função de publicização do acompanhamento terapêutico: a produção do comum na clínica

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 Gonçalves, L. L. M. & Benevides de Barros, R. D. (2013). Função de publicização do Acompanhamento Terapêutico... 108 FUNÇÃO DE PUBLICIZAÇÃO DO ACOMPANHAMENTO TERAPÊUTICO: A PRODUÇÃO DO COMUM NA CLÍNICA THE PUBLICIZING FUNCTION OF THERAPEUTIC ACCOMPANIMENT: THE  PRODUCTION OF THE COMMON IN CLINIC Laura Lamas Martins Gonçalves Universidade Estadual de Campinas, Campinas/SP , Brasil Regina Duarte Benevides de Barros Universidade Federal Fluminense, Niterói/RJ, Brasil RESUMO Este artigo discute o Acompanhamento T erapêutico (A T) como dispositivo clínico-político e suas implicações na atenção à saúde mental no contexto da Reforma Psiquiátrica no Brasil. O AT surgiu num movimento de desinstitucionalização da loucura, tomando a cidade como campo de experimentação e inserindo-se para além dos estabelecimentos de saúde. Esse dispositivo realiza uma “clínica sem muros”, problematizando a um só tempo a doença mental e a sua relação com os espaços urbanos, interrogando radicalmente as práticas manicomiais. Acompanhando o dispositivo em suas variações e em sua articulação com a rede de saúde mental brasileira, atentamos para algumas funções que o dispositivo AT opera. A partir de tais funções, o AT comparece como um mobilizador de forças capazes de consolidar um estatuto público para a clínica. Palavras-chave: acompanhamento terapêutico; reforma psiquiátrica; produção do comum. ABSTRACT This article argues the Therapeutic Accompaniment (TA) as a clinical-political device and its implications on attention to mental health in the context of the Psychiatric Reform in Brazil. TA emerged in a movement of deinstitutionalization of madness, taking the city as its eld of experimentation and inserting itself beyond the health establishments. It performs a “clinic without walls”, discussing at the same time mental illness and its relationship with urban spaces radically questioning the asylum practices. Following the device in its variations and in its links to mental health network in Brazil, we look at some functions that the T A opera tes. From these functions, T A appears as a rallying of forces capable of consolidating a public status to the clinic. Keywords: therapeutic accompaniment; Psychiatric reform; production of the common. O projeto de Reforma brasileira visa promover a desinstitucionalização dos usuários dos serviços de saúde mental, mais do que a sua simples desospitalização. Para tanto se fez necessária uma reforma dos equipamentos hospitalares e a descentralização da posição do hospital  psiquiátrico no atendimento a pacientes em uma rede extra-hospitalar composta por ambulatórios de saúde mental e serviços substitutivos territorializados, de atenção diária aos portadores de transtornos mentais. Desde o início do Movimento de Reforma do modelo de assistência em saúde mental, a atenção passou a ser  pensada na fronteira entre o individual e o coletivo, entre a clínica e a política, o que exigiu uma alteração dos modelos de atenção e gestão das práticas de saúde. As transformações têm envolvido a assistência aos usuários, mas também a forma de organização dessa assistência, de tal modo que o que se produz é uma descentralização tanto da gestão quanto da atenção, que passam a ser feitas em rede. O Movimento de Reforma desestabilizou os saberes que se pretendiam universais e hegemônicos, revelando as relações de poder presentes. Investiu em  práticas não hospitalocêntricas e não médico-centradas, rompendo com a estrutura teórica e com a prática do modelo hospitalar hegemônico. Inseriu uma discussão  política sobre a loucura no cotidiano das pessoas, forçando mais do que a simples desospitalização dos usuários, a desinstitucionalização da l oucura. Produziu, sobretudo, a necessidade de discussão com a sociedade a respeito do que é a doença mental, derrubando os  preconceitos e dilatando as possibilidades de trânsito social para aqueles acometidos por extremo sofrimento  psíquico (Ferreira Neto, 2006).

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Este artigo discute o Acompanhamento Terapêutico (AT) como dispositivo clínico-político e suas implicações na atenção à saúde mental no contexto da Reforma Psiquiátrica no Brasil. O AT surgiu num movimento de desinstitucionalização da loucura, tomando a cidade como campo de experimentação e inserindo-se para além dos estabelecimentos de saúde. Esse dispositivo realiza uma "clínica sem muros", problematizando a um só tempo a doença mental e a sua relação com os espaços urbanos, interrogando radicalmente as práticas manicomiais. Acompanhando o dispositivo em suas variações e em sua articulação com a rede de saúde mental brasileira, atentamos para algumas funções que o dispositivo AT opera. A partir de tais funções, o AT comparece como um mobilizador de forças capazes de consolidar um estatuto público para a clínica.

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  • Gonalves, L. L. M. & Benevides de Barros, R. D. (2013). Funo de publicizao do Acompanhamento Teraputico...

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    FUNO DE PUBLICIZAO DO ACOMPANHAMENTO TERAPUTICO: A PRODUO DO COMUM NA CLNICA

    THE PUBLICIZING FUNCTION OF THERAPEUTIC ACCOMPANIMENT: THE PRODUCTION OF THE COMMON IN CLINIC

    Laura Lamas Martins GonalvesUniversidade Estadual de Campinas, Campinas/SP, Brasil

    Regina Duarte Benevides de BarrosUniversidade Federal Fluminense, Niteri/RJ, Brasil

    RESUMO

    Este artigo discute o Acompanhamento Teraputico (AT) como dispositivo clnico-poltico e suas implicaes na ateno sade mental no contexto da Reforma Psiquitrica no Brasil. O AT surgiu num movimento de desinstitucionalizao da loucura, tomando a cidade como campo de experimentao e inserindo-se para alm dos estabelecimentos de sade. Esse dispositivo realiza uma clnica sem muros, problematizando a um s tempo a doena mental e a sua relao com os espaos urbanos, interrogando radicalmente as prticas manicomiais. Acompanhando o dispositivo em suas variaes e em sua articulao com a rede de sade mental brasileira, atentamos para algumas funes que o dispositivo AT opera. A partir de tais funes, o AT comparece como um mobilizador de foras capazes de consolidar um estatuto pblico para a clnica.

    Palavras-chave: acompanhamento teraputico; reforma psiquitrica; produo do comum.

    ABSTRACT

    This article argues the Therapeutic Accompaniment (TA) as a clinical-political device and its implications on attention to mental health in the context of the Psychiatric Reform in Brazil. TA emerged in a movement of deinstitutionalization of madness, taking the city as its field of experimentation and inserting itself beyond the health establishments. It performs a clinic without walls, discussing at the same time mental illness and its relationship with urban spaces radically questioning the asylum practices. Following the device in its variations and in its links to mental health network in Brazil, we look at some functions that the TA operates. From these functions, TA appears as a rallying of forces capable of consolidating a public status to the clinic.

    Keywords: therapeutic accompaniment; Psychiatric reform; production of the common.

    O projeto de Reforma brasileira visa promover a desinstitucionalizao dos usurios dos servios de sade mental, mais do que a sua simples desospitalizao. Para tanto se fez necessria uma reforma dos equipamentos hospitalares e a descentralizao da posio do hospital psiquitrico no atendimento a pacientes em uma rede extra-hospitalar composta por ambulatrios de sade mental e servios substitutivos territorializados, de ateno diria aos portadores de transtornos mentais. Desde o incio do Movimento de Reforma do modelo de assistncia em sade mental, a ateno passou a ser pensada na fronteira entre o individual e o coletivo, entre a clnica e a poltica, o que exigiu uma alterao dos modelos de ateno e gesto das prticas de sade. As transformaes tm envolvido a assistncia aos usurios, mas tambm a forma de organizao dessa assistncia, de tal modo que o que se produz uma

    descentralizao tanto da gesto quanto da ateno, que passam a ser feitas em rede.

    O Movimento de Reforma desestabilizou os saberes que se pretendiam universais e hegemnicos, revelando as relaes de poder presentes. Investiu em prticas no hospitalocntricas e no mdico-centradas, rompendo com a estrutura terica e com a prtica do modelo hospitalar hegemnico. Inseriu uma discusso poltica sobre a loucura no cotidiano das pessoas, forando mais do que a simples desospitalizao dos usurios, a desinstitucionalizao da loucura. Produziu, sobretudo, a necessidade de discusso com a sociedade a respeito do que a doena mental, derrubando os preconceitos e dilatando as possibilidades de trnsito social para aqueles acometidos por extremo sofrimento psquico (Ferreira Neto, 2006).

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    O objeto da desinstitucionalizao deixou de ser o manicmio e passou a ser as lgicas que reproduzem as relaes que operam a loucura como doena mental. Entendia-se que a extino dos hospitais psiquitricos no era suficiente para garantir uma rede de tratamento adequada. A diminuio do nmero de leitos oferecidos em hospitais psiquitricos era (e ainda ) fundamental, mas deveria ser acompanhada de estratgias slidas com relao criao e manuteno de servios substitutivos internao. Nesse sentido, foram necessrias a criao e a legitimao de outros dispositivos que dessem conta dessa clientela que apenas em ltimo caso deveria utilizar o recurso de uma internao.

    Quando o objeto da desinstitucionalizao deixou de ser o manicmio e passou a ser a lgica manicomial, o que se produziu foi um movimento de desinstitucionalizao da prpria clnica. A necessidade, ento, passou a ser a de criar no apenas novos lugares de acolhimento e de tratamento, mas novas lgicas: romper com a lgica dicotmica que ope clnica/poltica, indivduo/sociedade, dentro/fora, pblico/privado, e que refere o sujeito a um espao privado, a uma experincia privatizante. J no se trata de exilar os loucos nos hospitais psiquitricos, mas de incorpor-los de outra maneira vida da cidade. Tal aposta implicou na proposio de novos dispositivos clnico-polticos, entre eles, o Acompanhamento Teraputico (AT)1.

    Diversos autores (Arajo, 2005; Barreto, 2000; Cabral, 2005; Pelliciolli, 2004; Reis Neto, 1995; Richter, 2003; Zilberleib, 2005) situam o nascimento do AT com o trabalho denominado amigo qualificado, surgido no contexto dos movimentos da Antipsiquiatria e da Psiquiatria Democrtica, movimentos que tiveram profunda influncia nos pases da Amrica do Sul, especialmente na Argentina e no Brasil. No final da dcada de 60, em Buenos Aires (Argentina), o amigo qualificado era algum que se dispunha a estar junto do paciente fora da instituio e auxili-lo em seus afazeres cotidianos quando necessrio. Posteriormente, essa figura migrou para o Brasil, comparecendo em comunidades teraputicas que tinham o amigo qualificado, o atendente ou auxiliar psiquitrico como recurso teraputico. Embora sassem s ruas com os pacientes, indo at suas casas, uma das crticas que se fazia a esses precursores era de que levavam consigo o esquema proteo-vigilncia-conteno. O acompanhante era, pois, um misto de companheiro e enfermeiro que administrava a medicao, que era confidente, censor, conselheiro, elo entre terapeuta e paciente, ego auxiliar e, eventualmente, at superego auxiliar (Ibrahim, 1991, p. 47).

    A referncia Argentina, que norteou o trabalho dos primeiros auxiliares ou acompanhantes, terminou por suscitar discusses e levantar diferenas fundamentais em como tal dispositivo veio se constituindo em nosso contexto brasileiro (Veloso & Serpa Jnior, 2006). Isso se deve ao fato de que, no Brasil, o dispositivo AT se deparou com o Movimento Sanitrio e com o Movimento de Reforma Psiquitrica Brasileira, o que produziu uma inflexo importante no trabalho dos acompanhantes teraputicos. A criao e a implementao do Sistema nico de Sade (SUS) geraram uma inflexo importante no dispositivo do AT em territrio brasileiro, de modo que, a partir do incio da dcada de 1990, o AT se inseriu na cena pblica dos servios do SUS, principalmente atravs de sua incluso nos Caps (Centros de Ateno Psicossocial) e nos Residenciais Teraputicos, juntando foras na luta pela reformulao dos cuidados em sade mental e evidenciando a aposta em uma ateno feita de fato no territrio. Os Caps so servios substitutivos de sade mental e configuram-se como servios de base territorial, comunitrios e regionalizados, e objetivam oferecer atendimento populao de sua rea de abrangncia, realizando o acompanhamento clnico e a reinsero social dos usurios pelo acesso ao trabalho, lazer, exerccio dos direitos civis e fortalecimento dos laos familiares e comunitrios (Ministrio da Sade, 2004, p. 13). Os Servios Residenciais Teraputicos, por sua vez, constituem-se como alternativas de moradia para os usurios egressos de longas internaes psiquitricas. Servem de apoio aos usurios de outros servios de sade mental, que no contam com suporte familiar e social suficientes para garantir espao adequado de moradia (Portaria 251/2002). So, portanto, servios fundamentais no processo de construo de uma assistncia de qualidade, para alm das estratgias medicamentosas e psicoteraputicas, pois incluem nas suas aes os campos da moradia, do trabalho assistido, do lazer e da cultura como formas legtimas e eficazes na produo de vida e sade dessa clientela. Vinculado a esses servios, o AT, grande parte das vezes, exerce funes que se aliam na desinstitucionalizao da lgica manicomial.

    Entretanto, sabemos que, mesmo num processo de desconstruo da lgica manicomial, os dispositivos de sade podem simplesmente reproduzir o processo de produo de subjetividades privatizadas, restringindo-as ao domnio de marcadores psicopatolgicos. Se os dispositivos ficam presos a um campo de saber especfico (mdico, psicolgico ou psicanaltico, por exemplo), correm o risco de serem privatizados e cronificados. Uma simples mudana de modelo pode produzir tambm efeitos de homogeneizao e normativizao, sendo necessrio, portanto,

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    mantermos o movimento e manter-nos em movimento, favorecendo a produo inventiva de novas prticas de atuao e novos processos de subjetivao (Ferreira Neto, 2006).

    Neste artigo, buscamos evidenciar de que maneira esse dispositivo clnico-poltico se alia na inveno de possibilidades de tratamento de pessoas com grave sofrimento psquico, colocando em anlise a ateno no contexto da Reforma e a prpria clnica, exercendo uma funo de publicizao da clnica.

    O AT como analisador da Reforma Psiquitrica Brasileira

    Como campo de foras em tenso permanente, o Movimento da Reforma Psiquitrica Brasileira exige ateno e investimento em dispositivos que possibilitem a efetivao de uma lgica de afirmao da vida em seus processos de singularizao. Para tanto, foram sendo criados alguns servios substitutivos, entre eles os Caps, dispositivos que funcionam como eixo de todo o sistema de sade mental. Apesar de funcionarem como referncia, a proposta que grande parte do trabalho acontea fora deles, ampliando as conexes com outros equipamentos e recursos comunitrios, funcionando como pontos de acoplamento ao cotidiano da cidade, ampliando a permeabilidade entre dentro e fora. O fora entendido, neste artigo, no apenas no sentido espacial (fora da casa, do manicmio, do Caps, etc.), mas principalmente em seu sentido temporal2 (fora da lgica manicomial). Entretanto, na prtica, um dos grandes obstculos desses novos dispositivos a centralizao em si e a pouca abertura para o territrio, o que inclui uma escassa, e por vezes precria, relao com os demais servios da rede de sade, com associaes comunitrias e com a populao em seu territrio de vida.

    O aumento do nmero de usurios que frequentam os Caps tem desafiado o cotidiano dos trabalhadores, no risco de que venham a se fechar nos servios, construindo projetos teraputicos que produzam como efeito uma quase dependncia dos usurios com os Caps. Nesse contexto, o AT insere-se na rede de servios de sade mental, principalmente nos Caps e nos Residenciais Teraputicos, tendo como direo o trabalho nos territrios em que vivem seus acompanhados, e tal postura reverbera de muitas formas nas prticas desses servios. A circulao feita a partir de um trabalho no territrio potente para tornar possvel a criao de uma efetiva rede de ateno: fechadas dentro dos servios, as equipes correm os riscos da cronificao, alm de tenderem a escolher os pacientes, buscando adapt-los s suas especialidades,

    aos seus modelos teraputicos (Lancetti, 2006; Rotelli, 2001).

    Trabalhando dentro e fora das unidades de sade, circulando pelos espaos da cidade, o AT possibilita novas experincias nos encontros que a cidade oferece, outras possibilidades de circulao dentro da prpria casa, do trabalho ou mesmo do servio em que se inserem os acompanhados. Nesse trabalho de acompanhar as pessoas em seus movimentos, buscando ampli-los, o AT possibilita o (re)estabelecimento de mltiplas formas de relao com o mundo, dando suporte expanso das redes vivenciais dos acompanhados. Na medida em que se coloca ao lado dos acompanhados em seus cotidianos, contribui, ainda, para uma diminuio dos circuitos estabelecidos de internao-desinternao.

    As experincias com AT nos indicam que o acompanhante teraputico (at) muitas vezes quem mapeia a rede social do usurio/acompanhado, construindo com ele os rearranjos das/nas redes das quais faz parte, ajudando-o a usufruir as oportunidades de trocas suscitadas no mbito das suas redes. Tais redes podem incluir desde a famlia at os amigos, colegas de trabalho e/ou de estudo, vizinhos, pares comunitrios (Carvalho, 2004) e instituies de sade.

    Desse modo, o AT potencializa a construo de um olhar em rede (Hermann, 2005), levando em conta as diferentes relaes que o usurio/acompanhado constri. Mas, mais do que isso, na medida em que mapeia, produz e amplia uma rede de relaes com mltiplos atores (famlia, Caps, outros servios da rede de sade e de outros setores, coletivos de trabalho, servios e pessoas da comunidade ou do convvio do acompanhado, espaos da cidade), o AT produz modos de cuidar de tal forma que quem acompanha a prpria rede.

    Nesse momento, preciso deixar claro que o mais importante nos funcionamentos em rede no a forma da rede, mas a fora que se liga, que se conecta essa rede, ou seja, que tipos de agenciamentos e conexes se produzem, que tipos de relaes de poder se estabelecem. As foras esto sempre em relao, ligam-se e pem-se a funcionar de certas maneiras (Deleuze, 2005). Essa rede da qual falamos muitas vezes ganha a forma de uma rede de servios ou de uma equipe de tratamento, mas ela no se restringe a essa dimenso formal. Na circulao pela cidade, o trabalho de acompanhamento diz respeito a experincias em que diferentes vetores presentes na cidade entram em jogo: a balconista da padaria, o motorista do nibus, o camel, a tia, a empregada, ou ainda, um programa de televiso, uma chuva inesperada, de tal forma que as intervenes no se restringem aos profissionais de

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    sade, mas a essa rede que se estabelece. A relao no se restringe para a dupla analista-analisando ou acompanhante-acompanhado. O que vem tona a dimenso coletiva da clnica, a dimenso das redes de relaes nas quais os processos de produo de sade e de subjetividade se efetivam (Passos & Benevides de Barros, 2004).

    Paradoxalmente, na operao de construo de redes de cuidados, o at muitas vezes tido como a referncia dessa rede. No que diz respeito s famlias dos acompanhados, elas costumam experimentar a entrada do at de forma contraditria: ele identificado como aquele que vai ajud-los a minimizar o sofrimento e tambm como ameaador ou intruso, j que sua presena evidencia a cristalizao da dinmica familiar (Marinho, 2006). A famlia normalmente projeta no at expectativas de desempenho dos papis nos quais ela experimenta dificuldades, buscando nele um apoio para suas angstias, o que no a impede de apresentar manifestaes de boicotes, cimes, raiva. O at torna-se, ento, uma referncia e um suporte no apenas para aquele que acompanha, mas tambm para a famlia, e intervm na dinmica familiar, compartilhando projetos e responsabilidades quanto ao tratamento.

    O mesmo acontece algumas vezes na entrada do at para uma equipe de sade, quando ele identificado numa posio de referncia da/na prpria rede de tratamento. Tal referncia fica nele localizada para permitir que o cuidado circule e que a prpria funo da qual ele se ocupa possa ser uma funo da rede. O AT permite que a funo do cuidado seja deslocalizada e multiplicada por diferentes pontos que constituem uma rede, tornando mltiplas as referncias. Nessa posio de referncia, tambm desnaturalizada a separao, muitas vezes presente no campo da Reforma, principalmente nos Caps e Residenciais Teraputicos, entre tcnico de referncia e terapeuta, entre ateno psicossocial e clnica. Essa falsa separao faz com que a primeira ateno psicossocial fique relegada a um lugar subalterno, de complementao da funo clnica, cuja propriedade supe-se, ento, detida apenas por alguns iniciados (Santos, 2003). O AT faz coincidir tais termos, desenredando-se dessa querela.

    O at , muitas vezes, um mediador das conexes possveis de se fazer/refazer, entre o acompanhado, a famlia e a cidade, incluindo servios ou pontos da rede de tratamento nas quais ele se insere: um mediador entre o acompanhado e o mundo, transitando pelas ruas da cidade e sendo o fio que s vezes liga a rede teraputica (Marinho, 2006). Frequentemente, o acompanhante quem media a comunicao entre os profissionais que compem a rede de tratamento, funcionando como um articulador. Muitas vezes, o projeto clnico de AT

    construir uma rede de profissionais (que no existe ou que precisa ser modificada) que opere de modo singular com cada acompanhado (Hermann, 2005).

    Dessas mesmas potencialidades do AT, entretanto, decorrem os riscos de ele ser naturalizado e sacralizado como receita mgica. O acompanhante, ento, pode ser encarado como aquele que faz as conexes, fecha as amarras e tapa os furos (das equipes, da rede de servios). Nesse caso, o equvoco fazermos da rede um manto, que a tudo cobriria; do at, um salvador da ptria ou heri; e do usurio/acompanhado, uma vtima que precisa ser salva. O AT no um trabalho de soluo de problemas, tampouco uma prtica adaptacionista aos modos de funcionamento da cidade, das famlias ou dos servios de sade. Ao contrrio, produz intervenes: no no sentido de assegurar a manuteno e/ou o reforo dos territrios j constitudos, restabelecendo alguma ordem, mas de conexo com os movimentos do invisvel, com os fluxos que ainda no se atualizaram. Assim, o AT um dispositivo que se monta sempre no limite dos saberes e das instituies, funcionando muitas vezes como articulador, mas tambm como desestabilizador das relaes cristalizadas presentes nas famlias e tambm na rede dos servios de sade. Funcionando como um dispositivo que opera numa funo limiar, o AT produz como efeito a desestabilizao das oposies sujeito/objeto, clnica e poltica, rompendo com a lgica dicotmica. H, entretanto, um risco de cronificao que se apresenta quando um servio ou mesmo uma rede de tratamento amarra o usurio/acompanhado (Varella, Lacerda, & Madeira, 2006) em uma circulao viciosa, acreditando ser o que garante a sua sobrevivncia. Vemos isso acontecer quando os terapeutas criam uma rede que enreda, que no permite criar sadas para fora de seus servios/consultrios e, menos ainda, para fora da lgica manicomial. A rede que se estabelece, nesses casos, se que podemos cham-la assim, uma rede que se pretende protetora, mas que captura, que aprisiona.

    O AT, alm de ser uma das linhas da rede, opera no sentido da construo de redes, o que muitas vezes inclui os servios de sade, mas no se limita a eles. Ele constri agenciamentos na comunidade em que o acompanhado se insere (com mes, pais, filhos, vizinhos, amigos, donos de bar, igrejas, grupos de trabalho, e outros inusitados), apostando na construo de uma rede afetiva capaz de sustentar a produo de novos territrios existenciais. O conceito de territrio no se reduz a uma rea fsica com caractersticas estticas nem equivale ideia de comunidade como totalidade homognea e sem conflitos ... o territrio , antes, lugar de vida, possuindo um carter processual

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    (Palombini, 2007, p. 121). Ou seja, ele pode ser relativo tanto a um espao vivido quanto a um sistema percebido no seio do qual um sujeito se sente em casa (Guattari & Rolnik, 1986).

    Tal operao em rede se faz implicada com a desconstruo das cronicidades e com a desinstitucionalizao da clnica. Com isso, queremos dizer que, alm de ser uma das linhas entre as redes sociais, as redes de servios ou ainda as redes intersetoriais, o AT opera transversalizando tais redes. Nessa operao, d-se a constituio de uma rede entendida como plano do coletivo, de modo que a rede coincide com a dimenso pblica da clnica. Acompanhar, ento, operar em rede.

    O AT tece redes que possibilitam o estabelecimento de mltiplas formas de relao com o mundo, novas conexes, novos desvios e novas bifurcaes, novos agenciamentos com a cidade na contemporaneidade (Rolnik, 1997). nesse ponto que se situa a funo no formalizada da clnica: circular, disparar, acompanhar intensidades. O AT aciona e acompanha intensidades com o intuito de operar modificaes nos mundos constitudos, colocando novas questes, novos problemas para esses mundos. Se ele atuasse apenas no campo das formas, trabalharia somente com mudanas de comportamento e desenvolveria prticas adaptacionistas (Arajo, 2005).

    Apresenta-se, ento, como um importante dispositivo para fazer funcionar os fluxos de entrada e de sada dos servios, resistindo ao centripetismo do poder que produz, nos dispositivos substitutivos ao manicmio, um novo dentro absolutizado. O AT exerce, ento, uma funo de resistncia lgica centrpeta, dando visibilidade dimenso do movimento como resistncia. O AT faz-se analisador do Movimento da Reforma, evidenciando que ela no produz superao, mas sim embates e lutas, num processo em contnua transformao.

    O AT como Analisador da Clnica

    A prtica do AT chegou da Argentina e serviu como base para o desenvolvimento do que veio a se constituir a prtica brasileira (Richter, 2003).

    Podemos acompanhar na literatura sobre o AT uma mudana da nomenclatura de amigo qualificado para acompanhante teraputico. As justificativas para a modificao da nomenclatura nos dois pases so distintas e apontam tambm dois diferentes movimentos. Segundo Mauer e Resnizky (1987), na Argentina, vrias foram as discusses em torno do nome amigo qualificado e, visando uma maior discriminao

    na relao acompanhante-acompanhado, optaram por acompanhante teraputico. A denominao de amigo qualificado passou a ser entendida como incompatvel com o tipo de relao que se estabelecia, j que valorizava o componente afetivo. Com a mudana para acompanhantes teraputicos, eles entendiam que a tarefa teraputica ficava enfatizada.

    Segundo Cabral (2005), a mudana de nomenclatura pde fazer deslizar o sentido do vnculo entre acompanhante e acompanhado, mas no garantiu um carter teraputico ao at, uma vez que ele seguiu tendo funes como as do atendente psiquitrico, pois o territrio de interveno junto ao paciente seguiu sendo demarcado como sendo da equipe e no do acompanhante. Alm disso, havia um desaconselhamento ao uso da interpretao como recurso do at, devendo essa interpretao ficar reservada ao profissional considerado habilitado e que, na maioria das vezes, era um psiquiatra, psiclogo ou psicanalista.

    Tambm no Brasil a nomenclatura gerou discusses. O atendente e o auxiliar psiquitrico desempenhavam um papel de auxiliar de psiquiatras e/ou psiclogos, sendo esses os responsveis pelos atendimentos. Com isso, entendia-se que as intervenes clnicas, teraputicas estavam fora da competncia dos acompanhantes (Pelliciolli, 2004). Trazendo cena a discusso de como se sentiam ocupando um lugar menor em relao aos outros modos de fazer clnica, os atendentes e auxiliares colocaram em discusso o modo como estavam trabalhando, questionando se eles no estariam reproduzindo, no cotidiano do acompanhado, os mesmos princpios da Psiquiatria tradicional que esperava do AT uma interveno puramente objetiva, de conteno, normatizadora e moralizante (FIORATI, 2006). Esse importante questionamento mobilizou a mudana do nome de auxiliares psiquitricos para acompanhantes teraputicos (Sereno, 1996), configurando a reafirmao de um movimento de ruptura com a teraputica baseada na tradicional Psiquiatria (Richter, 2003). Nesse movimento, os ats produziram um deslocamento interior ao dispositivo, arguindo sobre suas funes, descolando-as daquelas de auxiliar da Psiquiatria.

    Ao mesmo tempo, no campo discursivo do AT, este aparece como uma prtica em busca de uma identidade e de uma teoria que ajudasse na construo de justificativas clnicas para a prtica, o que culminou em uma grande aproximao com a Psicanlise. Tal movimento parece ter sido produzido por uma identificao do AT como uma clnica menor, como coadjuvante, criando entre os ats a perspectiva de que

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    seu reconhecimento e sua valorizao se dariam pela garantia de uma identidade e de uma teoria capaz de sustentar sua prtica.

    A nosso ver, a condio minoritria (Deleuze & Guattari, 1997) em que se encontravam ao propor uma clnica no territrio, fora dos espaos fechados e fora de uma lgica manicomial, foi confundida com uma condio de menoridade. Tal confuso parece ter produzido uma busca pelo saber supostamente capaz de emprestar identidade e legitimidade para o AT. Entretanto, quando o AT passou a operar no mais como um auxiliar do Psiquiatria/Psicanalista/Psiclogo, mas como um dispositivo composto por diferentes saberes; constituiu-se como dispositivo hbrido, no pertencendo a nenhuma disciplina especfica. Segundo alguns autores (Arajo, 2005; Pelliciolli, 2004; Reis Neto, 1995), tal liberdade e riqueza do trabalho do AT se devem exatamente ao fato de ele no possuir uma formao regulamentada e poder ser exercido tanto por profissionais com curso superior (mdicos, psiclogos, terapeutas ocupacionais, enfermeiros, assistentes sociais, professores de educao fsica, artistas plsticos, etc.) quanto por agentes de nvel mdio e tcnico (Pelliciolli, 2004).

    A potncia minoritria do AT, portanto, diz de uma atitude que se diferencia daquilo que na clnica um padro majoritrio, atitude que radicaliza uma aposta na intercesso entre diferentes saberes e na abertura para novas formas de se conceber e de se operar a clnica.

    O que vemos acontecer, desde a dcada de 1960 at os dias atuais, uma modulao do dispositivo. No Brasil, o AT vem sendo influenciado pelas conquistas e transformaes do prprio processo de Reforma Psiquitrica Brasileira. Quando surgiu, seu fazer era submetido a um saber mdico e psicolgico e foi aos poucos que se abriu para o encontro com outros saberes, num processo de ampliao do fazer clnico. O movimento de ida s ruas para acompanhar as pessoas em seu cotidiano surgiu como possibilidade de abertura para que o no clnico da clnica fosse nela includo, ampliando-a. A abordagem teraputica e o prprio campo de atuao foram se expandindo, de tal forma que o espao pblico passou a ser um campo possvel para a circulao da loucura.

    Ao mesmo tempo, sobretudo na Argentina, foi sendo construdo um movimento de institucionalizao do AT, com a formalizao e regulamentao da prtica atravs de associaes e cdigos de tica, com um reforo do discurso do AT como especializao, numa tentativa de tornar hegemnico o fazer AT, fechando-o em uma unidade totalizada (e totalitria). Entretanto, a potncia da experincia de AT se faz justamente

    desmanchando os rgidos contornos dos territrios identitrios.

    O AT desloca a clnica do consultrio, seu territrio por excelncia, e ocupa outros territrios: casas, quartos, carros, ruas, shoppings, padarias, nibus, praias. Na experincia do AT, portanto, a clnica v-se deslocada do consultrio, desterritorializando (Deleuze, 1991) e equivocando o consultrio como espao institudo do setting analtico. O AT evidencia que a clnica se d num lugar que j no porta nem espacialidade nem temporalidade dada, de modo que a experincia clnica no localizvel: faz-se enquanto clnica sem local fixo; d-se, desse modo, num no lugar, no meio, no entre, sempre em relao com uma paisagem da cidade, constituindo-se no que Arajo (2005) pontuou como uma clnica peripattica.

    No podemos restringir a deslocalizao da clnica a uma diferena espacial. Mais do que deslocalizar o espao da clnica, h a inveno de uma nova atitude clnica. No queremos, portanto, evidenciar somente uma alterao de lugar no sentido espacial, topolgico (topos), mas sim a convocao de uma nova atitude (ethos). O trabalho na cidade desperta outra sensibilidade clnica, principalmente em funo de acontecimentos que no so produzidos nem pelo analista nem pelo analisando, mas que irrompem da/na cidade e que tm a fora de reconfigurar o contexto de anlise. Dessa forma, no AT, ativamos uma abertura e uma prontido para o imprevisvel, e elementos que compem o territrio passam a ser manejados numa operao transversal, na composio de uma nova atitude e de uma nova subjetividade.

    Em contato com a dimenso de movimento da prpria clnica, o AT se afirma como dispositivo clnico-poltico analisador da prpria clnica, colocando-a em anlise. No dispositivo do AT, as intervenes deixam de ser localizadas exclusivamente no analista. A funo de anlise deslocalizada da figura do analista, sendo realizada por analisadores que podem ser qualquer evento, situao ou pessoa com potncia de catalisar os fluxos e faz-los falar (Lourau, 1975). A clnica deixa de estar referida a um lugar e a uma pessoa. Tais deslocalizao e despessoalizao significam a afirmao de um plano comum da clnica, de um domnio pblico resultante de uma operao em rede.

    Segundo Passos e Benevides de Barros (2004), a operao analtica nas intervenes clnicas no outra coisa seno a desestabilizao das formas, permitindo o aparecimento do plano de foras de produo a partir do qual tal realidade se constituiu. No plano de produo, plano coletivo das foras, no h propriedade particular, nem nada que seja privado. Lidamos com o que de ningum, com o que da ordem do impessoal,

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    j que todas as foras esto disponveis para serem experimentadas. com isso que os autores entendem como se d a experincia da clnica: experimentao no plano coletivo, experimentao pblica.

    A produo do comum na clnica

    Ao tomar a cidade como espao por excelncia de sua clnica, o AT opera uma retomada do espao pblico (Pelliciolli, 2004), mas tambm do estatuto pblico da clnica.

    Segundo Hardt e Negri (2005), do ponto de vista social, h uma tendncia atual a tornar tudo pblico e, portanto, suscetvel de vigilncia e controle por parte do governo. Do ponto de vista econmico, h uma tendncia a tornar tudo privado e sujeito aos direitos de propriedade. Disso resulta um entendimento de que os interesses, os desejos e at a alma so como propriedades do indivduo, reduzindo todas as facetas da subjetividade realidade econmica. Segundo Baptista (1999), a economia, excluda de sua dimenso poltica, adere a um discurso psicolgico que tende a uma intimizao da vida, destitundo-a da histria das prticas humanas, esvaziando sua multiplicidade de formas e conexes. Pblico e privado se dicotomizam em antagnicos espaos, e um aprisionamento efetua-se em lugares universalmente chamados de interiores, tornando a vida privada uma conquista individual margem da histria. Ainda segundo o autor, a privacidade, individualizada, toma a forma de territrios impermeveis e sedentrios, que inviabilizam estratgias de escape ou fuga de formas sufocantes e fechadas de vida. Fechada, a vida perde movimento, a fora poltica.

    Para Hardt e Negri (2005), o conceito de pblico, por sua vez, tende a tornar indistinta uma importante diferena entre o controle do Estado e aquilo que est submetido posse e gesto comuns. Podemos, assim, distinguir a funo pblica atrelada s funes reguladoras do Estado daquelas atreladas aos processos coletivos, ao comum. O comum no diz da recriao do corpo social unificado e, portanto, da recriao de uma unidade do povo, por exemplo, mas diz das singularidades, das minorias. Os autores apontam uma tendncia democrtica para organizaes em rede, organizaes de resistncia e revolucionrias, que deslocam a autoridade por relaes colaborativas, construindo dentro de suas estruturas organizacionais relaes democrticas, redes de produo do comum.

    Interessa-nos destacar a funo pblica que o AT opera na clnica ao evocar a cidade e as articulaes em rede que ela possibilita como fora poltica, como

    espao coletivo de dissensos e embates. Enfatizamos, ento, a noo de pblico enquanto comum, a produo de comum que o dispositivo opera, produzindo o que chamamos de publicizao da clnica. Nesse sentido, a separao entre os campos pblico e privado comparece como falsa dicotomia, importando atentarmos para a dimenso pblica, essa sim produtora de diferenciao. O que queremos enfatizar a distino entre modos de privatizao e de publicizao da sade e da vida. Temos experimentado dois movimentos correlatos de privatizao: dos servios pblicos e da vida. O primeiro diz respeito a uma tendncia da sade como direito de ser continuamente ameaada pelo contexto de Estado mnimo que atende demanda crescente de racionalizao de despesas atreladas ao imperativo econmico em escala mundial e a concebe como mercadoria. Nesse movimento, a sade vai, aos poucos, deixando de ser funo do Estado. O segundo diz de uma tendncia produo de uma vida cada vez mais individualizada, isolada e solitria, com cada vez menos possibilidades de circulao e reinveno.

    Independente do campo em que comparece, percebemos que o AT opera a transformao da vida cotidiana, a partir de sua ao e circulao no territrio e da reativao dos espaos abertos. Experincia organizada em rede, o AT faz-se como experincia coletiva, fora dos limites do indivduo, propondo uma gesto comum da produo da sade, e nisso tambm que est radicada sua potncia. Aventura-se nas experincias de crise de pessoas em intenso sofrimento psquico, experimentando e produzindo, no limite da prpria experincia, outros modos de pensar, amar, sentir. A aposta na potncia de criao prpria dos momentos de crise possibilita convivncia e trocas com pessoas prisioneiras do seu prprio adoecimento, sem operar no sentido da normalidade, mas na produo de novos modos de viver. Desse modo, desvela-se sua dimenso poltica revolucionria (Palombini, Cabral & Belloc, 2005).

    essa dimenso de rede, de circulao de fluxos, de abertura ao plano das intensidades e das foras desindividualizantes que afirma a dimenso pblica, coletiva ou comum, como preferem Hardt e Negri. A dimenso pblica ou coletiva a prpria dimenso das redes no contemporneo (Passos & Benevides de Barros, 2004). A operao de publicizao da clnica refora-a como operao de desestabilizao das propriedades, do prprio, das essncias e das identidades, num processo de criao de si e do mundo, como resistncia s formas de assujeitamento. O AT opera como resistncia aos movimentos de privatizao dos servios e das prticas em sade mental, produzindo aberturas e passagens aos fluxos

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    da vida. O AT comparece, portanto, como funo de publicizao ou de produo de um plano comum na clnica, colocando para ela um estatuto, uma dimenso no privada e no especialista, que diramos pblica, indicando um modo de fazer a clnica indissocivel da experincia poltica.

    Notas

    1 Ao longo do texto, utilizamos AT, para designar Acompanhamento Teraputico e at, para acompanhante teraputico. Tal abreviao foi inicialmente adotada por Kleber Duarte Barreto no livro A tica e a tcnica no Acompanhamento Teraputico (2000).

    2 O conceito de transversalidade foi proposto por Guattari (1981), em 1964, como um coeficiente que diz respeito a graus diferentes de abertura e de composio de diferentes vetores. Diz respeito a uma abertura no plano da clnica atravs de prticas de atravessamento e conexes, uma espcie de nomadismo de fronteiras, desmanchando incessantemente os territrios cristalizados (Benevides de Barros, 2007).

    3 O conceito de transdisciplinaridade inspirado no conceito de transversalidade, de modo que a proposta da clnica transdisciplinar de romper com as dicotomias sujeito-objeto, indivduo-sociedade, entendendo que a relao entre esses termos primeira e constituidora deles.

    4 No que diz respeito ao Fora, o tempo impe seu primado ao espao (Deleuze, 2005).

    Agradecimento

    Ao CNPq pelo fomento pesquisa atravs da bolsa de mestrado concedida.

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    Recebido em: 01/12/2009Reviso em: 08/10/2011Aceite em: 17/08/2013

    Laura Lamas Martins Gonalves ps-doutoranda em Sade Coletiva na Universidade Estadual de Campinas.

    Possui graduao em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2000), mestrado em Psicologia

    pela Universidade Federal Fluminense (2007) e doutorado em Sade Coletiva pela Universidade Estadual de

    Campinas (2013). Foi consultora da Poltica Nacional de Humanizao do Ministrio da Sade (2007-2011). Tem

    experincia em psicologia clnica, em Sade Coletiva (nfase em planejamento, gesto e avaliao), Sade

    Mental e humanizao. Endereo: Rua Dr. Tcito Monteiro de Carvalho e Silva, 645. Cidade Universitria Um.

    Campinas/SP, Brasil. CEP 13.083-835.E-mail: [email protected]

    Regina Duarte Benevides de Barros trabalha atualmente em Washington para Pathfinder International como assessora tcnica em Sade Sexual e Reprodutiva para Adolesentes e Jovens. Antes disso, foi Diretora de Projetos de Sade,

    Educao e Polticas Sociais pela mesma instituio em Moambique. Entre 1983 e 2007 foi Professora do

    Departamento de Psicologia e da Ps Graduao do Departamento de Psicologia da Universidade Federal

    Fluminense. Trabalhou no Ministrio da Sade do Brasil coordenando a Poltica Nacional de Humanizao

    (2003-2005) e tem prestado consultorias na rea da Gesto em Sade desde ento. Possui doutorado em

    Psicologia Clnica e Ps- Doutorado em Saude Coletiva.Tem experincia na rea de Psicologia, com nfase em Tratamento e Preveno Psicolgica, clinica, produo

    de subjetividade, transdisciplinaridade, sade coletiva e humanizao.

    E-mail: [email protected]

    Como citar:Gonalves, L. L. M. & Benevides de Barros, R. D. (2013). Funo de publicizao do Acompanhamento Teraputico: a produo do comum na clnica. Psicologia & Sociedade, 25(n. spe. 2), 108-116.