fogo - mario chagasmariochagas.com/wp-content/uploads/2020/04/linguadefogo.pdfhomônimo. e há...
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língu
a d
e fo
go ou antes q
ue o mund
o acabe
mario chag
as
fazer museu sem fazer poesia é quase
impossível. cada peça é um verso, no
emaranhado ultrabembolado de gale-
ria a galeria – ou sem galeria nenhuma,
como em (uni) verso livre.
fazer poesia sem fazer museu é nada
menos que inconcebível. há uma gota
de sangue em cada poema, diria o
homônimo. e há contra-poemas em
cada gota de saliva no ouvido mouco
e na língua de fogo do poeta preso em
flagrante. há sangue do meu sangue em
cada poema contra a barbárie. e há ves-
tígios de memória em cada linha que
permanece marcada em braille no cara-
manchão das construções sintáticas de
chagas, mario.
para mim, falar na orelha do seu livro não
é fácil, ulceramos em semelhantes. mas
chagas, mario é, como no museu de his-
tória natural, o meu poetassauro ances-
tral. sou inegavelmente sobejo dele.
talvez por isso, talvez por outra razão,
talvez sem razão prática para criticar,
ele me deitou filosofar sobre o que
está por vir, numa nítida inversão de
valores, num esforço memorável de
imaginação museal. aqui não é o velho
quem fala do novo, se não ab ovo.
aqui não há apenas museus e centros
culturais, há guardadores de auto-
móveis, há professores corintos, há
índios galdino e há marias-teresas. e
há muito mais no que somente não há
mais nada. a poesia de chagas, mario
é performática, daí a necessária alusão
ao mundo que acaba e à dignidade
dos mimológicos hãhãhãe.
é possível que os seus antepassados
índios tenham contribuído para firmar
na memória o passo definitivo em rela-
ção à poesia engajada, aviltando os que
tornaram de fogo a língua do índio men-
digo. é possível que mais do que poe-
sia urbana e mais do que museus como
pontes entre culturas, chagas, mario
esteja preocupado em tecer suas pró-
prias teresas, para escapar das amarras
de seu academicismo e das desilusões
da ciência não-ficcional. mas, não, não
é possível antepor o prenome à vírgula
sem deixar de
partilhar o território e o teto de luz
a coberta a escuta e o campo
de capim florido
a semente da memória
e o grão do olvido
e na pétala da orelha sussurrar
esse cabra é meu pai!
chagas, viktor.
mario chagas
língua de fogo
ou antes que o mundo acabe
mar
io c
haga
s
língua
de fogo
ou a
ntes
que
o m
undo
aca
be
lanç
amen
tos
a pa
tir d
ede
zem
bro
de 2
00
8
mario chagas. dinossauro da família
dos zepelins, dos aeroplanos e dos
mimeógrafos. caosnauta em busca
do tosão de ouro. sobrevivente da
guerra fria. tudo isso diz um pouco
de mim, sem dizer nada. acrescente-se a esse nada,
um pouco mais de nada de mim: sou carioca pernam-
bucanizado e depois desgeografizado. nasci durante
as festas juninas de 1956. desde sempre convivo com
festas, fogueiras, bandeirinhas e balões-beijos. cresci
em cavalcante, vi a em cima da hora nascer. estudei na
escola municipal espírito santo e depois me larguei no
mundo fazendo poesia, técnica, ciência e muita arte.
foi por esse caminho que virei técnico em mecânica,
licenciado em biologia, bacharel em museologia, mes-
tre em memória social e doutor em ciências sociais.
tudo isso diz um pouco de mim, sem dizer nada.
língu
a d
e fo
go ou antes q
ue o mund
o acabe
mario chag
as
fazer museu sem fazer poesia é quase
impossível. cada peça é um verso, no
emaranhado ultrabembolado de gale-
ria a galeria – ou sem galeria nenhuma,
como em (uni) verso livre.
fazer poesia sem fazer museu é nada
menos que inconcebível. há uma gota
de sangue em cada poema, diria o
homônimo. e há contra-poemas em
cada gota de saliva no ouvido mouco
e na língua de fogo do poeta preso em
flagrante. há sangue do meu sangue em
cada poema contra a barbárie. e há ves-
tígios de memória em cada linha que
permanece marcada em braille no cara-
manchão das construções sintáticas de
chagas, mario.
para mim, falar na orelha do seu livro não
é fácil, ulceramos em semelhantes. mas
chagas, mario é, como no museu de his-
tória natural, o meu poetassauro ances-
tral. sou inegavelmente sobejo dele.
talvez por isso, talvez por outra razão,
talvez sem razão prática para criticar,
ele me deitou filosofar sobre o que
está por vir, numa nítida inversão de
valores, num esforço memorável de
imaginação museal. aqui não é o velho
quem fala do novo, se não ab ovo.
aqui não há apenas museus e centros
culturais, há guardadores de auto-
móveis, há professores corintos, há
índios galdino e há marias-teresas. e
há muito mais no que somente não há
mais nada. a poesia de chagas, mario
é performática, daí a necessária alusão
ao mundo que acaba e à dignidade
dos mimológicos hãhãhãe.
é possível que os seus antepassados
índios tenham contribuído para firmar
na memória o passo definitivo em rela-
ção à poesia engajada, aviltando os que
tornaram de fogo a língua do índio men-
digo. é possível que mais do que poe-
sia urbana e mais do que museus como
pontes entre culturas, chagas, mario
esteja preocupado em tecer suas pró-
prias teresas, para escapar das amarras
de seu academicismo e das desilusões
da ciência não-ficcional. mas, não, não
é possível antepor o prenome à vírgula
sem deixar de
partilhar o território e o teto de luz
a coberta a escuta e o campo
de capim florido
a semente da memória
e o grão do olvido
e na pétala da orelha sussurrar
esse cabra é meu pai!
chagas, viktor.
mario chagas
língua de fogo
ou antes que o mundo acabe
mar
io c
haga
s
língua
de fogo
ou a
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que
o m
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aca
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amen
tos
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zem
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de 2
00
8
mario chagas. dinossauro da família
dos zepelins, dos aeroplanos e dos
mimeógrafos. caosnauta em busca
do tosão de ouro. sobrevivente da
guerra fria. tudo isso diz um pouco
de mim, sem dizer nada. acrescente-se a esse nada,
um pouco mais de nada de mim: sou carioca pernam-
bucanizado e depois desgeografizado. nasci durante
as festas juninas de 1956. desde sempre convivo com
festas, fogueiras, bandeirinhas e balões-beijos. cresci
em cavalcante, vi a em cima da hora nascer. estudei na
escola municipal espírito santo e depois me larguei no
mundo fazendo poesia, técnica, ciência e muita arte.
foi por esse caminho que virei técnico em mecânica,
licenciado em biologia, bacharel em museologia, mes-
tre em memória social e doutor em ciências sociais.
tudo isso diz um pouco de mim, sem dizer nada.
rio de janeiro 2008
mario chagas
língua de fogo
ou antes que o mundo acabe
copyleft © 2008, mario chagas©
projeto grá co e capa: marcia mattos
fotos: mario chagas
fonte do título “língua de fogo”: misprinted type
endereço da editora
C426 CHAGAS, Mario de S. Língua de fogo ou antes que o mundo se acabe/ Mario de S. Chagas. – Rio de Janeiro : RTC Edições e Publicações, 2008. 176 p.; 14 x 21 cm. – (Coleção Letras do Rio ) ISBN
1. Poesia. 2. . 3. . 4. . I. Título. II. .
CDD
sumário
o m é sendo 8 antes que o mundo acabe .aos mestres. às... atrizes (à guisa de oferta) mário sá carneiro (à guisa de avatar)
vaga-lume em memória 16 louvação ao abrigo do sonho lágrimas fala da mãe de galdino para o pai juvenal (em sonho) fala dos defensores do crime canto da amante banguela es nge dos lábios de mel
contra a barbárie 32 desapego palhaço caco de vidro poeta contra a barbárie pista carandiru professor corinto
santa marta memória da cidade medo (marque com um “x” a resposta amarela) 14 bis ou acorda a corda que o mundo acabou arcos coisa separada
teresas 70 guardador de automóveis mãos dadas além do que não sei fragmentos folha solta todos os poemas os e labirintos declaração de amor suburbano para rosemeier para amar na cozinha amares poemas do outro dia contra-abortivo ovo caminhadas costura teresa do amor admirado e da admiração amorosa
verdade mentira engano pior
memórias na ponta da língua 102 a corda ex-gana memória do líquen peitos da memória memória dos olhos outro lado da memória evaporação condensação tulipas caminhos mãe do mato museu visita ao museu diabão amália mega iv lisboa visitada com gravata gravata de rua pingue-pongue nadadeiras e asas aliança pontas memória dental alforje noturno suburbano não sei
largo da ordem peixe espada vem chegando a madrugada ô e a velhice vem caindo das cabências do amor (marque com um “x” a resposta celta) cantigas de amizade (marque as respostas valsas) da guarda baixa cauê ci né má i boa nova ii desvestindo a noiva iii canal 100 iv no escurinho v musical capiba vi falado vi documentário vii roteiro
antes do m 160 das mãos em tese ditirambos oferta da fala cena i – os tupinambás são gregos e vice-versa cena ii - só doido só poeta cena iii - assim falava zaratustra cena iv – extra extra antes do m
fotogra as 7, 15, 41, 81, 141 e 149 balé de bailarinas de garrafa
o m é sendo
9
antes que o mundo acabe
.um amigo, a quem vejo de tempos em tempos, me disse: “o mundo vai acabar. antes que o mundo acabe, publique o seu livro.” um outro amigo, a quem encontro com freqüência, sorrindo, entrou na conversa: “mermão, é melhor publicar o seu livro... agora, se ele for publicado depois do m do mundo, ninguém poderá ler... será como lançar um disco que não desgruda da mão do discóbolo”. um outro amigo, a quem vejo com mais freqüência que o primeiro e menos que o segundo, alucinou: “o mundo acabou ontem”. o papo seguiu nesse tom. meus amigos falavam entre si e de vez em quando demandavam outras opiniões. de um momento para outro me vi rodeado de dinossauros que falavam de lançamento de livros, do m do mundo, de mundos paralelos, de mundos em construção, do pior e do melhor dos mundos e de temas como biblióbolos, diábolos, musicóbolos, museóbolos, símbolos, glóbulos, anti-glóbulos, alter-glóbulos, alter-globalização e outras tantas coisas. dirigiam-se uns aos outros falando: “é isso aí cara!”, “é isso aí bicho!”. saí e voltei. saí e voltei e me deixei com meus amigos. mas, ainda assim, quando saí de vez, saí incomodado. sem relação com o m do mundo, o meu incômodo passava pela hipótese do m do livro. de tal modo aquela conversa de exilados do reino de mandacaru atravessou a pele e atingiu as vísceras, que no dia seguinte este meu livro mais novo - que desde o século passado singrava minha vida com os títulos “livro do horror” e “língua de fogo” - passou a chamar-se
10
“língua de fogo ou antes que o mundo acabe”. este relato, do ângulo em que vejo, talvez seja importante. ele registra o direito à memórias, museus e teresas, a poética da amizade que se faz sendo, a poética do encontro entre a subjetividade e a sociabilidade, a poética dos tempos e saberes distintos, a poética da resistência, o m da poética, o rugido da alter-poética, a poética do re-início e o meu desejo de não nalizar livros. desejo derivado do desejo de não nalizar versos, poemas ou textos, e sim mantê-los em movimento, em vida, em situação de risco, em perigo de ser e de não ser, de vivê-los sendo. na verdade não gosto de nalizar nada. o m para mim é uma impossibilidade, é um não- m, para mim o m é sendo, estando, indo e vindo1. ainda assim, tendo o mundo acabado ou estando prestes a acabar, lanço aos deuses dos quatro rios esse livro que continua em processo. língua de fogo.
1 gerúndios são giros, girinos gerando mundos.
11
.aos mestres. às irmãs. aos lhos. aos pais. aos sobrinhos. às tias. aos amores. aos amigos e aos aminimigos.
12
atrizes (à guisa de oferta)
toma este fragmento de memóriaé ferro em brasa o mundo da lembrançae o esquecimento é nuvem gordapronta para desabar
um dia eu queimei as mãostocando o álbum de famíliaainda guardo as cicatrizes no bolsodo fraque que não usei
toma esta cicatrizse a dor não te assustae completarás assimo quebra-cabeça do buda
minha memória é espontâneahás de me dizermas não se pode pôr de pé um four de asesse o ás de ouro não vem
13
convém achar primeiro a portaque o vento esqueceu de fechar
a memória de que falo é casa híbridaé gesta gesto gasto gostoé tijolo pedra sonho areiapá que rasga e remexecimento água desejo e trabalhotoma este fragmento de azulejocom delicadeza ele revela tudo
¿quantas almas de índios e negrosforam abortadas dos corpos de carneem nome de deus e de sua majestadepela marra da cruz e da espada?
era uma vez e eu queimei as mãostocando o álbum de famíliaainda guardo as cic-atrizes nos olhos
14
mário sá carneiro (à guisa de avatar)
eu sou eu e sou o outroe ainda sou o intermédiodetono os diques do tédioe co inundado de nós
1515
vaga-lume em memória
17
louvação
louvada seja a memóriado cacique galdinomorto queimado vivona cidade de brasíliano dia vinte de abrilum dia depois do dia do índiodois dias antes do encobrimento do brasil
louvado seja o própriocacique pataxóqueimado vivopor quatro adolescentesda cidade de brasíliacavalheiros de famíliado apocalipse burguês
louvado seja o povo pataxó hãhãhãe(honra e glória da bahia)um dia foi soberanohoje não tem porto seguropovo que dorme na ponteno ponto ou na parada do ônibusperiga acordar com o corpo em chamas
18
louvados sejam o sono e o sonhodo índio galdinointerrompidos com a dordo corpo que queimae o ardor do sangue que ferveo sono acabou em morte¿ o sonho outra sorte teve ?
galdino jesus dos santos(perdido é seu nome pagão)índio devorado vivona cruz central do paísum dia depois do dia do índiodois dias antesdo encobrimento do brasil
19
ao abrigo do sonho
¿com o que sonhava o índio que dormiaantes que o seu corpo virasse lumea alma lua e o hálito virasse sol
sonhava com o abrigo pataxócom a água do rio e do poçolivres do envenenamento
sonhava com a pedagogia do vôoo exercício livre do direito ao are à terra onde seus ancestrais foram crianças
sonhava o m do nãoe o m do sim das violências e ameaçasdos fazendeiros e grileiros de plantão
sonhava com uma canção justamenos hipócritae mais solidária
com o que sonhava galdino quando dormiaantes que o seu corpo virasse sola alma lua e o hálito ascendesse a vaga-lume?
20
lágrimas
a mãelidera passeata de protesto e choraa mãenão se apaga com o veredicto da juíza cegaa mãeencarna a rebeldia e a dor do lhoa mãedo que foi feitolumetochasofre e chorao sal das lágrimas da mãeacende a branda chama da corageme abranda o fogo fácil da vingança
21
fala da mãe
meu nome é minervina de jesusde um lado sou pagã lha de minervadeusa da sabedoriada guerra e da guerrilhade outro sou lha de jesus
ao dizer meu nomedigo nadadigo tudosou minervina pataxó hãhãhãede jesus indignada
22
os burgueses não gostam de índioos policiais não gostam de índioos donos das leis não gostam de índioos cristãos não gostam dos deuses de índioos políticos neoliberais não gostam de índio
as mães pataxó hãhãhãe somam forças
:não queremos com carne vilenfraquecer os fortes:não queremos morder corações nefandosou comungar do corpo e do sangue de covardes
23
para os quatro deuses lares infamessonhamos a justiçados deuses do fogocom a estrela amejante na testae na destra o facho luminoso
mas a justiça é ricabranca bela cegae não gosta de índioa justiça não gosta de índio
24
de galdino para o pai juvenal (em sonho)
pai proteja a mãe e as criançascante pra elas os cantos pataxópuxe pela lembrança dos mais velhosreacenda a chama da memória do lugardiga pro edvaldopro gérsonpro pessoal do zé caboclopro alcidespra maurapro wilsonpro juracie pra maria titiádiga pra todo mundo velho e pra todo mundo novoque eu continuo fogo vivoe que a luta mantém a chama do guerreiro
pai
quando a mãe deitar a cabeça em seu ombrocante pra ela a meu pedido
25
:mãe não sofra tanto mãemãe não chore tanto mãefogo não queima fogoe a língua de fogoacende o fogo da língua do povo
26
fala dos defensores do crime
brincadeira e jogode meninos civilizadosbárbaro é dormir no ponto
brincadeira doce e purade meninos educadosbárbaro é dormir na rua
brincadeira de luz e brilhode meninos bem polidosbárbaro é índio maltrapilho
brincadeira de amigosde meninos bem limpinhosbárbaro é índio mendigo
brincadeiras e brincadeirasqueimar mendigos e índiosfaz parte das brincadeiras
27
canto da amante
digam o que queiram dizerfalem o que queiram falareu amo galdinovivo
morto há de virar lmepeça de teatro música poesiamonumento nome de ruamuseu
galdino há de virar bandeiraarte marca imagemquem sabesonho
eu quero galdino vivovivo dormindo e acordando comigopegando fogocomigo
28
banguela
banguela dos lábios de melguarani
ancestral do tempoguarani
aconteça o que acontecero medo não será estradanão será estrelano céu da boca banguela
anoiteça o que anoitecera mãe do sol há de vire há de incendiar os medosde amar e de ser
29
de ser e amarum pedaço da lendaque meus lhoshão de cantar
banguela dos lábios de melsem males
ancestral guarani do temposem males
buscador guarani da terrasem males
reverencio tua boca portalvazia de males e dentes
30
es nge dos lábios de mel
não há descobrimentoamérica de alencariracema de além-maramérica não foi descoberta
iracema foi coberta e recobertatal como robertaem pose e de pertoiracema é o enigma do desterro
31
deslocada em sua mesma terraé o ambíguo umbigo da es ngeé a cobra grandesem coberta que a cubra
não há descoberta que cubraa colcha de gentes e retalhosdo deus dos fados e atalhosse a onda de vida se põe a caminho
contra a barbárie
33
desapego
inclino-me reverentementediante dos loucoshá lucidez em seus olhares
inclino-me reverentemente diante dos mendigosem suas peles sujas e fedorentasestá escrita a história da riqueza
inclino-me reverentementediante das putas e dos travestiseles ensinam que a ilusão é mãe e amantede homens e de mulheres
34
inclino-me reverentemente diante dos bêbadosdos jornalistas agrilhoadosdos funcionários públicos acovardadosdos burgueses bem traídos e casadosdos solteirões acomodadosdos empresários que burlam o scodos artistas que vendem a alma e o corpodos professores que odeiam alunose dos políticos que odeiam povoeles ensinam que a vida compõe-se de vidasque sobreviver é espirrar pelas brechasque os deuses do mercadonão cumprem promessas e que dançar e transformar-seé próprio do humano
35
inclino-me reverentementediante dos sacerdotes e militares vendilhõesdos sindicalistas mexilhõesdas modelos cortesãsdos jogadores e vendedores de ilusõestodos eles ensinam:é possível ser campeão em tudoe ainda assim ser cheio de nada
a famaa palavra de ordema ordem do diae o grito cego da féfazem parte dos desejos humanos
36
inclino-me reverentementediante dos menores bolados e cheirados de colados camelôs que tumultuam as ruasas calçadas e as esquinasdos ladrões de galinhados assaltantes de sinaldos guardadores de automóveise dos guerrilheiros de plantão nas orestasfavelas e botequinstodos eles- mestres de vivências e de tecnologias de sobrevivências – ensinam que a vida é um mar de possíveisnavegações naufrágios e afogamentospossíveis mergulhos nadares boiarese outros possíveis mares
37
inclino-me reverentemente diante daquelesque não têm nomenão têm tradição família ou propriedadee também diante daquelesque tendo nometradição família e propriedadeodeiam exploramescravizam e matam os diferentestodos eles ensinam que nometradição família e propriedadenão são libertadoressão caramujos de estimação inventadapodem ser falsi cados vendidos compradoscontrabandeados e roubados
38
inclino-me(afrontando meus limites e resistências)diante dos tra cantes de fé e in uênciasde armas e obras de artede pedras e plantasde animais e órgãos do corpo humanode drogas e conhecimentos tradicionaisa ciência a arte a loso a e a religiãoque eles praticamvivem nas pétalas da or do coraçãoe fazem parte da nossa maldade
39
inclino-me reverentemente diante de mim mesmopelo que soue não soupelo que tenhoe não tenhoem comumcom todos aqueles diante dos quais me inclino
que a libertação do sofrimento decorrente do apego à idéia de um eu seja beijo gozo e regozijo para todos os seres viventes
40
palhaço
por mim eu gerava só alegriamas mesmo a roupa de palhaço
com que rodopio e disfarçoassusta e afasta a fantasia
41
42
caco de vidro
sou um homem sem poesiacomo um caco de vidro vermelho e no
como um fragmento pontiagudode bola de árvore de natal
aquela frase cortou em mimrasgando e virando a noite pelo fundo
sou um homem sem poesiasou um homem sem poesia
meu amigo repetia sem parare brotavam sobre a mesapalavras de língua presa
e gotas de sangue vilipendiado
tanto mais o vinho enrubescia a línguamais a língua acesa repetiasou um homem sem poesia
e se ninguém parecia ouvir o que ele diziamais ele se exaltava gritava e repetia
sou um homem sem poesia
43
chorando cacos de vidromeu amigo falava
falavae queimava palavras
como quem não quer mais diasou um homem sem poesia
quando a noite cambaleavavencida pela voz exangue
e o sol anunciava a sangriavirei a mesa
quebrei os copose mesmo sabendo que ele não me ouvia
gritei atropelando o ouvido moucohá um contra-poema em cada gota de sangue
44
poeta contra a barbárie
sobre as cabeças os aviõessob os meus pés os terremotosde expansões industriais
piloto terrorista beleza purapula de asa delta da pedra bonitanas barbas fenícias do imperador
bom vôobom vôobom vôo
sobrevoando a estátua da liberdadepiloto lembra do poeta aljordas canções de jorge bene de cassius marcellus clayo inesquecível muhammad ali
45
sobrevoando a torre eiffellembra de santos dumonto poetaaviadorsuicidae de seu relógio de pulso cortadocortadomarcando sempre a mesma horacomo um salvador dalidali daqui dali daqui dali dadaque oferta a própria cabeça em salva de prata
piloto terrorista beleza purapula da vida para entrar na histórialembrando do avião balaque getúlio meteu no próprio peito
46
camus o profeta conhecia o futuro como o cego tirésiase sabia que o suicídio habitaas duas colunas vertebrais do mundo
sobrevoando a torre de belémpiloto se dá conta de que o sal do mar atlânticoé temperado com as lágrimas de portugal
piloto beleza pura pula da pontemergulha no mar (rio) dos náufragose (sim e não) se afogaergue vôo e sobrevoa a baía
47
sobrevoa a cidade e quando ninguém mais espera nadapiloto terrorista lançanos subúrbios mangues e favelasno coração da cidadee em todos os bairros do riocanções e versos de amor
um coro de demônios e anjos irmanadoscompleta a cena cantando:!viva a asa alfa beta gama delta da poesia!!viva!
!viva a sociedade alternativa!
48
pista
imarcha fúnebre:tam tamtam-tamtamtam-tam tam-tam tam-tam
piloto morto de fome em triunfopiloto come carne humana coletada no lixo hospitalar do recifepiloto de rua morto na candeláriapiloto preso preto morto no massacre de carandiru
ímola ímola imolação
piloto sem carro invade pista alheiapiloto automático seqüestra avião para miamipiloto sem grana rouba bife de açouguee reedita a saga dos miseráveispiloto político e piloto juizcomprovadamente corruptoscontinuam fora da cadeia
ímola ímola imolação
49
piloto apaixonado mata e morre por ciúmepiloto desempregado invade o museue por engano atira no amigoe vira notícia sem quê nem pra quêe na seqüência vira refém da notíciavirado refém vira suicidadiante de um cinegra sta amador
piloto professora chorapiloto professora choraa desdita em sala de aulae assassina o contracheque na frente dos alunos
piloto mendigo é morto queimado vivopor adolescentes no metro de paristrês anos antes do homicídio de galdinoparis é vanguarda paris é bárbara
piloto candidato a presidente reconhecepublicamenteem discurso de campanha na favela da maréser rico é muito chatomuito chato muito chato
m de circolona podre
50
iieu vi o futuronão tenho medoele fede a peixe podrefede e fededo bucho do peixeo anel da luaregula as marésa era de aquáriosregula o criativoo falo do solregula os ventos
falo do solque pilota um sistema
falo de sóisocultosde astros zerose zoroastros
assim como falavam os zaratustrasfalo do sol e do fogolíngua de fogo lambendo o balão
51
língua de fogofalo do sol centrale dos periféricosfalo da terra falo da águafalo do fogo falo do ar
falo do éter da palavra e da vidafalo metido na vidada vida metida na vidada vida que come a comida da vida comidae nada mais
52
carandiru
carandiru é a sociedade inteirabrancos amarelos verdes e azuisa favor e contra a exploração
carandiru é uma bandeira e uma naçãonuvem de híbridos e tantos morenosjambos feijões chocolates e cafés
carandiru é um baile com bolas nos pésbicicletas lençóis e folhas secasde mulatos cafuzos caboclos e mamelucos
carandiru é uma cidade de malucosé uma escola é um teatro é um temploé o que você quiser que seja possível
53
carandiru é a ladeira do impossívelguardada em cofres de corvos de nunca maisé uma arca de alianças é um museu vivo
carandiru é um arquivoarquivo corrente é arquivo algemadoarquivo morto é arquivo queimado
carandiru é a a rmação do fadoa negação da vida da porta e da morteé prisão em ventres de quimeras
implosão e explosão de vísceraso cv do mundo é aquiprisão é prisão em qualquer arte
54
professor corinto
sorrio da lembrança do professor corinto(relido por vingança como o barqueiro do inferno)ele roubava aulas de português na escola técnica federale gargalhavaquando eu dizia
: professor eu sou poeta não sou técnico em mecânica
ele esbravejava muito e metia medometendo o dedo indicador na minha cara espinhentaquando eu dizia
: professor eu gosto da poesia da mecânicae da mecânica da poesia
55
e mesmo não gostando muitogosto mais da poesia mecânicado que da sua cara de titia mal amadapara dizer a verdade a última frasesempre morreu seca no húmus da língua
56
santa marta
¿ese a alma do morro descesseese o dona marta fosse um vulcãoeexplodisseese a lavaea saliva do morro se derramassemedescessem (baba sem trégua)einvadissemeocupassem para sempre a cidade?
57
memória da cidade
de onde estouvejo o cristo redentor
punhal cravadona corcunda do rio
rio sem quê nem porquêduvidando na cidade
¿cidade dadivosaque perversidade é esta?
¿de onde vem a per ver cidadeque se quer mar ave ilhada
de onde vem meu desejode rir dos inimigos do rio?
rio de dia e de noitee de onde estou agora
vejo o cristo iluminadopunhal cravado na caveira do rio
caveirão não caveirão não
58
para minha alegria e tristezavejo na memória meu lho mais velho
quando era mais novo dizendo:!papai olha o cristo arrebentô!
de onde estou agoravejo e não vejo o cristo que reluz
ver e não veré uma invenção de nuvens
desde que foi iluminadoo cristo não pode mais
sair do pedestale dançar na noite
o trauma do cristoa sua morte e alucinaçãoé não poder perambular
pelo ser tão carioca
meu sonho não é ver o cristo plantadovegetal de concreto podre
é revê-lo em dançavirando do avesso o per verso
59
no meu sonho o cristo é brasae mora em bonsucesso
de onde parte o bonde expressopra depois da cidade de deus
de onde estou já não quero ver mais nadaquero apenas sonharcom um cristo alado
que além de voar também me dá asas
60
medo(marque com um “x” a resposta amarela)
( ) a. medo é o desejode que algo de malaconteça
( ) b. não temoser poema ou problematemo ter medo
( ) c. não temo terou não ter respostatemo ser medo
61
( ) d. o medo fode a alma e o corpoo medo fode a mente e a inteligênciae também fode a paciência meu amor
( ) e. meu amoro medo a tudo fodea tudo corrompe e envenena
( ) f. não tenha medome dê a mãoé bom mandar o medo à merda
62
14 bis ou acorda a corda que o mundo acabou
empédocles pulou na boca do dragão(monte e mito cuspidor de lavas)giles deleuze pulou da janelapara a boca banguela(vazia de valor e virtude)sêneca cortou os pulsos na banheira(boca cheia de água)vargas apontou a morte para o coração(copo cheio de sangue)o velho bruno bettelheimen ou a cabeça num saco plástico(cansado de viver sufocado)e eu por pouco não me enforqueina corda bamba do umbigo(a cara morte da morteé a cara da criança morta)
63
poucos pipocam para a barriga de água da vidae brincam de boca de forno fornotirando o bolo bolopendurados na coragem da pedraamparados numa nuvemconcentrados numa estrela de mário quintana
é difícil continuar vivendomorrendo e vivendo com os passarinhoscolocando asas nos sapatos pelo simples prazer de andar no ar
a vida vale o que ée a morte é vale de mentirascom a cara de pau do pinóquioe o amor maior do gepeto
64
só mesmo com cara de paué possível continuar vivendomorrendoe nascendona barriga das pedras das algas das baleiasdas cobras dos peixes dos passarinhose das meninas
65
arcos
i
pelos arcos da lapapassa a marcada alma do tempoengana-se quem pensaque pode guardar o passadona mala
o futuro está nos arcosda mão da palma da lapada palminha e da lapinhadas crianças
:
66
ii
engana-se quem pensaque pode dar as costas à memória
perigo
nos passos da lapao passado de repente grita
: mãos ao altoé um assalto
mental
iii
só mesmo de bodepra não ver o bonde de santa teresa
só mesmo de bodepra perder o bonde da históriaque se faz aqui
na ágora da desordemnas asas do progresso
67
coisa separada
perdido na oresta de copacabanasem condições de dormir interrogo
¿que faço entre a fauna e a orase não quero vender e não quero comprar?
tudo é vazio – diz o travesti lósofoestou de saco cheio – diz a menina que se coçatudo é cheio e é vazio – um relâmpago zen me ilumina
não sou deste nem de outro mundonão sou médiumnem remédiumapenas vim vi e venci o tédio de estar comigo
sou o que busca sem confortoaquele que não se rendesou demônio sem sonoanjo que não gosta de acompanhar novenasboêmio que perdeu o bacuraupara não perder a sorte de uma conversa banal
68
quem quiser ganhar a vida perdê-la-á (sentencia a descrente do vidigal)os mortos ressuscitarão em carne e osso(garante a descatólica de vigário geral)
não quero ganhar ou perder a vidamenos ainda ressuscitar em carne ossotenho vidas explodindo pelos porosaprendi a memória dos ossose quero tão-só a compaixãoe a compreensão dos budaso amor e a sabedoria dos cristos
¿o que faço por aqui além de um poemase compreendo que blake goethe baudelaire walt whitman helena blavatsky roso de luna henrique josé de souza edgar allan poe wassily kandisky augusto dos anjos fernando pessoa cecília meireles gilka machado paulo leminski oswald e mário de andrade clarisse lispector wally salomão guimarães rosa mário quintana manoel de barros e aljor foram além de anatole france e olavo bilac?
69
não digo amémvivo tecendo e refazendo ágorascolocando pilha em relógio de cordadando linha em relógio de solcortando pulso de relógio digital
deixa em paz meu coração. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
sou o caosnautae sei que o tesouro da vidao tesão de ouro da vidaé celebrado na viagem
teresas
71
guardador de automóveis
eu nunca guardei automóveismas é como se os guardasse
minha alma é como um guardadorconhece as chapas e as chaves
os arranhões e as mossasos pêlos e as peles dos corpos dos carros
desde o azul celesteao luar de prata
desde a negra noiteao branco de nata
desde o vermelho sangueaos verdes olhos da mulata
minha alma anda pelos estacionamentosde mãos dadas com os condutores
seus agregadose passageiros
sem lhes querer assim ou assadosem lhes saber réu juiz ou jurado
sem querer ensacar os que perambulamna categoria do bem ou do malbem e mal não me dizem nada
72
minha alma não é crentenem descrente
e muito menos pretendebeijar a boca do universalismo dogmático
com hálito judaico-cristão
minha ama de leite é pagãé pagã e me ama
e por isso mesmo minha alma amaminha alma não tem religião e ama
e é livre como uma damanum tabuleiro de xadrez2
é ela quem ama guardar cartasdesenhos gravuras pinturas
esculturas e coisas que habitam o universode três dimensões
e mais ainda
2 do fundo do seu saturno, meu lho me lembra: há damas no tabuleiro de xadrez e xadrez no tabuleiro de damas.
73
é ela quem guarda as coisas que não se pegacoisas que não se toca
que não se medeque não se pesae não se conta
coisas que não têm dimensãotipo pique-pega
pique-latae pique-cola
tipo música poesia e dançatipo amizade e amor
guardar rebanhos(alheios)
guardar automóveis(alheios)
tudo isso é guardar museus e patrimônios(alheios)
74
como não sou alheio ao que háde humano de memória e potência
em mimcelebro a liberdade
teresa que toco e me tocae
guardo a mim mesmoem meu corpo de dança
em minha alma brincanteem meu espírito inventivo
pondo-me a brincar e a dançar pela vidapondo-me a inventar inutilidadescomo berlindas de capim dourado
balés de bailarinas de garrafaspipas vãs transportando falanges de meninos
tudo issopara que eu não seja mais um automóvel
para que eu mesmo não sejamais
uma cabeça no meu próprio rebanhoque eu nunca guardei
nem quis guardar
75
mãos dadas
podemos caminhar de mãos dadaswalt whitmancantando para o espírito para a alma e para o corpo anando por homens e mulherescantando paisagens naturais e urbanaspaisagens e movimentos sociaisluciferinas cidades de lusco-fusco
com o teu cantowalt whitmanaprende-se a transver a maya dos poetasa economia do real é ilusãoo mundo fenomênico é ilusãoe o acidente de trânsito tambémainda que possam causar danos dores e mortes
76
não conhecestes o néonnem a polifonia das mídias eletrônicasainda assim podemos cantar ombro a ombroenquanto for o mesmo o nosso desatinomasnão me leve muito a sériowaltwhitmaneu mesmo faço desfaço e disfarço o meu caminhoe por ele hei de ir relvahei de ir som de paisagemhei de ir sol
o sol é meu mestrewalt whitman¿por que haveria de ter um outro?
77
além do que não sei
montanhas que desdormemao lado de lagos e raioslagoas praias e ilhas
aves e peixes que bailamombreando mamíferos e insetosrépteis moluscos e anfíbios
anjos devas e dragõesbestas meninos e deusestodos os seres ceiam comigo
eu sou ancoradouro de tudopedra planta bicho homem e deusalém do que não sei de mim
78
fragmentos
a vênus de milonão é menos deusapor não ter braçoso dom da deusa não está nas mãos
a cabeça de budanão é menos budapor não ter troncoa compaixão não mora num ponto
a vitória de samotrácianão é menos belapor não ter cabeçao vento da vitória não tem prisão
79
folha solta
a folha de informática anunciao seqüestro da poesia e da cançãopoeta marginal preso em agrantenavegando a lucidez na contramão
quem diria meu deus quem diriaque partindo da teoria para a açãoo jovem que fez versos delirantesa favor da liberdade de expressão
voltaria agora à tribuna da agoniapara cantar como o poeta amanteo beijo alegre e livre da contradição
imprevisível é o destino da poesiaontem na rua urrava e gritava avantehoje revolta a rimar café com pão
80
todos os poemas
todos os poemas de amor são meustodos todos todosabsolutamentetodos
não importa de que homemou mulher nasceramnão importa quandoem que cidade e em que idioma
todos todos todosabsolutamente todosos poemas de amorsão meus
eagoraquetodosos poemasde amorsãomeustodos todos todosabsolutamente todosdeclaropublicamentequetodosos meuspoemas de amorsão seus
81
82
os e labirintos
ou a palavraaceita o labirinto
ou a paz lavradase perde no vazio
quebrar os ossos da palavrana bigorna do olvidoé o teu ofício
o meu é reencarnar sentidosvomitar os e lambuzar de teia o nada
83
marília de dirceu
a palavranão é maré ilha
a linguagemnão é ilhaé mar
o poemanão é aveé mar&av&ilha
84
declaração de amor suburbano para rosemeier
seu olhar quase ipanemadesceu como copa bacanaamadureirando o frutoamolecendo a casca durame deixando encantadonão tendo dó nem piedadede mim
vem cá maria da graçada glória da penha da vila de isabelvem cá minha santa teresadepois que eu zer carinhona oresta da tijucae na cidade de deusdepois que eu te der um beijominha or de laranjeiraminha or de mangueiraeu derrubo os pilares do medoe decreto a aboliçãode todo e qualquer del castilhode todo e qualquer engenhoreal novo de dentro ou da rainha
85
sem fátima e sem saúdea vida não é gamboa
eu não tenho bonsucessominha maré ca vazia
sem fátima e sem saúdea vida não é recreio
sem fátima e sem saúdea vida é barra
barra
86
para amar na cozinha
bom azeitebom tremboa facae bom lume
não é indispensávelmas convémcheirinhos de alfavacae pimentinhas de ciúme
87
amares
tempos de mares poluídose cares
sem compromissos
tempos livresde pegar e car
sem liberdade
tempos de ligeirezasdeslocar e afetarsem intensidade
amarnão está
pra peixe
88
poemas do outro dia
i
outro diaouvi a mim mesmoe eu me diziaquem sabe você não devesseouvir você mesmooutro dia
89
ii
feche as janelasas portinholase as persianaso dia aqui não passará
cubra os basculantese as cortinas de rendacom brim bem escuroo dia aqui não passará
ponha cera nas fechadurasespuma nos pés das portaslacre todas as frestaso dia aqui não passará
não passaránão passaráo dia aquinão passará
90
iii
não tenho vocaçãopara são sebastiãoe não confundosessão de acupunturacom tortura
conclusão:tuas agruraspara o bem e para o malnão tocaramnos meridianos certos
91
iv
passe de novo os cabelosdessa vez com dedos friospara de trás da orelha
escute nessa rabeira de noitemeu desencanto em si menortenho saudades do tempo em que te amei
92
v
naquele diaem que você me ligoue disse bom diaera tarde
naquela tardeem que você me ligoucom juras de travar línguasera tarde
naquela noiteem que você me ligoubabando na fronha da poesiaera tarde
era muito tarde
93
contra–abortivo
afeto o fetocom afeto
94
ovo
o novoé
um
ovono
vazio
95
caminhadas
luzes curvas e casase águas em movimentodias e noites de estrada
pé de mato e pé de vento
96
costura
teçocom as linhas que me restamtecido de seda e sonhotapete voadorlençóis teresas e colchas coloridas de bons dias
pros meus lhos
torçocom as forças que ainda tenhoe desenho outro mundobordando amoras e sabiáscosturando amores e saberes com coragem peles e cabelos
pros meus lhos
97
teresa
teresasão nós nos lençóisacordando caracóis de afeto
teresaé corda que cortaa monotonia dos dias de prisão
teresaé a possibilidadedo sol deixar de ser guimba
teresaé a visão da luapara além das cadeias da visão
teresaé beatriz e eurídiceé eva é sophia é helena é maria
teresaé um pulo parado no aracordeom tocando sem parar
98
teresanão é tudo na vidaé anima mundi e ainda mais
teresaé um celularcontrole e libertação
teresaé uma ligaçãoé faca escondida no pão
teresaé uma chaveequilíbrio entre o vôo e o coração
99
do amor admirado e da admiração amorosa
amo e admiro vinícius pela capacidade de amar e pela poesia que viveu não falo de versos de amor falo do que não se escreve em versos do amor que se inscreve no corpo e se perde no momento exato no inexato agora de amar sem consciência de perda ou ganho de perdas e danos de felicidades ou infelicidades
100
verdade mentira engano pior
i
verdade é o olho do mortopousado em mimdizendo:a morte é mentira
ii
mentira é o incômodogerado pela moscapousada no olho aberto do mortodo morto por bala engasgada ou engano3
3 chamar bala de bombom não é engano é confeito. poetas são procuradores de papel de bombom – dois exemplos: sonho de valsa e serenata de amor – para embrulhar bala perdida.
101
iii
engano é adoçarcafé com salpela virtude do frasco¿há coisa pior?
iv
pior que café salgadoé velório interminávelamor e amizade não se enterram
memórias na ponta da língua
103
a corda
i
acontece que seu jeitoamanhece em meu peitome acorda bem levee sobrevoa
ii
acontece em meu peitose seu jeito me acordaque o coração ca levee voa
iii
seu sorrisoe seus olhostão tatuadosnos meus
104
iv
seu corpo é mapa delicadodesenhadona palma do tato
v
tenho tatuagensescritas na pele da almainvento histórias imagens e tintasque acendema doro prazerea cordasmemórias
105
ex-gana
engana-sequem cospena memória dos beijos
106
memória do líquen
do quero sere do que querem que eu sejabrota o drama do que sendosou e não sou em mim
107
peitos da memória
entre o arqueiro zene os fogos de artifíciosou a celebraçãodo beijo da diversidade
sou o abraço sem braços da históriaa dança ciganae a pergunta
¿será possível viversem o leiteo deleitee o venenodos peitosda memória?
108
memória dos olhos
na memória dos olhosé onde guardo tudoconchas ondas e peixescores curvas e virilhas
guardo as ilhasos verdes e as praiase as muralhasdo teu litoral
para ti o ouro dos sonhosdesce pela encosta do dragãopela via da serra ao marcidade doce azul vermelha amarela colonial
109
outro lado da memória
oscila o diapasão das coresentre o horizonte do beijo
e o azul do abraçoentre o sorriso laico
e o vôo da bem-aventurança
um mineiro encantadocom a visão do mar
é o olho que abre o coração das coisasadmira o movimento das águas
e o ninho das aves urbanas
essa atravessura é minhaesse olho é um eu sou
pirata que oscila no meio inexatoentre o um e o vário
entre o que há e o que não há de mário em mim
110
evaporação
i
troca de tiros e olharesquebram o geloderreto-me por nós
ii
termômetro atropeladofebre instaladafervemos
iii
se a febre diminuie a temperatura sobeo amor evapora
111
condensação
i
nuvens gordaslua ocultabloqueio duplo na rede de estrelas
ii
afetar corpo nuvosoe ser afetado por eleé chover no molhado
iii
os raios e seus anúnciosiluminam os olhos de mudançavou chover
112
tulipas
quem nunca provou uma tulipacarregadinha de ouronada sabe de sabores
quem nunca viu uma tulipabrotando no roseiralnão pode se dizer vidente
quem nunca ofertou uma tulipadespetalando de afetonão está habilitado pro amor
sabores vidências e amoressão tulipas transparentescálices de sim que te dou
113
caminhos
conheço postes pontes e portascurvas e cruzes de santas quebradaso rio e seu movimentocasas e pedras plantadas
no que venho e vou de mimcrio marcas de topadascada pé de mato trazem si muitas estradas
há séculos que venho e voucaminhos de cor do jardimmais um século chegoue eu não dei conta de mim
114
mãe do mato
seu rostoem cada folha da orestame sorricom os olhos apertados
chove broméliassua voz despencadas árvoresregando meu pé de ouvido
niños nos ninhosse ocultampassarinhandoem seus cabelos verdes
chove borboletasem mimmim não sabe o que fazercom sua ausência
115
museu
rio de secretas paixõesabertas em sete chavesno museu do coração
¿quem poderá contemplá-las
quem poderá compreendê-las?
insondável xícara de cháentre o um e o outro goleo encanto da adivinhação
¿quem poderá penetrar o museu de paixões?
eu mesmo ando procurando o mar
116
visita ao museu
bom dia palavrasvisíveise invisíveis
¿como passaram a noite?
o solbateu seus dedos invasoresna vidraçae pelo vistoa insônia continua
da casa do vizinhovem um cheiro de café novoque inspira a respiração
117
umdoistrêsquatro
lavar as mãoslavar o rostoescovar os dentesfazer café
bom dia palavrasé bom dormire acordar com vocês
118
diabãoàs minhas quatro irmãs
i
bom diao dia acordou de bom humorde bem com o amore com a luz do sol do diabom dia
beijo a or da dorno meio da folhagem das roseirase das buganvílias
119
ii
é preciso peitopara dar abraçode peito com peitoentre espinhos coloridose beijo de línguaentre unhas de gatos de vidroe cheiros de inimigo que adormece(em mim) em mimmesminho (em mim)
120
iii
explodir pecado e culpacom a bomba da alegria
é preciso peito para ser mãee partilhar o peitoobjeto de prazer desejo e fomecom o amante e com o famintoe não raro com o amante faminto
121
iv
é preciso peito para serparte e para sersó
coragem e coraçãopara dar beijos e abraçossabendo que beijose abraços não matam a solidão
partilhar o território e o teto de luza coberta a escuta e o campo de capim oridoa semente de memória e o grão de olvidoe na pétala da orelha sussurrar
bom diaboa tardeboa noitebom dia
122
amália
nosso caso de amorpelo ltro dos teus olhos que são meusnos transforma em personagensde um trágico fado vadio
123
mega iv
cada mulher é viagemcom o barulho próprio dos bondesrangendo rodas de ferroem trilhos de esconde-escondequebrando o silêncio dos anjoscom faíscas de alegriacortando o mapa dos ondes com os de odes e elegiasacolha-me nesta hora incertaminha alma de mariacheia de graçarogando por todos nós
cada mulher é viagemquando não é es nge
124
lisboa visitada com gravata
i
navego entre campos de maiominha gravata borboletacom caras de cavalos
ii
sou campo e redetenho cavalos e éguas marinhaslaçados por borboleta
125
iii
sou hipocampo de gravata borboletaé isso o que eu souum hipocampo de gravata vermelha
iv
para as horas pesadas e tristes ainda que belasreservo a borboleta com patas de elefantese um elefante de asas amarelas
v
laços de amizade livre espaços de hipergeometriamimo de maio de mário e judite
126
vi
no rio alguém que bem me querhá de bem me dar borboleta de pratae universos de amor sem gravata
vii
meu borboletárionão quer ser coleçãoquer voar voar e ser voação
127
gravata de rua
de repente sem motivo aparente recordo a briga de rua e a gravata que um inimigo de rua me deu. ele era gordo forte e grande. sufocado eu já morria quando de repente sem motivo aparente recordei de meu pai que dizia: procure o equilíbrio o caminho do meio. no meio da briga acertei uma joelhada nos bagos do inimigo de rua. ele desatou a gravata e eu desatei a maldade.
128
pingue-pongue
eu dou o saqueela corta
eu jogo num cantoela corta
eu jogo no outroela corta
eu levanto a bolaela corta
eu abaixo a bolaela corta
eu faço planosela corta
eu teço sonhosela corta
129
rainha da cortadaeu tô foranão quero mais jogarpingue-pongue com você
130
nadadeiras e asas
amor sempre é movimentocoreogra a de peixecom asas de borboletadança que acordao dragão de terracota
131
aliança
o encontro tem aliançacom as naves e com o maro movimento aliança com o repousoa dança é a língua do amor
132
pontas
quando você passou a ponta da línguana ponta do lápis
eu me lembrei de um milharal de poemas
133
memória dental
inaquele dia quando você sorriu de amoreu li em cada denteuma alegria e um poema diferente
iidesde então a poética dos dentese suas lâminas de sim e nãosão a minha mais nova obsessão
134
alforje
no meu alforjeguardo fósseispterodátilos e poetassaurosmáquinas de escrever e mimeógrafos
no embornal bordado por maria bonitaguardo punhais alianças botões brinquedos e tasquase livros quase diáriosquase coisasquase coisas de casarde descasare tudo o que não coube no matulão
todos os seres sãomuseólogosguardando e comunicando impossíveisarqueólogosencontrando e guardando outros impossíveis
se acaso você chegasse no meu chatôe encontrasse. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .mesmo encontradas as coisas são sobejos
135
para além desse jogo besta de desejos e não desejosguardo em meu alforjebeijosrevoluçõespedrasarestascanetaspoemaspomaresmaresmapastaçasvinhoslivrosdiscossorrisoscançõesbaladasbicicletasmochilasplanossonhossignos de amizadee quilométricas cartas de amor
136
noturno suburbano
dissonâncias de violões em bonsucessoeu parava o cavalo azulno posto essoe colocava dez contos de melodia
no outro lado do silêncioatravessando os temposdesa nando as ruaso bombeiro cantava incendiando a noite
você precisa saberda piscinada gasolina
137
e ainda acendiana contramão dos mares insanos uma vela pro navio da poesiae outra para a guerrilha suburbana
a dissonância gostava de tremoçosprovolone salaminho calabresa e azeitonas verdesa dissonância engordavaengordavae o vento frio soprava improvisosna auta dos ossos
vocêvocê precisavocê não precisa saber de mim
138
não sei
não seio que a nisseipensouquando como um lincelanceimeu olhar sobre ela
eu seique essa nisseinão sabeque eu me vejo da vincicom os cíliosde pincel
nisseime ensinaa liberdadeque aquinessa cidadeeu sei que nada sei
139
largo da ordem
a lua cresce no m da rualeminski implica comigo:!é minha a cidade!a rua desce minguando a lua
140
peixe espada
anjinhos algemas e troncosbolas de ferro e libamboscadeados e focinheirascorrentes e gargalheirase cintos de castidade
signos do meu suplíciohistórias de amor medonhosonhos mortes desditasvinganças e repressõesvelas naves navalhas
a liberdade é ventaniamaremoto no riachosubversão do futuroé peixe-espada cortandoos ferros velhos do peito
141
142
vem chegando a madrugada ôe a velhice vem caindo
caia sobre mim a velhicenão de uma veznão como um raio que me partamas como uma gota de somde sangue incessante
como um conta-gotasque sobre mim despejao desejo de despejar o mar
como um beijo que deixasobejos de memóriasem deixar marcas de batom
ainda guardo uma gota de sei láno bolso do peitoe outra de quem sabeno bolso em facano esquerdo do quadril
143
como quem não quer nadainvento dançasaceito desatinosdesa o a mim mesmofaço xixi nos postes4
e guardo um arco-íris escondidonas unhasque não param de crescer
4 ¿xixi de poeta tem poesia? poetas que fazem poesia no poste têm coragem de cantar: “eu não sou cachorro, não!”?
144
das cabências do amor(marque com um “x” a resposta celta)
( ) a. o amor cabe como luvaem qualquer mãode dez dedos
( ) b. cabendo em qualquer mãoo amor não cabe nuncaa não ser na contramão
( ) c. contracheque contra-ordemcontradança contra-sensocontrapelo e pontapé
( ) d. o amor cabecomo luvana contradição
( ) e. o amor subverte e subverte tantoque não cabe e cabe em nenhumadas perguntas ou respostas anteriores
145
cantigas de amizade(marque as respostas valsas)
( ) a. há uma mesma raizsangrando amor e amizadebom amigo bem amado
( ) b. a radícula que uneridícula também separabelo amigo bom amado
( ) c. o radical da amizadeé conta minada de amorbem amigo belo amado
( ) d. há uma raiztocando fogo em doisbelo amigo bem amado
( ) e. era uma vez e eu quisextrair a raiz de doisbom amigo belo amado
( ) f. era uma vez e eu caíno universo dos números irracionaisbem amigo bom amado
146
da guarda baixa
branca ela se aproximado escorpiãonoite mansa alta gordadecrescente
encantado ele desarma o boteabre os braçosacelera o passoe corre pra lua
na rua um corode (vozes magras desa nadas)adolescentes
ah eu tô malucoah eu tô malucoah eu tô maluco
147
cauê
i
braço amputado do corpo de itabirasua forma etéricaainda está lá
ii
ponta de ferro derretidotaça de sangue derramadabrilho de inexistente estrela
148
iii
memória alucinadaquelóide no imaginário da poesia mineiraavesso do marco e da estaca
iv
ímã sem pólo choque eletro-visualseu núcleo de força e poderainda estala
v
¿cadê cauê?um trauma no corpo da paisagem da terratambém traumatiza a paisagem da alma
149
150
ci né má
i boa nova
glauber tu és rochae sobre ti edi careio cinema brasileiro
151
ii desvestindo a noiva
toda nudezserá exaltadatoda mediocridadecastigada
152
iii canal 100
para ti boa amigacercada na pequena áreapresa entre as travestorturada pelo tempopelo apito do juiz
para ti que mergulhasno terreno baldiona várzeana ruana praiae encontras o teu próprio corpono vadio esférico do amor
para ti a hora do pênaltieu já descon oindependente da torcidaé a melhor hora
153
iv no escurinho
beijo é culturacinema é culturalogo
: beijo no cinema e beijo fora do cinemacinema com beijo e cinema sem beijobeijo engatado e cinema engajadobeijo de língua e cinema radicalisso e aquilo perambulamna corda bamba dos beiçose do cinema nacionalnas possibilidades de tua boca livrebela doce livre e quase adormecida
154
v musical capiba
eu canto e danço na chuvacom meu guarda-chuva vermelhofrevo inventando gestosdesaguando em tas para encantarrodo faço piruetaschovo do trapézio da escola de circopulo salto na amplidãoando sobre as águas da velha baía
você nadavocê nadavocê nem se molha
155
vi falado
a poesia grita no ouvido moucodo tempo
:
ou essa prosa mudaou essa prosa ca muda
:
ou essa prosa mudaou essa prosa ca muda
156
vi documentário
não sou mortonão sou ramo seco ou podresou mãe do matoinvenção de túnel e veiaentre a rua a urna a navalha e as insígnias
mané meu tio e padrinho abjuroroubou o violão de meu pairoubado meu pai cantavacanções de louca tristezacanções de louca euforiacanções de louca amargurae de louca modernagem
se a ema gemeu um diafoi quando meu pai cantavasabendo que ela (anagrama de mãe)trazia em seu desencanto um bocado de azar
157
querendo evitar o azar e a praga clara da mãemeu pai costurava teresaslençóis de conversas imensasentre pedro álvares cabral e as estrelasentre o pé de abiu e a caixa d’águaentre o rabo da noite e o nariz do diafoi numa dessas conversas embrulhadas em lençóisque ele assassinou o papagaiocom a enxada de sua mãedepois de enterrá-lo com pompa e circunstânciameu pai me segredou:morre tarde quem se repete
foi a partir daí que eu compreendi:azar e sorte são mentirasestrelas e homens são farinha do mesmo moinhoárvores são rios que correm no sentido verticalnoites são ondas beijando o corpo de aurora
no maiso silêncio do papagaioe a língua criativa da memória
só existe memória amanhecendo
158
vii roteiro
estrada e canavialpaisagem e tema comunsterra engenho e arte de meninozona que mata e usina
debruçam-se os meninossobre o nadasobre o corpo da estradasobre o nada dos verdes e dos canaviais
senhora senhora por favora senhora sabe dizer qual a distânciadaqui a pilar
nem tá muito perto nem tá muito longeo retrovisorrevela
: é a nega fulôé a fantasma de carneé a doida da estradaque há mais de meio séculoanda em direção a pilare não deu conta de chegar
159
porteira cavalo e açudecasa-grande do engenho corredorali nasceu josé lins do regotudo é cupim e abandonooutros insetos morcegos e ninhos de pássaros bizarrostudo é menino engenho e arte
tudo é invasão de bichos e plantase o grande medode que esse grande fogo morto desabe sobre mimobturando as artérias do sonho
¿que destino devo dar ao menino de engenhoque ainda brinca por aqui?
mainha tô brigadomainha não soprou meu cabeloe eu sonheimainha tô brigadonão gosto de sonhar
antes do m
161
das mãos em tese
tenho olhado para as minhas mãos há quarenta e tantos anospor curioso não sei se lembro das minhas mãos do mês passadoe sei bem menos das minhas mãos de criança
algo em minhas mãos me surpreende como um sol familiarainda assim vez por outra o demônio do temporesolve tocá-lase resolve acender a memória do estranhamento
(a memória também é um demônio)e nesses momentos vivo as minhas mãoscomo se elas fossem pote de barro ou cesto de palhaem que um artesão de nuvens teimasse deixar as marcas das suas mãos
162
parte das minhas memórias mistura-se à lembrança de mãos que viao longo de quarenta e tantos anosmas quando olho para as minhas mãossei que elas são minhasvejo em seus desenhos ferramentas janelas e portaspipa pião bafo-bafo bola de gude e cinco pedrinhasvejo que elas têm a minha históriae ainda assim me surpreendo com a aura de segredocom as histórias que os dedos me contam com cheiro de novidade
tantas coisas eles e elas tocaram e não vi(fosse pelo mistério da noitepela impossibilidade de verou pela singela decisão de não ver)tantas marcas gravadas sem que eu me desse conta
163
olho para minhas mãos e percebo que o tempo passa (entre os dedos)elas são minhas e já não são mais minhassão minhas e já não são mais as mesmas
eu tenho mãos em teseem tese eu tenho mãoselas parecem ter vida própriamesmo quando escrevo sobre elas com elas e por elas
minhas mãos hoje são mais envelhecidasde tanto que carregam potes e cestos de nuvensde tanto que carregam olhos e escamas de cristalquando falo assim elas me repreendemcantando em dupla:
164
¿que paradigma poeta danadovocê evoca e encanta para dizerque somos mais velhas?olhe nas estradas e meandros de vocêsomos bem mais novas que as mãos que seremose o depois de amanhã é um segredo que não nos compete dizerainda assim somos nós que moldamos os dedos das mãos do tempo
eu tenho mãos em teseem tese eu tenho mãose por isso ouço as suas vozesconverso com elasolho para elas e me interiorizoas minhas mãos não são de osso e de carnesão desenhos danças canções e sementessão brinquedos portas e bombas que explodem no agora
165
ditirambos
oferta da fala
no meio da roda de homens e mulheres bambaspoeta abre alas cantarolandosaca o pandeiropalhaçoe percute o couro do bicho alucinadoequilibrando-se num quase sambanum jogo de pernas e braçose abraços
poeta cantarolandogaguejando e brincando
166
cena i – os tupinambás são gregos e vice-versa
di di di di di di diti ti ti ti ti ti tiram ram ram ram ram ram rambo bo bo bo bo bo bo
di ti ram bodi ti ram bodi ti ram bodi ti ram bo
assim falava nietzsche:querendo dotar a humanidadede benefícios sem contaoferto-lhe os meus ditirambos
¿que linguagem ouveo espírito da rebeldiaquando fala consigo mesmo?
167
a linguagem do ditirambocá com meus bigodessou o bodeinventor da tragédia da dança da esculturada música da fala do silêncio e da odee ainda mais do di ti ram bo
querem me imputar o mal do mundoo mal do mundo não sou eunem a alegriao mal do mundo são o medo a ignorânciao desamor o egoísmo e a covardia
¿eu?
eu canto ditiramboe dançosamba
assim cantava a belezano maluco do lençol:viva o pãoviva o circo
168
viva o poeta pagador de micoviva a sociedade da gentilezagentileza gera gentilezao capital é o capetae o capeta é o capitalgentileza gera gentilezagentileza não gera gentilezae a beleza é e não é fundamental
viva viva a turma da cultura vivaviva sinhô donga e joão da bahianacarlos cachaça e paulinho da violajoão severino e ernesto do cavaco
assim falava meu pai (joão)plagiado pelo ubaldo:viva o povo brasileiroviva a nação popular
viva candeia garrincha manga didi vavá e cartolaviva a ala das baianas vivasviva dona neuma dona zica e dona magaly cabralvovó albertina mãe sylviatia ilza tia zilda e tia arlete costureira
169
eu canto ditiramboe danço samba(olha o rapa olha o rapaolha o rapa olha o rapa)
samba lê-lê tá doentetá com a cabeça quebradasamba lê-lê precisavado beijo forte da amadado beijo forte da amadasamba lê-lê precisavade muito beijo da amadade muito beijo da amada
samba samba samba lê-lêpisando a solidão lê-lêpisando a solidão lê-lêeu canto sambae danço ditiramboe danço ditirambo
170
cena ii - só doido só poeta
poeta faz exercícios de alongamentoe ginástica aeróbicapoeta chorarisentae medita
só doidosó poetasob máscaras de mameluco sambando à loasó falando à toa
construindo pontes com os de lençóise café morto de frio na garrafa térmicasubindo e descendo por teresas crispadas de palavraspor arco-íris de mentiras entre falsos céus
vagueando rastejandosó doido só poetade brasileiro poeta e loucotodos (pais mães lhos e lhas da puta)todos temos um pouco
171
assim falava zara trinta repetindo a grande mãe:quem não gosta de sambabom sujeito não éé ruim da cabeçaou doente do pé
172
cena iii - assim falava zaratustra
os poetas mentem os poetas mentem demaismentimos muitoah estou farto dos poetas
estou farto dos poetasdos antigos dos novos e dos novíssimostodos são mares esgotadospedras de vento e de isoporlançadas no telhado do gigante piaimãque mora em são paulo na rua maranhãovizinho do sociólogo-doutor
quando digo:estou farto dos poetasestou mentindo
173
do que estou mesmo é farto da petulânciada arrogância e da ignorância dos doutoressejam eles padres pastores professores políticossacerdotes mães de santo donos de terreiromodelos e jogadores de futebolcarcereiros advogados juizes médicos cientistas artistaslíderes estudantis e jornalistasestou farto do oceano de vaidades¿ não é o mar o primeiro dos pavões reais?
entre poetas e doutores co zarazarazarazeroastro zen
celebroagni agni agnio fogo sagradoé no fogo que vejo o poetaproceder contra o poetae se libertar
174
cena iv – extra extra
poeta sai de cenaabraços abertosna mão direita uma roseiracom espinhos e duas serpentes entrelaçadasna esquerda um urubu-rei preso pelo péao fundo um coro de demônios e anjos abraçados:gentileza gera e não gera gentilezacolunas de poesia sustentam a vidacolunas de poesia desa am a vidacolunas de poesia sob vias expressasabrigam vidas de profetasgeram gentilezase produzem ditirambosextraextraextrapoetas bombas explodempipocampipocame contaminam de poesia vida e sonho
toda a cidadeextra extra
175
antes do m
antes que o livro acabee me acabe de vazioconvido o vazio livropara acordar comigo
antes que o livro acabee me acabe de poesiaconvido a poesia amigapara fabular comigo
um outro dia
língu
a d
e fo
go ou antes q
ue o mund
o acabe
mario chag
as
fazer museu sem fazer poesia é quase
impossível. cada peça é um verso, no
emaranhado ultrabembolado de gale-
ria a galeria – ou sem galeria nenhuma,
como em (uni) verso livre.
fazer poesia sem fazer museu é nada
menos que inconcebível. há uma gota
de sangue em cada poema, diria o
homônimo. e há contra-poemas em
cada gota de saliva no ouvido mouco
e na língua de fogo do poeta preso em
flagrante. há sangue do meu sangue em
cada poema contra a barbárie. e há ves-
tígios de memória em cada linha que
permanece marcada em braille no cara-
manchão das construções sintáticas de
chagas, mario.
para mim, falar na orelha do seu livro não
é fácil, ulceramos em semelhantes. mas
chagas, mario é, como no museu de his-
tória natural, o meu poetassauro ances-
tral. sou inegavelmente sobejo dele.
talvez por isso, talvez por outra razão,
talvez sem razão prática para criticar,
ele me deitou filosofar sobre o que
está por vir, numa nítida inversão de
valores, num esforço memorável de
imaginação museal. aqui não é o velho
quem fala do novo, se não ab ovo.
aqui não há apenas museus e centros
culturais, há guardadores de auto-
móveis, há professores corintos, há
índios galdino e há marias-teresas. e
há muito mais no que somente não há
mais nada. a poesia de chagas, mario
é performática, daí a necessária alusão
ao mundo que acaba e à dignidade
dos mimológicos hãhãhãe.
é possível que os seus antepassados
índios tenham contribuído para firmar
na memória o passo definitivo em rela-
ção à poesia engajada, aviltando os que
tornaram de fogo a língua do índio men-
digo. é possível que mais do que poe-
sia urbana e mais do que museus como
pontes entre culturas, chagas, mario
esteja preocupado em tecer suas pró-
prias teresas, para escapar das amarras
de seu academicismo e das desilusões
da ciência não-ficcional. mas, não, não
é possível antepor o prenome à vírgula
sem deixar de
partilhar o território e o teto de luz
a coberta a escuta e o campo
de capim florido
a semente da memória
e o grão do olvido
e na pétala da orelha sussurrar
esse cabra é meu pai!
chagas, viktor.
mario chagas
língua de fogo
ou antes que o mundo acabe
mar
io c
haga
s
língua
de fogo
ou a
ntes
que
o m
undo
aca
be
lanç
amen
tos
a pa
tir d
ede
zem
bro
de 2
00
8
mario chagas. dinossauro da família
dos zepelins, dos aeroplanos e dos
mimeógrafos. caosnauta em busca
do tosão de ouro. sobrevivente da
guerra fria. tudo isso diz um pouco
de mim, sem dizer nada. acrescente-se a esse nada,
um pouco mais de nada de mim: sou carioca pernam-
bucanizado e depois desgeografizado. nasci durante
as festas juninas de 1956. desde sempre convivo com
festas, fogueiras, bandeirinhas e balões-beijos. cresci
em cavalcante, vi a em cima da hora nascer. estudei na
escola municipal espírito santo e depois me larguei no
mundo fazendo poesia, técnica, ciência e muita arte.
foi por esse caminho que virei técnico em mecânica,
licenciado em biologia, bacharel em museologia, mes-
tre em memória social e doutor em ciências sociais.
tudo isso diz um pouco de mim, sem dizer nada.
língu
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go ou antes q
ue o mund
o acabe
mario chag
as
fazer museu sem fazer poesia é quase
impossível. cada peça é um verso, no
emaranhado ultrabembolado de gale-
ria a galeria – ou sem galeria nenhuma,
como em (uni) verso livre.
fazer poesia sem fazer museu é nada
menos que inconcebível. há uma gota
de sangue em cada poema, diria o
homônimo. e há contra-poemas em
cada gota de saliva no ouvido mouco
e na língua de fogo do poeta preso em
flagrante. há sangue do meu sangue em
cada poema contra a barbárie. e há ves-
tígios de memória em cada linha que
permanece marcada em braille no cara-
manchão das construções sintáticas de
chagas, mario.
para mim, falar na orelha do seu livro não
é fácil, ulceramos em semelhantes. mas
chagas, mario é, como no museu de his-
tória natural, o meu poetassauro ances-
tral. sou inegavelmente sobejo dele.
talvez por isso, talvez por outra razão,
talvez sem razão prática para criticar,
ele me deitou filosofar sobre o que
está por vir, numa nítida inversão de
valores, num esforço memorável de
imaginação museal. aqui não é o velho
quem fala do novo, se não ab ovo.
aqui não há apenas museus e centros
culturais, há guardadores de auto-
móveis, há professores corintos, há
índios galdino e há marias-teresas. e
há muito mais no que somente não há
mais nada. a poesia de chagas, mario
é performática, daí a necessária alusão
ao mundo que acaba e à dignidade
dos mimológicos hãhãhãe.
é possível que os seus antepassados
índios tenham contribuído para firmar
na memória o passo definitivo em rela-
ção à poesia engajada, aviltando os que
tornaram de fogo a língua do índio men-
digo. é possível que mais do que poe-
sia urbana e mais do que museus como
pontes entre culturas, chagas, mario
esteja preocupado em tecer suas pró-
prias teresas, para escapar das amarras
de seu academicismo e das desilusões
da ciência não-ficcional. mas, não, não
é possível antepor o prenome à vírgula
sem deixar de
partilhar o território e o teto de luz
a coberta a escuta e o campo
de capim florido
a semente da memória
e o grão do olvido
e na pétala da orelha sussurrar
esse cabra é meu pai!
chagas, viktor.
mario chagas
língua de fogo
ou antes que o mundo acabe
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ou a
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00
8
mario chagas. dinossauro da família
dos zepelins, dos aeroplanos e dos
mimeógrafos. caosnauta em busca
do tosão de ouro. sobrevivente da
guerra fria. tudo isso diz um pouco
de mim, sem dizer nada. acrescente-se a esse nada,
um pouco mais de nada de mim: sou carioca pernam-
bucanizado e depois desgeografizado. nasci durante
as festas juninas de 1956. desde sempre convivo com
festas, fogueiras, bandeirinhas e balões-beijos. cresci
em cavalcante, vi a em cima da hora nascer. estudei na
escola municipal espírito santo e depois me larguei no
mundo fazendo poesia, técnica, ciência e muita arte.
foi por esse caminho que virei técnico em mecânica,
licenciado em biologia, bacharel em museologia, mes-
tre em memória social e doutor em ciências sociais.
tudo isso diz um pouco de mim, sem dizer nada.