fragmentos de um debate sobre o conflito entre tendências metodológicas - ribamar nogueira da...

4
1 Fragmentos de um debate sobre o conflito entre tendências metodológicas 1 Ribamar Nogueira da Silva 2 Baseado em artigos de Luna 3 e Franco 4 , este texto pretende trazer os elementos do debate acerca do – assim chamado conflito entre tendências metodológicas. Para tanto, dividimos nosso texto em três momentos: no primeiro encontram-se as idéias e argumentos principais, no intuito de destacar as diferentes concepções e posicionamentos, dentro dos limites presentes no texto de Franco; no segundo, tentamos acentuar um trecho em Luna que, para além dos destaques de Franco, corrobora para a existência do dito conflito entre tendências metodológicas; e no terceiro, buscamos identificar a suposta tendência teórico- metodológica defendida pelos autores. Informamos de antemão que o fato do artigo de Franco ter sido escrito com base no de Luna ou seja, como um tipo de “resposta” – caracteriza a relação entre ambos como predominantemente unilateral. Assim, de maneira diferente de debates que tratam, por exemplo, do mesmo objeto, mas 1 Texto elaborado como trabalho de conclusão da disciplina Epistemologia (Prof. Pedro Goërgen), 1º Semestre/2008 2 Aluno do Programa de Mestrado em Educação da Universidade de Sorocaba. 3 LUNA, Sérgio V. de. O falso conflito entre tendências metodológicas. In: Cadernos de Pesquisa, nº 66. São Paulo: Fundação Carlos Chagas, 1988, p. 70-74. 4 FRANCO, Maria Laura P. Barbosa. Porque o conflito entre tendências metodológicas não é falso. In: Cadernos de Pesquisa, nº 66. São Paulo: Fundação Carlos Chagas, 1988, p. 75-80. com aporte e abordagem distintos, tornando possível a instauração de um diálogo entre os autores; os textos em questão configuram-se como “argumentos versus contra-argumentos”, versados sobre o estabelecimento ou não do referido conflito. Por este motivo, optamos a seguir por expor as principais idéias de ambos, num movimento que parte de Luna em direção a Franco. Inicialmente, Luna condena o uso do termo “Positivista”, freqüentemente associado a pesquisadores experimentais ou empiristas, por conotar somente aspectos negativos sobre a metodologia e os resultados de pesquisas, normalmente baseadas em procedimentos muito superados; e que tal associação ocorre provavelmente por desconhecimento de fundamentos epistemológicos. Esclarece ainda, que neste fato reside muitas vezes erroneamente o estabelecimento de conflitos entre tendências metodológicas. Franco por sua vez, reconhece a fragilidade na formação epistemológica, como conseqüência de cursos de Metodologia que – muitas vezes baseados em modismos – tornam-se superficiais ao não tratar devidamente a problemática, na sua integração com os pressupostos teórico- metodológicos, em adequação com a coleta, análise e interpretação dos dados. Somando- se esta constatação ao crescimento das investigações científicas e da quantidade crescente de indivíduos ocupados com “Ciência”, resulta no surgimento de reflexões sobre o processo de construção do conhecimento, bem como sobre os princípios metodológicos em uso pela Ciência contemporânea. Tal reflexão demanda uma tomada de posição dos pesquisadores diante das novas posturas metodológicas no enfretamento das questões humanas e sociais. É justamente no embate de posições

Upload: ribamar-nogueira

Post on 29-Jul-2015

249 views

Category:

Documents


55 download

DESCRIPTION

Baseado em artigos de Luna e Franco, este texto pretende trazer os elementos do debate acerca do – assim chamado – conflito entre tendências metodológicas.Texto elaborado como trabalho de conclusão da disciplina "Epistemologia" (Prof. Pedro Goërgen), 1º Semestre/2008 - Mestrado em Educação - Universidade de Sorocaba

TRANSCRIPT

Page 1: Fragmentos de um debate sobre o conflito entre tendências metodológicas - Ribamar Nogueira da Silva

1

Fragmentos de um debate sobre o conflito entre

tendências metodológicas1

Ribamar Nogueira da Silva2

Baseado em artigos de Luna3 e Franco4, este texto pretende trazer os elementos do debate acerca do – assim chamado – conflito entre tendências metodológicas. Para tanto, dividimos nosso texto em três momentos: no primeiro encontram-se as idéias e argumentos principais, no intuito de destacar asdiferentes concepções e posicionamentos, dentro dos limites presentes no texto de Franco; no segundo, tentamos acentuar um trecho em Luna que, para além dos destaques de Franco, corrobora para a existência do dito conflito entre tendências metodológicas; e no terceiro, buscamos identificar a suposta tendência teórico-metodológica defendida pelos autores.

Informamos de antemão que o fato do artigo de Franco ter sido escrito com base no de Luna – ou seja, como um tipo de “resposta” – caracteriza a relação entre ambos como predominantemente unilateral. Assim, de maneira diferente de debates que tratam, por exemplo, do mesmo objeto, mas

1 Texto elaborado como trabalho de conclusão da disciplina Epistemologia (Prof. Pedro Goërgen), 1º Semestre/20082 Aluno do Programa de Mestrado em Educação da Universidade de Sorocaba.3 LUNA, Sérgio V. de. O falso conflito entre tendências metodológicas. In: Cadernos de Pesquisa, nº 66. São Paulo: Fundação Carlos Chagas, 1988, p. 70-74.4 FRANCO, Maria Laura P. Barbosa. Porque o conflito entre tendências metodológicas não é falso. In: Cadernos de Pesquisa, nº 66. São Paulo: Fundação Carlos Chagas, 1988, p. 75-80.

com aporte e abordagem distintos, tornandopossível a instauração de um diálogo entre os autores; os textos em questão configuram-se como “argumentos versuscontra-argumentos”, versados sobre oestabelecimento ou não do referido conflito. Por este motivo, optamos a seguir por expor as principais idéias de ambos, num movimento que parte de Luna em direção a Franco.

Inicialmente, Luna condena o uso do termo “Positivista”, freqüentemente associado a pesquisadores experimentais ou empiristas, por conotar somente aspectos negativos sobre a metodologia e os resultados de pesquisas, normalmentebaseadas em procedimentos há muito superados; e que tal associação ocorre provavelmente por desconhecimento de fundamentos epistemológicos. Esclarece ainda, que neste fato reside muitas vezes erroneamente o estabelecimento de conflitos entre tendências metodológicas.

Franco por sua vez, reconhece a fragilidade na formação epistemológica, como conseqüência de cursos de Metodologia que – muitas vezes baseados em modismos – tornam-se superficiais ao não tratar devidamente a problemática, na sua integração com os pressupostos teórico-metodológicos, em adequação com a coleta, análise e interpretação dos dados. Somando-se esta constatação ao crescimento das investigações científicas e da quantidade crescente de indivíduos ocupados com “Ciência”, resulta no surgimento de reflexões sobre o processo de construção do conhecimento, bem como sobre os princípios metodológicos em uso pela Ciência contemporânea. Tal reflexão demanda uma tomada de posição dos pesquisadores diante das novas posturas metodológicas no enfretamento das questões humanas e sociais. É justamente no embate de posições

Page 2: Fragmentos de um debate sobre o conflito entre tendências metodológicas - Ribamar Nogueira da Silva

2

que se estabelece o conflito entre tendências metodológicas.

Tecendo considerações sobre o uso da palavra Metodologia, Luna cita suas diferentes associações, como à Estatística ou à Filosofia/Sociologia da Ciência, defendendo que a mesma não tem statuspróprio, pois precisa ser discutida dentro de um quadro referencial teórico condicionado por pressupostos metodológicos. Franco critica este entendimento por reduzir a discussão sobre o significado de Metodologia a uma questão meramente terminológica, pressupondo a inexistência de uma relação entre o conceito e as discussões produzidasa seu respeito.

Neste sentido, continua Franco, existe grande diferença entre associações com a Estatística e com a Filosofia da Ciência, uma vez que ligada a última, é concebida no processo de investigação científica como movimento do pensamento humano, na relação dialética entre empírico e teórico.Vinculada à Estatística – ou confundida como técnica ou procedimento de pesquisa, a Metodologia pressupõe o processo de construção do conhecimento humano como dado a priori, neutro e linear, concebidacomo descrição de sistemáticas para a coleta, análise e interpretação de um objeto de estudo. O autor também argumenta que nas diferentes associações situa-se o ponto de partida para os reais conflitos entre tendências metodológicas, pois numa vinculação com a epistemologia do conhecimento – tomada pela perspectiva histórico-crítica – seriam consideradas na apreensão da realidade a indissociação da intenção do sujeito ao apreendê-la; enquanto que concebida como conjunto de procedimentos, prestaria-se à captação e interpretação da realidade pelo empírico, sem preocupação em relacionar o sujeito,

cognoscente e histórico, com a realidade que busca-se apreender.

Luna argumenta que uma pesquisa necessita preencher três requisitos, sendo: a) a existência de um problema traduzido como pergunta, independente se a mesma tenha sido concebida inicialmente ou no decorrer do processo; b) a elaboração e descrição do conjunto de passos que geram informações para respondê-la, ou seja, de um procedimento, que não pode ser confundido exclusivamente com a coleta de dados, e é responsável pelo recorte das informações independente da tendênciautilizada; e c) o estabelecimento de critérios de confiabilidade da resposta, na forma da adequação com o procedimento utilizado.Questionando, ainda, se existe uma tendência metodológica particular caracterizada por estes requisitos, ou se alguma poderia se furtar deles; afirma que a resposta seria “nenhuma”, pelos motivos anteriormente expostos.

Em contrapartida, Franco admite a resposta como “nenhuma”, mas por motivos que não guardam qualquer semelhança entre si, pois a simples formalização destes requisitos não expressa a tendência metodológica, nem a abordagem teórica que orienta o pesquisador, nem o fio condutor que imprime significado à investigação. A identificação da tendência só é possível pela análise da maneira através da qual o pesquisador concebe sua investigação, que resulta do reflexo de sua concepção de realidade, de Ciência e de conhecimento científico.

Ao argumentar que os possíveis conflitos entre tendências metodológicas não se explicam pelo uso preferencial de procedimentos específicos, na sua relação –a priori ou a posteriori – com o problema proposto; Luna sugere que as escolhas

Page 3: Fragmentos de um debate sobre o conflito entre tendências metodológicas - Ribamar Nogueira da Silva

3

diferentes surgem como uma necessidade de adequação a formulação do problema, e não como característica peculiar desta ou daquela tendência. Por este motivo, conclui que apenas caberia a existência dos conflitos na relação teoria-problema, uma vez que a teoria seria capaz de explicar os resultados parciais coletados pelos procedimentos de pesquisa – obtidos sempre dentro das limitações da subjetividade humana na sua relação empírica com a realidade objetiva –sem nunca, porém, deixar de conceber tal explicação como um recorte da realidade.Desta forma, a escolha de determinada teoria acaba restringindo ou priorizando a coleta de informações capazes de absorção pelo modelo explicativo. Em suma, como as decisões metodológicas são decorrentes do problema formulado e este, por conseguinte, só é explicado na relação com a teoria que o criou, torna-se indevida qualquer tentativa de confronto entre métodos e técnicas de pesquisa.

Em resposta Franco critica, primeiramente, a dicotomia entre sujeito e objeto do conhecimento – presente nas chamadas limitações da subjetividade humana, que deriva da transposição para Ciências Sociais dos métodos de investigação da natureza física, por condicionar que o “fato social” deva ser previamente isolado do sujeito que o estuda, para converter-se em “científico”. Em seguida, argumenta que a atribuição de uma “função integradora” para a teoria produz também a dicotomia entre a teoria e prática, por caracterizar a primeira como trabalho puramente intelectual, apartado de qualquer laço de dependência de condições sociais e históricas. Acrescenta ainda, que ao invés do conjunto de idéias organizadas e acumuladas explicarem a realidade, é a realidade que torna compreensíveis as idéias e teorias elaboradas.

Fundamentando seu pensamento e posicionando-se no debate, Franco coloca que a prática social do pesquisador está intimamente ligada à produção de uma teoria, quando este é entendido como homem em sua atividade real – a “práxis”, vivendo relações sociais historicamente determinadas, e produzindo, mesmo que inconscientemente, a realidade que o cerca.Sendo assim, a teoria é uma aquisição histórica construída e produzida na interação que se estabelece entre os homens e o mundo, sendo impossível separar o sujeito cognoscente do objeto a ser conhecido. Então, na forma metodológica da relação teoria/prática tornam-se inviáveispesquisas ditas experimentais ou correlacionais, por seu direcionamento para uma concepção de realidade retalhada que apreende o real pela junção associacionista de seus recortes parciais, na certeza que o resultado seria a totalidade concreta. Ao contrário, partindo sempre do empírico, o tratamento precisa ser dialético, num movimento que em direção ao concreto –para o estabelecimento de conceitos através da teoria, retorna novamente ao empírico na complexidade de suas determinações.

Para Franco, justamente pelo fato da “compreensão do processo de produção do conhecimento” implicar em decisões metodológicas, é que se torna possível evidenciar conflitos entre tendências metodológicas, pois tal compreensão: a) pressupõe a prática social do pesquisador como critério de verdade do saber produzido, extrapolando os critérios meramente descritivos do mesmo; b) gera um tipo de pesquisa oposta àquela limitada por um empirismo acrítico, linear e ordenado; e c)entende que a capacidade transformadora do saber implica na admissão do comprometimento do investigador –determinado pela totalidade da formação

Page 4: Fragmentos de um debate sobre o conflito entre tendências metodológicas - Ribamar Nogueira da Silva

4

social – enquanto indivíduo ocupante de posição social e política. Concluindo, por fim, que somente a utilização crítica dos instrumentos teórico-metodológicos, reafirmaria a condição de “pesquisador”, a possibilidade de contribuição para transformações sociais, o compromisso político e, principalmente, a própria prática.

Traremos agora textualmente, uma passagem do artigo de Luna que justifica, a nosso ver, a existência do conflito entre tendências metodológicas. Propondo um exemplo prático, Luna cita uma situação onde numa investigação sobre a qualidade do rendimento de alunos, na qual foi estabelecido o uso de entrevistas, ponderando:

Minha primeira tendência, nestes casos, é sempre a de questionar as decisões metodológicas na medida em que o problema não me parece suficientemente claro para entendê-las. No caso em questão, a escolha entrevista pressupõe duas decisões, a meu ver temerárias: que a professora é uma boa informante sobre o rendimento do aluno; e que, no caso de dificuldades do aluno, ela não é parte do problema ou que, sendo, admite o fato e dispõe-se a relatá-lo. Os dados de pesquisa e a experiência com professores indicam fortemente a necessidade de esses aspectos serem trabalhados junto ao professor; conseqüentemente, a fidedignidade das informações coletadas junto a esta fonte, considerando este problema, é no mínimo duvidosa. (1988, p. 73, grifos no original)

Entendemos que a situação mencionada seria passível ao referido conflito, pois partindo do mesmo problema (qualidade do rendimento) e usando o mesmo procedimento para coleta das informações (entrevistas), um pesquisador cuja tendência metodológica fosse o materialismo histórico-dialético nunca iria se preocupar com a fidedignidade das

informações, em termos de coerência e neutralidade. Ao contrário, a incoerência e a parcialidade da fonte seriam dialeticamente consideradas na análise que visa à obtenção do “concreto pensado”. Neste sentido, duvidosa é a postura do pesquisador que busca adequar a formulação do problema aos procedimentos de coleta, de maneira que evitando a “contradição” criaria condições ideais para o posterior recorte pela teoria, maximizando assim a pretendida confiabilidade dos resultados.

Deixamos para o final, a parte queapesar de breve nos parece mais a delicada (sem deixar de ser espinhosa) do nosso texto, ou seja, a tentativa de identificar a suposta tendência teórico-metodológica defendida pelos autores. Antes, porém, declaramo-nos cientes do limite de nossas inferências e justificamo-las pela interpretação de poucos elementos trazidos ao debate pela restrita abrangência dos dois artigos em questão.

Considerando que os autores têm a Psicologia como formação e área de atuação5

e, mediante suas colocações no texto, pode-se intuir que Luna afasta-se de uma abordagem de pesquisa “qualitativa” na direção do Positivismo Lógico, ou mais especificamente do Behaviorismo Radical utilizado por Skinner. No caso de Franco, a ligação com o materialismo histórico-dialético originado em Marx e Engels é patente nas suas considerações, o que nos permite afirmar tal fato com mais segurança.

5 Segundo informações fornecidas pelos autores no sistema Lattes. Franco -http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.jsp?id=K4780218P5Luna -http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.jsp?id=K4728817H3 (acessado em 23/09/08)