de coesão do texto, pois podemos perceber quando o parágrafovai tomar uma idéia nova ou apenas retomar uma o raciocínio do parágrafoanterior. (Éric)

(9) Não senti nenhuma diferença ao fazer este resumo com relação ao que foifeito no início do semestre. Independente de tudo que eu tinha aprendidoesse semestre, continuei fazendo resumo da maneira que eu fazia antes. (Paula)

Pode-se perceber, pelas amostras, que a percepção dos alunos estádiretamente ligada às experiências anteriores de aprendizagem, pois, para alguns, aabordagem não teve nenhum impacto, ao passo que para outros fez alguma diferença.Isso pode estar associado à heterogeneidade do grupo, uma vez que comporta alunosadvindos de diferentes formações e com bagagens socioculturais extremamentediversificadas.

Como se pode depreender pelos dois conjuntos de amostras, as atividadesatingiram em grande parte seu objetivo, despertando a conscientização dos alunospara os gêneros e sua importância social, além de promover, ainda que de formasutil, a interdisciplinaridade, que geralmente é negligenciada em programas escolares.

Page 72: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

408 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 389-411, set./dez. 2006

Gêneros discursivos e conhecimento sobre gêneros ...

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Meu objetivo, neste artigo, foi o de ilustrar como tenho trabalhado os conceitosda Lingüística Sistêmico-Funcional (LSF) como forma de operacionalizar o seuuso, isto é, transformar o conceito teórico em prática para que seja compreensível aalunos para, em seguida, desenvolver a sua implementação pedagógica, ou seja,a utilização dos conceitos em atividades e tarefas de sala de aula, o que equivale adizer: preencher, mesmo que de forma tímida, a distância entre teoria e prática,entre ensino e pesquisa.

Apresentei, especificamente, como o conceito de gênero do discurso,conforme preceituado pela LSF, e o conceito de conhecimento sobre gêneros(BERKENKOTTER; HUCKIN, 1995) podem ser utilizados no ensino de portuguêsinstrumental.

Em seu artigo sobre uma proposta para o ensino de língua estrangeira, Ramos(2004) aponta que, embora haja muita teoria sobre o conceito de gêneros, “poucoainda foi feito no contexto brasileiro na área de planejamento de cursos baseadosem gêneros, principalmente para o ensino de línguas estrangeiras”, e possoacrescentar, por experiência, que menos ainda tem sido feito na operacionalizaçãode conceitos da teoria sistêmico-funcional de linguagem no ensino de língua materna,e uma quantidade mais exígua ainda no ensino de português instrumental.

O que se observa, com base nas atividades apresentadas neste artigo, é que oensino da produção escrita em língua materna deve levar em conta o conhecimentoprévio dos alunos, mas, por outro lado, deve, ao mesmo tempo, incentivar aconscientização sobre seu papel social, para que não se insista na visão de linguagemcomo algo dissociado do mundo ou como um conjunto de regras, mas como um todocoeso, do qual fazem parte diversos elementos, dentre eles a gramática, não sendo elatomada como fim, mas como meio, dentre outros elementos co-textuais e contextuaisque colaboram para a textura de um texto e para a comunicação como um todo.

Outro aspecto importante é o papel da pesquisa no contexto de ensino-aprendizagem de língua materna, pois urge que mais pesquisas sejam incentivadas edesenvolvidas no sentido de suprir, como já apontei acima, o grande vácuo entreteoria e prática, entre pesquisa e ensino, pois parece haver um diálogo muito incipientenessa área em nosso país.

Espero que as experiências aqui apresentadas possam auxiliar outrosprofessores ou profissionais envolvidos no planejamento de cursos e que delas possam

Page 73: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

409Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 389-411, set./dez. 2006

Vian Jr.

usufruir e, em função de suas experiências e variáveis de contexto, possam aplicá-las, adaptá-las e/ou ampliá-las às suas situações de ensino, levando-se emconsideração o caráter eminentemente sociológico da LSF e seu aspecto semântico-funcional, o que imprime a ela um campo profícuo de estudos e aplicações.

REFERÊNCIAS

ARISTOTLE. Rhetoric. In: ______. The basis works of Aristotle. Ed. by R. MCKEON.New York: Random House, 1941.

BARBARA, L.; CELANI, M. A. A.; COLLINS, H.; SCOTT, M. A survey of communicationpatterns in the Brazilian business context. English for Specific Purposes, n. 15, v. 1, p.57-71, 1996.

BERKENKOTTER, C.; HUCKIN, T. Genre knowledge in disciplinary communication:cognition/culture/power. Hillsdale: Lawrence Erlbaum Associates, 1995.

CELANI, M. A. A.; HOLMES, J.; RAMOS, R. C. G.; SCOTT, M. The Brazilian ESP Project –an evaluation. São Paulo: Educ, 1988.

CELANI, M. A. A.; SCOTT, M. Pinning down the meaning of business terms. DIRECTPapers, CEPRIL, PUC-SP/ELU, University of Liverpool, working paper n. 36, 1997.

CINTRA, A. M. M. Bases para uma proposta de ensino de Português Instrumental. In:MARQUESI, S. C. (Org.). Português instrumental: uma abordagem para o ensino delíngua materna. São Paulo: Educ, 1996.

EGGINS, S. An introduction to systemic functional linguistics. London: PinterPublishers, 1994.

EGGINS, S.; MARTIN, J. R. Genres and registers of discourse. In: VAN DIJK, T. (Ed.).Discourse as structure and process: discourse studies – a multidisciplinaryintroduction. v. 1. London; Thousand Oaks; New Delhi: Sage Publications, 1997.

FONSECA, S. M. D. Questões dissertativas de provas como um instrumento para odesenvolvimento de leitura e produção escrita no ensino superior. In: LOPES-ROSSI, M. A.G. (Org). Gêneros discursivos no ensino de leitura e produção de textos.Taubaté: Cabral Editora e Livraria Universitária, 2002.

FREIRE, M. M. Computer-mediated communication in the business territory: ajoint expedition through e-mail messages and reflection upon job activities. Tese(Doutorado) – Ontario Institute for Studies in Education, Universidade de Toronto, 1998.

Page 74: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

410 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 389-411, set./dez. 2006

Gêneros discursivos e conhecimento sobre gêneros ...

HALLIDAY, Michael A. Language as social semiotic: the social interpretation oflanguage and meaning. London: Edward Arnold, 1978.

______; HASAN, R. Cohesion in English. London: Longman, 1976.

______; HASAN, R. Language, context, and text: aspects of language in a social-semiotic perspective. Oxford: Oxford University Press, 1989.

HUTCHINSON, T.; WATERS, A. English for specific purposes: a learning-centredapproach. Cambridge: Cambridge University Press, 1987.

JOHNS, A.M. Text, role, and context: developing academic literacies. Cambridge:Cambridge University Press, 1997.

MACHADO, A. R. Uma experiência de assessorial docente e de elaboração de materialdidático para o ensino de produção de textos na universidade. D.E.L.T.A., v. 16, n. 1, p.1-26, 2000.

MARTIN, J. R. Context: register, genre and ideology – English text: systems and structure.Philadelphia; Amsterdam: John Benjamins Publishing Company, 1992.

RAMOS, R. C. G. Gêneros textuais: uma proposta de aplicação em cursos de inglês parafins específicos. the ESPecialist, v. 25, n. 2, p. 107-129, 2004.

ROBINSON, P. ESP today: a practitioner’s guide. Hertfordshire: Prentice HallInternational, 1991.

SOARES, M. Concepções de linguagem e o ensino da Língua Portuguesa. In: BASTOS, N.B.(Org). Língua Portuguesa: história, perspectivas, ensino. São Paulo: Educ, 1998.

SWALES, J. M. Genre analysis: English in academic and research settings. Cambridge:Cambridge University Press, 1990.

THOMPSON, G. Introducing functional grammar. London: Arnold, 1996.

TRAVAGLIA, L. C. Tipos, gêneros e subtipos textuais e o ensino de língua materna. In:BASTOS, N. B. (Org.).Língua Portuguesa: uma visão em mosaico. São Paulo: Educ, 2002.

VENTOLA, E. Orientation to social semiotics in foreign language teaching. AppliedLinguistics, v. 5, n. 3, p. 275-286, 1984.

VIAN JR, O. O planejamento de cursos instrumentais de produção oral combase em gêneros do discurso: mapeamento de experiências vividas e interpretaçõessobre um percurso. Tese (Doutorado em Lingüística Aplicada) – PUC-SP, 2002.

Recebido em 16/11/05. Aprovado em 22/06/06.

Page 75: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

411Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 389-411, set./dez. 2006

Vian Jr.

Title: Discursive genres and genre knowledge in the planning of a course on Portuguese for specificpurposes for the accounting areaAuthor: Orlando Vian Jr.Abstract: This paper aims at presenting an on-going experience based on the concepts of genreand genre knowledge interactants share while using some genres. Focus is put on the education ofthe pre-service professional in the Accounting area, by reporting how both academic and professionalgenres were implemented at undergraduate levels so as to help students develop a more effectiveperformance in their academic life as well as in their future professional life according to the genresthey are supposed to useKeywords: genre; genre knowledge; systemic-functional linguistics; Portuguese for SpecificPurposes.

Tìtre: Genres discursifs et connaissances sur les genres dans le projet d’un cours de portugaisinstrumental pour les sciences comptablesAuteur: Orlando Vian Jr.Résumé: Cet article a comme objectif de faire le rapport d’une expérience de projet d’un cours deportugais instrumental dans le domaine des Sciences Comptables. Mon point de départ se trouvedans le concept discursif de la perspective systémico-fonctionnelle de langage (HALLIDAY; HASAN,1989; MARTIN, 1992; EGGINS, 1994; THOMPSON, 1996; EGGINS; MARTIN, 197), dans le conceptde la connaissance partagée par les employeurs quand ils s’en servent des genres écrits (JOHNS,1997), au delà des aspects qui sont en rapport avec le projet des cours instrumentaux (ROBINSON,1991; HUTCHINSON; WATERS, 1987). Je fais le rapport, tout d’abord, pour démontrer commenttels concepts ont été operationnalisés visant leur emploi pédagogique. Ensuite, je présente quelquesactivités développées, aussi bien que les perceptions des élèves sur ces activités.Mots-clés: genre discursif; apprentissage; linguistique systémico-fonctionnelle; portugaisinstrumental.

Título: Géneros discursivos y conocimiento sobre géneros en el planeamiento de un curso deportugués instrumental para ciencias contablesAutor: Orlando Vian Jr.Resumen: Este artículo tiene como objetivo relatar una experiencia de planeamiento de un cursode portugués instrumental en el área de Ciencias Contables. Mi punto de partida es el concepto degénero discursivo desde la perspectiva sistémico-funcional de lenguaje (HALLIDAY; HASAN, 1989;MARTIN, 1992; EGGINS, 1994; THOMPSON, 1996; EGGINS; MARTIN, 1997), el concepto deconocimiento sobre géneros (BERKENKOTTER; HUCKIN, 1995), asociado al conocimientocompartido por los usuarios cuando utilizan los géneros escritos (JOHNS, 1997), además de losaspectos relacionados al planeamiento de cursos instrumentales (ROBINSON, 1991; HUTCHINSON;WATERS, 1987). Relato en un primer momento, como se operalizó tales conceptos en la prácticapedagógica. En seguida, presento algunas actividades desarrolladas, así como las percepciones delos alumnos sobre tales actividades.Palabras-clave: género discursivo; aprendizaje; lingüística sistémico-funcional; portuguésinstrumental.

Page 76: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM
Page 77: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

413Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 413-446, set./dez. 2006

Figueiredo e Bonini

PRÁTICAS DISCURSIVAS E ENSINO DO TEXTO

ACADÊMICO: CONCEPÇÕES DE ALUNOS DE MESTRADO

SOBRE A ESCRITA

Débora de Carvalho Figueiredo*

Adair Bonini**

Resumo: Este artigo investiga as concepções sobre o ensino-aprendizagem da escrita acadêmica,a partir das respostas a um questionário sobre esse tema respondido por um grupo de alunos demestrado, após terem participado de uma oficina de produção textual acadêmica escrita. A análisebaseou-se no trabalho de Ivani (2004) a respeito dos discursos sobre o ensino da produçãoescrita na escola. Através da análise dos questionários, pudemos constatar, na fala dos alunos,traços da pedagogia de letramento em gêneros e de uma visão social do discurso. Os resultadosindicam uma contribuição da experiência de ensino no sentido de familiarizar os mestrandos coma noção de escrita como prática social inserida dentro de uma comunidade discursiva, mas tambémque eles ainda estão no estágio de membros periféricos nessa comunidade.Palavras-chave: discurso; gênero textual; produção textual; ensino; discursos sobre a escrita.

1 INTRODUÇÃO

Este trabalho tem como objetivo relatar e analisar uma experiência de ensinode produção textual acadêmica escrita, surgida a partir de nossa observação, comoprofessores de pós-graduação, da dificuldade de muitos mestrandos em ingressarno discurso acadêmico em termos práticos, isto é, em produzir textos que possamser reconhecidos como gêneros do meio, dentre eles o “artigo de pesquisa”. Emoutras palavras, detectamos que muitos de nossos alunos, embora já façam parte deum programa de mestrado há algum tempo, mostram pouca (ou nenhuma)familiaridade com e capacidade de utilização eficiente dos gêneros do discursocientífico.

No âmbito específico dos cursos de mestrado, temos observado que os textosdos alunos apresentam problemas de organização micro e macroestrutural, refletindo

* Professora da Universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL. Doutora em Inglês e Literaturas Correspondentes.E-mail: <[email protected]>.

** Professor da UNISUL. Doutor em Lingüística. E-mail: <[email protected]>.

c

^

Page 78: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

414 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 413-446, set./dez. 2006

Práticas discursivas e ensino do texto acadêmico ...

um problema maior de circulação social, ou seja, nossos alunos têm dificuldade emidentificar o gênero “artigo de pesquisa” como uma prática social cujos propósitossão o avanço dos diversos campos científicos e a circulação de conhecimentos dentroda comunidade discursiva acadêmica. Muitos trabalhos produzidos por mestrandosapresentam-se como uma “colcha de retalhos” composta de noções diversas (emuitas vezes desconectadas) sobre um campo, como se o propósito da produção deum artigo acadêmico fosse o mesmo de uma “prova”, isto é, o texto é produzidopara que o leitor/professor possa avaliar (e atribuir uma nota para) o conhecimentodo aluno sobre determinado campo.

A partir de observações e reflexões a respeito da produção textual escrita denossos alunos, sentimos a necessidade de realizar uma intervenção pedagógica nosentido de identificar os problemas relacionados à aprendizagem (apropriação) daprática escrita, principalmente do artigo de pesquisa, no ambiente acadêmico, ediscutir e construir com os alunos algumas estratégias de auxílio nessa aprendizagem.Essa intervenção se deu na forma de uma oficina de produção textual acadêmicaescrita, cujos detalhes descreveremos na próxima seção. Após a oficina, enviamosaos alunos um questionário com perguntas relativas a suas concepções sobre ensino-aprendizagem de escrita. Com base nas respostas obtidas, neste artigo realizamosuma breve investigação dos discursos sobre a escrita que subjazem à fala dos alunos.

O artigo subdivide-se nas seguintes seções: 2. A oficina de produção textualacadêmica escrita, onde descrevemos a oficina propriamente dita e as tarefassubseqüentes; 3. Fundamentação teórica, onde apresentamos alguns dos conceitosdiscutidos com os alunos durante a oficina, e que representam nossa linha teórico-metodológica; 4. Discursos sobre a escrita e sobre o aprendizado da escrita, onderesumimos as principais visões sobre letramento e sobre o aprendizado da escritapresentes na fala de alunos e professores; 5. Análise dos questionários, ondeprocuramos, nas respostas dos alunos, traços dos distintos discursos sobre a escritadiscutidos na seção anterior; 6. Comentários finais.

2 A OFICINA DE PRODUÇÃO TEXTUAL ACADÊMICA ESCRITA

Em resposta às dificuldades apresentadas por nossos alunos de mestrado nastarefas relativas à escrita acadêmica, planejamos e oferecemos, em julho de 2003, noprograma de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem da Unisul (campus de Tubarão),a primeira versão de uma Oficina de Produção Textual para alunos de mestrado. Aprimeira etapa desse trabalho, que poderíamos chamar de pré-oficina, consistiu da:

Page 79: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

415Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 413-446, set./dez. 2006

Figueiredo e Bonini

a) identificação dos problemas mais comuns presentes nos textos de alunosque cursaram outras disciplinas conosco; eb) criação de um material de apoio, com base nos dados mencionadosacima, para ser utilizado durante a oficina.

A segunda etapa consistiu da oficina propriamente dita, oferecida de formaintensiva durante uma semana (40 horas em sala de aula, mais aproximadamente40 horas de tutoria pós-oficina), procurando, numa vertente mais teórica, introduzire discutir conceitos como discurso, práticas discursivas, gênero, comunidadediscursiva, etc, e, numa linha mais prática, aplicar esses conceitos a textos reaisproduzidos pelos próprios alunos ou por outros produtores textuais, discutindo eidentificando problemas em nível micro e macroestrutural. As atividades da oficinaseguiram o cronograma apresentado no quadro 1.

Quadro 1 – Roteiro das atividades da oficina de produção do texto acadêmico.

A terceira etapa consistiu de atividades pós-oficina. Da oficina participaram13 alunos bastante heterogêneos em termos de formação prévia e habilidades de

Page 80: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

416 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 413-446, set./dez. 2006

Práticas discursivas e ensino do texto acadêmico ...

escrita acadêmica. Desses 13, seis realizaram uma minipesquisa atrelada ao texto(nas áreas de análise do discurso e estudos de gênero textual), sendo que quatrodeles desenvolveram essa pesquisa num processo de produção textual em etapasque foi acompanhado, na forma de tutorias, pelos professores que coordenaram aexperiência, como podemos ver no quadro 2.

Quadro 2 –Etapas realizadas pelos alunos no processo de tutoria e resultadoquanto ao texto produzido.

Após essa fase de produção textual em etapas, enviamos aos alunos umquestionário com sete perguntas relativas ao texto e ao discurso acadêmico, com oobjetivo de investigar as concepções dos alunos sobre a escrita acadêmica, e comoeles avaliavam a influência da oficina em sua produção textual escrita1. Dos trezealunos que originalmente participaram da oficina, apenas cinco responderam oquestionário. A análise dessas respostas encontra-se na seção 4 deste artigo.

1 Os questionários só foram enviados aos alunos dois meses após o término da oficina. Não realizamos um questionáriopré-oficina, que pudesse nos servir de comparação, e também não podemos, apenas a partir do questionárioaplicado, distinguir se as concepções expressas pelos alunos resultam das discussões realizadas durante a oficina,se de leituras feitas em outras disciplinas, ou se de ambas as fontes. Ou seja, neste artigo não pretendemos traçarum nexo causal direto entre a oficina e a forma como os alunos concebem a produção textual acadêmica escritaem geral, ou seu próprio desempenho nessa área. Apesar dessas limitações, julgamos que nosso trabalho sejustifica por duas razões: primeiro, porque na fala dos alunos podemos identificar traços de diferentes concepçõessobre o que seja a escrita acadêmica, e sobre os discursos de onde essas concepções provêm; segundo, porqueesse trabalho pode servir como sugestão para futuras pesquisas sobre ensino e aprendizagem da escrita acadêmica,especialmente com a aplicação de instrumentos (e.g. questionários, entrevistas) pré e pós-intervenção pedagógica.

Page 81: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

417Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 413-446, set./dez. 2006

Figueiredo e Bonini

3 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

3.1 Discurso e prática socialDurante sua formação de ensino superior, espera-se que os estudantes

universitários adquiram a capacidade de discutir e aplicar conhecimentos teóricosadquiridos ao longo do curso (ou das disciplinas), e expor suas idéias sobre determinadotema, de forma clara e convincente. Para tal, o aluno universitário deve utilizar-se dodiscurso acadêmico, e dos gêneros aceitos para uso dentro deste discurso (namodalidade escrita, podemos citar o artigo acadêmico, a resenha, o relatório).Entretanto, muitos alunos demonstram dificuldade na produção de trabalhos escritos,tanto no que se refere à forma do texto quanto à construção de uma linha argumentativae/ou expositiva que possibilite a exposição e discussão clara de teorias, fatos, idéias eposições pessoais. Simões aponta duas razões que levam o aluno universitário ou depós-graduação ao estresse no momento de produção do texto acadêmico escrito: obaixo conhecimento lingüístico e um quase total desconhecimento da forma que estetexto deve apresentar (2002, p. 31). Em suas palavras, “a produção do texto técnico-científico, além do indispensável domínio específico do tema, requer conhecimento,no mínimo, satisfatório da língua instrumental em que será produzido. Isto porque aclareza – ou legibilidade – do texto é condição de seu aceite e credibilidade”. Talposição parece delinear a linguagem da ciência e da academia como um códigoinstrumental que pode ser ‘dominado’ pelo aluno, garantindo assim a aceitabilidadede seu texto. O que nos parece ausente nesta noção é uma visão dinâmica e dialógicadas normas do texto científico, cujo conhecimento funciona como passaporte para queo escritor-aprendiz ingresse na comunidade discursiva acadêmica. A ponte entre umavisão instrumental da linguagem científica como mero código e uma noção de textocomo forma de interação (que pode ser aceito ou rejeitado pelo(s) interlocutor(es))é justamente um aprofundamento dos conceitos de ‘discurso’, ‘práticas discursivas’ e‘comunidade discursiva’.

Pensamos, nesse sentido, que o desconhecimento da forma dos textoscientíficos apresentados por muitos alunos do ensino superior e de pós-graduaçãose deve à sua pouca familiaridade com a noção de discurso, mais especificamentecom o que seja discurso científico ou acadêmico. No escopo deste trabalho, adota-se uma visão de discurso como prática social, defendida pela linha anglo-saxônicade análise do discurso conhecida como ‘Análise crítica do discurso’ (doravante ACD).Uma premissa básica da ACD é que a linguagem é uma forma de ação social. Mas

Page 82: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

418 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 413-446, set./dez. 2006

Práticas discursivas e ensino do texto acadêmico ...

quais são as implicações desta premissa? Primeiro, que a linguagem é parte da sociedade,e não algo externo a ela. Segundo, que a linguagem é um processo social. E terceiro,que a linguagem é um processo socialmente condicionado por outros elementos (não-lingüísticos) da sociedade. Fairclough (1989) argumenta que não há uma relaçãoexterna ‘entre’ linguagem e sociedade, mas uma relação dialética interna. A linguagemé parte da sociedade; os fenômenos lingüísticos são fenômenos sociais de um tipoespecial, e os fenômenos sociais são (em parte) fenômenos lingüísticos.

Os fenômenos lingüísticos são sociais na medida em que, sempre que alguémfala ou ouve ou escreve ou lê, essas ações são feitas de formas socialmentecondicionadas, e provocam efeitos sociais. Por outro lado, os fenômenos sociais sãolingüísticos na medida em que as atividades lingüísticas que ocorrem em contextossociais não são um mero reflexo ou expressão de processos e práticas sociais, naverdade elas são parte desses processos e práticas.

Os analistas críticos do discurso acreditam que práticas sociais e práticasdiscursivas se apóiam mutuamente, i.e., a linguagem é tanto fonte quanto receptorade processos discursivos, sociais e ideológicos mais amplos. Devido a esta inter-relação entre discurso e sociedade, as instituições sociais dependem profundamenteda linguagem. Nas palavras de Wodak (1996, p. 15):

A análise crítica considera o discurso – o uso da linguagem na fala e naescrita – como uma forma de ‘prática social’. Descrever o discurso comoprática social implica numa relação dialética entre um evento discursivoem particular e a situação, instituição e estrutura social que o cerca: o eventodiscursivo é moldado por elas, e também as molda... [O discurso] éconstitutivo tanto na medida em que ajuda a sustentar e reproduzir o status

quo social, quanto na medida em que contribui para transformá-lo.

Assim, entende-se discurso como uma categoria que pertence à e provém daesfera social. Em termos amplos, ‘discurso’ (substantivo incontável) é o uso dalinguagem visto como prática social. De forma mais específica, ‘discursos’ (substantivocontável) são formas de criar significados a partir de uma perspectiva em particular(e.g. discurso patriarcal, discurso feminista, discurso ecológico), formas de falar,de ver e de pensar (FAIRCLOUGH, 1995). Os discursos materializam-se nos textos(tanto falados quanto escritos), o que quer dizer que as características lingüísticaspresentes num texto são determinadas pelas características do(s) discurso(s) queeste texto exemplifica (KRESS, 1985; MEURER, 1997).

Page 83: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

419Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 413-446, set./dez. 2006

Figueiredo e Bonini

3.2 O conceito de comunidade discursivaO conceito de comunidade discursiva vem sendo utilizado por lingüistas e

professores que adotam uma visão de discurso como prática social, e de produçãotextual como atividade socialmente situada, realizada dentro de comunidades quepossuem convenções específicas sobre a forma e o conteúdo dos textos. Dentrodesta visão, “o discurso mostra o conhecimento do grupo. As convenções discursivasfacilitam a iniciação de novos membros na comunidade, ou seja, os novatos sãoestimulados a usar de forma apropriada as convenções discursivas reconhecidaspela comunidade” (HEMAIS; BIASI-RODRIGUES, 2005, p. 115).

Swales (1990) aponta seis características que podem definir uma comunidadediscursiva: 1) o conjunto de objetivos públicos comuns; 2) a existência de mecanismospara comunicação entre os participantes; 3) a função do feedback, ou seja, o usodas comunicações recebidas pelos participantes, que funciona como forma departicipação na comunidade; 4) a capacidade que a comunidade tem para desenvolverseus próprios gêneros; 5) o uso de um léxico específico; e 6) a existência de membrosque possuem um conhecimento profundo do discurso e dos conteúdos que circulamna comunidade.

Em suas últimas publicações, Swales vem revisando seu conceito original decomunidade discursiva, contemplando a existência de conflitos dentro dessas comunidades.Ou seja, os textos são vistos como produzidos com base em princípios retóricos quepodem ser ambíguos e instáveis. Isso ocorre porque as comunidades discursivas, suasconvenções e seus textos estão inseridos em contextos históricos passíveis de mudanças.As comunidades discursivas são vistas como ‘desorganizadas’, isto é, mal definidas einstáveis. O que as define, segundo Porter, é o conjunto de seus textos, unificado por umenfoque comum (apud HEMAIS; BIASI-RODRIGUES, 2005, p. 117).

A definição de comunidade discursiva de lugar proposta atualmente por Swalesnos parece particularmente apropriada aos propósitos deste artigo, uma vez que enfatizao caráter interativo, inclusivo e identitário das práticas discursivas utilizadas pordeterminada comunidade. Referindo-se ao conceito desenvolvido por Swales, Hemaise Biasi-Rodrigues definem a comunidade discursiva de lugar como (2005, p. 117):

Um grupo de pessoas que regularmente trabalham juntas e que têm umanoção estável, embora em evolução, dos objetivos propostos pelo seu grupo.Essa comunidade desenvolve uma gama de gêneros falados, falados-escritose escritos para orientar e monitorar os objetivos e as propostas do grupo.Para os membros mais antigos, esses gêneros possuem características

Page 84: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

420 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 413-446, set./dez. 2006

Práticas discursivas e ensino do texto acadêmico ...

discursivas e retóricas evidentes. Para tais membros, os gêneros compõemum sistema ou rede interativa que tem a função adicional de validar asatividades da comunidade fora de sua esfera.

Os membros centrais e proficientes da comunidade discursiva tentam levaraos membros aprendizes o conhecimento das tradições de sua comunidade, e fazercom que esses novos membros utilizem as práticas discursivas sancionadas e vistascomo apropriadas. Há, portanto, desequilíbrio de forças, divergências, falta de uniãoe até preconceito entre os membros das comunidades discursivas.

Swales (1998) afirma que há comunidades discursivas que ‘possuem’ gêneros,no sentido em que impõem aos gêneros suas normas, convenções e ideologias, eoutras que são possuídas pelo gênero, na medida em que os membros da comunidadeprocuram reproduzir os gêneros tal como os receberam da tradição e da ideologiada comunidade. Sendo partidários da crença de que há uma relação bidirecionalentre linguagem e práticas sociais, cremos que ambos os fenômenos apontados porSwales ocorrem em comunidades discursivas como a acadêmica. Os membrosseniores da comunidade criam e alteram gêneros, e imprimem nesses gêneros asideologias, normas e convenções de seu grupo social. Por outro lado, os membrosaprendizes, ou juniores, da comunidade tendem a utilizar os gêneros sancionadosde forma tradicional, reproduzindo padrões lingüísticos, retóricos, discursivos eideológicos. Essa ‘reprodução’ de gêneros funciona como uma forma de ingresso àcomunidade.

3.3 O conceito de letramento em gênerosEm termos das pedagogias de letramento, entendem-se gêneros como as

diferentes formas que um texto pode assumir, dependendo dos diferentes objetivossociais que esse texto pretende alcançar. Segundo Cope e Kalantzis, “os textos sãodiferentes porque fazem coisas diferentes. Assim, qualquer pedagogia de letramentotem que se preocupar não apenas com as formalidades do funcionamento dos textos,mas também com a realidade social viva dos textos em uso. O que um texto faz éresultado do fim para o qual ele é utilizado” (1993, p. 7).

Assim, as causas das diferenças entre os textos podem ser encontradas emsuas funções sociais específicas. Nessa perspectiva, os gêneros são vistos comoprocessos sociais. Os textos assumem padrões estruturais relativamente previsíveisde acordo com padrões de interação social dentro de determinada cultura. Em outraspalavras, a padronização textual se combina com a padronização social na forma de

Page 85: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

421Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 413-446, set./dez. 2006

Figueiredo e Bonini

gêneros. Nas palavras de Cope e Kalantzis, “os gêneros são intervenções textuais nasociedade; e a sociedade em si nada seria sem a linguagem, com seus padrõesprevisíveis” (1993, p. 7).

Cope e Kalantzis lembram que, longe de filiar-se ao movimento de ‘volta aobásico’, a abordagem do letramento em gêneros faz objeções tanto à pedagogiatradicional quanto à pedagogia progressista. Ao contrário dos progressistas, ospesquisadores que adotam essa linha acreditam na importância da metalinguagem eda gramática na escola, alegando que a educação é o único espaço social onde agramática como metalinguagem tem importância real. Em oposição aos tradicionalistas,os defensores do letramento em gêneros argumentam que a metalinguagem precisaser explicada em termos de suas funções sociais; se o projeto da escola é facilitar ainclusão social dos alunos provenientes de grupos sociais marginalizados através doacesso aos gêneros de uma variedade de âmbitos sociais, então é necessário estabeleceruma conexão explícita entre estrutura e propósito dos gêneros ensinados, isto é, agramática ensinada na escola precisa ser obviamente relevante.

Em resumo, o conceito de ‘letramento em gêneros’ proposto por Cope eKalantzis (1993) se diferencia tanto das abordagens tradicionais ao ensino da escrita,que davam ênfase à correção formal do texto, quanto das pedagogias progressistasque enfatizam a aprendizagem ‘natural’ através da prática livre da escrita. Segundoos autores, “o letramento em gêneros não significa progressismo liberal, nem éparte do movimento que prega a ‘volta ao básico’ [ensino da gramática normativa].O letramento em gêneros está tentando estabelecer um novo espaço pedagógico”(1993, p. 1). Nas palavras dos autores:

O processo de desenvolver a familiaridade dos alunos com o texto é, porum lado, lingüístico, passando da oralidade para formas de letramento queprogressivamente se distanciam da gramática da fala. Por outro lado, esseprocesso é também epistemológico. Conforme os alunos são introduzidosno discurso e nos [distintos] campos de conhecimento das disciplinasescolares, eles se afastam do senso comum e se aproximam de um tipo desenso não-comum – o senso não-comum que transmite conhecimentostécnicos e especializados, e que possui formas próprias de criar significadosno mundo. (COPE; KALANTZIS, 1993, p. 11-12, nossa tradução)

Esses autores distinguem, dentro da pedagogia de letramento em gêneros,duas posições: a da modelagem dos gêneros do poder (MARTIN, 1993), vista por

Page 86: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

422 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 413-446, set./dez. 2006

Práticas discursivas e ensino do texto acadêmico ...

alguns como uma pedagogia de transmissão, próxima de um modelo assimilacionistade educação (assimilação não reflexiva dos gêneros de poder), e a da geração de

gêneros, ou aprendizagem ativa (KRESS, 1993; COPE; KALANTZIS, 1993).A pedagogia de letramento em gêneros apresenta vários aspectos inovadores,

dos quais vamos explorar apenas dois, por nos parecerem particularmente relevantespara o trabalho que propomos na oficina de produção textual acadêmica escrita.Primeiro, nessa perspectiva o professor é reinvestido como profissional, como umperito em linguagem cujo status no processo de aprendizagem é de autoridade, masnão de autoritarismo. A autoridade do professor resulta de sua relação com oconhecimento, isto é, os professores são autoridades em suas disciplinas e em suaprofissão: a educação lingüística.

Segundo, a pedagogia de letramento em gêneros mantém os aprendizes nummovimento de mão dupla, entre processos de indução e de dedução, entre a linguageme a metalinguagem, entre as atividades de descoberta pessoal e os conhecimentostransmitidos, entre a experiência e a teoria (COPE; KALANTZIS, 1993, p. 18).

Nosso objetivo, ao oferecer a oficina de escrita acadêmica, foi bastantesemelhante ao que se propõe a pedagogia de letramento em gêneros descrita porCope e Kalantzis (1993, p. 20): auxiliar os aprendizes do discurso acadêmico adesenvolver uma metalinguagem e habilidades lingüístico-cognitivas que lhespermitam fazer generalizações e abstrações a partir dos conceitos estudados e dasatividades desenvolvidas no curso de mestrado.

4 OS DISCURSOS SOBRE A ESCRITA E SOBRE O APRENDIZADO DAESCRITA

Para esse artigo, adotamos uma classificação dos discursos da escrita decunho crítico, influenciada pela Análise Crítica do Discurso, mais especificamentepela abordagem conhecida como Conscientização Lingüística Crítica (Critical

Language Awareness), posição adotada por pesquisadores como Fairclough (1992),Clark e Ivani (1997), Barton, Hamilton e Ivani (1999), entre outros. De acordocom Ivani (2004), as políticas, as práticas e as opiniões sobre o desenvolvimentodo letramento na educação formal baseiam-se, de forma consciente ou inconsciente,em certas formas de ver a escrita, e como se aprende a escrever. Essas diferentesconcepções sobre o letramento e sobre a aprendizagem da escrita encontram-se nocentro de certos discursos específicos. Ivani entende discurso como “grupos de

c

^

c

^ c

^

c

^

Page 87: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

423Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 413-446, set./dez. 2006

Figueiredo e Bonini

valores e crenças que geram formas particulares de ação social, decisões, escolhase omissões particulares, assim como certos tipos de estruturas lingüísticas” (2004,p. 1). O que a autora propõe é que a forma como falamos sobre a escrita e sobre aaprendizagem da escrita apresenta traços reconhecíveis de certos discursos sobre aescrita. Como os textos e os eventos discursivos dos quais participamos sãoheterogêneos, geralmente nossas concepções sobre a escrita, sua aprendizagem eseu ensino, apresentam um amálgama complexo de mais de um discurso sobre otema. Por exemplo, ao analisar suas respostas escritas aos textos de alunos,Christiansen (2004) concluiu que seu discurso se localizava em algum ponto entre aabordagem do letramento acadêmico, uma proposta com a qual ele se diz teórica eprofissionalmente comprometido, o modelo das habilidades, resquício de suaformação de ensino médio e universitário, e o modelo da socialização, que marcougrande parte de sua pós-graduação na área de escrita acadêmica.

Ivani identifica seis discursos sobre a escrita e sobre a aprendizagem e oensino da escrita. Esses discursos consistem de crenças sobre como se escreve ecomo se aprende a escrever, assim como das práticas de ensino e de avaliação daescrita associadas a essas crenças. Os seis discursos estão resumidos, de formadiagramática, no quadro 3.

c

^

Page 88: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

424 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 413-446, set./dez. 2006

Práticas discursivas e ensino do texto acadêmico ...

Quadro 3 – Discursos da escrita e do aprendizado da escrita (adaptado deIVANI , 2004, p. 22).

A linha de pesquisa e teorização sobre letramento à qual Ivani se filia (The

New Literacy Studies), distingue dois grandes grupos de concepções sobre letramentoem circulação: a visão não-social, que concebe o letramento como uma série dehabilidades autônomas e descontextualizadas localizadas no indivíduo; e a visão doletramento como um grupo de práticas sociais, culturalmente situadas eideologicamente construídas (cf. STREET, 1984; BARTON, 1994; BAYHAM, 1995;CLARK; IVANI , 1997, 1998,1999; GEE, 1996).

C

^

C

^

c

^

Page 89: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

425Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 413-446, set./dez. 2006

Figueiredo e Bonini

Ao usarmos a proposta de Ivani , é importante lembrar que um professor deprodução escrita dificilmente se encaixa em apenas uma das linhas horizontais domodelo, ou seja, suas crenças sobre o ensino, aprendizagem e avaliação da escritaprovavelmente envolvem a combinação de mais de um discurso sobre o tema.Entretanto, em contextos específicos (ou atividades específicas de escritura), algumasvezes é possível, pela forma como algumas crenças e práticas são postas em primeiroplano, identificar um discurso dominante.

4.1 Os seis discursos sobre a escritai. O discurso das habilidades: Segundo Ivani , muitas das políticas e práticas

sobre o desenvolvimento do letramento no contexto escolar estão calcadas na noçãode escrita como aplicação de conhecimentos sobre um conjunto de padrões e regraslingüísticas às relações som-símbolo e à construção de sentenças. Em sua formamais extrema, esse discurso prega que a escrita é uma atividade unitária, independentedo contexto, na qual os mesmos padrões e regras se aplicam a todas as formas deprodução escrita, em qualquer gênero de texto. Essa crença leva a uma abordagemde ensino de escrita também baseada em habilidades, focalizando habilidades‘autônomas’ de escrita, ortografia, pontuação e estrutura frasal ‘corretas’. Dentrodessa perspectiva, o ensino é explícito, envolvendo padrões de ortografia e regraspara a construção de sentenças ‘corretas’ do ponto de vista gramatical e de pontuação.Na abordagem das habilidades, a escrita e a leitura são tratadas como habilidadesdistintas, e os documentos curriculares e os materiais didáticos geralmente dedicamseções separadas para cada uma delas.

O discurso das habilidades pode ser reconhecido pela referência ahabilidades, à pontuação e à gramática, e por expressões como ‘correto/a’, ‘preciso’,“apropriado/a”, “os alunos devem/deveriam”. Os críticos do discurso das habilidadesnão discutem que o conhecimento (ao menos implícito) dos padrões ortográficosda língua, da gramática padrão em termos de linguagem escrita, e das convençõesde pontuação é uma parte essencial da escrita. O que se contesta é a primazia desteconhecimento em relação a outros aspectos da escrita.

ii. O discurso da escrita como criatividade: Esta abordagem preocupa-semais com o conteúdo e o estilo da produção textual escrita do que com sua forma.A escrita é valorizada como a produção criativa de um autor, sem outra função socialsenão atrair ou entreter o leitor. Diferente da perspectiva anterior, nessa a escrita éavaliada com base em seu conteúdo e estilo, ao invés de (ou em combinação com)

c

^

c

^

Page 90: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

426 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 413-446, set./dez. 2006

Práticas discursivas e ensino do texto acadêmico ...

seu grau de acerto. Na abordagem criativa, aprender a escrever ‘bem’ é um processoimplícito, resultante do contato com ‘bons’ textos (modelo e estímulo) e da própria práticada escrita sobre temas de interesse do autor, não podendo ser ensinado de forma explícita.

Os textos produzidos são avaliados em termos de estilo e conteúdo. Expressõestipicamente encontradas nesse discurso são ‘escrita criativa’, ‘voz autoral’, ‘história’,‘conteúdo interessante’. Nos debates polarizados sobre letramento, essa abordagemé acusada de ‘elitista’, ‘leniente’, e incapaz de preparar os aprendizes para asdemandas do mundo do trabalho. Ela é apresentada como oposta ao ensino ‘básico’,pé-no-chão, voltado para ‘o mundo real’. Ivani (2004) argumenta, entretanto, queessa polarização não é tão evidente nas práticas pedagógicas de desenvolvimento doletramento, uma vez que muitos professores experientes procuram integrar o ensinoda escrita através de tópicos de interesse dos aprendizes – que permite a aprendizagemimplícita –, com o ensino explícito de regras e padrões lingüísticos.

iii. O discurso da escrita como processo: No final dos anos 70 e início dos 80,os professores de produção textual escrita começaram a mudar seu foco de atençãodo produto para o processo da escrita, passando a se interessar mais por estágioscomo o planejamento, o esboço e a revisão do que pelas características do produtofinal. Um corolário inevitável dessa abordagem é que aprender a escrever deveria incluiraprender os processos e procedimentos de composição textual. Essa visão englobatanto processos cognitivos, que podem ser aprendidos de forma implícita, quanto osprocessos explícitos de ensino. A partir dos anos 80, muitos programas e materiais deensino em todo o mundo passaram a incorporar essa abordagem, e a incluir capítulosou seções sobre geração de idéias, esboço, revisão e edição de textos.

Ivani , entretanto, se pergunta se este tipo de escrita pode ser avaliado. Umavez que o foco das práticas pedagógicas está no processo, parece injusto que aavaliação se atenha ao produto. Por outro lado, o processo é apenas um meio paraatingir um fim: os alunos procuram aprender e aprimorar os processos envolvidosna produção escrita como forma de melhorar a qualidade do resultado final, e nãocomo um fim em si mesmo.

Esse discurso pode ser identificado pela presença de termos como ‘planejar’,‘esboçar’, ‘revisar’, ‘colaborar/colaboração’, ‘editar’. O discurso da escrita comoum conjunto de processos é bastante popular no meio educacional, tanto em posiçãodominante quanto em várias combinações com outras abordagens.

iv. O discurso de gênero sobre a escrita: Tratar a escrita como um conjuntode processos e não mais como um produto marcou uma grande mudança em termos

c

^

c

^

Page 91: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

427Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 413-446, set./dez. 2006

Figueiredo e Bonini

de discursos sobre a escrita. Entretanto, a abordagem dos processos, além de traçardistinções gerais entre a escrita narrativa, descritiva, expositiva e argumentativa, nãoenfatiza as diferenças entre gêneros, contextos de produção e recepção textuais, eobjetivos textuais. A partir do final dos anos 80 surge uma nova visão da escrita comoum conjunto de gêneros moldados pelos contextos onde são produzidos, visão queexpande o conceito de escrita e passa a incluir aspectos sociais no evento de produçãotextual escrita.

Um ponto-chave neste novo discurso é que os textos variam de acordo comseu objetivo e contexto, o que permite identificar características lingüísticas de certosgêneros de acordo com o meio no qual ocorrem (escrito ou falado), de acordo comseus objetivos (relatar, descrever, informar, instruir), e de acordo com o grau deformalidade e de certeza da situação. Essa abordagem está interessada no texto escrito,mas também focaliza os fatores sociais envolvidos no evento de escrita. Nessaperspectiva, o ‘bom’ texto é não só aquele escrito ‘corretamente’, mas aquelelingüisticamente apropriado aos fins que se propõe (IVANI , 2004).

Essa abordagem tem implicações claras para o ensino: os alunos precisamaprender as características dos diferentes gêneros, de forma a poder reproduzi-losapropriadamente para alcançar objetivos específicos em contextos específicos. Emboraseja possível adquirir esse conhecimento lingüístico de forma implícita, para aabordagem de gênero a melhor forma de adquirir esses conhecimentos é através dainstrução formal explícita (cf. MARTIN, 1993; MARTIN, CHRISTIE; ROTHERY, 1994).

A abordagem de gênero surgiu na Austrália no final dos 1980. Ela envolve amodelagem de gêneros-alvo, ou centrais, o ensino de terminologias lingüísticas, e ouso dessas informações pelos aprendizes na construção de seus próprios exemplaresdo mesmo gênero. Enfatiza-se o ensino daqueles que são vistos como ‘gêneros dopoder’, ou seja, os gêneros associados ao sucesso em ambientes escolares e nomundo do trabalho (especialmente do trabalho burocrático), e que geralmenteenvolvem um alto índice de nominalizações e de locuções nominais complexas.Utilizando o trabalho de Lea e Street (1998)2 sobre as diferentes abordagens ao

2 Lea e Street (1998, apud CHRISTIANSEN, 2004, p. 3) apontam três abordagens gerais para o letramento queinfluenciaram e influenciam as pesquisas e as práticas na área: 1) a abordagem das habilidades, na qual o letramentoé reduzido a um conjunto de habilidades que precisam ser adquiridas; 2) a abordagem da socialização acadêmica,que procura aculturar os aprendizes no mundo da linguagem acadêmica; e 3) a abordagem do letramentoacadêmico, cujo foco são as práticas sociais envolvidas no processo de letramento. É importante notar que, nosúltimos anos, muitos autores têm tentado levantar as abordagens do ensino de escrita (JONHS, 1997; SCHNEUWLY;DOLZ, 1997; HYLAND, 2002; BONINI, 2002; entre outros).

C

^

Page 92: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

428 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 413-446, set./dez. 2006

Práticas discursivas e ensino do texto acadêmico ...

ensino da escrita acadêmica, Ivani descreve a abordagem australiana de gêneroscomo “‘socialização acadêmica’: o aprendizado das convenções estabelecidas paraos tipos de escrita que são valorizados na academia” (2004, p. 11).

A abordagem de gênero tem atraído tanto críticas quanto elogios, seja noâmbito da escola, da pesquisa, ou da criação de políticas educacionais. Alguns avêem como lógica, sistemática, realista e ensinável. Outros, por outro lado, aconsideram prescritiva e simplista, baseada numa visão falsa dos gêneros comounitários, estáticos e passíveis de especificação. Cope e Kalantzis (1993), por exemplo,são contrários à modelagem por acreditarem que essa abordagem não só é umareencarnação da pedagogia da transmissão passiva, mas que também sacraliza osgêneros do poder e os transmite de forma acrítica, pelo simples fato de que deveriamser ensinados para grupos de alunos historicamente à margem do letramento escolar.Entretanto, vários pesquisadores e teóricos da área têm trabalhado no sentido deintegrar essa perspectiva com visões mais fluídas e ideologicamente estruturadasdos gêneros textuais.

v. O discurso da escrita como prática social: Nessa visão da escrita, o texto eos processos de composição são vistos como inseparáveis das interações sociaiscomplexas que formam o evento comunicativo no qual estão situados, sendo possívelisolar o sentido dos objetivos sociais da escrita. Como afirma Ivani (2004, p. 12),

A escrita é concebida como uma série de práticas sociais: padrões departicipação, preferências de gênero social, redes de apoio e colaboração,padrões de uso do tempo, espaço, ferramentas, tecnologia e recursos, ainteração entre a língua escrita com outros modos semióticos, os significadossimbólicos do letramento, e os objetivos sociais mais amplos que a escritadesempenha na vida dos indivíduos e das instituições.

Nessa abordagem, o aprendizado da escrita é visto como um processoimplícito, que ocorre através da participação em eventos de escrita socialmentesituados, com objetivos relevantes e significativos para os aprendizes. Aprender aescrever implica aprender não só a compor e construir um texto em termoslingüísticos, mas entender por quem, onde, quando, em que condições, com querecursos, e para que fins o texto é escrito. O conceito de ‘comunidades de prática’,ou ‘comunidades discursivas’, é relevante para este tipo de discurso - os indivíduosaprendem através da:

c

^

c^

Page 93: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

429Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 413-446, set./dez. 2006

Figueiredo e Bonini

‘participação periférica’ em eventos de letramento, e ao assumir a identidadede membros de uma comunidade que usa o letramento de formasespecíficas. A identificação é um termo chave para esse tipo de aprendizagem:é mais provável que as pessoas comecem a participar de certas práticas namedida em que se identifiquem com os valores, crenças, objetivos eatividades de quem já realiza essas práticas. (IVANI , 2004, p. 12) (cf.FIGUEIREDO, 2004).

Uma das abordagens de ensino dentro desse discurso da escrita envolveencorajar os aprendizes a fazer uma etnografia das práticas de letramento presentesem uma determinada comunidade discursiva da qual gostariam de participar. Issoenvolve a observação e a investigação dessa comunidade, a documentação de suaspráticas e textos, a generalização do que é típico nesse contexto e, se possível, oquestionamento de o porquê as práticas discursivas dessa comunidade são comosão. Acredita-se que, através dessa abordagem, os alunos aprendem a partir da própriapesquisa, descobrindo, com base nos exemplos que coletaram e analisaram, quepráticas precisam adotar e que textos precisam produzir para ingressar nacomunidade discursiva desejada. Isso foi, de forma mais restrita, o que tentamosfazer através das discussões teóricas e das análises de textos reais durante a oficina.

O critério de avaliação da produção escrita dentro do discurso das práticassociais é a capacidade do texto de alcançar seus objetivos sociais, que só pode serefetivamente mensurada através dos efeitos que a escrita causa em outras pessoas. Noâmbito escolar, entretanto, é difícil implementar, ou mesmo quantificar, a eficácia comoum critério de avaliação, uma vez que grande parte das atividades de produção escritaocorre de forma descontextualizada, sendo avaliadas somente (ou basicamente) porprofessores e examinadores. Assim, a eficácia da escrita acaba se tornando um critériosecundário em relação a outros critérios de avaliação pedagógica.

O discurso das práticas sociais pode ser identificado pela referência a eventos,contextos, objetivos e práticas, a pessoas, tempos, lugares, tecnologias e recursosmateriais para a escrita, e a características visuais e físicas dos textos.

vi. O discurso sociopolítico sobre a escrita: Esse discurso, assim como oanterior, também se interessa pelo contexto da produção escrita, porém enfatizandoaspectos mais amplos, gerais e políticos desse contexto. Essa abordagem parte dacrença de que:

C

^

Page 94: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

430 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 413-446, set./dez. 2006

Práticas discursivas e ensino do texto acadêmico ...

A escrita, como a linguagem em geral, é moldada por forças sociais e relaçõesde poder, contribui para a construção das forças sociais que irão operarno futuro (cf. Fairclough, 1992; Kress, 1994, Clark e Ivani , 1997), e temconseqüências para a identidade do autor que nela está representado (Ivani ,1998). A escrita lança mão de recursos socialmente construídos, tanto‘discursos’, que significam representações particulares do mundo, quanto‘gêneros’, que significam convenções específicas para tipos específicos deinteração social. (IVANI , 2004, p. 14)

É importante ressaltar que esses recursos, longe de constituírem uma gama deopções neutras disponíveis para o escritor, são socialmente e culturalmente estruturados,de tal forma que o senso comum determina a escolha de alguns em detrimento de outrosem cada contexto específico, e essas escolhas geralmente representam os interesses dosgrupos que detêm mais poder social dentro do contexto em questão. As decisõeshierárquicas influenciam, ou até determinam, que recursos discursivos e genéricos estarãoao alcance do escritor. Assim, “os autores não são inteiramente livres para escolher comorepresentar o mundo, como representar a si mesmos, que papel social assumir, como sedirigir a seus leitores; esses elementos são, de certa forma, determinados pelo contextosócio-político no qual estão escrevendo” (IVANI , 2004, p. 14).

A versão mais moderna dessa concepção ‘socioconstrutivista’ da escrita é menosdeterminista, e vê o escritor como um agente social capaz de escolher discursos e gênerosnão privilegiados dentro do contexto no qual está atuando, produzindo, assim, textos epráticas heterogêneos e não-conformistas, capazes de desafiar e subverter as normas e asconvenções estabelecidas. Os aprendizes teriam a capacidade de questionar o status quoe contribuir para mudanças sociais e discursivas.

Entretanto, para tanto é preciso desenvolver uma consciência crítica de por queos discursos e gêneros são como são, ou seja, que fatores históricos e políticos ajudarama moldar sua estrutura e seus conteúdos, e os padrões de desigualdade entre eles. SegundoIvani (2004), essas questões precisam fazer parte do ensino para que os aprendizescompreendam as conseqüências de certas escolhas em termos de escrita, e da participaçãoem certos gêneros, discursos e comunidades discursivas.

Essa visão da escrita e do aprendizado da escrita envolve o ensino (oudiscussão) explícito de teorias, construtos e explicações socioculturais, comopropõem as abordagens do letramento crítico ou conscientização lingüística crítica(cf. FAIRCLOUGH, 1992b; CLARK, 1992; CLARK; IVANI , 1991, 1998; COPE; KALANTZIS,1993, 2000). Essas abordagens envolvem a discussão de como as escolhas lingüísticase semióticas posicionam escritores e leitores em termos de visões de mundo, papéis

C

^

c

^

c

^

C

^

C

^

c

^

Page 95: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

431Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 413-446, set./dez. 2006

Figueiredo e Bonini

e relações sociais, e como outras escolhas teriam modificado a visão de realidadeque o texto representa e constrói, as conseqüências dessas escolhas para a identidadedo escritor, e a forma como a relação autor-leitor é estabelecida.

A noção de ‘bons’ ou ‘maus’ textos é fortemente criticada dentro destaabordagem, uma vez que se baseia em relações de poder e de exclusão. Há, entretanto,um critério não declarado de avaliação, de cunho basicamente político: a produçãoescrita pode ser avaliada em termos de sua contribuição para a igualdade entre osparticipantes do evento de escrita, e por sua responsabilidade social na forma derepresentação dos atores sociais. Esse não é, entretanto, um critério facilmente adotávelno contexto pedagógico devido ao seu caráter inerentemente subjetivo.

Esse discurso pode ser identificado por referências à política, ao poder, àideologia, às representações, à identidade, à ação e à mudança social, pela adoçãoda pedagogia explícita mencionada acima, e por um posicionamento crítico emrelação à avaliação pedagógica da escrita.

Em termos da nossa própria abordagem quanto ao ensino e aprendizagem daescrita acadêmica, adotamos, tanto durante a oficina quanto neste artigo, uma posiçãohíbrida entre a concepção de letramento em gêneros (ver seção 3.2 acima), a concepçãoda escrita como prática social, e a concepção sociopolítica sobre a escrita.

5 ANÁLISE DOS QUESTIONÁRIOS RESPONDIDOS PELOS ALUNOS

Como foi dito anteriormente, enviamos aos alunos um questionário com seteperguntas sobre discurso, práticas acadêmicas, gêneros acadêmicos, e sobre comoeles avaliavam a influência da oficina em sua concepção de escrita acadêmica, e emsua prática de produção escrita pós-oficina (artigo produzido). Cinco alunosresponderam ao questionário. Na análise abaixo, buscamos, nas respostas dos alunospara cada uma das perguntas, evidências dos diferentes discursos sobre a escrita, apartir do modelo de Ivani .

Na resposta à pergunta “O que você entende por discurso?”, a fala dosalunos traz marcas tanto do discurso das práticas sociais quanto do discursosociopolítico, através de referências ao contexto sociocultural de produção textualescrita, e à presença de ideologias e relações de poder no discurso.

(1) [...] Nessa abordagem, discurso é algo mais que apenas uso dalinguagem: é uso da linguagem, falada ou escrita, como um tipode prática social, que está sempre inserida em um contexto. O

c

^

Page 96: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

432 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 413-446, set./dez. 2006

Práticas discursivas e ensino do texto acadêmico ...

discurso traz consigo representações de mundo que podem ou não explicitaralguma forma de poder ou de ideologia. (Aluno 1)

(2) Ele [o discurso] se relaciona com o social, visto as pessoasrepresentam a sua visão de mundo através do discurso, uma visãoinfluenciada por fatores sociais, econômicos, políticos, etc. Através deleas pessoas demonstram atitudes, valores, crenças que muitas vezessão inconscientes, por isso são ideológicas; a maioria das pessoasnão percebe que apresentam tais pontos no discurso e o usam paraobedecer ou exercer poder sobre outras pessoas. (Aluno 3)

(3) É o pronunciamento, oral ou escrito, que traz consigo marcas indicativasde sua localização social, espacial e temporal. (Aluno 5)

O discurso de gêneros também se faz presente:

(4) Discurso é toda produção que trás em si uma marca ideológica,produzida por uma comunidade discursiva, trás marcas de “ter” quepassar por um vinco inconsciente [...] Para mim o discurso é essencialmentealgo inconsciente e ideológico, no qual quanto mais você tenta transpormais estará preso nele. (Aluno 4)

(5) Para mim, discurso é um conjunto de enunciados, ou um texto que temsentido proposto para uma determinada comunidade discursiva. (Aluno 2)

Quanto à segunda pergunta, ‘Como você definiria o discurso científico?Qual é/são seu(s) propósito(s), e quais são seus princípios básicos?’, asrespostas de alguns alunos indicam mais uma vez a presença de conceitos provenientesdo discurso de gêneros, provavelmente como resultado das discussões relacionadasa esse campo realizadas durante a oficina.

(6) Gênero de discurso que atende a requisitos básicos do fazer científico,busca faezr [sic] circular dentro da comunidade científicaexperimentos, inovações, descobertas e tendências dentro dessaárea de conhecimento. É permeado pela sistematicidade, pela criticidadee pela objetividade, entre outras, para prover o leitor de indícios quepermitam a verificação daquilo que se expõe. (Aluno 5)

Aqui, o critério de avaliação do discurso científico parece ser, claramente, aeficácia dos textos escritos como forma de comunicação real e relevante entre os

Page 97: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

433Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 413-446, set./dez. 2006

Figueiredo e Bonini

membros de determinada comunidade discursiva, remetendo também ao discursodas práticas sociais (escrita como comunicação significativa).

Entretanto, associada ao discurso de gênero, aparece também umapreocupação com a precisão da linguagem, que remete mais ao discurso dashabilidades. Nesses casos, é difícil traçar, na fala dos alunos, a fronteira entre odiscurso dos gêneros, que teria como critério de avaliação dos textos a adequaçãoa estruturas genéricas específicas, e o discurso das habilidades, cujo critério deavaliação textual é a ‘precisão’ do texto em termos de normas gramaticais, depontuação e de coesão. Vejamos:

(7) Os discursos têm que ter um [sic] linguagem apropriada, que nãoseja um linguajar vulgar, mas que também não seja uma linguagem pretensiosa,que seja um [sic] linguagem clara, objetiva e precisa. (Aluno 2)(8) Um discurso para ser classificado como científico precisa ter antes detudo uma linguagem apropriada segundo o meio acadêmico que irácircular e que seja fruto de um estudo teórico e/ou prático do assunto.(Aluno 3)

Uma outra resposta remete claramente ao discurso sociopolítico, commenções à ‘ideologia dominante’, e à visão positivista do discurso da ciência comoprodutor de ‘verdades’:

(9) O discurso científico [...] é falar de um lugar do saber, dolugar da verdade sobre os outros [...] se há cientificidade e somoscortados pela ideologia dominante, estamos fadados a pensar nodiscurso científico como objetivo [sic] que eles [sic] tem que é o deproduzir verdades absolutas. O propósito do discurso científico [...] éproduzir verdades numa tentativa de desconstrução de outras econstrução da minha verdade (deste meio científico) e assim obter opoder. (Aluno 4)

A terceira pergunta, ‘Quais são os gêneros acadêmicos e científicos(pelo menos os principais)? Como eles se caracterizam em termos deestrutura característica, produtor(es), leitor(es), forma de circulação?gera respostas que também trazem evidências do discurso de gênero, através dosconceitos de propósito comunicativo, comunidade [discursiva], e filiação a essa

comunidade. Vejamos:

Page 98: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

434 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 413-446, set./dez. 2006

Práticas discursivas e ensino do texto acadêmico ...

(10) Estes gêneros têm toda uma organização textual (resumo,introdução, revisão da literatura, resultados obtidos, conclusão,referencias). [...] Entendo que para um produtor elaborar um textoacadêmico, antes de mais nada, ele precisa planejar seu texto [...] Para leresses textos é necessário que o leitor seja membro da academia e que tambémtenha conhecimento do assunto, outro fator importante, é necessário queleitor saiba sobre o processo (sic) produção, contexto, etc, para o leitor poderentender o propósito comunicativo do gênero. (Aluno 2)

(11) Os gêneros acadêmicos e científicos [...] são produzidos pelo meioacadêmico da comunidade na qual o escritor está inserido, sendoque este pode ser desde um aluno como até um pesquisador commais experiência, quanto maior for o conhecimento o assunto, maiorserá a contribuição para o meio. (Aluno 3)

(12) [Os gêneros acadêmicos] têm sempre o compromisso de:contextualizar/introduzir o leitor ao âmbito da pesquisa, indicando tema,objetivos, importância da publicação, linha teórica, etc; fazer um brevelevantamento sobre a atual situação na qual o alvo da pesquisa encontra-se, pormeio da redação de breve pesquisa bibliográfica; indicar qual orientaçãometodológica guia a produção do produto científico, seu recorte e eventualadoção de instrumento; analisar os dados obtidos; relatar as consideraçõesfinais acerca do estudo desenvolvido. O material costuma circular por meio derevistas/publicações especializadas, voltadas a um público segmentado,filiado àquela área de conhecimento ou linha de pesquisa. (Aluno 5)

Nos dois últimos exemplos vemos a noção de comunidade discursiva (“meioacadêmico no qual o escritor está inserido”; “O material costuma circular por meiode revistas/publicações especializadas, voltadas a um público segmentado, filiadoàquela área de conhecimento ou linha de pesquisa”), e da existência de membrosperiféricos, ou novatos, e membros centrais, ou antigos, dentro de cada uma dessascomunidades (“desde um aluno como até um pesquisador com mais experiência,quanto maior for o conhecimento o assunto, maior será a contribuição para o meio”),com diferentes graus de participação.

Apesar de podermos constatar que os alunos começam a compreender aprodução textual escrita como uma prática social realizada dentro de umacomunidade com regras e propósitos próprios, apenas um aluno aponta para umaposição reflexiva crítica dessas práticas discursivas realizadas dentro da comunidadecientífica:

Page 99: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

435Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 413-446, set./dez. 2006

Figueiredo e Bonini

(13) [Os gêneros acadêmicos e científicos] caracterizam-se poruma estrutura rígida, já pronta e definida por leis da ABNT, e dasrevistas a serem publicadas, o produtor é toda a comunidade, pois aordem é produzir (o que não precisa muito saber, mas tem queproduzir), seus leitores são os mesmos que produzem, pois a circulaçãoé dentro do meio acadêmico também, e assim um ciclo vicioso,sem muita utilidade social. (Aluno 4)

Entretanto, como veremos em outros exemplos, essa posição crítica éincipiente e fragmentada, não se caracterizando ainda como uma postura reflexivasistemática.

As respostas à quarta pergunta, “Qual é a relação entre as práticasacadêmicas e os textos produzidos no ambiente da academia?” mantêm atendência de uma visão de práticas sociais do discurso, como podemos ver abaixo:

(14) Eu diria que as práticas acadêmicas precisam estar voltadas para apesquisa de forma geral. Como conseqüência disso, os textos nelaproduzidos funcionariam como uma ponte entre o que se estuda naacademia e a contribuição que tais textos podem trazer enquantofunção social. (Aluno 1)

Embora o aluno 1 veja o discurso como parte do social, ele vê os temasestudados na academia como dissociados do que ocorre fora dela, sem uma funçãosocial específica.

O aluno 3 mostra uma visão mais orgânica, mais social, da prática de produçãotextual acadêmica, ao vislumbrar sua construção identitária como parte do processode escrita. A visão política, entretanto, ainda não aparece, uma vez que o aluno nãoquestiona como essa identidade é construída, que identidade é essa, ou como ela seencaixa num sistema hierárquico de pertencimento à comunidade discursivaacadêmica3:

(15) Os textos também servem para o pesquisador se ver, há umarelação dialógica entre as práticas do produtor e o seu texto,pois ao mesmo tempo que o texto é construído, a identidade dopesquisador também vai se formando. (Aluno 3)

3 Sobre as relações de poder na formação das identidades dos membros da comunidade discursiva acadêmica, verFigueiredo, 2004.

Page 100: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

436 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 413-446, set./dez. 2006

Práticas discursivas e ensino do texto acadêmico ...

Um dado importante é que alguns alunos interpretaram o termo ‘prática’ deuma forma instrumental, quase como tarefas ou atividades envolvidas no processode pesquisa, como podemos ver nas seguintes escolhas lexicais referentes às práticasacadêmicas: desenvolvimento de inovações, testagem, atividades desenvolvidas

nos laboratórios, ler, escrever, pesquisar, participar de eventos. Embora todasessas atividades de fato façam parte das práticas acadêmicas, esses alunos focalizarama natureza física, instrumental das práticas acadêmicas, descrevendo-as quase comopartes de um processo, e não seu aspecto social, seu caráter cultural e historicamentesituado, nem o impacto que essa ancoragem social possa causar na produção detextos.

Com relação à pergunta 5, ‘Qual é o papel da norma, ou das convenções,na produção dos textos acadêmicos?’, uma das respostas indica que o critériode avaliação de um texto acadêmico escrito é a adequação ao gênero, no sentido demera modelagem, indicando assim um discurso de gênero sem uma dimensãosociocognitiva:

(16) O papel da norma é estabelecer e informar sobre regras ealgumas estratégias de como elaborar os trabalhos acadêmicos, etambém informar mudanças se houver. (Aluno 2)

Já nas demais respostas o critério de avaliação é a adequação ao gênero comopadrão, como modelo, mas também a eficácia comunicativa dos textos, ou seja, anoção de que a norma tem como objetivo tornar mais fácil para o interlocutor doevento discursivo (o leitor) o acesso à e a compreensão dos textos produzidos. Vejamos:

(17) Eu acredito que seja estabelecer uma espécie de padrão para quetanto produtores e leitores possam ter um acesso ágil e eficaz a essestextos. E de forma alguma, isso seria estabelecer o que é certo ou errado,mas sim o que seria mais conveniente para cada produção textual.(Aluno 1)

(18) A norma serve para padronizar e para ajudar o leitor a entendermelhor o relato. (Aluno 3)

(19) O papel da norma é colocar os textos acadêmicos circulando de umaforma uniformizada, para que o leitor tenha acesso a uma maiorquantidade de textos, as normas normatizam, as produções, padronizamnos dão um modelo a seguir na tentativa de ter um controle sobre as produções,bem como para “facilitar ao leitor e ao escritor”. (Aluno 4)

Page 101: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

437Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 413-446, set./dez. 2006

Figueiredo e Bonini

(20) Criar indícios que padronizem, caracterizem e dêempertencimento à produção, inserindo-a em determinado gênerotextual, além de indicar sua linha teórica e permitir a verificabilidade doque se expõe. (Aluno 5)

Embora as duas últimas respostas apresentem escolhas lexicais como‘pertencimento’ e ‘controle sobre as produções’, não nos parece que essas escolhasindiquem uma visão de comunidade discursiva nos moldes de Swales (1998) - opertencimento refere-se a um pertencimento de gênero, e não de grupo, e o controletambém se refere à aproximação do texto ao padrão genérico, ao modelo, e não auma visão de controle como relação de poder, realizado pelos membros antigossobre os membros novos da comunidade discursiva acadêmica.

As respostas à questão 6 (Pensando em sua produção acadêmica escritaantes e depois da oficina na qual você participou, você acha que ocorrerammudanças? Caso afirmativo, fale sobre elas.) são as que mais nos interessavam,por dizerem respeito à oficina propriamente dita, e se os alunos estabeleciam algumarelação entre essa intervenção pedagógica e suas práticas posteriores de produçãotextual acadêmica escrita.

Nessas respostas vemos uma combinação dos discursos das habilidades, doprocesso e do gênero. Vemos a noção dos gêneros acadêmicos mostrada comopossuindo características próprias, que podem ser ensinadas e aprendidas de formaexplícita. Ao se alinharem a essa perspectiva, os alunos indicam que a avaliação deum texto deve ser pautada pelo critério de adequação ao padrão genérico(modelagem). Outra noção que se faz presente neste discurso heterogêneo é a daprodução textual escrita como um processo, com etapas distintas. Vejamos:

(21) O ponto mais interessante é que eu posso seguir uma estrutura emcada parte da minha produção. Através dos modelos (passos), sei oque posso colocar ou não em cada parte da minha produção. (Aluno 3)

É importante notar como, no exemplo acima, os discursos de gênero e doprocesso são combinados quase numa relação de sinonímia: a noção de modelo éapresentada como equivalendo à (ou abrangendo) a idéia de passos.

Os dois próximos exemplos, além de ilustrarem o discurso de gênero e doprocesso, apresentam também elementos do discurso das habilidades. A escolha deexpressões como ‘melhoria’ e ‘aprimoramento do ato de escrever’, ‘textos mais

Page 102: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

438 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 413-446, set./dez. 2006

Práticas discursivas e ensino do texto acadêmico ...

precisos’, torna difícil distinguir se o aluno está focalizando o texto escrito comoproduto final, ou o ato de escrever, se seu critério de avaliação é a precisão emtermos de normas e regras que regem a produção lingüística, ou a adequação a umpadrão genérico como forma de alcançar propósitos específicos.

(22) Entre outras, acredito que a mudança mais significativa diz respeito aoaprimoramento da relação que existe entre forma e discursopropriamente dito. [...] A oficina textual é de extrema relevância para oentendimento dos procedimentos da escritura de um texto. É tambémuma oportunidade prática, não só voltada a aprendizagem, mas também àmelhoria e ao aprimoramento do ato de escrever (Aluno 1)

(23) [...] antes elaborava meus textos sem nenhum planejamento nãotinha os objetivos claros em minha mente, e também não lia o suficientepara poder ter uma boa argumentação, hoje percebo muitas mudanças emmeus textos, são mais coerentes e mais bem elaborados e talvez maisprecisos. (Aluno 2)

Nos dois últimos exemplos fica ainda mais clara a entrada do discurso dashabilidades lingüísticas na fala dos alunos, provavelmente como resultado de umaformação escolar que os levou a ver a escrita como um processo baseado emhabilidades4. O primeiro (Aluno 5) combina o discurso de gênero com o dashabilidades, enquanto que o segundo (Aluno 4) identifica seus problemas apenas nonível da falta de conhecimentos lingüísticos normativos que permitam alcançar a‘perfeição’:

(24) Ao “dissecar”, observar, identificar componentes e mantermaior proximidade com a estruturação fina que permeia aprodução acadêmica [...] Rapidamente exemplificando: há maioracurácia na produção de resumos e produção acadêmica textual em geral,além de melhor alocação e encadeamento de citações no texto. (Aluno 5)

(25) [...] porém está longe, [sic] de ter uma escrita que tenha umbom alcance, então mando corrigir meus trabalhos em umaprofessora, escrevo e depois guardo por um tempo, depois leio novamente

4 A visão da escrita como o resultado de habilidades lingüísticas e textuais adquiridas na formação escolar está presentenão só no discurso da escola, mas também no discurso da mídia e até das políticas públicas, e pode ser detectada emnoções do senso comum como “A escrita é uma habilidade importante no mercado de trabalho” ou “Os professores[de português] sabem [ou devem saber] tudo sobre gramática e ortografia” (CHRISTIANSEN, 2004).

Page 103: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

439Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 413-446, set./dez. 2006

Figueiredo e Bonini

e percebo que estava muito ruim, dou a outras pessoas para leremmeu trabalho, enfim, é um desgaste incomensurável, e que tenho aimpressão que não vou conseguir nunca chegar a perfeição [...]

(26) Estou escrevendo atualmente dois artigos, quando os releio, acaboapagando tudo, acho pouquíssima coisa certa, etc...

(27) Este texto que aqui acabei de escrever, é uma grande frustração, poisse eu reler, irei apagar ou nem mandar á [sic] vocês [...] (Aluno 4)

Sobre o discurso das habilidades, muitos alunos ainda parecem esperar dosprofessores uma postura de instrução, controle e cobrança de habilidades lingüísticas,assim como em muitas ocasiões nós, professores, também apresentamos um discursocontraditório, e acabamos cobrando, embora de forma velada ou inconsciente, aprecisão lingüística ou a modelagem acrítica em nossas interações com os textosdos alunos. Christiansen, por exemplo, ao analisar seus comentários aos textosproduzidos por seus alunos, afirma que:

Em vários momentos o discurso das minhas respostas escritas poderiafuncionar como uma forma de posicionar os alunos para ver meuscomentários como parte de uma abordagem baseada em habilidades, naqual eu lhes digo o que fazer para “consertar” seus textos, ou como partede um modelo de socialização, no qual eu lhes digo o que fazer, só quedesta vez dentro do contexto complexo das formas fixas [aceitas] naacademia. (2004, p. 17)

A última pergunta, ‘Em sua história de produção do texto acadêmico(desde a graduação ou mesmo antes), você provavelmente se defrontoucom problemas e momentos de êxito e superações. Você poderia descreverquais foram estes momentos?’, nos dá várias pistas de como os alunos concebemo processo de aprendizado da escrita acadêmica, apontando para posiçõesheterogêneas, às vezes dentro da fala de um mesmo aluno.

O exemplo que se segue traz marcas do discurso de gênero, expresso pelanoção da aprendizagem via assimilação de ‘bons’ exemplos de escrita, combinadocom uma visão da escrita como forma de comunicação com o leitor, na linha dodiscurso das práticas sociais:

(28) Uma outra dica é seguir bons exemplos de escritura. Ou seja, lerboas produções textuais e anotar boas formas de se expressar. Um terceiro

Page 104: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

440 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 413-446, set./dez. 2006

Práticas discursivas e ensino do texto acadêmico ...

item seria entender que o você escreve será lido por alguém, eportanto, precisa ser claro o suficiente para que haja compreensão porparte do leitor. (Aluno 1)

Entretanto, comprovando a crença de Ivani de que os diferentes discursosda escrita não aparecem de forma isolada na fala e nas práticas de letramento deprofessores e aprendizes, o mesmo aluno apresenta também a visão do aprendizadoda escrita como um processo implícito, resultante de grandes quantidades de leiturae de produção escrita constante.

(29) Num primeiro momento, notei que produzir um texto não eraalgo que se aprendia por meio de fórmulas ou regras a seremseguidas. Era necessário escrever e escrever. Mas para que issoacontecesse, a leitura também era um outro item bastanteimportante. (Aluno 1)

E este não é um exemplo isolado. Apesar de várias menções à importânciada oficina no sentido de fazê-los refletir sobre a estrutura do texto acadêmico e deseu processo de produção (através do ensino explícito), a fala dos alunos tambémevidencia a noção da aprendizagem implícita da escrita acadêmica, via exposição a‘bons’ textos, o uso da técnica de ensaio-e-erro, e a prática constante, como osexemplos a seguir demonstram:

(30) Antes de fazer minha pós- graduação, não tinha o hábito deescrever e nem de ler sobre assuntos acadêmicos. Fiquei muitotempo parada, acho que perdi tempo com isto. (Aluno 2)

(31) O problema foi quando elas [professoras da minha cidade que faziampós-graduação] me pediram para que eu as ensinasse a fazer um projetode monografia e eu nem sabia o que era isso (não tive isso na minhagraduação, acho que a faculdade falhou), pois bem, tive que aprender afazer projetos sozinha e ensina-las [sic] ainda. Foi ótimo, fui atrásde conhecimento, acabei fazendo um monte de projetos e asmonografias também.5 (Aluno 3)

5 Embora a prática de ‘venda’ de trabalhos acadêmicos seja considerada antiética e combatida dentro da comunidadecientífica, ela ainda é corrente, e até mesmo naturalizada, entre muitos membros periféricos dessa comunidade,como fica claro na fala desse aluno.

c

^

Page 105: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

441Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 413-446, set./dez. 2006

Figueiredo e Bonini

6 COMENTÁRIOS FINAIS

A partir da análise dos questionários, podemos observar, na fala dos alunos,traços da pedagogia de letramento em gêneros, e de uma visão social do discurso.Em vários momentos suas respostas indicam uma visão de discurso como práticasocial, situado em contextos históricos e culturais específicos. A partir dessa visãosocialmente situada do discurso, podemos ver a entrada em suas falas da noção deque os textos acadêmicos são também socialmente estruturados, segundo convençõesdeterminadas pela comunidade onde são produzidos.

Outra evidência da influência do letramento em gêneros e da concepçãosocial do discurso da escrita presente na fala dos alunos é a noção de circulação dostextos dentro da comunidade acadêmica, fazendo com que eles se mostrempreocupados com um leitor para além das fronteiras da sala de aula. Isso pareceindicar que os alunos começam a compreender a produção textual escrita comoforma de comunicação dentro da academia, ou seja, passam a perceber o caráterinteracional das práticas discursivas.

A opinião de que a oficina contribuiu para a reflexão e a mudança em suaspráticas de produção textual escrita foi unânime entre os alunos que responderam oquestionário. Poderíamos argumentar, porém, que essas respostas positivas sãoresultado da própria natureza do instrumento ‘questionário’, uma vez que quemresponde geralmente procura dar as respostas que conquistem a aprovação doquestionador, principalmente dentro de um quadro de relações assimétricas de podercomo o que caracteriza a interação professor-aluno. Apesar disso, a presença deconceitos provenientes dos discursos das práticas sociais e do gênero na fala dosalunos, em especial o conceito de circulação dos textos dentro de uma comunidadeacadêmica, nos leva a crer que a oficina serviu como um primeiro passo num processode reflexão e facilitação da apropriação de práticas discursivas relacionadas ao textoescrito no ambiente acadêmico.

Entretanto, os questionários também evidenciam uma falta de reflexão críticasobre o processo de produção textual escrita acadêmica, apesar de algumas mençõesa relações de poder e ideologia. As perguntas relativas à estrutura dos gênerosacadêmicos e ao papel da norma, principalmente, não mostram sinais de criticidadecom relação à forma como os gêneros estão postos dentro da comunidade discursivaacadêmica, como são criados e como são avaliados. Não há menção à possibilidadede negociação das convenções, nem reflexão crítica sobre sua origem e

Page 106: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

442 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 413-446, set./dez. 2006

Práticas discursivas e ensino do texto acadêmico ...

funcionamento. Outro elemento ausente na fala dos alunos sobre as normas deprodução dos textos acadêmicos é a função de filiação a uma comunidade que aapropriação dessas convenções pode exercer, e a forma verticalizada como as normassão impostas pelos membros antigos aos membros novatos.

Tudo isso parece indicar que, embora a oficina tenha contribuído no sentidode familiarizar os alunos com a noção de escrita como prática social inserida dentrode uma comunidade discursiva, com regras e propósitos estabelecidos dentro dessacomunidade, nossos alunos ainda estão no estágio de membros periféricos (ounovatos) na comunidade discursiva acadêmica, e, portanto não se sentem segurospara (ou ainda não dispõem de uma metalinguagem que lhes permita) refletircriticamente sobre o discurso, as práticas e os gêneros aceitos dentro da comunidadena qual estão ingressando. Eles ainda apresentam uma forte preocupação com ograu de precisão lingüística e de adequação seus textos a modelos, remetendo aosdiscursos das habilidades e de modelagem de gêneros, porém numa dimensãoacrítica.

Quanto à melhor abordagem pedagógica de ensino da escrita, Ivani defendeuma pedagogia holística e abrangente, que adote elementos dos seis discursos sobrea escrita. Em suas palavras:

As formas mais tradicionais, normativas e práticas de pensar a linguagemnão deveriam dominar o currículo sem a ajuda das percepções e concepçõessociais e críticas que considero enriquecedoras – aquelas baseadas emuma visão da escrita como interação socialmente situada e conduzida porpropósitos definidos, e como prática sócio-política. Por outro lado, asconcepções críticas não deveriam, em minha opinião, ser implementadassem a devida atenção ao papel das abordagens tradicionais no aprendizadoda escrita. (2004, p. 16)

Essa pedagogia holística teria ainda a vantagem, como apontam Cope eKalantzis (1993), de reinvestir o professor como autoridade em educação lingüística,trabalhando a gramática e a forma como metalinguagem, e de propiciar aaprendizagem tanto através de processos de descoberta pessoal quanto por meio daexposição a conhecimentos teóricos.

c

^

Page 107: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

443Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 413-446, set./dez. 2006

Figueiredo e Bonini

REFERÊNCIAS

BARTON, D. Literacy: an introduction to the ecology of written language. Oxford:Blackwell,1994.

BARTON, D.; HAMILTON, M.; IVANI , R. (Eds.). Situated literacies: reading and writingin context. London: Routledge, 1999.

BAYNHAM, M. Literacy practices: investigating literacy in social contexts. London:Longman, 1995.

BONINI, A. Metodologias de ensino de produção textual: a perspectiva da enunciação e opapel da psicolingüística. Perspectiva, Florianópolis, v. 20, n. 1, p. 23-47, 2002.

CHRISTIANSEN, R. Critical discourse analysis and academic literacies: my encounters withstudent writing. The Writing Instructor. 2004. Disponível em: <http://www.writinginstructor.com/essays/christiansen-all.html>.

CLARK, R. Principles and practice of CLA in the classroom. In: FAIRCLOUGH, N. (Ed.).Critical language awareness. London: Longman,1992.

______; IVANI , R. Consciousness-raising about the writing process. In: GARRETT, P.;JAMES, C. (Eds.). Language awareness in the classroom. London: Longman, 1991.

______; ______. The politics of writing. London: Routledge, 1997.

______; ______. Critical discourse analysis and educational change. In: VAN LIER, L.;CORSON, D. (Eds.). The encyclopedia of language and education. V. 6: Knowledgeabout language. Dordrecht: Kluwer, 1998.

______; ______. Guest editors, and Introduction: Raising critical awareness oflanguage: A curriculum aim for the new millennium. Language awareness, v. 8, n. 2,special issue: Critical language awareness, p. 63-70, 1999.

COPE, B.; KALANTZIS, M. Introduction: how a genre approach to literacy can transformthe way writing is taught. In: COPE, B.; KALANTZIS, M. (Eds.). The powers of literacy: agenre approach to teaching writing. Pittsburgh, PA: University of Pittsburgh Press, 1993.

______. (Eds.). Multiliteracies: literacy learning and the design of social futures.London: Routledge, 2000.

FAIRCLOUGH, N. Language and power. London: Longman, 1989.

______. Discourse and social change. Cambridge: Polity Press, 1992a.

______. (Ed.). Critical language awareness. London: Longman, 1992b.

C

^

C

^

Page 108: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

444 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 413-446, set./dez. 2006

Práticas discursivas e ensino do texto acadêmico ...

______. Critical discourse analysis: the critical study of language. Harlow: Longman,1995.

FIGUEIREDO, D. C. A produção do texto acadêmico escrito: uma proposta discursiva. In:SEMINÁRIO DO CELLIP - Centro de Estudos Lingüísticos e Literários do Paraná, 16., 2003,Londrina. Anais ... Londrina, PR: CELLIP/UEL, 2004.

GEE, J. Social linguistics and literacies: ideology in discourses. 2nd ed. London: TheFalmer Press, 1996 [1990].

HEMAIS, B.; BIASI-RODRIGUES, B. A proposta sócio-retórica de John M. Swales para oestudo de gêneros textuais. In: MEURER, J.L.; BONINI, A.; MOTTA-ROTH, D. (Orgs.).Gêneros: teorias, métodos, debates. São Paulo: Parábola, 2005. p. 108-129.

HYLAND, K. Teaching and researching writing. London, UK: Longman, 2002.

IVANI , R. The discourses of writing and learning to write. Language and education, v.18, n. 3, p. 220-245, 2004.

JOHNS, A. M. Text, role and context: developing academic literacies. Cambridge:Cambridge University Press, 1997.

Kress, G. Linguistic processes in sociocultural practice. Oxford: Oxford UniversityPress, 1989 [1985].

______. Learning to write. 2nd Ed. London: Routledge, 1994 [1982].

MARTIN, J. Literacy in science: learning to handle text as technology. In: HALLIDAY, M.;MARTIN, J. (Eds.). Writing science: literacy and discursive power. London: The FalmerPress, 1993.

______; CHRISTIE, F.; ROTHERY, J. Social processes in education: a reply to Sawyer andWatson (and others). In: STERER, B.; MAYBIN, J. (Eds.). Language, literacy andlearning in educational practice. Clevedon: Multilingual Matters, 1994.

MEURER, J. L. Esboço de um modelo de produção de textos. In: MEURER, J.L.; MOTTA-ROTH, D. (Eds.). Parâmetros de textualização. Santa Maria: Editora da UFSM, 1997.

SCHNEUWLY, B.; DOLZ, J. Os gêneros escolares: das práticas de linguagem aos objetos deensino. Trad. de Glaís Sales Cordeiro. In: ______; ______; et al. Gêneros orais eescritos na escola. Campinas: Mercado de Letras, 2004 [1997].

SIMÕES, D. M. P. A produção de textos acadêmicos. In: ______; HENRIQUES, C. C.(Orgs.). A redação de trabalhos acadêmicos: teoria e prática. Rio de Janeiro: Ed. daUERJ, 2002.

C

^

Page 109: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

445Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 413-446, set./dez. 2006

Figueiredo e Bonini

STREET, B. Literacy in theory and practice. Cambridge: C.U.P, 1984.

SWALES, J. Genre analysis: English in academic and research settings. Cambridge:Cambridge UP, 1990.

______. Other floors, other voices: a textography of a small university building.Mahwah: Lawrence Earlbaum, 1998.

WODAK, R. Disorders of discourse. Harlow: Longman, 1996.

Recebido em 15/12/05. Aprovado em 08/08/06.

Title: Discursive practices and the teaching of academic writing: notions about writing presentedby master studentsAuthor: Débora de Carvalho Figueiredo, Adair BoniniAbstract: This article investigates the notions about the learning-teaching of academic writing, basedon the answers to a questionnaire on this topic presented to a group of master students after they hadtaken part of an academic writing workshop. The analysis is based on the work of Ivani (2004) on thediscourses about the teaching of writing at school. Through the analysis of the questionnaires wecould identify, in the students’ discourse, traces of the genre literacy pedagogy and of a social view ofdiscourse. The results indicate that the workshop contributed to the students’ meta-language in thesense that it familiarized them with a view of writing as a social practice located within specific discursivecommunities. However, they also indicate that the students are still marginal members of the academicdiscursive community.Keywords: discourse; genre; writing; teaching.

Tìtre: Pratiques discursives et enseignement du texte académique: des conceptions des élèves ducours de “master” sur l’écritureAuteur: Débora de Carvalho Figueiredo, Adair BoniniRésumé: Cet article recherche les conceptions sur l’enseignement-apprentissage de l’écritureacadémique, à partir des réponses données à un questionnaire sur ce sujet répondu par un grouped’élèves du cours de “master”, après avoir pris part à un atelier de production textuelle académiqueécrite. L’analyse s’est fondée dans le travail d’Ivani (2004) à propos des discours sur l’enseignementde la production écrite à l’école. À travers l’analyse des questionnaires on a pu constaté, dans laparole des élèves, des traits de pédagogie d’alphabétisation en genres et d’une vision sociale dudiscours. Les résultats indiquent une contribution de l’expérience de l’enseignement dans le sensd’habituer ces élèves avec la notion d’écriture comme pratique sociale insérée dans une communautédiscursive, mais aussi qu’ils se trouvent encore dans le stage de membres périphériques de cettecommunauté.Mots-clés: discours; genre textuel; production textuelle; enseignement; article de recherche.

Título: Prácticas discursivas y enseñana de texto académico: concepciones de alumnos de maestríasobre la escrita

c

^

c

^

Page 110: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

446 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 413-446, set./dez. 2006

Práticas discursivas e ensino do texto acadêmico ...

Autor: Débora de Carvalho Figueiredo, Adair BoniniResumen: Este artículo investiga las concepciones sobre enseñanza-aprendizaje de la escritaacadémica, a través de las respuestas a un cuestionario sobre este tema respondido por un grupode alunmos de la maestría. Estos habían participado anteriormente de un taller sobre produccióntextual académica escrita. El análisis está basado en el trabajo de Ivani (2004) acerca de losdiscursos sobre enseñanza de la producción escrita en la escuela. A través del análisis de loscuestionarios, se constató, en el habla de los alumnos, rasgos de la pedagogía de alfabetización engéneros y de una visión social del discurso. Los resultados indican una contribución de la experienciade enseñanza en familiriazar los estudiantes con la noción de escrita como práctica social insertadadentro de una comunidad discursiva y también mostrarles que todavía están en la fase de miembrosperiféricos en esta comunidad.Palabras-clave: discurso; género textual; producción textual; enseñanza; artículo de investigación.

c

^

Page 111: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

447Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 447-462, set./dez. 2006

Araújo

PRÁTICAS DISCURSIVAS EM CONCLUSÕES DE TESES DE

DOUTORADO

Antonia Dilamar Araújo*

Resumo: O presente artigo tem por objetivo refletir sobre o papel das práticas discursivas naredação de teses de doutorado nas línguas inglesa e portuguesa, considerando-se aqui apenas ocapítulo de conclusão. A pesquisa, que se caracteriza como uma investigação descritiva ecomparativa, analisou dez capítulos de conclusão de teses de doutorado na área de análise dodiscurso e lingüística de texto. Duas práticas discursivas foram examinadas: a estrutura retórica docapítulo, segundo o modelo de Swales (1990), e a forma como os escritores se projetam em seustextos. Os resultados apontaram quatro unidades retóricas na redação dos capítulos conclusivos euma sensível diferença nas duas culturas quanto ao papel que o escritor escolhe para se projetarno capítulo final das teses.Palavras-chave: gênero acadêmico; tese de doutorado; prática discursiva.

1 INTRODUÇÃO

As pesquisas em gêneros acadêmicos têm focalizado, principalmente, artigosde pesquisa, resumos, resenhas, mais do que teses e dissertações de mestrado. Ospoucos estudos realizados sobre dissertações e teses têm focalizado as seções deintrodução e discussão (cf. DUDLEY-EVANS, 1986, 1994) e a macroestrutura docapítulo de conclusões de teses (cf. BUNTON, 2005). Partindo do pressuposto deque pesquisadores iniciantes sentem dificuldades com o “fazer pesquisa” e sãodesafiados com a escritura de artigos de pesquisas e de gêneros como dissertaçãoou tese, este trabalho tem por objetivo refletir sobre as práticas discursivas na redaçãodo gênero tese de doutorado e, em especial, no capítulo intitulado “conclusão” tendoem vista que as conclusões têm sido negligenciadas na literatura de estudos de gênerostextuais, embora seja componente obrigatório na redação de qualquer textoacadêmico.

* Professora da Universidade Estadual do Ceará. Doutora em Letras - Inglês e Literaturas Correspondentes. E-mail:<[email protected]>.

Page 112: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

448 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 447-462, set./dez. 2006

Práticas discursivas em conclusões de teses de doutorado

O estudo objeto desta reflexão foi realizado pela necessidade de se detectaras práticas discursivas na redação de capítulos de conclusão de teses de doutoradonas línguas portuguesa e inglesa e de se entender como se escreve o capítulo finaldeste gênero textual. A minha experiência como professora de metodologia depesquisa e de redação acadêmica para alunos de mestrado em lingüística aplicadatem apontado para as inúmeras dificuldades quanto à escritura dos diferentes capítulosque compõem os gêneros dissertação, tese e artigo de pesquisa e muitas dúvidaspersistem quando necessitam escrever tais gêneros.

Dessa forma, analiso algumas das práticas discursivas detectadas no estudorealizado, porém concentro a discussão na estrutura retórica e na questão da interaçãodo texto científico, que inclui a marca de voz do autor no texto acadêmico, problemafreqüentemente detectado pelos pares quando avaliam gêneros acadêmico-científicos.Este trabalho se inicia com uma breve revisão de pesquisas sobre gêneros acadêmicosou gêneros de pesquisa, como Swales (2004) prefere denominar, descreve ametodologia de coleta e análise do corpus e depois discute duas práticas discursivasna redação do capítulo final das teses de doutorado.

2 PRESSUPOSTOS TEÓRICOS

O estudo de gêneros acadêmico-científicos ou gêneros de pesquisa (artigoscientíficos, dissertações, monografias e teses de doutorado) tem atualmente merecidoa atenção de estudiosos da linguagem preocupados em compreender os processos deconstrução de significados e em desvelar sua organização discursiva e as diferentesformas de expressão lingüística que caracterizam esses gêneros através das diversasáreas disciplinares. Como resultado desse entendimento, a análise de gênero da escritaacadêmica tem focalizado diferentes aspectos de “artigos de pesquisa” ou “artigoscientíficos” mais que os gêneros como dissertações e teses, que têm o objetivo deobtenção de um grau universitário. Assim, os estudos sobre estes gêneros têm sidoainda negligenciados devido à sua extensão e os poucos estudos realizados têm focalizadoa descrição da estrutura de partes ou seções destes gêneros, como os estudos de Dudley-Evans (1986, 1994), Paltridge (2002); Hewings (1993) e Bunton (2005).

Convém salientar que, ao analisar a estrutura das dissertações e teses, observa-se que, em geral, estes gêneros seguem a mesma estrutura dos artigos de pesquisaconforme foi descrita no modelo IMRD (Introdução, Metodologia, Resultados eDiscussão) proposto por Hill, Soppelsa e West (1982, p. 335-338). No entanto, a

Page 113: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

449Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 447-462, set./dez. 2006

Araújo

partir do modelo de Swales (1981, 1990), baseado em Introduções de artigos científicos,os estudos sobre gêneros de pesquisa têm sido focalizados em sua macroestrutura easpectos léxico-gramaticais. Como este trabalho se propõe a analisar duas práticasdiscursivas na redação de capítulos de conclusão de teses de doutorado, vou relatar oentendimento de alguns pesquisadores sobre conclusão em estudos prévios.

Com relação às conclusões de dissertações de mestrado, Dudley-Evans (1994)percebeu que esse capítulo nos trabalhos analisados continha os seguintes elementos:resumo dos principais resultados, resumo das principais alegações e recomendaçõespara futuras pesquisas. No estudo desse autor, as conclusões não se constituíam emuma única seção ou capítulo em separado. Elas fazem parte do capítulo de discussão.Outros estudos têm mostrado que a distinção entre discussão e conclusão não temsido preocupação de escritores de artigos de pesquisa ou mesmo de dissertações demestrado. Em tais estudos, os escritores têm concluído seus textos enfatizando aimportância do estudo para outros pesquisadores ou profissionais do campo ouárea de conhecimento.

No entanto, o estudo de Hewings (1993) sobre Conclusões de dissertações deMBA mostrou que as funções de Relato, Comentários e Sugestões operam em diferentesdomínios que incluem o mundo, a pesquisa prévia, a metodologia ou os resultados.Bunton (2005), que analisou os traços genéricos de conclusões de 45 teses de doutoradodesenvolvidas em Hong Kong de áreas disciplinares como Artes, Educação, Arquitetura,Engenharia, Medicina, Ciências Sociais, Odontologia, Comércio, Planejamento Urbanoe Gestão Ambiental e escritas por chineses (60%) e estudantes não falantes de chinês(40%), mostrou quais as diferenças qualitativas dos resultados quando comparadascom os estudos anteriores. O pesquisador também investigou nos exemplares das tesesse havia diferenças de forma como as Conclusões eram escritas por diferentes áreas deconhecimento. Neste estudo, o autor examinou a estrutura do capítulo, porém observouaspectos como título, extensão, referências, subtítulos nas seções e o foco do capítulode conclusão. Os resultados revelaram que o capítulo final das teses analisadas apresentaresumo dos principais resultados, faz retomada das questões de pesquisas, hipóteses eobjetivos, aponta as limitações do estudo, discute as implicações teóricas e aplicadas eapresenta sugestões para futuras pesquisas, além de uma conclusão geral mostrandoas contribuições do estudo. A pesquisa de Bunton serviu de motivação para a pesquisarelatada no presente artigo.

Ao construir significados em seus textos acadêmicos, pesquisadores iniciantesdevem demonstrar competências lingüísticas e comunicativas, que pressupõem não

Page 114: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

450 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 447-462, set./dez. 2006

Práticas discursivas em conclusões de teses de doutorado

só o domínio da língua enquanto sistema, mas também a habilidade de utilizarestratégias discursivas, numa dimensão sociocultural da linguagem, que veiculapropósitos comunicativos à práticas discursivas específicas de um determinadogênero. Neste sentido, se considerarmos a pesquisa científica e a escritura do relatocomo um discurso institucionalizado baseado em um sistema de normas pautadaspor estratégias consagradas pela comunidade discursiva, necessário se faz definir oque entendemos por estratégias discursivas na elaboração de um gênero acadêmico.

Práticas discursivas, em uma perspectiva interacionista, são processos deprodução, ações, seleções, escolhas, enfim uma variedade de estratégias adotadaspelo escritor para dar expressão e sentido ao texto (SPINK; FREZZA, 1999, p. 38).Para Bhatia (1999, p. 23), práticas discursivas são procedimentos, orais ou escritos,estabelecidos por profissionais, que rotineiramente engajam-se como parte de seutrabalho diário e como parte importante da cultura disciplinar de uma profissão oude uma comunidade acadêmica.

Na análise do capítulo final das teses que constituiu o corpus desta pesquisa,algumas práticas discursivas, que fazem parte da cultura disciplinar e que dão sentidoao gênero tese foram detectadas, mas para os propósitos deste trabalho examinoapenas duas: a estrutura retórica e a marca da voz do escritor no texto, uma vezque estas práticas vão responder às seguintes questões: além de encerrar a tese, quala função do capítulo de conclusão? Qual a estrutura retórica do capítulo final datese? De que forma o pesquisador marca sua voz no texto científico? Ao respondertais questões com as análises, entendemos ser possível desvelar pontos consideradosrelevantes na elaboração do capítulo final.

3 METODOLOGIA

A presente pesquisa, que se caracteriza como uma investigação descritiva ecomparativa, analisou cinco teses de doutorado escritas em Inglês por nativos dessalíngua e cinco escritas em português nas áreas de análise do discurso e lingüísticado texto, defendidas no período de 1989 a 2002 na Inglaterra e no Brasilrespectivamente. As teses foram coletadas em bibliotecas das universidades britânicas,particularmente Birmingham e Londres, e universidades brasileiras, particularmentenas universidades federais de Pernambuco, Santa Catarina e São Paulo. A escolha datese de doutorado, como objeto de estudo, justifica-se por esse gênero ser um exemplotípico de gênero acadêmico científico, de natureza expositivo-argumentativa e porter como autores profissionais experientes em desenvolver pesquisas.

Page 115: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

451Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 447-462, set./dez. 2006

Araújo

Na análise dos dados, as orações e expressões léxico-gramaticais foramexaminadas como unidades de análise para se identificar as diferentes práticasdiscursivas no capítulo de conclusão no corpus selecionado, que serão apresentadase ilustradas na próxima seção deste trabalho. Vale registrar que os textos foramanalisados com base nas regularidades de ocorrência e em como a informação édistribuída e contribui para produzir sentidos. Da análise dos dados, pretendeu-seidentificar as diferentes práticas discursivas nos capítulos de conclusão das teses dedoutorado, bem como identificar a função que essas práticas desempenham no texto.Para facilitar a compreensão das análises, cada tese foi numerada e codificada comoTLI (tese em língua inglesa) e TLP (tese em língua portuguesa). Nos exemplos, oselementos identificados são destacados em negrito. Os exemplos são numerados esua fonte é indicada não pelo seu autor ou tópico, mas pela numeração que cadatexto recebeu durante o processo de análise, o número da unidade retóricaidentificada e a página de onde foi extraído o exemplo. Por exemplo, a fonte (TLP 2,UR 1, p. 547) significa que o exemplo em foco foi retirado da tese analisada emlíngua portuguesa nº 2, unidade retórica 1, página 547.

4 ANÁLISE DAS PRÁTICAS DISCURSIVAS

4.1 Estrutura retórica das conclusõesAntes de analisarmos a estrutura retórica dos capítulos conclusivos nas teses

de doutorado nas duas línguas, vale a pena comentar os títulos dos capítulos. SegundoBunton (2005), títulos são importantes porque eles dão uma idéia do papel ou funçãoconsiderada pelo escritor em um capítulo ou seção do capítulo. Os títulos dos capítulosvariaram nas duas línguas, porém a maioria dos autores os denominou Conclusion,Conclusions ou Overall Conclusions em inglês e os termos correspondentesConclusão e Conclusões e Considerações Gerais em língua portuguesa (ver Tabela1). Uma das teses escritas em inglês apresentou um título específico relacionado aotópico, porém este apresenta um papel ou função de conclusão.

Page 116: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

452 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 447-462, set./dez. 2006

Práticas discursivas em conclusões de teses de doutorado

Tabela 1 – Títulos dos 10 capítulos de conclusão:

Estes títulos, que confirmam os estudos de Bunton (2005) sobre capítulosde conclusão de teses, sinalizam, como o próprio nome indica, o fechamento dotrabalho, mas também os papéis que os escritores consideram no capítulo final dasteses, como lugar de resumir os principais resultados, de demonstrar como ashipóteses e objetivos foram alcançados, de discutir implicações teóricas e pedagógicase apresentar sugestões para futuras pesquisas.

Uma das perguntas mais freqüentes dos alunos de pós-graduação é comoencerrar o capítulo final da dissertação ou tese. Ou seja, que tipo de informaçãodevem veicular no capítulo de conclusão. Com relação às Conclusões, os resultadosapontaram que, embora o capítulo final de um texto acadêmico sejaconvencionalizado, a recorrência de situações retóricas e dos propósitoscomunicativos compartilhados de uma comunidade discursiva particular eidentificados pela presença de aspectos relevantes do contexto sócio-retórico revelauma versatilidade na descrição das informações desse capítulo em quatro movimentosretóricos e uma tendência para a inovação no gênero em foco. Dessa forma, oscapítulos conclusivos escritos em língua inglesa apresentaram a seguinte estruturaretórica, tomando-se como ponto de partida o modelo de Swales (1990):

Tabela 2 – Estrutura retórica dos capítulos de conclusões em língua inglesa:

Analisando a primeira unidade retórica nas teses escritas em língua inglesa– Revisando a metodologia da pesquisa realizada –, percebe-se que os autorescomeçam identificando o tipo de metodologia adotada na pesquisa e informando ostipos de sujeitos envolvidos e os procedimentos, especialmente nas teses em que foiempregada uma metodologia experimental. Há uma tendência do autor em situar oleitor no trabalho desenvolvido. Exemplos:

Page 117: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

453Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 447-462, set./dez. 2006

Araújo

(1) Experimental studies such as those reviewed in chapter 4 haverepeatedly demonstrated that the concepts underlying certain logicalconnectives are not adequately conveyed by the English language items withwhich they are normally associated. This study constituted anexploratory investigation to determine to what extent the results reportedfor English linguistic connectives were generalisable to Japanese and Arabic,two languages unrelated to English and to each other [TLI 2, UR 1, p. 254](2) The research perspectives explored in the study were bothetic and emic in type. The etic perspective depended on observation andanalysis of the conversations, while the interpretation of events as perceivedby the participants provided the emic perspective. My role as a researcheralso changed, depending on the perspective. The Conversation Analysiswas undertaken from the standpoint of an outside observer. [….] [TLI 5,UR 1, p. 261]

Na segunda unidade retórica Sumarizando as principais conclusões, o autorreafirma e sumariza as principais conclusões encontradas à luz do referencial teóricoestabelecido no trabalho. Essa unidade temática é a que constitui a maior parte docapítulo e funciona com uma forma de consolidação do espaço de pesquisa. Exemplos:

(3) Perhaps the main conclusion from this study is that bringing anyone aspect of discourse meaning to the foreground will inevitably blur theboundaries between any other set of linguistic or discourse categories. […]Rather than distinguishing evaluation as a category, then, I have proposedlooking at a whole text as a single realization of evaluation. I haveproposed three parameters and three functions of evaluation, and also threetypes of analysis. In the experimental research articles under discussion,the sets of three are associated as follows. [TLI 1, UR 2, p. 355-356](4) In this study I have described and compared the behaviour, as exhibitedin the talk, of participants within two sets of feedback sessions, and offeredexplanations for this behaviour. The findings can be summarized asfollows:…. [TLI 5, UR 2, p. 261]

Na terceira unidade retórica, Avaliando os resultados/dificuldades, osautores sinalizam a unidade com termos como limitations of the study, difficultiesfaced during the investigation. Exemplos:

Page 118: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

454 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 447-462, set./dez. 2006

Práticas discursivas em conclusões de teses de doutorado

(5) I am aware of a number of limitations of this study which resultfrom the methodology and the restricted scope of the research. The studywas undertaken at a particular point in time:…The sessions took placewithin only one organization – that of the Bell Educational Trust, althoughthe pre-service and in-service sessions took place in different schools ordepartments. [TLI 5, UR 3, p. 262]

Em Discutindo as implicações para o ensino e apresentando sugestões

para futuras pesquisas, quarta unidade retórica, os autores vão além da presentepesquisa e discutem as implicações do tópico para o ensino e sugerem futuras questõesde pesquisa. A seção final do capítulo de conclusão é sinalizada pelos escritores pormeio dos termos implications, recommendations e future research. Dessa forma,a discussão final tende a ligar o tópico da pesquisa para o mundo exterior e aplicaçõespráticas. Exemplos:

(6) Whilst this study has added little to the ‘Whorfian debate’, it does offersome contribution to the discussion of how linguistic connectives areinterpreted in a variety of languages and the implications for the teacher andthe learner of mathematics. It suggests that, in teaching mathematics, we shouldbe aware of the potential ambiguity in the interpretation of logical relationshipsconveyed through natural language. [TLI 1, UR 4, p. 267-268]

(7) I hope that the findings of this research will be of interest to teachertrainers and to those concerned with in-service training and developmentwithin the ELT profession – both in the UK and overseas. The study mayeven contain some points which are relevant to those interested in the trainingand development of teachers of other subjects. [TLI 5, UR 4, p. 264]

Nas teses em língua portuguesa, os capítulos finais se diferenciaram apenasna unidade retórica um. Os resultados da análise apontaram a seguinte estrutura:

Tabela 3 – Estrutura retórica dos capítulos de conclusões em língua portuguesa:

Page 119: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

455Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 447-462, set./dez. 2006

Araújo

Ao se analisar as teses escritas em língua portuguesa, percebe-se que o capítuloé iniciado com uma retomada do tema, dos objetivos e questões de pesquisa ehipóteses. É uma forma de avaliar a problemática sendo investigada e o alcance dosobjetivos e questões de pesquisa. Exemplo:

(8) Acreditamos que cumprimos o nosso objetivo nesta pesquisa aorespondermos, senão a todas, pelo menos às perguntas referentes à relaçãoda LVA (leitura em voz alta) com a construção de sentido das notícias pelotelespectador e a interferência do letramento na compreensão [TLP 2, UR1,p. 276-277]

A segunda unidade retórica, Sumarizando as principais conclusões, é aque apresenta maior quantidade de informação e na qual os autores sumarizam asprincipais conclusões alcançadas com a realização da pesquisa, resultado semelhanteaos das teses escritas em língua inglesa. Exemplo:

(9) A descrição dos noticiários de televisão – apresentada no capítulo 2 –permitiu o estabelecimento dos aspectos constitutivos do Telejornal,revelando a importância da prosódia na estruturação do evento, e suaparticipação no jogo interacional promovido pelo texto, como uma dasestratégias de envolvimento características desse gênero comunicativo.[TLP2, UR2, p. 271].

Avaliando os resultados/dificuldades do estudo é a terceira unidade retóricae nela, os autores das teses apresentam em seu capítulo final sua avaliação dosresultados ou dificuldades encontradas em realizar o estudo. Exemplo:

(10) Deixamos de considerar, nesta pesquisa, todos os outros anafóricosque introduzem referentes novos para o discurso. Suas formas de realizaçãomereceriam, no entanto, ser colocadas em confronto com as expressõesque promovem a manutenção referencial, a fim de examinar o tipo demotivação dos elementos indiciais. [TLP3, UR3, p. 195].

Em Discutindo as implicações e apresentando sugestões para futuras

pesquisas, última unidade retórica, percebe-se que os autores das teses enfatizam,no capítulo de conclusão, as implicações para o ensino e sugerem futuras pesquisasa serem desenvolvidas sobre o tema. As palavras em negrito nos exemplos mostram

Page 120: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

456 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 447-462, set./dez. 2006

Práticas discursivas em conclusões de teses de doutorado

as contribuições do capítulo, sugestões de pesquisa e implicações pedagógicas datese com um todo. Exemplos:

(11) Uma das contribuições desta pesquisa no campo da lingüísticateórica é a nossa proposta de redimensionamento de um modelo de análisede gêneros com dados empíricos em português, que vem preencherparcialmente um nicho de estudos ainda incipiente no Brasil. Outracolaboração se delineia com a possibilidade de fornecer base teóricapara se reformularem as instruções normativas para a redação de resumosacadêmicos.... Numa perspectiva mais aplicada, nossa contribuiçãoconsiste em mostrar a importância da seleção adequada do léxico básicoque concentra as informações mais gerais ou mais específicas de cadaunidade temática, dependendo do assunto e da área de conhecimento. Destapesquisa podem-se originar propostas de ampliar o conhecimentodos gêneros em diferentes práticas sociais e de mostrar sistematicamentecomo se dá o discurso normatizado, especialmente dentro da academia.[TLP 1, UR 4, p. 197]

(12) Isto posto, torna-se conveniente abordar mais explicitamente asimplicações pedagógicas desta tese. Com efeito, essas implicações estãoenvolvidas no ensino da chamada redação oficial, como já se disse naintrodução. [TLP 5, UR 4, p. 206].

Estas unidades retóricas constituem os capítulos, que variam de 6 a 30 páginasna língua inglesa e de 10 a 15 páginas na língua portuguesa. É interessante observarque de 5 capítulos conclusivos escritos em inglês, a última seção do capítulo tinhacomo subtítulo a palavra ‘conclusão’, enquanto que as teses escritas em portuguêsconcluem com uma discussão sobre as implicações para o ensino e apresentandosugestões para futuras pesquisas.

Percebeu-se uma diferença na ordem das unidades retóricas nas duas línguas.A diferença reside na unidade retórica 1: na língua portuguesa, os escritorespreferiram iniciar o capítulo com a retomada do tópico, como os objetivos foramalcançados, como as questões de pesquisa foram respondidas e os principaisresultados encontrados. Já na língua inglesa, os autores preferiram iniciar com arevisão da metodologia de pesquisa adotada na pesquisa, especialmente quando apesquisa era de natureza experimental.

Page 121: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

457Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 447-462, set./dez. 2006

Araújo

4.2 Marca da voz do autor no texto acadêmicoSegundo Halliday e Hasan (1989, p.12), a dimensão interpessoal da linguagem

se realiza através dos relacionamentos permanentes ou temporários de quem estáfazendo parte da interação comunicativa, da natureza de seus interlocutores, dostatus e dos papéis desempenhados na construção de significados. Esta dimensãointerpessoal, no caso do discurso acadêmico escrito, pode ser expressa por diferentesformas lingüísticas, tendo função essencialmente interacional, persuasiva e avaliativa,ao expressar a perspectiva pessoal do escritor no ato da comunicação. Bakhtin (1992)e outros estudiosos reconhecem a natureza social e dialógica da linguagem, na qualescritores devem demonstrar habilidades no uso adequado dos recursos lingüísticospara realizar a interação social. Hyland (1999, p. 99) também compartilha dessepensamento ao afirmar que os escritores, ao apresentar informações nos textos,adotam posições interacionais e avaliativas, nas quais eles se representam e seprojetam como também seus leitores.

Assim, na escrita acadêmica, as escolhas e práticas discursivas dependemdas relações entre participantes e do posicionamento do escritor, que é em parteinfluenciado por práticas sociais de sua área disciplinar. Tais práticas são socialmentedefinidas pela comunidade discursiva, que detém conhecimento especializado paraestruturar e comunicar um gênero acadêmico e para reconhecer e legitimar taisusos por seus pares. O uso de tais formas ajuda a revelar para o leitor a atitude doescritor, o aparente compromisso com as informações apresentadas e o grau deenvolvimento com o leitor, que funcionam como elementos de influência e persuasãono texto. Os sentidos no texto são, dessa forma, socialmente mediados e influenciadospelas comunidades às quais os escritores e leitores pertencem.

Há várias formas de o escritor estabelecer interação no texto. Uma delas épor meio do uso das formas pronominais – os marcadores de referência pessoal –que explicitamente marcam a presença do autor no texto. São marcas de subjetividadeno discurso científico, no dizer de Tang e John (1999), em oposição às vozes dodiscurso dominante que se caracterizam como objetivas, distantes, impessoais. Nabusca da objetividade da ciência, o discurso se revela subjetivo e o pesquisador seevidencia na sua capacidade de observar, de fazer inferências, imaginar, sugerir,discutir, avaliar e justificar sua pesquisa.

Esta é uma das questões que tem gerado insegurança e dúvida nospesquisadores iniciantes quando precisam relatar resultados da pesquisa: De queforma o escritor deve se manifestar no texto? De que forma ele deve dialogar com as

Page 122: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

458 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 447-462, set./dez. 2006

Práticas discursivas em conclusões de teses de doutorado

teorias e com os resultados da pesquisa? Ao analisar o corpus percebi uma diferençaquanto ao uso das marcas de voz do autor nas teses nas duas línguas. As formaspronominais, em geral, marcam como o autor se posiciona em relação ao que éenunciado, ou seja, se o escritor se expõe a seus pares e assume a responsabilidadedas afirmações ou se estabelece um tom de intimidade com o leitor, compartilhandoos argumentos apresentados no trabalho. Dessa forma, percebe-se nas teses emInglês o uso da 1ª pessoa do singular (I/eu), enquanto que nas escritas em portuguêsprevalece a 1ª pessoa do plural (nós/we). Exemplos:

(13) Throughout this thesis I have sought to develop notions of an ecologyof context and communication, of processes and constraints on meaningnegotiation in interaction. [TLI 4, p. 232]

(14) In this chapter I wish to summarize and extend the theoretical andpractical implications of the work that has been described in this thesis.[TLI 2, p. 355]

(15) My findings might encourage trainers in different institutions toconduct similar research into their own practice and procedures. [TLI 5,p.264]

(16) When we consider the results for individual connectives, we find that‘and’ statements are almost universally understood as logical conjunctionsand that this finding is independent of language group. [TLI 1, p. 259]

(17) Intitulamos este capítulo de ‘Conclusão’ com a autoridade quenos confere a discussão sobre esta estratégia de condução de informaçõesem resumos de dissertações, no capítulo 5 desta tese,.... [TLP 1, p. 189]

(18) Finalmente, desejo concluir este trabalho com uma mensagempositiva de que a pesquisa sobre os gêneros administrativos prospere nosmeios acadêmicos do nosso país.... [TLP 5, p. 207].

Os estudos já realizados sobre o uso dos pronomes pessoais na escritaacadêmica (BUNTON, 1999, TANG; JOHN, 1999; HYLAND, 1999, 2002; HARWOOD,2005) têm identificado várias funções. Os pronomes são considerados formas de osescritores organizarem o texto e guiarem o leitor em relação ao argumento, afirmaremopiniões pessoais, relatarem procedimentos metodológicos e reconhecerem ascontribuições dadas por instituições ou pesquisadores em alguma área deconhecimento. Além dessas funções, os pronomes também ajudam a revelar comoos acadêmicos constroem seus relacionamentos com os leitores e sua comunidade

Page 123: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

459Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 447-462, set./dez. 2006

Araújo

discursiva. Dessa forma, enquanto alguns usos de I/eu são exemplos discretos demanifestação de autoridade no texto, outros usos são considerados formas de o escritordialogar com seus pares. O uso de “we” tanto pode ser inclusivo (sinaliza a interaçãoescritor – leitor) quanto exclusivo (sinaliza voz de autoridade no texto, mas de formapolida e positiva). No caso dos capítulos de conclusão em análise, percebe-se queambos os usos de I e we (eu ou nós) marcam a voz de autoridade: o escritor apela parao leitor para aceitar suas suposições, hipóteses ou conclusões alcançadas com osresultados da investigação. A seleção e uso desses pronomes podem refletir relaçõesde poder, ou mesmo, a tentativa de provocar efeitos não pretendidos.

Nos exemplos de 13 a 18, percebe-se a presença do escritor, quando usa opronome pessoal “I” e a forma “we” (como sujeito universal e autoria coletiva),revelando a autoridade do escritor no texto e seu domínio de um campo particularde conhecimento, como também no sentido de ser “um construtor de significadosde seu texto” (IVANI , 1994, p.12). O uso do pronome “we” ocorreu com maisfreqüência do que o pronome “I”, revelando que o escritor, embora interpretando eargumentando, compartilha conhecimento com aqueles que de alguma formapertencem à comunidade científica, buscando, em última instância, a construção elegitimação de um saber postulado pelo discurso científico. A seleção dos pronomes“I” e “we”, numa dimensão interpessoal, tem por finalidade alcançar uma interaçãoentre escritor-leitor, através do texto, e revela-se como uma atividade de divulgarciência num verdadeiro fazer persuasivo.

Dessa forma, na construção da interação entre o escritor e seus pares(leitores), o escritor expressa-se por meio de formas pronominais de referênciapessoal: o uso dos pronomes “I” e “we”, que, numa escala de maior ou menor grau,revela a presença do escritor nos capítulos de fechamento das teses como uma formade convencer o interlocutor e ganhar adeptos ao longo do seu percurso discursivo.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste artigo, através de uma amostra limitada de teses na área de lingüística,tentou-se descrever e mostrar as variações de duas práticas discursivas: a organizaçãoretórica das informações do capítulo de tese e o posicionamento do pesquisadoriniciante ao relatar sua pesquisa de doutorado nas línguas inglesa e portuguesa, como objetivo de contribuir para a conscientização de novos pesquisadores que sintam anecessidade de elaborar esse gênero, especialmente em entender como as práticasacadêmicas e discursivas são recontextualizadas no fazer acadêmico nas duas culturas.

C

^

Page 124: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

460 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 447-462, set./dez. 2006

Práticas discursivas em conclusões de teses de doutorado

Os resultados revelaram que há diferença no papel que o escritor escolhe para seprojetar no capítulo de conclusão. Em Inglês, os autores preferem usar a primeira pessoado singular como marca de subjetividade, enquanto que em português, o pesquisador seexpressa na primeira pessoa do plural como forma polida de sinalizar a voz de autoridadeno texto. Essa diferença de uso mostra que as práticas discursivas, além de serem produtosdas regras estabelecidas por uma comunidade discursiva, revelam também que osescritores têm liberdade de fazer diferentes escolhas organizacionais que são adequadasna expressão do gênero em estudo. Além disso, a escolha dos pronomes como marca desubjetividade e da presença do escritor no texto desmistifica a crença de que o relato depesquisa é monolítico e que deve expressar objetividade e neutralidade.

As características do capítulo de conclusão e as variações encontradas nas duaslínguas revelam que a convencionalidade do gênero nesta área disciplinar não é engessadae que é necessário que pesquisadores iniciantes conheçam as práticas discursivas e seconscientizem de que escrever uma tese ou mesmo uma dissertação não é um processofácil. Exige do pesquisador-escritor um nível de proficiência que inclui conhecimentotextual, de gênero e de práticas sócio-discursivas relacionadas ao gênero em foco. Noentanto, mais pesquisas são necessárias sobre as conclusões de teses na área de lingüísticapara confirmar estes resultados e também em outras áreas disciplinares para se identificarque variações são convencionais. Tais resultados servirão de conhecimento inicial paraos alunos poderem adquirir expertise, já que os manuais de metodologia de pesquisanão ajudam os novos pesquisadores a se tornarem escritores competentes nesse gênero.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992 [1953].

BHATIA, V. K. Integrating products, processes, purposes and participants in professionalwriting. In: CANDLIN, C. N.; HYLAND, K. (Eds.). Writing: texts, processes and practices.London: Longman, 1999. p. 21-39.

BUNTON, D. The structure of PHD conclusion chapters. Journal of English foracademic purposes, n. 4, p. 207-224, 2005.

______. The use of higher level metatext in Ph.D theses. English for specificpurposes, n. 18, p. 41-56, 1999.

DUDLEY-EVANS, T. Genre analysis: an investigation of the introduction and discussionssections of MSc dissertations. In: COULTHARD, M. (Ed.). Talking about text.Birmingham: English Language Research, 1986. p. 128-145.

Page 125: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

461Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 447-462, set./dez. 2006

Araújo

______. Genre analysis: an approach to text analysis for ESP. Advances in written textanalysis. In: COULTHARD, M. (Ed.). London: Routledge, 1994. p. 219-228.

HALLIDAY, M. A. K.; HASAN, R. Language, context, and text: aspects of language in asocial-semiotic perspective. Oxford: OUP, 1989.

HARWOOD, Nigel. ‘We do not seem to have a theory…. The teory I present here attemptsto fill this gap’: inclusive and exclusive pronouns in academic writing. AppliedLinguistics, Oxford University Press, v. 26, n. 3, p. 343-375, 2005.

HILL, S. S.; SOPPELSA, B. F.; WEST, G. K. Teaching ESL students to read and writeexperimental research papers. TESOL Quarterly, v. 16, n. 3, p. 333-347, 1982.

HYLAND, K. Disciplinary discourses: writer stance in research articles. In: CANDLIN, C. N.;HYLAND, K. (Eds.). Writing: texts, processes and practices. London: Longman, 1999. p.99-121.

______. Options of identity in academic writing. ELT Journal, v. 56, n. 4, p. 351-358, 2002.

HEWINGS, M. The end! How to conclude a dissertation. In: BLUE, G. M. (Ed.). Language,learning and success: studying through English. London: Modern English Publicationsand the British Council, MacMillan, 1993.

IVANI , Roz. I is for interpersonal: discoursal construction of writer identities and theteaching of writing. Linguistics and Education, v. 6, n. 1, p. 3-15, 1994.

PALTRIDGE, B. Thesis and dissertation writing: an examination of published advice andactual practice. English for specific purposes, n. 21, p. 125-143, 2002.

SPINK, Mary J. P.; FREZZA, Rose M. Práticas discursivas e produção de sentidos: aperspectiva da Psicologia Social. In: SPINK, Mary Jane (Org.). Práticas discursivas eprodução de sentidos no campo – aproximações teóricas e metodológicas. SãoPaulo: Cortez Editora, 1999. p. 17-39.

SWALES, J. M. Aspects of article introductions. Birmingham: The University of Aston, 1981.

______. Genre analysis: English in academic and research settings. Cambridge:Cambridge University, 1990.

______. Genre analysis: research genres – explorations and applications.Cambridge: Cambridge University, 2004.

TANG, R.; JOHN, S. The “I” in identity: exploring writer identity in student academic writingthrough the first person pronoun. English for specific purposes, n. 18, p. 23-39, 1999.

Recebido em 10/12/05. Aprovado em 07/03/06.

C^

Page 126: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

462 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 447-462, set./dez. 2006

Práticas discursivas em conclusões de teses de doutorado

Title: Discursive practices in concluding chapters of PHD thesesAuthor: Antonia Dilamar AraújoAbstract: The present paper aims to reflect on the role of discursive practices in the writing ofconcluding chapters in PhD theses written in English and in Portuguese. The research, characterizedas a descriptive and comparative study, analysed ten concluding chapters covering the areas ofdiscourse analysis and text linguistics. Two discursive practices were examined: the rhetoricalstructure of the chapters, according to Swales’ model (1990), and the way writers project themselvesin the texts. The results revealed that there are four rhetorical moves in the writing of the chaptersand that there is a considerable difference concerning the role writers choose to represent themselvesin the concluding chapters in the two cultures.Keywords: academic genre; PhD thesis; discursive practice.

Tìtre: Des pratiques discursives dans les conclusions de thèses de doctoratAuteur: Antonia Dilamar AraújoRésumé: Cet article a comme objectif réfléchir sur le rôle des pratiques discursives employéesdans la rédaction de thèses de doctorat dans les langues anglaise et portugaise, tout en considérantseulement le chapitre destiné à la conclusion. La recherche, qui est caractérisée par une investigationà la fois descriptive et comparative, a analysé dix chapitres de conclusions de thèses de doctoratdans le domaine du discours et de la linguistique de texte. Des pratiques discursives furent prisesen compte: la structure rhétorique du chapitre, selon le modèle de Swales (1990), et la formeselon laquelle les écrivains se projettent dans leurs textes. Les résultats ont signalé quatre unitésrhétoriques dans la rédaction de chapitres conclusifs et une sensible différence dans les deuxcultures quant au rôle dont l’écrivain choisit pour se projeter dans le dernier chapitre des thèses.Mots-clés: genre académique; thèse de doctorat; pratique discursive.

Título: Prácticas discursivas en conclusiones de tesis de doctoradoAutor: Antonia Dilamar AraújoResumen: El presente artículo tiene como objetivo reflexionar sobre el papel de las prácticasdiscursivas en la redacción de tesis de doctorado en inglés y portugués. Se considera, en estetrabajo, sólo el capítulo de conclusión. En la investigación, que se caracteriza como descriptiva ycomparativa, se analizó diez capítulos de conclusión de tesis de doctorado del área de análisis deldiscurso y lingüística de texto. Se examinó dos prácticas discursivas: la estructura retórica delcapítulo, según el modelo de Swales (1990), y la forma cómo los escritores se proyectan en sustextos. Los resultados apuntaron cuatro unidades retóricas en la redacción de los capítulosconclusivos y una sensible diferencia entre las dos culturas en cuanto al papel que el escritor eligepara proyectarse en el capítulo final de la tesis.Palabras-clave: género académico; tesis de doctorado; práctica discursiva.

Page 127: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

463Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 463-493, set./dez. 2006

Rojo e Schneuwly

AS RELAÇÕES ORAL/ESCRITA NOS GÊNEROS ORAIS FORMAIS

E PÚBLICOS: O CASO DA CONFERÊNCIA ACADÊMICA*

Roxane Rojo**

Bernard Schneuwly***

Resumo: A questão das relações de continuidade e de mútua constitutividade entre a linguagemoral e a escrita é da maior relevância para a compreensão do funcionamento dos gêneros oraisformais e públicos e dos gêneros de texto escrito em nossas sociedades letradas, assim como dosfenômenos dos letramentos e do ensino-aprendizagem de línguas nas escolas. Neste artigo,pretendemos fazer um exercício de análise de um gênero oral formal e público – a conferênciaacadêmica – em termos das relações entre oral-escrita, oral-oral e escrita-escrita na constituiçãoda conferência e em sua “retextualização” (MARCUSCHI, 2001a) como transcrição. Serão tomadoscomo dados os múltiplos textos orais e escritos em jogo numa conferência proferida por BernardSchneuwly. Ao final, defender-se-á a posição de que oralidade e escrita mantêm uma relaçãocomplexa de mútuo efeito e interferência nos gêneros orais formais públicos, que pode ser melhorcompreendida em termos de “sistema de atividades” que colocam em circulação e em relação“sistemas de gêneros” (BAZERMAN, 2005a, 2005b), entendidos no sentido bakhtiniano do termo.Palavras-chave: gênero discursivo; oralidade; escrita; conferência acadêmica; ensino.

1 INTRODUÇÃO

Não existe ‘o oral’, mas ‘os orais’ sob múltiplas formas, que, por outrolado, entram em relação com os escritos, de maneiras muito diversas: podemse aproximar da escrita e mesmo dela depender – como é o caso daexposição oral ou, ainda mais, do teatro e da leitura para os outros –,como também podem estar mais distanciados – como nos debates ou, éclaro, na conversação cotidiana. Não existe uma essência mítica do oralque permitiria fundar sua didática, mas práticas de linguagem muitodiferenciadas, que se dão, prioritariamente, pelo uso da palavra (falada),

* Schneuwly é apresentado como co-autor deste texto por ser o autor da conferência nele analisada e, principalmente,por ser, em grande parte, autor da visão sobre as relações entre oralidade e escrita que nele é adotada. A análiseem si da conferência, entretanto, é da autoria de Rojo, e os eventuais equívocos e imprecisões nela encontradossão de sua exclusiva responsabilidade.

** Professora do Departamento de Lingüística Aplicada do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), UNICAMP.Doutora em Lingüística Aplicada.

*** Professor titular da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação (FAPSE) da Universidade de Genebra (UNIGE),Suíça. Doutor em Ciências da Educação.

Page 128: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

464 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 463-493, set./dez. 2006

As relações oral/escrita nos gêneros orais formais e públicos ...

mas também por meio da escrita, e são essas práticas que podem se tornarobjetos de um trabalho escolar. (SCHNEUWLY, 2004, p. 135)

Muito se tem discutido, nos anos recentes, sobre as relações que seestabelecem entre as modalidades oral e escrita no uso da língua1. As décadas de 70e 80 testemunharam uma abordagem dicotômica dos dois fenômenos, que buscavae, por vezes, mistificava, semelhanças e diferenças de um oral tido como puro e deuma escrita tão transparente e pura quanto.

O quadro 1, montado a partir das discussões presentes em Marcuschi (2001a,p. 27-31), mostra as qualidades tidas como privativas de uma ou de outra modalidade,nos anos 802:

Quadro 1 – A perspectiva dicotômica das modalidades e de seu contexto de uso.

Ou seja, via-se a fala como desorganizada, variável, heterogênea e a escritacomo lógica, racional, estável, homogênea; a fala seria não-planejada e a escrita,planejada e permanente; a fala seria o espaço do erro e a escrita, o da regra e danorma, enquanto a escrita serviria para comunicar à distância no tempo e no espaço;a fala somente aconteceria face a face; a escrita se inscreveria, a fala seria fugaz; afala é expressão unicamente sonora; a escrita, unicamente gráfica.

1 Ver, a respeito, a coletânea organizada por Signorini em 2001.2 Ver a respeito os trabalhos de Bernstein (1971), Labov (1972), Goody (1977), Olson (1977), Ochs (1979), Scribner

e Cole (1981), Ong (1982), Tannen (1982), Halliday (1985), Lahire (1993) e Scribner (1997), por exemplo.

Page 129: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

465Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 463-493, set./dez. 2006

Rojo e Schneuwly

Estas semelhanças e diferenças levantadas também teriam origem oudecorrência para as culturas e os contextos de uso da linguagem oral ou escrita e,logo, para os letramentos: a escrita levaria, por si só, a estágios mais complexos edesenvolvidos de cultura e de organização cognitiva e daria acesso por si mesma aopoder e à mobilidade social.

2 RELAÇÕES ENTRE LINGUAGEM ORAL E LINGUAGEM ESCRITA –UM DEBATE EM ABERTO

Em muito devido às mudanças históricas decorrentes das novas tecnologiaseletrônicas e digitais da comunicação e da informação, que colocaram em causa,com suas mídias, muitas dessas constatações – como a situação face-a-face da fala ea distância da escrita; a fugacidade da fala e a preservação do escrito etc. –, dadécada de 90 em diante, começou-se a pensar relações menos simplistas e dogmáticasentre a fala e a escrita nas sociedades complexas e letradas. Duas posições ganharamrelevo nestas discussões mais recentes:

a) a existência de um contínuo ou gradação entre fala/escrita (lingüísticatextual, análise conversacional, teorias de gêneros textuais); eb) a existência de relações complexas de constitutividade mútua entre falae escrita em contextos específicos de uso (teorias da enunciação e dodiscurso).

No Brasil, o proponente e articulador principal da visão do contínuo éMarcuschi (2001a; 2001b, dentre outros). Antes dele, já Kato (1986) apresentavauma visão de continuidade entre as construções de fala e escrita na criança emdesenvolvimento:

Figura 1 – Relações de continuidade fala/escrita na criança.

Ou seja, a criança desenvolveria uma fala inicial sem contato com a escrita(F1). Quando de seus contatos iniciais com a escrita (E1), sua fala seria modificadapor efeitos de letramento (F2… Fn), assim como sua escrita (E2…En) também sofreriaimpactos desses processos.

Page 130: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

466 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 463-493, set./dez. 2006

As relações oral/escrita nos gêneros orais formais e públicos ...

Marcuschi (2001a, 2001b) apresenta visão mais sofisticada destas relaçõesde continuidade, fundada nos gêneros textuais. Para ele, “as diferenças entre fala e

escrita se dão dentro do continuum tipológico das práticas sociais de produção

textual e não na relação dicotômica de dois pólos opostos. Em conseqüência,temos a ver com correlações em vários planos, surgindo daí um conjunto de

variações e não uma simples variação linear” (MARCUSCHI, 2001a, p. 37, destaquedo autor).

Figura 2 – Relações de continuidade fala/escrita em relação a gênerostextuais (MARCUSCHI, 2001a, p. 38).

Os critérios principais de distribuição dos gêneros pelo contínuo seriam o“meio de produção” (sonoro ou gráfico) e a “concepção discursiva” (oral ou escrita).Assim teríamos, por exemplo, a seguinte distribuição de gêneros textuais:

Quadro 2 – Distribuição de quatro gêneros textuais de acordo com o meio deprodução e a concepção discursiva (MARCUSCHI, 2001a, p. 40).

Embora a concepção brevemente exposta acima apresente uma versãobastante mais sofisticada das relações em oral e escrita nos usos sociais da língua,esta ainda guarda um pendor tipológico e taxonomizante, e relações de semelhançae diferença – enquanto múltiplas variáveis – operam no interior do contínuo.

Page 131: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

467Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 463-493, set./dez. 2006

Rojo e Schneuwly

De outra natureza é a concepção de relações entre usos orais e escritos dalíngua explicitada na epígrafe deste texto. Esta perspectiva é adotada por Corrêa(2001), Rojo (2001), Schneuwly (2004, 2005) e Signorini (2001b), dentre outros.Rojo (2001, p. 51-52) inicia seu texto distinguindo, com Barthes, “o escrito” – oque, na escrita, refere-se ao traço, à grafia3 – e “a escrita”, “a que produz textos”(BARTHES, 1981, p. 12). Ao longo do texto, a autora sustenta que a dicotomia entremodalidades pode somente dizer respeito ao “escrito”, pois, na “escrita”, reinamsoberanos, sobre as relações complexas entre modalidades, o gênero discursivo e ocontexto ou situação específicos de produção do texto numa dada esfera social.

Já Signorini (2001b, p. 99-101) aponta para os “hibridismos da escrita”,que se verificam “no/pelo imbricamento, conjunção, ou ‘mixagem’ – para usar umtermo de Street (1984) –, não só de formas percebidas como próprias dasmodalidades oral e escrita, como também de códigos gráfico-visuais, gênerosdiscursivos e modelos textuais”. Em direção semelhante caminha a noção de“heterogeneidade da escrita” de Corrêa (2001, p. 142-156), quando insiste naexistência de um

[...] trânsito entre as práticas sociais do campo das práticas orais e docampo das práticas letradas, como modo de justificar a presença de fatoslingüísticos da enunciação falada (gêneros, recursos fônicos,morfossintáticos, lexicais e pragmáticos) na enunciação escrita. Segundo oque penso, é sempre o produto do trânsito entre práticas sociais orais/faladas e letradas/escritas que nos chega como material de análise do modode enunciação falado e do modo de enunciação escrito, ambos – como sesabe – manifestações de uma única e mesma língua.

Schneuwly (2005, s. p.), durante sua conferência analisada no presente artigo,enfoca a questão agora do ponto de vista dos usos da língua e da linguagem na esferaescolar. Diz o autor:

[...] A relação entre gêneros orais e gêneros escritos não é uma relação dedicotomia. É antes uma relação de continuidade e de efeito mútuo, isto é,gêneros orais podem sustentar gêneros escritos; gêneros escritos podemsustentar gêneros orais. Eles estão em mútua interdependência, cada gênerooral que entra na escola, em geral, pressupõe a escrita, assim como cada

3 Aos “meios de produção“, como diria Marcuschi (2001a).

Page 132: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

468 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 463-493, set./dez. 2006

As relações oral/escrita nos gêneros orais formais e públicos ...

gênero escrito trabalhado na escola pressupõe o oral. Então, de uma certamaneira, esta é uma distinção relativamente artificial, pois há umentrelaçamento contínuo. Além disso, cada gênero oral é sempre tambémsustentado por um outro gênero oral, isto é, há sempre um gênero oral eum gênero oral sobre o gênero oral, um discurso sobre. Cada gênero ésempre também objeto de outros gêneros de alguma maneira. E então hásempre o falar para escrever, o escrever para falar, o escrever para escrevere o falar para falar, o que mostra que sempre um gênero é dependente deoutros gêneros, o que é um fenômeno evidente de intertextualidade, masque está sempre na base de nosso trabalho.

Esta é, pois, questão da maior relevância para a compreensão dofuncionamento dos gêneros orais formais e públicos e dos gêneros de texto escritosem nossas sociedades letradas, assim como dos fenômenos dos letramentos e doensino-aprendizagem de línguas nas escolas.

Por isso, neste texto, pretendemos fazer um exercício de análise de um gênerooral formal e público – a conferência acadêmica – em termos das relações complexase de mútuo efeito entre oral-escrita, oral-oral e escrita-escrita4 na constituição daconferência e em sua “retextualização” (MARCUSCHI, 2001a) como transcrição.Serão tomados como dados os múltiplos textos orais e escritos em jogo5 numaconferência proferida por Bernard Schneuwly, em outubro de 2005. Eventualmente,será também levada em conta a tradução (quase) simultânea feita durante aconferência. Ao final, defender-se-á a posição de que oralidade e escrita mantêmuma relação complexa de mútuo efeito e interferência nos gêneros orais formaispúblicos, que pode ser melhor compreendida em termos de sistema de atividadesque colocam em circulação e em relação sistemas de gêneros (BAZERMAN, 2005a,2005b), entendidos no sentido bakhtiniano do termo.

3 RETEXTUALIZAÇÃO – UM CONCEITO-CHAVE

Marcuschi (2001a, p. 46) também elabora o conceito de “retextualização”,entendida como “um processo que envolve operações complexas [de passagem dotexto falado para o escrito e vice-versa] que interferem tanto no código como no

4 De acordo com Bovet (1999, p. 68), podemos conceber a conferência como “um texto oral cuja especificidadediz respeito ao desenvolvimento progressivo e situado de sua escrita/leitura pelo orador e pelo público.”

5 O power point de base da conferência, a fala do professor, a tradução e a transcrição de sua fala.

Page 133: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

469Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 463-493, set./dez. 2006

Rojo e Schneuwly

sentido e evidenciam uma série de aspectos nem sempre bem-compreendidos darelação oralidade-escrita.”

Na verdade, o autor distingue entre “transcrição” (REY-DEBOVE, 1996) e“retextualização”. Na “transcrição” ou “transcodificação” está envolvido o quecostumamos chamar de “o escrito”6, isto é, a materialidade fônica da fala e gráficada escrita, por meio de “procedimentos convencionalizados”. Neste nível, não háintrodução de transformações no texto produzido, apenas alteração na materialidade(fônica-gráfica). No entanto, mesmo neste primeiro nível de operações relativamentesimples, já há uma neutralização do texto oral original: eliminam-se hesitações,incorreções, reformulações, marcadores conversacionais, repetições e truncamentos;introduz-se a pontuação. Há o que Marcuschi (2001a, p. 52) denomina uma espéciede “idealização da língua pelo molde da escrita”.

Já na “retextualização” (MARCUSCHI, 2001a), entra em jogo o quecostumamos denominar “a escrita”, isto é interfere-se tanto na materialidade comona forma e no conteúdo do texto, na passagem de um texto a outro. Refaz-se o textosmudando sua formatação lingüística, por meio de uma série de operações queMarcuschi (2001a, p. 69) sintetiza no quadro 3.

Quadro 3 – Aspectos envolvidos nos processos de retextualização.

Em seu livro, o autor detalha e exemplifica com abundância os processosenvolvidos nestas operações e faremos recurso aos conceitos e descrições do autor,na medida em que for necessário na análise de nossos dados.

6 Ver Rojo (2001).

Page 134: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

470 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 463-493, set./dez. 2006

As relações oral/escrita nos gêneros orais formais e públicos ...

4 A CONFERÊNCIA ACADÊMICA – UMA FALA ENCADEADA A UMAESCRITA (OU MUITAS)

A conferência acadêmica é um gênero oral formal e público que apresentacomplexas relações entre textos orais e escritos em sua elaboração e apresentação.Embora haja, em certos domínios de estudo e pesquisa, muitos conferencistas queredijam um texto que será lido em público7, em nossa área, é mais comum oprocedimento de se elaborar inicialmente um resumo8 e depois um arquivo numeditor de apresentações (um “power point”, como se diz comumente9), com slides

contendo esquemas; enumerações; definições ou citações; quadros, tabelas e gráficos;ilustrações e imagens, animados ou não. Sobre esses dois escritos10 e em relaçãocom eles, articula-se a fala do conferencista, que, depois, pode vir a ser transcrita(ou transcodificada) e, por vezes, editada ou retextualizada para a elaboração deum artigo acadêmico para publicação.

É esse gênero discursivo que estaremos analisando neste artigo, visando exploraras relações entre oralidade e escrita nesta situação de comunicação. Mais exatamente,trata-se da conferência intitulada Gêneros orais e escritos na escola11, proferida peloprofessor Bernard Schneuwly12 a um público de professores universitários e alunos degraduação e pós-graduação das áreas de Lingüística, Lingüística Aplicada e Educação,na UNICAMP, em 20/10/2005. A conferência foi proferida com tradução quase-simultânea, feita pela mesma pessoa que depois elaborou a transcrição da conferência13.Seguiram-se à conferência 45 minutos de debates.

7 Já Goffman (1981, p. 171-172) lembra que há três modos de apresentação pública em nossa sociedade:“memorização”, “leitura em voz alta” e “fala espontânea”, esta última freqüentemente baseada em notas. O autoraponta também para o fato de que a fala espontânea em conferências é ilusória, por suas relações com o textoescrito.

8 Este resumo não é exatamente a apresentação de uma súmula do texto como quer o nome, pois, o mais das vezes,o texto não se encontra redigido. Trata-se mais de um protocolo de intenções do que virá a ser dito ou um“présumo”, se se quiser dizer assim.

9 Em nosso entender, estes (resumo e power point) são já dois gêneros de textos escritos que entram na elaboraçãodo texto oral da conferência. Detalharemos este ponto de vista ao longo da análise.

10 E, por vezes, também sobre outros tantos, como notas ou livros – em certas áreas, vídeos, imagens ou sonorizações– que o conferencista traz para incluir citações e ler ou exibir para a platéia.

11 “Genres oraux et genres écrits à l’école.”12 Prof. Dr. Bernard Schneuwly é docente em Didática do Francês L1 na seção de Ciências da Educação da Faculdade

de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Genebra e coordena o grupo de pesquisa denominado“Grafé – Groupe Romande de Recherche du Français Enseigné“.

13Este dado nos será útil para investigar os processos e operações de compreensão do tradutor/transcritor.

Page 135: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

471Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 463-493, set./dez. 2006

Rojo e Schneuwly

Para a elaboração da conferência foi dado ao professor apenas o título e nãouma ementa de conteúdo ou um resumo. Mas tratava-se do mesmo título de livro desua autoria (com sua equipe de pesquisa), traduzido e publicado no Brasil em 2004.Portanto, ficava claro que se esperava uma síntese do trabalho do professor (e suaequipe) nos últimos 10 anos, sobre a questão dos gêneros de texto na escola. Para aconferência, o professor elaborou um power point, que será analisado juntamentecom sua fala. O professor também gravou sua fala (e as traduções e discussões)diretamente no computador, por meio da ferramenta Audacity.app, gerando umarquivo de som (.wav) para transcrição.

Goffman (1981, p. 176) chama a atenção para a existência, nas conferências,de parênteses (brackets), muitas vezes acompanhados de rituais14, e qualifica a“abertura” e “fechamento” da conferência como “parênteses que ocorrem na interfaceentre espetáculo e jogo, neste caso, a situação e a conferência propriamente dita”.

O texto oral do gênero conferência acadêmica é, pois, aberto por um ritualinicial de apresentação do conferencista convidado e de seu(s) tema(s), apresentaçãodas regras da conferência relativas a tempo e interação e de agradecimentos mútuospelo convite e pela aceitação do convite:

Mod.: Vamos abrir a conferência do Prof. Bernard Schneuwly que está numabreve visita aqui e à Católica […] Esta primeira conferência de hoje é umaconferência ligada ao trabalho dele dos últimos […] dez anos, sobre o ensino degêneros, primeiro escritos, não é?, na primeira fase, eles trabalharam, com focoespecial na produção, e, em seguida, gêneros orais na sala de aula, né?, e que tevealgum impacto nos nossos referenciais, né?, enquanto trabalho. Uma síntese destetrabalho dos últimos dez anos está no livro que a gente traduziu ãn… o anopassado, acabamos de traduzir o ano passado, da Mercado de Letras, que chama…que tem o mesmo título da conferência, que é Gêneros orais e escritos na escola.O professor/ Nós temos ãn… até meio dia para discussão e exposição […]/ vaifalar uma hora uma hora e pouquinho e aí a gente faz as discussões e… […]Professor Bernard Schneuwly é da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educaçãoda Universidade de Genebra e trabalha com o ensino de francês língua materna[…] Eu passo a palavra então… Bernard…Prof.: Merci. Ãn. C´est un grand plaisir de venir ici vous parler d’un thème queme tient à coeur – Roxanne l’a dit – sur lequel je travaille depuis des très trèslongues années. Et donc…15

14 Como acender um cigarro, sentar ou levantar, beber água etc.15 “Obrigado. Ãn. É um grande prazer vir aqui falar-lhes de um tema que me é muito caro – como disse Roxane –

sobre o qual trabalho há muitos e muitos anos. Então…” (tradução nossa).

Page 136: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

472 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 463-493, set./dez. 2006

As relações oral/escrita nos gêneros orais formais e públicos ...

Embora tenhamos escolhido fazer para este artigo uma transcrição queMarcuschi (2001a) qualifica como uma “idealização” da fala, isto é, já na forma doportuguês padrão (“vamos” por “vamo”, por exemplo), adotando a pontuação daescrita e eliminando maiores digressões da fala, não procedemos a maiores re-organizações do texto, para preservar, como exemplificação, já na fala inicial damoderadora, as “descontinuidades” sintáticas da linguagem oral, por exemplo, noenunciado “o trabalho dele dos últimos […] dez anos, sobre o ensino de gêneros,primeiro escritos, não é?, na primeira fase, eles trabalharam, com foco especial naprodução, e, em seguida, gêneros orais na sala de aula, né?”. Além dos fáticos (“Né?”,“Não é?”) e das hesitações (“ãn…”), os enunciados iniciais já apresentamdescontinuidades sintáticas (“gêneros, primeiro escritos, não é?, na primeira fase,eles trabalharam, com foco especial na produção”), que, no texto escrito ou transcrito,sofreriam re-organizações.

A partir deste momento, a fala do conferencista passa a relacionar-seestreitamente e a constituir-se a partir do texto escrito do editor de apresentações,como veremos logo mais. O power point organizado pelo conferencista constava de16 slides, distribuídos conforme o quadro 4.

Mencionamos anteriormente que consideramos este esquema de apresentaçãoum texto num gênero presente na conferência e não, simplesmente, uma ferramentacomputacional. A própria ferramenta computacional – o editor de apresentações –disponibiliza modelos (templates) de formato (layout) e de conteúdo (content) quepredizem alguns temas e finalidades possíveis dos textos (encontro empresarial,apresentação de relatório técnico, visão geral de projeto, motivação de uma equipe,recomendação de uma estratégia etc.) e permitem escolher entre formatos pré-prontos(título, tabela, gráfico, organograma, lista com marcadores, texto, imagem ou mídia comou sem texto etc.). Podemos dizer que as ferramentas do software prevêem e predizemtanto a forma composicional como alguns dos temas e estilos possíveis de textos nogênero, além de possibilitarem um conjunto amplo de animações (de som e imagem).

Este gênero tem uma função planejadora da fala formal pública (no trabalho, noespaço acadêmico) e exerce controle e apoio à execução desta fala, assim como apóiatambém a compreensão da platéia. O texto dos slides esquematiza a fala e o número deslides, por sua vez, serve de controle do tempo de execução da fala.

Vejamos dois tipos de desenvolvimento da fala em relação ao texto escrito dosslides. No primeiro exemplo, a fala expande um pouco o texto do slide, apenas o suficientepara qualificar o elenco de itens a serem desenvolvidos.

Page 137: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

473Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 463-493, set./dez. 2006

Rojo e Schneuwly

16 Tradução nossa.

Quadro 4 – Slides do editor de apresentações utilizado.

Page 138: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

474 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 463-493, set./dez. 2006

As relações oral/escrita nos gêneros orais formais e públicos ...

Exemplo 1:

Je vais, dans un premier temps/ Donc, c’est un peu le plan que je vais suivre/Je vais parler une heure, une heure et quart, quelque chose de ce type-là/faire quelques brefs préliminaires; ensuite, vous parler très brièvement –parce que ça vous connaissez – faire un petit rappell de la notion de genre,puisque c’est “les genres écrits et oraux” et… évidemment, je ne peux pasne pas parler des genres, mais très brièvement. Ensuite, regarder l’école,qu’est-ce/ l’école étant donné que c’est une institution sociale, il y a une“sphere d’activité”, comme dirait Bakhtine; quel est le rapport entre, demanière générale, l’école et les genres et je vais ici introduire la notion de“forme scolaire” parce que, à mon avis, c’est cette “forme scolaire”, qui estune forme sociale, […]17 Donc, l’école, la forme scolaire, parce que c’est,pour moi, la forme scolaire qui définit les genres qui sont à l’intérieur del’école. Je vais, ensuite, […] regarder les genres en français, dans la languematernelle “français”, et adopter, dans un premier point/ dans un premiertemps, le point de vue de la transposition didactique et ensuite je vais revoirles genres en français, mais, cette fois-ci, adopter le point de vue del’ingénierie – vous verrez un petit peu qu’est-ce que ça signifie tout-à-l’heure.C’est deux manières de regarder la même realité de deux points de vue,

17 As interrupções aqui são devidas a comentários relativos a problemas técnicos com o equipamento, digressõesrelativas à falta de alimentação elétrica para o computador, que optamos por não transcrever, dada a não pertinênciaao tema em desenvolvimento.

Page 139: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

475Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 463-493, set./dez. 2006

Rojo e Schneuwly

précisement, quoi. Je vais terminer sur les genres pour enseigner, et cecifait le lien avec la conférence de demain. Et donc, voilà. Ça sera ‘un affaire àsuivre’.18

O texto do slide de abertura da conferência, que tem por função apresentarum “organizador avançado”, uma meta-enunciação do que será desenvolvido, realiza-se no formato de fala planejadora (VYGOTSKY, 1934), exibindo uma lista commarcadores dos grandes tópicos que serão abordados na conferência, em númerode 6. Os tópicos são apresentados como frases nominais, nominalizações e apostos.

A fala da conferência expande um pouco, como dissemos, os tópicos destalista, constituindo uma descrição das ações discursivas que serão realizadas (“fairequelques brefs préliminaires”; “ensuite, vous parler très brièvement”; “je vais, ensuite,regarder”; “je vais terminer sur”). Além de organizar, na forma narrativa, a seqüênciatemporal dos grandes temas da exposição, a fala inicial qualifica minimamente essestópicos para além das qualificações já apresentadas no slide:

- l’école à une institution sociale; une “sphere d’activité”, comme diraitBakhtine;- la forme scolaire à qui définit les genres qui sont à l’intérieur de l’école;- genres pour enseigner à ceci fait le lien avec la conférence de demain.

Ao retextualizar a lista de tópicos do slide, o orador, portanto, procede a“reformulações por acréscimo” (MARCUSCHI, 2001a). Mas, ao fazê-lo, qualificaapenas minimamente os tópicos, coisa que ocorre sempre que o orador passarapidamente – a elocução é também mais rápida – pelos itens de um slide, seja

18 “Eu vou, num primeiro momento/ Então, é um pouco o plano que vou seguir/ vou falar uma hora, uma hora equinze, algo assim/ fazer algumas breves preliminares; depois, falar-lhes muito brevemente – pois isso vocêsconhecem – fazer um pequeno apanhado da noção de gênero, pois é “os gêneros escritos e orais” e…evidentemente, não posso não falar dos gêneros, mas muito brevemente. Depois, olhar a escola o que/ a escolavisto que é uma instituição social, uma “esfera de atividade”, como diria Bakhtin; qual é a relação entre, demaneira geral, a escola e os gêneros e vou aqui introduzir a noção de “forma escolar”, porque, em minhaopinião, é esta “forma escolar” que é uma forma social […] Então, a escola, a forma escolar, porque é, paramim, a forma escolar que define os gêneros que estão no interior da escola. Eu vou, depois […] olhar os gênerosem francês, na língua materna “francês”, e adotar, num primeiro ponto/ num primeiro tempo, o ponto de vista datransposição didática e depois vou rever os gêneros em francês, mas desta vez adotar o ponto de vista da engenharia– vocês vão ver um pouquinho o que isso significa daqui a pouco. São duas maneiras de olhar a mesma realidadede dois pontos de vista, precisamente. Vou terminar com os gêneros para ensinar, o que faz a ligação com aconferência de amanhã. Então, é isso. Teremos ‘cenas dos próximos capítulos’…” (tradução nossa).

Page 140: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

476 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 463-493, set./dez. 2006

As relações oral/escrita nos gêneros orais formais e públicos ...

porque vai retomá-los um a um para comentá-los, como é o caso deste slide, sejapor questões de controle do tempo. O índice, neste caso é prosódico: uma fala deritmo mais rápido e muitas vezes com entonação de leitura. Certos itens podem serreconhecidos como aspados (citados ou lidos), pela entonação – pequena pausaantes de iniciar o sintagma em tom e pitch mais alto e forte –, como é o caso, noexemplo 1, de “genres écrits et oraix”, “sphère d’activité” e de “forme scolaire”.

Quadro 5 – Imagens espectográficas dos trechos falados.

Neste caso, o conferencista também escolhe um estilo interativo com a platéia(“vous parler”, “vous connaissez”, “vous verrez”) e marcado por um registrorelativamente informal (“quelque chose de ce type-là”, “un petit peu qu’est-ce que çasignifie tout-à-l’heure”, “quoi”, “et donc”, “voilà”, “ça sera”), estabelecendo umarelação mais próxima e distensa com a platéia. Para Bovet (1999, p. 70), “o públicodesempenha um papel importante na organização discursiva da exposição. Exemplosde formulação recipient designed19 lembram a dimensão interativa da exposição, adespeito de seu caráter monológico”. Isto é, por exemplo, o que acontece neste trecho,quando, face a uma audiência de lingüistas que supõe conhecer e operar com o conceitode gênero discursivo, o orador opta por justificar por que tratará esse item (gênero

19 Isto é, adaptadas à representação específica que o orador faz da audiência em questão, determinadas, segundoBakhtin/Volochínov (1929), pela “apreciação valorativa do locutor sobre o interlocutor“.

Page 141: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

477Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 463-493, set./dez. 2006

Rojo e Schneuwly

discursivo) e tão rapidamente (“falar-lhes muito brevemente – pois isso vocês conhecem– fazer um pequeno apanhado da noção de gênero, pois é ‘os gêneros escritos e orais’e… evidentemente, não posso não falar dos gêneros, mas muito brevemente”).

Por outro lado, o texto oral constituído sobre os slides apresenta algumasdas características antes mencionadas de descontinuidade sintática, auto-correçãoe retomada etc.

- Ensuite, regarder l’école, qu’est-ce/ l’école étant donné que c’est uneinstitution sociale, il y a une “sphere d’activité”, comme dirait Bakhtine;quel est le rapport entre, de manière générale, l’école et les genres- Donc, l’école, la forme scolaire, parce que c’est, pour moi, la forme scolairequi définit les genres- Et adopter, dans un premier point/ dans un premier temps, le point de vuede la transposition didactique

Uma maneira diferente de reformular por acréscimo o texto dos slides ocorreno exemplo 2.

Exemplo 2:

Alors, maintenant, les rapports entre genres oraux et genres écrits, eh...Dans un/ première/ distinction/ Donc la première defini// Pasdéfinition, le premier principe que nous définissons c’est que nousnous limitons – mais ça fait déjà beaucoup – aux genres publiques, c’est-à-dire, aux genres qui peuvent circuler, être accessibles à des groupes oudes larges masses de gens, à l’opposée à des genres privés, que nous ne

Page 142: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

478 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 463-493, set./dez. 2006

As relações oral/escrita nos gêneros orais formais e públicos ...

traitons pas d’une certaine manière comme un objet à enseigner. C’est unprincipe de base, mais qui est lié à notre conception de l’école comme unlieu précisement publique, relativement pas coupé mais séparé de lasphère privée etc. Donc, c’est ça un principe de base. Ce qu’évidemment,pour les genres oraux, exclut tout une série de genres, mais égalementpour les genres écrits.20

Le deuxième principe c’est que le rapport entre genres oraux et genres écrits n’estpas un rapport de dicotomie. C’est plutôt un rapport d’une certaine manière decontinuité et d’effet mutuel, c’est-à-dire, des genres oraux peuvent soutenir desgenres écrits; des genres écrits peuvent soutenir des genres oraux. Ils sont enmutuelle interdépendence, chaque genre oral traduit/ chaque genre oralprêté à l’école, en général, présuppose de l’écrit, tout comme chaque genreécrit travaillé à l’école préssupose de l’oral. Donc, d’une certaine manière c’est unedistinction relativement artificielle, ce qui ne veut pas dire qu’après, la productionà un certain moment est écrite de manière dominante, mais il y a un entrelacementcontinuel. D’ailleurs, chaque genre est toujours aussi soutenu/ un genreoral est toujours aussi soutenu par un genre oral lui-même, c’est-à-dire, il ya toujours un genre oral et un genre oral sur le genre oral, ãn? un discours sur. Ily en a donc, ici/ ãn…/ chaque genre est toujours aussi objet d’autres genresen quelque sorte. Et donc il y a toujours le parler pour écrire, l’écrire pour parler,l’écrire pour écrire, le parler pour parler, ce qui montre que toujours un genre estdépendent d’autres genres, ce qui est un phénomène d’intertextualité évidente,mais qui est à la base de notre travail toujours.21

20 “Então, agora, as relações entre gêneros orais e gêneros escritos, eh… Num/ primeira/ distinção/ Então a primeiradefini/ Não definição, o primeiro princípio que definimos é que nós nos limitamos – o que já é muito – aos gênerospúblicos, isto é, aos gêneros que podem circular, ser acessíveis a grupos ou grandes massas de pessoas, ao contráriodos gêneros privados, que não tratamos de certa maneira como um objeto a ensinar. É um princípio de base, masque está ligado a nossa concepção de escola como um lugar precisamente público, relativamente não desligado, masseparado da esfera privada etc. Então, é um princípio de base. Que, evidentemente, para os gêneros orais, exclui todauma série de gêneros, mas de igual maneira para os gêneros escritos” (tradução nossa).

21 “O segundo princípio é que a relação entre gêneros orais e gêneros escritos não é uma relação de dicotomia. É antesuma relação de uma certa maneira de continuidade e de efeito mútuo, isto é, gêneros orais podem sustentar gênerosescritos; gêneros escritos podem sustentar gêneros orais. Eles estão em mútua interdependência, cada gênero oraltraduz/ cada gênero oral que entra na escola, em geral, pressupõe a escrita, assim como cada gênero escrito trabalhadona escola pressupõe o oral. Então, de uma certa maneira, esta é uma distinção relativamente artificial, o que não querdizer que, depois, a produção num certo momento não seja escrita de maneira dominante, mas há um entrelaçamentocontínuo. Além disso, cada gênero é sempre também sustentado/ cada gênero oral é sempre também sustentado porum outro gênero oral, isto é, há sempre um gênero oral e um gênero oral sobre o gênero oral, ãn? Um discursosobre. Há então aqui/ ãn…/ cada gênero é sempre também objeto de outros gêneros de alguma maneira. E então hásempre o falar para escrever, o escrever para falar, o escrever para escrever e o falar para falar, o que mostra quesempre um gênero é dependente de outros gêneros, o que é um fenômeno evidente de intertextualidade, mas queestá sempre na base de nosso trabalho” (tradução nossa).

Page 143: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

479Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 463-493, set./dez. 2006

Rojo e Schneuwly

Dada a extensão da reformulação feita sobre o texto deste slide, vamoscomentar apenas as reformulações e acréscimos propostos para os últimos doisitens da lista com marcadores do slide, até porque estes dois tópicos expõemconteúdos importantes para nossa discussão neste artigo. Neste ponto da conferência,o orador expõe dois princípios de base para o tratamento dos “gêneros orais aensinar”, reproduzidos no slide, e que são definidos, exemplificados e sustentados,por meio de acréscimos feitos ao texto primeiro:

Quadro 6 – Reformulações e acréscimos feitos oralmente aos dois últimositens do slide.

Vemos que, nesse segundo modo de reformulação por acréscimo, esta é bastantemais extensa e, nele, o tópico do slide funciona como uma espécie de lembrete para odesenvolvimento de toda uma fala que inclui, como vimos, (re-)definições, explicações,reformulações, paráfrases do já-dito, exemplificações. Também aqui estão presentesas formas de (des-)continuidade da fala, marcadas em negrito no exemplo, índices emgeral de busca e da seleção lexical mais adequada, que leva a reformulações responsáveispelo caráter “entrecortado” da produção oral.

Page 144: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

480 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 463-493, set./dez. 2006

As relações oral/escrita nos gêneros orais formais e públicos ...

Estas são, portanto, duas maneiras principais de reformular por acréscimoos textos dos slides. É importante lembrar que, durante a conferência, para a platéiacomo para o orador, o fluxo textual dos slides rege e organiza a produção textual dafala, de tal maneira que descontinuidades no fluxo dos slides causarãodescontinuidades no fluxo da fala. O fluxo dos slides serve também para o controle,por parte do orador, do tempo de fala.

Exemplo 3:“On peut le montrer d’ailleur: cette sédimentation elle fonctionne. J’ai untout petit/ le prochain annonce/ oui/ c’est ça/ le prochain petit tableau là/voilà/ dit juste ici /

Donc, on a fait un étude sur quelque chose comme 300, 400 enseignantspour savoir quels sont les genres qu’ils enseignent.”22

Exemplo 4:Bien, je termine ici ces quelques éléments de/ sur la refléxion sur les genresenseignés du point de vue de la transposition didactique et je passe auprochain point sur le point de vue de l’ingénierie. Alors, j’ai déjà utilisé uneheure, est-ce que vous m’accordez encore… (risos23 e interrupção da

22 “Além disso, podemos mostrá-lo: esta sedimentação, ela funciona. Eu tenho um pequenino/ o próximoslide/ sim/ isso/ o próximo quadro lá/ ó/ aí, assim/ (slide) Então, fizemos um estudo com algo como 300,400 professores para saber quais são os gêneros que ensinam” (tradução nossa).

23 Para Bovet (1999), o riso da platéia é um fenômeno de co-enunciação.

Page 145: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

481Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 463-493, set./dez. 2006

Rojo e Schneuwly

moderadora concedendo tempo) Voilà, donc… Je vais encore faire unquart d’heure ou dix minutes comme ça, si vous avez encore de la patience.Alors…24

Conclui-se, desta primeira parte, que conferência e apresentação power point

são dois gêneros que, embora se materializem em modalidades diferentes (gráfica,fônica), não podem ser considerados como separados num contínuo entre oralidade eescrita, a apresentação mais alinhada com a escrita e a conferência mais alinhada coma oralidade devido à materialidade de cada uma. Ao contrário, são gêneros secundáriosmutuamente constitutivos, um fazendo parte do outro de maneira determinante. A formacomposicional e os temas da apresentação serão retomados e constituirão a formacomposicional e temas da conferência, que expande e re-organiza o texto escrito daapresentação por meio do acréscimo de definições, explicações, reformulações etc. Afala da conferência flexibiliza o estilo formal e público da apresentação, podendo adotarregistros relativamente mais informais e distensos. A relação entre um e outro não é desemelhanças e diferenças entre textos prototípicos num continuum, mas de efeitomútuo e de entrelaçamento. Uma relação dialógica no sentido bakhtiniano, em queum enunciado da apresentação constitui “um elo (detonador de outros elos) na cadeiade fala” da conferência. Cabe também lembrar que os enunciados da apresentação jásão eles próprios elos-síntese de outros textos e enunciados, escritos ou lidos peloorador produtor do texto da apresentação25.

Mesmo conceitos bakhtinianos forjados para explicar o dialogismo nos gêneros,como os de “intercalação” e o de “hibridismo”26, não são exatos para explicar asrelações intertextuais e interdiscursivas aqui presentes, que se apresentam como partestramadas de um discurso cujo funcionamento é conjunto e mutuamente determinado.

24 “Bom, eu termino aqui estes alguns elementos de/ sobre a reflexão sobre os gêneros ensinados do ponto de vistada transposição didática e eu passo ao próximo ponto sobre o ponto de vista da engenharia. Então, eu já utilizeiuma hora, vocês me concedem ainda… (risos e interrupção da moderadora concedendo tempo). Então, tá. Euvou ainda tomar um quarto de hora ou dez minutos assim, se vocês ainda tiverem paciência. Então…” (traduçãonossa).

25 Bovet (1999, p. 71) chama a conferência de “uma fase da ciência se fazendo”. Para ele, “a exposição não podeser reduzida a uma forma de divulgação da pesquisa. No seu próprio desenvolvimento, um saber é discursivamenteproduzido e organizado”.

26 “Denominamos construção híbrida o enunciado que, segundo índices gramaticais (sintáticos) e composicionais,pertence a um único falante, mas onde, na realidade, estão confundidos dois enunciados, dois modos de falar,dois estilos, duas ‘linguagens’, duas perspectivas semânticas e axiológicas. Repetimos que entre esses enunciados,estilos, linguagens, perspectivas, não há nenhuma fronteira formal, composicional e sintática [...]” (BAKHTIN,1934-35/1975, p. 110). O contrário ocorre com os gêneros intercalados, cujas fronteiras são marcadas.

Page 146: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

482 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 463-493, set./dez. 2006

As relações oral/escrita nos gêneros orais formais e públicos ...

5 A TRANSCRIÇÃO DA CONFERÊNCIA – NOVOS PROCEDIMENTOSDE RETEXTUALIZAÇÃO

Na transcrição desta conferência operam muitos dos procedimentos jádiscutidos em detalhe em Marcuschi (2001a) – sobretudo, procedimentos de“idealização” e de “reformulação”. Comparemos as falas da conferência com astranscrições efetuadas, no quadro 7.

Quadro 7 – Falas da conferência comparadas às transcrições.

Page 147: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

483Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 463-493, set./dez. 2006

Rojo e Schneuwly

Como processos da operação de “idealização” da fala a partir da língua escrita,destacam-se os de:

a) “regularização”, por meio de:- uso da pontuação gráfica;- estabelecimento da concordância verbo-nominal em termos de língua padrão(substituição de “c’est” por “ce sont”; “genres comme des objets à enseigner”);- eliminação ou substituição dos marcadores ligados a um registro informalda língua (“de deux points de vue, précisement, quoi. Je vais terminer surles genres pour enseigner, et ceci ce qui fait le lien avec la conférence dedemain. . Et donc, voilà. Ça sera “un affaire à suivre”.”);b) “eliminação” das hesitações, digressões, repetições e correções (“Je vais,dans un premier temps / Donc, c’est un peu le plan que je vais suivre/ Je vaisparler une heure, une heure et quart, quelque chose de ce type-là/ fairequelque; Ensuite, regarder l’école, qu’est-ce/ l’école étant donné que; formesociale, […] Donc, l’école, la forme scolaire, parce que c’est, pour moi, laforme scolaire qui définit; genres écrits, eh... Dans un/ première/ distinction/Donc la première défini/ Pas définition, La première distinction, le premierprincipe que nous définissons; l’école comme un lieu précisement publique,relativement pas coupé mais séparé de la sphère privée”);

e de “reformulação”, ainda que mínima, por meio de:

c) “Reordenação” sintática: “le rapport, de manière générale, entre,de manière générale, l’école et les genres”;d) “Substituição” e “acréscimo” de coesivos: “puisque, pour”;e) “Substituição” de marcas prosódicas por sintagmas completos,recuperando o sentido de maneira mais precisa: “puisque le thème cesont c’est “les genres écrits et oraux” et… évidemment; regarder les genresà l’enseignement du Français langue maternelle en français, dans lalangue maternelle “français”, et adopter”.

Sendo a transcrição uma espécie de “discurso reportado”, estamos aqui nodomínio do que Bakhtin/Volochínov (1929, p. 149) trataram como o fenômeno do“discurso citado”:

Page 148: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

484 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 463-493, set./dez. 2006

As relações oral/escrita nos gêneros orais formais e públicos ...

[…] Os esquemas lingüísticos […], as modificações desses esquemas eas variantes dessas modificações que encontramos na língua, e que servempara a transmissão das enunciações de outrem e para a integração dessasenunciações, enquanto enunciações de outrem, num contexto monológicocoerente.

O autor lembra ainda algo fundamental para este nosso texto: o fato de que“o discurso citado é o discurso no discurso, a enunciação na enunciação, mas é,ao mesmo tempo, um discurso sobre o discurso, uma enunciação sobre a

enunciação” (BAKHTIN/ VOLOCHÍNOV, 1929, p. 150, ênfase do autor).Assim, tanto as relações discursivas entre os enunciados da apresentação e

os da conferência como os da conferência e os da transcrição seriam fenômenos dediscurso citado, de “discursos no discurso, de enunciações na enunciação”. Mascom uma diferença básica: no caso da relação dos enunciados da apresentação comos da conferência, estamos diante de um “estilo pictórico” de citar o discurso e, nocaso da relação entre a conferência e sua transcrição, estamos diante de um “estilolinear autoritário”27 (“monumental”) de citar o discurso de autor.

O “estilo pictórico” tem “tendência para infiltrar o discurso citado com asréplicas e os comentários do autor” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 1929, p. 159). É oque faz o conferencista em relação aos enunciados dos slides da apresentação: glosa,comenta, replica. O “estilo linear autoritário” tem tendência a tratar o discurso alheiocomo um “monumento”, algo que não pode ser alterado e cuja pureza e integralidadetêm de ser preservadas – é o que tentam fazer o tradutor e o transcritor.

Marcuschi (2001a, p. 54) aponta como uma das variáveis relevantes para aretextualização a “relação entre o produtor do texto original e o transformador”,dizendo que, quando é o próprio autor que retextualiza, as mudanças são muitomais radicais e, quando é uma outra pessoa, esta terá muito mais “’respeito’ pelooriginal e fará menor número de mudanças no conteúdo, embora possa fazer muitasmudanças na forma”.

É o que vimos ocorrer na transcrição: mudanças na forma para adequá-la auma idealização da língua que tem base na escrita, mais aceita como variedadepadrão, e mudanças no âmbito do conteúdo somente para torná-lo mais preciso.Seria o que Bakhtin/Volochínov (1929, p. 165) chama de “variante analisadora deconteúdo” do estilo linear. Para ele,

27 Na tradução das obras de Bakhtin e seu Círculo (1929, 1934-35/1975), a palavra “autoritário/a” está usada como sentido de “ligado às palavras de autor/autoridade”; authoritative, em inglês.

Page 149: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

485Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 463-493, set./dez. 2006

Rojo e Schneuwly

A tendência analítica do discurso indireto manifesta-se principalmente pelofato de que os elementos emocionais e afetivos do discurso não sãoliteralmente transpostos ao discurso indireto, na medida em que não sãoexpressos no conteúdo mas nas formas da enunciação. [...] As abreviações,elipses, etc., possíveis no discurso direto por motivos emocionais e afetivos,não são admissíveis no discurso indireto por causa da sua tendência analítica.Esses elementos só entram na sua construção sob uma forma completa eelaborada.

No caso da variante analisadora de conteúdo do estilo linear, o discurso dooutro é apreendido como “uma tomada de posição com conteúdo semântico precisopor parte do falante”, e busca-se transpor ou retextualizar de maneira analítica suacomposição objetiva exata (o que disse o falante). Para Bakhtin/Volochínov (1929,p. 167),

A tendência a tematizar o discurso de outrem é incontestavelmente inerentea essa variante, e assim ela preserva a integridade e a autonomia daenunciação, não tanto em termos sintáticos mas em termos semânticos(vimos como uma construção expressiva numa enunciação a ser citadapode ser tematizada). Esses resultados, contudo, só são obtidos ao preçode uma certa despersonalização do discurso citado.

Para o autor, isso é típico de certos contextos e esferas de atividade humanos,que ele qualifica como “um contexto enunciador suficientemente racional edogmático”, em que se manifesta um “forte interesse pelo conteúdo semântico, eonde o autor afirma, através de suas próprias palavras, com sua própriapersonalidade28, uma posição de forte conteúdo semântico”.

Portanto, as apreciações de valor que levam o transcritor a retextualizar emodificar um texto oral original são fortemente ligadas à propriedade da palavra, amonumentalidade da palavra e disso decorre uma tendência a preservação do conteúdo.

São, no entanto, tendências diversas de “apreensão ativa” do discurso alheioou anterior que se manifestam na transmissão ou recepção do discurso: uma “relaçãoativa” de uma enunciação a outra, uma “reação da palavra à palavra”.

28 Para Bakhtin/Volochínov (1929, p. 159), “o discurso retórico, diferentemente do discurso literário, pela próprianatureza da sua orientação, não é tão livre na sua maneira de tratar as palavras de outrem. Ele tem, de formainerente, um sentimento agudo dos direitos de propriedade da palavra e uma preocupação exagerada com aautenticidade”.

Page 150: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

486 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 463-493, set./dez. 2006

As relações oral/escrita nos gêneros orais formais e públicos ...

Também Marcuschi (2001a, p. 70) aponta que “para poder transformar umtexto é necessário compreendê-lo ou pelo menos ter uma certa compreensão dele”.Por isso, o autor coloca como 4º bloco das operações de retextualização as operações“cognitivas” de compreensão (“inferência, inversão, generalização”)29. Para Bakhtin/Volochínov (1929, p. 154), no entanto, essas “operações cognitivas” seriammovimentos do “discurso interno” e o autor dá especial atenção a dois dessesmovimentos: o de “réplica interior” e o de “comentário efetivo” (termos tomadospor Bakhtin/Volochínov a JARUBINSKY, s.d.):

Aquele que apreende a enunciação de outrem não é um ser mudo, privadoda palavra, mas ao contrário um ser cheio de palavras interiores. Toda asua atividade mental, o que se pode chamar o ‘fundo perceptivo’, émediatizado para ele pelo discurso interior e é por aí que se opera a junçãocom o discurso apreendido do exterior. A palavra vai à palavra. É no quadrodo discurso interior que se efetua a apreensão da enunciação de outrem,sua compreensão e sua apreciação, isto é, a orientação ativa do falante.Esse processo efetua-se em dois planos: de um lado, a enunciação de outremé recolocada no contexto de comentário efetivo (que se confunde em partecom o que se chama o fundo perceptivo da palavra); na situação (interna eexterna), um elo se estabelece com a expressão facial, etc. Ao mesmo tempoprepara-se a réplica (Gegenrede).

Em nossos dados sob análise, os movimento desta apreensão ativa por parteda pessoa que elaborou a transcrição é revelado, em parte, pela tradução feita pelamesma pessoa, no momento da conferência, exibida no quadro 8:

29 Ver quadro 3.

Page 151: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

487Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 463-493, set./dez. 2006

Rojo e Schneuwly

Quadro 8 – Comparação de trechos da conferência, da tradução oralconcomitante e da transcrição.

No quadro 8, vemos que a tradução quase-simultânea – que podemos tomarcomo indícios dos mecanismos de compreensão do discurso – adota um estilo menoslinear e mais pictórico de transmissão do discurso alheio, embora ainda analisadorde conteúdo e não de expressão. Ou seja, a tradutora se permite fazer uma série de“comentários efetivos” sobre os enunciados do conferencista, que vão desdecomentários meta-enunciativos (“ele anunciou um pouco o que ele pretende fazerdurante a conferência”), até generalizações (“forma de funcionamento da escola”,

Trecho da conferência Tradução Transcrição

“Je vais, dans un premier temps/ Donc, c’est un peu le plan que je vais suivre/ Je vais parler une heure, une heure et quart, quelque chose de ce type-là/ faire quelques brefs préliminaires; ensuite, vous parler très brièvement – parce que ça vous connaissez – faire un petit rappell de la notion de genre, puisque c’est “les genres écrits et oraux” et… évidemment, je ne peux pas ne pas parler des genres, mais très brièvement. Ensuite, regarder l’école, qu’est-ce/ l’école étant donné que c’est une institution sociale, il y a une “sphere d’activité”, comme dirait Bakhtine; quel est le rapport entre, de manière générale, l’école et les genres et je vais ici introduire la notion de “forme scolaire” parce que, à mon avis, c’est cette “forme scolaire”, qui est une forme sociale, […] Donc, l’école, la forme scolaire, parce que c’est, pour moi, la forme scolaire qui définit les genres qui sont à l’intérieur de l’école. Je vais, ensuite, […] regarder les genres en français, dans la langue maternelle “français”, et adopter, dans un premier point/ dans un premier temps, le point de vue de la transposition didactique et ensuite je vais revoir les genres en français, mais, cette fois-ci, adopter le point de vue de l’ingénierie – vous verrez un petit peu qu’est-ce que ça signifie tout-à-l’heure. C’est deux manières de regarder la même realité de deux points de vue, précisement, quoi. Je vais terminer sur les genres pour enseigner, et ceci fait le lien avec la conférence de demain. Et donc, voilà. Ça sera ‘un affaire à suivre’”.

“Neste primeiro pedaço, ele anunciou um pouco o que ele pretende fazer durante a conferência/ ãn… que é fazer alguma/ depois de algumas observações preli-minares, ãn… fazer algumas/ retomadas né? teóricas da noção de gênero com a qual ele está trabalhando ��. Como o gênero é algo ligado a diversas esferas, passar em seguida à escola como uma esfera que gera ela mesmo gêneros, né?, criadora de gêneros e fazer um pouquinho uma reflexão sobre o funcionamento dessa esfera, a forma de funcionamento da escola. ���Em seguida passar para o gêneros em francês, claro né?, que é a cultura que ele vive, né?, sob o ponto de vista da transposição didática, ou seja de como trabalhá-los na escola e do mecanismo de trans-posição. E ãn… quase finalmente, retomar do/ retomar a questão dos gêneros em francês, em francês, mas desta vez não do ponto de vista da transposição, mas do ponto de vista de algo que ele está chamando “sua engenharia”, né? Eu tô imaginando seu funciona-mento, sua estrutura, enfim, “engenharia” aí deve estar fundindo as duas noções, suponho. Ãn… E aí, por fim, pra terminar, ele quer falar dos gêneros para ensinar, né?, ãn…, o que, segundo ele, faz a conexão com a conferência de amanhã. �”

“Je vais, dans un premier temps ��, faire quelques brefs préliminaires; ensuite vous parler très brièvement – puisque cela vous connaissez – pour faire un petit rappell de la notion de genre, puisque le thème ce sont les genres écrits et oraux et évidemment je ne peux pas ne pas parler des genres, mais très brièvement. Ensuite, regarder l’école ��, étant donné que c’est une institution sociale, une sphere d’activité, comme dirait Bakhtine; quel est le rapport, de manière générale, entre l’école et les genres et je vais ici introduire la notion de formes scolaires, parce que, à mon avis, c’est cette forme scolaire, qui est une forme sociale, ��qui définit les genres qui sont à l’intérieur de l’école. Je vais, ensuite, regarder les genres à l’enseignement du Français langue maternelle et adopter, dans un premier temps, le point de vue de la transposition didactique et ensuite je vais revoir les genres en Français, mais, cette fois-ci, adopter le point de vue de l’ingénierie – vous verrez un petit peu ce qui cela signifie tout-à-l’heure. Ce sont deux manières de regarder la même realité de deux points de vue, précisement ��. Je vais terminer sur les genres pour enseigner, ce qui fait le lien avec la conférence de demain. ��”

Page 152: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

488 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 463-493, set./dez. 2006

As relações oral/escrita nos gêneros orais formais e públicos ...

referindo a relação entre escola e gêneros e às formas escolares), interpretaçõesinferenciais (“claro né?, que é a cultura que ele vive, né?”; ou “’sua engenharia’, né? Eutô imaginando seu funcionamento, sua estrutura, enfim, ‘engenharia’ aí deve estarfundindo as duas noções, suponho”) e marcações da responsabilidade de autoria (“algoque ele está chamando ‘sua engenharia’”; “o que, segundo ele, faz a conexãocom a conferência de amanhã”). Além disso, a tradutora elimina do discurso todas asmarcas interativas com a platéia e os indícios de fala situada e implicada (“vous parlertrès brièvement – parce que ça vous connaissez –”; “vous verrez un petit peu qu’est-ceque ça signifie tout-à-l’heure”; “Et donc, voilà. Ça sera ‘un affaire à suivre’”).

Por que a mesma tradutora/transcritora adota estilos tão diferenciados natradução e na transcrição? Interferência da materialidade textual (oral na tradução,escrita na transcrição)? Situação de produção de cada discurso? Para Bakhtin/Volochínov (1929, p. 152),

[...] Há diferenças essenciais entre a recepção ativa da enunciação de outreme sua transmissão no interior de um contexto. É conveniente levar isso emconta. Toda transmissão, particularmente sob forma escrita, tem seu fimespecífico: narrativa, processos legais, polêmica científica, etc. Além disso,a transmissão leva em conta uma terceira pessoa – a pessoa a quem estãosendo transmitidas as enunciações citadas. Essa orientação para uma terceirapessoa é de primordial importância: ela reforça a influência das forças sociaisorganizadas sobre o modo de apreensão do discurso.

Embora sejam dois discursos de transmissão da palavra alheia, no caso datradução, esta se dirige a uma platéia especializada que a tradutora supõe desconhecera metáfora da “engenharia”, por exemplo, o que talvez a leve a comentá-la. No casoda transcrição, esta foi feita para que o próprio autor a transformasse em artigo a sertraduzido. Portanto, esta busca preservar ao máximo a fidelidade ao conteúdo dodito, num estilo linear autoritário.

6 SISTEMAS DE ATIVIDADES E SISTEMAS DE GÊNEROS

A análise aqui desenvolvida visou exemplificar as relações complexas e demútua constituição que escritas e fala apresentam nos gêneros orais formais públicos.Foi realizada sobre uma conferência acadêmica – assim como Marcuschi (2001a)dedica espaço à análise de entrevistas transcritas e publicadas –, mas pode inspirar

Page 153: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

489Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 463-493, set./dez. 2006

Rojo e Schneuwly

a análise de outros gêneros orais formais e públicos tão complexos quanto aconferência acadêmica, mas que apresentam outros tipos de relação entre escritas efalas e outros rituais: notícia televisiva, encenação de peça teatral, seminário,apresentação empresarial etc.

Evidentemente, as restrições de espaço deste artigo permitiram somente umaanálise grosseira do material. Haveria ainda, por exemplo, a necessidade de uma análiseprosódica detalhada desses eventos (uma análise do ponto de vista do oral ele próprio),assim como uma análise dos processos de referenciação no desenvolvimento da falapoderia trazer elementos importantes sobre os acréscimos que o conferencista faz aotexto previamente escrito (a apresentação). Além disso, seria também interessanteenfocar as relações intergenéricas e intermodais do ponto de vista da audiência, pormeio, por exemplo, de uma análise das notas que a platéia toma durante umaconferência. Processos intergenéricos, intertextuais e interdiscursivos de retextualizaçãode uma escrita para outras escritas poderiam ser verificados no cotejamento entretranscrição da conferência, artigo resultante e sua tradução.

No entanto, a análise foi suficiente para podermos verificar que,paradoxalmente, a própria noção de “retextualização” (MARCUSCHI, 2001a) é umargumento a favor – e uma ferramenta de análise – dos processos de mútuaconstitutividade escrita/oral no gênero e não do continuum de gêneros. A propostade “continuum fala/escrita” (MARCUSCHI, 2001a) exige uma certa fixação do gêneronum ponto do gradiente, mais próximo da escrita ou da oralidade, que leva a ignoraro processo pelo qual escritos e fala se tornam elos de uma cadeia de enunciados, demaneira dinâmica.

Um enfoque promissor e dinâmico dessas relações complexas entre escritase textos orais em gêneros orais formais públicos talvez possa tomar como base asnoções de “sistema de gêneros” como parte de um “sistema de atividades”30 propostaspor Bazerman (2005a, p. 32-33). O autor, tematizando as relações intergenéricasem atividades de sala de aula, afirma que

Um sistema de gêneros compreende os diversos conjuntos de gênerosutilizados por pessoas que trabalham juntas de uma forma organizada etambém as relações padronizadas que se estabelecem na produção,circulação e uso desses documentos. Um sistema de gêneros captura as

30 Para Bazerman (2005a: 34), “levar em consideração o sistema de atividades junto com o sistema de gêneros éfocalizar o que as pessoas fazem e como os textos ajudam as pessoas a fazê-lo, em vez de focalizar os textos comofins em si mesmos”.

Page 154: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

490 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 463-493, set./dez. 2006

As relações oral/escrita nos gêneros orais formais e públicos ...

seqüências regulares com que um gênero segue um outro gênero, dentrode um fluxo comunicativo típico de um grupo de pessoas. (BAZERMAN,2005a, p. 32)

Vimos, na análise, que um gênero não somente segue a outro no sistema deatividades e gêneros da conferência, mas toma os textos do outro como parte de sipróprio, em permanente dialogia, intertextualidade e interdiscursividade, e que issodemanda certas capacidades lingüístico-enunciativas e de ação, como a de incorporaro discurso alheio e reportá-lo de diferentes formas.

Encarar as relações entre escritas e falas públicas de forma dinâmica emutuamente constitutiva talvez possa nos levar, no campo aplicado, a novas propostaspara análise e ensino das formas bi ou multimodais de fala, tão relevantes para oexercício da cidadania no mundo contemporâneo.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M. M./Volochínov, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem. 2. ed. SãoPaulo: Hucitec, 1981 [1929].

______. O discurso no romance. In: ______. Questões de literatura e de estética– A teoria do romance. São Paulo: Hucitec, 1988 (1975) [1934-35/1975]. p. 71-210.

BARTHES, R. Da palavra à escrita. In: ______. O grão da voz. Lisboa: Edições 70,1981. p. 9-13.

BAZERMAN, C. Atos de fala, gêneros textuais e sistemas de atividades: Como os textosorganizam atividades e pessoas. In: ______. Gêneros textuais, tipificação einteração. Tradução e organização de A. P. Dionísio e J. C. Hoffnagel. São Paulo: Cortez,2005a. p. 19-46.

______. Formas sociais como habitats para a ação. In: ______. Gêneros textuais,tipificação e interação. Tradução e organização de A. P. Dionísio e J. C. Hoffnagel. SãoPaulo: Cortez, 2005b. pp. 47-62.

BERNSTEIN, B. Class, codes and control. V. 1. Londres: Routledge & Kegan Paul Ltda.,1971.

BOVET, A. L’exposition du savoir: approche ethnométhodologique de l’exposéacadémique. Mémoire de licence en Linguistique préperé sous la direction de LorenzaMondada et Bernard Py. Université de Neuchâtel, Suiça, 1999.

Page 155: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

491Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 463-493, set./dez. 2006

Rojo e Schneuwly

CORRÊA, M. L. G. Letramento e heterogeneidade da escrita no ensino de Português. In:SIGNORINI, I. (Org.). Investigando a relação oral/escrito e as teorias doletramento. Campinas: Mercado de Letras, 2001. p. 135-166.

GOFFMAN, E. The lecture. In: ______. Forms of talk. Philadelphia: U. P. P., 1981. p.160-196.

GOODY, J. Domesticação do pensamento selvagem. Lisboa: Presença, 1988 [1977].

HALLIDAY, M. A. K. Spoken and written language. Oxford: O. U. P., 1985.

KATO, M. A. No mundo da escrita: Perspectivas psicolingüísticas. São Paulo: Ática,1986.

LABOV, L. Sociolinguistics patterns. Philadelphia: U. P. P., 1972.

LAHIRE, B. Culture écrite et inégalités scolaires: sociologie de “l’échec scolaire” àl’école primaire. Lyon: P. U. L., 1993.

MARCUSCHI, L. A. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. SP: Cortez,2001a.

______. Letramento e oralidade no contexto das práticas sociais e eventoscomunicativos. In: SIGNORINI, I. (Org.). Investigando a relação oral/escrito e asteorias do letramento. Campinas: Mercado de Letras, 2001. p. 23-50.

OCHS, E. Planned and unplanned discourse. In: GIVÓN, T. (Ed.). Discourse and syntax.New York: Academic Press, 1979. p. 51-80.

OLSON, D. R. O mundo no papel: as implicações conceituais e cognitivas da leitura e daescrita. São Paulo: Ática, 1997 [1994].

ONG, W. Oralidade e cultura escrita: a tecnologização da palavra. São Paulo: Papirus,1998 [1982].

REY-DEBOVE, J. À procura da distinção oral/escrito. In: CATACH, N. (Org.). Para umateoria da língua escrita. São Paulo: Ática, 1996 [1988]. p. 75-90.

ROJO, R. H. R. Letramento escolar, oralidade e escrita em sala de aula: diferentesmodalidades ou gêneros do discurso. In: SIGNORINI, I. (Org.). Investigando a relaçãooral/escrito e as teorias do letramento. Campinas: Mercado de Letras, 2001. p. 51-74.

SCHNEUWLY, B. (2004). Palavra e ficcionalização: um caminho para o ensino dalinguagem oral. In: SCHNEUWLY, B.; DOLZ, J. et al. Gêneros orais e escritos naescola. Tradução e organização de R. H. R. Rojo e G. S. Cordeiro. Campinas: Mercado deLetras, 2004. p. 129-147.

Page 156: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

492 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 463-493, set./dez. 2006

As relações oral/escrita nos gêneros orais formais e públicos ...

______. Gêneros orais e escritos na escola. Conferência proferida no IEL/UNICAMP. 20/10/2005. Mimeo.

SCRIBNER, S. Mind and social practices. Cambridge: C. U. P., 1997.

SCRIBNER, S.; COLE, M. The psychology of literacy. Cambridge, MA: H.U.P., 1981.

SIGNORINI, I. (Org.). Investigando a relação oral/escrito e as teorias doletramento. Campinas: Mercado de Letras, 2001a.

______. Construindo com a escrita “outras cenas de fala”. In: ______. (Org.).Investigando a relação oral/escrito e as teorias do letramento. Campinas:Mercado de Letras, 2001b. p. 97-134.

TANNEN, D. Spoken and written language: exploring orality and literacy. Norwood,N.J.: Ablex, 1982.

VYGOTSKY, L. S. Pensamento e linguagem. São Paulo, Martins Fontes, 1991 [1934].

Recebido em 02/12/05. Aprovado em 13/07/06.

Title: The relationship between orality/writing in formal and public oral genres: the case of theacademic conferenceAuthor: Roxane Rojo, Bernard SchneuwlyAbstract: The relations of continuity and mutual constituency between oral and written languageare central to the understanding of how formal and public oral genres function in educated discursivecommunities, as well as to the understanding of the phenomena of literacy and the teaching-learningof languages at school. In this article we analyse a formal public oral genre – the academic conference– in terms of the relationship between orality-writing, orality-orality, and writing-writing in theconstitution of the conference and its “retextualization” (MARCUSCHI, 2001a) as a transcription.The bases for this analysis are several oral and written texts produced by/around a conferencegiven by Bernard Schneuwly. Finally, we argue that, in formal public oral genres, there is a complexrelation of mutual effect and interference between orality and writing, a relation that can be betterunderstood in terms of the “activity systems” which put into circulation and in contact “genre systems”(BAZERMAN, 2005a, 2005b).Keywords: genre; orality; writing; academic conference; teaching.

Tìtre: Les relations oral/écrit dans les genres oraux formels et publics: le cas de la conférenceacadémiqueAuteur: Roxane Rojo, Bernard SchneuwlyRésumé: La question qui concerne les rapports de continuité et d’une mutuelle constitutivité entrele langage oral et l’écrit constitue la plus grande importance pour la compréhension dufonctionnement des genres oraux formels et publics et des genres de texte écrit dans nos sociétéslettrées, de même que des phénomènes d’alphabétisations et de l’enseigenement-apprentissage

Page 157: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

493Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 463-493, set./dez. 2006

Rojo e Schneuwly

des langues dans les écoles. Dans cet article, on entend faire un exercice d’analyse d’un genre oralformel et public – la conférence académique – dans les termes des relations oral-écrit, oral-oral etécrit-écrit dans la constitution de la conférence et dans sa «retextualisation» (MARCUSCHI, 2001a)comme transcription. On adoptera comme données divers textes oraux et écrits mis en jeu dansune conférence présentée par Bernard Schneuwly. À la fin, on fera la défense de la place quel’oralité et l’écrit maintiennent une relation complexe d’un effet mutuel et d’interférence dans lesgenres oraux formels publics, qui peuvent se faire mieux comprendre dans des termes de « systèmed’activités » qu’ils mettent en circulation et en rapport des « systèmes de genres » (BAZERMAN,2005a, 2005b), entendus dans le sens bakhtinien du terme.Mots-clés: genre discoursif; oralité; écriture; conférence académique; enseignement.

Título: Las relaciones oral/escrita en los géneros formales y públicos: el caso de la conferenciaacadémicaAutor: Roxane Rojo, Bernard SchneuwlyResumen: La cuestión de las relaciones de continuidad y de mutua constitutividad entre el lenguajeoral y el escrito es de gran impotancia para la comprensión del funcionamiento de los génerosorales formales y públicos y de los géneros de texto escrito en nuestras sociedades alfabetizadas,así como de los fenómenos de los alfabetizados y de la enseñanza-aprendizaje de lenguas en lasescuelas. En este artículo, pretendemos hacer un ejercicio de análisis de un género oral formal ypúblico - la conferencia académica - en términos de las relaciones entre oral-escrita, oral-oral yescrita-escrita en la constitución de la conferencia y en su retextualización (MARCUSCHI, 2001a)como transcripción. Como datos se usó los múltiples textos orales y escritos en una conferenciaproferida por Bernard Schneuwly. Al fin, se defenderá que la oralidad y escrita mantenien unarelación compleja de mutuo efecto e interferencia en los géneros orales formales públicos, quepuede ser mejor comprendida en términos de “sistema de actividades” que ponen en circulacióny en relación “sistemas de géneros” (BAZERMAN, 2005a, 2005b), entendidos en el sentido bajtinianodel término.Palabras-clave: géneros discursivos; oralidad; escrita; conferencia académica; enseñanza.

Page 158: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

494

Page 159: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

495Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 495-517, set./dez. 2006

Motta-Roth

O ENSINO DE PRODUÇÃO TEXTUAL COM BASE EM

ATIVIDADES SOCIAIS E GÊNEROS TEXTUAIS*

Désirée Motta-Roth**

Resumo: O objetivo deste ensaio é encorajar o debate sobre as possibilidades pedagógicas daconcepção de gênero textual para o ensino de produção textual. Nesse sentido, busca-se aquidiscutir o tratamento dado a essa noção nos PCN+ (BRASIL, 2000) e, em decorrência dessadiscussão, refletir sobre o ensino de linguagem. As reflexões expostas no texto estão ancoradas emdois princípios práticos, quais sejam: 1) o ensino de produção textual depende de um realinhamentoconceitual da representação do aluno sobre o que é a escrita, para quem se escreve, com queobjetivo, de que modo e sobre o quê; e 2) as atividades de produção textual propostas devemampliar a visão do aluno sobre o que seja um contexto de atuação para si mesmo.Palavras-chave: gênero textual; produção textual; ensino.

1 INTRODUÇÃO

Nos anos 2000, surgiu, especialmente no sul do país, uma variedade detrabalhos na área de Lingüística Aplicada dedicados ao estudo de gêneros textuais(MOTTA-ROTH, 2000a, 2000b; MEURER; MOTTA-ROTH, 2002; BONINI, 2002;MEURER, 2003; CRISTÓVÃO; NASCIMENTO, 2004, 2005; KARWOSKI; GAYDECZKA;BRITO, 2005; MEURER; BONINI; MOTTA-ROTH, 2005). Esses trabalhos têmenfatizado o papel da linguagem em constituir as atividades sociais, as relaçõesinterpessoais e os papéis sociais em contextos específicos. As atividades sociais podemser definidas como ações por meio das quais as pessoas tentam alcançar determinadosobjetivos e que foram motivadas por outras ações do próprio sujeito ou de outrosem um processo histórico dinâmico (KOZULIN, 1986, p. xlix). Essas atividades podemser recorrentemente mediadas pela linguagem, o que as qualifica como gênerostextuais. Exemplos de gêneros são: a entrevista de emprego (para o candidatoconseguir uma colocação no mercado de trabalho), a lista de discussão via Internet

* O presente trabalho, realizado com apoio do CNPq (Bolsa de Produtividade em Pesquisa no. 350389/98-5), é umaversão do texto “Gêneros textuais, atividades sociais e ensino de linguagem”, apresentado em 02/09/2005, no IICongresso Nacional de Ensino de Leitura, Literatura e Língua Portuguesa, realizado na Universidade de Caxias doSul - Campus Universitário da Região dos Vinhedos, Bento Gonçalves, RS, 31/08 a 03/09/2005.

** Professora da Universidade Federal de Santa Maria. Doutora em Letras – Inglês e Literaturas Correspondentes.

Page 160: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

496 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 495-517, set./dez. 2006

O ensino de produção textual com base em ...

(para o internauta trocar informações e conseguir esclarecimentos acerca de umdeterminado tema) e a resenha (para o leitor conhecer um livro lançadorecentemente).

Nesses termos, um gênero textual é uma combinação entre elementoslingüísticos de diferentes naturezas – fonológicos, morfológicos, lexicais, semânticos,sintáticos, oracionais, textuais, pragmáticos, discursivos e, talvez possamos dizertambém, ideológicos – que se articulam na “linguagem usada em contextosrecorrentes da experiência humana, [e] que são socialmente compartilhados”(MOTTA-ROTH, 2005, p. 181) ou ainda:

formas recorrentes e significativas de agir em conjunto, que põem algumaordem no contexto da vida em coletividade (nos termos de Clifford Geertz,1983:21); como formas de vida que se manifestam em jogos de linguagem,de tal sorte que a linguagem é parte integral de uma atividade (nos termosde Ludwig Wittgenstein ([1953] 1958:88, § 241) a ponto de o gênero tornar-se um fenômeno estruturador da cultura. (Idem, p. 184)

Gêneros se constituem como tal em função da institucionalização de usos dalinguagem, portanto emergem a partir da recorrência de usos da linguagem, comdiversos graus de ritualização, por pessoas que compartilham uma organização social.Utilizando a descrição de Meurer (2004, p. 137-144) acerca dos princípios da teoriasociológica de Anthony Giddens, podemos dizer que o sistema social se organiza emtermos de atividades socialmente reconhecidas (práticas sociais como o atendimentoaos clientes de um banco, a aula na universidade, a consulta médica, a entrevista deemprego) e papéis sociais (e as relações de poder entre gerente e cliente, professore aluno, médico e paciente, empregador e candidato ao emprego), desempenhadospelos participantes de cada atividade. As atividades e os papéis sociais são constituídospor um terceiro elemento, a linguagem (regras e recursos de significação). Alinguagem funciona como elemento estruturador dos dois primeiros elementos. Ostrês se articulam em gêneros – práticas sociais mediadas pela linguagem,compartilhadas e reconhecidas como integrantes de uma dada cultura. Tal conceitode linguagem, que articula a vida social e o sistema da língua, carrega em sipressupostos acerca do ensino de linguagem: ensinar uma língua é ensinar a agirnaquela língua.

No Brasil, as propostas de ensino sofreram um impacto ao final da década de90, quando foram publicados os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino

Page 161: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

497Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 495-517, set./dez. 2006

Motta-Roth

Médio - Linguagens, Códigos e suas Tecnologias (BRASIL, 2000). Para muitos, osParâmetros Curriculares Nacionais, apesar das controvérsias sobre sua adequaçãoou mesmo legitimidade, “se constituem como o guia maior das diferentes atividadeseducacionais no Brasil” (BRONCKART; MACHADO, 2004, p. 140). Sem querer discutiras controvérsias surgidas, gostaria de defender a idéia de que esse documento, aorecorrer ao conceito de gênero para elaborar a proposta pedagógica de ensino delinguagem (Línguas Portuguesa e Estrangeira), se constitui em uma contribuiçãoimportante no que tange à pesquisa e à prática pedagógica em linguagem.

A perspectiva da linguagem adotada nos Parâmetros Curriculares Nacionais

(doravante PCN’s) é orientada para a vida social e se configura em um avanço, secomparada à visão estruturalista amplamente adotada na escola até bem recentemente,em que se definia um programa de curso em termos de categorias da gramáticanormativa a serem trabalhadas de modo descontextualizado, tais como a concordânciaverbal e o emprego dos advérbios; ou mesmo em relação às propostas resultantes daperspectiva discursiva dos anos 80, que viam no “discurso e no texto [...] as unidadesde estudos à medida que se esgotavam as possibilidades de explicação dos fenômenoscom base no enunciado”, conforme sintetizado por Geraldi (1997, p. 18).

Para discutir a perspectiva sobre linguagem e gênero dos PCN’s (http://www.mec.gov.br/sef/sef/pcn.shtm), analiso aqui os PCN+ (http://cenp.edunet.sp.gov.br/Ens_medio/em_pcn.htm), o documento complementar aosParâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio, subdividido em três áreas:Linguagens Códigos e suas Tecnologias, Ciências da Natureza, Matemática e suasTecnologias e Ciências Humanas e suas Tecnologias. O objetivo deste é oferecer“Orientações Educacionais Complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais”(conforme explicitado por seu subtítulo) “ao professor, ao coordenador ou dirigenteescolar do ensino médio e aos responsáveis pelas redes de educação básica e pelaformação profissional permanente de seus professores” (p.7).1 Tomarei por base,portanto, a visão dos PCN’s refletida nesse documento adicional.

Ao adotar uma perspectiva social da linguagem, os PCN’s propõem que:

para além da memorização mecânica de regras gramaticais ou dascaracterísticas de determinado movimento literário, o aluno deve ter meiospara ampliar e articular conhecimentos e competências que possam ser

1 Agradeço a Adair Bonini por me chamar a atenção para essa questão.

Page 162: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

498 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 495-517, set./dez. 2006

O ensino de produção textual com base em ...

mobilizadas nas inúmeras situações de uso da língua com que se depara,na família, entre amigos, na escola, no mundo do trabalho. (p. 55)

Essa visão sócio-interacionista da aprendizagem reconhece que é por meiodo engajamento em atividades socialmente compartilhadas que desenvolvemos ametaconsciência e as habilidades lingüísticas (KOZULIN, 1986, p. xxiv, xlvi). Portanto,a escola deve oferecer ao aluno um contexto em que este possa articularconhecimentos e competências por meio de usos da linguagem em situaçõesespecíficas, para realizar determinadas atividades sociais. No presente trabalho, aotomar como referência essa perspectiva teórica da linguagem e de seu ensino eaprendizagem, busco examinar o conceito de gênero textual adotado nos PCN’s,discutindo trechos coletados no documento, e analisar algumas atividades de ensinode produção textual em língua portuguesa propostas na literatura da área.

O objetivo deste trabalho é, portanto, encorajar o debate sobre aspossibilidades pedagógicas da concepção de gênero textual para o ensino de produçãotextual, uma vez que essa concepção pressupõe que os usos da linguagem sejamvistos como atividades sociais, que ocorrem em um dado contexto imediato desituação, dentro no âmbito mais amplo do contexto de cultura.

2 PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS PARA O ENSINO MÉDIO- LINGUAGENS, CÓDIGOS E SUAS TECNOLOGIAS

Nos PCN’s de Língua Estrangeira, Arte e Informática, gênero textual tambémé ponto de referência para o estudo de linguagens e códigos, mas é na parte deLíngua Portuguesa que vemos o termo sendo usado mais recorrentemente e sobdiferentes perspectivas, pois há flutuação no conceito de gênero nessas referências.

Dentre essas diferentes perspectivas, é possível definir três orientações parao uso do termo ‘gênero’ nos PCN’s. Gênero aparece freqüentemente no sentido detipo de texto (“ficcional ou não-ficcional”), mais raramente como estratégiaretórica (“texto argumentativo, dissertativo, etc”) e, em alguns momentos, comoevento comunicativo institucionalizado em um grupo social (“o debate emsala de aula”), conforme indica a figura 1 (ao final deste texto, no anexo, a tabela 1traz trechos coletados ao longo de todos os PCN’s, onde é usado o termo “gênero”com referência à linguagem).

Page 163: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

499Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 495-517, set./dez. 2006

Motta-Roth

Figura 1 – Diferentes concepções de gênero nos Parâmetros CurricularesNacionais para o Ensino Médio - Linguagens, Códigos e suas Tecnologias.

Gênero é tratado como “tipo de texto” por suas características formais comotema e estrutura composicional:

Como os textos ganham materialidade por meio dos gêneros, parece útilpropor que os alunos do ensino médio dominem certos procedimentosrelativos às características de gêneros específicos, conforme sugerem asMatrizes Curriculares de Referência do SAEB:• reconhecer características típicas de uma narrativa ficcional (narrador,personagens, espaço, tempo, conflito, desfecho)... (BRASIL, p. 78-79)

Nesses termos, a referência ao conceito de gênero é feita sem alusão aocontexto social ou à atividade em que a linguagem desempenha uma função simbólicaconstitutiva. Em outros momentos, gênero é tratado como “estratégia retórica”:

Uma aula da disciplina Língua Portuguesa, que integra a área de Linguagense Códigos, ao tratar dos gêneros narrativos ou descritivos, pode fazer usode relatos de fatos históricos, processos sociais ou descrições deexperimentos científicos. Na realidade, textos dessa natureza são hojeencontráveis em jornais diários e em publicações semanais, lado a ladocom a crônica política ou policial. (BRASIL, p.18)

Aqui a definição de gênero se pauta por características associadas a modalidadesretóricas tradicionais, tais como a narrativa (encadeamento de eventos), descrição(enumeração de características) e exortação (apresentação de argumentos persuasivos).

Page 164: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

500 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 495-517, set./dez. 2006

O ensino de produção textual com base em ...

Há ainda um terceiro emprego do termo “gênero” como “evento comunicativoinstitucionalizado”:

Ser falante e usuário de uma língua pressupõe:• a utilização da linguagem na interação com pessoas e situações,envolvendo:– desenvolvimento da argumentação oral por meio de gêneros como odebate regrado;– domínio progressivo das situações de interlocução; por exemplo, a partirdo gênero entrevista [...] (BRASIL, p. 61-62)

Nesse caso, o gênero é identificado pela atividade social que o constitui e quepor ela é constituído. Esse terceiro emprego do termo “gênero” parece ser o maisadequado, pois identifica os usos da linguagem pela atividade social que lhes dávisibilidade, ampliando a concepção da linguagem para além das regrasmorfossintáticas, para concebê-la como uma forma de estar no mundo, um modode agir sobre si e sobre os outros e, assim, produzir significado.

Vejamos como os PCN’s tratam dessa terceira perspectiva da linguagem queincorpora a noção de contexto.

3 LINGUAGEM COMO GÊNERO: UM EVENTO COMUNICATIVOINSTITUCIONALIZADO EM UM GRUPO SOCIAL

Ao mencionar o gênero entrevista, por exemplo, é possível que meuinterlocutor acione significados sociais histórica e socialmente compartilhadosrelativos a: os temas que recorrentemente se tratam em uma entrevista (fatos da vidaou idéias e opiniões do entrevistado sobre determinados temas ou eventos), ummotivo para se fazer uma entrevista (a curiosidade da sociedade sobre a pessoapública entrevistada), um objetivo (levantar informações acerca dessa pessoa), ospapéis e relações sociais dos envolvidos (ao entrevistador cabe elaborar questões e,ao entrevistado, respondê-las dentro de regras de polidez aceitas na comunidade aque pertencem ou ao menos demonstrar disposição em observá-las).

Enfim, há inúmeros aspectos constitutivos dos gêneros ou das situações eações sociais das quais a linguagem é parte integrante. Os estudos da linguagemfazem referência ao contexto como “situação enunciativa”, ou, na definição deBazerman (1988, p. 8), como o conjunto de “todos os fatores [...] que dão forma a

Page 165: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

501Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 495-517, set./dez. 2006

Motta-Roth

um momento no qual uma pessoa se sente chamada a estabelecer trocas simbólicas”.Os PCN’s fazem referência à necessidade de o aluno ser educado no sentido de fazera relação e a adequação que se estabelece entre texto e contexto: entre as escolhasque são postas a seu dispor pelo sistema léxico-gramatical da língua e o contexto deuso da linguagem, isto é, a situação social em que se encontra. A referência aocontexto é feita de diferentes maneiras: seja quando o documento enfatiza que oaluno deve ter “oportunidade de – individualmente, em duplas ou em grupos –participar de situações dialogadas” (p. 76) e “produzir um texto oral [...] de acordocom [...] o nível de formalidade exigido para a situação enunciativa” (p. 84); sejaquando sugere ao professor, como trabalho em sala de aula, “desde bate-paposmais informais a propósito de uma obra literária até o julgamento da atitude de umapersonagem do texto literário num debate regrado”, pois exigem dos interlocutores“um grau maior de formalidade e de consciência do texto argumentativo que estãoproduzindo na fala” (p. 76).

Os PCN’s alertam ainda que “a escola deve incorporar em sua prática osgêneros, ficcionais ou não-ficcionais, que circulam socialmente” (p. 77) paraencorajar “o domínio progressivo das situações de interlocução” (p. 61). Tambémchamam atenção para os locais e as situações em que os gêneros, enquanto unidadessemânticas e funcionais da linguagem, são encontráveis: “relatos de fatos históricos,processos sociais ou descrições de experimentos científicos [...] em jornais diáriose em publicações semanais; [...] na literatura, o poema, o conto, o romance; [...]no jornalismo, a nota, a notícia, a reportagem, a carta do leitor; nas ciências, [...] overbete, o ensaio; na publicidade, a propaganda institucional, o anúncio; no direito,as leis, os estatutos [...] (p.77).

O foco da educação lingüística, portanto, recai sobre o ensino dainterlocução. Ensinar linguagem passa a ser mais do que ensinar as estruturas dalíngua, pois se concentra em levar o aluno a desenvolver competências analíticasdos contextos de uso da linguagem de modo a se tornar capaz de analisardiscursos. Os contextos, como situações recorrentes na sociedade, são constituídosna linguagem e pela linguagem e se estruturam como partes da cultura. Como construtosintersubjetivos da coletividade, os contextos são aquilo que são reconhecidos como talpelos que participam do grupo social. Nesse sentido, o contexto passa a ser critériopara se escolher o que e como dizer ou escrever. O ensino de gramática deve estar aserviço dessa capacidade de analisar o contexto e de escolher as possibilidades a partirdas ofertas do sistema da língua e não o contrário.

Page 166: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

502 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 495-517, set./dez. 2006

O ensino de produção textual com base em ...

Se concordarmos que participar de uma “atividade” e se engajar na“interação” com o mundo são componentes centrais no desenvolvimento dashabilidades de leitura e de redação, então gêneros passam a ser também um construtoteórico útil para o ensino de produção textual.

Uma definição para gênero que enfatiza o papel do contexto é oferecida porCarolyn Miller em seu trabalho seminal de 1984 (p.159), no qual define gêneroscomo interações “retóricas típicas com base em situações recorrentes” numdeterminado contexto de cultura. Há aqui o pressuposto de que as pessoasreconhecem similaridades entre situações recorrentes e assim elaboramrepresentações de ações tipificadas. Essa representação é um construto social,intersubjetivo, baseado em esquemas mentais das situações, que, por sua vez, sãoconstruídos a partir da experiência social, em termos de linguagem pertinente, eventose participantes relevantes. Para Miller, essa tipificação, a que chamamos de gênero,é um aspecto central na estrutura comunicativa da sociedade (1984, p. 156-157),um elo estruturador, ligando, a meio caminho, a mente individual à vida grupal(MILLER, 1994, p. 71).

Se a linguagem é um fenômeno social e não individual, então a aquisição dalinguagem é um processo orientado para as condições e as interações sociais(HALLIDAY, 1994, p. xxx). Assim, a criança experimenta a linguagem nos textosproduzidos e consumidos à sua volta; ela vivencia a cultura de seu grupo social nassituações que são engendradas no dia-a-dia (p. xxxi). Ao prestar atenção ao “texto-na-situação”, a criança elabora o sistema da língua e, ao usar esse sistema parainterpretar o texto, ela elabora a cultura. Nesses termos, para o indivíduo, o códigoda língua é um o sistema sócio-semiótico, pois é socialmente compartilhado parasignificar, para engendrar a cultura (idem). A criança aprende a língua porqueaprende a participar da vida social e, à medida que cresce, a recíproca passa a ser,cada vez mais, verdadeira: ela pode participar melhor da vida social porque sabemais sobre como usar os recursos lingüísticos. Nesses termos, “os significados sãocriados pelo sistema social e são trocados pelos membros [da sociedade] na formade textos”, de tal forma que os textos se constituem no “processo semântico dadinâmica social”, pois “a situação constitui o texto” (HALLIDAY, 1978, p. 141).

É possível extrapolar essa máxima em termos de ensino, afirmando que oaluno de língua materna precisa aprender a agir em diversas situações de interaçãosocial, especialmente aquelas em que a interação se dá por intermédio do textoescrito. Sabemos falar português, mas, muitas vezes, não sabemos o que dizer por

Page 167: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

503Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 495-517, set./dez. 2006

Motta-Roth

não sabermos como agir em uma dada situação2, que papel é estipulado para nós epara os outros, que tipo de relações estão pressupostas. No caso da língua escrita, adificuldade fundamental talvez seja de levar o aluno a lembrar ou projetar um contextoem que ele precisa escrever para realizar coisas. O ensino de produção textual emlíngua materna, portanto, deve passar por desconstrução e análise do contexto, dasituação comunicativa, para que o aluno possa perceber a configuração social de ummomento e como a língua como sistema sócio-semiótico constitui esse momento. Emúltima instância, escrever só faz sentido se houver espaço para isso na vida pessoal e/ou social da pessoa e se a sociedade desenvolver instituições letradas num processo deletramento social, isto é, não há razão para saber ler ou escrever um contrato se não hácondições econômicas para se comprar/alugar uma casa ou se não houver instituiçõesque garantam a validade do texto escrito como ato (OLSON; TORRANCE, 2001, p.12).

Autores conhecidos como Lev Vygotsky, Alexander Luria e Mikhail Bakhtin,na Rússia, Basil Bernstein, na Inglaterra, Paulo Freire, Magda Soares, Luiz AntônioMarcuschi, Wanderley Geraldi, apenas para citar alguns colegas no Brasil, parecemter em comum uma visão social da linguagem que enfatiza a importância doengajamento em atividades socialmente relevantes para o desenvolvimento dalinguagem. A consciência individual se amplia na interação com os outros, nainteração com uma realidade idealizada, mediada pela cultura: a participação ematividades no mundo medeia o individual e o social (KOZULIN, 1986, p. xxiv; xlvi).Assim, escrever só é importante na medida em que nos possibilita desempenhardeterminados papéis em uma sociedade (industrial e ocidentalizada, no nosso caso)(TRIEBEL, 2001, p. 32). Sob essa perspectiva, achar lugar para a escrita na vida doaluno não é suficiente. Como educadores da linguagem, devemos ampliar aperspectiva do aluno sobre situações vivenciáveis por ele. Em outras palavras, devemosampliar o leque de possibilidades de experiências, trazendo o mundo para a sala deaula e levando o aluno a vivenciar o mundo “lá fora”.

A contribuição da noção de gêneros textuais para o ensino de linguagem,portanto, é chamar atenção para a importância de se vivenciar na escola atividadessociais, das quais a linguagem é parte essencial; atividades essas às quais, muitasvezes, o aluno não terá acesso a não ser pela escola. O mundo letrado deve serdesmitificado, deve se tornar algo real, palpável.

2 Dependendo de condições econômicas e geográficas, exemplos de agir são: solicitar que seja religada a luz cortadapor falta de pagamento, obter um habite-se da prefeitura, pedir empréstimo no banco, fazer uma consulta nopsicanalista, abrir uma conta no banco, reclamar de um cano quebrado na sua rua.

Page 168: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

504 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 495-517, set./dez. 2006

O ensino de produção textual com base em ...

Ensinar linguagem sob a perspectiva de gênero não é o mesmo que ensinar“tipos de texto”, mas sim, trabalhar “com a compreensão de seu funcionamento nasociedade e na sua relação com os indivíduos situados naquela cultura e suasinstituições”, “com as espécies de textos que uma pessoa num determinado papel[na sociedade] tende a produzir” (MARCUSCHI, 2005, p.10-12).

4 O ENSINO DE PRODUÇÃO TEXTUAL COM BASE EM ATIVIDADESSOCIAIS E GÊNEROS TEXTUAIS

Na minha própria prática de ensino e pesquisa sobre processo e produto deescrita no contexto acadêmico universitário desde 19943, há dois princípios que têmfeito sentido e que encontram apoio na discussão teórica proposta por autores comoSwales & Feak (2004; 2000), Ivani (1998) e Gale (1996): 1) o ensino de produçãotextual depende de um realinhamento conceitual da representação do aluno sobre oque é a escrita, para quem se escreve, com que objetivo, de que modo e sobre o quê;e 2) as atividades de produção textual propostas devem ampliar a visão do alunosobre o que seja um contexto de atuação para si mesmo. Evidentemente, guardadasas diferenças entre a universidade e a escola, entendo que esses princípios sãosuficientemente gerais e valem para ambos os contextos acadêmicos.

O primeiro princípio é de que o entendimento do ato de escrever como umaprática social pressupõe a diferenciação entre escrever como grafar e escrever comoproduzir texto e construir significados sócio-compartilhados. O segundo é de que,para que a produção textual seja uma prática social, é necessário ter uma visão maisrica do ato de escrever em si: escrever não pressupõe apenas a produção do texto,mas também seu planejamento (antes), sua revisão e edição (depois) e seusubseqüente consumo pela audiência-alvo, para que autor e leitor possam atingirseus objetivos de trocas simbólicas.

3 A pedido de meu revisor, incluo exemplos de trabalhos de ensino e pesquisa que me apontaram esses princípios:projetos de Produtividade em Pesquisa/CNPq n°350389/98-5: “Discursos de investigação: Uma análise de gênero daconstrução discursiva da ‘Seção de Metodologia’ em artigos acadêmicos de Lingüística” (2002-2005), “Gênerosdiscursivos acadêmicos, construção de conhecimento e pluralidade de acesso: Análise de Gênero da publicaçãoacadêmica impressa e eletrônica e sua relação com os processos discursivos na construção do conhecimento científico”(2000-2002), “Os processos sociais de construção de conhecimento: Um estudo contrastivo de características retóricase disciplinares no discurso acadêmico em português e inglês” (1998-2000); cursos e oficinas de redação acadêmicaque tenho ministrado na UFSM e em outras instituições (sendo a primeira “Academic Writing”. Oficina ministrada naXVII Semana de Letras e III Seminário Internacional de Língua e Literatura. 21 a 25 de novembro. Santa Maria, RS:UFSM, 1994); e publicações (Motta-Roth 1998a; 1998b; 1999; 2000a; 2000b; 2001; 2002; 2005).

c

^

Page 169: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

505Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 495-517, set./dez. 2006

Motta-Roth

Esses princípios se demonstram na escolha dos gêneros a serem trabalhadosem sala de aula. No contexto acadêmico, faz sentido a opção pela resenha (se for naárea de Educação ou na área de Letras, especialmente nos Estudos Literários), oabstract e o artigo experimental (se for na Lingüística Aplicada, Veterinária ouMedicina). Na escola, Celis (1998, p.159-163) sugere alguns gêneros escritos comoa carta, a receita, o cartão postal, a historinha, o cartaz ou o rótulo.

Em ambos os casos, é importante que o aluno conheça (ou aprenda aconhecer) a situação social desses gêneros. Para tanto, é fundamental fazerquestionamentos tais como: para que serve esse gênero? Como funciona? Onde semanifesta? Como se organiza? Quem participa e com que papéis (quem pode oudeve escrever e quem pode ou deve ler)?

Há, pelo menos, duas propostas relevantes para o ensino de produção textualna escola que se pautam por uma concepção do escrever como prática social, ambasdesenvolvidas em Porto Alegre, Rio Grande do Sul. A primeira, publicada por Zatt eSouza (1999) na forma de livro, apresenta o projeto desenvolvido por essas duasautoras com seus alunos de sexta série, em duas escolas das comunidades de MorroAlto e Morro da Polícia, na periferia de Porto Alegre. Consiste na troca de impressõesdos alunos sobre si mesmos, sua vida, o lugar onde moram, para se conhecer emapear as variadas vidas em pontos diferentes da cidade de Porto Alegre. A princípio,a publicação do livro foi artesanal e custeada pelas comunidades atendidas pelaescola. O livro traz as cartas trocadas entre as professoras-amigas e entre seus alunos.

A proposta das professoras foi encorajar em seus alunos práticas sociais de sereconhecer, se descrever, narrar a experiência vivida e conhecer outras pessoas cursandoa mesma série em uma escola diferente, tudo isso por meio de cartas (evidentemente,em vista de os alunos não terem telefone, isso se torna ainda mais significativo).

As cartas das professoras são uma espécie de desabafo sobre o desafio detornar significativa a aprendizagem de produção textual dos seus alunos. Conformeexpresso na correspondência entre elas, a prática pedagógica baseada no gênero cartapessoal transformou a tarefa, criando uma rede interdiscursiva entre os textos, quepode ser percebida pela alusão a contextos, fatos ou textos compartilhados por eles:

Jane, querida:Tudo bem? Aqui nas 6as séries do Gilberto tudo deu ótimo. O clima é demuita euforia com o recebimento da carta coletiva de vocês e com o convitepara a publicação conjunta e o anúncio da correspondência eminente [...].Jane, querida, tu podias me dizer quando chegam as cartas?! Socorro!Da tua desesperada colegaCláudia

Page 170: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

506 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 495-517, set./dez. 2006

O ensino de produção textual com base em ...

Amiga Ana:Acho que já posso ousar te chamar assim a essas alturas dos acontecimentos.Afinal estou enternecida e entusiasmada com a resposta positiva tua e dosteus 42 companheirinhos de viagem ao nosso convite para mapearmos estacidade com as histórias ímpares que cada um de nós vem carregando pornossas vidas afora. [...] Chegou. Finalmente chegou a resposta de vocês anossa carta coletiva, e eu posso dizer que o dia aqui foi de muita festa, pois[...] ficaram sabendo o nome dos correspondentes...Um grande abraço drummoniano igual-desigual pra ti e pra tua gurizada,Jane

Os alunos, por sua vez, produziram textos sobre temas como: “A história domeu nome”, “O que eu gosto de fazer”, “O que eu sei, mas não gosto de fazer”, “Oque eu mais gosto e o que menos gosto do lugar onde moro”, “Eu e os outros”.Assim, vão se constituindo no texto e conhecendo pessoas e lugares fora do seucontexto imediato, função primeira do texto escrito.

No fluxo da correspondência, foram criando textos para interagir com os colegas,como nas cartas dos alunos após se encontrarem pessoalmente pela primeira vez:

Débora:Que pena que a chuva atrapalhou um pouco o nosso plano de ficar maistempo...Ouvi falar que você me chamou de balaqueiro. Débora, eu juro,juro, juro que tentei ser tri legal com você. Mas pelo jeito não deu. Débora,eu queria falar também que mesmo você tendo me chamado de balaqueiro,eu achei você muito, muito, muito, muito, tri. Queria falar também que voutentar não ser mais balaqueiro.Deoclides (p.155)

Esse é um caso em que a avaliação do aluno demonstra a medida em que asatividades de produção textual propostas materializam os princípios de validade queenumerei anteriormente:

- ocorre uma mudança na representação do aluno sobre o que é a escrita,para quem ele escreve, com que objetivo, de que modo e sobre o quê:...Escrevendo carta eu fiz vários amigos, como o Mairo, Luiz Fernando,Gilson, Débora, Luciane, Vanessa, Rodrigo Longaray, Victor e outros mais...Darlene

Page 171: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

507Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 495-517, set./dez. 2006

Motta-Roth

Escrevendo um livro a gente mexe no passado, descobrimos coisas queaconteceram quando nós não éramos nem nascidos, descobrimos coisasimportantes sobre nossas famílias...Débora

- e amplia-se a perspectiva do aluno sobre o que seja um mundo possível,no qual possa efetivamente atuar:Uma das coisas mais importantes que aprendi é escrever e reescrever omesmo texto várias vezes, até ele ficar bom para ser datilografado, impressoe até, se der, ir para a Feira do Livro.Luiz

Assim, nessa perspectiva pedagógica, criam-se autores que produzem textospara circulação/publicação, onde antes existiam alunos que escreviam textos paraserem entregues à professora, com o único fim de serem avaliados por ela.

A outra proposta, também descrita em livro (NEVES, SOUZA, SCHÄFFER,GUEDES, KLÜSENER, 1998), se traduz em atividades de produção textual diferentesdaquelas propostas por Zatt e Souza (1999), tendo em vista que não podem serassociadas à vida particular, tal como escrever uma carta. A proposta é explicitamentevoltada ao contexto educacional, pois trabalha com a produção de texto no gêneroacadêmico relatório de pesquisa, com o objetivo de produzir conhecimento.

Professores de várias disciplinas integrantes do currículo do EnsinoFundamental, tais como Matemática, Educação Física e Ciências, assumem co-responsabilidade pela produção textual dos alunos. Atividades da vida social do dia-a-dia, como ir ao supermercado e praticar atividade física, tornam-se objeto dereflexão. O gênero escrito escolhido está relacionado ao contexto escolar e pode serchamado de relatório de pesquisa. Funciona como um relato de uma experiência,compreendida de observação e reflexão, organizadas de maneira metódica, comoum embrião da prática de pesquisa e de reflexão crítica que realmente é feita porpesquisadores de diversas áreas. É, assim, uma preparação para a prática deinvestigação científica profissional.

A atividade descrita no Quadro 1 foi elaborada pelos professores de Ciênciase consiste em propor aos alunos uma visita ao supermercado para observar osprodutos nas prateleiras, fazer anotações.

Page 172: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

508 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 495-517, set./dez. 2006

O ensino de produção textual com base em ...

Quadro 1 – Atividade de Produção textual em Ciências (LOPES; DULAC, 1998,p. 40-41).

Mais tarde, com base nessas anotações, os alunos escreverão um relatóriopara esclarecer a turma sobre questões muito em voga na televisão, mas nem semprecompreendidas como ciência, tecnologia e ecologia. Nesse caso, o texto a serproduzido será informativo, pois trará de fato informações novas e cumprirá assimuma função no contexto da classe.

Outro exemplo de atividade explora o âmbito da estética e da percepção. Oato de observar a obra de arte ou sua reprodução é desnaturalizado pela professorade Artes de modo a levar o aluno a fazer uma observação consciente, exercitandosua capacidade analítica. Ao mostrar um quadro de um pintor brasileiro famoso, aprofessora introduz a discussão sobre uma peça de arte e possibilita ao aluno avivência estética. Talvez esse aluno não se aperceba de que uma observação dessanatureza pode ocorrer na rua (no caso de uma escultura, mural ou outdoor), na TVou em um filme (no caso da filmagem em um museu), numa mostra em várioslocais públicos (como a Bienal do Mercosul em Porto Alegre), ou ainda em casa, sehouver obras de arte.

Page 173: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

509Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 495-517, set./dez. 2006

Motta-Roth

Quadro 2 – Atividade de Produção textual em Artes (KEHRWALD, 1998, p. 25-26).

A atividade de Artes tem por objetivo levar o aluno a fruir uma obra de arte,a propor um exercício de leitura de imagem. Posteriormente ocorre a produçãoescrita sobre essa vivência intersubjetiva que depende da observação, da análise edo debate entre os alunos.

A terceira atividade diz respeito à atividade física na aula de Educação Física.O professor propõe ao aluno que ele próprio (o aluno) seja o objeto de investigação.Ao fazer isso, o professor orienta a atenção do aluno para uma observação metódica.

Page 174: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

510 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 495-517, set./dez. 2006

O ensino de produção textual com base em ...

Quadro 3 – Atividade de Produção textual em Educação Física (GONÇALVES;SANTOS, 1998, p. 57-59).

A atividade de Educação Física talvez seja a que mais se assemelha a umprocesso de investigação e ao gênero relatório de pesquisa, por combinar observaçãocontínua do objeto de estudo ao longo de um semestre, anotação detalhada de dados,reflexão e análise sobre eles e finalmente uma tentativa de explicação de suas causascom vistas a um possível avanço no conhecimento acerca do objeto de pesquisa (odesempenho do aluno no atletismo).

Essas duas linhas de trabalho apontam caminhos para levar o aluno a seengajar em uma atividade de produção textual como uma forma de estar no mundo,de agir com um objetivo e com um motivo. Algumas sugestões surtirão mais efeitodo que outras. Evidentemente será preciso educar o aluno para que ele encontremodos de olhar uma obra de arte ou para que ele encontre a relevância de desenvolversua condição física. Mas a escola é o âmbito da experimentação e da educação e,afinal, alguém disse que educar era fácil?

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O ensino de produção textual com base em gêneros demanda uma descriçãodetalhada de contextos específicos, a consideração de elementos lingüísticos, quemantêm relação sistemática com o comportamento ou eventos sociais que desejamosexplicar (DAVIS, 1995, p. 434). Ao aprender os gêneros que estruturam um gruposocial com uma dada cultura, o aluno aprende maneiras de participar nas ações deuma comunidade (MILLER, 1984, p.165). Descobrir como fazer issoconsistentemente na sala de aula parece ser o nosso desafio. A sala de aula de línguastalvez seja o lugar onde devemos analisar, criticar e/ou avaliar as várias instâncias deinteração humana de culturas localizadas, nas quais a linguagem é usada para mediarpráticas sociais. Concordo com McCarthy & Carter (1994) quando afirmam que

Page 175: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

511Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 495-517, set./dez. 2006

Motta-Roth

ensinar línguas é ensinar alguém a ser um analista do discurso, portanto creio queas discussões em sala de aula devem enfocar as práticas linguageiras nas açõesespecíficas do grupo social relevante.

Ao discutir a flutuação de uso do termo “gênero” nos PCN’S tentei demonstrara necessidade de discutirmos e refletirmos mais acerca das categorias que usamospara estudar a linguagem acima do nível da sentença para que possamos elaborarum patamar teórico comum que nos faça avançar na pesquisa e na descrição dalinguagem como sistema simbólico que medeia atividades sociais. A práticapedagógica nesses termos pode contribuir para o desenvolvimento, no aluno e noprofessor, da consciência crítica dos aspectos contextuais e textuais do uso dalinguagem. Essa consciência é central para o desenvolvimento das competênciaslingüísticas e discursivas que podem empoderar a todos que participam da vidacontemporânea, em uma sociedade cada vez mais constituída nos e pelos textos queproduzimos. Além disso, vale ressaltar que, embora os PCN’s apresentem flutuaçãoem relação ao conceito de gênero, a proposta de educação lingüística que apresentamenfatiza a importância da relação entre texto e contexto no ensino da linguagem epropõe que sejam utilizados gêneros do contexto do aluno em sala de aula.4

REFERÊNCIAS

BAZERMAN, C. Shaping written knowledge: the genre and activity of the experimentalarticle in science. Madison, WI: University of Wisconsin Press, 1988.

BONINI, A. Gêneros textuais e cognição: um estudo sobre a organização cognitiva daidentidade dos textos. Florianópolis: Insular, 2002.

BRASIL.Ministério da Educação. Parâmetros curriculares nacionais para o ensinomédio - linguagens, códigos e suas tecnologias. Brasília: MEC, 2000.

BRONCKART, J.-P.; MACHADO, A. R. Procedimentos de análise de textos sobre o trabalhoeducacional. In: MACHADO, A. R. (Org.). O ensino como trabalho: uma abordagemdiscursiva. Londrina, PR: EDUEL, 2004. p. 131-163.

CELIS, G. I. de. Aprender a formar crianças leitoras e escritoras. Trad. JussaraHaubert Rodrigues. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998.

4 Agradeço a Patrícia Marcuzzo por chamar minha atenção de volta a esse ponto na conclusão. Agradeço ainda porsua leitura da primeira versão deste texto e por suas sugestões de alteração. Os problemas que ainda persistemsão de minha inteira responsabilidade.

Page 176: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

512 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 495-517, set./dez. 2006

O ensino de produção textual com base em ...

CRISTÓVÃO, V. L. L.; NASCIMENTO, E. L. (Orgs.). Gêneros textuais: teoria e prática.Londrina: Moriá, 2004.

______. Gêneros textuais: teoria e prática II. Palmas e União da Vitória, PR:Kaygangue, 2005.

DAVIS, K. Qualitative theory and methods in applied linguistics research. TESOLQuarterly, v. 29, n. 3, p. 427-453, 1995.

GALE, X. L. Teachers, discourses, and authority in the postmodern compositiionclassroom. Albany, NY: State University of New York Press, 1996.

GERALDI, J. W. Da redação à produção de textos. In: ______; CITELLI, B. H. M.;CHIAPPINI, L. (Orgs). Aprender e ensinar com textos de alunos. São Paulo: Cortez,1997. p. 17-24. (Coleção Aprender e Ensinar com Textos, v. 1)

GONÇALVES, C. J. S.; SANTOS, S. S. Ler e escrever também com o corpo em movimento. In:NEVES, I. C. B.; SOUZA, J. V.; SCHÄFFER, N. O.; GUEDES, P. C.; KLÜSENER, R. (Orgs.). Lere escrever: compromisso de todas as áreas. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 1998. p. 45-64.

HALLIDAY, M. A. K. Language as social semiotic: the social interpretation of languageand meaning. London: Edward Arnold, 1978.

______. An introduction to functional grammar. 2nd. Ed. London; Melbourne;Auckland: Edward Arnold, 1994.

IVANI , R. Writing and identity: the discoursal construction of identity in academicwriting. Amsterdam; Philadelphia: John Benjamins, 1998.

KARWOSKI, A. M.; GAYDECZKA, B.; BRITO, K. S. (Orgs.). Gêneros textuais: reflexões eensino. Palmas; União da Vitória, PR: Kaygangue, 2005. (Volume com as conferênciasapresentadas durante o II SIGET - Simpósio Nacional de Estudo dos Gêneros Textuais,realizado em União da Vitória, nos dias 05 e 06 de agosto de 2004)

KEHRWALD, I. P. Ler e escrever em artes visuais. In: NEVES, I. C. B.; SOUZA, J. V.;SCHÄFFER, N. O.; GUEDES, P. C.; KLÜSENER, R. (Orgs.). Ler e escrever: compromisso detodas as áreas. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 1998. p. 21-34.

KOZULIN, A. Vygotsky in context. In: VYGOTSKY, L. Thought and language. Transl. A.Kozulin. Massachusetts: The MIT Press, 1986. p. xi-lvi.

LOPES, C. V. M.; DULAC, E. B. F. Idéias e palavras na/da ciência, ou, leitura e escrita: o quea ciência tem a ver com isso? In: NEVES, I. C. B.; SOUZA, J. V.; SCHÄFFER, N. O.; GUEDES,P. C.; KLÜSENER, R. (Orgs.). Ler e escrever: compromisso de todas as áreas. PortoAlegre: Editora da Universidade/UFRGS, 1998. p. 35-44.

C

^

Page 177: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

513Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 495-517, set./dez. 2006

Motta-Roth

MARCUSCHI, L. A. Apresentação. In: BAZERMAN, C. Gêneros textuais, tipificação einteração. Trad. e org. de A. P. Dionísio e J. C. Hoffnagel. São Paulo: Cortez, 2005. p. 09-13.

McCARTHY, M.; CARTER, R. Language as discourse: perspectives for language teaching.London: Longman, 1994.

MEURER, J. L. Genre as diversity, and rhetorical mode as unity in language use. Ilha doDesterro, Florianópolis, v. 43, n. 2, p. 61-82, 2003.

______. Ampliando a noção de contexto na lingüística sistêmico-funcional e na análisecrítica do discurso. Linguagem em (Dis)curso, Tubarão, v. 4, n.esp., p. 133-157,2004.

MEURER, J. L.; MOTTA-ROTH, D. (Orgs.). Gêneros textuais: subsídios para o ensino dalinguagem. Bauru, SP: EDUSC-Editora da Universidade Sagrado Coração, 2002.

MEURER, J. L., BONINI, A.; MOTTA-ROTH, D. (Orgs.). Gêneros: Teorias, métodos edebates. São Paulo: Parábola Editorial, 2005.

MILLER, C. R. Genre as social action. Quarterly journal of speech, n. 70, p. 151-167,1984.

______. Rhetorical community: the cultural basis of genre. In: FREEDMAN, A.; MEDWAY,P. (Eds.). Genre and the new rhetoric. London: Taylor & Francis, 1994. p.67-78.

MOTTA-ROTH, D. Discourse analysis and academic book reviews: a study of text anddisciplinary cultures. In: COLL, J. F.; FORTANET, I.; PALMER, J. C.; POSTEGUILLO, S.(Eds.). Genre studies in English for academic purposes. Castellón, Espanha:Universitat Jaume I, 1998a. p. 29-48.

______. Escritura, gêneros acadêmicos e construção do conhecimento. Letras, SantaMaria, RS: Mestrado em Letras; UFSM, n. 17, p. 93-110, 1998b.

______. A importância do conceito de gêneros discursivos no ensino de redaçãoacadêmica. Intercâmbio, São Paulo: LAEL/PUC-SP, n. 8, p. 119-28, 1999.

______. Gêneros discursivos no ensino de línguas para fins acadêmicos. In: FORTKAMP, M.B. M.; TOMITCH, L. M. B. (Orgs). Aspectos da lingüística aplicada: estudos emhomenagem ao professor Hilário Bohn. Florianópolis: Editora Insular, 2000a. p. 167-184.

______. Texto acadêmico e construção do conhecimento. Intercâmbio, São Paulo:LAEL/PUC-SP, n. 9, p. 39-48, 2000b.

______. (Org.). Redação acadêmica: princípios básicos. Santa Maria, RS: ImprensaUniversitária/ UFSM, 2001.

Page 178: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

514 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 495-517, set./dez. 2006

O ensino de produção textual com base em ...

______. A construção social do gênero resenha acadêmica. In: MEURER, J. L.; MOTTA-ROTH, D. (Orgs.). Gêneros textuais: subsídios para o ensino da linguagem. Bauru, SP:EDUSC, 2002. p. 66-117.

______. Questões de metodologia em análise de gêneros. In: KARWOSKI, A. M.;GAYDECZKA, B.; BRITO, K. S. (Orgs.). Gêneros textuais: reflexões e ensino. Palmas;União da Vitória, PR: Kaygangue, 2005. p. 179-202.

NEVES, M. H. M. A gramática funcional. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

______. Gramática de usos do português. São Paulo: Editora UNESP, 2000.

OLSON, D. R.; TORRANCE, N. Conceptualizing literacy as a personal skill and as a socialpractice. In: OLSON, D. R.; TORRANCE, N. (Eds.). The making of literate societies.Oxford: Blackwell, 2001. p. 3-18.

SWALES, J. M.; FEAK, C. B. Academic writing for graduate students: essential tasksand skills. 2nd ed. Ann Arbor, MI: The University of Michigan Press, 2004.

______. English in today’s reasearch world: a writing guide. Ann Arbor, MI: TheUniversity of Michigan Press, 2000.

TRIEBEL, A. The roles of literacy practices in the activities and institutions of developedand developing countries. In: OLSON, D. R.; TORRANCE, N. (Eds.). The making ofliterate societies. Oxford: Blackwell, 2001. p. 19-53.

WITTGENSTEIN, L. Philosophical investigations. Translation by G. E. M. Anscombe.New York: Macmillan, 1958 [1953].

ZATT, A. C.; SOUZA, J. de. (Orgs.). Mapas da cidade: autoria, identidade e cidadania.Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.

Page 179: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

515Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 495-517, set./dez. 2006

Motta-Roth

ANEXO - DIFERENTES CONCEPÇÕES DE “GÊNERO TEXTUAL” NOS PCN’S:

p.18 = Da mesma forma, ao tratar dos gêneros literários, podetrazer a discussão de modelos explicativos, de análises críticas ede hipóteses de relações causais, do contexto das CiênciasHumanas ou das Ciências Naturais, encontrados com facilidadeno material didático das disciplinas das referidas áreas.

p.60 = O texto verbal pode assumir diferentes feições, conformea abordagem temática, a estrutura composicional, os traçosestilísticos do autor – conjunto que constitui o conceito de gênerotextual.

p.61-62 = Ser falante e usuário de uma língua pressupõe: [...]• a leitura plena e produção de todos os significativos, implicando:– caracterização dos diversos gêneros e seus mecanismos dearticulação;– leitura de imagens;– percepção das seqüências e dos tipos no interior dos gêneros.

p.64= A metalinguagem da gramática, os estilos de época naliteratura, as denominações dos diversos gêneros textuais sãoalgumas das classificações recorrentes na disciplina.

p.77= Quando se pensa no trabalho com textos, outro conceitoindissociável diz respeito aos gêneros em que eles se materializam,tomando-se como pilares seus aspectos temático, composicionale estilístico.

p. 77 = Deve-se lembrar, portanto, que o trabalho com textosaqui proposto considera que:• alguns temas podem ser mais bem desenvolvidos a partir dedeterminados gêneros;• gêneros consagrados pela tradição costumam ter uma estruturacomposicional mais definida;• as escolhas que o autor opera na língua determinam o estilo dotexto.

p. 78-79 = Como os textos ganham materialidade por meio dosgêneros, parece útil propor que os alunos do ensino médiodominem certos procedimentos relativos às características degêneros específicos, conforme sugerem as Matrizes Curricularesde Referência do Saeb:• reconhecer características típicas de uma narrativa ficcional(narrador, personagens, espaço, tempo, conflito, desfecho);• reconhecer recursos prosódicos freqüentes em um textopoético (rima, ritmo, assonância, aliteração, onomatopéia);• reconhecer características típicas de um texto de análise ouopinião (tese, argumento, contra-argumento, conclusão) bemcomo analisar a estratégia argumentativa do autor;• reconhecer características típicas de um texto informativo(tópico e hierarquia de informação, exemplificação, analogia).

p.18 = Uma aula dadisciplina LínguaPortuguesa, que integraa área de Linguagens eCódigos, ao tratar dosgêneros narrativos oudescritivos, pode fazeruso de relatos de fatoshistóricos, processossociais ou descriçõesde experimentoscientíficos. Narealidade, textos dessanatureza são hojeencontráveis em jornaisdiários e empublicações semanais,lado a lado com acrônica política oupolicial.

p. 61-62 = Ser falante e usuário de umalíngua pressupõe:• a utilização da linguagem na interaçãocom pessoas e situações, envolvendo:– desenvolvimento da argumentaçãooral por meio de gêneros como o debateregrado;– domínio progressivo das situações deinterlocução; por exemplo, a partir dogênero entrevista [...].

p. 63 = Os múltiplos gêneros, escritos eorais, apresentam pontos que osaproximam e que os distanciam. Acantiga medieval apresenta pontos emcomum com o cordel; é inegável, porém,que esses dois gêneros carregammarcas próprias, capazes de osdiferenciar e singularizar, explicadasprioritariamente por suas característicashistóricas.

p. 71 = • Finalmente, propõe-se que adisciplina Língua Portuguesa abraespaço para diferentes abordagens doconhecimento. Ainda que a palavraescrita ocupe um espaço privilegiado nadisciplina, é possível que a produção detextos falados ganhe uma sistematizaçãomaior, por meio de gêneros orais comoa mesa-redonda, o debate regrado, oseminário, o programa radiofônico,para citar apenas alguns exemplos.

p. 77 = Essa abordagem explicita asvantagens de se abandonar o tradicionalesquema das estruturas textuais(narração, descrição, dissertação) paraadotar a perspectiva de que a escola deveincorporar em sua prática os gêneros,ficcionais ou não-ficcionais, quecirculam socialmente:

• na literatura, o poema, o conto, oromance,..., entre outros;• no jornalismo, a nota, a notícia, areportagem,..., a carta do leitor;• nas ciências, o texto expositivo, overbete, o ensaio;• na publicidade, a propagandainstitucional, o anúncio;• no direito, as leis, os estatutos [...]

“Gênero” como “tipo de texto” “Gênero” como“estratégia retórica”

“Gênero” como “eventocomunicativo institucionalizado”

Page 180: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

516 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 495-517, set./dez. 2006

O ensino de produção textual com base em ...

Recebido em 20/02/06. Aprovado em 02/05/06.

Title: The teaching of writing based on social activities and genresAuthor: Désirée Motta-RothAbstract: The aim of this essay is to further the debate on the pedagogical advantages of using theconcept of genre for the teaching of writing. In that sense, we carry out a discussion of the treatmentgiven to this concept by the PCN+ (BRASIL, 2000) and, as a consequence, a reflection on languageteaching. The reflexions presented here are based on two basic principles: 1) the teaching of writingdepends on a conceptual realignment by the student about the meaning of writing, to whom wewrite, with what objectives, how and about what; 2) the writing activities proposed by teachers mustenlarge the student’s view of a possible context for her/himself

p. 79 = O trabalho com a diversidade de gêneros permite que seestabeleçam diferentes relações entre textos e que se proponhamalguns procedimentos:• comparar paráfrase, avaliando sua maior ou menor fidelidadeao texto original;• avaliar a intenção da paródia de um texto dado;• identificar referências ou remissões a outros textos;• analisar incoerências ou contradições na referência a outrotexto ou na incorporação de argumento de um outro autor;• estabelecer relações temáticas ou estilísticas (de semelhançaou de oposição) entre dois textos de diferentes autores ou dediferentes épocas.

p. 80 = De acordo com as possibilidades de cada gênero,empregar:• mecanismos de coesão referencial (retomada pronominal,repetição, substituição lexical, elipse);• mecanismos de articulação frasal (encaixamento,subordinação, coordenação);• recursos oferecidos pelo sistema verbal (emprego apropriadode tempos e modos verbais, formas pessoais e impessoais,...);• recursos próprios do padrão escrito na organização textual(paragrafação, periodização, pontuação sintagmática eexpressiva, e outros sinais gráficos);• convenções para citação do discurso alheio (discurso direto,indireto e indireto livre): dois-pontos, travessão, aspas,...;• ortografia oficial do Português, desconsiderando-se os casosidiossincráticos e as palavras de freqüência muito restrita;• regras de concordância verbal e nominal, desconsiderando-se os chamados casos especiais.

p. 82 = Outros procedimentos relativos ao desenvolvimento dacompetência gramatical, dessa vez mais relacionados àcompetência textual, e particularmente às noções de coerência ecoesão no processamento do texto, são:• comparar textos de diferentes gêneros quanto ao tratamentotemático e aos recursos formais utilizados pelo autor;[...]

p. 76 = • No transcurso das aulas, osalunos devem ter oportunidade de –individualmente, em duplas ou em grupos– participar de situações dialogadas queimplicam graus de formalidade variáveis.Nessa linha de trabalho, pode-se propordesde bate-papos mais informais apropósito de uma obra literária até ojulgamento da atitude de uma personagemdo texto literário num debate regrado,gênero oral que exige de seus interlocutoresum grau maior de formalidade e deconsciência do texto argumentativo queestão produzindo na fala.

p. 84 = Em Língua Portuguesa,considerando-se o desenvolvimento dascompetências interativa, textual e gramatical,podem-se propor diversos formatos deavaliação:• aferição das habilidades dos alunos deproduzir um texto oral, em apresentaçãoindividual ou em grupo, de acordo com umgênero pré-estabelecido e com o nível deformalidade exigido para a situaçãoenunciativa;[...]

p. 89-90 = O docente de Língua Portuguesacertamente poderá se beneficiar muito seinvestir no desenvolvimento das dezcompetências propostas. Elas estão, de umaforma ou de outra, inevitavelmente ligadasà implementação das habilidades que oprofessor dessa disciplina deve ter emrelação a:[...]• saber explorar as potencialidades de umtexto, nos diversos gêneros, e transpô-laspara os alunos [...]

“Gênero” como “tipo de texto” “Gênero” como“estratégia retórica”

“Gênero” como “evento comunicativoinstitucionalizado”

Page 181: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

517Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 495-517, set./dez. 2006

Motta-Roth

Keywords: genre; writing; teaching.

Tìtre: L’enseignement de production textuelle centré dans des activités sociales et genres textuelsAuteur: Désirée Motta-RothRésumé: L’objectif de cet essai est celui d’encourager le débat sur les possibilités pédagogiques dela conception de genre textuel pour l’enseignement de production textuelle. Dans ce sens, on chercheà discuter à propos du traitement donné à cette notion dans les PCN+ (BRASIL, 2000) et, enconséquence de cette discution, réfléchir sur l’enseignement du langage. Les réflexions exposéesdans le texte sont ancrées dans deux principes pratiques, selon ce qui suit: 1) l’enseignement deproduction textuelle dépend d’un nouvel alignement conceptuel de la représentation de l’élève surce qui constitue l’écriture, à qui elle sert, avec quel objectif, de quelle manière et sur quoi; 2) lesactivités de production textuelle proposées doivent étendre la vision de l’élève sur ce qui veut direun contexte de représentation pour soi-même.Mots-clés: genre textuel; production textuelle; essai.

Título: La enseñanza de produción textual basado en actividades sociales y géneros textualesAutor: Désirée Motta-RothResumen: El objetivo de este ensayo es estimular el debate sobre las posibilidades pedagógicas dela concepción de género textual para la enseñanza de producción textual. En este sentido se discutiráaquí el tratamiento dado a esta noción en los PCN+ (BRASIL, 2000) y, por consecuencia de estadiscusión, reflexionar sobre la enseñanza del lenguaje. Las reflexiones expuestas en el texto estánbasadas en dos principios prácticos: 1) la enseñanza de producción textual depende de una revisiónconceptual de la representación del alumno sobre qué es la escrita, para quién se escribe, con quéobjetivo, de qué manera y sobre qué se escribe, y 2) las actividades de producción textual propuestasdeben ampliar la visión del alumno sobre qué sería un contexto de actuación para sí mismo.Palabras-clave: género textual; producción textual; enseñanza.

Page 182: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

518

Page 183: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

519Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 519-546, set./dez. 2006

Furlanetto

ARGUMENTAÇÃO E SUBJETIVIDADE NO GÊNERO: O PAPEL

DOS TOPOI

Maria Marta Furlanetto*

Resumo: Quando se propõe uma “dissertação” na escola, espera-se do estudante que apresenteum problema e pontos de vista, argumentando para dar uma resposta satisfatória ao problema.Exige-se dele, contudo, impessoalidade. Tento demonstrar, do ponto de vista discursivo, que semprehá na produção textual uma escolha para dirigir a interpretação do interlocutor, sendo relevante,para isso, o uso de certos operadores. Focalizo, então, o conflito entre ser impessoal e defenderum ponto de vista (opinião) – pondo em contraste o modelo da dissertação escolar e a caracterizaçãodialógica do conceito de gênero em Bakhtin, e os efeitos resultantes em um caso e no outro, comvistas a uma alternativa de ensino.Palavras-chave: argumentação; gênero; produção textual; subjetividade.

1 INTRODUÇÃO

Quando se pede a um estudante que elabore uma dissertação, espera-se delea apresentação ou o desenvolvimento de um problema, de pontos de vista e deargumentos inteligentes e criativos para dar uma resposta ao problema. Exige-sedele, contudo, impessoalidade, o que se supõe seja conseguido evitando-seestrategicamente o uso da primeira pessoa. Para argumentar, entretanto, é importanteempregar certos elementos de articulação (conetivos) e operadores de argumentação,para imprimir coerência ao que é exposto, produzindo sentido e eficácia.

Defendo neste trabalho que, apesar da impessoalidade na argumentação, edo uso de conetivos previstos na língua, há escolhas a processar (tributárias doprojeto discursivo do locutor, de seu “querer-dizer”) para que certa direção sejamostrada, e que deverá provocar uma reação no interlocutor (o outro). Essa direção– ou “intencionalidade”1 – conduz a uma busca de autoria na defesa de um ponto devista, ainda que este ponto de vista não seja individual e único, refletindo em geral

* Professora da Universidade do Sul de Santa Catarina. Doutora em Lingüística Aplicada.1 Apesar da dubiedade do termo, mantenho-o para indicar que a consciência se apresenta sempre como consciência

de, portanto direcionada para, implicando a produção de um sentido e condicionando a compreensão de umfenômeno, sem estar necessariamente implicado um desejo ou vontade da mente individual.

Page 184: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

520 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 519-546, set./dez. 2006

Argumentação e subjetividade no gênero ...

valores que um grupo tem como legítimos. O que aparece aí, como resultado, é umefeito de pessoalidade, de subjetividade – portanto, de posição ou lugar social ocupado.O ponto de vista reflete uma posição, lugar de emergência de uma enunciação.

Pode parecer estranho pôr foco na “dissertação” escolar quando as pesquisasem Lingüística Aplicada e as motivações político-pedagógicas (propostas curriculares)levam pesquisadores e professores a preocupar-se com a compreensão, a descriçãoe a metodologia de ensino de gêneros de discurso. Justifico esse “retorno” e apreocupação que persiste relativamente aos procedimentos usados: não poucostrabalhos recentes voltados para a produção de textos focalizam os “textosdissertativos” (em vários níveis de ensino) objetivando analisar uma variedade deprocessos, por exemplo: reescrita do texto dissertativo (KÖCHE; PAVANI; BOFF, 2004),sustentação de pontos de vista (FISCHER, 2003), explicitação da relação entrelinguagem e poder (HEINIG, 2003).

A despeito de não haver aí um trabalho específico com gêneros2, ressalta-seo aperfeiçoamento obtido na produção de texto, pelo uso de estratégias que seenquadrariam como interativas, enunciativas. Nos artigos pode-se observar umamixagem que, no fundo, é compreensível: teoricamente, a abordagem sócio-interativaé privilegiada, aparecendo regularmente no corpo dos textos os conceitos dedialogismo, interlocução, gêneros discursivos, enunciação, atitude responsiva ativa,produção de sentido. É compreensível que haja conflitos, quando se está numa fasede revolução teórica e de campo. Em todos esses casos, depreende-se que tem havidoum grande esforço no sentido de transformar, aos poucos, a “cultura da redação”em “cultura do discurso”3, como se vê mais especificamente no relato de Conceição(2000), que conduziu um trabalho escolar (com iniciantes do curso superior) paratentar desconstruir “as formalidades da redação escolar” e construir a discursividadena escrita4, através da reescrita de textos.

A reflexão sobre esse fenômeno mostra que estamos sempre em transição,com um pé no passado e um pé direcionado para diante. Nos trabalhos, por exemplo,podem aparecer, alternativamente, as expressões “gêneros dissertativos”, “gênerosdiscursivos”, “texto dissertativo”, “texto argumentativo”.

2 Pode-se ainda argumentar que há situações e circunstâncias, nas esferas da sociedade, em que não é possívelpretender, em curto prazo, uma virada radical de conceitos e métodos. Nesses casos, dar um passo de cada vez éa atitude mais prudente e proveitosa.

3 É também por isso que o termo ‘redação’ tem sido preterido em favor de ‘produção textual’.4 A autora usou, para desenvolver a produção e a reescrita, não gêneros, mas temas, que remetiam, em suma, aos

tipos tradicionais (um dos blocos de temas refere-se a “textos dissertativos”). O objeto de trabalho sempre foitratado como “redação escolar”, apesar da tentativa de “construir a discursividade”.

Page 185: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

521Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 519-546, set./dez. 2006

Furlanetto

Um exemplo do esforço de profissionais em promover mudanças, ainda quenão radicais, consta no relato de Silveira (1998) sobre uma experiência piloto deprova seletiva do concurso vestibular (UFRGS). Embora o texto a produzir aindafosse uma dissertação, nela os candidatos deviam fazer uma reflexão a partir devivência pessoal – estratégia que objetivava “suplantar o caráter ‘artificial’ da redaçãoem um vestibular”, dando algum espaço para que o aluno pudesse aparecer como“sujeito do seu texto”, fugindo às generalizações tão comuns nessas circunstâncias.As instruções ao candidato salientavam que ele devia “redigir uma dissertação”(implicando uma reflexão racional) valendo-se de sua experiência pessoal, queprecisava, portanto, estar inserida em um “texto argumentativo” organizado“dissertativamente”. O interesse de Silveira era o estudo do processo de elaboraçãodos textos; assim, os alunos deviam entregar o rascunho da redação que, “passada alimpo”, resultaria na versão final. Silveira conclui que o “passar a limpo” não se fazpor simples ato mecânico, mas “aponta para a consideração de aspectos discursivos”.Do ponto de vista do concurso vestibular, poder-se-ia dizer que se tratava de umavanço; por outro lado, pode-se argumentar que ser “sujeito de seu texto” não seresume na possibilidade de descrever uma situação pessoal utilizando a forma “eu”.

Como, na prática, em muitos casos ocorrem todos esses conflitos, e o ensinosistemático de gêneros de discurso, de modo geral, está longe de ser uma realidade,a reflexão que proponho estará centrada:

a) em um dos procedimentos para o “ensino” de dissertação (orientadopara o vestibular ou não): ser impessoal e ao mesmo tempo apresentar

e defender ponto de vista pessoal. Discuto o conflito entre ser impessoale defender uma opinião, buscando um efeito particular. O foco para issoserão os “operadores de argumentação” (especificamente as conjunções),associados ao que se chama topoi (lugares de argumentação) (cf.ANSCOMBRE, 1995; DUCROT, 1989), que, na evolução da teoria daSemântica Argumentativa, representaram um passo largo em direção à“exterioridade” da língua, à sua função discursiva;b) a título de comparação e contraste, paralelamente, na configuração dogênero tal como se tem discutido, entendido e aplicado conforme a teoriasócio-interacional de Bakhtin (1979, 1992), atendo-me à relação

interlocutiva, especificamente quanto à questão indicada acima: defender

uma opinião pessoal de modo impessoal.

Page 186: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

522 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 519-546, set./dez. 2006

Argumentação e subjetividade no gênero ...

Tenho em vista, em conclusão, as aproximações para passar de um gêneroescolarizado a um gênero plenamente discursivo, pensando na alternativa para asubstituição daquele modelo.

2 UM MANUAL TÍPICO

A obra Desmistificando a redação (LOCKS; OLIVEIRA; OLIVEIRA, 1997) –que uso como exemplo de parâmetros para redação de vestibular – é um manualdirigido aos alunos de nível médio, potenciais candidatos ao concurso para ingressona Universidade. Esse manual traz algumas técnicas para redigir “dissertação”,pretendendo “desmistificar o medo e a angústia que precede o ato de escrever”, aolado da análise de algumas “boas redações” (com nota mínima oito) produzidas emvestibulares da Universidade Federal de Santa Catarina (1996-1997). Segue umasíntese da orientação fornecida para a organização dissertativa do texto.

1. Por dever de objetividade, ao transmitir sua mensagem (aos professorescorretores), o vestibulando, não pode usar a primeira pessoa. Assim, osestudantes não são orientados a se dirigirem a interlocutores, ainda quevirtuais, e não associam a escritura, nesse contexto, a funções interacionaisem esferas específicas da vida social.

2. Dissertar seria apresentar uma seqüência de idéias, juízos, conhecimentosetc., examinando-se um assunto, argumentando com provas, exemplos etc.,devendo explicitar-se uma posição (uma opinião) do redator. Embora sereconheça o caráter dissertativo do editorial de um jornal, do texto didático,do político, do científico, do religioso, o que se pede ao candidato ao vestibularé uma dissertação, um tipo idealizado tornado didaticamente independente.Aí ele deve explicitar sua posição, mas deixar de lado sua pessoalidade.Se considerarmos o princípio de que toda produção textual é constitutivamenteargumentativa, a dissertação escolar seria apenas uma organização abstrata,“útil” apenas para o treinamento de habilidades lógicas. Mas, conforme omanual, a dissertação preencheria todas as condições para apontar ocandidato intelectualmente maduro para um curso universitário: o quedemonstra habilidades de linguagem envolvendo o raciocínio lógico; conheceas normas de uso de sua língua e compõe textos formais.

Page 187: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

523Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 519-546, set./dez. 2006

Furlanetto

3. Algumas recomendações focalizam o que deve ser evitado numadissertação; de modo especial, um candidato não pode expressar seudescontentamento com instituições ou pessoas públicas. Ora, é difícilimaginar como tratar um tema valendo-se apenas de uma intertextualidadedifusa, abdicando do próprio julgamento das questões a debater, paraalinhar-se a um julgamento que supostamente será aceito nascircunstâncias. Nesse caso, o que se recomenda é que haja um apagamentodo que Bakhtin chamou “acento apreciativo”.

O julgamento “pessoal” do redator não deveria, também, valer-se de certasformas verbais: o candidato não pode achar (atitude humilde demais para umjulgamento positivo), mas apenas asseverar, tirar conclusões lógicas de suas premissas.

Obrigados a generalizar, pressionados a não polemizar com instituições nemcom figuras públicas, os estudantes escrevem (impessoalmente) “a humanidade”,“o homem”, “as pessoas”, “o mundo”, “todos”, “pouca gente”. Ainda assim, aconstrução subjetiva deixa traços. Apesar do controle e da submissão aparente, épossível detectar estratégias subjetivas que se sobrepõem ao apagamento.

Ao explorar metodologias de ensino da produção de textos, Bonini (2002)considerou os seguintes métodos5, de 1960 até hoje: retórico-lógico, textual-comunicativo, textual-psicolingüístico e interacionista. Importa-me aqui delinearapenas o primeiro, que apresenta estas características (cf. p. 28-30):

a) a produção se restringe à escrita, tratada como forma de organizar opensamento;

b) aprender a escrever corresponde a conhecer regras da gramática deuma língua;

c) o modelo do produtor de textos é o escritor de literatura;

d) o “dom” para escrever é um atributo fundamental do redator;e) o essencial no ensino é a correção feita pelo professor, que imprimiráao texto a direção apropriada;

5 O autor propõe essa divisão sem determinismo, apenas como possibilidade de refletir sobre o assunto.

Page 188: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

524 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 519-546, set./dez. 2006

Argumentação e subjetividade no gênero ...

f) a técnica específica para ensino é a apropriação de esquemas (modelos)de texto (narração, descrição, dissertação).g) o objetivo na produção de textos é o treinamento de estruturas.

Esta abordagem, como lembra Bonini, continua presente na prática docenteatual, embora apareça mesclada com teorias mais recentes. No caso de “vestibular-padrão”, como caracterizado acima, é o que se observa. Há que notar também queo esquema usado no ensino ainda é o da retórica antiga (mas quem aprende retóricano ensino médio?).

3 RETÓRICA(S)

Se vivemos numa época em que a retórica retoma sua força, emborapermaneça na palavra uma ressonância negativa de palavreado pomposo e inútil(que tem raízes bem distantes), é notável como o esquema defendido para aapresentação de um “texto argumentativo” reflete aquele que aparecia na retóricaantiga (a partir de Aristóteles6): a estrutura do discurso7 judiciário tem umaintrodução (o exórdio), segue com a narração dos fatos, feita do ponto de vista deuma das partes em causa; a narração constrói fatos sobre os quais será desenvolvidaa argumentação, completada pela refutação de posições contrárias. O discursofecha com uma conclusão (peroração), que recapitula os pontos essenciais ereafirma a posição do narrador-argumentador (v. PLANTIN, 1996, p. 9).

Os procedimentos para a construção desse discurso abrangiam cinco etapas:

a) invenção – busca, pelo pensamento, de argumentos pertinentes noexame de uma causa;

b) disposição – ordenação textual dos argumentos, com base em certoscritérios;

c) elocução – a argumentação pensada é posta em frases;

6 Por questão de justiça, segundo explicita Plantin (1996), não se pode esquecer o trabalho dos sofistas, que já noséculo V e início do IV a.C. submetiam a uma crítica corrosiva as concepções éticas e sociais que prevaleciam emsua época, objetivando o exercício da cidadania. Contudo, por força das deformações impostas a seu pensamentoe a sua prática, eles ficaram com má reputação. É assim que, para Platão, retórica se confunde com sofística.

7 Entenda-se discurso no sentido tradicional do termo, conforme explica Plantin (1996, p. 8): “[...] um conjuntode atos de linguagem planificados, finalizados, dirigindo-se a um público num quadro institucional preciso”.

Page 189: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

525Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 519-546, set./dez. 2006

Furlanetto

d) memorização do discurso, que será exposto em público;

e) ação – a apresentação pública do orador (gesto e voz são elementoscentrais).

Fazendo um retorno à história da constituição da disciplina Língua Portuguesa,é possível entender por que, no ensino de língua portuguesa, persistem os esquemasque consideraríamos “ultrapassados”. Soares (2000) explica que só a partir daReforma de Pombal (1759) o ensino do português se tornou obrigatório, mas,seguindo a tradição do latim, realizou-se como ensino de gramática, ao lado doensino da retórica e da poética – até o final do Império. Quando o conteúdo gramaticalda disciplina ganhou o rótulo de Português, isso não significou nova postura teóricaou metodológica: até os anos 40 do século XX não houve mudança substancial nosestudos de língua. O conhecimento sobre a língua “[...] era aquele transferido doconhecimento da gramática do latim, da retórica e da poética aprendidas de e emautores latinos e gregos” (SOARES, 2000, p. 213). Essa sólida tradição, como sepercebe, ainda não foi superada pelas teorias desenvolvidas principalmente a partirda década de 80, ainda que várias disciplinas das ciências da linguagem tenham sidointroduzidas nos currículos de formação de professores e muitas de suas propostasestejam sendo aplicadas ao ensino de português.

Essa busca de novas orientações não invalida, contudo, o estudo daargumentação, que impregna todas as práticas sociais. As tendências mais recentesno estudo da argumentação inscrevem-se no campo da Pragmática, como disciplinaque focaliza o uso dos enunciados em contexto. Vou ressaltar aqui a SemânticaArgumentativa, pela importância que atribuiu aos operadores de argumentação eaos conetivos oracionais (conjunções), associados, posteriormente, à teoria dostopoi (cf. ANSCOMBRE, 1995).

4 SEMÂNTICA DA ARGUMENTAÇÃO

É pressuposto da Semântica Argumentativa que a orientação argumentativa jáse encontra na “língua” – ou melhor, aparece primeiramente na língua. Assim, o sentido

é entendido como a orientação que a enunciação (do enunciado) fornece ao interlocutorpara que a interpretação se processe e se produza eficácia. Ou seja: não se devecompreender o sentido como correspondência a uma realidade, física ou mental, mascomo a orientação que certos elementos fornecem para que se obtenha certa conclusão.

Page 190: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

526 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 519-546, set./dez. 2006

Argumentação e subjetividade no gênero ...

“Significar, para um enunciado, é orientar. De modo que a língua, na medida em quecontribui em primeiro lugar para determinar o sentido dos enunciados, é um doslugares privilegiados onde se elabora a argumentação” (ANSCOMBRE; DUCROT, 1983,prefácio; tradução minha). No caso dos elementos que articulam seqüênciasenunciativas, ver-se-á que eles estão a serviço de uma “intenção” argumentativaespecífica, remetendo ao conjunto de elementos de um texto.

Um caso típico, e dos mais estudados por Anscombre e Ducrot, é aquele domas argumentativo, cujo uso muda a orientação de argumentação. Temosenunciações argumentativamente diferentes no caso de:

a) Esse restaurante é bom (= P), mas é caro (= Q)

b) Esse restaurante é caro (= P), mas é bom (= Q)

Em (a), a construção pode levar à interpretação (conclusão) de que não serecomenda o restaurante a quem não tenha dinheiro disponível (restrição); aconstrução também pode ser interpretada como uma insinuação ao interlocutor deque o restaurante não pode ser freqüentado por “qualquer um”; em (b), apresenta-se uma restrição inicial (alerta) que se torna secundária em seguida, podendo-seinterpretar o enunciado como uma recomendação (eventualmente insistente) parair ao restaurante. É pelo sentido de restrição que aparece aí que tradicionalmente(re)conhecemos o mas como uma conjunção adversativa – o que, no entanto, dizmuito pouco de suas possibilidades enunciativas.

Mais recentemente, retomando a análise do conector mas, Ducrot (1998)enfatiza que, mantendo o quadro geral de sua explicação, há vários modos de mas Q

contrariar P. Vou apenas sublinhar que os efeitos de sentido são múltiplos, e Ducrot,atentando para as condições de produção do discurso, assinala:

[...] os valores semânticos que eu atribuo às palavras consistem somenteem “orientações argumentativas”. O sentido das palavras consistesimplesmente em instruções sobre o tipo de continuação a dar ou a nãodar aos enunciados em que as palavras aparecem, sobretudo o modo comose pode ou não se pode concluir a partir delas. [...] O valor lingüístico [daspalavras] consiste inteiramente, do ponto de vista semântico, em um apeloà interpretação. O sentido lingüístico não é feito, se se pode dizer, senão deburacos, acompanhados de diretivas quanto ao modo de preenchê-los.(1998, p. 35, tradução minha)

Page 191: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

527Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 519-546, set./dez. 2006

Furlanetto

A visão da argumentação com base nos operadores é matizada e desdobradacom o aporte da teoria polifônica da enunciação, que permite relacionar as seqüênciasarticuladas pelos operadores a posições ou perspectivas (pontos de vista) captáveis nointerior dos enunciados, explicitando as relações tensas entre eles, na medida em que,a partir de um locutor8, é possível mostrar vários enunciadores, com os quais o locutornão concorda necessariamente, podendo, mesmo, estar em confronto direto com eles.

Assim, retomando os exemplos anteriores

a) Esse restaurante é bom (= P), mas é caro (= Q)

b) Esse restaurante é caro (= P), mas é bom (= Q),

pode-se interpretar as seqüências P, enunciadas por um locutor (L), comoperspectiva de um enunciador (E) que será marginalizada por L, que defende aposição correspondente à perspectiva de outro enunciador (E2), que coincide coma do próprio locutor. Pode-se supor que um modo de refinar a percepção dasperspectivas que podem estar presentes em um texto é, pedagogicamente, identificá-las e levar os alunos a trabalhar melhor com elas na argumentação, orientando paraatitudes possíveis relativamente a essas perspectivas.

O conceito de topos, que aparece como um elemento regulador “entre alíngua e o discurso”, matizou e deu maior consistência à teoria da argumentação (v.DUCROT, 1989, 2002). Os valores argumentativos estariam vinculados a certoselementos da estrutura lingüística que são desencadeadores de topoi, legitimando aaplicação de um ou vários topoi, que conduzem a outro enunciado implicando novoconteúdo – envolto em valores.

Compreender a argumentação na língua implica admitir que ela funcionasob o princípio do topos: nesse sentido, os “operadores” em geral (não apenasconetivos, mas também nomes substantivos, adjetivos e advérbios) são partículas dalíngua que remetem aos topoi (manifestando pontos de vista de enunciadores),que, implícitos na enunciação do enunciado, possibilitam a passagem a umaconclusão. O topos aparece, pois, como princípio do encadeamento argumentativo.Isso também significa que se está dialetizando o interior (da língua) e o exterior:não são apenas condições internas à língua que determinam as possibilidadesargumentativas.

8 O “sujeito empírico”, como figura externa ao discurso, não tem lugar na teoria.

Page 192: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

528 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 519-546, set./dez. 2006

Argumentação e subjetividade no gênero ...

O sentido não se constrói diretamente pela relação linguagem/mundo, maspelos encadeamentos discursivos formulados, apontando para o outro (sujeito). Há,pois, uma atitude deslocada do processo de referência em direção às possibilidadesde formulação discursiva, o que qualifica como discursiva a semântica argumentativa.O fenômeno enunciativo passa a ser, antes de mais nada, um exercício de produçãode realidade(s).

Para encontrar a orientação argumentativa é preciso, então, explorar os topoi

convocados. A argumentação, com base nisso, se descreve a partir dos enunciadores

apresentados no discurso. Os topoi pressupõem sempre um enunciador, virtual ounão. Eles representam “evidências”, vozes na sombra, algo que é fundamento sem quedisso, em geral, o locutor se dê conta; funcionam como uma espécie de acordo queserve de premissa (de caráter cultural) – uma memória discursiva. Assim é que ooperador argumentativo funciona de modo suplementar durante o percursoenunciativo realizado. As indicações primárias de interpretação são fornecidas pelostopoi, que impõem, no contexto, relações e trajetórias possíveis para o “acabamento”do texto, dando-lhe um tom menos ou mais polêmico.

Dada a sua função para os antigos (cf. os Tópicos de Aristóteles), os lugares(topoi), premissas de ordem muito geral, podiam ser vistos como “lojas de argumentos”.Eles constituem “um arsenal indispensável” para qualquer processamento discursivo.Aristóteles distinguia lugares comuns (aptos a funcionar para qualquer ciência) elugares específicos (de uma ciência particular ou de um gênero oratório).

Nos Tópicos Aristóteles estuda todos os lugares capazes de fundar silogismosdialéticos ou retóricos. Os lugares mais gerais são aqueles que mais atraem a atençãodos estudiosos, por seu pretenso caráter de universalidade (seriam menos discutíveis),mas os mais particulares podem fornecer características de uma sociedade ou mesmode regiões de uma nação. Por outro lado, mesmo aos lugares considerados mais geraisse poderia opor um lugar adverso: quanto mais se trabalha mais se ganha x quanto

mais se trabalha menos se ganha. Essas “verdades” subterrâneas e desencadeadorasde pensamentos e ações também têm uma história e fazem parte de uma cultura.Ducrot (1989, p. 38) afirma: “[...] a mesma língua pode ser utilizada por coletividadesque admitem topoi contrários [...]. O que é necessário é a existência de topoireconhecidos pela coletividade”.

Com os topoi “algo fala” em nossa fala, mas é a situação argumentativa que dáo tom e o estilo às vozes convocadas para funcionar como cenário. Ducrot (cf. MOURA,1998) tende a ver nos topoi “conjuntos sem limites precisos” de relações complexas

Page 193: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

529Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 519-546, set./dez. 2006

Furlanetto

(entre palavras); ele também usa a expressão “fontes de discurso”, que faz lembrar oconceito de interdiscurso, tal como concebido na Análise do Discurso. As estruturasfrásticas e os elementos lexicais exercem coerção sobre os encadeamentosargumentativos na medida em que é ali que estão os topoi: entre a língua e o discurso.

Como cada topos corresponde a uma perspectiva, a um enunciador possível,aqui está implicada a teoria polifônica. A palavra gratidão, por exemplo, evoca umtopos como “um favor feito merece reconhecimento”. Mas, se a argumentação podeestar já no léxico, as palavras trazem apenas potencialidade para significar; elas sófuncionam efetivamente, produzindo sentido, quando se materializam em enunciados.Assim é que as palavras passam a ser encaradas, na teoria, como “feixes de topoi”(v. ANSCOMBRE, 1995), o que remete a multiplicidade significativa, aberturaconstitutiva para a formulação discursiva, polifonia que atravessa o texto. Serão osencadeamentos, em última análise, que permitirão um relativo fechamento para aobtenção de certa eficácia argumentativa, num jogo em que a língua, de um lado,pressiona o sujeito locutor, e em que o locutor se vê jogando com a língua, observandosuas potencialidades e fazendo suas opções (nem sempre com sucesso).

Retornando mais uma vez aos dois exemplos estudados antes,

a) Esse restaurante é bom (= P), mas é caro (= Q)

b) Esse restaurante é caro (= P), mas é bom (= Q)

ver-se-á que nas duas seqüências P um enunciador formula um ponto de vistaque convoca topoi. Para (a): “um restaurante bom é um local onde se deve ir”; épossível entender a seqüência enunciada como um convite ou uma recomendaçãopara ir ao restaurante; dado que o locutor enuncia a seqüência, há uma concordânciaquanto ao topos; dado que o mesmo locutor enuncia também Q (“é caro”), ele enunciaoutro ponto de vista, que se vincula a outro topos (“um restaurante caro deve sermantido à distância”); dado que cada topos nas seqüências aponta para conclusõesdiferentes, o locutor resolve o impasse da des-orientação optando pelo mas que introduzQ, que marginaliza, na argumentação, o primeiro topos. A partir dessa escolha,restringem-se as possibilidades de conclusão para o que é enunciado. Para (b), bastainverter o processo, e se terá uma orientação diferente no processo argumentativo9.

9 Não vou fazer intervir aqui a propriedade de gradualidade dos topoi, nem aquela, correlata, das formas tópicas.

Page 194: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

530 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 519-546, set./dez. 2006

Argumentação e subjetividade no gênero ...

É perceptível, na argumentação tecida até aqui, que a (inter)subjetividade éum elemento-chave na produção de texto. É o fator subjetivo que estabelece a própriapossibilidade de um efeito objetivo e impessoal. Exploro, na próxima seção, facetas dasubjetividade, deslocando-me para o campo da Análise do Discurso, pensando atextualidade em seu caráter de discursividade, tendo como meio e tema a argumentação.

5 SUBJETIVO E SUBJETIVO

Bréal (1992), no clássico Ensaio de semântica, afirma que é da natureza dalinguagem permitir que às reflexões sejam associados os sentimentos pessoais, fazendouma analogia com o que acontece no sonho: quem sonha é, ao mesmo tempo, autordos acontecimentos e espectador interessado – o sonho que sonha lhe diz respeito.Assim, o sujeito é, desde o início, clivado: é autor e espectador, e esse fenômeno subjetivoestá no campo mesmo da semântica (não é acrescentado através de outro componente).A posição de Bréal prenuncia as teorias da enunciação, através da percepção do“desdobramento da personalidade humana” (p. 160). Ele procura mostrar, pela tessiturahistórica das palavras, o atravessamento subjetivo, referindo-se também ao tom da voz,ao aspecto da fisionomia e à atitude do corpo (cf. p. 60). Hoje, através do conceito deethos10, também se fala em tom do texto escrito. Até mesmo na formulação de umsilogismo, diz Bréal, “[...] as conjunções que marcam os diferentes membros do meuraciocínio dizem respeito à parte subjetiva” (1992, p. 158).

Encontro, nessa releitura que faço de Bréal, um argumento para a tese sobrea subjetividade que atravessa um “texto argumentativo”, ainda que ele se formule demodo aparentemente neutro, impessoal.

10 A palavra ethos vem da Retórica de Aristóteles: imagem que um orador dá de si através de seu modo de falar(tom, gestos, comportamento geral). A noção foi explorada na análise do discurso por Maingueneau, que entendeque qualquer discurso pressupõe um ethos, implicando certa representação do corpo do enunciador (v.Maingueneau, 1997). São palavras de Maingueneau, num artigo específico sobre o ethos: “Na minha opinião, anoção de ethos é interessante pelo elo crucial que entretém com a reflexividade enunciativa, mas também porquepermite articular corpo e discurso para além de uma oposição empírica entre oral e escrito. A instância subjetivaque se manifesta através do discurso não se deixa conceber somente como um estatuto, mas como uma ‘voz’,associada a um ‘corpo enunciante’ historicamente especificado. Enquanto a retórica ligou estreitamente o ethosà oralidade, em lugar de reservá-lo à eloqüência judiciária ou mesmo à oralidade, pode-se afirmar que todo textoescrito, ainda que ele a negue, possui uma vocalidade específica que permite remetê-lo a uma caracterização docorpo do enunciador (e não, bem entendido, do corpo do locutor extradiscursivo), a um aval que, através de seutom, atesta o que é dito; o termo ‘tom’ apresenta a vantagem de valer tanto para o escrito como para o oral”(tradução minha). Disponível em <http://perso.wanadoo.fr/dominique.maingueneau/contents2.html>.

Page 195: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

531Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 519-546, set./dez. 2006

Furlanetto

O que quero salientar é o conflito que deve ser discutido, estabelecendo-se,a par da noção de impessoalidade que se dá como padrão no “texto dissertativo”, acompreensão do caráter de subjetividade tal como tem sido discutida na Análise doDiscurso (AD), a tensão que se cria no jogo objetivo/subjetivo e a qualidade possívelde particularidade para o (tradicional) texto dissertativo, contraposto à conformidadeque marcaria o “assujeitamento”.

Sem entrar em detalhes sobre a história da evolução do conceito de sujeitona AD11, diga-se que, dado o princípio de interpelação ideológica adotado por Pêcheux(cf. 1988), com base em Althusser (Aparelhos ideológicos de Estado, de 1970) (cf.ALTHUSSER, 1996), e a idéia de clivagem, de divisão subjetiva, por influência dapsicanálise, chegou-se a uma concepção de sujeito que se marca principalmentepelo lugar social ocupado – por uma posição material lingüístico-histórica, que terápeso substancial na produção de sentidos. “[...] ao enunciar ‘eu’ (ou então o seunome próprio, seja ele qual for) o sujeito já se encontra assujeitado, mostra umainserção na língua que é, também, uma inserção na história enquanto processo deprodução de sentidos” (MARIANI, 2003).

Entretanto, esse “eu” (que se dá como ego-imaginário), essa instância que étida como ilusória porque sua representação seria um simulacro de unidade (ilusão),também é aquele que permite sustentar e direcionar o discurso, e é nessa instânciaque pode construir-se como autor, pondoem parginalizar nar como autor.tor.ionar odiscurso, e à margem (“esquecendo”) sua fraqueza, seus lapsos, sua dependênciaàquilo que desconhece12.

É nesse sentido que, para analisar a subjetividade, retomo em síntese o queSouza (2003) discrimina como “assujeitamento” e “subjetividade”. Souza mostra queo processo de assujeitamento também é o lugar em que é possível resistir, medianteum deslocamento da ordem discursiva em que se dá a dominação – daí que ele afirmea simultaneidade de atividade e passividade no processo discursivo relativamente auma formação discursiva13. Souza debate o problema apelando para a idéia de“diferentes temporalidades enunciativas” de constituição subjetiva, ou seja, diferentespossibilidades de manifestar a subjetividade, por formas plurais de “transgressão”.

11 Isso tem sido amplamente discutido na área; v., por exemplo, Indursky (2000).12 Para defender esta tese, estou revertendo a argumentação a respeito do “assujeitamento” ao simbólico e ao

ideológico, sem, contudo (também por coerência), eliminar essa instância. Trata-se de dar um lugar, agora re-significado, ao estatuto do ego-imaginário.

13 Ou seja, um “espaço“ discursivo ordenado por certas regras que restringem o que dizer e como dizer.

Page 196: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

532 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 519-546, set./dez. 2006

Argumentação e subjetividade no gênero ...

O que entendo por “subjetivo e subjetivo”, nesta seção, corresponde àdistinção que Souza faz entre assujeitamento e subjetividade14. Fique descartada,desde logo, a imagem de que exista “[...] um eu verdadeiro reduzido ao nichooriginário de sua existência” (SOUZA, 2003, p. 38). Comentando Foucault, o autorestá interessado em fixar-se nas práticas de autoformação do sujeito, que configuramuma “estética da existência”. Lembra que, para isso, é impraticável partir de umsujeito pré-conformado, socialmente já rotulado (negro, sem-terra, louco...), vistoque tais identificações são já o resultado de relações e práticas, “quer de dominação,quer de libertação”. Assim, Souza estabelece que uma operação dominadoraproduzirá o assujeitamento (ser sujeito a), e que uma operação libertadoraproduzirá a subjetivação (ser sujeito de). É aqui que está implicada a categoria deresistência, e a questão relevante é saber qual “a dinâmica das práticas que podemser lidas como resistência” (p. 41), resultando em formas novas de ser sujeito.

O apelo ao “eu” é apenas um sintoma lingüístico da resistência. Resistir,como define Souza, é deixar-se afetar por outras forças que não o modo atual/presentede reconhecimento de si, que é efeito do assujeitamento. Se não há como não estar(de algum modo) assujeitado, há formas outras que podem delinear-se como modos(novos) de exercer a subjetividade, de projetar a construção de si.

Voltando ao problema delineado na introdução deste trabalho, pode-seperguntar: o que acontece na formulação da dissertação escolar? Os estudantes sesubmetem às fontes normativas que regulam sua manifestação de linguagem,respeitando as regras do jogo? Há, certamente, a imposição de certas diretrizes, e,ainda que inconscientemente, um estudante pode romper a barreira da imposição –mesmo que isso signifique reprovação (por sua rebeldia ou “má sorte”). Quando oscritérios são rígidos, pouca tolerância será encontrada. O conflito é visível.

Pode-se mostrar esse conflito (que não existe apenas para os estudantes)através da seguinte síntese, que apresento a partir de Faïta (1997), quando exploraa noção de gênero em Bakhtin. Ele diz: “A mola fundamental do processo paradoxalde produção do sentido reside na soma das contradições que asseguram a motricidadedo diálogo” (p. 173).

Essas contradições são:

14 Quando se diz, em outros contextos, que se deve ser sujeito de seu discurso, penso que o que se propõe é levara uma atitude de forçar para além do condicionamento em busca de algo particular.

Page 197: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

533Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 519-546, set./dez. 2006

Furlanetto

a) individualidade da produção x dimensão social do ato: o locutor deixasuas marcas no enunciado, mas ele é apenas um dos atores do drama;

b) pregnância incontornável das normas x liberdade do projeto discursivo:os gêneros são recursos para pensar e dizer, mas têm características deformulação (que podem ser desviadas para a criação de novas formas sociais);

c) liberdade de criação x implicação do sujeito na relação triádica: o simesmo, o outro, as vozes todas que se enunciaram antes: isso se reflete narelação entre o acabamento do enunciado e a materialização da posição

do locutor.

As regras do jogo (procedimentos) para compreender e trabalhar essascontradições na construção dos textos – mesmo aqueles conformados aos tradicionaisgêneros escolarizados, como a dissertação – não têm sido expostas francamente.Em vez delas, o que se vê ainda são instruções rígidas que tendem a sufocar amanifestação subjetiva, apenas submetida a coerções. Isso quer dizer, por extensão,que a “liberdade” de projetar discurso se reduz a um dom ou a uma feliz casualidade.Essa questão, que envolve o conceito de bipolaridade em Bakhtin, será esmiuçadana próxima seção (análise de uma “dissertação”).

6 APONTANDO A SUBJETIVIDADE

O relato de Silveira (1998) que comentei na introdução deste trabalho é umbom exemplo da forma conflituosa com que um tema para dissertar é apresentadoaos estudantes. No caso, tratava-se de uma estratégia para dar espaço à subjetividadee evitar que o redator permanecesse em generalizações. Era um convite para narrar

e refletir a partir da narração. Uma vez que narrar pode ter soado aos estudantescomo algo literariamente subjetivo, a ser embutido numa dissertação, suponho queeles tenham experimentado grande tensão. Seria como expor e equilibrar dois“gêneros” num único texto.

Porém, independentemente desse cuidado de inserção explícita dasubjetividade, os traços que permitem uma leitura, ainda que relativamente apagadosou des-orientadores – na medida em que se considere que há lacunas ou mácondução –, estão ali a indicar, no mínimo, a ansiedade, a falta de recursos, a distância

Page 198: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

534 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 519-546, set./dez. 2006

Argumentação e subjetividade no gênero ...

de um interlocutor, o exercício de uma língua que aparentemente só os outrosparecem conhecer. Será sempre complicado estabelecer conversa com uma não-pessoa (a secretária eletrônica, representante de um ausente, é desconcertante).

Admitindo o princípio da alteridade subjetiva, situações semelhantes provocamuma falta crucial que deixará marcas nos textos – e elas não são necessariamenteaquelas que, por imposição, aparecem separando o sujeito de seu dizer. O que tolhea escritura é o peso da simulação e a perene sensação de estar no vazio; é a forteimpressão de que se forja a argumentação (imprime-se uma direção) para nada eninguém. O efeito global de textos produzidos em tais condições é de exposição: ojogo da argumentação com efeitos contrastantes típicos comumente não aparece(“a que ponto de vista estou me opondo?” “Com quem me alinho?” “De que podereilançar mão para direcionar este e não aquele interlocutor?”).

Isso tudo, entretanto, não impede a escolha – a boa ou a má, nascircunstâncias. Em Desmistificando a redação, manual que comentei anteriormente,aparece transcrito um texto de estudante que tematizou justamente suaimpossibilidade (resistência?) de levar a sério as exigências do concurso vestibular,optando por dirigir-se (eu diria que realmente e ficcionalmente) a quem fosse ocorretor de seu texto, tratado como “caro PHD”: “Posso ver teu rosto cansado pelotrabalho exaustivo de correção de nossas ‘preciosidades literárias’”. O texto da “carta-desabafo” (assim categorizado) foi considerado bem elaborado, mas a reprovaçãoera fatal: seu autor fugiu ao esquema da dissertação e não havia o número necessário(?) de linhas. Talvez essa tenha sido a forma exemplar de resistência de quem tinhao que dizer a um interlocutor real. Sua criatividade não foi legitimada, mas é possívelque a argumentação tenha sido reconhecida e tenha feito pensar.

Emmanuel Lévinas, que trata filosoficamente a relação intersubjetiva numaabordagem ética, diz:

O discurso impessoal é um discurso necrológico. [...] a transcendência dointerlocutor e o acesso a outrem pela linguagem manifestam que o homemé uma singularidade. [...] A generalização é a morte. Ela faz o eu entrar e odissolve na generalidade de sua obra. A singularidade insubstituível do eudecorre de sua vida. (LÉVINAS, 1997, p. 49, 49-50, 51)

No âmbito da obra de Bakhtin, o que corresponde a isso seria: “A línguapenetra na vida através dos enunciados concretos que a realizam, e é também atravésdos enunciados concretos que a vida penetra na língua” (1992, p. 282).

Page 199: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

535Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 519-546, set./dez. 2006

Furlanetto

15 O texto faz parte do corpus analisado por Helena Cristina Lübke (2000) em sua dissertação de Mestrado. Aprofessora autorizou-me o uso de seus dados para pesquisa.

Para explorar o que foi discutido acima, trago uma dissertação de aluno deensino superior (8º período de Letras)15 elaborada segundo o esquema tradicional,mas no contexto de uma disciplina em que foram focalizadas as noções de texto e dediscurso, de coesão e de coerência, de operadores de argumentação – queobjetivavam fornecer elementos que estimulassem o uso mais crítico da linguagem.

Procedi a uma marcação diferenciada das várias expressões (sublinhadosimples, sublinhado duplo, e negrito para as palavras ‘progresso’, ‘mas’ e ‘aliás’),que será explicada no curso da análise.

O problema do desemprego nos centros urbanos

Desde Getúlio Vargas o Brasil tem sido o país do emprego. Nestes anostodos, investimentos massiços foram construindo um grande parque demanufaturas e transformação de matéria prima. O Brasil deixou de ser um paísagrário e tornou-se um país industrializado. [INTRODUÇÃO]

Em torno desse progresso um novo horizonte se delineava. Uma sociedadenova se formava com deslocamento do homem do campo para os centrosindustriais; um homem urbano, os operários, surge para acionar as máquinas.[INTRODUÇÃO]

Junto com este progresso acelerado vem a promessa de um país poderosoe sem problemas, mas [CONETIVO-CHAVE] nos últimos anos o sonho acabou.Aliás virou pesadelo. Agora a máquina dispensa o homem. O homem tãodependente de máquinas é dispensável. Elas fazem melhor e sozinhas.[DESENVOLVIMENTO]

Nestas circunstâncias um homem desolado vai para casa, porque só sabiaapertar botões. Viciou-se em ligar e desligar botões. Seu cérebro tornou-seextensão desse processo e agora ele vive uma orfandade desesperadora comoum bebê arrancado do seio da mãe. Não há mais lugar para este homem, ele semecanizou e a máquina tornou-se autônoma. [DESENVOLVIMENTO]

São conseqüências graves das quais não nos damos conta. A industrializaçãoimbecilizou o homem a um ponto de deixá-lo submisso à sua própria criação,bestificado ante sua obra. A maquinização cresceu, automatizou-se superandoa razão humana, e no mesmo processo, inversamente, o homem se infantilizouao limite da vassalagem. [DESENVOLVIMENTO]

Como diz Ferreira Gullar no seu Poema: “Não há vagas”. O homem urbanoestá no olho da rua e quem o demite é sua própria criação: a máquina, quecresceu e se multiplicou. [CONCLUSÃO]

====================

========================================

====================

========================================

====================

========================================

====================

====================

Page 200: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

536 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 519-546, set./dez. 2006

Argumentação e subjetividade no gênero ...

O texto se apresenta em cinco parágrafos, dos quais dois para a introdução,três para o desenvolvimento, um para a conclusão. Esse texto não parece diferirmuito de dezenas de outros produzidos em situação de vestibular, e há que se destacaraqui que faltava apenas um semestre para o estudante concluir a licenciatura. Osestudantes foram conduzidos a produzir a tradicional “dissertação”, embora sepretendesse orientar para a produção de sentidos em vários contextos de uso,permitindo a reflexão sobre os modos de formulação discursiva. Penso que, nascircunstâncias do acontecimento que foi a produção para esses alunos, a virtual oureal liberdade na produção não funcionou de fato. Às vezes a prática da liberdadenão é reconhecida, e então trilha-se o caminho mais batido.

Retomando Souza (2003), tal como discutido anteriormente, a questãorelevante é saber qual “a dinâmica das práticas que podem ser lidas como resistência”(p. 41), resultando em um modo de subjetivação, não de mero assujeitamento. Oautor entende que formas novas de subjetivação só são possíveis em regime deliberdade (p. 42). Passo, então, a algumas considerações sobre as possibilidades deleitura analítica que o texto abre.

Nessa dissertação, embora não haja muitos elementos de conexão explícitos– o que, no fundo, não é necessário –, e embora o tratamento seja impessoal, há umelemento-chave: o conetivo mas, que divide o texto em duas partes, e dá, considerandoo papel dos topoi associados aos vários segmentos, duas direções à argumentação –positivo (P) mas negativo (Q) –, predominando a segunda para a conclusão. Issosignifica que até a ocorrência de mas tudo conduz a uma interpretação em queprogresso é o termo-chave para idealizar um país (amarrando (cf. sublinhadosimples) país do emprego, investimentos, grande parque, país industrializado),através de etapas sucessivas que criam um novo sujeito – o operário, até aqui comuma ressonância positiva –, culminando na visão de um país com poder e semproblemas (promessa).

Para enfatizar a mudança, que se dá discursivamente num relance, o aluno,num crescendo, diz: “mas nos últimos anos o sonho acabou. Aliás virou pesadelo”.O pesadelo se contrapõe ao sonho, e passa a conduzir a formulação discursiva, semnenhum retorno a matizar o processo. Subjetivamente, houve um deslocamento: nopassado de que fala e no qual a posição subjetiva é de concessão, o estudante admiteo sonho e se alinha com ele. Terminado o sonho, é preciso mostrar por que se trataagora de um pesadelo: o operário (aquele que trabalha, que opera) perde o empregoe recebe o rótulo de “desempregado”; mais que isso, se desumaniza na “convivência”

Page 201: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

537Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 519-546, set./dez. 2006

Furlanetto

com a máquina, é imbecilizado, e vai além: fica órfão, abandonado (cf. as expressõescom sublinhado duplo: homem dependente, homem desolado, orfandade

desesperadora, etc.).O estudante disse apenas o que podia dizer, sem alternativa? Não só. Há aqui o

imprevisível; um exemplo marcante é a associação de Getúlio Vargas (para estabelecerum movimento) a Ferreira Gullar (para estabelecer o movimento contrário).

Para além desses contornos do jogo subjetivo, o estudante não segue oesquema da argumentação tal como idealizado pelos manuais: foco sobre o tema,enfoques (apresentados em parágrafos distintos), interpretação, explicitação atravésde opiniões, exemplos, provas, analogias, dados... O que pode justificar essa poucavariação de pontos de vista a discutir é a ausência de uma posição explícita com aqual o estudante pudesse debater16. Sem opção, ele não vê por que se debater tanto;além do mais, é lugar-comum (topos) conceber que a industrialização geradesumanização17. Diria que esse topos coordena o texto, apesar de queindustrialização, na parte introdutória, convoque preferencialmente um topos

associado a progresso.

Ainda assim, é preciso fazer escolhas. E, consciente ou não do processo, oestudante produziu um texto com uma simetria que talvez não se perceba facilmente:na primeira parte apela ao personagem Getúlio Vargas para introduzir um país quetinha futuro; na segunda, fecha com um poeta que tristemente anuncia amarginalização do operário, vencido pela máquina: “Não há vagas”. No trânsito entreessas duas partes emblemáticas do país, o estudante joga constantemente com areversão homem/máquina. É assim que, sem dizer “eu”, ele exerce a singularidade.Preso à posição de onde deve argumentar, ele mostra, contudo, rupturas, ainda quea mais visível – os erros gráficos e gramaticais – possa, através de um outro olhar (odo professor, também refletindo uma posição), receber condenação. E note-se quea ruptura na linha de argumentação ocorre dentro de um parágrafo, o terceiro dotexto e primeiro do desenvolvimento, onde aparece o mas.

16 Lembremos os jogos em sentido estrito: os opositores estão presentes, do outro lado, e é preciso saber quais osmelhores lances para vencer, presumindo os lances do adversário.

17 Nas outras 14 dissertações do mesmo corpus, das quais 10 têm o mesmo tema (desemprego nos centros urbanos),a avaliação (e a conseqüente direção escolhida para argumentar) é semelhante, embora encontremos matizescomo: esperança, crítica à globalização e às elites, propostas de solução (reforma agrária, atenção aos jovens,reformas estruturais), necessidade de estudo para enfrentar a competição. A preferência pelo tema “desemprego”parece indicar a preocupação dos estudantes com o próprio futuro.

Page 202: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

538 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 519-546, set./dez. 2006

Argumentação e subjetividade no gênero ...

Há estilo aqui? Sim (pensemos em estilo como componente do gênerodiscursivo na teorização de Bakhtin). Se dermos menos atenção aos erros(representantes de desvio da norma padrão), eis uma manifestação de estilo nãodesprezível. Há um modo de “fabricar” a subjetividade, talvez sem que o estudantetenha explicitado a estrutura que pudesse desejar – mesmo porque, teoricamente,todos sabem o que se espera de uma dissertação. A tessitura desta, em suma, mostraum esquema muito simples, em que as conexões foram feitas através de meiosvariados, mas especialmente pela escolha de um conjunto lexical distribuído nosdois movimentos que o texto atesta – conjunto que, mais ou menos nitidamente,joga com um conjunto análogo de topoi (lugares).

Devo admitir que este texto, a partir de sua aparência imediata muito comum,passou a ser visto como algo interessante e singular só depois que, em análise, procureientender sua elaboração, a “intencionalidade” presente nele – independentemente doesforço controlado de seu autor. Talvez ele se tenha dado conta disso como leitornecessário na atuação de revisor, como segundo ego. Sobre esse ponto, entretanto, nãohá nada que se possa dizer, já que não houve controle de reescritura.

Resta que o acontecimento (discursivo) que os sujeitos promovem é resultadode um trabalho, ainda que nem sempre seja realizado passo a passo por estratégiasexplícitas. Faltam, contudo, no contexto escolar, respostas (reais ou virtuais) de co-enunciadores, que são os elementos de monitoração para a motivação inicial de umdiscurso que se constrói, construindo por isso mesmo a própria imagem dos sujeitos(num jogo de pontos de vista).

7 O GÊNERO EM BAKHTIN: QUESTÕES DE BIPOLARIDADE

É nesse contexto de lacunas pedagógicas que se pode promover um desviono caminho metodológico e passar às possíveis transformações, dando sentido àprodução de textos. Limitarei o tema, nesta seção, às questões que remetem aoconceito complexo de bipolaridade em Bakhtin (1992), que reflete sobre o problema(evidente na escola) de como conciliar a exigência de estabilidade das sociedadescom a necessidade de adaptar-se a novas condições históricas.

A bipolaridade do texto implica o uso da língua como sistema convencional– com unidades relacionais portadoras de significação – e como enunciado, ouseja, irreproduzível e individual, construindo sentido (tema, em Bakhtin (1979)) –“seu desígnio, aquele para o qual foi criado” (1992, p. 331). Para Bakhtin, além de

Page 203: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

539Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 519-546, set./dez. 2006

Furlanetto

levar a compreender melhor noções acerca da vida verbal (“fluxo verbal”,“comunicação”), “o estudo do enunciado, em sua qualidade de unidade real da

comunicação verbal, também deve permitir compreender melhor a natureza dasunidades da língua (da língua como sistema): as palavras e as orações.” (1992, p.287). Só com relação ao enunciado é que se pode falar em verdadeiro, bom, belo,assustador, incrível... Este segundo pólo é inseparável do autor.

Clark e Holquist (1998) destacam a idéia de complementaridade entre sistemae fala (discurso) em Bakhtin e o conflito incessante entre “canonização eheteroglossia” – pela vitória de uma padronização (norma prescritiva) sobre asvariedades regionais e individuais do ponto de vista político. Mas, como o territórioda linguagem é compartilhado entre locutor e interlocutor, Bakhtin trabalha no sentidode mostrar como se dá essa repartição, como mostrar o jogo entre o um e o múltiplo.Bakhtin reconhece a existência como uma atividade incessante, uma enorme energiase produzindo no processo de forças por ela impulsionadas.

Tal energia pode ser concebida como um campo de força criado pelo embateininterrupto entre forças centrífugas, que se empenham em manter as coisasvariadas, separadas, apartadas, diferenciadas umas das outras, e centrípetas,que se empenham em manter as coisas juntas, unificadas, iguais. (CLARK;HOLQUIST, 1998, p. 35)

Assim, as primeiras levam ao movimento, à deriva, ao devir; as segundas resistemao devir, à história; levam à repetição, à idéia de ordem. Trata-se de uma constantedinâmica entre a língua (que se constrói) a partir do discurso e do discurso (que seconstrói) a partir da língua. É, aliás, nesse entremeio que se produzem os topoi.

O lugar para o estudo dessa atividade conflitiva (dialógica) é a elocução (ouenunciação, ou o enunciado)18. Estudar as forças centrífugas da linguagemrepresentava, no contexto em que Bakhtin viveu, uma tentativa de preencher a lacunacriada pela tendência ao estudo estruturalista das sistematicidades.

O enunciado, tal como tematizado por Bakhtin, é unidade de interaçãodiscursiva (diferente de palavras e orações), traduzindo vida social e experiênciassingulares. Para entender o acabamento (sempre relativo) do enunciado, o quepermite a identificação de um texto, três fatores estão ligados: o tratamento exaustivodo objeto do sentido; o querer-dizer do locutor (seu projeto enunciativo, dirigido a

18 É a esse estudo filosófico que se tem chamado translingüística.

Page 204: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

540 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 519-546, set./dez. 2006

Argumentação e subjetividade no gênero ...

outrem); a escolha e estruturação de um gênero, com a utilização de recursoslingüísticos. Só isso proporciona a possibilidade de resposta (cf. 1992, p. 299). Se oenunciado é individual e concreto, em algum grau isso implica o uso de um estiloindividual, embora seja difícil delimitar o que é uso corrente e o que é do indivíduo.A diversidade dos gêneros presume a delimitação de um estilo geral (de uma esfera)em relação a um individual – o que pressupõe que haja um estudo dos gêneros emsua diversidade (cf. BAKHTIN, 1992, p. 284).

Há um terceiro aspecto no jogo discursivo implicado pelo gênero: a questãoda “terceira pessoa”. Bakhtin afirma que compreender é tornar-se o “terceiro” numdiálogo, numa posição bem específica. Se um enunciado sempre tem um destinatário,de quem o locutor espera uma resposta, esse destinatário é um segundo; mas alémdele o locutor-autor pressupõe um superdestinatário (o terceiro), cuja compreensãoabsolutamente exata é pressuposta19, podendo adquirir uma identidade concretadependendo do tempo e da cultura (Deus – como ocorre na filosofia de Descartes –, a verdade absoluta, o bom senso, o povo, a ciência...). Então, a enunciação sedesenrola como se houvesse um terceiro personagem presenciando tudo e tudocompreendendo. Não é uma entidade mística ou metafísica, mas, como explicaBakhtin, “um momento constitutivo do todo do enunciado” (1992, p. 356). Essaposição especial é vista como abstrata, identificada com a “posição objetiva”, oconhecimento científico (p. 384). Neste ponto, Bakhtin (1992, Apontamentos 1970-1971), diz que se justifica essa posição quando os indivíduos são intercambiáveis(assumindo, então, que sujeitos diferentes podem ocupar as mesmas posições nasformações, o que acontece no caso das especializações – quando há abstração doeu e do tu, ou o eu se resume a um cargo específico: o professor de X, o engenheiro,o físico), ou seja, expressa uma parte separada do todo de sua pessoa.

Isto posto, permito-me dizer que, frente ao desafio de construir umadissertação, nos moldes apresentados em meu exemplo, o estudante pode estarsendo assimilado a uma figura abstrata homogeneizada nomeada estudante, cujaposição na academia se resume em repetir as formulações a partir de um modelo.Provavelmente é por isso que seu texto não é tomado como enunciado, mas comolíngua, unidade de signos. Nesse caso, como ressalta Bakhtin, tais signos “não podemser verdadeiros, nem falsos, nem belos” (1992, p. 353); em conseqüência desse

19 Suponho que ele funcionaria como a forma-sujeito correspondente ao saber de uma formação discursiva nocontexto da Análise do Discurso.

Page 205: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

541Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 519-546, set./dez. 2006

Furlanetto

pressuposto, eles não serão lidos e apreciados simultaneamente de modo centrípeto(em direção à ordenação, à prescrição) e centrífugo (em sua relação de aberturapara a realidade, para os enunciados alheios, para destinatários identificáveis,explorando a abertura dos sentidos).

Assim, observando nas dissertações em geral a precariedade da relaçãointerlocutiva, quanto à questão formulada na introdução deste trabalho, é visível quedefender uma opinião pessoal de modo impessoal é emblemático de um problemaque a escola e a academia não podem resolver de forma direta e simples, e retrata essejogo conflituoso de tentar equilibrar a força centrífuga e a força centrípeta, sabendo deantemão o estudante que o prato da balança vai pesar mais do lado desta última.

Isoladamente ou no conjunto do corpus, e ao olhar mais prescritivo (queisola erros sem explorar adequadamente as qualidades), o texto analisado acimanão será considerado satisfatório, sobretudo por ter sido produzido por um estudantequase licenciado. A pesquisadora que trabalhou com esse corpus (LÜBKE, 2000),tentando oferecer meios para estimular a produção, considerou que os estudantesnão foram muito além do preenchimento de um esquema, e que na maioria dostextos analisados não houve um real posicionamento na discussão.

Reiterando o que explicitei na seção anterior (análise), a constatada frouxamanipulação de pontos de vista se deve, pelo menos em parte, à ausência de umaposição explícita com a qual o estudante possa debater. Se um real problema forexposto, com especificação de posições que tenham de ser debatidas, talvez hajamais empenho dos estudantes em refletir sobre e defender uma posição comestratégias mais apropriadas. Com efeito, ao se ler essas redações, ainda que sejambem elaboradas, cabe perguntar: elas respondem a quê, se no fluxo real dos discursoso que temos é uma sucessão de perguntas e respostas (palavra e contrapalavra)?Geralmente elas “respondem” apenas a um comando para escrever, com umasugestão feita através de recortes selecionados. Há que lembrar, também, que taisprocedimentos têm de ser ensinados e aprendidos. Da mesma forma que não bastasaber a lista e a função específica de elementos de conexão para usá-losconvenientemente, também não basta explicar que certos operadores têm um papelimportante na argumentação.

Neste ponto, caberia pensar como passar de um gênero escolarizado aindatão cultuado a um outro que guardasse semelhanças e representasse uma alternativapromissora para o ensino. Neste momento, considerando as descrições e exploraçõesde que tenho conhecimento, o melhor exercício enunciativo para substituir a abstrata

Page 206: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

542 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 519-546, set./dez. 2006

Argumentação e subjetividade no gênero ...

dissertação escolarizada me parece ser o artigo de opinião, tal como explorado emRodrigues (2002) e em Maieski (2005).

8 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A julgar pelo que mostrei com a desmontagem e recomposição do texto Oproblema do desemprego nos centros urbanos, deve haver mais do que se estácomumente considerando quando se avaliam os textos escritos, e esse “mais” poderiaser também tema de debate nas aulas de língua portuguesa. Talvez aquele estudanteficasse espantado se tomasse conhecimento da forma como estruturou seu texto, eda legitimidade daquela arquitetura, bem como do que ali se pode apreciar comotoque de autoria, essa parte subjetiva que permite que a ilusão de unidade apareçano texto, tornando-o inteligível, válido para leitura.

Dadas as condições de produção que necessariamente atravessam seu texto,vê-se ali a tentativa de enquadramento, de bom comportamento; sua posição subjetivade candidato a uma licenciatura, no contexto universitário, demandava um mínimode reconhecimento à tradição da cultura da redação, ainda que, em perigosatransição, se esperasse dele “transgressão”, cujo resultado, no entanto, poderia nãoser satisfatório.

O efeito de singularidade, que responde, em algum grau, ao efeito de autoria,é, em última análise, a grande aposta para quem ensina e para quem aprende, emqualquer nível de ensino; mas, se os discursos que atravessam esses espaços têm oselo da novidade, a prática que deles emana por vezes responde a outro discurso, deautoridade outra, inflexível. Não é o caso de que devam confrontar-se, senão quesuas especificidades precisam ser negociadas para que um não desapareça emproveito do outro, em práticas que não se sustentem e que não façam efetivamentesentido. Aí, carece deixar tanta liberdade quanto possível para que a construçãosubjetiva se reflita nos muitos diálogos do cotidiano, e também nos muitos textos.

É nesse sentido que, explorando a perspectiva sócio-interacional e dialógicaque atravessa toda a obra de Bakhtin, Faraco (2003, p. 83) pode dizer:

O sujeito tem [...] a possibilidade de singularizar-se e de singularizar seudiscurso não por meio da atualização das virtualidades de um sistemagramatical (como quer a estilística tradicional), ou da expressão de umasubjetividade pré-social (como querem os idealistas), mas na interaçãoviva com as vozes sociais.

Page 207: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

543Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 519-546, set./dez. 2006

Furlanetto

A interação com as vozes sociais presume, para o exercício da autoria, umaintensa circulação que definirá, em algum momento e sempre como algo a renovar,uma identificação autoral. É ainda Faraco quem afirma que “autorar”, entre outraspossibilidades, é “assumir uma posição estratégica no contexto da circulação e daguerra das vozes sociais” (FARACO, 2003, p. 83).

REFERÊNCIAS

ALTHUSSER, Louis. Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado. In: I EK, Slavoj (Org.).Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996. p. 105-142.

ANSCOMBRE, Jean-Claude; DUCROT, Oswald. L’argumentation dans da langue.Bruxelles: Mardaga, 1983.

ANSCOMBRE, Jean-Claude (Dir.). Théorie des topoï. Paris: Editions Kimé, 1995.

BAKHTIN, Mikhail/VOLOSHINOV. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo:Hucitec, 1979.

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

BONINI, Adair. Metodologias do ensino de produção textual: a perspectiva da enunciaçãoe o papel da Psicolingüística. Perspectiva, Florianópolis, v. 20, n. 1, p. 23-47, jan./jun.2002.

BRÉAL, Michel. Ensaio de semântica: ciência das significações. São Paulo: EDUC;Pontes, 1992.

CLARK, Katerina; HOLQUIST, Michael. Mikhail Bakhtin. Tradução de J. Guinsburg. SãoPaulo: Editora Perspectiva, 1998 [Original ingl. 1989].

CONCEIÇÃO, Rute Izabel Simões. Da redação escolar ao discurso: um caminho a(re)construir. Linguagem & Ensino, Pelotas, v. 3, n. 2, p. 109-133, jul. 2000.

DUCROT, Oswald. Argumentação e “topoi” argumentativos. In: GUIMARÃES, E. (Org.).História e sentido na linguagem. Campinas: Pontes, 1989. p. 13-38.

______. Sémantique linguistique et analyse de textes. Cadernos de EstudosLingüísticos, Campinas, n. 35, p. 19-36, jul./dez. 1998.

______. Topoï e formas tópicas. In: ZANDWAIS, Ana (Org.). Relações entrepragmática e enunciação. Porto Alegre: Sagra Luzzatto, 2002. p. 10-21.

Page 208: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

544 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 519-546, set./dez. 2006

Argumentação e subjetividade no gênero ...

FAÏTA, Daniel. A noção de “gênero discursivo” em Bakhtin: uma mudança de paradigma.In: BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin, dialogismo e construção do sentido. Campinas:Ed. da UNICAMP, 1997. p. 159-177.

FARACO, Carlos Alberto. Linguagem & diálogo: as idéias lingüísticas do Círculo deBakhtin. Curitiba: Criar Edições, 2003.

FISCHER, Adriana. A caminho de um processo de produção de sentidos no EnsinoFundamental. In: BOHN, Hilário I.; SOUZA, Osmar de (Orgs.). Escrita e cidadania.Florianópolis: Insular, 2003. p. 113-135.

HEINIG, Otília L. de O. M. Quando produzir textos faz sentido para educador e educandos.In: BOHN, Hilário I.; SOUZA, Osmar de (Orgs.). Escrita e cidadania. Florianópolis:Insular, 2003. p. 89-111.

INDURSKY, Freda. A fragmentação do sujeito em Análise do Discurso. In: INDURSKY,Freda; CAMPOS, Maria do Carmo (Orgs.). Discurso, memória, identidade. PortoAlegre: Sagra Luzzatto, 2000. p. 70-81.

KÖCHE, Vanilda S.; PAVANI, Cinara F.; BOFF, Odete Maria M. O processo da reescrita nadisciplina de língua portuguesa instrumental. Linguagem & Ensino, Pelotas, v. 7, n. 2,p. 141-164, jul./dez. 2004.

LÉVINAS, Emmanuel. Entre nós: ensaios sobre a alteridade. Petrópolis: Vozes, 1997.

LOCKS, Maria de Lourdes Krieger; OLIVEIRA, Salma Ferraz de Azevedo de; OLIVEIRA,Sidneya Gaspar de (Orgs.). Desmistificando a redação. Florianópolis: Pallotti, 1997.

LÜBKE, Helena Cristina. Operadores argumentativos e efeitos discursivos emtextos de terceiro grau. 2000. 135 f. Dissertação (Mestrado em Lingüística) –Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2000.

MAIESKI, Márcio Norberto. O gênero do discurso artigo como objeto de ensino-aprendizagem: uma proposta de integração da prática de produção textual à leitura eanálise lingüística. 2005. 287 f. Dissertação (Mestrado em Lingüística) – Programa dePós-graduação em Lingüística, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.

MAINGUENEAU, Dominique. Os termos-chave da Análise do Discurso. Lisboa:Gradiva, 1997.

______. L’ethos, de la rhétorique à l’analyse du discours. Disponível em <http://perso.wanadoo.fr/dominique.maingueneau/contents2.html>. Acesso em 29 abr. 2004.

MARIANI, Bethânia. Subjetividade e imaginário lingüístico. Linguagem em (Dis)curso,Tubarão, v. 3, n. esp., p. 55-72, 2003.

Page 209: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

545Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 519-546, set./dez. 2006

Furlanetto

MOURA, Heronides M. de Melo. Semântica e argumentação: diálogo com Oswald Ducrot.D.E.L.T.A., São Paulo, v. 14, n. 1, p. 169-183, 1998.

PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas:Editora da Unicamp, 1988.

PLANTIN, Christian. L’argumentation. Paris: Seuil, 1996.

RODRIGUES, Rosângela Hammes. A constituição e o funcionamento do gênerojornalístico artigo: cronotopo e dialogismo. 2001. 347 f. Tese (Doutorado emLingüística Aplicada e Estudos da Linguagem). Programa de Estudos Pós-graduados emLingüística Aplicada e Estudos da Linguagem (LAEL), Pontifícia Universidade Católica deSão Paulo, São Paulo.

SILVEIRA, Rosa Maria Hessel. O processo de elaboração de textos: interpretando o“passar a limpo”. Linguagem & Ensino, Pelotas, v. 1, n. 2, p. 39-57, jul. 1998.

SOARES, Magda. Que professor de português queremos formar? Boletim da Abralin,Fortaleza, n. 25, p. 211-218, 2000.

SOUZA, Pedro de. Resistir, a que será que se resiste? O sujeito feito fora de si. Linguagemem (Dis)curso, Tubarão, v. 3, n. esp., p. 37-54, 2003.

Recebido em 20/01/06. Aprovado em 16/06/06.

Title: Argumentation and subjectivity in genre: the role of the topoiAuthor: Maria Marta FurlanettoAbstract: When a school teacher ask their students to write a “composition”, the students areexpected to present a problem and their points of view, and to develop a line of argumentation thatleads to a satisfactory answer to the problem. However, it is also expected that the student should beimpersonal. In this article I argue, from a discursive perspective, that writing always implies a choicewhich directs the writer’s interpretation, and that this choice depends on the use of certain operators.I then focus on the conflict between being impersonal and defending a point of view (opinion) –contrasting the model of school composition and the dialogic characterization of Bakhtin’s conceptof genre, and the resulting effects on both cases, in the hope of presenting a teaching alternative.Keywords: argumentation; genre; writing; subjectivity.

Tìtre: Argumentation et subjectivité dans le genre: le rôle des topoiAuteur: Maria Marta FurlanettoRésumé: Quand on propose une «dissertation» à l’école, on attend que l’étudiant présente unproblème et des points de vue, tout en argumentant pour donner une réponse satisfaisante auproblème. On exige qu’il soit, cependant, impersonnel. J’essaie de démontrer, du point de vuediscursif, qu’il y a toujours dans la production textuelle un choix qui conduit l’interprétation de

Page 210: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

546 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 519-546, set./dez. 2006

Argumentação e subjetividade no gênero ...

l’interlocuteur, se faisant important, ainsi, l’emploi de certains opérateurs. Je fais ressortir, alors, leconflit entre être impersonnel et défendre un point de vue (opinion) – tout en cherchant à mettreen contraste le modèle de la dissertation écolière et la carctérisation dialogique du concept degenre chez Bakhtin, et les effets qui en résultent dans un cas comme dans l’autre, ayant le butd’offrir une alternative d’enseignement.Mots-clés: argumentation; genre; production textuelle; subjectivité.

Título: Argumentación y subjetividad en el género: el papel de los topoiAutor: Maria Marta FurlanettoResumen: Cuando se propone una “disertación” en la escuela se espera que el estudiante presenteun problema y puntos de vistas, argumentando para dar una respuesta satisfactoria al problema. Seexige, sin embargo, impersonalidad. Intento demostrar, desde del punto de vista discursivo, quesiempre hay en la producción textual una elección para direccionar la interpretación del interlocutor,siendo relevante, para ello, el uso de determindados operadores. Luego, focalizo el conflicto entreser impersonal y defender un punto de vista (opinión) – poniendo en contraste el modelo de ladisertación escolar y la caracterización dialógica del concepto de género en Bajtín, y los efectosresultantes en un caso y en el otro, visando una alternativa de enseñanza.Palabras-clave: argumentación; género; producción textual; subjetividad.

Page 211: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

547Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 547-573, set./dez. 2006

Machado e Cristovão

A CONSTRUÇÃO DE MODELOS DIDÁTICOS DE GÊNEROS:

APORTES E QUESTIONAMENTOS PARA O ENSINO DE

GÊNEROSAnna Rachel Machado*

Vera Lúcia Lopes Cristovão**

Resumo: O objetivo central do artigo é o de traçar um quadro ilustrativo de pesquisas brasileirasdesenvolvidas para a construção de “modelos didáticos de gêneros”, de suas respectivas seqüênciasdidáticas e de trabalhos didáticos de intervenção desenvolvidos nessa perspectiva. Entretanto, limitar-nos-emos às que assumem a perspectiva do interacionismo sociodiscursivo (ISD), desenvolvidasno Programa de Estudos Pós-graduados em Lingüística Aplicada e Estudos da Linguagem (LAEL/PUCSP), mas, sobretudo, às que foram desenvolvidas e/ou orientadas por Machado e às que,posteriormente, foram desenvolvidos de forma autônoma por diferentes pesquisadores. Nesselevantamento, mostraremos a validade da utilização dos pressupostos teórico-metodológicos doISD que foram assumidos por esses pesquisadores, quais foram os gêneros trabalhados, os diferentesobjetivos perseguidos, as conclusões teóricas, metodológicas e/ou didáticas a que eles conseguiramchegar e as questões que ainda deixam em aberto.Palavras-chave: interacionismo sociodiscursivo; gênero textual; modelo didático; seqüênciadidática; pesquisa educacional.

L’ISD se conçoit comme un cadre de référence en permanence en

chantier, [...] un projet qui se construit collectivement...(BRONCKART, J.-P., 2004)

1 INTRODUÇÃO

O objetivo central que temos neste artigo é o de traçar um quadro ilustrativode algumas das pesquisas brasileiras e os trabalhos didáticos desenvolvidas no quadrodo interacionismo sociodiscursivo, inicialmente no LAEL – PUC/SP – foco pioneiroda introdução dessa abordagem no Brasil, desde o início da década de 90. Serãoenfocados especificamente os que foram desenvolvidos para a construção de “modelosdidáticos de gêneros”, de suas respectivas seqüências didáticas e de outras formas

* Professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Doutora em Lingüística Aplicada.** Professora da Universidade Estadual de Londrina. Doutora em Lingüística Aplicada.

Page 212: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

548 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 547-573, set./dez. 2006

A construção de modelos didáticos de gêneros...

de intervenção no ensino com base nesses modelos. De acordo com Machado (2005),esses estudos começaram com mais força nesse Programa, por volta de 1995(portanto, antes da edição dos PCN, em 1998), com pesquisas desenvolvidas porRojo, Magalhães e Machado, mesmo que com diferenças de abordagem e de objetivos.A partir daí, expandiram-se para diversos outros núcleos de pesquisa e de intervençãodidática, sobretudo após a edição dos PCN, o que lhes conferiu maior legitimidade evalorização no interior de nossa comunidade científica, quer seja pela adesão aosprincípios que os guiam quer seja pela oposição a eles.

Entretanto, neste artigo, limitar-nos-emos ao levantamento de pesquisasinicialmente desenvolvidas e/ou orientadas por Machado1 e, posteriormente, de formaautônoma, por diferentes pesquisadores que seguiram a mesma orientação emnúcleos espalhados pelo Brasil. Esses estudos, em geral, têm-se caracterizado porinvestigar diferentes gêneros em grande variedade de contextos sociais, tendo comoponto comum a sua característica intervencionista, no seu sentido mais amplo2 e,em especial, no campo do ensino de línguas. Uma outra característica comum é ofato de tomarem aportes desenvolvidos sobretudo por Dolz e Schneuwly (1998), noquadro da Didática de Línguas e da intervenção direta na educação suíça, em estreitarelação com a reflexão teórico-metodológica de Bronckart (1999 e ss.) sobre asquestões referentes ao desenvolvimento humano e sobre o papel da linguagem nessedesenvolvimento.

Para atingirmos nosso objetivo, o artigo apresenta a seguinte configuração:em primeiro lugar, apresentamos os pressupostos teóricos mais amplos do ISDque orientaram as pesquisas e os pressupostos propriamente didáticos sobre oensino de gêneros. Em segundo lugar, discutiremos os problemas que atransposição didática de qualquer objeto de conhecimento científico pode nostrazer. Em terceiro, enfocaremos a questão da necessidade da construção demodelos didáticos de gênero para a transposição adequada do conceito de gêneropara o ensino, os fundamentos que guiam essa construção e os passos que seguimospara chegar a ela. Em quarto lugar, apresentaremos as pesquisas e as intervençõesdidáticas que têm-se desenvolvido, mostrando sua relevância e originalidade em

1 Para um levantamento mais exaustivo, teríamos de desenvolver uma pesquisa muito mais ampla, que poderá serefetivada em outro momento.

2 Consideramos que elas se caracterizam por serem “intervencionistas” em um sentido mais amplo, uma vez quenão necessariamente elas estiveram direcionadas por uma intervenção direta nas escolas, mas como um trabalhopreparatório para possíveis intervenções.

Page 213: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

549Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 547-573, set./dez. 2006

Machado e Cristovão

relação aos que foram desenvolvidos pelo Grupo de Genebra. Finalmente, nasconclusões gerais, apontaremos os aportes dessa abordagem e os problemas queainda deixam em aberto.

2 O INTERACIONISMO SOCIODISCURSIVO E O ENSINO DE LÍNGUASCENTRADO NOS GÊNEROS TEXTUAIS

O interacionismo sociodiscursivo baseia-se em, integra e desenvolve a teoriapsicológica de Vygotsky, assumindo e defendendo cinco princípios básicos(BRONCKART, 2005), que, resumidamente, são os seguintes:

a) as ciências humanas teriam como objeto as condições dedesenvolvimento e funcionamento das condutas humanas;

b) todos os processos de desenvolvimento humano se efetivariam combase nos pré-construídos humanos, isto é, nas diferentes construções sociaisjá existentes em uma determinada sociedade;

c) o desenvolvimento humano se efetuaria no quadro do agir, isto é, todosos conhecimentos construídos são sempre produtos de um agir que serealiza em determinado quadro social;

d) os processos de construção dos fatos sociais e os processos de formaçãodas pessoas individuais seriam duas vertentes complementares eindissociáveis do mesmo desenvolvimento humano;

e) a linguagem desempenharia um papel fundamental e indispensável nodesenvolvimento, considerando-se que é por meio dela que se constróiuma “memória” dos pré-construídos sociais e que é ela que organiza,comenta e regula o agir e as interações humanas, no quadro das quais sãore-produzidos ou re-elaborados os fatos sociais e os fatos psicológicos.

Defendendo esses princípios de base, Bronckart (2004) enumera uma sériede objetos de pesquisa que deveriam ser considerados e caracterizados pelos estudosdo ISD, constituindo-se assim um verdadeiro programa de pesquisa para ospesquisadores que assumem essa abordagem. Esses objetos seriam os seguintes:

Page 214: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

550 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 547-573, set./dez. 2006

A construção de modelos didáticos de gêneros...

a) os pré-construídos sociais, dentre os quais teríamos as atividades sociais,as formações sociais, as línguas naturais e os gêneros de uma determinadasociedade;b) as características dos sistemas educacionais e formativos,institucionalizados ou não, que permitem a transmissão dos pré-construídossociais às novas gerações;

c) os mecanismos de apropriação e de interiorização por meio dos quaisos indivíduos constroem seus conhecimentos e sua identidade como pessoa.

Em relação aos gêneros de texto, Bronckart (2003) considera, como inúmerosoutros autores, que todo indivíduo de uma determinada comunidade lingüística, aoagir com a linguagem, é confrontado permanentemente com um universo de textospré-existentes, organizados em “gêneros”, que se encontram sempre em um processode permanente modificação e que são em número teoricamente ilimitado. Desde omomento do nascimento, a exposição contínua aos gêneros vai construindo nosleitores e nos produtores um conhecimento intuitivo das regras e das propriedadesespecíficas de diferentes gêneros, mesmo que de forma não consciente ou sistemática.Essas regras e propriedades acabam por ser apropriadas e, como em todos osprocessos de aprendizagem social, acabam por sofrer modificações contínuas,conforme Bakhtin (1992) assinala, quando define os gêneros como “formasrelativamente estáveis de enunciados”. Desse modo, estando em permanentemodificação, derivada não só das transformações das atividades sociais, mas tambémdas transformações introduzidas pelos próprios produtores, é só de um ponto devista teórico que podemos falar em “modelos de gênero”.

Por seu lado, trabalhando mais intensamente nas questões da Didática deLínguas, Schneuwly (1994) mobilizou a noção de gênero para seus objetivos depesquisa, fornecendo-nos uma das concepções mais vigorosas para a questão doensino-aprendizagem de gêneros e para a elaboração de materiais didáticosadequados. Em primeiro lugar, o autor nos relembra que, no quadro da epistemologiamarxista, que é assumida pelo grupo de Genebra, a atividade humana é concebidacomo sendo constituída por três pólos, envolvendo um sujeito que age sobre objetosou situações, utilizando-se de objetos específicos, sócio-historicamente elaborados,que se constituem como ferramentas para o agir. Essas ferramentas determinariamo comportamento do indivíduo, guiando, aperfeiçoando e diferenciando suapercepção da situação em que se encontra e dos objetos sobre os quais atua. Em

Page 215: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

551Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 547-573, set./dez. 2006

Machado e Cristovão

segundo lugar, o mesmo autor estabelece uma analogia entre o uso dos instrumentosmateriais nas atividades não verbais com os gêneros textuais, defendendo a tese deque esses gêneros se constituem como verdadeiras ferramentas semióticas

complexas que mediatizam a ação de linguagem, permitindo a produção e acompreensão de textos.

Na verdade, conforme mencionado pelo autor, ele parte dos estudosdesenvolvidos por Rabardel (1993) sobre “a gênese instrumental”. Partindo tambémdesse último autor, Clot (1999) assinala que a sociedade sempre disponibiliza umconjunto de artefatos sócio-historicamente construídos, materiais ou simbólicos,que, se apropriados pelo indivíduo por si e para si, se constituem em verdadeirosinstrumentos para seu agir3. Assim, de nosso lado, concluímos que os gêneros detexto se constituem como artefatos simbólicos que se encontram à disposição dossujeitos de uma determinada sociedade, mas que só poderão ser considerados comoverdadeiras ferramentas/instrumentos para seu agir, quando esses sujeitos seapropriam deles, por si mesmos, considerando-os úteis para seu agir com alinguagem. Portanto, podemos pensar que, no ensino de gêneros, se os aprendizesnão sentirem necessidade de um determinado gênero para seu agir verbal, haverámuito maior dificuldade para sua apropriação.

Ainda segundo Schneuwly (1994), no processo de desenvolvimento dosindivíduos, sua participação em diferentes atividades sociais vai lhes possibilitando aconstrução de conhecimentos sobre os gêneros e sobre os esquemas para suautilização. Entretanto, se os gêneros mais informais vão sendo apropriados no decorrerdas atividades cotidianas, sem necessidade de ensino formal, os gêneros mais formais,orais ou escritos, necessitariam ser aprendidos mais sistematicamente, sendo seuensino uma responsabilidade da escola, que teria a função de propiciar o contato, oestudo e o domínio de diferentes gêneros usados na sociedade.

Entretanto, conforme aponta Bronckart (2003), a diversidade teoricamenteilimitada dos gêneros e a variabilidade de sua manifestação concreta nos textosintroduz um problema de ordem metodológica, que é o da definição particular decada um deles, de sua classificação e da identificação de suas características centrais.Para o autor, estamos sempre diante de uma certa circularidade metodológicainevitável, uma vez que, para conceituar os gêneros, devemos primeiro ter algumconhecimento sobre o que eles são. Mesmo assim, seria possível efetuar um estudo

3 Por exemplo, em uma fábrica, instrumentos materiais disponibilizados podem ser considerados inúteis pelotrabalhador, que não se apropriará deles facilmente.

Page 216: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

552 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 547-573, set./dez. 2006

A construção de modelos didáticos de gêneros...

dessas características a partir de um conjunto de textos intuitivamente classificadosem gêneros diferentes, levantando suas características e construindo “modelos” queos caracterizariam. A comparação de diferentes modelos poderia nos fornecer pistaspara encontrarmos semelhanças e/ou diferenças que podemos não perceber de início,o que nos levaria a reformular os “modelos de gêneros” ou os “gêneros teóricos”inicialmente construídos.

Nessa mesma linha de raciocínio, em relação ao ensino de gêneros, serianecessário construirmos materiais didáticos adequados, que propiciassem atransposição didática dos conhecimentos científicos sobre os gêneros para o nível dosconhecimentos a serem efetivamente ensinados, de acordo com o nível das capacidadesdos alunos, isto é, que efetivássemos uma transposição didática adequada, cujosproblemas abordaremos a seguir, apontando uma possível via para sua superação.

3 PROBLEMAS DA TRANSPOSIÇÃO DIDÁTICA E A EMERGÊNCIA DASSEQÜÊNCIAS DIDÁTICAS COMO FORMA DE SUPERÁ-LOS

Segundo os pesquisadores de didática de disciplinas escolares, correnteconhecida como “Escola de Didática” francesa, de cujas reflexões o grupo de Genebratambém se serve e reelabora (BRONCKART; PLAZAOLLA GIGER, 1998), o termotransposição didática não deve ser compreendido como a simples aplicação deuma teoria científica qualquer ao ensino, mas como o conjunto das transformaçõesque um determinado conjunto de conhecimentos necessariamente sofre, quandotemos o objetivo de ensiná-lo, trazendo sempre deslocamentos, rupturas etransformações diversas a esses conhecimentos.

Em um primeiro momento, podemos considerar que há três níveis básicosnessas transformações: no primeiro, temos o “conhecimento científico” propriamentedito, que sofre um primeiro processo de transformação para constituir o“conhecimento a ser ensinado”, que, finalmente, ainda se transforma em“conhecimento efetivamente ensinado” e que, inevitavelmente ainda se constituiráem “conhecimento efetivamente aprendido”. A nosso ver, pesquisas voltadas para oestudo da transposição didática poderiam ainda detectar outros sub-níveisentremeados a esses três níveis básicos.

Aplicando essas concepções à transposição didática da noção de gênero,podemos dizer que, desde os PCN de LP de quinta a oitava série, nos defrontamoscom o primeiro nível de transposição. Nesse primeiro nível, na passagem do

Page 217: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

553Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 547-573, set./dez. 2006

Machado e Cristovão

conhecimento científico para conhecimento a ser ensinado, uma série de injunçõesdetermina o que, dentre os inúmeros objetos do conhecimento científico, pode serconsiderado como objeto a ser ensinado. A escolha desses objetos sofre um controlesocial, que é exercido oficialmente pelas autoridades do ensino e, cientificamente,pelos especialistas que atuam junto às instituições governamentais, como por exemplo,aqueles que trabalharam para o MEC na elaboração dos PCN.

De acordo ainda com a teoria da transposição didática, em relação ao ensinode línguas, já nesse primeiro nível podem surgir alguns problemas. O primeiro delesdiz respeito à própria seleção dos conteúdos a serem ensinados, uma vez que essaseleção leva em conta, ao mesmo tempo, tanto o conhecimento científico quanto aspráticas sociais de linguagem. O problema é que essas práticas sociais, como qualqueroutro fenômeno, devem ter sido objeto de leitura, de compreensão, de explicaçãoanterior e, se a construção do conhecimento sobre elas ainda não tiver sidodesenvolvida no campo científico, a sua abordagem no ensino pode ficar submetidaao senso comum e/ou à ideologia. A nosso ver, esse foi um dos problemas enfrentadospara a consolidação do ensino de gêneros na escola brasileira, uma vez que oconhecimento sobre esse objeto, se não era incipiente, não era – nem é – consensualem nossa comunidade científica.

Outro problema que pode surgir a partir desse primeiro nível de transposiçãodidática é o processo de autonomização de determinados objetos do conhecimentocientífico, que, inevitavelmente, são separados da teoria global e da problemáticacientífica em que surgiram e em que ganham seu sentido específico. Em razão disso,quando transpostos para serem conhecimentos a serem ensinados, é muito comumque outras significações lhes sejam atribuídas. Não é de se estranhar, portanto, asdiferentes significações que foram – e ainda são – atribuídas, nos diferentes níveisde ensino, à noção de gênero de texto ou de discurso.

Além disso, certas noções, que no quadro da ciência de base aparecem como estatuto de hipótese ou de proposta de estudo, podem ser apresentadas nosdocumentos oficiais de modo assertivo, como verdades absolutas já estabelecidas econsensualmente aceitas no campo científico em questão. Esse seria o fenômenoclássico da reificação ou da dogmatização de noções que são selecionadas para oensino. Exemplo clássico dessa reificação foi o conceito de esquema narrativo, que,oriundo dos estudos estruturalistas para a análise dos contos russos, começou a serutilizado para qualquer gênero de texto que apresentasse relato de ações, o que nemsempre, como sabemos, é adequado ou pertinente.

Page 218: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

554 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 547-573, set./dez. 2006

A construção de modelos didáticos de gêneros...

Outro problema em relação à transposição didática, desde o seu primeironível, é o da compartimentalização dos conteúdos/noções selecionados e o risco dese chegar a uma incoerência global na proposta oficial. Por exemplo, como sabemos,atualmente não temos uma teoria de linguagem única, capaz de dar conta de todasas questões de linguagem ou das línguas no conjunto de seus aspectos. Não temosum paradigma conceitual estável e consensualmente reconhecido, mas sim, váriossistemas teóricos em concorrência, estando nosso campo científico cindido emnumerosas subdisciplinas que tratam de objetos limitados a priori (aspectos sociais,fonológicos, sintáticos, semânticos, pragmáticos, textuais, discursivos etc.). Alémdisso, como sabemos, as comissões de especialistas reunidos para a construção dediretrizes gerais para o trabalho dos professores são constituídas por pesquisadorescom diferentes posicionamentos teóricos e didáticos, o que leva, inevitavelmente, asoluções de compromisso entre as partes.

De todos esses aspectos, surgem problemas sérios para a transposiçãodidática: Por exemplo, como desenvolver atividades de reflexão gramatical úteis eadequadas para a produção textual, sem efetuar uma separação dos conhecimentosgramaticais dos textuais ou discursivos? O que temos observado, nas diferentesreformas levadas a cabo, é que aqueles especializados em ensino de línguas têmsido obrigados, no primeiro nível da transposição, a se servirem de elementosprovenientes de diferentes teorias ou de diferentes subáreas, tentando construir ummínimo de coerência no próprio campo didático, que, infelizmente, nem semprepode ser atingida.

Ora, foi justamente a observação desses problemas e, principalmente, o dacompartimentalização dos conhecimentos no campo do ensino de línguas que levouos pesquisadores francofones a uma tentativa de sua superação com a construçãodo conceito de “seqüência didática”, em 1996, oficialmente assumida nas instruçõesoficiais para o ensino de línguas na França. Nesses documentos, a seqüência didática(SD, de ora em diante) é definida como uma abordagem que unifica os estudos dediscurso e a abordagem dos textos, implicando uma lógica dedescompartimentalização dos conteúdos e das capacidades: elas deveriam englobaras práticas de escrita, de leitura e as práticas orais, organizadas no quadro deseqüências didáticas. Observe-se que, nessas instruções para o ensino francês, nãose tratava ainda de “seqüências didáticas de gêneros”, mas sim, de seqüências abertasa diferentes objetos de conhecimentos.

A SD é ainda considerada como um conjunto de seqüências de atividadesprogressivas, planificadas, guiadas ou por um tema, ou por um objetivo geral, ou

Page 219: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

555Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 547-573, set./dez. 2006

Machado e Cristovão

por uma produção de texto final. O interesse desse procedimento didáticonormalmente é justificado pelas seguintes razões:

- a SD permitiria um trabalho global e integrado;

- na sua construção, considerar-se-ia, obrigatoriamente, tanto os conteúdosde ensino fixados pelas instruções oficiais quanto os objetivos deaprendizagem específicos;

- ela contemplaria a necessidade de se trabalhar com atividades e suportesde exercícios variados;

- ela permitiria integrar as atividades de leitura, de escrita e de conhecimentoda língua, de acordo com um calendário pré-fixado;

- ela facilitaria a construção de programas em continuidade uns com osoutros;

- ela propiciaria a motivação dos alunos, uma vez que permitiria a explicitaçãodos objetivos das diferentes atividades e do objetivo geral que as guia.

Em Genebra, segundo Bronckart (2006), as primeiras seqüências didáticasforam construídas pela Commission pédagogie du texte, em 1985 e 1988. Entretanto,só na década de 90 é que elas começaram a centrar-se no ensino de gêneros,sobretudo com trabalhos que visavam ao ensino de gêneros da linguagem escrita; e,só posteriormente, ao de gêneros formais do oral (DOLZ; SCHNEUWLY, 1998). Essasseqüências teriam as seguintes características:

- o objeto do trabalho escolar seria a atividade de linguagem relacionada aum gênero utilizado em uma determinada situação de comunicação;

- o trabalho se faria no interior de um projeto de classe que circunscrevesseos elementos que caracterizam a situação de comunicação em foco;

- o ponto de partida da seqüência seria constituído, na medida do possível,da observação das capacidades e das dificuldades dos alunos;

Page 220: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

556 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 547-573, set./dez. 2006

A construção de modelos didáticos de gêneros...

- os diferentes componentes que entrariam na atividade de linguagemrelacionada ao gênero em estudo seriam trabalhadas isoladamente, pormeio de atividades diversas, desenvolvendo-se uma metalinguagem sobreesses componentes e abordando-se o gênero em seus diferentes aspectos(estrutura, unidades lingüísticas particulares, elementos do conteúdo etc.);

- as diferentes capacidades trabalhadas nas atividades seriam reinvestidasem uma atividade mais complexa, isto é, na produção de um texto finalpertencente ao gênero, efetuando-se novas observações, análises e aavaliação dos progressos conseguidos e das dificuldades ainda nãosuperadas.

Ora, para cumprir toda essa proposta de ensino de gêneros, logo se tornouevidente, para os pesquisadores de Genebra, a necessidade da elaboração de ummaterial didático que propusesse atividades constitutivas da seqüência. No Brasil,após a promulgação dos PCN de língua portuguesa (BRASIL, 1998), que já prevêesse tipo de estudo e de atividades, a obediência aos Parâmetros também passou aser uma exigência para a aprovação dos livros didáticos submetidos à avaliação doPrograma Nacional do Livro Didático (PNLD). Assim, nos dois casos, estamos diantede um subnível da transposição dos conhecimentos científicos a conhecimentos aserem ensinados, sendo ele talvez o mais importante, pois, no caso brasileiro, asprescrições dos documentos e o trabalho real do professor são mediados pelos livrose materiais didáticos. Surge daí a relevância dos trabalhos científicos e didáticos quevisem a efetivar essa transposição.

Ainda em Genebra, para a construção das seqüências didáticas, logo se tornouevidente a necessidade da construção prévia de um “modelo didático de gênero”, quepudesse guiar a elaboração das atividades das SDs, tal como mostraremos a seguir.

4 A NECESSÁRIA CONSTRUÇÃO DO MODELO DIDÁTICO DE GÊNERO

De acordo com os pesquisadores do Grupo de Genebra, para que os objetivosde ensino-aprendizagem de gêneros possam ser atingidos, as práticas escolares deprodução textual devem ser norteadas pelo que chamam de modelo didático dogênero a ser ensinado, isto é, por “um objeto descritivo e operacional, construídopara apreender o fenômeno complexo da aprendizagem de um gênero” (DE PIETROet al., 1996/1997, p. 108). A construção desse modelo de gênero permitiria a

Page 221: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

557Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 547-573, set./dez. 2006

Machado e Cristovão

visualização das dimensões constitutivas do gênero e seleção das que podem serensinadas e das que são necessárias para um determinado nível de ensino.

Segundo os mesmos autores, tendo objetivos explicitamente didáticos e sendoa transposição didática um processo com determinadas características que não podemser evitadas, a construção desses “modelos” não precisa ser teoricamente perfeita e“pura”4, abrindo-se a possibilidade da utilização de referências teóricas diversas, dediferentes estudos sobre o gênero a ser ensinado, além de referências obtidas pormeio da observação e da análise de práticas sociais que envolvem o gênero, junto aespecialistas na sua produção.

Além de levar em conta todas essas referências, a construção do modelodidático implica a análise de um conjunto de textos que se considera comopertencentes ao gênero, considerando-se, no mínimo, os seguintes elementos:

a) as características da situação de produção (quem é o emissor, em quepapel social se encontra, a quem se dirige, em que papel se encontra oreceptor, em que local é produzido, em qual instituição social se produz ecircula, em que momento, em qual suporte, com qual objetivo, em quetipo de linguagem, qual é a atividade não verbal a que se relaciona, qual ovalor social que lhe é atribuído etc.);

b) os conteúdos típicos do gênero;

c) as diferentes formas de mobilizar esses conteúdos;

d) a construção composicional característica do gênero, ou seja, o planoglobal mais comum que organiza seus conteúdos;

e) o seu estilo particular, ou, em outras palavras:- as configurações específicas de unidades de linguagem que se constituemcomo traços da posição enunciativa do enunciador: (presença/ausênciade pronomes pessoais de primeira e segunda pessoa, dêiticos, temposverbais, modalizadores, inserção de vozes);

4 Nesse sentido, podemos dizer que os modelos didáticos podem apresentar falhas ou lacunas, quando vistos doponto de vista de uma teoria de texto ou discurso qualquer. Mas, na verdade, os pesquisadores que se envolvemna sua construção não estão preocupados em esperar a construção científica ideal, pois têm uma preocupaçãosocial imediata, que é a de trazer subsídios para o trabalho docente e para a aprendizagem.

Page 222: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

558 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 547-573, set./dez. 2006

A construção de modelos didáticos de gêneros...

- as seqüências textuais e os tipos de discurso predominantes e subordinadosque caracterizam o gênero;- as características dos mecanismos de coesão nominal e verbal;- as características dos mecanismos de conexão;- as características dos períodos;- as características lexicais.

Em relação a essas categorias de análise, queremos observar, em primeirolugar, que elas se encontram delineadas no modelo de produção de texto expostopor Bronckart (1999). Em segundo lugar, salientamos que essa análise não podeser enquadrada nos limites de uma análise textual estrutural. Todos os níveis textuaisque elencamos devem ser vistos em seu valor dialógico, como traços não só do agirdo produtor, mas das restrições genéricas relacionadas às atividades e às interaçõesno quadro das quais esse agir se realiza. Em terceiro lugar, queremos deixar claroque nossa enumeração dos elementos a serem analisados não é ser exaustiva nemrígida. Admitimos que, no próprio decorrer da análise, ao encontrarmos outroselementos que sejam fundamentais para a caracterização de um determinado gênero,eles têm de ser necessariamente considerados. Finalmente, não consideramos quedevamos nos ater apenas ao que a teoria de linguagem do ISD nos propõe via seusautores principais, mas que conceitos de outras teorias, que sejam compatíveis, podeme devem ser incorporados nessa análise, assim como nós mesmos nos outorgamos odireito de criar novos conceitos, quando isso se faz necessário. Em suma, o quequeremos dizer é que não admitimos que os dados concretos sejam “ajustados”para que caibam dentro do modelo de análise.

Sintetizando essa seção, afirmamos que, para a construção de um modelodidático do gênero, deve-se conhecer o estado da arte dos estudos sobre esse gênero;as capacidades e as dificuldades dos alunos ao trabalharem com textos pertencentesao gênero selecionado, as experiências de ensino/aprendizagem desse gênero, assimcomo as prescrições presentes nos documentos oficiais sobre o trabalho docente(DOLZ; SCHNEUWLY, 1998). Esses pontos nos ajudariam a definir o tipo deintervenção didática a ser desenvolvida e a construir o modelo, com a definição dosobjetivos de ensino do gênero adaptados ao nível dos alunos e a organização dascategorias que serão exploradas em uma determinada seqüência didática.

Assim, essas seqüências serão guiadas por um número limitado e preciso deobjetivos e serão constituídas por um conjunto de atividades organizadas em umprojeto global de apropriação de algumas das dimensões constitutivas de um gênero,

Page 223: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

559Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 547-573, set./dez. 2006

Machado e Cristovão

de acordo com o nível dos aprendizes. Finalmente, as próprias atividades efetivamentedesenvolvidas poderão exigir um retorno ao modelo didático para modificá-lo noque for necessário, considerando-se, assim, que esse modelo jamais é definitivo,mas sim, que se encontra em um processo contínuo de transformação.

5 OS MODELOS DIDÁTICOS DE GÊNEROS EM PESQUISAS ETRABALHOS DIDÁTICOS

Conforme exposto na seção acima, o grupo de Genebra elaborou a noção de“modelo didático de gênero” e os procedimentos destinados à sua construção,objetivando subsidiar o ensino de língua materna e o aprendizado do aluno pormeio de atividades destinadas ao desenvolvimento das capacidades necessárias paraa produção de textos pertencentes a diferentes gêneros. Já nas pesquisas e atividadesdidáticas desenvolvidas por nosso grupo, a utilização dessa noção e os objetivos quenortearam a construção de modelos didáticos de gênero foram muito além do objetivode desenvolver as capacidades de produção textual em língua materna, conformeveremos nas duas próximas seções.

5.1 Pesquisas desenvolvidas pelo grupoA primeira pesquisa que foi desenvolvida, no quadro do ISD, foi a tese de

doutorado de Machado, em 1995, posteriormente publicada em livro (MACHADO,1998). Embora a autora não tenha trabalhado explicitamente com a construção de ummodelo didático de gênero, mas sim, avaliado uma experiência didática realizada parao desenvolvimento das capacidades de leitura de alunos universitários, a noção degênero e o levantamento das características do gênero “diário de leituras”, a partir dospróprios textos dos alunos, abriu caminho para outras pesquisas mais diretamentebaseadas na noção de modelo didático. Depois dessa primeira publicação e, sobretudocom a publicação dos PCN de Língua Portuguesa, as pesquisas do grupo se multiplicaramem diferentes direções, podendo elas ser divididas em três grandes tipos.

No primeiro tipo, encontramos todas as pesquisas que mostram claramente anecessidade da construção de modelos didáticos de gêneros, não só para o ensino deprodução textual, mas também para atingir outros objetivos, tal como elencamos a seguir:

a) para a construção de SD para o ensino de produção textual em LP(dentre outros, MACHADO, LOUSADA; TARDELLI, 2004a e 2004b;) e deSD para leitura em LE (CRISTOVÃO, 2005b; CRISTOVÃO et al., prelo);

Page 224: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

560 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 547-573, set./dez. 2006

A construção de modelos didáticos de gêneros...

b) para a avaliação de SD para ensino de produção textual em LP(MACHADO, 2001) e para ensino de leitura em LE (CRISTOVÃO, 2002a;FREITAS, 2003);c) para a avaliação de experiências didáticas e do desenvolvimento decapacidades de linguagem durante o processo de letramento inicial (SOUZA,2003);

d) para a análise do nível de capacidades de linguagem do aluno emprodução textual (MACHADO, 2003);

e) para a formação inicial e continuada de professores (dentre outros,MACHADO; MAGALHÃES, 2002; CRISTOVÃO, 2002b e 2005a).

No segundo tipo, encontramos pesquisas que buscaram contribuir, dediferentes formas, para a elaboração posterior do modelo didático de um determinadogênero e de seqüências didáticas voltadas sobretudo para o desenvolvimento dascapacidades de leitura. Para isso:

a) desenvolveram uma descrição global do gênero estudado (dentre outros,COELHO, 2003; CRISTOVÃO, 2002c; POMPÍLIO, 2002);

b) analisaram um aspecto mais típico de um determinado gênero (dentreoutros, MUNIZ-OLIVEIRA, 2005);

c) analisaram diferentes tipos de textos utilizados nas escolas, em diferentesdisciplinas (LUCA, 2000).

Finalmente, no terceiro tipo de estudos, o objetivo foi a explicitação do quadroteórico que guia a construção de nossos modelos didáticos e nossa própria posiçãosobre esse quadro e sua utilização no ensino de línguas, como se pode ver, porexemplo, no artigo de Machado ( 2005).

5.1.1 Características mais específicas das pesquisasNas pesquisas desenvolvidos para a construção de SDs para o ensino de

produção textual e compreensão, os modelos didáticos de gêneros constituíram-se

Page 225: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

561Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 547-573, set./dez. 2006

Machado e Cristovão

como o fundamento para a seleção de objetos de ensino e das operações de linguagema serem desenvolvidas que pudessem efetivamente contribuir para os objetivosestabelecidos.

Já os estudos desenvolvidos para a construção de modelo didático de umdeterminado gênero para a avaliação de seqüências didáticas se dividem em doisgrandes subgrupos. No primeiro, encontramos o de Machado (2001), em que aautora apresenta essa construção como necessária para a descrição e a avaliação demateriais didáticos voltados para o ensino de produção textual em LP, apresentando,como exemplo, a avaliação de uma SD para o ensino da resenha crítica. A autoradefende que as atividades propostas por um determinado material didático destinadoao ensino de um gênero podem ser analisadas e avaliadas de acordo com ascapacidades de linguagem que essas atividades permitem desenvolver: ou ascapacidades de ação, ou as discursivas e/ou as lingüístico-discursivas. Para isso, asdiferentes atividades propostas são analisadas, verificando-se que tipo de capacidadecada uma delas pode desenvolver nos alunos, o que seria possível a partir do modelodidático do gênero em questão. Segundo a autora, o material adequado seria aqueleque trabalhasse, pelo menos em parte, com todas as capacidades, de forma integrada.Assim, o uso do modelo didático como instrumento de avaliação dos materiaispermitiria maior reflexão sobre eles e também uma melhor orientação para aformação inicial e continuada de professores, já que forneceria critérios para aseleção, a elaboração e a adaptação do material didático em função das reaisnecessidades do contexto em que serão utilizados. Fica evidente a originalidade dessetrabalho em relação aos trabalhos desenvolvidos pelo grupo de Genebra e de outrosque se desenvolvem sobre a avaliação de material didático, uma vez que, em relaçãoaos primeiros, amplia-se a utilização do modelo didático para o campo da avaliaçãodo material didático e, em relação aos segundos, fornece um novo instrumentoobjetivo e coerente para a avaliação.

Nessa mesma linha de pensamento e de objetivos, a pesquisa de doutoradode Cristovão (2002a) foi totalmente inédita e inovadora, no sentido de que, pelaprimeira vez, buscou-se utilizar os pressupostos teóricos e didáticos do interacionismosociodiscursivo para o ensino-aprendizado de LE, e especificamente para o ensinode leitura. Esse trabalho teve como objetivo defender o uso dos modelos didáticos degêneros como um instrumento de avaliação mais amplo para materiais didáticos emgeral que visem ao ensino de leitura em LE.

Outros objetivos mais específicos foram os seguintes: a) apresentar umaconcepção de ensino de leitura que esteja de acordo com os princípios gerais do

Page 226: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

562 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 547-573, set./dez. 2006

A construção de modelos didáticos de gêneros...

ISD; b) demonstrar que, de acordo com essa concepção, os materiais didáticosdestinados ao ensino de leitura em LE podem ser construídos em torno da noção degênero objetivando o desenvolvimento de capacidades de linguagem; c) demonstrarque a descrição das características a serem ensinadas do gênero a ser trabalhadocom os alunos permite avaliar a pertinência dos conteúdos e as capacidades delinguagem que podem ser desenvolvidas; d) aplicar os princípios de ensino de leiturana visão do ISD como critérios que permitam avaliar a proposta de prática pedagógicasubjacente aos materiais didáticos.

As contribuições trazidas por essa pesquisa foram de ordem prática, teóricae metodológica. Em relação às de ordem prática, Cristovão demonstrou a possibilidadede organizar o ensino de LE com base em gêneros de texto como instrumentos queconstituem nossas ações de linguagem. Do ponto de vista teórico, a autora desenvolveuum decálogo para o ensino de leitura em LE, cujos “mandamentos” podem serseguidos com sucesso como princípios gerais para as atividades em aulas de leitura.Finalmente, como contribuição metodológica, a autora corroborou outras pesquisasdo grupo que acentuaram a validade do uso dos modelos didáticos de gêneros comoinstrumento para a avaliação de material didático.

Assim como na pesquisa supracitada, Freitas (2003) utilizou modelosdidáticos como instrumento de avaliação/produção de materiais didáticos para oensino leitura de textos em português como Língua Estrangeira para refugiados deguerra no Brasil, tendo, portanto, um grande valor de ordem social, dadas anecessidade de integração social desses refugiados, para a qual o uso efetivo dalinguagem é fundamental. O objetivo da pesquisa foi o de não só analisar, mas tambémpropor a reformulação de um material didático baseado em gêneros – no casoalguns gêneros do falar de si em situação de trabalho (entrevista de emprego ecurrículo), absolutamente necessários para esses imigrados. Já os objetivosespecíficos foram os seguintes: a) levantar algumas das características centrais dosgêneros entrevista de emprego e currículo; b) caracterizar as capacidades delinguagem que podem e devem ser desenvolvidas para o falar de si mesmo em LE,utilizando esses gêneros; c) a partir desse levantamento e dessa caracterização, efetuaruma análise avaliativa mais consistente sobre a seqüência didática inicial e sugerirmodificações para um trabalho efetivo voltado para o desenvolvimento da capacidadede “falar de si mesmo” em situações públicas como essas. Ao final da pesquisa,Freitas (2003) também concluiu que o modelo didático se configura como sendofundamental para a elaboração/análise de materiais didáticos baseados em gêneros.

Page 227: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

563Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 547-573, set./dez. 2006

Machado e Cristovão

Já os trabalhos desenvolvidos para a análise e avaliação de uma experiênciadidática para o letramento inicial têm o seu melhor exemplo na pesquisa para tesede doutorado de Souza, que foi extremamente inovadora. O método de análise detextos de Bronckart (1999) foi utilizado para a análise dos textos produzidos pelascrianças, que a pesquisadora acompanhou durante dois anos. Foram examinadas asdiferentes situações de produção dos textos e o desenvolvimento da produção detextos de opinião em suas dimensões argumentativas e lingüístico-discursivas, nodecorrer da experiência didática. Outra grande contribuição inovadora foi ademonstração de que o letramento inicial pode perfeitamente ser desenvolvido, semque o professor se limite a trabalhar com os gêneros de texto que são tradicionalmenteutilizados na educação infantil, os gêneros da ordem do narrar. A experiência didáticalevada a cabo por Souza centrou-se em gêneros do eixo do argumentar, com autilização de textos e situações reais do cotidiano das crianças, o que as levou a umdesenvolvimento excepcional, não só de suas capacidades de linguagem, mas tambémde suas capacidades críticas diante dos textos e dos fatos. O valor dessa tese logo foireconhecido por pesquisadores da área, o que levou à sua rápida publicação (SOUZA,2003). Prosseguindo nessa mesma linha de pesquisa, a autora continua desenvolvendodiferentes experiências didáticas voltadas para o letramento escolar inicial, relatandoe avaliando novas experiências de ensino-aprendizagem de novos gêneros de texto,confirmando continuamente a validade de sua abordagem.

Em relação às pesquisas que se voltaram para a análise do nível de capacidadesde linguagem do aluno em produção textual com a utilização de um modelo didáticode gênero, podemos dar como exemplo o trabalho de Machado (2003), que nosdemonstra essa possibilidade por meio da análise de resenhas produzidas por alunosuniversitários.

Quanto à utilização da noção de modelo didático de gênero nos processosde formação inicial e continuada de professores, temos como exemplo o estudodesenvolvido por Machado (2000) e por Cristovão (2002b e 2005b). O primeiroconsistiu na análise de um trabalho de formação continuada, desenvolvido junto aprofessores universitários de Língua Portuguesa, no qual a construção de modelosdidáticos do gênero artigo de opinião e do gênero resenha crítica e de seqüênciasdidáticas correspondentes ocuparam o centro das atividades de formação. Em umprimeiro momento, a pesquisadora e os professores discutiram os pressupostosteóricos que guiam essa construção e modelos e seqüências foram construídasconjuntamente. Em um segundo momento, Machado atuou mais como leitora e

Page 228: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

564 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 547-573, set./dez. 2006

A construção de modelos didáticos de gêneros...

comentadora dos materiais produzidos pelos próprios professores, que adaptaramas seqüências iniciais aos diferentes cursos em que ministravam aulas.

Por sua vez, voltada para formação inicial de professores de inglês, Cristovão(2002b) desenvolveu uma investigação enfocando a necessidade de se criareminstrumentos que ajudem o professor a ampliar, aperfeiçoar e adaptar seusconhecimentos em seu desenvolvimento, de forma reflexiva e crítica. Passofundamental para essa pesquisa é a discussão sobre o uso de modelos didáticos degêneros como instrumento para a formação inicial de professores. Os resultados daanálise dos dados apontam que os alunos (futuros professores de inglês como línguaestrangeira) foram beneficiados por meio do estudo de gênero como um instrumentopara a reflexão, reforçando a posição de que uma abordagem baseada no estudodos gêneros é adequado à formação inicial. Já para a formação continuada deprofessores, Cristovão (2005b) desenvolve uma experiência de coordenação de umprojeto de extensão com a participação de professores de inglês da rede pública deensino e de alunos do curso de Letras para a elaboração de seqüências didáticas emtorno de gêneros textuais para a Educação Básica. Além de pesquisarem para aprodução dos materiais (grupos de estudo de textos teóricos e prescritivos,estabelecimento de objetivos, seleção de conteúdos, escolha de textos, análise docontexto, levantamento das características dos gêneros selecionados), os professoresenvolvidos têm desenvolvido atividades de pesquisa-ação. Quase todos já apresentaramcomunicações em evento(s) e se envolveram com congressos, cursos (de extensãoe/ou de especialização) e Programa de Pós-Graduação.

No segundo grupo de pesquisas, encontramos, em primeiro lugar, as que se voltampara a descrição global de um determinado gênero, como é o caso da de Machado(2002); de Cristovão (2002 c); de Pompílio (2002) e de Coelho (2003). A primeira, a deMachado (2002), voltou-se para a análise do gênero resumo, distinguindo esse gênerode segmentos de textos em que também se efetiva um processo de sumarização, mas quenão podem ser definidos como gênero resumo propriamente dito. A autora discute ereinterpreta as regras de redução de informação tal como já foram propostas e analisacorpora de resumos publicados em diferentes veículos de comunicação. Finalmente, aautora conclui que, quando os resumos se constituem como textos autônomos, eles podemser considerados como pertencentes a um gênero e não quando estão inseridos em outrogênero (resenhas, contracapas e reportagens, por exemplo).

Já Cristovão (2002c) desenvolveu uma descrição do gênero quarta capa delivro em inglês e aponta algumas sugestões didáticas para seu ensino. Nesse artigo, aautora chama a atenção para a questão de que, uma vez contempladas as

Page 229: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

565Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 547-573, set./dez. 2006

Machado e Cristovão

características típicas dos textos pertencentes a um gênero tomado como instrumentode ensino em sala de aula de língua, mais condições e possibilidades podemosfornecer ao aluno para que ele se constitua como um cidadão consciente e crítico.

Pompílio (2002), por sua vez, voltou-se para a caracterização do gênerocartas de leitor, o que lhe permitiu identificar a complexidade da situação de produçãodessas cartas e a variabilidade textual dela decorrente.

Finalmente, Coelho (2003), em sua tese de doutorado, se voltou para acaracterização do que costumeiramente chamamos de lendas e, mais especificamente,de lendas da Amazônia. Do ponto de vista teórico-metodológico, a relevância dessetrabalho se deve ao fato de que, partindo de um conjunto de textos considerados comolendas, no decorrer de seu processo de análise, a autora conseguiu visualizar edemonstrar que os procedimentos metodológicos que o grupo utiliza são instrumentoseficientes para a discriminação de gêneros, sobretudo quando não nos esquecemos deestabelecer relações estreitas entre as características textuais e as contextuais. Assim,esses procedimentos permitiram que a autora discriminasse dois gêneros diferentes: oque se pode chamar de lendas propriamente ditas e as histórias dos índios. Do pontode vista didático, a autora traz uma grande colaboração para que esses gêneros possamser objetos de ensino, sobretudo para o desenvolvimento de capacidades de leitura,contribuindo, assim, para a preservação da cultura original dessa região.

Quanto às pesquisas que se voltaram para a descrição de um aspecto particularde determinado gênero, temos como exemplo típico, a de Muniz-Oliveira (2005), quese voltou para o levantamento dos diferentes verbos de dizer utilizados para inserir asvozes do autor resenhado em resenhas acadêmicas produzidas por especialistas daárea de lingüística e para uma classificação desses verbos. Essa pesquisa, sem dúvida,teve o grande mérito de efetuar essa classificação de uma forma totalmente original,com base nas operações de linguagem propostas por Dolz & Schneuwly (1998). Aconclusão importante da autora para o ensino de produção desse gênero e de outrossemelhantes é a de que a dificuldade para empregar os verbos adequados para relatara voz dos autores resenhados não deriva do simples fato de não saberem utilizar osverbos de inserção de vozes, mas sim, do fato de que ela deriva da dificuldade que osalunos têm para interpretar as diferentes operações desenvolvidas pelo autor resenhadodurante o processo de produção textual. Fica claro, assim, que, o ensino da produçãodesse gênero implica, necessariamente, um longo trabalho com a leitura e, maisespecificamente, com a identificação dessas operações.

Finalmente, em relação ao terceiro grupo de pesquisas, que se voltaram paraa análise de diferentes tipos de textos que são utilizados regularmente em outras

Page 230: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

566 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 547-573, set./dez. 2006

A construção de modelos didáticos de gêneros...

disciplinas, o exemplo maior é a de Luca (2000), que, em sua dissertação demestrado, teve por objetivos: a) analisar textos de gêneros usados no ensino deHistória (textos didáticos, historiográficos e documentos de época); b) antecipardificuldades por parte dos alunos; c) apresentar procedimentos de leitura para queos problemas de compreensão pudessem ser superados. Em suas conclusões, a autoraressalta que a análise de unidades lingüístico-discursivas não deve ser mecânica edissociada da análise do contexto de produção e também alerta para a necessidadede se desenvolverem pesquisas e de se construírem modelos didáticos de gênerosespecíficos para cada contexto de ensino.

Elencados os trabalhos de pesquisa mais relevantes, vejamos a seguir algunsdos materiais didáticos que foram produzidos também com base na construção demodelos didáticos de gêneros.

5.2 O desenvolvimento de materiais didáticos com o auxílio danoção de modelo didático de gênero

Ao lado das pesquisas desenvolvidas pelo grupo, todos esses pesquisadorestêm também desenvolvido um grande número de materiais didáticos, com apoio naconstrução de modelos didáticos de variados gêneros. Como pequeno exemplo,apresentamos alguns dos que foram publicados no quadro abaixo.

Quadro 1 – Exemplos de publicações didáticas com suporte naconstrução de modelos didáticos de gêneros.

Page 231: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

567Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 547-573, set./dez. 2006

Machado e Cristovão

Além dessas publicações, tanto esses pesquisadores, quanto professores ealunos por eles formados têm desenvolvido uma intensa atividade didática nas salasde aula e em cursos de extensão5, tomando os mesmos pressupostos teóricos para aconstrução de seqüências didáticas para o ensino de língua materna e línguaestrangeira. 

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como afirmamos de início, buscamos aqui apresentar um levantamentoparcial, mas significativo, das pesquisas que se desenvolvem no Brasil no quadro doISD6, investigando os procedimentos de construção de modelo didático de gênero,quer seja de forma explícita, quer seja de forma implícita. Mesmo parcial, esselevantamento já nos possibilita delinear as diferentes contribuições de ordem teórica,metodológica e didática que esses estudos têm trazido.

Para o desenvolvimento do próprio quadro teórico-metodológico, diferentesatividades científicas e didáticas têm sido desenvolvidas, o que nos levou a enriquecero próprio modelo de análise, ou com a utilização de conceitos de outros autorescompatíveis com o modelo ou com a (re)-elaboração dos procedimentos de análise.Em relação à contribuição para a didática, também foi ampliado o escopo do quadrooriginal em que surgiu o uso de modelos didáticos de gêneros, pois os pesquisadoresbrasileiros estenderam sua utilização a novos campos, ao desenvolvimento de outrascapacidades de linguagem e a outras línguas. Para os processos de mediação formativa,a contribuição se deu em relação aos processos de ensino-aprendizagem nas escolas,em diferentes níveis de ensino, para a produção textual e para a leitura, assim comopara o desenvolvimento dos processos de formação inicial e continuada de professores.

5 Por exemplo, um trabalho sistemático sobre a elaboração e avaliação de materiais didáticos tem sido desenvolvidohá algum tempo, com grande eficácia, em cursos de extensão da COGEAE – PUC/SP, dirigidos a educadores emgeral e ministrados pelas doutorandas Eliane Lousada e Lilia Abreu-Tardelli. Nesses cursos inúmeras seqüênciasdidáticas têm sido trabalhadas em conjunto com os professores, tais como: testes de personalidade em revistapara adolescentes, narrativas de cordel, regras de jogos, debate público regrado, entrevista, apresentação pessoalem recrutamento e seleção, crônicas, carta argumentativa de leitor, folhetos informativos, verbete de dicionáriode língua portuguesa, charges políticas, regulamento, notícia, sinopse de filme, editorial, tiras (de jornal e revistasem quadrinho), propaganda, quarta capa de livro infantil. Também os cursos desenvolvidos por Baraldi, enfocandoa leitura, têm trabalhado com essas noções.

6 Para uma visão mais global desses trabalhos, assim como para a avaliação que deles faz Bronckart, veja-se onúmero especial da revista Calidoscópio (2004), que reúne trabalhos da maioria dos participantes do GrupoALTER/CNPq, apresentados no primeiro simpósio do grupo, durante o XIV INPLA (2004). Outra importantepublicação que reúne contribuições de nosso grupo é a revista Signum (2005).

Page 232: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

568 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 547-573, set./dez. 2006

A construção de modelos didáticos de gêneros...

Entretanto, apesar de estamos conscientes dessas contribuições, retomandonossa epígrafe, temos a convicção de que o ISD é um quadro teórico-metodológicoque se encontra em contínua transformação e que é construído coletivamente. Dessaforma, os méritos que nossas pesquisas podem apresentar não podem ocultar muitasdas lacunas que o próprio Bronckart (2004) assinala. Algumas delas derivam daspróprias lacunas do quadro teórico-metodológico, mas outras derivam do fato de amaioria dos pesquisadores brasileiros que adotam esse quadro teórico ainda nãoterem se apropriado das modificações já introduzidas pelo próprio autor no modeloproposto em 1997/1999 (cf. BRONCKART; GRUPO LAF, 2004). Assim, conformesugestões do próprio Bronckart (2004), outros estudos e reflexões devem serdesenvolvidos para cobrir essas lacunas. Dentre elas, salientamos as seguintes:

- a necessidade de não nos esquecermos do aprofundamento nos estudossobre as propriedades lingüísticas dos gêneros e sobre a relação entretipos de discurso, gêneros e formações sociais;

- a necessidade de rediscutirmos o conceito de “ação de linguagem” –pelo caráter estático e pelo esquecimento de suas dimensões afetivas/emocionais com que se mostra no modelo de 1997;

- a necessidade de buscarmos procedimentos consistentes de análise dosconteúdos dos textos, que têm sido abandonados na descrição dos gênerose na conseqüente construção do modelo didático7.

Quanto às pesquisas de intervenção no campo didático, consideramos queelas também devem se voltar para o estudo do trabalho real do professor, tal como jáestão sendo desenvolvidos atualmente, com o auxílio dos trabalhos das chamadasCiências do Trabalho (em especial, da Ergonomia e da Clínica da Atividade). Paraisso, segundo Bronckart (2004), seria necessária uma reflexão séria sobre osprocessos de desenvolvimento, não só no que se refere ao desenvolvimento dosdiferentes conhecimentos e práticas quanto, sobretudo, no que se refere aodesenvolvimento global das pessoas e dos diferentes fatores que nele intervêm. Alémdisso, considerando que nossas ações e nossas atividades científicas, como quaisqueroutras, de uma forma ou de outra, produzem efeitos sobre o outro e sobre o mundo

7 As primeiras tentativas para essa análise de conteúdos podem ser vistas em Bronckart e Machado (2004 e 2005ae b) e em Machado e Bronckart (2005).

Page 233: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

569Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 547-573, set./dez. 2006

Machado e Cristovão

social e que, portanto, elas são, por princípio, inerentemente intervencionistas epolíticas, no sentido maior desses termos, temos a consciência clara da dimensãoética de nossas intervenções no campo educacional. Com essa consciência,acreditamos firmemente que é o respeito a essa mesma dimensão ética que nosobriga a um aprofundamento teórico constante, sem o qual, mesmo com as melhoresintenções, podemos facilmente resvalar para intervenções inconseqüentes, quepoderão produzir os mesmos efeitos que queremos evitar.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. Os gêneros do discurso. In: ______. Estética dacriação verbal. Tradução: Maria Ermantina Galvão Gomes Pereira. São Paulo: MartinsFontes, 1992. p. 279-326. (Coleção Ensino Superior)

BRONCKART, Jean-Paul. Atividade de Linguagem, textos e discursos: por uminteracionismo sócio-discursivo. Tradução de Anna Rachel Machado. São Paulo: Educ,1999 [1997].

______. Gêneros textuais, tipos de discursos, e operações psicolingüísticas. Tradução deRosalvo Pinto. Revista de Estudos da Linguagem, v. 11, p. 49-69, 2003.

______. Commentaires conclusifs. Pour un développement collectif de l’interactionnismesocio-discursif. Calidoscópio - Revista de Lingüística Aplicada, São Leopoldo, v. 2, n. 2,p. 113-123, 2004.

______. Restrições e liberdades textuais, inserção social e cidadania. Revista daANPOLL, São Paulo, v. 19, p. 231-256, 2005.

______. Les différentes facettes de l’interactionnisme socio-discursif. Calidoscópio -Revista de Lingüística Aplicada, n. esp.: International Congress on Language andInteraction, p. 22-25, 2006.

BRONCKART, J.-P.; PLAZAOLA GIGER, I. La transposition didactique: histoire etperspectives d’une problématique fondatrice. Pratiques, n. 97/98, p. 35-58, 1998.

BRONCKART, J.-P.; Groupe LAF (Eds.). Les Cahiers de la section des sciences del´éducation, n. 103: Agir et discours en situation de travail, 2004.

CLOT, Yves. La fonction psychologyque du travail. Paris: PUF, 1999.

COELHO, M. C. P. As narrações da cultura indígena da Amazônia: lendas ehistórias. 2003. Tese (Doutorado em Lingüística Aplicada) – Pontifícia UniversidadeCatólica de São Paulo, São Paulo, 2003.

Page 234: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

570 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 547-573, set./dez. 2006

A construção de modelos didáticos de gêneros...

CRISTOVÃO, V. L. L. Gêneros e ensino de leitura em LE: os modelos didáticos degêneros na construção e avaliação de material didático. 2001. Tese (Doutorado emLingüística Aplicada) – Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2002a.

______ Modelo didático de gênero como instrumento para formação de professores. In:MEURER, José Luiz; MOTTA-ROTH, Désirée. Gêneros Textuais: subsídios para o ensinoda linguagem. Bauru: Edusc, 2002b. p. 31-73.

______. O gênero quarta capa no ensino de inglês. In: DIONISIO, Angela Paiva;MACHADO, Anna Rachel; BEZERRA, Maria Auxiliadora (Orgs.). Gêneros textuais eensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002c. p. 95-106.

______. Aprendendo a planificar o próprio trabalho: gêneros textuais na formação deprofessores de língua estrangeira. In: CRISTOVÃO, V. L. L.; NASCIMENTO, E. L. Gênerostextuais: teoria e prática II. Palmas; União da Vitória: Kaygangue, 2005a. p.153-162.

______. Gêneros textuais, material didático e formação de professores. Signum -Estudos da Linguagem, Londrina, v. 8, n. 1, p.173-191, 2005b.

CRISTOVÃO, V. L. L. et. al. Seqüências didáticas para ensino de inglês na educação básica.(no prelo).

de PIETRO, J.-F.; ERARD, S.; KANEMAN-POUGATCH, M. Un modèle didactique du “débat”:de l’objet social à la pratique scolaire. Enjeux, v. 39/40, p. 100-129, 1996/1997.

DOLZ, Joaquim; SCHNEUWLY, Bernard. Pour un enseignement de l’oral: initiation auxgenres formels à l’école. Paris: Esf Éditeur, 1998. (Didactique du Français).

FREITAS, Izabel Cristina C. A. O falar de si mesmo na aula de português comolíngua estrangeira: propondo caminhos por meio da análise crítica. 2003. Dissertação(Mestrado em Lingüística Aplicada) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2003.

LUCA, Glaucimara B. Subsídios lingüístico-discursivos para a prática de leiturana aula de história. 2000. Dissertação (Mestrado em Lingüística Aplicada) – PontifíciaUniversidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2000.

MACHADO, Anna Rachel. O diário de leituras: a introdução de um novo instrumentona escola. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

______. La construction d’une séquence didactique pour la production de textes dans lecadre de la formation continue des enseignants. Cahiers de la Section des Sciencesde l’Education de la FAPSE, Genebra, v. 91, p. 215-248, 1999.

______. Uma experiência de assessoria docente e de elaboração de material didáticopara o ensino de produção de textos na universidade. Revista de Documentação deEstudos em Lingüística Teórica e Aplicada, São Paulo, v. 16, n. 1, p. 1-26, 2000.

Page 235: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

571Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 547-573, set./dez. 2006

Machado e Cristovão

______. Um instrumento de avaliação de material didático com base nas capacidades delinguagem a serem desenvolvidas no aprendizado de produção textual. Intercâmbio, SãoPaulo, v.10, p.137-147, 2001.

______. Revisitando o conceito de resumos. In: DIONISIO, Angela Paiva; MACHADO,Anna Rachel; BEZERRA, Maria Auxiliadora. (Orgs.). Gêneros textuais e ensino. Rio deJaneiro: Univ. Mogi das Cruzes, 2002. p.138-150.

______. Os textos de alunos como índices para avaliação das capacidades de linguagem.In: MARI, Hugo; MACHADO, Ida; MELLO, Renato de. (Orgs.). Análise do Discurso emperspectivas. v. 1. Belo Horizonte: S.N., 2003. p 215-230.

______. A perspectiva interacionista sociodiscursiva de Bronckart. In: MEURER, J. L.;BONINI, Adair; MOTTA-ROTH, Désirée. (Orgs.). Gêneros: teorias, métodos, debates. SãoPaulo: Parábola Editorial, 2005. p. 237-259.

______; MAGALHÃES, Maria Cecília Camargo. A assessoria a professores na universidadebrasileira: a emergência de uma situação de trabalho a ser desvelada. In: SILVA, MariaCecília Pérez Souza; FAÏTA, Daniel (Orgs). Linguagem e trabalho: construção deobjetos de análise no Brasil e na França. São Paulo: Cortez, 2002. p. 139-156.

______; LOUSADA, E.; ABREU-TARDELLI, L. S. Resumo. São Paulo: Parábola, 2004a.(Coleção Leitura e produção de textos técnicos e acadêmicos, v. 1)

______; LOUSADA, E.; ABREU-TARDELLI, L. S. Resenha. São Paulo: Parábola, 2004b.(Coleção Leitura e produção de textos técnicos e acadêmicos, v. 2)

______; LOUSADA, Eliane; ABREU-TARDELLI, Lilia Santos. Resumo escolar: umaproposta para ensino do Gênero. Signum - Estudos da linguagem, Londrina, n. 8, p. 189-202, 2005.

MUNIZ-OLIVEIRA, Siderlene. Os verbos de dizer em resenhas acadêmicas. Signum -Estudos da Linguagem, Londrina, v.8, p.103-130, 2005.

PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação. Caderno de Inglês. Curitiba: SEE, 1998. v.Impulso Inicial, 1, 2 e 3.

POMPÍLIO, Berenice W. Cartas de leitor: tribuna de cidadania numa abordagem sócio-discursiva. 2002. 45 f. Dissertação (Mestrado em Lingüística Aplicada) – PontifíciaUniversidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2002.

RABARDEL, P. Les activités avec instruments. Documento de síntese apresentado paraobter habilitação para dirigir pesquisas, n. 8. Paris: Universidade Paris, 1993.

Page 236: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

572 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 547-573, set./dez. 2006

A construção de modelos didáticos de gêneros...

SCHNEUWLY, Bernard. Genres et types de discours: considérations psychologiques etontogénétiques. In: COLLOQUE DE L’UNIVERSITÉ CHARLES-DE-GAULLE, 3. Anais...Neuchâtel: Peter Lang, 1994. p. 155-173.

SOUZA, Lusinete Vasconcelos de. As proezas das crianças em textos de opinião.São Paulo: Mercado de Letras, 2003. (Idéias sobre linguagem).

Recebido em 21/11/05. Aprovado em 20/06/06.

Title: The construction of didactic models of genre: constributions and questions to genre teachingAuthor: Anna Rachel Machado, Vera Lúcia Lopes CristovãoAbstract: The objective of this paper is to present an overview of Brazilian research studies aimedat building “didactic models of genres”, of their didactic sequences, and of didactic interventionworks developed under this perspective. However, we will limit ourselves to the perspective ofsocio-discursive interactionism (SDI), focusing especially on those works carried out under thesupervision of Machado, and which were developed autonomously by different researchers. In thispaper we will indicate the validity of using the theoretical and methodological concepts of the SDI,the genres analysed, the different objectives established and the theoretical, methodological andpedagogical conclusions which these works managed to arrive at, as well as the questions they leftanswered.Keywords: socio-discursive interactionism; didactic model of genres; didactic sequences;educational research.

Tìtre: La construction de modèles didactiques de genres: apports et questions pour l’enseignementde genresAuteur: Anna Rachel Machado, Vera Lúcia Lopes CristovãoRésumé: L’objectif central de cet article est celui de tracer un tableau illustratif de recherchesbrésiliennes développées pour la construction de «modèles didactiques de genres», de leursrespectives séquences didactiques et des travaux didactiques d’intervention développés dans cetteperspective. Cependant, on se limitera à celles qui assument la perspective de l’interactionismesociodiscursif (ISD), développées dans le programme d’Études Postgraduées en LinguistiqueAppliquée et Études du Langage (LAEL/PUCSP), mais, surtout, à celles qui furent développées et/ouorientées par Machado et à celles que, après, furent développées de façon autonome par diverschercheurs. Dans cette étude, on montrera la validité de l’utilisation des présupposés théorico-méthodologiques de l’ISD qui furent assumés par ces chercheurs, quels ont été les genres travaillés,les différents objectifs poursuivis, les conclusions théoriques, méthodologiques et/ou didactiquesauxquelles ils sont arrivées et les questions qui sont encore sans réponses.Mots-clés: interactionisme sociodiscursif; genre textuel; modèle didactique; séquence didactique;recherche éductionnelle.

Título: Construcción de modelos didácticos de géneros: aportes y cuestionamientos para laenseñanza de géneros

Page 237: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

573Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 547-573, set./dez. 2006

Machado e Cristovão

Autor: Anna Rachel Machado, Vera Lúcia Lopes CristovãoResumen: El objetivo central de este artículo es trazar un cuadro ilustrativo de investigacionesbrasileñas desarrolladas para la construcción de “modelos didácticos de géneros”, de sus respectivassecuencias didácticas y de trabajos didácticos de intervención desarrollados en esta perspectiva.Sin embargo, nos limitaremos a las que asumen la perspectiva del interaccionismo sociodiscursivo(ISD), desarrolladas en el Programa de Estudos Pós-graduados em Lingüística Aplicada e

Estudos da Linguagem (LAEL/PUCSP). Sobretodo, nos limitaremos a las desarrolladas y/odireccionadas por Machado y a las que, posteriormente, se desarrollaron de forma autónoma pordistintos investigadores. En esta recompilación, mostraremos la validad de la utilización de lospresupuestos teóricos metodológicos del ISD que usaron estos investigadores, con cuáles génerosse trabajó, los distintos objetivos perseguidos, las conclusiones teóricas, metodológicas y/o didácticasque lograron alcanzar y las cuestiones que todavía están sin contestar.Palabras-clave: interaccionismos sociodiscursivo; género textual; modelo didáctico; secuenciadidáctica; investigación educacional.

Page 238: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

574

Page 239: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

575

POLÍTICA EDITORIAL

Linguagem em (Dis)curso é uma publicação quadrimestral, aberta a colaboradoresdo Brasil e do exterior que estejam interessados em questões relativas ao campo textual-

discursivo. Os trabalhos nela publicados, portanto, estão circunscritos aos objetos texto ediscurso, separadamente ou em sua intersecção, e às teorias pertinentes a tais objetos.

Dá-se preferência a trabalhos que contemplem pesquisa original, podendo estes vir emforma de artigo, ensaio (questões e problemas), debate, retrospectiva (estado da arte) e

resenha. Serão considerados apenas os textos que não estejam sendo submetidos a outra publicação.As línguas aceitas para publicação são o português, o inglês, o espanhol e o francês.Os trabalhos recebidos são avaliados em duas etapas. Na primeira, realizada pelos

editores, o texto pode ser desqualificado se: a) não estiver de acordo com as normas daABNT; b) for apenas uma revisão de literatura sem posicionamento crítico; c) tiver redaçãoinadequada (problemas de coesão e outros); e d) tiver problemas de formatação (parágrafosfeitos na barra de espaços e outros). Na segunda etapa, os textos selecionados na primeirasão enviados a dois consultores anônimos que avaliam as suas qualidades de escrita e deconteúdo. Dois pareceres negativos desqualificam o trabalho, de modo que, havendodiscordância, é solicitado um terceiro.

Se a matéria for aceita para publicação, a revista permite-se introduzir ajustes deformatação. Modificações de estrutura ou de conteúdo, sugeridas pelos pareceristas, sóserão incorporadas mediante a concordância dos autores. Artigos aprovados com restriçõesserão encaminhados para a reformulação por parte dos autores. Nesses casos, a comissão

editorial se reserva o direito de recusar o artigo, caso as alterações neles introduzidas

não atendam às solicitações feitas pelos pareceristas.O autor deve ser comunicado do recebimento da sua colaboração no prazo de até

oito dias e do resultado da avaliação do seu trabalho em até noventa dias após a data daprimeira comunicação. Nos casos em que os 3 meses não sejam suficientes para o fim doprocesso de tramitação, os autores serão comunicados de que seu artigo ainda encontra-seem avaliação.

O ato de envio de um original implica, automaticamente, na seção dos direitosautorais a ele referentes, devendo a revista ser consultada em caso de republicação. Apublicação de artigos não é remunerada. Serão remetidos a cada autor 2 (dois) exemplaresdo fascículo em que for publicada a sua colaboração.

Os artigos de Linguagem em (Dis)curso, tanto em meio impresso quanto em meioeletrônico, são publicados mediante a autorização expressa de seus articulistas, sobre os quaisrecaem as respectivas responsabilidades legais relativas às informações neles veiculadas.

A revista pode ser reproduzida parcialmente ou no todo, desde que citada a fonte.

Page 240: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

NORMAS PARA SUBMISSÃO DE TRABALHOS

1) Os trabalhos deverão ser enviados:a) Via e-mail, como attachment, em formato “.doc” ou “.rtf (opção Word for

Windows)”. Enviar também um arquivo com: nome do(s) autor(es); filiaçãoinstitucional; última titulação; endereço de correspondência; telefone; e e-mail.

Obs: Autores com titulação inferior a mestre só poderão publicar trabalho em co-autoria com um autor de titulação mais alta.

2) O trabalho deve incluir:a) A expressão “TÍTULO:” seguida do título do trabalho;b) A expressão “AUTORIA:” seguida do(s) nome(s) do(s) autor(es) e dos dados de

sua(s) procedência(s) – titulação, Universidade, e-mail – entre parênteses;c) A expressão “RESUMO:” seguida do respectivo resumo em língua portuguesa

(entre 100 e 150 palavras). Sugere-se que os resumos explicitem: o tema e/ouo(s) objetivo(s) do artigo, a orientação teórica e as conclusões mais relevantes.Nos resumos de artigos de pesquisa, citar também dados da metodologia (corpus,sujeitos, procedimentos, etc.);

d) A expressão “PALAVRAS-CHAVE:” seguida de até 5 palavras-chave em línguaportuguesa. As palavras-chave devem ser, na medida do possível, as correntes naárea, devem vir no singular e ser ordenadas do geral para o específico. Pede-seque o autor procure contemplar palavras isoladas de modo que, somente emcasos extremos, apareçam expressões de duas palavras;

e) A expressão “ABSTRACT:” ou “RÉSUMÉ:” ou “RESUMEN:” seguida de resumo emlíngua inglesa ou francesa ou espanhola (entre 100 e 150 palavras);

f) A expressão “KEY WORDS” ou “MOTS-CLÉS:” ou “PALABRAS CLAVE:” seguida deaté 5 palavras-chave em língua inglesa ou francesa ou espanhola;

g) O texto do trabalho;

3) O texto do trabalho deve ser digitado em Times New Roman, corpo 12, entrelinha 1,5 esem sinalização de início de parágrafo;4) Para citações longas ou exemplos de corpus que exijam recuo de margem, basta usarTimes New Roman corpo 10, sem fazer qualquer alteração gráfica. Se a citação for feita nointerior do parágrafo, usar apenas aspas duplas inicial e final;5) Tabelas, quadros, ilustrações (fotografias, desenhos, gráficos, etc.) e anexos devem virprontos para serem impressos, dentro do padrão geral do texto e no espaço a eles destinadopelo(s) autor(es). Para anexos que constituem textos originais já publicados, incluir referênciabibliográfica completa, bem como permissão dos editores para publicação;6) As referências no corpo do trabalho (ou chamadas) devem ser apresentadas entreparênteses, feitas por intermédio da data identificadora do trabalho, seguida de vírgula,espaço, da expressão “p.” de página, espaço e do(s) número(s) da(s) página(s) citada(s),

Page 241: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

quando for o caso. A norma utilizada para a padronização das referências é a da ABNTque estiver em vigência. Exemplos de referências:STUBBS, M. Disourse analysis: the sociolinguistic analysis of natural language.Chicago: The University of Chicago Press; Oxford: Basil Blackwell Publisher, 1983.PÊCHEUX, Michel. Análise automática do discurso. In: GADET, F.; HAK, T. (Orgs.). Poruma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux.Campinas: Ed. da Unicamp, 1990. p. 61-161.FURLANETTO, Maria Marta. Os caminhos de “onde” no português do Brasil: instrumentoslingüísticos e deriva. Linguagem em (Dis)curso, Tubarão, SC: Editora Unisul, v. 4, n. 2,p. 249-279, jan./ jun. 2004.Obs: Pede-se atenção especial dos articulistas para que verifiquem se as referências citadasno corpo do trabalho (chamadas) estão apresentadas na lista final e vice-versa.7) A seções do texto devem ser numeradas, a começar de 1 (na introdução);8) As notas de rodapé são destinadas a explicações complementares, não devendo serutilizadas para a citação de referências bibliográficas;9) A revista publicará os seguintes textos:

a) Artigos de pesquisa – textos com o mínimo 5.000 e o máxímo 10.000 palavras,contendo o relato de uma pesquisa empírica;

b) ensaios (questões e problemas) – textos com o mínimo de 5.000 e o máximo de10.000 palavras, contendo discussão de um problema teórico relevante ao campoem que se insere;

c) debates – textos com o mínimo de 5.000 e o máximo de 10.000 palavras, contendodiálogo crítico com outro texto publicado na revista;

d) retrospectivas (estado da arte) – textos com o mínimo 5.000 e o máximo de10.000 palavras, contendo histórico analítico e crítico de teorias, abordagens outradições de pesquisa (relativos ao campo textual-discursivo);

e) resenhas – textos com o mínimo de 1.000 e o máximo de 1.500 palavras, contendoo registro e a crítica de obras, livros, teses, monografias, etc., publicadosrecentemente.

Obs: Os resenhistas, em geral, são indicados pelos editores.

DADOS POSTAIS:Revista Linguagem em (Dis)cursoPrograma de Pós-Graduação em Ciências da LinguagemA/C Comissão EditorialAvenida Marcolino Martins Cabral, 39Centro – 88.701-000 – Tubarão/SCE-mail: [email protected]: http://www3.unisul.br/paginas/ensino/pos/linguagem/revista/revista.htm

Page 242: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

EDITORIAL POLICY

Linguagem em (Dis) curso is a quarterly publication open to contributors fromBrazil and abroad with a focus on issues relating to the fields of text and discourse. Theworks published by the journal, therefore, are restricted to the objects text and discourse,separately or in their intersection, and to the theories related to these two objects.

Preference is given to those works presenting an original research, which may be sentas papers, essays (questions and problems), debates, retrospectives (state of the art)

and reviews. Only those texts which have not been simultaneously submitted to otherpublications will be considered.

Texts in Portuguese, English, Spanish and French will be accepted for publication.The texts received go through a two-phase evaluation process. First, the text is evaluated

by the editors, and can be disqualified if: a) it does not comply with the ABNT stylesheet; b)it amounts to a review of literature with no critical stance; c) it is poorly written (e.g.  itpresents cohesion or other micro-level problems); and d) it presents formatting problems(non-tabulated paragraphs, etc.).  After that, the texts selected by the editors are sent to twoanonimous readers who evaluate them in terms of form and content. Two negative opinionsresult in the text being disqualified. In case of differing opinions, the text is then sent to athird reader.

If the work is accepted for publication, the journal reserves itself the right to make thenecessary formatting adaptations. Changes concerning the structure or the content of thetext, suggested by the reviewers, will only be incorporated under acceptance by the author(s).In such cases, the Editorial Board reserves itself the right to refuse the article if the

changes do not meet the reviewers’ suggestions.The author must be informed of the arrival of his/her contribution within eight days,

and of the results of the assessment within ninety days after the first notice. In those cases inwhich the ninety-day period is not enough for the assessment process, the author(s) will beinformed that their work is still under evaluation.

It is assumed that the authors´ copyright related to each work is yielded to Linguagem

em (Dis)curso, and the journal should be informed in case of a re-publishing. Thepublication of articles is not paid. The author will be sent 2 (two) copies of the number inwhich his/her work was published.

All works appearing in Linguagem em (Dis)curso, both in print and on-line, arepublished with the explicit authorization of its contributors, who are legally responsible forthe information presented in their works.

The journal might be partially or entirely reproduced, provided that the sources arementioned.

Page 243: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

NORMS FOR PUBLICATION

1) Works must be sent:a) By e-mail, as an attachment. The files must be “.doc” or “.rtf (option of Word for

Windows)”. The author(s) must also send another file with the following data:author(s) name(s); institutional affiliation; degree; full address; phone; and e-mail.

OBS:  Authors who not have at least a master’s degree (undergraduate students, master’scandidates, etc.) can only publish works in co-authorship with an author holdinga higher degree.

2) Works must include:a) The phrase “TITLE:” followed by the work’s title;b) The phrase “AUTHORSHIP:” followed by the name(s) of the author(s) and including

institutional affiliation – title, university and e-mail – between parentheses;c) The phrase “RESUMO:” followed by the respective abstract in Portuguese (between

100 and 150 words). It is suggested that the abstract specify: the theme and/or theobjective(s) of the article, the theoretical framework and the most relevantconclusions. In the case of a summary of a research article, aspects of themethodology should also be included (corpus, subjects, procedures, etc.);

d) The phrase “PALAVRAS-CHAVE:” followed by up to 5 key words in Portuguese. Thekeywords should be, as far as possible, the current ones in the area; should beordered from the most general to the most specific. It is advised that authors try touse single words, thus avoiding, save in exceptional cases, the use of expressions;

e) The phrase “ABSTRACT:” or “RÉSUMÉ:” or “RESUMEN:” followed by an abstract inEnglish, French or Spanish (between 100 and 150 words);

f) The phrase “KEY WORDS” or “MOTS-CLÉS:” or “PALABRAS CLAVE:” followed by up to5 key words in English, French or Spanish;

g) The text of the work itself.3) The work must be typed in Times New Roman, font 12, 1.5 spacing and with no indentation.4) For long quotations or corpus examples that need to be indented, just use Times New

Roman font 10, without any other graphic change. If the quotation is made inside the text, youshoul use only doulbe inverted commas;5) Tables, charts, illustrations (pictures, drawings, graphics, etc.) and attachments must besent ready to be printed according do the general pattern of the text and in the space preparedfor them by the author(s). Attachments which involve original texts previously published shouldinclude complete bibliographical reference, as well as the authors´ permission for publication.6) Bibliographical references in the text should come between parentheses, including dateof publication, followed by coma, space, the word “p.” (for page), space, and the number(s)of the quoted page(s), when it is the case. The style sheet used for referencing purposes

is the current version of the Brazilian ABNT. Exemples:

Page 244: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

STUBBS, M. Disourse analysis: the sociolinguistic analysis of naturallanguage. Chicago: The University of Chicago Press; Oxford: Basil BlackwellPublisher, 1983.PÊCHEUX, Michel. Análise automática do discurso. In: GADET, F.; HAK, T.(Orgs.). Por uma análise automática do discurso: uma introdução àobra de Michel Pêcheux. Campinas: Ed. da Unicamp, 1990. p. 61-161.FURLANETTO, Maria Marta. Os caminhos de “onde” no português do Brasil:instrumentos lingüísticos e deriva. Linguagem em (Dis)curso, Tubarão, SC:Editora Unisul, v. 4, n. 2, p. 249-279, jan./ jun. 2004.OBS: We strongly recommend that the authors check if the works cited within the text are

included in the reference list, and vice-versa.7) The sections of the text must be numbered, starting from “1” (the introduction).8) Footnotes should include only complementary information, and should not be used forreferencing purposes;9) Linguagem em (Dis) curso accepts for the following texts publication:

a) research articles – texts ranging from 5,000 words (minimum) up to 10,000 words,containing the report of one empiric research;

b) essays (questions and problems) – texts ranging from 5,000 (minimum) to 10,000words, including the discussion of a theorectical issue relevant to the field towhich it belongs;

c) debates – texts ranging from 5,000 (minimum) to 10,000 words, which involve acritical dialogue with another text published in Linguagem em (Dis)curso;

d) retrospectives – texts ranging from 5,000 words (minimum) up to 10,000 words,including a critical and a historical approach to theories, approaches or researchtraditions (in the areas of text and discourse);

e) reviews – texts ranging from 1,000 words (minimum) up to 1,500 words, involvingthe indication and the critical review of recently published works, books, theses,monographs, etc.;

OBS: Reviewers are, generally, indicated by the editors. MAILING ADDRESS:Revista Linguagem em (Dis)cursoPrograma de Pós-Graduação em Ciências da LinguagemA/C Comissão EditorialAvenida Marcolino Martins Cabral, 39Centro – 88.701-000 – Tubarão-SC, Brasile-mail: [email protected]

Site: http://www3.unisul.br/paginas/ensino/pos/linguagem/revista/revista.htm

Page 245: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM
Page 246: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

COMO ADQUIRIR LINGUAGEM EM (DIS)CURSO

Exemplares podem ser adquiridos através das livrarias da Unisul.campus Tubarão: (48) 3621-3009campus Pedra Branca: (48) 3279-1157campus Araranguá: (48) 3521-3000

e-mail: [email protected]

Números disponíveis para compra:V. 1/ N. 2V. 2/ N. 1V. 2/ N. 2V. 3/ N. 1V. 3/ N. 2V. 3/ N. EspecialV. 4/ N. 1V. 4/ N. 2V. 4/ N. EspecialV. 5/ N. 1V. 5/ N. 2V. 5/ N. EspecialV. 6/ N. 1V. 6/ N. 2V. 6/ N. 3

Page 247: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM
Page 248: GÊNEROS TEXTUAIS E ENSINO-APRENDIZAGEM

Av. José Acácio Moreira, 787 - 88704-900 - Tubarão - SC

Fone: (48) 3621-3132 - Fax: (48) 3621-3036

e-mail: [email protected]