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FLORES PARTIDAS FLORES PARTIDAS The Shattered Rose Jo Beverley Jo Beverley Digitalização/ Revisão: Crysty Inglaterra, 1100. O verdadeiro amor é imortal! Jehanne nunca deixou de amar seu marido, Galeran de Heywood. Agora ele regressou da Guerra Santa, magro, sofrido, ansiando por rever a esposa e a criança que ele ainda não conhece. Em outras circunstâncias, isso seria tudo o que Jehanne mais poderia desejar! Mas o tempo e o destino se encarregaram de realizar mudanças com as quais nenhum dos dois contava ao se despedirem, três anos antes... Agora Galeran tem um rival, Raymond de Lowick, um nobre ambicioso que cobiça tudo o que pertencia a Galeran: as terras, o castelo, a esposa. Raymond lançará mão de qualquer artifício para dominar Jehanne, mas Galeran não é homem de desistir, não importa quantos poderosos aliados Raymond possa ter. Quando a corte se reunir, dois homens disputarão a mesma mulher, e o valente guerreiro enfrentará sua última batalha para garantir a segurança de Jehanne... e conquistar seu coração! Copyright © 1996 by Jo Beverley Pub. Inc.

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FLORES PARTIDASFLORES PARTIDASThe Shattered Rose

Jo BeverleyJo BeverleyDigitalização/ Revisão: Crysty

Inglaterra, 1100.

O verdadeiro amor é imortal!

Jehanne nunca deixou de amar seu marido, Galeran de Heywood. Agora ele regressou da Guerra Santa, magro, sofrido, ansiando por rever a esposa e a criança que ele ainda não conhece. Em outras circunstâncias, isso seria tudo o que Jehanne mais poderia desejar! Mas o tempo e o destino se encarregaram de realizar mudanças com as quais nenhum dos dois contava ao se despedirem, três anos antes... Agora Galeran tem um rival, Raymond de Lowick, um nobre ambicioso que cobiça tudo o que pertencia a Galeran: as terras, o castelo, a esposa. Raymond lançará mão de qualquer artifício para dominar Jehanne, mas Galeran não é homem de desistir, não importa quantos poderosos aliados Raymond possa ter. Quando a corte se reunir, dois homens disputarão a mesma mulher, e o valente guerreiro enfrentará sua última batalha para garantir a segurança de Jehanne... e conquistar seu coração!

Copyright © 1996 by Jo Beverley Pub. Inc.

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Jo Beverly – Flores PartidasCHE 263

Originalmente publicado em 1996 pela Kensington Publishing Corp.

PUBLICADO SOB ACORDO COM KENSINGTON PUBLISHING CORPNY,NY-USA Todos os direitos reservados.

Todos os personagens desta obra são fictícios. Qualquer semelhançacom pessoas vivas ou mortas terá sido mera coincidência.

TÍTULO ORIGINAL: The Shattered Rose

EDITORALeonice Pomponio

ASSISTENTE EDITORIALPatrícia Chaves

EDIÇÃO/TEXTOTradução: Silvia Maria Pomanti

Revisão: Giacomo Leone

ARTEMônica Maldonado

ILUSTRAÇÃOHankins + Tegenborg, Ltd.

COMERCIAL/MARKETINGSilvia Campos

PRODUÇÃO GRÁFICASônia Sassi

PAGINAÇÃODany Editora Ltda.

© 2006 Editora Nova Cultural Ltda.

Rua Paes Leme, 524 – I09 andar - CEP 05424-010 - São Paulo - SPwww.novacultural.com.br

Impressão e acabamento: RR Donnelley Moore

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Capítulo I

Nortúmbria, Inglaterra, Julho de 1100.

O grupo de homens armados avançava ao longo da estrada, os cascos de suas montarias espirrando lama a cada pisada. Mesmo exauridos pela longa viagem, os cavaleiros seguiam adiante, rígidos, inabaláveis, como um rio que se encaminhasse ao mar.

Embora estivessem todos cobertos de sujeira e com as roupas quase em farrapos, três aspectos distinguiam dois homens dos demais: ambos cavalgavam os melhores animais, usavam cotas de malha sob seus mantos e, enquanto seus acompanhantes carregavam arcos ou lanças, portavam uma espada bastante usada à lateral do corpo e um escudo à sela.

O mais magro deles ergueu a mão e deteve seu cavalo. Sem uma só palavra, os outros oito guiaram suas montarias rumo ao rio perto dali, para descansar e dar de beber aos animais.

Assim que apearam, podia-se ver que alguns mancavam. Um deles tinha somente um toco no lugar da mão direita. No rosto emaciado, o líder do destacamento trazia a marca de uma queimadura na testa e também a cicatriz de um corte abaixo do queixo, bastante evidente porque a barba não crescera ao redor dela.

Eram cavaleiros que voltavam da guerra, e o tom brônzeo de sua pele indicava que haviam lutado em terras de clima muito mais quente do que aquela porção de terra ao norte da Inglaterra, onde agora se encontravam. Eram homens que lutaram em nome de Deus. Eram cruzados. E apesar de desbotada ou meio encoberta pela sujeira, a cruz vermelha ainda era visível em alguns de seus mantos.

Alguns deles tinham visto o rio Jordão, onde Cristo fora batizado, e também Jerusalém, onde o filho de Deus sofrerá todo o tipo de humilhações antes de perecer na cruz. Alguns haviam pisado as correntes de sangue que percorriam as ruas da Terra Santa quando as forças cristãs enfim as recuperaram.

Tão logo desmontou de seu cavalo, o líder esticou os músculos, depois afastou da cabeça o capuz da cota de malha e sacudiu os cabelos castanhos, agora suados e desalinhados. Ainda que não fosse um homem de extraordinária estatura, tinha o corpo reduzido a fibras e tendões, e seus olhos escuros achavam-se como encovados num rosto que era quase pele e osso. Seu nome era Galeran de Heywood.

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A brisa fria do Mar do Norte fez Galeran tremer por um breve instante. Um friozinho de que ele gostava... Um frio inglês. Era bom, era muito bom estar de volta à Inglaterra. E, antes do pôr-do-sol, ele estaria de volta ao seu lar.

Após mais de dois longos anos, afinal estaria novamente em casa.

No dia anterior, a chuva torrencial durante o desembarque em Stockton fizera o companheiro de Galeran, Raoul de Jouray, tiritar, imaginando como alguém podia chamar um tempo daqueles de verão. Galeran, no entanto, recebera a chuvarada de bom grado. Houvera inúmeras vezes naqueles últimos dois anos em que temera nunca mais sentir as roupas úmidas de encontro ao corpo, nunca mais cavalgar em meio à bruma de uma manhã inglesa, nunca mais tocar o gelo sobre a relva ou ver o verde vibrante que o chuvoso clima inglês fazia brotar nas florestas e nos bosques.

Galeran chegou a pensar que fosse morrer no calor abrasador do Oriente.

Poderiam ter passado a noite em Stockton. Na verdade, poderiam ter ficado lá por um ano, pagando a alimentação e a hospedagem com suas histórias sagradas, uma vez que eram os primeiros cruzados vistos naquela região. Galeran, porém, estava determinado a permanecer no porto apenas o tempo suficiente para comprar cavalos. Depois disso, retomara a viagem, com renovado ímpeto, de volta para casa.

De volta para Jehanne, sua esposa adorada.

E para o filho, um filho que ele ainda não conhecia, nascido nove meses após sua partida rumo a Jerusalém. Uma criança que era o motivo pelo qual ele se lançara à Cruzada, pois Galeran fora à Guerra Santa para pedir a Deus que lhe desse um filho. E Deus havia lhe concedido essa graça.

Jehanne dera seu nome ao menino, mas dissera, na primeira carta, que pretendia chamá-lo Gallot enquanto fosse pequeno. Gallot por certo fora concebido na última noite que passaram juntos, depois que Galeran se alistara para a guerra sagrada e fizera sua promessa de libertar Jerusalém dos ímpios ou morrer na tentativa de fazê-lo.

Gallot, seu primogênito, agora com dezoito meses de idade, já capaz dos primeiros passos e ainda sem conhecer o próprio pai. O sacrifício fora amargo, mas necessário. E Cristo nunca dissera que seria fácil...

Somente quando o sargento do destacamento, John Barba Vermelha, veio lhe tomar da mão as rédeas de sua montaria foi que Galeran deu-se conta de que estivera sonhando acordado em vez de cuidar do animal. Parte dessa desatenção podia ser creditada ao cansaço, já que estavam cavalgando praticamente desde a noite passada, mas parte também se devia à necessidade imperiosa de ver-se novamente junto da esposa. E do filho.

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Sim, era verdade que se unira às cruzadas com o único propósito de livrar Jehanne e a si mesmo da maldição da infertilidade, mas jamais haveria de imaginar que a recompensa de Cristo viesse a ser imediata. Tal generosidade, contudo, o apri-sionara como em correntes de ferro. Como poderia abandonar a luta pela libertação da Cidade Santa se Deus havia atendido à sua súplica tão rapidamente e com absoluta perfeição?

Mesmo com todas as dificuldades, mesmo ante a imensa desilusão causada pelos horrores que via à sua volta e apesar do brutal desejo de regressar para casa, mantivera-se fiel à sua promessa. Por causa daquele milagre, um filho para Jehanne, lutara até um fim amargo ainda que triunfante, até que as forças da Cristandade adentrassem Jerusalém.

Como sempre, as lembranças o paralisavam com suas cenas de rios de sangue e das bocas abertas em gritos apavorados, bocas de homens, mulheres, crianças... Galeran sacudiu a cabeça. Isso agora era passado e ficara muito distante, em breve ele teria sua recompensa: um filho nos braços, a esposa enfim realizada.

Gostaria de ter recebido mais notícias, assim seria mais fácil criar, em pensamentos, uma imagem da criança. A última carta a alcançá-lo fora escrita quando o bebê tinha três meses. Nela, Jehanne fazia uma descrição do filho rica em detalhes, mas aquela criança rechonchuda por certo dera lugar a um menininho bem mais esperto, com a cabecinha antes careca agora recoberta por mechinhas sedosas como as da mãe. Gallot teria cabelos escuros como os dele? Ou de um loiro pálido como os de Jehanne?

O que ele sabia com certeza era que o filho possuía olhos castanhos como os seus.

— Um homem não pode viver só de sonhos.

Galeran virou-se para o homem que dera fim às suas divagações. Era o amigo Raoul, alto e forte como um touro, um homem capaz de sobreviver a qualquer coisa com o apetite e o bom humor intactos.

— Coma. — Raoul lhe entregou um pedaço de carne de carneiro assada. — Sua adorável esposa não dará as boas-vindas a um espantalho.

— Ela me daria as boas-vindas em quaisquer circunstâncias. Foi só ao morder a carne fria que Galeran percebeu que estava de fato faminto. E que iria precisar de muita energia para aquela noite. Uma noite de amor com Jehanne.

A idéia fez uma onda de lancinante desejo percorrê-lo dos pés à cabeça.

— Falta muito? — Raoul sorveu um longo gole de um odre de vinho, depois o entregou ao amigo.

— Menos de dez léguas. — Foi a vez de Galeran tragar uma boa golada da bebida. — Se Deus nos ajudar, chegaremos lá antes do anoitecer.

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— Do jeito que você está impaciente, nem uma borrasca iria nos impedir de prosseguir viagem. — Raoul sorriu com certa malícia. — Não o culpo por isso. Se eu tivesse feito um voto de fidelidade e me encontrasse a tão pouca distância de minha esposa, nada me deteria.

— Só imaginar que você faria um voto de fidelidade já faz minha cabeça doer, meu amigo. Mas quiçá o interesse pelos assuntos que dizem respeito à carne diminua com o passar do tempo.

— Diminuiu para você?

— Não. — Galeran riu.

— Era o que eu supunha. Bem, então vamos seguir em frente. Por certo nenhum de nós haverá de querer que você arrebente de... saudade.

Enquanto ele ia dizer aos demais que se preparassem para partir, Galeran tratou de dar fim à carne assada, concluindo ser muito bom ter um homem como Raoul de Jouray ao seu lado. Embora fosse tudo menos um estúpido, Raoul possuía uma maneira bastante simples de ver a vida. Lutava com ferocidade quando era preciso, mas então tirava essa questão dos pensamentos; Galeran lutava com a brutalidade que lhe era exigida para depois se martirizar por cada uma das mortes ocorridas diante de seus olhos. Principalmente a morte de um inocente.

Raoul comia quando tinha fome, bebia quando estava com sede e usava as mulheres quando o desejo o açodava. Vivia lembrando a Galeran que ele precisava se alimentar e não perdia a oportunidade de caçoar do celibato do amigo.

— Todos sabem que não faz bem a um homem reter suas sementes — Raoul lhe dissera.

— Os monges sobrevivem.

— Deus lhes dá uma bênção especial.

— Então creio que Ele dará essa mesma bênção aos cruzados.

— Mas nós não somos forçados à castidade, Galeran. Deus sabe que isso iria nos enfraquecer.

— Está dizendo que sou ou estou fraco?

— Não. Nem eu seria capaz de uma afirmação tão temerária. E a conversa terminara em boas gargalhadas.

Haviam se conhecido quando ambos serviam nas forças do duque Robert e, apesar das diferenças de temperamento, uma forte amizade os unira desde então. Nascido e criado nas aprazíveis terras do sul da França, Raoul se juntara às Cruzadas à procura de aventura e não de bênçãos. A Galeran não parecera que o amigo tivesse buscado qualquer espécie de sentido espiritual em visitar o solo onde Cristo pisara. Quando haviam libertado Belém dos infiéis, Raoul não caíra de joelhos sobre a terra,

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apenas olhara ao redor, às casinhas em cujas cercanias se misturavam aves, bodes e crianças sujas, para depois dizer que esperava que o lugar de nascimento do Senhor fosse algo mais grandioso. E, após constatar que Jerusalém, apesar de tudo, era somente uma cidade, também ele ficara ansioso por regressar à Europa.

Afastando esses pensamentos, Galeran apertou a cilha de seu cavalo. Não houvera tempo para escolher montarias de excelente qualidade, mas aquela não estava deixando a desejar. Com um suspiro satisfeito, ele saltou à sela e ajeitou sobre a cabeça o capuz de cota de malha.

Raoul, com os cabelos castanhos ainda ao vento, conduziu seu cavalo para junto do animal de Galeran a fim de lhe perguntar:

— Você esperava problemas por aqui? Não há sinais de agitação.

— Após tão longa ausência, eu não saberia pelo que esperar... Mesmo que o rei Guilherme não desfrute de um reinado tranqüilo e que estejamos próximos às terras escocesas.

Raoul esquadrinhou a área com os olhos. Ali, perto do rio, as árvores suavizavam a paisagem, mas ao oeste e ao norte as extensões de terra recobertas por pântanos e lamaçais pareciam sombrias ao nublado do dia.

— É difícil acreditar que alguém queira um lugar como este — ele comentou. — Você tinha me avisado de que o cenário não seria muito convidativo, meu amigo, mas eu não esperava um panorama tão... inóspito.

— Imagino que era menos inóspito, como você diz, quando foi duramente disputado em sessenta e oito — observou Galeran.

— Não deve ter sido essa tal disputa que provocou este clima horrível.

Galeran riu.

— Você tem razão, não deve ter sido a disputa. Mas o sol aparece por aqui de vez em quando, dou-lhe minha palavra.

— Guiando seu cavalo de volta à estradinha, ele prosseguiu:

— A verdade é que estamos bastante seguros aqui. Se os escoceses por ventura fossem atrevidos a ponto de promover incursões em nossos domínios, meu pai e meus irmãos iriam expulsá-los daqui com o rabo entre as pernas.

Cavalgando ao lado dele, Raoul perguntou:

— O castelo de seu pai é próximo à estrada?

— É, sim.

— Que bom. Assim poderemos fazer uma refeição decente.

— Você só pensa em comida?

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— Um de nós tem de pensar, Galeran.

— Bem, famintos ou não, nós passaremos pelo castelo e seguiremos viagem.

— Após dois anos no exterior?

— Não posso parar, tomar uma caneca de cerveja e ir embora, posso? Além do mais, Raoul, pretendo estar em casa ainda hoje. Cuidarei de providenciar uma feliz reunião familiar numa outra ocasião.

— Estive pensando... Não lhe parece que sua chegada repentina, sem maiores avisos, pode provocar um grande susto aos seus?

— De onde tirou essa idéia? Por acaso eu deveria ter parado em Brome e de lá enviado uma mensagem a Jehanne dizendo-lhe que arejasse o colchão?

— Talvez fosse...

— Não.

— Pois muito bem. Mas não me culpe se sua esposa desmaiar de susto e cair morta a seus pés.

— Jehanne nunca desmaia.

— Lady Jehanne nunca se deparou com um marido que aparecesse do nada de um instante para outro. Você devia ter escrito a ela de Bruges.

— De que isso me adiantaria, se uma carta de lá não chegaria antes de mim?

— Quando foi a última vez que escreveu para ela?

— Antes de irmos a Jerusalém.

Antes que seu surpreso amigo pudesse fazer novas perguntas, Galeran bateu com as botas nos flancos de seu cavalo imprimindo mais velocidade à marcha do animal. Havia enviado notícias para casa regularmente, despachando cartas de Roma, do Chipre e de Antioch. No entanto, após os horrores em Jerusalém, não fora capaz de escrever nada a ninguém. Depois daquilo, concentrara-se cegamente em retornar para casa. Os demais pensamentos, ele os banira da mente em busca de manter sanidade suficiente para concretizar o objetivo de estar novamente entre os seus.

De estar outra vez em Heywood, junto de Jehanne e do filho.

Não lhe ocorrera, até aquele instante, que para Jehanne houvera somente o silêncio por quase um ano. De qualquer modo, algo lhe dizia que sua esposa saberia onde ele se encontrava e o que fazia sem que isso fosse propriamente expresso em palavras.

E Jehanne não iria desmaiar. Não desmaiara quando a tinham avisado de que iria se casar com ele. Não desmaiara quando do ataque de bandidos, ocasião em que tivera uma de suas aias morta diante de seus olhos. Esses, por certo, tinham sido os episódios mais assustadores na vida dela.

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Então Galeran lembrou-se do javali.

Mas ela também não desmaiara naquela oportunidade.

Naquele dia longínquo, faziam amor no bosque. Eram tempos em que Jehanne gostava de amar ao ar livre, pois achava mais excitante do que embaraçosa a hipótese de que viessem a ser descobertos. Um javali, no entanto, seria a última das intromissões com que ambos poderiam contar. E o bicho viera até eles num péssimo momento...

Jehanne achava-se em cima dele, que estava prestes a atingir o clímax. Mas então, de um instante para outro, ela não estava mais ali. Aturdido, ele se sentara a tempo de vê-la ajoelhada a seu lado, com sua espada tão pesada entre as mãos pequeninas.

— Acorde, Galeran! Tome uma atitude e mate esse bicho! Ou será que eu mesma vou ter de dar um fim nele?

Seu primeiro impulso fora dizer-lhe: "Vá em frente, livre-se dele", só pelo prazer de vê-la lhe implorar que se encarregasse disso.

Ainda que soubesse que Jehanne jamais teria implorado.

Ela nunca implorava.

Bastante alta, sua esposa era uma mulher muito forte apesar de magra. Certamente seria capaz de matar um javali com uma espada, embora isso fosse uma tarefa dificultosa até mesmo para um homem habilidoso. O próprio bicho aparentemente percebera o poder de sua oponente: fato incomum entre aquela espécie de animal, o javali fugira dali sem ao menos ameaçá-los.

Galeran então explodira numa gargalhada e, antes que se desse conta, Jehanne já havia retomado seu lugar em cima dele, guiando-o de volta ao caminho dos prazeres da carne.

Imaginando se seu casamento poderia continuar do ponto onde haviam parado quando de sua partida para o Oriente, ele encorajou o cavalo a uma marcha mais veloz.

Talvez houvesse como fazê-lo ainda melhor.

Galeran sabia que havia mudado enquanto estivera longe. Tinha pouco mais de vinte e dois anos quando se unira à Cruzada, e sua vida vinha sendo um tanto tranqüila. Agora, com quase vinte e cinco, estava mais magro e mais embrutecido, calejado tanto no corpo quanto na alma. Vira maravilhas que haviam lhe fortalecido a fé e horrores que a tinham azedado.

Jehanne também devia estar mudada.

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Era possível que a gravidez e o parto tivessem arredondado suas formas. Ele sempre lhe admirara a elegância esguia, mas seios mais avolumados e um colo robusto não haveriam de merecer indiferença.

Nada em Jehanne merecia indiferença.

Sem perceber que sorria, Galeran deu-se conta de que queria surpreendê-la. Queria apanhar sua esposa, sempre tão calma e ponderada, em trajes do dia-a-dia, os cabelos escapando das trancas. Queria vê-la ofegar de susto e depois corar de alegria.

Jehanne não gostava de ser pega desprevenida, por isso de vez em quando ele gostava de lhe fazer surpresas. Como na ocasião em que a presenteara com a rosa...

Não era homem de dar presentes pomposos, e nem era fácil encontrar artigos finos lá pela Região Norte. Fora numa viagem a York, na casa de um comerciante, que vira a rosa, uma peça tão bela quanto delicada, entalhada em marfim, cada pétala esculpida com a perfeição primorosa da flor verdadeira. Um objeto que a princípio lhe parecera inútil, já que era pequeno demais para decorar um ambiente e grande demais para ser usado como uma jóia. Mesmo assim o comprara, pois sua beleza de formas apuradas o fazia lembrar de Jehanne e da saudade que sentia dela mesmo após tão poucos dias de separação.

Ela tomara o presente com mãos trêmulas, e seu rosto como se iluminara com o cintilar de lágrimas em seus olhos azuis; Jehanne raramente chorava.

No entanto, havia chorado quando quebrara a rosa.

Galeran tornou a sorrir ante a lembrança da tristeza dela por causa do incidente. Outras perdas foram enfrentadas com fria correção de maneiras, mas a rosa, que voara de seu posto na mesa num momento de descuido, fizera Jehanne derramar-se em lágrimas. Ambos haviam se ocupado em colar com cera as pétalas partidas no lugar, mas a que estava lascada e uma outra, quebrada, acabaram por macular a perfeição do enfeite.

Ah, paciência. Agora ele lhe trazia presentes da Terra Santa.

Talvez algum deles assumisse a importância da rosa não só no seu lugar de destaque, mas também no coração de Jehanne.

Galeran também cogitou que certas brincadeiras na cama pudessem surpreender sua esposa. Mantivera seu voto de fidelidade, mas aqueles que haviam procurado as mulheres do Oriente tinham retornado de seus encontros com histórias pi-torescas. Talvez Jehanne se interessasse, Ela gostava de experimentar e agora, livre da ansiedade da infertilidade, era bem provável que voltasse a se entregar com alegria aos prazeres do amor.

Naquela noite. Jehanne.

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Jehanne aninhada junto dele, os longos cabelos loiros derramados sobre o colchão, o corpo ágil novamente ao alcance de seus carinhos, da sua boca, de seu membro...

Galeran deixou escapar um longo suspiro. Havia controlado o desejo e a frustração por dois anos, assim seria capaz de controlá-los por mais um par de horas. Ajeitando-se sobre a sela, viu que estava enfim em solo conhecido: as terras do vale que lhe pertencia, os campos que o verão fazia ainda mais belos, os pastos pontilhados por ovelhas roliças.

O sol começava a se pôr e seu cavalo dava sinais de cansaço, mas não havia tempo a perder. Galeran bateu com os calcanhares nos flancos do animal, galopando através de aldeias que conhecia tão bem, espantando gansos, galinhas e pessoas. Os gritos de "É lorde Galeran! Lorde Galeran!" ficaram rapidamente para trás, assim como o alarido das aves assustadas.

Pouco depois ele avistava, ainda sombreada por um aglomerado de árvores, a fortaleza erguida com pedras que era sua casa, o Castelo de Heywood. Num gesto irrefreável, puxou as rédeas de seu cavalo. Havia sonhado com seu lar tantas vezes que agora tinha a sensação de que tornava a devanear. Naquele momento, precisava de alguns instantes para convencer-se de que o castelo era de fato real.

Tudo lhe pareceu tão familiar... Era como se tivesse partido dali no dia anterior.

Raoul parou ao lado dele, sua montaria relinchando devido ao esforço.

— Estamos em casa, afinal — comentou o francês. — Você não deve ter se dado conta, mas seus homens ficaram para trás. Esperamos por eles para prosseguirmos todos juntos, com calma?

Galeran havia pensado nisso, mas não conseguia dominar a ansiedade.

— Não. — Tornou a incitar seu cavalo, dessa vez a um trotar, para contornar uma curva do caminho e obter uma visão completa de seu lar.

E então, de supetão, voltou a estacar o animal. Um exército borbulhava ao redor de Heywood. Seu castelo estava sitiado!

— Pelas chagas do Senhor, quem fez isso?

Levando a mão à testa protegendo os olhos do sol que se punha, Raoul observou:

— O estandarte tem as cores vermelho e verde. Mesmo sabendo que o amigo enxergara corretamente, Galeran não acreditava que aquilo pudesse ser possível.

— Aquele é o estandarte de meu pai.

— Então é seu pai quem mantém o castelo sitiado.

Galeran não tinha como refutar as palavras de Raoul. De onde se achava, ele agora via perfeitamente o estandarte de William de Brome fixado à principal tenda do cerco. Até mesmo reconhecia aquela tenda, que era o orgulho e a alegria de seu pai.

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Todo o entusiasmo que experimentara desvaneceu-se como fumaça ao vento, dando lugar a um medo pavoroso. Galeran fixou os olhos em Heywood, uma fortaleza de contornos quadrados, e depois os levou à sólida muralha que envolvia o castelo, recém-completada pouco antes de ele partir para a Cruzada. Nem um nem outro tinham sinais de ataque.

Heywood era um dos castelos mais robustos e protegidos do Norte. Quem o teria tomado sem renhida batalha? E o que acontecera à sua mulher e ao seu filho?

Com o coração envolto em gelo, ele disparou pelo restante do caminho, ignorando gritos e vassalos que tentavam impedir seu avanço. Só percebeu que trazia a espada empunhada quando quase chegou a usá-la contra um de seus homens.

Foi obrigado a deter-se alguns metros além do grande portão, onde um guarda pasmo de surpresa colocou-se à sua frente.

— Meu lorde Galeran!

Outros guardas ali postados não demonstravam menor espanto. De um instante para outro, Galeran notou que as vozes antes alteradas agora o circundavam como um manto de sussurros a traduzir assombro, incredulidade, horror... No momento seguinte, viu seu pai abrir caminho em meio aos soldados. Lorde William estava mais grisalho, mas mantinha o mesmo físico vigoroso e as mesmas faces rosadas de que seu filho tão bem se lembrava.

— Galeran! É mesmo você? Cristo seja louvado! Nós o julgávamos morto.

Um cavalariço correu a tirar a brida da mão de Galeran. Seu pai quase o arrastou da sela ao chão para estreitá-lo num abraço apertado.

— Seja bem-vindo de volta a nós, meu filho! Pensávamos que estivesse morto... Ah, graças a Deus, graças a Deus!

Galeran desvencilhou-se do abraço.

— Quem tomou meu castelo?

O silêncio que se seguiu à pergunta era assustador.

Com toda a alegria varrida do rosto, lorde William sugeriu:

— É melhor você vir comigo à minha tenda, rapaz. Galeran reparou que estava rodeado pelos irmãos e pelos tios. Nenhum deles, porém, ousava olhá-lo nos olhos.

Jehanne.

Ela estava morta.

A suposição fez crescer dentro dele algum tipo de doença súbita, um insuportável mal-estar que lhe revirava o estômago. Meio atordoado, deixou-se arrastar para a tenda de lorde William, ciente de que sua família se comprimia atrás deles, mas com os olhos pregados no rosto do pai.

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— Jehanne?

Lorde William derramou um pouco de vinho numa taça e estendeu-a ao filho.

— Beba.

Galeran afastou a taça com um safanão.

— Onde está minha mulher?

— No castelo — respondeu lorde William, antes de deixar a bebida sobre a mesa à sua direita.

O alívio quase o fez dobrar os joelhos. Jehanne era prisioneira, mas estava viva. Que Deus fosse louvado.

— Quem a mantém aprisionada?

Como resposta, ouviu tio Thomas resfolegar. Então se virou para os demais, alertado mais pelo tom em que murmuravam do que pelas palavras que diziam. E só ao ver o irmão mais novo, Gilbert, dar um passo para trás, foi que percebeu que ainda trazia a espada em riste. Baixando a arma, guardou-a na bainha e depois indagou:

— O que está acontecendo aqui?

— Sinto muito — disse-lhe o pai. — As notícias não são boas. Sua esposa instituiu Raymond de Lowick como senhor de Heywood. E como vem se recusando a mandá-lo embora daqui, viemos insistir para que ela o faça.

Nesse instante a aba de entrada da tenda foi erguida para dar passagem a mais um homem alto e robusto: era Will, irmão mais velho de Galeran. Toda a família estava agora reunida ali.

— Irmãozinho! Seu regresso é motivo de imensa satisfação para todos nós, ainda que você tenha chegado num momento muito difícil.

Não havia como escapar ao abraço efusivo, então Galeran deixou-se apertar contra o peito do irmão enquanto tentava organizar nos pensamentos a novidade que lhe fora tão cruamente apresentada.

Jehanne e Raymond de Lowick.

Não, não era possível acreditar naquilo. Lowick tinha sido escudeiro do pai dela, e Jehanne imaginara-se apaixonada pelo belo cavaleiro que ele havia se tornado, mas isso fora anos, muitos anos atrás...

Ao ver-se livre do abraço de Will, Galeran virou-se para o pai.

— Pensei que Lowick tivesse se casado em Nottinghamshire.

— A esposa dele morreu sem deixar herdeiros, e Lowick recebeu muito pouco do que ela possuía. Mais ou menos quando isso aconteceu, o mordomo-mor de

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Heywood apanhou uma febre e veio a falecer. Pouco depois, vim a saber que sua esposa impôs a presença de Lowick a todos aqui.

Mesmo sentindo que o ar parecia lhe esfolar a garganta, Galeran obrigou-se a respirar. Quando enfim conseguiu articular algumas palavras, tentou ponderar:

— Jehanne tinha o direito de fazer isso. Deixei o controle de Heywood nas mãos dela. Lowick sempre foi um grande cavaleiro.

A mandíbula de lorde William moveu-se para um lado e para outro, como sempre acontecia quando ele não queria dizer determinada coisa. Quando o silêncio se tornou insuportável, Will decidiu-se por revelar:

— Pouco mais de um mês atrás, sua esposa deu à luz um filho de Lowick.

Apanhando a taça da mesa, lorde William meteu-a entre as mãos de Galeran.

— Beba.

Tomado pelo susto e pela descrença, ele sorveu o vinho de um só gole. Teria caído do cavalo e perdido o senso? Estaria, Deus o livrasse, delirando junto às muralhas de Jerusalém?

— Ouvimos dizer que você estava morto. — A voz de lorde William parecia distante. — Cerca de um ano atrás, chegaram notícias dando conta de que você havia perdido a vida durante a tomada de Jerusalém. Ainda que não tivéssemos como comprovar a veracidade dessas informações, achamos por bem começar a discutir o futuro de Jehanne. Até que tudo se esclarecesse, era preciso pensar em quem assumiria a responsabilidade sobre Heywood, quem ficaria com a guarda do bebê...

Um novo silêncio caiu sobre todos. Erguendo o olhar a uma das traves da tenda, Galeran disse a si mesmo que tomasse uma coisa por vez. Que não imaginasse Jehanne nos braços de um outro homem. Que não pensasse nela esbanjando a fertilidade conquistada a tão duras penas para gerar um bastardo.

— Que direito minha mulher invoca para impedir que vocês entrem no castelo?

— Nada nem ninguém poderia lhe dar tal direito — rosnou lorde William. — Mas Jehanne sabe... eles sabem muito bem que eu seria bastante duro com ambos quando estivesse lá dentro.

Uma coisa por vez.

Galeran deixou a taça vazia em cima da mesa, virou-se e saiu da tenda. Sabia que o pai e os irmãos seguiam em seus calcanhares, sabia que todos acampados ali tinham os olhos nele. Evitou olhar para Raoul.

Todo o entusiasmado enaltecimento que tecera acerca de Jehanne tinha virado cinzas, e mesmo assim...

Ela o julgara morto. Havia um grão de consolo nisso.

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Tomando as rédeas da mão do cavalariço, saltou à garupa de sua exangue montaria. No instante seguinte lorde William segurava na brida indagando:

— O que vai fazer? Se quiser liderar um assalto, cuidaremos disso amanhã.

Galeran não incitou o cavalo, apenas comentou numa voz sem cor:

— Vamos ver se antes eles não abrem as portas ao verdadeiro senhor de Heywood.

— Pelo amor da Virgem, rapaz, eles irão meter uma seta na sua testa! A esta altura dos acontecimentos, sua morte seria uma bênção para os dois.

— Se minha esposa me quer morto, então é melhor que eu realmente morra.

Enfrentou o olhar irado do pai e, após um breve momento, lorde William largou o cavalo.

Galeran partiu rumo à entrada principal do castelo com a cabeça descoberta. Não portava estandarte, mas a maioria das pessoas acabaria por reconhecê-lo quando se aproximasse. Não havia guardas nos muros internos.

Heywood fora construído no cimo de uma formação rochosa natural do terreno, e a vegetação no seu entorno era preservada de modo a que os sentinelas postados no alto do castelo sempre tivessem como avistar quem dali se acercava. Cavalgando pelo caminho em fôrma de aclive que levava ao portão do muro interno do castelo, Galeran ouviu um dos guardas soar sua trombeta. Em questão de momentos, mais guardas acorriam aos postos de defesa que circundavam a construção.

Entre eles estava Jehanne, acompanhada por um homem alto protegido por uma armadura. Raymond de Lowick, por certo.

Lowick sempre fora um rapaz de feições bonitas, e Galeran não tinha por que imaginar que isso tivesse se alterado agora que ele estava próximo aos trinta anos de idade. Lowick também sempre fora um guerreiro habilidoso, tanto em batalhas como em confrontos pessoais.

Sacudindo a cabeça como se isso pudesse afastar cenas da esposa e do amante dela juntos, perguntou-se se teriam a ousadia de mandar que o atacassem. Usava cota de malha, por isso a hipótese de que pudessem matá-lo àquela distância pa-receu-lhe remota. Ainda assim, se os guardas de Heywood agora dispusessem de uma besta, o poderoso artefato para disparar flechas certeiras, teriam como acertá-lo na cabeça. De um modo ou de outro, aquilo não lhe importava; naquele momento, viver ou morrer soavam-lhe como questões irrelevantes.

Sem que ninguém se opusesse ao seu avanço, aproximou-se dos portões do muro interno. Dali, podia ver que a mulher no parapeito do castelo era de fato sua esposa.

Ela não havia mudado. Continuava com o corpo esguio, e seus cabelos muito claros caíam-lhe pelas costas em meadas indomadas. Estava pálida, mais pálida do que

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de costume, mas, nas circunstâncias, isso não era de se estranhar. E sustentava com firmeza o olhar que ele lhe dirigia, só que por isso Galeran já esperava.

Jehanne enfrentaria o diabo olhos nos olhos.

Um assomo de cólera quase pôs por terra o controle que ele se impunha.

Por quê?

Quis gritar a pergunta para ela ali, naquele instante, pois certamente devia haver algum motivo para tudo o que acontecera. Conhecia sua mulher. Ainda a amava, mas a imagem que fazia dela naquele instante era como os fragmentos daquela flor partida. Existiria cera capaz de colar os pedaços de uma vida em destroços?

Galeran desviou o olhar para os homens armados no topo do muro interno, e viu que também pareceriam sem cor. Isso, no entanto, ele não sabia como interpretar.

— Sou lorde Galeran de Heywood — anunciou, alto o suficiente para que todos o ouvissem —, o senhor de direito deste castelo. Amanhã, à primeira luz do dia, virei para cá com meus homens e os homens de minha família, e espero que nossa entrada seja permitida. Negar-me acesso às dependências do custeio será o mesmo que colocar a vida de todos aqui em perigo.

Esperou um breve instante, mas não recebeu nem resposta nem desafio. O único movimento vinha do xale azul de Jehanne, que o vento agitava sem parar.

Então deu meia-volta ao cavalo e retornou para o acampamento das forças de lorde William. Lá, deslizou da sela para, o chão e entregou sua exausta montaria aos cuidados de John.

— Por que amanhã? — seu pai o interpelou. — Se eles permitirem que você entre lá amanhã, então teriam permitido que entrasse hoje mesmo!

— Acho que preciso de tempo para pensar — foi tudo o que Galeran disse, antes de se afastar dali, do acampamento e de todos os que tinham os olhos fixos nele.

Por sorte, ninguém foi ao seu encalço.

Deteve-se algum tempo depois, ao dar-se conta de que não havia muito sentido em continuar andando, a menos que pretendesse regressar a pé a Jerusalém... por mais que essa idéia o apetecesse naquele momento. Encostando-se ao tronco de uma árvore, escorregou até se sentar no chão e descansou a cabeça sobre os joelhos.

Santo Deus que estava nos Céus, o que deveria fazer?

Sabia o que esperavam dele: que matasse Lowick, trancafiasse Jehanne num convento depois de surrá-la sem piedade e buscasse uma nova esposa, certamente muito mais virtuosa.

Ou talvez que a entregasse aos tribunais para que a executassem.

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Perguntou-se o que seria feito das crianças. Gallot e o pequeno bastardo. Ambos eram novos demais e por certo viriam a amar uma outra mulher como mãe. Jehanne, porém, nunca se recuperaria da perda.

Havia se surpreendido quando sua esposa, sempre tão calma e com os pensamentos ordenados por uma lógica quase fria, revelara um anseio maternal exacerbado e cheio de paixão. Um anseio que, ao ganhar vida, tornara-se uma força motriz na existência de ambos. O desejo cego de Jehanne por um filho tinha erodido o prazer sexual em suas uniões amorosas, além de provocar nela uma infelicidade muda a cada mês do ano. Aquela tristeza infinita o levara a tomar a única atitude que ele não gostaria de tomar: unir-se a uma Cruzada.

A princípio, o fato de não terem filhos não fizera diferença a nenhum dos dois. Noivos aos dezesseis anos de idade, casados aos dezessete, a vida se colocava diante deles como uma larga estrada de amplas possibilidades, e os complicados prazeres tanto da briga quanto da cama lhes roubavam toda a atenção. Contudo, após um ano ou pouco mais, as perguntas começaram. Perguntas que tiveram início como dúvidas ou suposições, mas que sempre terminavam no mesmo ponto: quan-do Jehanne enfim engravidaria? Até mesmo lorde William viera indagar ao filho se o jovem casal sabia fazer tudo o que era preciso para originar uma gravidez.

Evidentemente, ambos sabiam bem até demais como agir nos momentos de intimidade. E gostavam tanto do que faziam que não tinham a menor pressa em interromper os instantes de imenso prazer que encontravam no corpo um do outro com unia gravidez e um subseqüente parto. Só que a cobrança dos parentes começou a afetá-los e, quando perceberam, estavam os dois contaminados com a preocupação pela infertilidade.

Recomendaram-lhes ervas, que tinham sido cuidadosamente utilizadas. Ofereceram-se preces ao casal. Jehanne até mesmo concordara em usar um amuleto para afastar os maus espíritos que pudessem devorar os filhos de uma mulher antes que principiassem a crescer.

Ainda assim, no começo não davam a esse assunto mais do que pouca importância. Aos dezoito anos, viviam do otimismo juvenil que lhes garantia que tudo viria a seu tempo. E enquanto esperavam pelo filho que certamente haveria de chegar, dedi-cavam-se a desfrutar da companhia um do outro com o máximo de arrebatamento e deleite.

Jehanne já havia aperfeiçoado suas aptidões como castelã e era uma administradora eficiente e laboriosa. Ele continuava a aprimorar tanto suas técnicas de combate como as habilidades administrativas necessárias aos cuidados do baronato deixado pelo pai da esposa, além de achar-se extasiado pelo poder e pelo prestígio de Heywood; por não ser filho primogênito, nunca imaginara tornar-se um lorde possuidor de terras tão facilmente.

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O inesperado casamento fora trazido à baila porque os irmãos de Jehanne haviam morrido e isso fizera dela a única herdeira das propriedades de seu pai. Fulk de Heywood decidira casá-la o mais depressa possível com um rapaz correto, com idade para assumir responsabilidades, mas jovem o suficiente para que ele o treinasse.

Num gesto natural, Fulk voltara os olhos à grande família de seu vizinho, William de Brome. Will, o filho mais velho, já estava casado. Eustace, o segundo filho, tinha dezenove anos e era tudo o que um pai zeloso poderia desejar para a filha querida.

As negociações pertinentes ao noivado já iam adiantadas quando Eustace atirou tudo ao léu para anunciar que responderia ao chamado interior para tornar-se padre, um padre-combatente disposto a lutar contra os mouros na Ibéria. Fulk rosnara, lorde William enfurecera-se, mas Eustace mantivera-se fiel à sua determinação, como seria de se esperar de um guerreiro sagrado.

Desse modo, Galeran tornara-se o foco dos planos dinásticos. Com apenas dezesseis anos de idade, e mais interessado em cavalos e cães do que em mulheres, não fora sequer consultado. Intimaram-no a regressar de Lancashire, onde servia como escudeiro ao lorde Andrew de Forth, vestiram-no com trajes finos a que não estava acostumado, e levaram-no a Heywood para fazê-lo noivo de uma garota gelada, um par de centímetros mais alta do que ele e alguns meses mais velha. Ignorando-lhe o aturdimento, informaram-no de que iria viver em Heywood e completar o treinamento em armas sob o comando de lorde Fulk, que também lhe ensinaria como administrar a propriedade.

Apesar do choque, Galeran reconheceu a boa sorte. Recebera de mão beijada um castelo e seus domínios e entraria na posse deles em breve, uma vez que lorde Fulk não se encontrava bem de saúde. O único senão em tão auspicioso episódio era a noiva que haviam lhe arranjado.

Lady Jehanne não fazia segredo de que preferia casar-se com outro homem, Raymond de Lowick. O alto e belo Raymond fora escudeiro de lorde Fulk e era então conhecido em todo o Norte por sua aptidão com as armas. Acatando a ordem do pai, ela se resignara a desposar Eustace de Brome, que também era alto e bonito, embora de um modo quase rústico, e que, como Raymond, também já havia demonstrado seus talentos numa batalha.

Jehanne não esperara casar-se com um garotinho magro, mais baixo do que ela.

— Sou dois meses mais velha do que você — fora a primeira coisa que Galeran ouvira dos lábios dela.

Mas ele tinha irmãs e sabia como lidar com a questão.

— Então irá morrer antes de mim — retrucara.

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Após fazerem os votos e assinarem documentos na presença de trinta e poucos homens de posição do Norte, mandaram-lhes que fossem se sentar no lado oposto do salão onde as testemunhas brindavam à sua saúde. Ambos vestiam-se com a mais fina seda com barrados em ouro, ainda que Jehanne portasse seu traje como se tivesse nascido com eles enquanto Galeran nunca havia se vestido daquele modo em toda a vida.

Ele tinha os cabelos cuidadosamente aparados, ela por certo nunca havia cortado os seus, que formavam uma cascata de ouro pálido a lhe cobrir o quadril estreito. Vindo de uma família em que todos possuíam cabelos escuros, Galeran tinha a impressão de estar diante de uma maravilha... mas uma maravilha como o relâmpago ou o fogo que o dragão soltava pelas ventas, ou o dilúvio.

Mais perigosa do que desejável.

A pele dele era quase morena, pois sua família originara-se no sul da França, onde o sol era bastante forte, não muito tempo atrás. A ascendência de Jehanne era nortista, o que se traduzia também na pele quase translúcida, delicada e sedosa como um chifre polido. Os lábios rosados dela prometiam calor, mas seus olhos de um azul muito claro eram frios como o inverno.

— Eu queria me casar com um homem — ela lhe dissera, atirando a cabeça para trás num movimento que havia feito os, longos cabelos ondularem como se tivessem vida própria. — Até mesmo seu irmão teria sido melhor do que você.

— Meu irmão preferiu a Igreja — Galeran devolvera, na expectativa de que ela entendesse o verdadeiro sentido da observação.

— Acho que a Igreja lhe serviria muito bem também. — Jehanne o tinha olhado de cima a baixo antes de concluir: — Você não tem a constituição física de um guerreiro.

Aquele comentário fora suficiente para que Galeran redobrasse sua devoção ao treinamento militar. Ele sabia que ainda não havia atingido a estatura ideal para um rapaz da sua idade, porém estava certo de que continuava a crescer. Talvez nunca alcançasse a altura do pai ou dos irmãos mais velhos, mas iria crescer e em breve estaria mais alto do que sua esposa. E, apesar da estatura, já possuía uma habilidade razoável nos jogos com a espada e um grande talento para a montaria. Jehanne por certo não se casaria com um padre.

Pouco depois, ainda durante o noivado, ela o observava durante uma prática com a espada quando comentara:

— Seu braço esquerdo é mais fraco do que o direito. Virando-se repentinamente, Galeran fizera o suor saltar de seus cabelos.

— Todas as pessoas têm o braço esquerdo mais fraco do que o direito, inclusive você.

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— Não, isso não é verdade. — Jehanne dera um sorriso desdenhoso. — Sou canhota.

— Amaldiçoada, você quer dizer — ele retorquira, referindo-se a uma superstição.

— Só se for por você, sujeitinho.

Ela se fora dali e ele voltara à prática, satisfeito com a idéia de que vencera a competição.

Talvez tivesse sido por conta daquele episódio que Jehanne mudara de tática e resolvera surpreendê-lo, dias depois, na quietude da cocheira.

— Já que vamos nos casar, Galeran, você deveria me beijar.

Muito pouco à vontade, ele se afastara.

— Não quero beijar você.

— Claro que quer. — Ela tombara a cabeça para o lado e, esboçando um leve sorriso, estudara-lhe o rosto. — Ou será que você não sabe beijar?

— É lógico que sei. E você não deveria saber.

— Bem que você gostaria que eu não soubesse, não gostaria? Assim eu não teria como saber se você fez direito. — Jehanne dera um passo adiante para colocar a mão sobre o peito dele. — Se você aprender a beijar corretamente, Galeran pode ser que eu lhe permita fazer outras coisas... Ou será que é disso que você tem medo?

O perfume dela, uma mistura floral com algum toque picante, chegara às narinas de Galeran como um aviso. Aquele território era novo para ele, e isso o deixava meio apavorado.

— Você fala bobagens, Jehanne. Mas um dia ainda irei vencê-la.

— Para isso, você tem de crescer.

Mas quando ele avançara sobre ela, Jehanne se esquivara com um sorriso provocador. Galeran poderia tê-la agarrado, sei assim quisesse. Mas ser seu futuro marido não lhe granjeava os direitos de um marido de fato.

Ainda.

Pensar em direitos maritais o fazia pensar também em deveres maritais. O casamento se realizaria dentro de quatro meses, e Jehanne estava certa: ele não sabia o que fazer. Sabia evidentemente, do que ocorria entre um homem e uma mulher e também tinha visto os irmãos com uma criada uma vez ou outra, mas faltava-lhe o conhecimento da prática. Não estivera muito interessado em mulheres antes do noivado e, desde a cerimônia dos votos, mantinha-se em Heywood; por algum motivo, não lhe parecia correto vadiar com as serviçais na casa da futura esposa.

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Até então. A partir daquele dia, Galeran dominara os escrúpulos e começara a beijar as mocinhas que lhe apeteciam. Acabara por gostar das investidas e, em pouco tempo, vira-se apresentado a outros deleites: as carnes macias do corpo feminino, principalmente os seios; o brilho sedutor nos olhos de uma garota satisfeita; o odor provocante de uma mulher, tão diferente do cheiro de um homem suado; as reações do próprio corpo, exigindo mais.

Não cedera a tais exigências, já que isso continuava a não lhe parecer correto, mas freqüentemente cogitara de fazer uma visita a Brome, onde sabia o nome de algumas mulheres que estariam dispostas a recebê-lo.

Mas então um dia Jehanne o surpreendera com uma de suas criadas favoritas no colo. Embora aguilhoado pela culpa, Galeran sentira certo alento pela ira crua que via nos olhos da noiva. Em seu íntimo, gostara que Jehanne o tivesse apanhado naquelas circunstâncias, queria vê-la enfurecer-se ao surpreendê-lo assim. Com toda a calma que conseguira reunir, empurrara a moça das pernas e dera-lhe um tapinha brincalhão na anca como a lhe dizer que se fosse dali.

Jehanne, obviamente, mantivera as rédeas sobre seu auto-controle.

— Parece que você anda treinando — ela lhe dissera com expressão de pouco-caso. — Acha que terá aprendido tudo direitinho antes que nos casemos?

— Por que eu haveria de me preocupar com isso, se a mim me bastará fazê-la esperar um filho?

— Para que eu não ria de você.

E Galeran tivera a impressão de que ganhara pela segunda vez, pois ela se fora pisando duro, com o rosto afogueado.

Ou talvez fora Jehanne quem tivesse vencido já que, a partir daquele dia, ele descobrira que não via graça em atormentar a noiva e desistira dos jogos amorosos com as criadas. Mais do nunca, no entanto, queria visitar Brome e experimentar uma prática verdadeira para sua noite de núpcias.

Naqueles tempos, chegara a se perguntar se Jehanne saberia mais do que ele, mas essa hipótese soava pouco provável. Ela era uma garota de espírito indômito, pois sua mãe morrera já fazia alguns anos e seu pai vinha sendo negligente quanto à sua educação. Mesmo assim, Fulk não era o tipo de homem que tolerasse uma filha libertina. Jehanne não teria como vadiar com outros homens. Ou teria?

Galeran lembrou-se de Raymond de Lowick, que visitava Heywood com uma freqüência que o incomodava profundamente. Aos olhos de todos, Raymond ia prestar seus respeitos ao velho mestre, mas flertava com Jehanne sempre que a ocasião assim propiciasse. Ela não parecia encorajá-lo, só que também não o rejeitava.

Na verdade, Galeran via Jehanne como um complicado mistério.

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Ela não caminhava com suavidade; pisava duro por onde andasse, as saias dançando ao redor das pernas, mesmo assim parecia tão graciosa quanto qualquer outra mulher. Não dobrava o pescoço nem baixava o olhar; olhava um homem nos olhos, fosse ele seu pai, Galeran ou Lowick, mesmo assim não era inconveniente. Cavalgava em caçadas com o ímpeto e a destreza de qualquer homem, era rápida e certeira com o arco e a flecha, sabia manejar uma espada com habilidade e erguia uma saca de grãos sem dificuldade, e nada disso conseguia lhe roubar a delicadeza ou a feminilidade.

Por outro lado, Jehanne era também muito hábil nos assuntos de mulher. Sabia produzir fios primorosos, tecia belas roupas e, aos olhos dele, seus bordados eram encantadores. Mais importante ainda, era capaz de organizar as outras mulheres para que produzissem fios, tecessem e bordassem e, desse modo, Heywood prosperava como nunca sob seu comando. Jehanne sabia como tudo deveria ser feito e parecia ter os olhos em todos os lugares ao mesmo tempo. Ligeira na punição àqueles que faltassem com seus deveres, jamais era cruel. Era como se ela conseguisse fazer com que seus subordinados sempre dessem o melhor de si.

O povo de Heywood tinha orgulho de sua dama, e Galeran lambem. Ele a admirava, com sua língua afiada e tudo o mais, e embora Jehanne às vezes ainda o deixasse nervoso, aprendera como lidar com ela. Se aprendera assuntos militares com o mestre de armas, era com a esposa que tinha aprendido um bocado de brigas pessoais.

E ele gostava de ambas as atividades.

Além do mais, continuara crescendo. Um dia, dera-se conta de que estava mais alto do que ela e de que os exercícios o faziam ganhar peso e músculos. Para sua grande alegria, dois meses antes do casamento ele sobrepujava a altura de Jehanne em mais de uma cabeça. Talvez em resposta a isso, ela passara a atormentá-lo menos. Agora o observava com uma luz diferente nos olhos e nunca mais o provocara quando estavam sozinhos.

Mas então, quando faltava cerca de um mês para o casamento, Jehanne o abordara num corredor deserto.

— Já está pronto para me beijar, meu futuro marido? — Ela agora tinha de erguer a cabeça para olhá-lo nos olhos.

Sim, ele estava pronto. Mais do que pronto. Pegando num pulso dela, enlaçara-a pela cintura com o outro braço. Jehanne enrijecera-se. De espanto? De raiva? De antecipação? Galeran não soubera interpretar o que via nos olhos azuis, mas, naquele momento, isso pouco lhe importara.

Colara os lábios nos dela, depois se detivera, imaginando o que ela iria fazer. Jehanne não fizera nada, apenas continuara a olhá-lo, sem piscar.

— Você não sabe o que fazer? — provocara-a, falando com a boca junto à dela.

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— Estou esperando para ver se você sabe.

Ao dizer aquilo, Jehanne grudara os lábios nos dele, depois, com extrema malícia, refizera o contorno de sua boca com a própria língua.

Sentindo o corpo reagir no mesmo instante, Galeran congelara.

— Quem lhe ensinou esses truques? — interpelara-a.

— Quem lhe ensinou a reconhecê-los? — ela devolvera no mesmo tom.

— É diferente para os homens e para as mulheres.

— É?

Furioso, Galeran a trouxera para junto de si e a beijara, com firmeza e rispidez, sem se preocupar em impressioná-la, com a única intenção de lhe demonstrar quem era o mestre. Jehanne permanecera rígida entre seus braços, mas, de um instante para outro, relaxara e o beijara de volta, a língua buscando a dele enquanto ela moldava-se ao seu corpo.

Ele apreciara demais o contato tão íntimo, até se dar conta do que acontecia. Então a largara de supetão e, com um passo atrás, acusara:

— Você já tinha beijado!

— Já?

— Quem você beijou?

— Por que quer saber?

— Para que eu possa matá-lo.

— Você!

Jehanne rira. Ele lhe dera um tapa.

E ela revidara.

Crianças que eram, tinham se engalfinhado e trocado sopapos até que os separassem. Enquanto Jehanne ainda rosnava como um cão bravio, ele era mandado para casa para enfrentar a ira do pai.

Capítulo II

— Heywood está falando em anular o noivado, seu energúmeno!

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— Ela me tira do sério!

— E você a estapeia? — Lorde William sacudira o filho com tanta força que o fizera desequilibrar-se e cair de joelhos. — Será que não podia pensar numa outra maneira de lidar com uma mocinha tão delicada?

— Delicada? Ela é uma loba!

A impertinência custara a Galeran uma boa sova. E depois dos cascudos, lorde William ordenara:

— Saia da minha frente. Você vai retornar a Heywood e tratar de desfazer o malfeito que arrumou.

De volta a Heywood, Galeran não sabia que tipo de recepção esperar de Fulk ou da filha dele. Tudo o que sabia era que desejava o perdão de ambos, já que a idéia de perder Jehanne lhe provocava um inexplicável e insuportável nó no peito.

De todo modo, ele argumentara consigo, seu pai estava certo. Não era preciso que um homem estapeasse uma mulher no intuito de dominá-la, mesmo uma mulher como Jehanne. Galeran estava pronto para desculpar-se com a noiva, contudo esperava que ela não tornasse a provocá-lo, pois nesse caso as conseqüências seriam imprevisíveis.

Para sua surpresa, Fulk não fizera do assunto um cavalo de batalha, apenas salientara esperar que, da próxima vez em que Jehanne o desgostasse, Galeran a surrasse adequadamente em vez de criar um alvoroço pelos corredores do castelo.

Apresentadas as desculpas ao futuro sogro, ele fora à procura da noiva. Encontrara-a no jardim, subjugada e irradiando mais descontentamento do que satisfação. Jehanne ouvira seu pedido de perdão, depois reclamara num tom melancólico:

— Apanhei por sua causa.

— E eu apanhei por sua causa.

— Se você foi punido, era porque merecia.

— Posso dizer o mesmo de você, Jehanne.

— Mas eu não fiz nada!

— Você dedica sua vida a me atormentar.

— Fique sabendo, meu lorde Galeran, que tenho coisas com que me ocupar e não posso perder tempo em atazanar quem quer que seja.

— Você devia era se comportar como uma verdadeira dama, isso sim. Mas... De qualquer modo, quero que saiba que lamento muito por você ter apanhado por minha causa.

E com isso ele batera em retirada rumo à relativa segurança do mundo das espadas, dos cavalos e dos combates com armas de ferro, dizendo-se que Jehanne era como

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um espinho em sua carne e que só teria como cuidar disso dali a uma semana, quando enfim estariam casados. Pois a verdade era que já começara a inflamar-se por dentro sempre que a via, enrijecer-se quando seus braços se tocavam à mesa de refeições, aturdir-se ao suave perfume que ela deixava no ar. Talvez Jehanne ainda não tivesse se dado conta das reações que despertava nele ou da força do desejo de um rapaz saudável, caso contrário pararia de apoquentá-lo.

Galeran tentara manter-se fora do caminho dela, mas a danadinha tomara-se perita em aparecer nos lugares onde ele se encontrava. E pouco demorara a que Jehanne descobrisse maneiras de se vestir e se comportar de modo a fazer com que o noivo desistisse de manter-se longe dela.

Numa manhã, dois dias antes da cerimônia de casamento, Galeran acordara com ela sentada, pernas cruzadas, em sua cama.

— Pelas brasas do inferno, Jehanne! Que está fazendo aqui?

— Você tem me evitado.

Galeran desviara os olhos da longa saia num suave tom de rosa, como se isso o ajudasse a se livrar do desejo de arrastar a noiva para debaixo das cobertas.

— Se tenho evitado você é porque não quero vê-la. Agora saia daqui.

— Não.

— Então vou eu.

Assim que ele fizera menção de jogar as cobertas para longe, Jehanne o avisara:

— Joguei todas as suas roupas pela janela.

— O quê!? — Galeran olhara para sua arca, naquele mo-, mento aberta e vazia. — Pois perdeu seu tempo, garota tola. Não sou tímido.

Com isso saltara da cama, colocando-se diante dela completamente nu. Para seu espanto e decepção, Jehanne não dera ao menos um gritinho. Examinara-o de cima a baixo, as faces rosadas como a saia de verão, mas com uma expressão contida.

— Nada mal, Galeran. Você está crescendo.

Como não quisesse lhe dar o gostinho de vê-lo buscar a proteção das cobertas, ele resolvera enfrentá-la com as armas de que dispunha no momento: as palavras.

— Imagino que também esteja crescendo, Jehanne, mas é difícil avaliar o quanto, com você vestida da cabeça aos pés.

Os olhos de Jehanne se arregalaram um pouco mais, depois ela se pusera a erguer a saia. Galeran correra a segurar no braço dela.

— Não faça isso!

— Por que não? Você me desafiou, não desafiou?

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— Pela Santa Cruz, mulher! Então a desafio agora a saltar pela janela atrás das minhas roupas, está bem assim?

— Só se você me acompanhar, Galeran. De mãos dadas, nós dois, a caminho da eternidade.

Ele bem sabia que ela seria capaz...

Jehanne então tomara a mão que ele tinha em seu braço para colocá-la sobre um de seus seios, seus pequenos e arredondados seios, cujos mamilos despontavam sob o tecido leve da blusa.

— Viu como estou crescendo? — Baixando o olhar, ela sorrira. — E você também.

Ele já tinha percebido isso. E vacilara.

— Não podemos...

— Claro que não. Mas podemos nos beijar.

— Jehanne, não. Não posso...

Talvez ela tivesse compreendido a situação, pois, inspirando profundamente, lhe afastara a mão de seu corpo.

— Está bem. Se você não pode, então não pode. Vou mandar que tragam suas roupas aqui para cima. — E deslizara para fora do quarto, deixando uma nuvem de perfume e uma forte ereção a atormentá-lo.

Embora Jehanne não voltasse a importuná-lo, sua mera presença pelas imediações era suficiente para pressioná-lo até o limite. No dia do casamento, ele se achava prestes a se incendiar como uma árvore seca ao contato com a chama, e as longas horas da cerimônia e dos festejos tinham se apresentado como um verdadeiro suplício.

No entanto, quando enfim se encontraram sozinhos no leito nupcial, Galeran sentira-se congelar. Tanto pelo receio de que Jehanne soubesse mais do que ele sobre aquele assunto, como pelo medo de libertar a força que bramia em seu íntimo, uma força que nem conhecia nem se sentia capaz de controlar.

Após alguns instantes, ela lhe tocara o peito.

— Galeran...?

Experimentando um tremor, ele hesitara um breve momento antes de admitir:

— Você estava certa. Devia ter se casado com alguém mais velho e experiente.

— Por quê? Para que ele morresse bem antes de mim?

— Ele saberia o que fazer. — Punhos cerrados, Galeran olhara para o teto. — Eu não sei, Jehanne. Nunca fiz isso.

— Eu também não, mas sei o que deve ser feito.

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— Isso eu também sei, mas... — O que não sabia era como, ou quando.

Descendo a mão pelo peito dele, Jehanne fora ao encontro da fonte das angústias e das esperanças do seu agora marido. Galeran ofegara.

Ela também.

— Eu não imaginava que fosse ficar tão rígido.

— Não faça isso, Jehanne.

— Dói?

— Não, mas...

— Então, use-o.

Dizendo isso, Jehanne acomodara o corpo nu sobre o colchão e o trouxera para cima de si. Tomado por um desejo enlouquecedor, Galeran acomodara-se sobre ela, confessando:

— Não quero machucar você.

— Não tenha medo. Minha pajem me disse que seria mais fácil se eu estivesse pronta, e se eu estivesse pronta estaria úmida... Faz semanas que estou pronta, Galeran...

Aquelas palavras tinham sido o último incentivo de que ele necessitava. Com a mente de súbito vazia de pensamentos, Galeran deixara guiar-se pelos instintos como um arado que seguisse os cavalos, descobrindo-a, penetrando-a, preenchendo-a.

Jamais imaginaria que pudesse ser algo tão intenso, quase devastador. E tão arrasado se sentira que, ao terminar, largara-se sobre ela como se não existisse mais nada no mundo.

— Galeran! Não consigo respirar! Ele se afastara no mesmo instante.

— Desculpe-me... Machuquei você? — Então, ao ver a resposta no rosto dela, acrescentara: — Se machuquei, a culpa foi sua.

— Minha?

— Eu poderia ter esperado, se você não fosse tão atrevida.

— Que diferença faria se você esperasse? É da natureza dos homens portarem-se como se estivessem no cio, e é o destino das mulheres sangrarem.

Ele tentara confortá-la, ainda que um tanto sem jeito.

— Mas agora que você deixou de ser virgem, não irá doer novamente.

— Como pode saber?

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Jehanne não esperara pela resposta para virar-lhe as costas. E, apesar da vontade de repetir o magnífico exercício, Galeran resignara-se a virar para o outro lado. Em questão de instantes, ambos estavam adormecidos.

Na manhã seguinte, a roupa de cama tinha sido exposta para confirmar a consumação da união. Galeran fora felicitado como se tivesse vencido um dragão, e Jehanne recebera paparicos como se tivesse sido magoada.

Na noite seguinte, ela o evitara afirmando ainda se achar dolorida. Na próxima noite, no entanto, confirmara que a dor havia passado, e ele não perdera tempo em voltar a possuí-la.

Ainda que se mantivesse preocupado em não largar todo o peso do corpo sobre o dela, Galeran experimentara o mesmo prazer arrebatador da primeira noite. Contudo, percebera que Jehanne não estava feliz.

Tomando-a entre os braços, quis saber:

— O que houve, meu mel? O que você deseja?

— Eu queria aquilo que você tem.

— Como assim? Você queria um...?

— Claro que não, seu bobo. Eu me referia ao prazer. As mulheres sentem prazer, eu sei que sentem. Chego a pensar que... Mas então não consigo...

Pela primeira vez, Galeran vira lágrimas nos olhos dela. Consternado, deitou-a sobre a cama e ajeitou-se a seu lado, beijando-lhe o rosto enquanto levava a mão a um palpitante seio.

— Gosta assim?

— Gosto...

Afagando a carne macia, brincando com o mamilo que se intumescia aos seus carinhos, ele descobria imensa satisfação para si mesmo. Exultante, baixara a cabeça para tomar o bico rosado entre os lábios.

— Sim... — Jehanne murmurara. — Isso é muito bom.

Incentivado pelo contentamento dela, Galeran pusera-se a acariciá-la tanto com a boca como com as mãos. Seu controle não duraria para sempre, mas, quando enfim a penetrara, pudera perceber que tinha a esposa agora mais harmonizada com ele. E como fosse a segunda vez naquela noite, não tivera pressa, dispondo-se a tentar agir para satisfazê-la, cuidando de não interromper os beijos nem as carícias de que ela parecia gostar muito.

Ao final de mais aquele encontro físico, ficara com a impressão de que Jehanne estava muito mais feliz do que das outras vezes, mas não lhe parecia que ela tivesse experimentado as mesmas sensações de que ele havia provado. Pergun-

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tara-se se as mulheres de fato encontrariam alívio igual ao que os homens sentiam, e chegara à conclusão de que só a prática poderia lhe esclarecer tal questão.

Como nenhum dos dois soubesse muito bem o que buscava, levaram várias semanas explorando o corpo um do outro até se depararem com sensações realmente novas, tão arrasadoras quanto gratificantes. E quando Jehanne afinal conheceu o prazer carnal, não havia como ambos se equivocarem.

Ela lhe deixara marcas de dentes e unhas pela pele e gemera como a ponto de morrer, depois se largara no mesmo estado de torpor em que ele se achara na primeira noite.

— Galeran...?

— Hum? — Ele lhe acariciava o corpo, que agora conhecia tão bem.

— Gostei tanto...

— Engraçado, eu nem tinha percebido...

Apesar da harmonia na cama, a vida conjugal não era nada pacífica. Jehanne tinha opiniões ferrenhas a respeito de tudo e não se furtava a expressá-las em quaisquer circunstâncias, enquanto ele, em sua arrogância juvenil, acreditava ser sua a última palavra após a de Fulk. Mesmo assim, quase sempre terminavam as discussões com gargalhadas ou fazendo amor, o que acabava por dissipar todo e qualquer clima pesaroso que pudesse surgir entre ambos.

E fora assim até que a sombra da infertilidade os ameaçasse.

Fulk já havia morrido, e agora eles eram o senhor e a dama de seus domínios. Planejamento, eficiência e trabalho vinham transformando Heywood numa propriedade extremamente próspera. Galeran dera formas à idéia de Fulk de erguer uma muralha de pedra ao redor do pátio do castelo em substituição à cerca de madeira. A fortaleza tivera suas paredes externas pintadas de branco, e seus interiores tinham sido decorados com ricas tapeçarias de lã tecidas por Jehanne e suas criadas.

O trabalho, árduo e produtivo, tornava os dias prazerosos. À noite, senhores e serviçais entretinham-se com música, trocavam histórias ou escutavam as narrativas de algum andarilho que passasse por ali. Tudo parecia perfeito, exceto pelo fato de não haver um herdeiro para receber todo aquele legado. E as pessoas já começavam a sussurrar que talvez esse sucessor nunca viesse a existir.

Pior: comentava-se que não havia um herdeiro porque lady Jehanne não se comportava como uma verdadeira dama. Dizia-se que era ousada e ativa demais e que, por isso, não conseguia manter uma criança no útero.

Galeran contra-argumentava que aquilo era bobagem, pois as servas trabalhavam de manhã até a noite e tinham um filho atrás do outro. Jehanne, porém, começara a

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mudar. Descansava todos os dias, deixara de erguer coisas pesadas e a cavalo só fazia passeios curtos.

Os palpites das velhas senhoras sugeriam que o humor irritadiço ou a raiva poderiam matar um bebê, então ela passara a controlar ferrenhamente seus ímpetos. Esse esforço brutal para modificar a própria natureza soava cruel demais a Galeran, que às vezes zombava dela na tentativa de lhe despeitar o temperamento forte.

Após essas discussões, entretanto, agora não havia mais gargalhadas nem eles faziam amor. Em vez disso, Jehanne chorava ou o acusava de não querer um filho, ao que Galeran respondia tentando apaziguar o coração dela com um ambiente calmo e doce como o mel. Mas então, por causa dos palpites, Jehanne recusava-se a fazer amor se não fosse para ficar deitada, imóvel, sob ele.

Quando surgiram boatos de que ela estaria usando de artimanhas para evitar a concepção, Galeran deixara vir à tona toda a ira que vinha represando e açoitara a mulher que havia espalhado tal absurdo. Não fora uma decisão sensata, pois fizera com que a atenção de todos se voltasse para o problema.

Noite após noite, ele dizia à esposa não se importar se ela fosse de fato estéril, e isso era a mais pura verdade. Galeran queria filhos, sim, especialmente um menino, mas não a qualquer custo ou acima de todas as coisas. Mais do que um herdeiro, queria de volta sua temperamental, forte e inteligente esposa.

Que, todos os meses, punha-se a chorar quando lhe vinham as regras.

Numa dessas ocasiões, Galeran a estreitara entre os, braços para tentar confortá-la.

— Não fique assim, minha querida. Will já tem dois filhos; o pequeno Gil poderá ficar em Heywood.

— Eu quero um filho.

— Então buscaremos uma criança para você criar. Uma menina.

Jehanne o afastara de si.

— Quero um filho que cresça dentro de mim, seu grande tolo! É como uma fome que não consigo saciar, será que não entende?

— E se for essa a vontade de Deus, Jehanne?

— Então a vontade Dele precisa ser mudada.

Sendo Jehanne como era, não hesitaria em tomar o Céu de assalto como se fosse uma fortaleza, disparando seus caprichos junto com crucifixos de ouro, arregimentando batalhões de preces e missas.

Fora numa dessas vezes de sangramento mensal que ela quebrara a rosa. Galeran não lhe perguntara se tinha sido um acidente ou um assomo cego de fúria, apenas

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tentara acalmá-la e depois cuidara de colar os pedaços de volta ao enfeite. Os frag-mentos da vida de ambos, porém, não pareciam destinados a retomar seus lugares.

Um padre dissera a Jehanne que a excitação sexual da mulher matava as sementes masculinas, e por isso ela passara a só aceitar fazer amor rapidamente, sem nenhuma atenção às suas necessidades. Ao menor gesto de carinho do marido, afastava a mão dele com firmeza, alegando:

— Não. Só depois que tivermos um filho.

Como não conseguisse acreditar que haveria um filho, Galeran vira-se imaginando que talvez estivessem ambos prisioneiros de uma interminável rede de frustrações.

O primeiro chamamento à libertação dos templos da Terra Santa tinha vindo e ido sem despertar maiores comoções naquele canto do país. Galeran dera pouquíssima atenção ao assunto, uma vez que a iniciativa quase não encontrara eco na Inglaterra do rei Guilherme Rufus. Rufus não tinha por hábito aprofundar-se em questões que diziam respeito à Igreja e também não demonstrara a menor disposição para encorajar seus melhores guerreiros a irem lutar em terras ultramarinas.

Mais tarde, ainda naquele ano, vieram as primeiras notícias relatando sucessos da empreitada. Parecia que os exércitos cristãos de fato chegariam à Terra Santa para libertá-la, e isso fez alguns homens planejarem tomar um navio que seguisse direto para a Palestina, onde desembarcariam dentro de alguns meses para, com sorte, participar da grande batalha.

Galeran andava envolvido demais com seus problemas pessoais para deixar-se levar por aquela aventura, até que Jehanne trouxera o assunto à baila. Mais uma vez um padre, dessa vez um clérigo que vagava pela região tentando despertar o interesse pelas Cruzadas, havia sugerido que o préstimo de tão nobre missão pudesse provocar o resultado ansiado pelo casal.

— Não me parece que ficarmos separados um do outro por anos nos ajudará a ter um filho — Galeran argumentara.

Em vez de discutir, Jehanne se afastara da questão.

— Pensei que você ficaria aliviado em partir.

— Por que imaginou uma coisa dessas?

— Porque sei que tenho sido uma companhia triste, que vive pedindo por...

— Por que pensa que não me preocupo com seus problemas, Jehanne?

— E se preocupa?

— Evidente que sim. E me preocupo ainda mais com seu desespero. Quando foi a última vez em que rimos ao fazer amor?

— Acho que me esqueci de como se ri.

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Galeran pensara em lhe dizer que reaprendesse, que tentasse tirar um possível filho dos pensamentos, mas logo se dera conta de que isso seria o mesmo que lhe pedir que parasse de respirar.

— Então você acredita que Deus possa querer que eu lute em Seu nome em Jerusalém?

— A idéia também não me agrada. Pedir-lhe que vá, Galeran, é como cortar fora uma de minhas mãos.

Isso deixava patente a profundidade dos anseios de Jehanne, e ele a tomara entre os braços, assinalando:

— Libertar os locais sagrados para os peregrinos certamente é uma missão das mais nobres, e todos os cristãos deveriam se empenhar nesse propósito. Mas não devemos concluir que Deus irá nos recompensar como desejamos.

— Ele bem poderia fazê-lo, já que o sacrifício será enorme. — Ela o olhara nos olhos e, de repente; parecia outra vez a Jehanne de sempre, aquela que tomara sua espada para enfrentar um javali. — Se isso não der certo, Galeran, irei me converter à religião de Maomé!

Ele rira, embora suspeitasse que aquelas palavras não estivessem longe da verdade. Se o deus dos infiéis prometesse um filho a Jehanne, ela se ajoelharia diante dele.

Acompanhados por lorde William e pelo tio de Jehanne, Hubert de Burstock, viajaram até Londres para que Galeran se unisse aos demais cruzados. O segundo filho de Hubert, Hugh, também desejava juntar-se à expedição, embora ambicionasse unicamente por glória e terras.

No entanto, o voto era o mesmo, independentemente do motivo: tomar a cidade sagrada de Jerusalém ou morrer lutando por ela e não retornar até que esse objetivo fosse alcançado.

Galeran fizera uma outra promessa, essa silente: manter-se fiel à esposa. Não imaginava que isso fosse difícil, já que nunca havia se deitado com outra mulher senão Jehanne e nem tinha vontade de fazê-lo. Além do mais, em vista do problema por que passavam, seria cruel de sua parte desperdiçar suas sementes com uma prostituta.

Obedecendo a uma imposição papal, Jehanne dera um passo adiante para atestar sua concordância a que o marido partisse para tão longe e se ausentasse por tão longo período. Galeran deixara seus assuntos nas mãos capazes da esposa, que deveria sujeitar-se somente à palavra de lorde William, caso ele viesse a desaprovar alguma atitude dela.

Depois disso, haviam passado uma última noite juntos, uma noite que em muito se aproximara aos dias felizes de outrora.

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Uma noite que resultará num filho.

Deus fora deveras bom.

Apesar das circunstâncias do presente, Galeran ainda acreditava nisso. E, acobertado pela escuridão do bosque, baixou a cabeça para rezar.

Foi Raoul quem o acordou.

No amanhecer cinzento e brumoso, Galeran espreguiçou-se na tentativa de afastar as dores de ter passado a noite numa posição tão incômoda. Vestido com sua cota de malha, o que era ainda pior.

— Está querendo se matar? — perguntou Raoul num tom ácido, enquanto lhe oferecia um jarro de cidra quente temperada.

Acenando um agradecimento, Galeran abarcou o recipiente com as mãos geladas e bebeu demoradamente do líquido.

— Não quero morrer — disse então, num tom determinado.

— Ótimo. — Raoul entregou-lhe nacos de carne de porco recém-assada e pão ainda quente. — Devo dizer, sua família come muito bem em campanha.

— Meu pai sempre gostou de conforto.

Alimentaram-se em silêncio por alguns momentos, então Raoul atirou um pedaço de osso entre os arbustos envoltos pela névoa, afirmando:

— O castelo ainda está completamente cerrado, e em breve o sol nascerá. O que pretende fazer se ela desafiá-lo?

— Jehanne abrirá as portas no último instante.

— E por que lhe permitiria entrar, se sabe que você será muito duro com ela? Seu castelo pode ser mantido por um bom espaço de tempo. A muralha que o protege é bastante boa. E talvez eles estejam esperando ajuda de fora. Fiquei sabendo que esse Raymond de Lowick é chegado a um bispo daqui, um homem de quem o rei gosta muito.

— Isso faz tudo ainda mais interessante.

— Interessante? Em nome de Deus, Galeran, será que não vê o perigo ao seu redor? Seus interesses pessoais podem estar agora entrelaçados aos interesses da realeza. Seu pai está preocupado.

Pondo-se em pé, Galeran limpou as migalhas das vestes. Naquela situação, era um verdadeiro alívio falar de questões meramente políticas.

— Duvido de que o rei vá se envolver neste assunto. Aqui no Norte, estamos muito longe da corte, e é sempre perigoso para um soberano inglês deixar o Sul desprotegido. Basta ver o que se deu com Harold...

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— O bispo pode cuidar de tudo por si mesmo — interrompeu Raoul. — Esse tal Ranulph Flambard...

— Flambard! — Galeran agora mostrava algum interesse pela conversa. — Como ele foi se tornar bispo de Durham? Quando deixei a Inglaterra, nem padre ele era!

— O homem subiu ao posto com espantosa rapidez. Talvez seja urna recompensa por ele ter administrado o país durante a última década... com brutalidade, mas gerando lucros, é verdade. De qualquer modo, como será se esse poderoso clérigo, que parece ter o rei nas mãos, decidir que o amante de sua esposa tem direitos sobre ela e suas propriedades?

Resistindo ao desejo de fazer o amigo engolir de volta a palavra "amante", Galeran observou:

— Meu pai tem sido um homem influente no Norte pelos últimos trinta anos e vem servindo a este monarca com a mesma fidelidade com que serviu ao pai dele. Por que Flambard ou Rufus haveriam de arrumar complicações com Brome a respeito de uma questão de cunho pessoal?

— Se você tiver de tomar o castelo à força...

— Não terei.

— Você realmente acredita que ela abrirá os portões?

— Sim.

— E por quê, em nome da Santa Cruz?

— Porque isso é o correto.

— As mulheres não raciocinam com termos como certo e errado, Galeran.

— Jehanne pensa. Mas se você não quiser acreditar nisso, então pense que os guardas saberão distinguir o errado do certo. São homens da região, que me conhecem muito bem e que me juraram lealdade.

— Bem, isso ao menos faz sentido. Suponho que, ao julgá-lo morto, seus homens não tivessem tido outra opção senão obedecer à sua dama, uma vez que você deixou-a no controle de tudo por aqui. E mesmo que ela tenha levado um outro homem para o castelo... Pela coroa de Cristo, Galeran, não me olhe assim! Você não pode imaginar que ela seja inocente! Ainda mais com um bebê nos braços!

— Não, não creio que posso.

Raoul fez menção de dizer alguma coisa, mas se manteve calado. Ao cabo de um breve instante, indagou:

— O que pretende fazer?

— Você não quer mais carne?

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Raoul sacudiu a cabeça, tanto à oferta quanto à situação. De súbito, ouviram o trinado de um pássaro, o precursor do coro que anunciava a manhã. Jehanne iria ouvi-lo e entendê-lo como um sinal da primeira luz do dia?

Galeran jogou no chão o resto de carne que tinha na mão e rumou de volta ao acampamento

Os homens de lorde William achavam-se alimentados e armados, e os cavalos já estavam selados. Um aríete encontrava-se pronto ao lado de uma catapulta que podia arremessar grandes pedras contra os muros. Estava tudo preparado para reduzir o castelo a escombros.

Galeran entrou na tenda, onde seus parentes esperavam por ele armados e em prontidão. Sua chegada provocou repentino silêncio.

— Imagino que Lowick tenha alguns de seus homens lá dentro — ele observou.

— É verdade — confirmou seu pai, examinando-o como faria com um imprevisível e ingovernável cavalo de batalha novo. — Apenas cinco, parece. Mas não temos como avaliar a reação dos outros guardas. Em sua maior parte, são homens de Heywood e podem estar dispostos a empenhar sua lealdade ao falecido Fulk e à filha dele, não a você.

— Seja como for, irei para lá somente com meus homens.

— Pelo amor de Deus, Galeran...

— Quero que isto seja como meu retorno ao meu lar de direito, não uma invasão armada. Se eles me matarem, então revidem com toda a força.

Gilbert, seu irmão mais novo, não conteve a indignação:

— Se eles lhe fizerem um só arranhão, assarei Lowick numa fogueira, juro que sim! E quanto àquela cadela...

— Ninguém, a não ser eu, irá tocar um dedo em Jehanne. Ninguém.

— Muito bem — aceitou Gilbert —, mas faço questão de assistir a isso!

Antes que Galeran pudesse responder, um homem entrou esbaforido na tenda.

— Meus lordes, os portões do muro interno estão se abrindo! Que Deus fosse louvado.

Resistindo ao impulso de desabar de alívio, Galeran girou sobre os calcanhares com o ímpeto do governante e senhor vingativo que deveria ser.

Os bosques estavam no clamor da cantoria dos pássaros, e o sol já formava um arco alaranjado no céu, derramando suas primeiras luzes sobre os resquícios da alvorada. Ao olhar na direção de Heywood, Galeran viu o castelo todo banhado pelas cores da manhã, o que ressaltava uma sombra escura atrás dos portões

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internos da edificação, que se encontravam agora totalmente abertos. Hoje não havia ninguém, nem soldados nem mulheres, nos postos de defesa.

Ele pediu seu cavalo, o pobre castrado que havia comprado em Stockton. Raoul aproximou-se, trazendo o animal e também sua própria montaria. Após saltar à sela, Galeran voltou-se para seus homens, o pequeno grupo que retornara em sua companhia da Terra Santa.

— Lembrem-se: é o meu castelo, mantido pela minha esposa. Espero ser bem recebido. Mas não sabemos ao certo quem detém o poder em Heywood. Se houver problemas, não quero atos de heroísmo. Voltem para o acampamento para servir às ordens de meu pai. Ele irá me vingar.

Ignorando os protestos na forma de murmúrios e exclamações, ele rumou em direção ao seu lar.

Nada se movia. O castelo parecia deserto, quase um contorno mágico sob os vestígios da névoa que a luz da manhã dissipava lentamente. Como o exército que estivera a circundá-la houvesse recuado no dia anterior, era possível que algumas pessoas tivessem escapado, mas não o total da guarnição ou todos os habitantes que o povoavam. Em tempos de normalidade, Heywood contava com cerca de cinqüenta moradores.

Galeran esperava que Lowick não estivesse mais ali. Fora esse um dos motivos pelos quais adiara a rendição, pois ter de matá-lo só faria complicar uma situação já extremamente complexa. Seu grande medo, no entanto, era que Jehanne e seu filho tivessem fugido com o infeliz.

Cavalgava com a cabeça descoberta outra vez, para que ninguém tivesse qualquer dúvida de tratar-se de Galeran de Heywood, senhor daquele domínio. Para que ninguém pudesse afirmar que disparara contra seu governante por engano.

Nenhuma flecha zuniu a partir de quaisquer das estreitas seteiras ao redor da fortaleza. Nenhum dardo de alguma besta veio acertá-lo. E em pouco tempo ele estava diante do muro interno, perto demais para esse tipo de ataque.

Tinha a impressão de que sua pele comichava enquanto cruzava os portões escancarados e se aproximava das espessas paredes de pedra. Havia um buraco naquele arco, de onde poderiam despejar piche fervente ou areia escaldada...

Mas nada despencara dali e, nos fundos do pátio, a guarda perfilava-se em duas colunas rígidas, à sua espera. Todos pareciam mortos de medo.

Galeran levou o cavalo para perto deles, deteve o animal e saltou da sela. O tinido dos arreios e o chocalhar da sua cota de malha metálica eram os únicos sons que ouviam. Após lazer um sinal a seus homens para indicar que permanecessem em suas montarias, ele, devagar e em silêncio, olhou ao redor. Logo atrás dos soldados austeros e sem cor apresentava-se um nervoso grupo de habitantes do castelo, as

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mulheres agarradas a crianças de olhos arregalados, os anciãos a fitá-lo com uma expressão tão temerosa quanto cansada.

Onde estaria Jehanne?

Se aquela fosse uma recepção normal, ela se acharia nas escadas do castelo, esperando para lhe dar as boas-vindas. Talvez até surgisse correndo no pátio para saudá-lo com um sorriso e um comentário espirituoso nos olhos azuis.

Se sua esposa tivesse fugido com o amante, deveria lhe permitir que ficasse com o miserável?

Nunca, se ela tivesse levado seu filho.

Sentindo-se sufocar pelo denso silêncio à sua volta, Galeran respirou fundo e perguntou num tom alto o suficiente para que todos o escutassem:

— Alguém aqui não me aceita como seu governante, como senhor destes domínios?

O prolongamento do silêncio foi o que obteve como resposta, mas aquilo lhe deu esperanças. Quis então indagar por Jehanne ou mesmo correr para os interiores do castelo à procura dela, porém sabia que tinha um papel a representar ali. Assim, subiu os dois primeiros degraus de acesso à edificação e tornou a virar-se para sua gente.

Antes que voltasse a falar, um homem aproximou-se para se ajoelhar à sua frente, curvando a cabeça descoberta. Era Walter de Matlock, capitão da guarda.

— Lorde Galeran, seja misericordioso. Fomos deixados sob o comando de sua dama, e ouvimos dizer que o senhor estava morto. Servimos como julgamos fosse justo.

— Levante-se, Walter. Nenhum homem será punido por ter obedecido à minha dama, pois era esperado que assim o fizesse.

O homem pôs-se em pé, e Galeran foi ao encontro dele para lhe apertar a mão.

— É como sempre foi, Walter.

Suas palavras foram um sopro de conforto a se espalhar pelo pátio. As pessoas começaram a murmurar e, como se liberto de um forte constrangimento, um menino gritou.

— Presumo que nenhum dos homens de Lowick esteja aqui — disse Galeran, num tom agora mais baixo.

— Eles partiram no decorrer da noite, meu lorde. — Walter olhava-o nos olhos. — Não tentamos impedi-los.

— Fizeram bem. — Ele não queria perguntar, mas se viu obrigado a fazê-lo: — E lady Jehanne?

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— Acredito que esteja à sua espera no salão, meu lorde. — Walter perdera a cor do rosto.

Apesar de tudo, Galeran sentiu-se aliviado. Lowick se fora, e Jehanne estava lá. Talvez houvesse alguma chance de colocarem os pedaços de volta a seus lugares.

Olhou para Raoul e seus homens.

— Fiquem aqui, cuidem dos cavalos, acomodem-se. E mandem avisar meu pai de que está tudo em ordem; digam-lhe que ele pode entrar quando assim lhe aprouver.

E então, com o sol altivo a anunciar um novo dia, subiu os degraus de madeira até a entrada do seu castelo.

Penetrar no salão era caminhar novamente por um ambiente escuro e quase frio, ainda que as primeiras setas de luz já varassem as janelas estreitas da fortaleza. Por um breve instante, viu-se cegado e, quando seus cães vieram ao seu encontro, percebeu que não os vira aproximarem-se.

Saudou os animais, dando-se conta de que o gesto corriqueiro também servia para lhe dar um pouco mais de tempo. Depois, ao erguer o olhar, deparou com um grupo de mulheres encolhidas num dos cantos do salão. As criadas da dama de Heywood. Jehanne, no entanto, achava-se sozinha no meio da enorme câmara, seus dois cães de caça negros junto de si. Usava suas cores prediletas, o azul e o creme, e tinha os longos cabelos domados em grossas trancas presas por fitas do anil de seus olhos. Aparentava uma calma sem sombra de ansiedade ou medo, como se à espera de cumprimentar um desconhecido.

Jehanne nunca demonstrava o que pretendia ocultar.

Um nó subiu à garganta de Galeran, e ele quis desesperadamente estreitá-la junto ao peito. E assim teria feito, se não fosse pelo bebê nos braços dela.

O pequenino bastardo.

Jehanne viera enfrentá-lo ostentando seu pecado.

Onde estava Gallot? Olhando ao redor, Galeran viu somente mulheres assustadas, com os olhos arregalados. Uma atitude prudente, pensou, manter uma criança um pouco maior longe de tudo aquilo.

Mas como uma mulher tão prudente fora colocá-los naquela situação?

Galeran aproximou-se e de súbito experimentou uma sensação de alheamento. O que Jehanne estaria vendo? Um homem exausto, sujo, confuso... Talvez ele parecesse mesmo um estranho, com a barba crescida e algumas cicatrizes a lhe macular o rosto.

Seus cães o tinham reconhecido de imediato. Assim como os cachorros dela que, treinados para não se afastarem da dona sem permissão, abanavam-lhe a cauda.

Ela parecia indiferente.

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Mas não lhe era indiferente. À medida que ele se acercava, o controle que Jehanne se impunha esmoreceu um pouco e seus olhos tornaram-se maiores, mais intensos. O que Galeran não conseguia apreender, contudo, era se estava aterrorizada ou meramente surpresa por vê-lo ali.

Deteve-se diante dela, encantando-se ao reparar quão pouco estava mudada. Sua esposa ainda era a mesma com a qual ele vinha sonhando por dois longos anos.

Duas gravidezes não a tinham feito roliça, embora seus seios estivessem bem maiores agora, certamente cheios do leite do bastardo. Não fosse por isso, Jehanne estava talvez pouca coisa mais magra e um tantinho mais pálida, mesmo assim continuava bela como sempre. Seus cabelos ainda o faziam lembrar de fios de ouro e prata entretecidos por mãos de fadas, com as mesmas mechas que viviam a lhe escapar do penteado para lhe emoldurarem o rosto delicado.

Por quê, Jehanne? Por quê?

Se ela ouviu a pergunta silente, não respondeu. Simplesmente sustentou o olhar que ele lhe dirigia. Galeran supôs que não havia muito que dizer a menos que ela caísse de joelhos à sua frente, como Walter tinha feito.

Ele sabia que Jehanne preferiria a morte.

Quando se deu conta, já havia perguntado:

— E Lowick?

— Foi embora.

Ao contrário do timbre sempre claro, a voz dela viera num tom quase roufenho, e Galeran a vira engolir em seco e limpar a garganta.

— Ele quis que você fosse também?

— Sim. Mas, sem Heywood, sou de pouca serventia para ele.

Então, por quê? Por que se entregar a um homem que não lhe dá o devido valor? Ele mentiu para você? Nunca imaginei que alguém fosse capaz de enganá-la.

— Você quis ir com ele?

— Tive medo de ficar.

— Mas ficou.

— Sou sua esposa, e este é meu lar.

Na busca de alguns instantes para pensar, Galeran desviou o olhar para as outras mulheres. Um daqueles rostos pareceu-lhe mais zangado do que temeroso. O rosto de Aline, a jovem e roliça prima de Jehanne. Tinha se esquecido de que a moça deixara o convento de St. Radegund para fazer companhia a Jehanne durante sua ausência. O que a quase-freira pensava de tudo aquilo, e por que olhava feio para

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ele? Bem, talvez fossem apenas as grossas sobrancelhas dela, que às vezes lhe davam um ar severo.

Grua, seu cão predileto, escolheu aquele instante para ganir. Galeran afagou-lhe o alto da cabeça, desejando que tanto Aline quanto o pobre animal pudessem lhe contar tudo o que sabiam.

Por que imaginara que esses primeiros momentos com Jehanne fossem lhe fornecer respostas? Ou ao menos as respostas que queria ouvir? Ela não havia negado o desejo de partir na companhia de Lowick e só faltara dizer que não se fora dali porque tinha o dever de ficar.

Jehanne sempre fora fiel às suas obrigações, preservando sua honra tão ferozmente quanto um homem. Então por que fizera o que tinha feito?

Teria sido simplesmente porque o julgara morto? Mas o dever e a honra por certo exigiam provas mais contundentes do que meros boatos. E se de fato pensava que ele havia morrido, por que não se casara com o amante?

Ruídos distantes vieram avisá-lo de que seu pai acabava de chegar ao pátio, censurando os moradores do castelo como ele próprio não fizera. O alarido de vozes crescia em volume, enquanto lorde William subia a escada de acesso ao salão sem deixar de culpar todos e tudo pela afronta à honra de sua família.

Galeran voltou sua atenção a Jehanne.

— Dê o bebê à pajem dele.

Os olhos de Jehanne alargaram-se quase que imperceptivelmente, mas, após um breve momento de hesitação, ela entregou a criança adormecida aos braços de outra mulher.

— Saia — disse-lhe Galeran, que esperou até o pai surgir a entrada do salão para então desferir uma sonora bofetada na esposa.

O tapa não fora dos mais fortes, e Jehanne bem poderia ter se mantido em pé. Por alguns instantes o instinto a manteve ali, ereta, um cintilar de ultraje no olhar, mas logo em seguida ela dobrou-se, a mão sobre a face avermelhada.

Seus cães correram a defendê-la, mesmo assim Galeran agarrou-lhe o braço. Estava protegido pela cota de malha, os cachorros não tinham como feri-lo.

Talvez fosse por isso que ela ordenou:

— Sentados!

Galeran ajudava-a a endireitar-se quando sentiu a mão de ferro do pai em seu ombro.

— Já chega, rapaz. Não queremos que você lhe tire a vida, apesar de tudo o que ela fez.

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Afastando-o dali, lorde William entregou-o aos cuidados de Will e Gilbert, depois foi acudir a nora; repreendendo-a, mas Nem deixar de lhe garantir que nada de mal iria lhe acontecer perante seus olhos.

— Você devia tê-la surrado antes que nosso pai chegasse — rosnou Gilbert. — Tratando-se de mulheres, ele é um coração de manteiga.

— Sinto-me obrigado a concordar com você, Gil — disse-lhe Will. — Agora que ele lhe prometeu proteção, ninguém poderá nem sequer tocar nela.

Galeran tentou fechar os ouvidos aos comentários. Era seu plano ser contido pelo pai, pois sabia que a melhor maneira de derreter o rancor de lorde William e fazê-lo ficar do lado de Jehanne seria agredi-la fisicamente. O velho nobre encolerizava-se e fazia barulho, mas não suportava ver uma mulher em sofrimento.

Após se livrar dos irmãos, ele foi até onde o pai continuava a censurar Jehanne, ralhando com ela como se admoestasse alguém que gastara demais numa feira de verão.

— Agora basta, meu pai. Quero conversar com minha esposa em particular. Prometo não voltar a bater nela. Ao menos por hoje.

Devido ao tom que Galeran usara, os cães puseram-se a rodeá-los como se quisessem apartar uma briga. Jehanne tomou a iniciativa de mandá-los deitarem-se num canto do salão.

Lorde William parecia tão confuso quanto os animais, mas então se afastou, dizendo:

— Pois muito bem, vocês que se entendam.

Pegando Jehanne pelo braço, Galeran conduziu-a escada acima em rumo aos aposentos senhoriais. Sabia que a segurava com excessiva força, contudo tinha a impressão de que sua fúria fora concentrar-se na mão e assim tinha como se contro-lar. Por algum motivo, lembrou-se da noite de núpcias, quando fora incapaz de manter o domínio sobre si mesmo, experimentando a sensação de ser uma árvore seca pronta a arder em chamas a uma mera faísca.

Tinha todo o direito de sentir-se assim. Tinha todo o direito de atirar Jehanne na cama e satisfazer-se com o corpo dela. Todo o direito. Mesmo que estivesse prestes a mandá-la embora de sua vida.

Arrastou-a até o dormitório, fechou a porta com um pontapé e soltou-a com tanta rispidez que a fez desequilibrar-se. Apesar da promessa que ele fizera ao pai, Jehanne o olhava como se esperasse mais agressões. Galeran então foi colocar-se a uma distância segura, do outro lado do aposento, onde encostou a cabeça à tapeçaria que cobria a rústica parede de pedras.

— Sinto muito — ouviu-se dizer. — Parece que estou com dificuldades para manter a calma hoje.

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— Não creio que você deva se repreender por isso — ela retrucou, o tom baixo, porém firme.

— A violência não nos serve para nada.

— Aquele tapa serviu para alguma coisa.

— Acho que eu precisava bater em você, Jehanne.

— Se estivéssemos um no lugar do outro, eu iria querer matá-lo.

— De verdade?

Em vez de responder, Jehanne se pôs a remexer nas dobras que pendiam da colcha sobre a cama. A cama deles. Onde ela e Lowick tinham...?

— Não — ela afinal respondeu. — Mas eu iria querer vê-lo punido por isso. Iria buscar um modo de fazê-lo sofrer.

— E o que mais doeria em você? Uma surra? Não. — Mesmo sabendo que brincava com ela, Galeran não conseguia parar. — Uma boa idéia seria afastá-la das suas crianças, isso não...

— Galeran! — Jehanne estava branca como uma folha de papel.

Constrangido, ele se aproximou.

— Não pense bobagens, Jehanne. Eu não seria capaz de...

— Eles não lhe contaram?

— Contaram-me o quê?

Antes que Galeran pudesse esboçar uma reação, ela abriu a porta e disparou pela escada de volta ao salão. Ali, apanhou da mesa uma jarra de cerveja e, sem vacilar, foi atirar todo o conteúdo do recipiente no rosto de lorde William, para depois arrebentar o jarro vazio no chão. A peça se estilhaçou em mil pedaços.

Galeran, que correra atrás da esposa, ouviu-a gritar vários tons acima dos berros de seu pai:

— Por que não contaram a ele? Como foram capazes de não contar a ele?

— Não me contaram o quê? — quis saber Galeran, trazendo-a para perto de si para protegê-la dos demais e dela mesma.

Jehanne estava rígida entre seus braços. Rígida como pedra. Como um cadáver.

Ao redor deles, os cães tornavam a se agitar, ganindo baixinho.

Após secar o rosto com o lenço que alguém colocara em sua mão, lorde William respirou fundo.

— Imaginei que você já teria levado golpes demais num só dia, rapaz.

— O que foi que vocês não me contaram?

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— Gallot morreu, Galeran. — A voz de Jehanne era gelada. — Foi tudo em vão. Nosso filho está morto.

Ousando romper o silêncio que se seguiu às declarações dela, Gilbert acusou:

— Não se esqueça de dizer o resto, sua vadia sem coração. Você o matou para dar lugar ao filho bastardo do seu amante.

No fim de tudo, Galeran ordenara que sua esposa fosse confinada na pequena câmara adjacente aos aposentos senhoriais do castelo. A intenção não era puni-la, e sim, mais uma vez, defendê-la dos demais e de si mesma.

De sua parte, não conseguia nem ao menos tentar começar a entender o que se passara durante sua ausência. Talvez nem estivesse preparado para fazê-lo. Dias intermináveis de uma viagem absolutamente extenuante faziam-no inepto para lidar com uma crise como aquela, e o pouco descanso que tivera na noite anterior só servia para mascarar a completa exaustão.

Agora, buscando refúgio na solidão do grande dormitório, olhava sem nada ver por uma das estreitas janelas. Seu filho primogênito morrera antes que ele tivesse uma só oportunidade de tomá-lo nos braços, e algumas pessoas suspeitavam que Jehanne, de algum modo, era a responsável pela morte da criança. Fora isso o que depreendera da confusão de informações que recebera antes que se fechasse em si mesmo.

Iria lidar com isso.

Mais tarde.

Seus olhos cansados tentaram focar-se na estrada distante do castelo, e dali para os bosques nas imediações. A mata parecia chamá-lo, mas ter se escondido lá uma vez era mais do que suficiente para um homem maduro. Precisava mesmo era dormir, embora soubesse que sua mente atormentada não iria permiti-lo e, afinal de contas, era ainda manhã. Havia um dia inteiro pela frente.

Seu precioso primeiro dia de regresso ao lar.

Com uma risada amarga, afastou-se da janela. Tinha de colocar aquela energia insana e sem propósito para trabalhar. Talvez um pouco de atividade terminasse por afogar as meias imagens da criança que nunca chegaria a conhecer. Uma criança da qual todas as pessoas ali lhe falariam se ele lhes perguntasse como...

Sentiu lágrimas formando-se no peito ainda contrito, agonizantes como o pior dos ferimentos.

Não. Ainda não.

Não podia começar a chorar naquele instante. Se o fizesse, por certo não saberia como parar.

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Encaminhou-se para a porta, porém se deteve, olhando para a rosa de marfim em seu lugar habitual em cima de uma pequena mesa encostada à parede. Precisava acreditar que houvesse algum sentido no enfeite. A rosa teria ficado ali durante toda a sua ausência, até mesmo quando Jehanne...?

Tomou o objeto na mão. A pétala partida desprendeu-se e caiu ao chão. Murmurando uma praga, Galeran recolheu o pedacinho de marfim para tornar a encaixá-lo na cera que o mantinha no lugar. Então se sentiu estremecer e, sem pensar no que fazia, apertou o enfeite na palma da mão com toda a força de que foi capaz.

Passado o momento de desespero, respirou fundo antes de devolver a rosa à mesa e deixar os aposentos senhoriais do castelo.

Desceu para o salão e lá se acomodou em sua grande poltrona. Mandou reunir seus empregados, pedindo-lhes que apresentassem relatórios da administração da propriedade no período em que estivera ausente. Nada daquilo lhe parecia muito importante, mesmo assim ficou com a impressão de que Heywood tinha sido muito bem cuidada.

Fosse como fosse, não podia deixar de reparar na maneira como todos o olhavam. No rosto de alguns homens, detectou certo escárnio que parecia dizer que ele não havia lidado como deveria com sua esposa pecadora, que a tinha perdoado sem lhe infligir o merecido castigo. Outros, no entanto, olhavam-no com desconfiança, como a esperar que ele estourasse num ataque de fúria a qualquer instante.

Tanto uns quanto outros podiam estar certos, e fora por isso que ele batera em Jehanne, para que alguém a defendesse. Seu pai havia mandado Will de volta ao acampamento e Gilbert de volta a Brome, mas permanecera na fortaleza, observando tudo a distância para o caso de o filho vir a ter um novo surto de violência.

Galeran viu-se contente por haver por perto alguém que o impedisse de uma explosão desesperada.

Capítulo III

Se se esforçasse bastante, um homem gastaria um bom lapso de tempo repensando uma ausência de dois anos. Mais ainda: um exercício assim seria capaz de lhe

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atulhar a mente com tantos detalhes insignificantes que não sobraria espaço para outros assuntos.

Como uma criança morta...

Como uma esposa infiel...

Galeran esforçava-se ao máximo.

Tão logo terminou de interpelar seus empregados, dedicou-se, na companhia de seus cães, a uma inspeção nas mais variadas dependências do castelo.

Estava farto de saber que, fossem quais fossem as circunstâncias, Jehanne teria administrado a propriedade à perfeição, mesmo assim cuidou de ler e reler todos os registros, todas as listas, todas as contas, todos os apontamentos que lhe caíram em mãos. E debateu as mais diversas questões com cada pessoa que tivesse um cargo de certa relevância no castelo.

Ver-se discutindo tingimento de tecidos com a mulher responsável pela lavanderia o fez imaginar que tivesse perdido o juízo, mas até que vinha lidando bem com o assunto. No entanto, fora só avistar as pequeninas roupas de bebê dependuradas nos varais e ele deixara a mulher falando sozinha.

Pena que não tivesse para onde escapar.

Havia artigos e utensílios para crianças pequenas onde quer que fosse. Num dos registros, encontrara uma prestação de contas do carpinteiro relativa à feitura de um berço para Gallot. Ainda assim, não tivera coragem de perguntar se o bastardo estaria dormindo no ninho que pertencera a seu filho.

Um pequeno pônei pastava mansamente junto às cocheiras. Era o animal trazido por Jehanne semanas após o nascimento de Gallot para ser treinado especialmente para o menino. Se estivesse vivo, seu filho talvez já conseguisse manter-se à garupa do potrinho.

Num dos livros de contabilidade, deparara com o preço de um pequeno par de sapatos de couro macio, apropriado para uma criança que ensaiasse os primeiros passos.

Tais coisas quase minaram o controle que Galeran se impunha, mas ele as deixara de lado para se concentrar em questões práticas: currais novos para os animais, suprimentos de flechas, a colheita de milho do ano anterior.

Pouco depois do meio-dia, Raoul, trazendo pão, galinha e vinho, encontrou-o do lado de fora dos muros internos, próximo ao pasto, a observar a cria de algumas éguas.

— Seu pessoal está almoçando no salão principal.

— Não estou com fome.

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— Mas tem de comer! — Raoul enfiou-lhe uma coxa de galinha entre os dedos. — Desmaiar de inanição não vai resolver seus problemas.

Sem o menor apetite, Galeran usou os dentes para arrancar um naco de carne do osso.

— Você foi promovido a meu pajem, Raoul?

— Preocupo-me com você porque sou seu amigo.

Apoiando-se à cerca, de onde estivera examinando o potro nascido do acasalamento de sua melhor égua com um dos cavalos de batalha de seu pai, Galeran pediu:

— Então, como meu amigo, diga-me o que faria se estivesse no meu lugar.

— Eu tentaria manter a cabeça no lugar e uma boa distância da minha esposa. — Raoul deu um sorriso torto. — E trataria também de pensar em coisas sem muita importância. Que tal a postura das galinhas?

Apesar de tudo, Galeran riu. E retornou ao castelo, acompanhado pelo amigo, no intuito de verificar a condição de suas aves.

No final da tarde, tinha encontrado certo equilíbrio. O ponto nevrálgico da dor em seu peito não desaparecera, mas se achava encruado, provavelmente devido ao efeito entorpecente da exaustão.

Como tinha suposto, tudo em Heywood estava em ordem. Ele não fizera perguntas sobre Jehanne para ninguém, mas a presença dela na propriedade tinha sido um tema inevitável, trazido à baila por meio de comentários rotineiros. Isso deixara claro que os habitantes do castelo ainda se preocupavam com ela, e era esse o desejo de Galeran, que queria vê-la amada e respeitada em sua propriedade como sempre o fora, pois essa seria uma boa maneira de protegê-la contra ele próprio.

De tudo o que ouvira a respeito da esposa, sobrara-lhe a impressão de que Jehanne não fora muito feliz naquele último ano, e isso também lhe agradou. Teria sido insuportável imaginá-la a mais radiante das criaturas durante a ausência do marido.

Quando o sol começou a mover em direção ao horizonte, Galeran resolveu que era hora de permitir-se um descanso e rumou para a fortaleza. Já nos aposentos senhoriais, ocorreu-lhe que necessitava de um bom e demorado banho, se não quisesse impregnar a roupa de cama com o azedume de seu suor.

O que o fez pensar que Jehanne sempre o banhava e barbeava.

Sem se deter para analisar por que agia daquele modo, mandou avisar a ela de que se preparasse para banhá-lo.

E então se deu conta de que ainda vestia sua cota de malha. Devia ter feito um papel um tanto ridículo, cuidando de tarefas domésticas trajado como um guerreiro...

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Cansado demais para se censurar por uma questão tão prosaica, voltou à armaria para que o ferreiro o ajudasse a livrar-se da proteção metálica e do estofo de couro.

Assim que a fina armadura foi ao chão, Galeran espreguiçou-se em sua camisa de algodão e sua ceroula de lã muito sujas, experimentando as delícias de sentir-se livre outra vez após tantos dias.

— Acho que minha pele ficará marcada por semanas — comentou, com um sorriso tímido.

— A pele se recupera, senhor — observou o ferreiro, que depois olhou para a cota de malha e torceu o nariz. — O senhor vai precisar de uma nova.

— É verdade. Mas trate a velha com carinho, pois ela esteve em Jerusalém.

Após breve hesitação, o forjador de metais arriscou perguntar:

— É verdade que a Cidade Santa brilha, meu lorde?

— É apenas uma cidade como outra qualquer, Cuthbert, com casas, estalagens, mercados, prostitutas... Lembra-nos a todos que Deus veio à Terra e viveu como homem, como qualquer outro homem. Estive em Belém também, que é somente um vilarejo, não muito diferente de Hey Hamlet.

Era evidente que Cuthbert não acreditava nele e talvez até duvidasse de que seu senhor estivera de fato na Terra Santa. Às vezes, as pessoas sequer sabiam muito bem em que acreditar.

Algumas até acreditavam que Jehanne tivesse matado o próprio filho...

Enchendo os pulmões de ar, Galeran retornou ao castelo. Encontrou Raoul ao pé da escada e reparou que ele já havia se beneficiado de um bom banho.

— Vejo que afinal tirou sua cota de malha — observou seu amigo.

— Creia ou não, meu pajem, eu teria feito isso horas atrás se alguém tivesse me dado a sugestão. Parecia que aquela coisa tinha se transformado numa segunda pele.

— Vai ver você estava fazendo alguma penitência.

— E por que eu deveria me penitenciar?

— Eu não disse que deveria. Seu pai ordenou-me que cuidasse para que você não matasse sua esposa, depois retornou à tenda dele para pernoitar. Não gostaria de jogar uma partida de xadrez?

— Não. Vou tomar um banho.

— Ah, você bem que está precisando.

— E minha esposa vai me lavar.

— Oh-ho! Bem, será que posso ter sua palavra de que não irá afogá-la?

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— Sim. E você, por que não vai dar uma espiada nas criadas? Estou certo de que uma delas será do seu agrado. Mas não se meta com as aias de Jehanne.

— Ela é dada a regras rígidas, é? — No mesmo instante, Raoul se desculpou: — Não arranque as minhas tripas. Peço perdão.

— Jehanne é minha esposa e será tratada com respeito. Com lodo o devido respeito.

— Galeran, mesmo me arriscando a perder a cabeça, tenho de dizer que você não pode simplesmente ignorar o que aconteceu. Até o povo de Heywood, que parece admirá-la apesar de tudo, espera que ela receba algum tipo de punição.

— Pela Cruz e pela espada, o que é que eles querem? Que eu mande amarrá-la a uma pilastra no pátio para açoitá-la?

— Uma boa sova talvez limpasse os ares. E depois você poderia se livrar do bastardo que...

Galeran passou pelo amigo e deixou-o falando sozinho. Que Deus o ajudasse, mas parte dele estava tão sedenta por aquela sova quanto as demais pessoas em Heywood e também seus irmãos. Só que ele não podia fazer uma coisa dessas. Jamais poderia. Como também não se via tirando um filho dos braços de Jehanne.

Ao chegar à entrada do salão, deu-se conta de que ainda não sabia se aquela criança era um menino ou uma menina.

Adentrando a grande câmara, encontrou o recinto como costumava ser na maior parte das noites que passara ali. Duas das aias de Jehanne achavam-se junto a uma janela, tecendo e conversando; ao vê-lo, ambas baixaram a voz a um murmúrio. Outros criados ocupavam-se em armar as mesas para a refeição da noite, e uma dupla de soldados jogava dados sobre um aparador. Todos lhe deram uma espiadela, depois voltaram a se concentrar em suas atividades.

Todos esperavam por atos de violência.

Mas não iriam tê-los.

E Jehanne, teria lhe preparado seu banho? Galeran imaginou que sim, uma vez que era essa a obrigação de sua esposa. Quase no mesmo instante, perguntou-se se gostaria de fazer amor com ela.

Gostaria, sim. Apesar da exaustão, seu corpo reagia como se precisasse disso. Ao se aproximar de Heywood no dia anterior, tinha afrouxado o controle ferrenho com que vinha aprisionando seu desejo e, como um rio que corresse sem represas, esse processo agora não lhe parecia reversível. Além do quê, não havia mais promessa a prendê-lo.

Pior de tudo era aceitar que não ardia por uma mulher.

Ardia por Jehanne.

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Com um suspiro profundo, ele se encaminhou aos aposentos senhoriais. Na verdade, nunca sentira desejo por outra mulher. E custava-lhe crer que viesse a ser diferente.

No alto da escada, deteve-se de supetão ao ver que havia um guarda junto à porta dos seus aposentos. Isso significava que Jehanne estava lá dentro e que suas ordens para que ela fosse vigiada de perto estavam sendo cumpridas à risca. E ele estava indo ao encontro da esposa com uma fortíssima ereção...

Galeran levou um breve instante para se convencer de que mera força de vontade não era capaz de mudar nada, e assim foi até um guarda-roupa no corredor para lá apanhar um manto com que ocultar sua excitação. Depois, sem conseguir tirar as imagens de Jehanne do pensamento, passou pelo guarda e entrou nos aposentos senhoriais.

Tudo lhe pareceu estranhamente familiar.

A grande tina de carvalho estava quase cheia de uma água cristalina que recendia a ervas. Junto ao artefato havia mais água, tanto quente como fria, em diversos cântaros e também o grande cabide que sustentava várias toalhas de um branco virginal, além de um braseiro.

Como sempre, tudo se encontrava no seu devido lugar, como costumava ser quando Jehanne se encarregava de determinada tarefa.

Ela estava à sua espera. Vestia roupas simples, as mangas enroladas acima dos cotovelos, o cabelo preso num véu para não atrapalhá-la.

Estranhando que isso fosse possível, Galeran sentiu o desejo avolumar-se ainda mais em suas entranhas. Como ela reagiria se lhe dissesse: "Venha para a cama; quero fazer amor com você"? Como poderia fazer amor com uma mulher que amava outro homem?

Como uma chibatada, viu-se obrigado a enfrentar as perguntas que evitara o dia inteirinho: Jehanne amava Lowick? Queria o marido morto para que pudesse ficar com o amante para sempre? Mas como uma mulher forte e inteligente era capaz de amar um homem que desejava somente sua propriedade?

Galeran percebeu que estava ali, em embaraçoso silêncio, havia um bom tempinho e, respirando fundo, pôs-se a tirar as roupas sujas. Já completamente despido, abriu a porta e jogou as vestes no corredor.

— Mande alguém queimar isso — disse para o guarda. Quando tornou a se virar, apanhou Jehanne admirando-o com um olhar intenso. Por algum motivo, aquilo o fez lembrar-se do dia em que ela atirara suas roupas pela janela. Como naquela ocasião, não havia constrangimento na expressão dela agora. Talvez... talvez uma emoção que se aproximava da preocupação.

Olhando para si mesmo, Galeran observou:

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— Algumas cicatrizes a mais, não?

— E muita sujeira, ao que parece. Entre na tina.

O tom meio ríspido de Jehanne era impessoal, mas os olhos dela, não. Ele, no entanto, não conseguiu decifrar o que havia naquele olhar.

O contato com a água morna e perfumada o fez deixar escapar um longo suspiro. Esparramando o corpo cansado no fundo da tina, sentiu que, mesmo que fosse apenas por alguns momentos, seu desejo se aquietava e suas dores lhe davam um pouco de descanso.

Jehanne começou pelos pés dele.

— Há quanto tempo você não toma um bom banho?

— Semanas. Mas tenho trocado as roupas de baixo regularmente.

Recostando a cabeça na borda da tina, Galeran fechou os olhos. Não iria confessar que se recusara a parar em Bruges em busca dos confortos da higiene porque estava louco para revê-la. Aliás, era bem possível que ela já soubesse disso.

Jehanne lhe esfregou os pés e lhe aparou as unhas, depois se dedicou a lhe lavar as pernas. Um ou outro movimento mais firme que ela executava provoca-lhe certo desconforto, mas ele não se queixava. Sabia que era essa a maneira de sua esposa certificar-se de que se esmerava com seu asseio.

Detendo-se nas coxas dele, Jehanne deslizou ao redor da tina para lhe dar atenção aos braços. Galeran sentiu que seria capaz de adormecer, contudo se manteve absolutamente alerta. Não seria justo perder aquele interlúdio em meio a momentos tão difíceis. Se se permitisse, poderia até imaginar que estavam ambos em tempos passados e Jehanne o banhava após um longo dia de caçadas.

Ela sempre tomara o cuidado de vir toda asseada para banhá-lo, pois ao banho quase sempre se seguia o ato de amor, e Jehanne acreditava que limpeza combinava com limpeza. Galeran expirou profundamente. Se tivesse se lembrado disso, teria perguntado ao guarda se sua dama tinha se banhado naquele dia.

— Ainda bem que você não tem muitos pêlos aqui — ela murmurou, esfregando-lhe o peito. — Piolhos adoram pêlos.

Ele quase sorriu. Era bom ouvi-la ralhar. Mas então o pensamento agradável dissipou-se. Aqueles momentos aprazíveis não iriam solucionar nada. Oh, Deus... Por que tudo tinha de ser como era?

Queria conservar Jehanne como sua esposa?

Queria.

Ainda que ela amasse Lowick?

Mesmo assim.

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Seria possível continuar a tê-la por esposa depois do ato de traição e da suspeita de homicídio que pairava sobre a cabeça dela? Jehanne não tirara a vida do próprio filho, disso ele tinha certeza; a infidelidade dela, porém, não admitia contestação.

Ela terminara de lhe lavar o peito, mas mais uma vez detivera-se a pouca distância de seus genitais.

— Incline-se para a frente.

Quando fez o que Jehanne lhe pedira para que ela pudesse lhe esfregar as costas, Galeran viu que a água estava bastante turva.

— Sinto muito. Não creio que você já tenha tido de lidar comigo no estado em que eu me encontro agora.

Após um instante de hesitação, como se não soubesse como responder à observação que ele fizera, Jehanne indagou:

— Parte dessa sujeira veio da Terra Santa? Se tiver vindo, poderíamos guardá-la para fazer um relicário.

Sem ter certeza de que ela brincava, Galeran respondeu:

— Não. Tomei um banho completo em Constantinopla. Eles levam o ato de banhar-se muito a sério por lá. Você iria gostar.

— É mesmo?

Deitando a cabeça sobre os joelhos, ele se pôs a descrever a bela cidade, suas termas enfeitadas e os sensuais rituais de banho. E percebeu, já tarde demais, que aquela era uma conversa para a Jehanne de seus sonhos, não para sua esposa adúltera.

Interrompendo o que fazia, ela foi buscar no aparador uma pequena bacia com a qual lhe jogar água sobre os cabelos.

— Quer que os corte? — perguntou, deixando a bacia no chão.

— Seria bom.

Jehanne utilizou uma faca afiada para lhe deixar os cabelos bem curtos, mais curtos do que ditava a moda. Galeran sentia os gestos que ela fazia quase como uma suave massagem em seu couro cabeludo, e não demorou a notar que isso lhe dava uma excitação louca. Tentando ignorar o estímulo, esperou em silêncio que ela lhe lavasse a cabeça e que lhe penteasse os cabelos para certificar-se de que o corte ficara realmente bom.

— Não ficou de todo mau — ela disse ao cabo de alguns instantes, como sempre fazia ao término dessa tarefa. — Quer que eu o barbeie, ou prefere que algum dos homens se encarregue disso?

Galeran ergueu os olhos para ela.

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— Pretende cortar minha garganta?

— As mulheres que matam seus maridos são queimadas vivas.

— Sim. — Desistindo de procurar algum significado nas palavras de Jehanne, ele tornou a fechar os olhos. — Faça a minha barba.

Enquanto ela usava o fio de uma lâmina para varrer os pêlos duros que lhe cobriam o rosto, Galeran perguntou-se quanto tempo mais conseguiria viver naquela terra arrasada sem que ele mesmo cortasse sua própria garganta.

Em dado instante, imaginou sentir que Jehanne passava a ponta do dedo pela cicatriz abaixo de seu queixo. No entanto ela nada disse e, logo em seguida, limpou-lhe a espuma do rosto com uma das toalhas.

— Fique em pé. Vou derramar água limpa em você.

Ele se levantou e, irritado com a calma daquela mulher, comentou:

— Você esqueceu algumas partes do meu corpo.

Jehanne virou-se subitamente, quase aflita, e Galeran então notou que ela não estava nem um pouco calma. Mas, sendo como era, sua esposa não se intimidou:

— A água está muito suja. Vou enxaguar você primeiro.

Ela lhe derramou água limpa pelo corpo inteiro e depois, sem demonstrar embaraço, ensaboou um pedaço de pano e começou a lhe lavar os genitais. Ao primeiro toque das mãos delicadas Galeran prendeu a respiração e, em questão de instantes, sentiu seu membro enrijecer-se. As mãos de Jehanne vacilaram.

— Galeran?

O tom de voz dela havia mudado e revelava certo nervosismo. Era um tom que parecia pedir orientação, com uma nota de submissão a denotar concordância em fazer qualquer coisa que ele ordenasse. Por conhecê-la tão bem, Galeran sabia que se lhe dissesse: "Coloque-o na boca. Limpe-o com sua língua", ela o faria.

Seria só isso o que havia restado entre ambos: medo e penitência?

— Eu mesmo faço isso.

Tomou-lhe o pano das mãos, terminou de lavar-se e saiu da tina, pondo-se a enxugar os pés. Jehanne estava outra vez composta e pronta com as toalhas, mas mantinha os olhos baixos. Sua Jehanne, que só baixava o olhar quando entrava numa igreja.

Galeran secou-se, depois enrolou uma grande toalha à cintura e sentou-se num banco. Por fim, proferiu as palavras que havia evitado o dia inteiro:

— Conte-me o que se passou com Gallot.

Jehanne estava dobrando uma toalha, e suas mãos congelaram.

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— Ele morreu.

— Isso eu já sei. Quando aconteceu?

— Há dez meses e meio.

Galeran teve a impressão de que ela seria capaz de citar os dias, as horas, as batidas do coração.

— Como ele morreu?

Ela terminou de dobrar a peça com gestos atipicamente desajeitados. — Morreu, simplesmente.

— Crianças não morrem simplesmente, Jehanne. Foi febre? Gripe?

— Gallot simplesmente morreu. Estava feliz, saudável. Dormia comigo. Brinquei com ele antes que adormecesse...

Galeran pensou que ela não fosse continuar, tamanha era a dor expressa em seu rosto.

— Talvez estivesse um pouco mais agitado do que o normal.

— Não sei... Depois de verificar algumas contas, deitei-me ao lado dele na cama e adormeci também. Quando acordei... ele estava morto.

— E morreu de quê?

— Não sei.

— Não seja tola! É claro que deve saber. Você deitou-se em cima dele enquanto dormia?

— Não.

— Jehanne, coisas assim podem acontecer...

Só então ela olhou-o nos olhos.

— Não rolei para cima de meu filho enquanto dormia! Bêbadas fazem isso, eu não estava embriagada. Tenho sono leve, Gallot estava com oito meses de idade; se eu o importunasse de alguma maneira, ele teria protestado... E ele não fez nada...

— Ele estava adoentado?

— Não. Se estivesse, eu saberia. Ou acha que não cogitei dessa possibilidade mais de mil vezes?

— Então, em nome de Deus, como meu filho foi morrer?

— Vai ver eu o matei. É isso o que está imaginando, assim como Gil? Você estava morto, ou pelo menos assim o afirmou aquele monge que passou pela região. Lowick estava aqui, disposto a tomar seu lugar, mas sem querer que seu filho viesse

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a tomar o lugar do filho dele. Não é difícil alguém se livrar de uma criança pequena, bastaria cobrir-lhe a boca e o nariz com a mão...

— E Lowick não teria dificuldade em fazer isso.

— Só que isso não seria possível, já que eu dormia junto de Gallot.

— Ou então você dormia junto de ambos. Vadiando com Lowick ao lado de meu filho morto.

— Não!

— Por tudo o que é mais sagrado neste mundo, Jehanne, preciso saber a verdade!

— Ah, Galeran, não pense que...

Um choro de criança se interpôs ao que ela ia dizendo, o choro estridente de um bebê faminto. Jehanne colocou o braço sobre os seios, mas Galeran já tinha visto a mancha úmida que se espraiava abaixo do decote de seu vestido. Aqueles seios, que antes haviam vertido leite à exigência do filho dele, agora o faziam pelo filho de Raymond de Lowick.

— Vá alimentar a criança — ele rosnou, vendo-a deixar os aposentos quase no mesmo instante.

Galeran esmurrou a parede com tanta força que sentiu os nós dos dedos arderem. Com um suspiro desanimado, pôs-se em pé e olhou ao redor. Poderia mandar chamar Jehanne mais tarde, mas sabia que não faria isso. Não importava o que acontecera, a verdade era que não se sentia capaz de usá-la como mera forma de obtenção de alívio. Tinha de haver algo mais entre ambos, algo mais do que a simples satisfação da carne.

Deixando-se cair novamente sobre o banco, afundou a cabeça entre as mãos. Sua esposa teria realmente matado o próprio filho?

Não. Nunca. Isso estava fora de cogitação.

Então seria possível que ela tivesse permitido a Lowick livrar-se da criança?

Galeran achava que não, mas sabia que o amor era capaz; de coisas muito estranhas. Bastava ver o que fazia com ele.

De qualquer modo, os eventos dos quais tinha conhecimento não lhe soavam como lógicos. Era evidente que Jehanne engravidara do bastardo à época da morte de Gallot, pouco depois de receber a notícia de que seu marido estaria morto. Então... Talvez Lowick a tivesse estuprado.

Ele balançou a cabeça. Jehanne teria cortado fora os testículos do miserável para fazê-lo engoli-los. Em vez disso, mantivera Lowick no castelo, e quando o marido reaparecera, permitira-lhe que se fosse em segurança. Não parecia haver sinais de inimizade entre os dois.

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Galeran resignou-se ao fato de que precisava descobrir o que havia se passado se quisesse ter um pouco de paz. Mas o que haveria de fazer se Jehanne e Lowick realmente tivessem contribuído para a morte de seu filho, ainda que fosse apenas por meio de um ato de negligência?

Mataria ambos.

Isso era certo.

Erguendo-se outra vez, pôs-se a caminhar pela ampla câmara. Tinha de encontrar uma explicação. Qualquer explicação que fizesse um pouco de sentido e o satisfizesse.

Galeran pretendia dormir depois do banho, mas agora as energias inflamadas pelo nervosismo lhe combatiam o cansaço, e ele não conseguia nem pensar nem ficar parado.

Não demorou a concluir que seria melhor colocar uma roupa. Logo em seguida, porém, viu-se assaltado por mais um problema: o que iria vestir, se sua mulher o julgara morto e por certo dera em caridade todas as suas vestimentas?

Mesmo com esse pensamento em mente, arriscou abrir a grande arca de madeira ao pé da cama. E deixou escapar uma leve exclamação ao deparar com todos os seus pertences cuidadosamente guardados ali.

Tudo estava em excelentes condições, com ramalhetes de ervas arrumados entre as peças para evitar traças e outras pragas. Ele separou a roupa de baixo, uma camisa nova, que reconheceu ter sido confeccionada pelas mãos de Jehanne, e sua: túnica de lã favorita, com ornamentos em pele de marta. Seus sapatos, também bastante bem conservados, mantinham-se flexíveis devido a um meticuloso polimento com cera.

Galeran respirou fundo. Se Jehanne acreditara na notícia da morte dele um ano atrás, qual o significado de todo aquele, meticuloso cuidado com seus pertences?

Antes que pudesse encontrar uma explicação plausível para: sua indagação, alguns criados, provavelmente enviados por sua esposa, vieram buscar os utensílios e artigos usados no banho.

Após terminar de se vestir, Galeran desceu para o salão, a cabeça zunindo em cansaço e pensamentos conflituosos. Arrependendo-se por ter perdido a refeição do meio-dia, quando a comunidade do castelo reunia-se, fez sinal para que um criado lhe trouxesse cerveja e cuidou de circular pelo grande aposento para conversar com sua gente.

Não havia sinal de Raoul por ali, e isso logo o fez imaginar que seu amigo estivesse na cama com alguma criada fagueira. Questões como essa eram tratadas com certa banalidade entre o corpo de serviçais, mas mesmo entre eles o adultério, via de regra, não era contemplado com o perdão. Um homem poderia aceitar o filho de um

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suserano na esperança de receber favores por fazê-lo, mas certamente não se disporia a criar o filho de alguém igual a ele.

Quando sentiu que os olhares de soslaio começavam a incomodá-lo, Galeran, seguido de perto por seus cães, foi à procura de seu mordomo-mor, Matthew, que talvez tivesse como lhe aclarar algumas dúvidas.

Encontrou-o na casa dele, um pequenino chalé nos limites do pátio. De boa vontade, o homem apressou-se a deixar o descanso do lar para acompanhar seu senhor numa caminhada até a muralha, onde poderiam conversar longe da curiosidade dos demais.

— Pois não, meu lorde?

— Como foi que Lowick tornou-se administrador desta propriedade?

O grisalho e atarracado Matthew ajeitou nervosamente o cinto ao redor do ventre proeminente.

— Ele veio nos visitar, meu lorde. Como todos o conhecíamos bastante bem, não hesitamos em deixá-lo adentrar os portões. Sir Gregory tinha morrido daquela tosse dele, e lady Jehanne já tinha procurado a opinião de lorde William sobre quem iria substituí-lo. Parece que, quando soube que sir Raymond estaria disponível, ela lhe entregou o cargo.

Galeran tentava se lembrar se seu administrador, sir Gregory, já estaria doente na última vez em que o vira. Era difícil dizer, já que o pobre coitado vivia tossindo. De um modo ou de outro, quem poderia garantir que a idéia não tinha sido livrar-se do antigo intendente para dar lugar a Raymond de Lowick?

Não, isso também já seria permitir que a imaginação fosse longe demais.

Mas, como uma bofetada, ocorreu-lhe que fora Jehanne quem o encorajara a unir-se à Cruzada. E ocorreu-lhe também que, se de fato havia algum plano entre sua esposa e o amante dela, tal trama poderia remontar aos tempos de seu noivado com ela.

Lowick também se casara. E a esposa dele havia morrido.

Mais uma morte bastante conveniente.

— Por acaso você sabe quando a mulher de Raymond veio a morrer, Matthew?

O mordomo-mor disparou-lhe um olhar arguto, como se também tivesse lá suas suspeitas a respeito do assunto.

— Foi mais ou menos à época em que o senhor partiu para a Terra Santa, meu lorde.

— E devido a que ela faleceu?

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— Alguma febre, meu lorde. De acordo com os homens de sir Raymond que estavam aqui com ele, ela nunca fora uma pessoa forte e tinha perdido quatro bebês. Mas era bastante rica. Levou para o casamento um bom pedaço de terra num lugar chamado Beeston; entretanto, o contrato nupcial dizia que, se ela não viesse a ter filhos, as terras retornariam para sua família. Sir Raymond deve ter feito o que esteve a seu alcance para que a esposa deixasse herdeiros, mas a sorte não o favoreceu.

Galeran lembrava-se muito bem de que Lowick sempre fora ambicioso. Ambos nunca tinham sido próximos, mas ele conhecia a natureza de tipos assim: corajosos e honrosos, porém com uma ambição quase desmedida. Lowick estava certo de que a boa aparência e os dons para o combate davam-lhe direito a uma excelente posição na vida, tal como o posto de marido de Jehanne de Heywood.

Quando Raymond flertava com Jehanne nas visitas que fazia à propriedade, Galeran tinha a impressão de que o fazia mais para irritá-lo do que para seduzi-la. Desse modo, nunca dera grande importância ao fato. Criar problemas por causa de Lowick serviria apenas para manchar o nome da noiva, aborrecer seu futuro sogro e possivelmente dar ensejo a um conflito que só se resolveria com armas.

Jehanne nunca se opusera ao comportamento do cavaleiro, e Galeran presumia que ela agisse assim pelos mesmos motivos que ele: evitar trazer a discórdia para dentro de casa. Tendo sido escudeiro de sir Fulk, Lowick era também, de certa forma, quase como um irmão para a filha dele.

Galeran chegara a perguntar ao futuro sogro por que ele não oferecera a Lowick a chance de casar-se com Jehanne. O velho lorde não era homem de dar explicações para seus atos, mesmo assim lhe dissera que desejava para sua herdeira alguém com melhores relações.

O pai de Raymond fora amigo de Fulk, uma vez que ambos tinham chegado com o Conquistador, no entanto não prosperara. Fulk havia tomado Raymond como um dos seus num gesto de generosidade, mas essa generosidade não incluía fazê-lo seu filho. Não havia vantagem alguma nisso, argumentara o pai da noiva de Galeran.

Fosse como fosse, agora a questão parecia concentrar-se numa única e fundamental suposição: Jehanne amara Lowick durante todos aqueles anos e todo o resto não tinha passado de mera fachada?

Dando-se conta de que o mordomo-mor esperava pacientemente, Galeran se encheu de coragem.

— E quanto a meu filho, Matthew? Você sabe como ele morreu?

Limpando a garganta, o homem desviou o olhar do dele.

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— Isso é um grande mistério, meu lorde. Um garotinho que começava a dar os primeiros passos... — O mordomo-mor tossiu como se isso o livrasse de um aperto na garganta. — Não se ouviram nem gritos, se é que o senhor me entende. Lady Jehanne entrou no salão com a criança nos braços e disse apenas: "Ele não quer acordar". Poucos de nós estávamos por ali e, a princípio, não sabíamos o que fazer porque nossa dama parecia tão calma... Então ela tornou a olhar para o pequenino, dizendo: "Acho que ele morreu", naquele mesmo tom tranqüilo... E depois repetiu isso num tom mais alto. E começou a tremer... — Matthew tornou a limpar a garganta. — As aias de lady Jehanne correram para junto dela e lhe tomaram o filho dos braços, mas ele já estava frio. Não havia mais nada que pudéssemos fazer.

Galeran viu-se forçado a fechar os olhos na tentativa de impedir que a dor em seu peito o fizesse sufocar. As palavras singelas de seu criado revelavam muito do sofrimento de Jehanne.

E ele estava tão longe num momento tão trágico... Longe demais para acudi-la, longe demais para que ela o acudisse.

Num esforço sobre-humano para organizar os pensamentos, Galeran calculou que Gallot havia morrido quando ele voltava para casa, talvez quando estivesse desfrutando dos banhos d Constantinopla. Lembrou-se de que se sentira um tanto angustiado naqueles dias e de que fizera arranjos para regressar Inglaterra junto à caravana do duque da Normandia. Mas duque não tinha pressa para voltar.

— Alguém se decidiu pela causa da morte de meu filho?

— Não foi possível, meu lorde. Falou-se de encantamento maus e coisas assim, o senhor sabe como são os camponeses. E depois daquela explosão ela... lady Jehanne... ficou muito calma. Ela passou a viver como se nada tivesse acontecido.

— Ela sempre foi assim. Você sabe disso, Matthew.

— Sim, meu lorde, mas quando uma mulher perde seu único filho... Foi estranho. E quando se imagina que ela havia perdido também o marido, tudo soa mais estranho ainda...

Galeran olhou na direção dos campos mergulhados na escuridão e ainda assim pontilhados pelas fogueiras do exército de seu pai. Num impulso que sabia inútil, imaginou se tudo seria diferente se ele estivesse ali quando a terrível tragédia acontecera.

— Então Gregory morreu e Lowick veio para cá. Tudo isso ocorreu uns... dois meses depois que parti?

— Sim, meu lorde.

— Gallot nasceu no dia de Santo Estevão, não é verdade? — Fora isso o que Jehanne lhe escrevera numa de suas cartas.

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— Sim, meu lorde, um dia de que todos iremos nos lembrar, pois a alegria se espalhou por estas terras.

Galeran suspirou, aliviado. Isso afastava quase que definitivamente as suspeitas de que o menino pudesse não ser seu filho. Gallot nascera exatos nove meses após a noite em que ele e Jehanne haviam se despedido em Londres.

— Sir Raymond sempre foi um cavaleiro competente — comentou. — Presumo que tenha administrado os assuntos de Heywood com correção.

— Sim, meu lorde.

— Por que o tom desdenhoso, Matthew?

— Ele era orgulhoso, agia como se tudo isto lhe pertencesse.

— E tinha motivos para pensar desse modo?

— Creio que não, meu lorde.

— Sei... Bem, o que houve a seguir foi a notícia de que eu estivesse morto?

— Sim, meu lorde. Foi um monge quem nos falou isso. Ele disse que tivera notícias das baixas sofridas na luta contra os Infiéis e que o senhor figurava entre os mortos. Foi uma noite de lágrimas, meu lorde.

— E, dias depois, Gallot morreu.

— Sim, senhor.

— Como minha esposa reagiu à notícia da minha morte?

— O senhor conhece lady Jehanne, meu lorde. Ela nunca faz o que se espera. A notícia deixou-a muito abalada, isso é certo. Lady Jehanne fez muitas perguntas ao monge e ficou obviamente bastante triste, porém logo em seguida se reanimou e disse que não iria acreditar nisso até que tivesse provas. Depois, apesar de rezar bem mais do que de costume, pareceu. tirar esse assunto dos pensamentos. Lembro-me de ter visto sir' Raymond conversando com ela, tentando fazê-la aceitar a notícia, mas ela se recusava. Ainda assim, ele conseguiu fazer com que lady Jehanne fosse ver o pai do senhor para falar dessa questão; ela foi, mas não sei o que se passou por lá. Nossa dama retornou da casa de lorde William como se tudo continuasse como antes, e todos por aqui tentamos fazer como ela. Nenhum de nós queria pensar que o senhor tivesse morrido de fato, meu lorde.

— Obrigado.

— Mas depois disso... Pareceu-me que sir Raymond ficou mais ousado. Acho que imaginou que pudesse se apoderar deste lugar se assim o desejasse.

— Então Gallot morreu.

— Sim, meu lorde. E lady Jehanne mudou.

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— Imagino que sim.

Galeran quis perguntar se sua mulher teria levado Lowick para sua cama dias após a notícia da presumida morte do marido, dias após a morte certa do filho. Só que tinha sido exatamente isso o que ela fizera, caso contrário não teria dado luz um bebê nove meses após tais eventos.

Por quê?

Por quê?

— Matthew, diga-me com toda a honestidade: o que você acha que causou a morte do meu filho?

— Sinceramente, meu lorde, não sei. Não acredito em encantamentos nem feitiçaria, mas só uma coisa assim pode explicar o que aconteceu.

— Isso não existe.

— Mas milagres existem, senhor.

— E possível.

— Então as obras do demônio também devem existir. Seja tomo for, de uma coisa eu tenho certeza, meu lorde: teria sido muito melhor que lady Jehanne tivesse se recolhido à sua cama na companhia de seu pesar, e não de sir Raymond. No dia em que o menino foi enterrado, ela passou a noite com lorde Raymond, e todos sabem disso.

Galeran escolheu fugir ao assunto que tanto lhe doía.

— Onde Gallot está enterrado?

— No pátio da capela, perto do muro interno, senhor. Há uma lápide lá.

Dispensando o mordomo-mor com um aceno, Galeran permaneceu mais alguns instantes junto às ameias, a mente a vagar a esmo por entre os destroçados fragmentos de sua existência. No entanto, logo se deu conta de que isso de nada lhe adiantava, e assim foi rezar junto à lápide que registrava a vida tão breve do filho.

Alguém plantara uma roseira ali, mas a plantinha ainda estava pequena e frágil. Ao contrário de Gallot, porém, ela iria crescer e florescer.

Galeran passou quase uma hora ajoelhado no jardim banhado em penumbra, em busca da força de espírito que sempre existira dentro de si, mas nada encontrou. Exangue, obrigou-se a se levantar e se encaminhar aos aposentos senhoriais do castelo. Qualquer coisa seria melhor do que desmaiar de exaustão ali mesmo, sob a claridade do luar.

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Mesmo assim, relutava em enfrentar a câmara que dividira com Jehanne. Seu consolo era que ela dormiria no quarto adjacente aos aposentos senhoriais, na companhia das aias e do bebê.

Depois de tirar as roupas, Galeran acomodou-se na cama larga. E quase saltou para o chão no mesmo instante. A sensação provocada pelo colchão e pelas cobertas, o aroma de ervas, o perfume de Jehanne, tudo o carregava de volta ao leito onde ele dormia antes de partir para o Oriente.

Com um gemido, rolou sobre si mesmo e enterrou a cabeça entre os braços cruzados sobre o travesseiro. Tinha se convencido de que fora da vontade de Deus que ele se juntasse Cruzada, deixando a Inglaterra, seu lar e sua esposa. Mas se, tudo aquilo que estava acontecendo fosse da vontade de Deus, então o Todo-Poderoso possuía um senso de humor asqueroso,

Ainda que bastante descansado, Galeran acordou sentindo-se um tanto pesado por dormir demais. O ângulo da luz a lhe incidir, sobre os olhos fechados e os ruídos que se erguiam do pátio diziam-lhe que a manhã já ia adiantada. Levantar dali, contudo, significava ter de enfrentar uma miríade de problemas.

Mesmo assim, não tinha intenções de voltar a dormir. Seu sonhos, ainda que mal se lembrasse deles, não tinham sido nada agradáveis. Vira-se de volta a Jerusalém, com Jehanne a se lado; uma criança chorava sem parar nas proximidades, mas estava fora do alcance de seus olhos, distante demais para que pudesse ser salva dos cavaleiros alemães e do rio de sangue.

Só o fato de pensar nessas imagens já era insuportável, assim ele afinal abriu os olhos...

...para deparar com Jehanne sentada à cama, a observá-lo.

Ela usava um delicado vestido num rosa pálido e tinha os longos cabelos soltos. No mesmo instante, Galeran sentiu o coração disparar e o corpo encher-se de desejo; ainda assim, tentou emprestar um tom natural à voz:

— Como conseguiu escapar aos guardas que a vigiavam?

— Convenci-os de que estaria mais segura aqui do que no quarto ao lado. Mas há um vigia atrás da porta. E eu jamais seria capaz de lhe fazer mal, Galeran.

— Então vai ver que ainda estou sonhando e nada do que houve foi real.

Como se tivesse levado um tapa, Jehanne baixou o olhar. Odiando fazê-la sentir-se mal, ele perguntou:

— Está precisando de alguma coisa?

Ela não ergueu os olhos. Em vez disso, pôs-se a desenhar com a ponta do dedo sobre o tecido sedoso que lhe cobria as pernas.

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— Seu amigo, Raoul de Jouray... — disse afinal. — Ele me contou que você fez um voto de fidelidade... a mim.

Galeran amaldiçoou o amigo com uma praga silente.

Como ele não dissesse nada, Jehanne ergueu não só os olhos como também o queixo, numa atitude que lhe era bastante peculiar. Quase parecia a mulher de dois anos atrás.

— Talvez você queira que eu lhe mande uma das criadas para satisfazê-lo.

Prudente e desconfiado, Galeran manteve-se calado. Viu-a respirar fundo, um breve cintilar nos olhos azuis. O lado frio e lógico de sua mente lhe dizia que uma mulher inteligente, na situação de Jehanne, faria movimentos ligeiros na direção de restabelecer a paz com o marido, inclusive engravidar, se possível.

E Jehanne era muito inteligente.

O lado frio e lógico, no entanto, era apenas uma das três partes em que ele se via dividido. A segunda parte era o homem que amava Jehanne de Heywood tão intensamente a ponto de desprezar a prudência. A terceira era um animal, consumido pelo desejo enlouquecedor por aquela mulher.

Sem lhe dar tempo para prosseguir com suas ponderações Jehanne livrou-se do vestido e escorregou pela cama para junto dele. Fez menção de se cobrir, mas Galeran afastou as coberta. Ela então se entregou ao seu olhar.

Ele deslizou a mão por um ventre arredondado.

— É por causa do bebê — ela explicou.

— Não me importo. — O que não era de todo verdade.

Evitando pensar na causa das mudanças que via no corpo da esposa, Galeran levou a mão a um seio túmido. Encantou-se em acariciá-lo com movimentos leves e insinuantes, em sentir a firmeza e a maciez da pele tão clara. Para seu imenso alívio, tinha o desejo, ainda que intenso, sob controle. Sua intimidade estava rija e cada nervo do seu corpo ameaçava retinir mas ele podia esperar.

Um pouco.

Por algum motivo, pareceu-lhe importante, agora que o mo mento havia enfim chegado, que não avançasse sobre Jehanne como um garanhão indômito. Assim, moveu a perna pelas per nas esguias dela enquanto lhe explorava, com a mão e os lábio a deliciosa textura do corpo que tanto amava, as curvas e saliências da carne firme, a seda nos cabelos de outro e prata.

Enterrando o rosto entre as madeixas incrivelmente loiras, lutou contra as lágrimas ante a sensação tão doce e familiar. Aquele era o estofo de seus sonhos durante o exílio, o âmago da tortura que experimentava ao regressar para casa. Sentiu-se

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estremecer, e teve a impressão de que um abismo de prazer e dor se colocava sob seu corpo.

Jehanne mantivera-se passiva, mas então os braços dela o enlaçaram por inteiro, trazendo-o para mais perto, mais perto, mais perto... Afagando-lhe as costas e as nádegas, ela o convidou para deitar-se sobre seu corpo agora trêmulo, guiou-o para dentro de si, ajeitou-se ao membro que a penetrava com naturalidade e sofreguidão.

Quando percebeu o que acontecia, Galeran entendeu que, Nem intenção ou consciência, tinha voltado ao seu lugar. Chorou ao encontrar o alívio por que tanto ansiara e chorou depois, nos braços dela, sentindo que as lágrimas de sua Jehanne, sua mulher e seu amor, misturavam-se às lágrimas dele num encontro que ele temera nunca mais fosse acontecer.

Abraçados, ficaram deitados ali, em silêncio, comunicando-se através da pele, renovando os sentidos no gosto e no cheiro um do outro.

Então Galeran deitou a cabeça junto à dela para perguntar num murmúrio:

— Por quê?

Talvez não fosse aquele o momento adequado para a resposta. Galeran chegou a essa conclusão instantes depois quando, sem que Jehanne tivesse tempo para lhe dizer alguma coisa, a grande cama estalou; do nada, uma de suas laterais cedeu e foi ao chão, levando os dois junto.

Ela gritou, ele deixou escapar um impropério, e o guarda que eslava no corredor não perdeu tempo em invadir os aposentos.

O homem olhou para ambos, caídos no chão, depois deu meia-volta e, reprimindo um sorriso, tornou a deixá-los a sós.

Após um momento de hesitação, Galeran e Jehanne caíram na risada. Como havia tanto não faziam.

— Devo pensar que você mandou serrar dois pés da cama? — ele indagou, sentando-se ao lado do leito inclinado.

O sorriso sumiu dos lábios de Jehanne, e ela pôs-se em pé.

— Pelo amor do Salvador, Galeran, será que você vai suspeitar de cada coisa que eu fizer?

— E por que não?

— Porque sou sua mulher e você me conhece muito bem. Além do mais, eu esperava que você fosse me açoitar e me mandar para um convento e, assim sendo, por que haveria de planejar tudo o que acabou de acontecer?

— Você sempre foi capaz de planejar as coisas de modo a criar várias oportunidades. E eu ainda posso tanto açoitá-la quanto mandá-la para um convento.

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— Pois prefiro isso a viver sob suspeita. — Aproximando-se da cama, Jehanne ergueu parte do colchão para inspecionar o estrado. — Veja. Cupins!

Galeran examinou o local que ela apontara. Era evidente tratar-se de cupins, mas um azedume ensandecido já havia tomado conta dele.

— Isso é sinal de que este castelo não está sendo bem cuidado — observou. — Deve ter sido mero golpe de sorte a cama não ter ido ao chão com você e Lowick em cima.

Pois era isso o que o devorava: a idéia de que a última vez que ela fizera amor ali fora com outro homem.

Teve a impressão de que Jehanne havia congelado no lugar, mas ela lhe retrucou:

— Nunca usamos essa cama.

— Por que não?

— Provavelmente porque está cheia de cupins.

Afastando-se, Jehanne cuidou de recolocar suas roupas.

Com um suspiro profundo, Galeran ergueu-se do chão, esperou que ela estivesse vestida, depois lhe disse:

— Você terá de conversar comigo, mais cedo ou mais tarde.

— Sinto muito — foi tudo o que Jehanne respondeu, antes de deixar os aposentos senhoriais.

"O que você sente muito?", perguntou-se Galeran enquanto examinava a desordem a seus pés. Aquela cama parecia um reflexo de sua vida: desarrumada, aos pedaços, mesmo assim repleta de seu amor, de sua existência, de sua esposa.

Inspecionando o grande tálamo, viu que havia cupins em vários pontos da estrutura em carvalho. Precisavam de uma cama nova. Mesmo que Jehanne e Lowick nunca tivessem usado aquele leito, aquilo era parte do passado, não do presente.

O pensamento trouxe-lhe mais uma onda de puro ódio e rancor. Jehanne tinha de conversar com ele, tinha de fazê-lo compreender o que se passara e perdoá-la, ou um dia ainda acabaria por lhe quebrar o pescoço com as próprias mãos.

Galeran foi ao corredor para gritar que lhe trouxessem água e que John fosse lhe fazer a barba. Estava farto de deixar a cabeça girar por conta das malfeitorias de sua mulher.

O que não esperava era que, já barbeado e vestido, fosse encontrar a prima dela assim que deixasse seus aposentos.

Com dezoito anos de idade, pouca estatura e corpo rechonchudo, Aline de Burstock possuía os olhos azuis e os cabelos loiros como Jehanne. Ambas também tinham

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em comum alguns traços do temperamento, mas se Jehanne fizesse pensar numa espada, Aline fazia lembrar uma clava.

— Estou certa de que bater nela fez você se sentir melhor — ela lhe disse.

— Como sempre, você é astuciosa — ele lhe devolveu.

Galeran gostava de Aline e estava contente por tê-la ali, com seu bom senso e seu costume de falar tudo o que pensava. Isso contudo, não significava que estivesse disposto a discutir seu assuntos pessoais com ela.

— Talvez devesse fazer disso um hábito, pois me parece que só assim você conseguirá limpar os ares por aqui — prosseguiu Aline, com a expressão de quem jogara uma isca e esperava para ver se o peixe iria fisgá-la.

— Você deveria conhecer meu amigo, Raoul de Jouray Tenho a impressão de que ambos pensam da mesma maneira.

— Imagine! Aquele homem é um pagão. Mal tirou a sujeira do corpo e foi se enfiar debaixo das saias de Ella.

— Ou Ella o acolheu debaixo de suas saias. Seja como for, Raoul foi ao encontro da mulher mais amável de todos os castelos destas redondezas.

— Então deveria ter pedido a ela que o banhasse.

— Não me diga que ele foi pedir uma coisa dessas justamente a você. Bem, só posso esperar que Raoul não tenha insistido quando você lhe disse não.

— Não, não insistiu. E Jehanne o assistiu a banhar-se.

A vontade de rir que ele sentia desvaneceu-se no ar. De acordo com o costume, era mais do que apropriado que sua esposa ajudasse um convidado do governante com seu banho e tais questões nunca o tinham incomodado. Agora, entretanto, Galeran tinha ganas de torcer o pescoço do amigo com as próprias mãos.

— Banharei Raoul da próxima vez que ele pedir — observou Aline, seus olhos azuis afiados como os de um falcão.

— Não é preciso que...

— Não irei mais causar problemas a ninguém por conta dos meus escrúpulos tolos.

— Pensei que essas coisas fossem importantes para você, Aline. Qualquer uma das criadas pode...

— Isso não seria correto. Seria um insulto ao amigo do senhor do castelo. — Ela franziu as sobrancelhas. — Mas se você não confia nele, então ele não é seu amigo.

— E se eu não confiar nela, então não posso tê-la como esposa.

— Amigos podem ser rejeitados; esposas, não. Ou não tão facilmente.

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Apoiando-se à parede de pedras, Galeran rendeu-se. — Muito bem, prima, o que acha que devo fazer?

— Ela jamais deixou de amá-lo, Galeran. — Aline tinha de dobrar o pescoço para trás para olhar nos olhos dele. — Mas se algum dia você vier a encontrar o irmão Dennis, que foi quem trouxe a notícia da sua morte, não resista à tentação de cortar a língua dele!

— Nunca imaginei que você fosse tão sanguinária.

— Há situações em que a violência se faz necessária. Como quando Cristo expulsou os vendilhões do templo. — E com isso ela saiu pelo corredor no seu andar ligeiro.

— Aline? — Ao vê-la deter-se e virar-se, ele perguntou: — É um menino ou uma menina?

— Uma menina. Chama-se Donata. Não a odeie, Galeran.

Ela então girou sobre os calcanhares e retomou seu caminho Deixando-o a perguntar-se se seria ódio o sentimento de desejar que uma criatura não existisse.

Instantes depois, ao entrar no salão, Galeran encontrou o pai espichado numa poltrona, pés apoiados sobre um banco, uma caneca de cerveja entre os dedos. Acomodando-se na poltrona em frente à de lorde William, fez sinal a um criado para que lhe trouxesse de comer e de beber.

— Está bastante tarde para você fazer seu desjejum — seu pai observou.

— Fiquei quase três dias sem dormir direito.

— Ah. — Lorde William examinou-o com atenção e coçou o queixo coberto de pêlos. — Você está mais magro.

— Alguém esperava que libertar Jerusalém fosse fácil?

— Você levou meses na viagem de volta para casa, sem outra coisa a fazer a não ser se alimentar.

— Rações de bordo de um navio.

— Ouvi dizer que se demoraram em Constantinopla e na Sicília.

— Comida estrangeira.

— Bruges é uma ótima cidade, e come-se muito bem lá.

— Eu queria estar na minha casa.

— Ah.

Galeran apanhou a cerveja, o pão e o queijo que uma criado viera lhe trazer, agradeceu-a com um aceno e tornou a dirigir-se ao pai:

— Por que não me diz como tem andado nossa Inglaterra

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— Mal. Rufus quer dinheiro, dinheiro e mais dinheiro, tudo para gastar com os amigos esquisitos. E agora mandou Ranulph Flambard para cá no intuito de nos apertar ainda mais.

— Raoul disse que Flambard tornou-se bispo de Durham. Ele ainda administra a Inglaterra para o soberano?

— Sim, aquela doninha. Serei sincero: não me agradaria a idéia de tê-lo às minhas costas. Foi sugestão dele, segundo dizem, que o rei deixasse o bispado vacante e embolsasse tanto os valores dos arrendamentos quanto os do dízimo. Eu bem queria que Flambard parasse por aí, mas agora ele está esfolando a Nortúmbria, duplicando ou triplicando impostos para leigos ou religiosos.

Galeran empurrou um pouco de alimento com a cerveja, depois comentou:

— Ao menos não se pode acusá-lo de favorecimento. Ele é injusto para com todos.

— A situação é ruim e tende a piorar, rapaz. Ninguém está a salvo dos interesses do rei. Estávamos tranqüilos por aqui, longe das atividades deles, mas agora...

— Há alguém disposto a contrariar Rufus e Flambard?

— Tem-se ouvido conversas.

— Conversas não irão modificar coisa alguma, pai.

— Talvez ajudem. Se acontecer alguma coisa com Rufus, o país será atirado aos lobos outra vez, com os dois irmãos dele se engalfinhando pela Coroa. Pelo sangue da Virgem, por que esse homem não arruma alguns filhos?

Galeran ergueu uma sobrancelha. Todos sabiam por que Rufus não tinha filhos. Porque nem ao menos se casara.

— A coisa mais fácil do mundo é fazer uma criança. Afinal... Lorde William teve ganas de morder a própria língua. — Desculpe-me, meu rapaz, não era minha intenção. Bem, já que retornamos a esse assunto... O que pretende fazer?

Galeran afundou-se na poltrona, e Grua pôs o focinho em seu joelho. Acariciando a cabeça do cão, ele indagou:

— O que acha que devo fazer?

— Com mil diabos! Ainda quer a companhia dela?

— Sim, se ela quiser a minha.

— Se ela quiser... Se você aceitar Jehanne depois de tudo o que aconteceu, ela deveria agradecer-lhe prostrada sobre os joelhos todos os dias!

— Já imaginou uma década ou duas de gratidão assim amargurada?

Lorde William ficou calado. Não fazia muito que a mãe de Galeran morrera, e não havia quem não soubesse o quanto ela e o marido eram devotados um ao outro.

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Mabelle de Brome fora firme como uma rocha e calorosa como um dia de verão, o coração amoroso de uma ruidosa família. Galeran gostaria muito que a mãe ainda estivesse viva. Talvez ela fosse capaz de encontrar uma saída para o nó em que se via enredado.

— Quem sabe seja melhor você tirar Jehanne dos pensamentos — sugeriu lorde William. — Nós lhe encontraremos uma esposa mais estável. Se ela for para um convento, poderíamos manter Heywood e...

— Se eu romper o matrimônio, presumo que Jehanne irá se casar com Lowick.

— Casar com Lowick! Se você cortar a garganta da sua mulher, ela não se casará com ninguém.

— Eu jamais seria capaz disso. Nem você. E Lowick talvez alimente pretensões de casar-se com ela, visto que os dois tiveram um vínculo que resultou numa criança. Ele poderia até mesmo mentir, afirmando haver um compromisso de noivado entre ambos anterior ao meu casamento com ela, e isso seria bastante para um tribunal eclesiástico; nesse caso, Lowick receberia todos os direitos sobre Heywood, ainda que fosse apenas como guardião dos bens da filha.

— O sol fritou seus miolos se você pensa que vou aceitar aquele canalha como vizinho das minhas propriedades! Seja no ano que passou ele se pôs a disputar aluguéis, metendo-se com meus arrendatários como se...

— Ele fez isso? Então talvez seja melhor você me ajudar a reconstruir meu casamento.

— Sua raposa ardilosa... Ah, está bem, meu rapaz. Mas ela não pode sair incólume da situação que criou. E se você não pretende lhe dar meia dúzia de chibatadas dia após dia, então me diga o que pretende fazer.

— Você seria capaz de judiar de uma mulher, pai?

— É claro que não. Vamos, diga-me o que vai fazer.

— Tentarei entender.

— Não há nada que entender, Galeran. Vai ver ela sempre teve certo interesse por Lowick, como metade das garotas da região, incluindo duas das suas irmãs. Com você distante e suas necessidades não atendidas, Jehanne fraquejou, como muitas mulheres o fariam no lugar dela.

— Pai, você realmente acredita que ela seria capaz de buscar refúgio na cama de Lowick no dia do enterro do filho?

— Foi o que ela fez, não foi?

Galeran viu-se sem palavras.

— E então, rapaz, que atitude pretende tomar?

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Ele ainda não tinha se decidido, mesmo assim respondeu:

— Por ora, mandarei que suspendam a vigilância para que ela possa retomar suas atividades. A menos que você se oponha, pois Jehanne está confinada por tê-lo agredido.

— Como se fosse possível um mosquito agredir um touro... Além do mais, ela tinha razão. Eu devia ter lhe contado a respeito de Gallot.

— Isso é verdade. Você devia ter me dito.

— Que Maria seja louvada, às vezes Jehanne é uma mulher extremamente difícil! Ela veio me ver quando recebemos notícia de sua morte, fazendo questão de mostrar-se mais fria do que a água no fundo do poço, embora estivesse claro que se desesperava ante a possibilidade.

— Sei o que quer dizer. Você a viu depois da morte de nosso filho?

— Logo em seguida, não. Ficamos sabendo o que tinha, acontecido quase uma semana depois, e então eu corri para cá e, quando cheguei, era como se nada... Não, não foi bem assim. Jehanne parecia uma estátua que se movesse, mas continuava a tomar conta de tudo com o mesmo empenho, e seu jeito me levou a crer que vinha sendo desse modo desde o dia da morte do menino. Era... estranho, não sei que outra palavra usar.

— E as conversas à meia-voz já tinham começado.

— É provável, ainda que no momento ninguém tenha me falado da traição dela com Lowick.

— Quando foi que você ficou sabendo disso?

— Essa é uma boa pergunta... Foi um ano tão corrido, filho, uma coisa atrás da outra... Os escoceses andaram nos incomodando, o tempo esteve tão instável, e depois veio Flambard... Quando o monge nos disse que você tinha morrido, enviei uma mensagem ao exterior, ao papa e ao governo de Constantinopla, na esperança de que pudessem me responder com notícias, mais benfazejas. E enquanto esperava uma mensagem encorajadora para dividir com Jehanne, evitei procurá-la.

— Compreendo.

Lorde William deu um gole na sua cerveja, depois prosseguiu:

— Foi então que a esposa de Wíll ouviu rumores, só que não quis espalhar o problema, a tonta. De qualquer modo, já era tarde demais. Por certo, a primeira vez que ouvi alguma coisa concreta foi quando Lowick enviou uma petição ao rei, solicitando que você fosse declarado morto para que ele pudesse se casar com sua viúva, que estava esperando um filho dele. Então corri para cá, mas nem me permitiram entrar, quanto mais me deram uma explicação! Meu primeiro impulso foi tomar o castelo, mas não fazia sentido manter uma fortaleza sitiada se tal medida

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pudesse ser evitada. Ainda mais se tratando da propriedade de um parente tão próximo quanto um filho. Com tudo isso em mente, fui para o Sul a fim de contestar a petição de Lowick.

— O que se passou lá?

— Vi-me enredado entre palácios e tribunais especiais. Ao cabo de algum tempo, pus esse assunto de lado, pois percebi que nada seria resolvido de pronto. Além do mais, eu tinha conversado com um marinheiro que jurou ter visto você vivo em Constantinopla. Por causa disso, empenhei-me no envio de novas mensagens à busca da verdade.

— A petição de Lowick recebeu algum apoio de Rufus?

— Flambard tentou influenciar o rei por meio das perguntas de alguns clérigos de nariz grande, mas como eu tivesse levado comigo o marinheiro que afirmara ter visto você, ninguém quis tomar decisões apressadas. E por falar em pressa... — Lorde William pôs-se em pé. — É melhor eu voltar a Brome e cuidar dos meus assuntos. A menos que você me queira por aqui.

Galeran também se levantou.

— Não, meu pai. Não me sinto nem um pouco propenso à violência e, caso isso mude, Raoul é mais alto do que eu e saberá me controlar.

Lorde William disse qualquer coisa entre os dentes, depois se foi. Seu exército já havia levantado acampamento, e não demorou muito para que as ordenadas colunas de homens e carroças desaparecessem além da colina.

Ao olhar por uma janela, Galeran teve a impressão de que, sem o sítio, Heywood agora se parecia bem mais com um verdadeiro lar. Ele então ordenou a suspensão da vigilância sobre Jehanne e, por meio de um recado, disse-lhe que retomasse suas atividades, mas que não deixasse o castelo. Mesmo odiando ter de fazer isso, foi procurar Walter de Matlock, o capitão da guarda, para preveni-lo de que, se ela tentasse sair dali. Deveria ser contida inclusive pelo uso da força. Em seguida, chamou o carpinteiro e lhe encomendou cama e colchão novos, na esperança de que isso simbolizasse um saudável recomeço.

Por fim, ordenou que fossem reunidos seus melhores cavalos de passeio e, na companhia dos cães, dois promissores falcões e quatro soldados, partiu em pequena expedição para mostrar sua propriedade a Raoul e caçar um pouco. Se ele parasse para conversar com seus principais arrendatários e líderes das aldeias, a viagem poderia durar alguns dias. E se viajasse até outras pequenas propriedades que também pertenciam a Heywood, a expedição poderia durar semanas, só que :

isso seria levar a covardia longe demais.

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Capítulo IV

Quando soube que Galeran havia deixado o castelo, Aline correu a buscar a prima, repreendendo em pensamentos os que fugiam dos problemas em vez de enfrentá-los. Estava certa de que Raoul de Jouray tinha alguma coisa a ver com aquilo: ele parecia ser uma dessas pessoas escorregadias e sorridentes que preferiam caçar a encarar uma situação espinhosa.

De fato, uma situação muito espinhosa. Aline jamais iria se esquecer da mescla de alegria e puro terror que tinha experimentado quando Galeran reaparecera, dois dias atrás. Com medo do desastre que se prenunciava, ela fora encontrar Jehanne num dos pontos de observação do castelo, olhos fixos no homem que se aproximava em seu cavalo. Detivera-se a pouca distância da prima, relutante a imiscuir-se numa situação que mal chegara a compreender na sua totalidade.

Conhecia Jehanne muito bem e gostava demais dela. Alguém poderia supor que a máscara gélida que sua prima trazia no rosto fosse sinal de indiferença, mas Aline sabia ser essa a maneira que ela encontrara para dissimular sua dor. Uma maneira por certo infeliz, pois fazia com que todos interpretassem erroneamente tal expressão, sempre dura, empedernida.

Tinha sido assim quando Gallot morrera.

Essa lembrança trouxe nova onda de culpa ao peito de Aline. Ela, que adorava o menino, não tinha dado a atenção devida ao sofrimento da mãe desesperada; em vez disso, refugiara-se na solidão da capela, buscando consolo nas orações. Se tivesse permanecido ao lado de Jehanne para confortá-la, talvez sua prima não houvesse buscado refúgio nos braços de Lowick, e hoje não existiria Donata para mantê-la prisioneira de uma teia de problemas que só fazia se espraiar em todas as direções.

Se tudo tivesse sido diferente naquela noite, o regresso de Galeran, são e salvo, seria motivo de imenso e maravilhoso júbilo. E no entanto...

Quando um guarda entrara aos gritos pelo salão, anunciando que lorde Galeran se aproximava, Aline tivera a impressão de que Jehanne, após tantos dissabores, fosse enfim desmaiar. Nunca tinha visto a prima tão pálida, tão comovida, tão abalada. Lowick, ao contrário, mostrara-se simplesmente furioso, por certo, não demorara a perceber que continuar ali significaria morte certa.

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Bem no meio do salão, e com muita calma, Jehanne o encorajara a partir. Aline tivera ganas de sacudir a prima para que se manifestasse sobre o retorno do marido, já que ela falava como uma mulher preocupada com o bem-estar de seu amado e alheia a tudo o mais.

Ao menos Jehanne recusara-se a partir com Lowick, declarando diante de todos que não fugiria do legítimo marido. Mesmo assim, não parecia haver amor naquelas palavras.

— Jehanne! Minha dama! — protestara Lowick, e seu tom denotava emoção. — Como posso deixá-la aqui para enfrentá-lo sozinha? Você precisa vir comigo. Temo pela sua segurança, e pela segurança de nossa filha.

— Donata é pequena demais para uma viagem errática, Raymond.

— Então a deixe aqui. Aline a esconderá.

— Ela mama no peito.

— Arrume uma ama-de-leite.

— Não vou entregar minha filha aos cuidados de uma estranha, menos ainda para salvar minha própria pele.

— Você não terá como amamentar se ele estrangulá-la!

Lowick tentara agarrar o braço de Jehanne, mas ela lhe erguera seu punhal, e todos os homens reunidos no salão sacaram da espada. Entre eles os criados de Lowick que, em menor número, não teriam como reagir. Assim sendo só lhes restara rumar, na companhia de seu senhor, para os portões nos fundos da propriedade na calada da noite.

Jehanne os acompanhara até lá. Para assegurar-se de que a principal causa de seus problemas estava realmente de partida, Aline também fora.

No momento da despedida, Lowick havia tentado uma vez mais persuadir Jehanne a fugir com ele. Fracassado o intento, pôs-se de joelhos para beijar a mão dela.

— Que Deus a proteja, então. Irei ao bispo para pedir-lhe assistência. Buscarei um modo de proteger você, de fazer com que fiquemos juntos.

Jehanne nada dissera.

De sua parte, Aline tinha murmurado um até logo e rezado para que Lowick não demorasse a encontrar uma outra dama abastada sobre quem lançar suas garras.

O que não fora de todo justo, ela logo se arrependera enquanto corriam de volta à proteção do castelo. Raymond tinha genuína devoção por Jehanne, e talvez fosse esse o motivo pelo qual sua prima mostrara-se tão fraca com ele.

E Lowick estava correto em seu temor quanto ao bem-estar de Jehanne e Donata. Os homens não costumavam ser tolerantes para com esposas adúlteras e filhos

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bastardos, e tal constatação assombrara todos os moradores de Heywood no trans-correr de uma noite insone. Aline, que ajudara a preparar a abertura dos portões da fortaleza ao senhor que retornava após tão longa ausência, tinha rezado com fervor a Maria Madalena, padroeira das pecadoras.

O amanhecer fora recebido como o fim de uma espera angustiante, embora ninguém ali estivesse confiante no que o novo dia pudesse lhes trazer. Jehanne continuara aparentemente tranqüila, falara uma última vez com seus empregados certificando-se de que suas ordens haviam sido compreendidas, depois se arrumara e descera ao salão, onde se pusera à espera.

Ao perceber que a prima pretendia receber o marido com a filha bastarda nos braços, Aline afinal protestara.

— Donata é a única inocente nisso tudo, Jehanne. Você não pode colocar a vida dela em risco. Dê a menina para mim.

— Não.

A resposta viera num sopro de voz, e só então Aline dera-se conta de que a prima estava prestes a desmaiar de tanto medo. E isso indicava que também não devia estar raciocinando com clareza.

— Seja sensata, Jehanne. Não pode esperar que um homem seja cuidadoso num momento como este.

— Não vou escondê-la...

— Não se trata de esconder. Dê a menina para mim!

Mas Galeran já havia chegado, sua silhueta à entrada do salão como uma sombra ameaçadora destacada pelo clarear do dia. Contendo um suspiro, Aline retrocedera alguns passos, dizendo a si mesma que Galeran sempre fora uma criatura comedida e generosa.

Ao contrário dos outros homens.

Aline tinha cinco irmãos e pouquíssimas ilusões dos machos da espécie humana.

Fosse como fosse, a verdade era que custara a reconhecê-lo. Aquele seria mesmo Galeran de Heywood? Sua aparência era péssima: estava magro, abatido, barbudo, todo sujo, com uma cicatriz muito feia sob o queixo. E quando ele avançara em direção a Jehanne, Aline sentira o coração a ponto de parar.

Por sorte, tudo transcorrera de modo bem menos trágico do que ela imaginara. E ontem ele havia pedido a Jehanne que o banhasse. E naquela manhã ambos tinham passado algum tempo juntos nos aposentos senhoriais, embora sua prima tivesse saído de lá com a agora indefectível máscara de pedra.

Talvez Jehanne estivesse aliviada ao saber que ele iria se ausentar por alguns dias.

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Mas não foi alívio que Aline viu no rosto da prima quando a encontrou deixando a capela. Ao contrário: ela tinha os olhos marejados.

— Está chorando? — Lembrando-se de que Jehanne odiava que a vissem chorar, Aline apressou-se em avisá-la: — Donata está com fome.

Jehanne baixou a cabeça para dissimular que secava as lágrimas, depois tornou a erguê-la para dizer:

— Desculpe-me, acho que perdi a noção do tempo.

Retomando os modos calmos, ela rumou para o pátio, com a prima em seus calcanhares. Aproveitando-se da vulnerabilidade tão rara quanto momentânea, Aline ousou perguntar:

— O que irá acontecer?

— Não sei.

— Não perguntou a Galeran?

— Não.

— Por que não?

Jehanne deteve-se para olhar para ela.

— Porque ele também não deve saber.

— Você devia ter lhe perguntado. Estiveram juntos esta manhã.

— Mal conversamos.

— Mas vocês ficaram... Ah.

Virando-se, Jehanne se encaminhou para a escada que dava > acesso ao salão. Isso não foi o bastante para ver-se livre do questionamento da prima: Aline continuou atrás dela.

— E o que Raymond irá fazer?

Dessa vez Jehanne parou de supetão, como se um raio a tivesse atingido.

— Raymond?

— Sim, Raymond. Aquele alto, loiro, lembra-se? — Aline não conseguiu reprimir-se. — Ele não irá desistir. Provavelmente já está providenciando para chamar a atenção do rei sobre seu caso.

— É possível. No entanto, não vejo o que o rei teria a ganhar apoiando Lowick contra a família de Galeran. Contra um cruzado que retornou de sua missão.

— Então Raymond terá de desistir?

— Tenho medo de que decida mudar o rumo da sorte.

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Jehanne estava branca como cera e, erguendo as saias, correu para o salão. Ali, chamou pelo escriba e pediu-lhe que lesse em voz a alta a mensagem que ela havia lhe ditado mais cedo, um aviso para Galeran, dizendo-lhe que tomasse cuidado com possíveis ataques nos bosques.

Assim que o homem partiu para levar a nota a um cavaleiro, Aline não pôde deixar de colocar os pensamentos em palavras:

— Então você acha que Raymond tentará matar Galeran?

— Por que não? Por que não? — Jehanne pôs-se a andar de um lado para outro. — Se Galeran morrer, Raymond estará outra vez em condições de reclamar os direitos que julga ter sobre mim. — Parando de repente, ela levou as mãos ao peito. — Ah, meu Deus, se ao menos eu mesmo pudesse entregar a mensagem a Galeran!

— Acalme-se, Jehanne. Ele é capaz de cuidar de si próprio, principalmente tendo sido avisado do perigo que corre. E não está sozinho, já que levou aquele Raoul de Jouray por companhia. Um homem daquele tamanho deve servir para alguma coisa.

A observação fez Jehanne rir, e isso a ajudou a tranqüilizar-se um pouco.

— Você tem razão, Aline. E eu estou decidida a controlar meu temperamento impulsivo. Veja só aonde este meu gênio de cão foi nos levar!

— Então tudo irá melhorar. — Aline deu-lhe um abraço. — Mas Donata continua esperando, como você bem pode ouvir.

Subiram as escadas e, embora não o confessassem uma à outra, ambas rezavam pela segurança de Galeran.

A mensagem surpreendeu Galeran. Apesar de não conseguir identificar algum afeto especial naquelas palavras, julgou que houvesse nelas uma indicação de que Jehanne preferia o marido a Raymond de Lowick.

Depois de ajeitar a proteção sobre a cabeça, ele incitou o cavalo a prosseguir, mantendo os olhos agora em redobrado alerta sobre os campos que os circundavam.

Naquela noite, dormiram num mosteiro que prosperava sob' a proteção e as doações de Heywood. Na verdade, boa parte daquela riqueza se originara do desespero de Jehanne por um filho.

O Senhor dava a Seu povo, mas também exigia sacrifícios em troca.

Seria isso parte da resposta por que ele tanto procurava? Fora a contrariedade e a falta de fé dele na reconquista de Jerusalém que provocara a ira de Deus e o fizera tomar de volta Sua dádiva?

Enquanto terminavam uma lauta refeição no salão para hóspedes, Galeran perguntou a Raoul:

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— Você tem sido extremamente educado. Não vai mais me, fazer nenhuma pergunta? Não vai mais me dar conselhos?

— Você quer conselhos?

— Sim.

— E irá segui-los?

— Provavelmente não. — Então talvez não seja prejudicial dar-lhe um. Esqueça essa mulher, Galeran. Ela é uma feiticeira.

— Uma feiticeira?

— Pode zombar à vontade. Uma pessoa que está encantada não consegue reconhecê-lo. E está claro que os moradores do castelo pensam que ela faz magias.

— Os moradores do castelo pensam que Jehanne é estranha; porque ela não age como as outras mulheres. Ela não faz magias

— Então como foi parar na sua cama hoje?

Galeran caiu na risada.

— Precisa perguntar? Eu me sentia como um garanhão diante de uma égua no cio. Jehanne nem precisaria ter encostado em mim.

— Isso se deu porque ela o induziu a fazer aquele voto de fidelidade. Eu sempre lhe disse que uma promessa dessas não era natural.

— Fui eu quem me induzi a fazer tal promessa, Raoul. Parece-me correto, considerando o pedido que nós dois fazíamos a Deus. Além do mais, eu nunca quis outra mulher.

— Está vendo? Eu tinha razão. Isso é feitiço.

— Não, é devoção. Se um dia alguma mulher conquistar seu coração vadio, você provavelmente se sentirá do mesmo modo. Conheci e amei Jehanne antes que tivesse muito interesse nos assuntos da carne. E ela é uma mulher especial, não uma feiticeira. Jehanne é a pessoa mais prática e mais realista que conheço... O que me faz lembrar de outra questão: não torne a constranger Aline.

— A prima pequena e briguenta de sua esposa? O que fiz para constrangê-la?

— Pediu a ela que o banhasse.

— E por que não? Ah, eu também não pedi à sua mulher que me assistisse, sugeri que ela me mandasse uma das criadas.

— Isso seria demonstrar falta de consideração para com um convidado.

— O contratempo não ocorreria se a priminha querida tivesse se encarregado da tarefa. Aliás, por que ela não o fez?

Galeran serviu o restante do vinho em suas taças.

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— Aline sempre se sentiu muito acanhada no meio de homens, apesar de ser a única garota numa família de rapazes. Alguns anos atrás, pensando em ser freira, ela foi morar no convento de St. Radegund. Entretanto, abandonou a instituição porque Jehanne precisava de companhia durante a minha ausência.

— Se os homens a deixam nervosa, então é hora de retornar ao claustro.

— Imagino que Aline esteja esperando o momento apropriado. Mesmo pequenina, ela é uma criatura tinhosa; quando se sentir segura de que não vou machucar Jehanne ou o bebê, por certo irá fazer os votos.

— Seja como for, parece-me um desperdício.

— Por quê? Ela será a freira ideal: é inteligente, prática e não se interessa por homens.

— Não consigo imaginá-la num hábito. Mas já que as freiras são as noivas de Cristo, então que Ele fique com algumas bonitas e vivazes.

— Um dia, Raoul, o céu irá se abrir e um raio descerá das alturas para fazer de você um amontoado de cinzas.

— Até lá, espero ter desfrutado um bocado da vida!

— Mas então quer dizer que você acha Aline bonita e vivaz, é?

— Ah, não, nada disso. Atenha-se aos seus interesses, Galeran. "Bonita e vivaz" não significa que eu queira alguma coisa com ela.

— Eu só...

— O que você pretende fazer com relação à sua esposa?. Não imagina que lhe dizer "Ora, ora, são coisas que acontecem" vá solucionar o problema, espero.

Galeran gastou alguns instantes limpando a lâmina da faca, primeiro num pedaço de pão, depois no guardanapo de linho.

— Não, não creio que possa fingir que nada aconteceu quando ela tem a pequenina grudada ao seio.

— Ah, sim. Bem, bem... Mais cedo ou mais tarde, você encontrará uma saída.

Com a sensação de que não havia muito mais que dizer no momento, ambos retiraram-se para seus quartos.

O conforto da cama macia, porém, não levou Galeran ao sono. Ainda que não o quisesse, ele não conseguia deixar de pensar em Jehanne. Fazer amor com ela naquela manhã o tinha acalmado, mesmo assim uma grande fome, uma fome tão voraz quanto cruel, não fora aplacada: a necessidade de estar em harmonia com sua esposa como antes, brincando um com o outro como músicos a tocar seus instrumentos para neles buscar canções novas e antigas pelo simples prazer de produzi-las.

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Uma hora mais tarde, Galeran deixou a cama para ir à capela, onde se ajoelhou diante do altar e rezou. Primeiro, arrancou dos pensamentos a dúvida que antes o assaltara. Deus não tomava de volta Suas dádivas porque os humanos eram fracos. Galeran sabia ter dado tudo de si na Terra Santa, sabia que fizera o seu melhor nas batalhas. Mas se mesmo assim tivesse dado sinais de fraqueza ou descrença, Deus jamais tiraria a vida de seu filho para vingar-se dele.

Jerusalém e Jehanne podiam ter abalado sua fé na religião, porém não haviam alterado sua crença na bondade divina. Na verdade, a Terra Santa lhe trouxera uma visão mais profunda e mais enriquecida de Deus. Ali, pela primeira vez, acreditara verdadeiramente que Jesus de Nazaré existira; não o glorioso mestre das imagens das Escrituras, e sim um homem, um homem como todos os demais. Quando criança, Ele brincara com amiguinhos na poeira de Belém como Galeran tinha brincado em Brome. Quando jovem, buscara tomar Seu lugar no mundo. Quando homem, morrera em Jerusalém como Galeran por pouco não morrera.

O Cristo criara e consertara coisas, tinha rido e chorado, havia amado e fora traído pelo amigo mais próximo. Sofrerá tentações, e duvidara, tanto no deserto como no jardim do Getsêmani. Embora não tivesse tido um filho Seu, pranteara Lázaro no leito de morte. O Cristo, mais do que qualquer outro ser, poderia entender a dor de Galeran e lhe mostrar a luz que haveria de afastar as sombras do seu caminho.

Na manhã seguinte, ainda cautelosos, deram prosseguimento à viagem. Apesar do aviso de Jehanne, a expedição transcorria sem incidentes. Dia após dia, o sol ardia num céu muito azul, de onde as nuvens de algodão, assim como a brisa leve que soprava pelos campos, protegiam os viajantes de um calor infernal. Até mesmo Raoul começava a ser mais complacente para com o clima inglês.

Por todos os lados, insetos, animais e pessoas labutavam no preparo contra tempos mais árduos, e os trabalhadores dos campos tanto abençoavam como amaldiçoavam o sol que trazia vida. Nas terras pantanosas, as ovelhas estavam felizes por verem-se livres de sua pesada lã, pelos vales, os camponeses rejubilavam-se aos primeiros punhados de feno transformados em fardos. O gado pastava mansamente a relva espessa enquanto nas cabanas e nos solares seu farto leite demudava-se em queijos e manteiga. Pequenos exércitos de gansos, galinhas e patos corriam de um lado para outro atrás das crias, engordando-se para o abate do outono.

O campo achava-se em plena fartura, e os falcões de Galeran de quando em quando lhes traziam aves saborosas. Todas as noites, homens e cães caçavam lebres e coelhos para assar e também pelo prazer do esporte.

Aquela era a terra e a vida de Galeran, e tanto suas riquezas quanto sua prosperidade eram como bálsamo ao sofrimento que o acometia.

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Ainda assim, ele não se esquecera do alerta enviado por Jehanne. Em cada pequeno vilarejo perguntava por estranhos, e a resposta era sempre a mesma: ninguém vira desconhecidos por aquelas paragens. Assim, pouco a pouco ele foi relaxando seu estado de constante vigilância. Numa época em que as atividades ao ar livre eram intensas, seria muito difícil que homens armados se movimentassem pela região sem serem notados, e incomodava-lhe ter de viajar por suas terras como NC estivesse entre inimigos.

Em todas as aldeias e povoados, Galeran fizera questão de anunciar que estava de volta e à disposição de sua gente. Sempre cumprimentado com contagiante alegria, recebia queijos recém-curados, frutas maduras e peixes frescos em sinal de boas-vindas. Sim, era bom demais estar outra vez em seu lar... ainda que se sentisse circundado por uma pergunta silente: o que será de lady Jehanne?

Ninguém mencionara Gallot. Talvez porque ainda se sentissem constrangidos, talvez porque fosse uma dor para a qual não havia remédio e, desse modo, deveria ser esquecida. Além do mais, crianças morriam. Não era um fato dos mais penosos. Exceto para os pais.

Para o pai que chegara a conhecer seu filho.

Galeran não ouvira queixas a respeito de Raymond de Lowick e parecia-lhe claro que, no geral, ele administrara os assuntos da propriedade suficientemente bem, ainda que com mãos bastante pesadas. Tal autoritarismo não era incomum na Inglaterra de Rufus, contudo não era a maneira como Galeran escolhera cuidar de seus bens.

À medida que os dias iam passando, e que o pequeno grupo afastava-se mais e mais do castelo, ele percebia que as pessoas simples tinham ouvido muito pouco sobre o que se passara por lá. Embora soubessem que houvera problemas, não tinham conhecimento da infidelidade de Jehanne. Aos que haviam recebido notícias do nascimento do segundo filho dela e o felicitavam, Galeran evidentemente nada esclarecia. Era de se esperar que o povo simples não soubesse contar a passagem dos meses nem fizesse idéia do quão longe ele estivera; a grande maioria por certo imaginava que a Terra Santa devia ficar pouco além do País de Gales.

Sentado na relva sob uma árvore, discutindo com extremado zelo o lugar onde tinham início os campos de uma aldeia e onde os campos de outra terminavam, ele quase chegou a invejar a vida singela daquelas pessoas. Mas então lhe trouxeram um caso para julgar e Galeran ficou a pensar que, aos olhos de um aldeão, seus problemas eram tão complexos como os dele.

O povo de Threpton alegava que Biddy de Merton era uma ladra que não tinha mais o direito de continuar morando ali, agora que seu marido havia morrido. Ele estava propenso a aceitar o argumento, mas, ao olhar com atenção para a jovem? de expressão desafiante, que tinha as ancas empinadas e a boca num esgar de

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escárnio, Galeran viu, sob pose tão petulante, uma moça sozinha e assustada. Como ela iria sobreviver às adversidade vindoura sem roubar? Por outro lado, a jovem não lhe parecia uma pessoa naturalmente talhada para gestos de sólida e irretorquível honestidade.

Persona non grata que havia se tornado, Biddy não poderia continuar no povoado, assim ele lhe disse que fosse trabalhar em Heywood, prometendo-lhe que, se se comportasse bem, teria um lugar onde ficar e, quem sabe, até mesmo um novo marido. Se voltasse a furtar, no entanto, seria açoitada e expulsa do castelo.

O próximo caso que lhe foi apresentado dizia respeito a uma queixa contra Tom Fleter: o homem deixara seus animais escaparem e os bichos tinham destruído uma plantação de milho que sequer estava madura para a colheita. Galeran aplicou-lhe uma multa e uma séria advertência para que cuidasse melhor de seus animais.

Então o chefe do vilarejo interpôs uma reclamação contra o moleiro, afirmando que ele se apoderava de valores maiores do que seu quinhão. Não havia nada de novo naquilo, e a queixa não tinha como se provar, mas Galeran fez o acusado entender que, se fosse pego, iria arrepender-se amargamente de seus atos. E, a julgar por uma observação descuidada que o moleiro deixara escapar, Galeran suspeitou que Lowick demonstrara interesse por uma parte dos lucros ilícitos em troca de lhe dar proteção.

Então Raymond de Lowick andara enchendo o bolso à custa do povo de Heywood? Atitudes como aquela não eram raras, mesmo assim Galeran viu-se satisfeito com sua descoberta. Sabia que Lowick possuía algumas boas qualidades, mas era bom encontrar motivos para odiá-lo um pouco mais.

Antes de deixar o vilarejo, inspecionou a corrente de água que acionava a roda do moinho e certificou-se de que estava mantida no volume adequado e verificou tanto algumas cercas como a ponte para pedestres pelas quais a aldeia era responsável. E então, já montado em seu cavalo, desejou não ser tão covarde, pois assim estaria em casa, na cama com sua esposa.

Ainda que tomado por pensamentos conflituosos, ,Galeran descobriu que a viagem lhe dava a oportunidade de assentar-se à sua nova realidade. A perda do filho ainda era uma chaga, mas começava a cicatrizar. A situação com Jehanne, porém, não deixaria de feri-lo até que fosse resolvida.

Nenhum homem aceitaria a idéia de ter sido traído. Menos ainda toleraria a idéia de ver o filho de um outro homem nos braços da esposa, roubando parte do que lhe pertencia. Assim sendo, todos os homens enfrentavam o adultério com inflexível severidade.

Galeran não temia a opinião dos demais, pois, caso o desafiassem, ele os mataria. O que temia era uma possível ação das instituições contra Jehanne. Não tinha como matar a Igreja ou a Coroa.

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A maneira de evitar a interferência oficial seria ele mesmo tomar uma atitude firme. Uma atitude que, apesar de tudo, não se sentia capaz de tomar. Não podia mandar Jehanne para uma vida de penitência num claustro. Não podia tirar-lhe a filha. Não podia ao menos lhe dar uma boa surra, pois bastara um único tapa para fazê-lo remoer-se em culpa.

No caminho de volta a Heywood, tentava analisar a questão de todas as formas. Como Lowick por certo já sabia, a Igreja e a Coroa não iriam se preocupar com um problema doméstico a menos que tivessem como tirar algum proveito da situação. Só que, infelizmente, havia uma série de modos pelos quais tanto a Igreja quanto o rei poderia ver vantagens em intrometerem-se nos assuntos de Galeran.

Ou melhor, nos assuntos que diziam respeito à sua família.

Incitado por essa idéia, ele se deteve em Brome.

Brome e Heywood eram os dois castelos da região com muralhas em cortina de pedras. A diferença entre ambos era que Heywood assentava-se numa elevação natural do terreno, enquanto Brome descansava num morro alto perto de um rio cujas águas eram utilizadas para formar o fosso ao redor das muralhas. Escolhera-se aquele local porque ficava próximo à parte rasa do rio, que podia ser cruzada a pé.

A fortaleza amealhara força e prestígio ao lorde de Brome, mas também fazia dele e de sua família objetos de interesse político.

O pai de Galeran recebeu-os com grande satisfação.

— Você me parece mais animado, rapaz! Venham, vamos nos acomodar.

Lorde William guiou o filho e seu amigo Raoul ao salão. Ali, pediu que lhes trouxessem cerveja e, ao ver os visitantes tomarem os assentos que lhes indicara, sentou-se ao lado de Galeran, perguntando:

— E então, algum problema na propriedade?

— Não, tudo está praticamente como deixei. Só posso pensar que você cuidou de tudo a distância.

— Apenas de uma coisa ou outra, rapaz, uma coisa ou outra. Não tive certeza de que pudesse realmente confiar determinadas questões a uma mulher e não me agradava a idéia de que Lowick se encarregasse de certos assuntos. Nunca confiei naquele sujeito. Ele andou atrás de duas das suas irmãs ao mesmo tempo, sabia?

— Sim, lembro-me disso. — Galeran fez um muxoxo.

— Onde será que ele estará ciscando agora? — indagou Raoul, tomando a caneca de cerveja que um criado lhe oferecia. — Ou será que não desistiu deste terreiro?

Galeran disparou um olhar fulminante ao amigo. Não queria que aquele assunto fosse trazido à baila antes do tempo.

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— Qual seria a chance dele por aqui? — cogitou lorde William.

— Ele tem uma filha com a dama de Heywood — Raoul não se furtou a responder.

— E o que pode fazer disso? — lorde William insistiu.

— Muito pouco. Enquanto Galeran estiver vivo.

— Já basta disto, Raoul — interveio Galeran.

O pai dele tomou um longo gole de sua caneca, depois perguntou:

— Que fundamento Lowick teria para um duelo?

— Um duelo? — Galeran deu um riso seco. — Eu estaria louco se o desafiasse. Raoul está preocupado com soluções mais... sorrateiras.

— Ele não ousaria! — rosnou lorde William. — Eu o mataria antes que ele tentasse.

— Fico feliz em ouvir isso, mas seu amor por mim não salvaria a minha vida — observou Galeran. — No momento, quero apenas alguns homens de Brome para fortalecer a guarnição de Heywood.

— Por quê? — Lorde William franziu as sobrancelhas.

— A maior parte dos guardas de Heywood está lá há vários anos. Muitos nasceram e se criaram ali. O certo seria que fossem leais a mim, mas talvez escolham dedicar sua lealdade a Jehanne ou até mesmo a Lowick, a quem conhecem desde rapazinho. Quero estar seguro de que ele não vá tentar se apoderar do castelo, caso algo me aconteça. Os guardas de Brome que estivessem lá teriam por missão trazer Jehanne e o bebê para cá.

— Para que eu possa torcer o pescoço dela?

— Justamente você?

— Ah, eu sei... Esta pena que tenho das mulheres é minha maior fraqueza. Eu costumava ter o coração mais duro antes de me casar com a sua mãe. Mas os olhos de Mabelle tinham um brilho tão doce... Sejam cautelosos com as mulheres, vocês dois. Elas são capazes de nos virar do avesso.

— Raoul não corre esse risco — disse Galeran. — Ele as enreda em seus laços amorosos e depois as deixa a arrulhar como pombinhas.

— Essas manobras não serão bem-sucedidas por aqui, sir.

— O tom de lorde William era reprovador. — As mulheres do Norte são sensatas demais para seus jogos afrancesados.

— Se me der licença... Creio que vou verificar sua teoria.

— Com isso, Raoul deixou a caneca vazia sobre um aparador e avançou em direção a uma das criadas.

— Que sujeito mais...

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Rindo, Galeran foi sentar-se na poltrona em frente à de lorde William.

— Esse foi o truque que ele usou para nos deixar tratar de assuntos de família a sós, pai. Nem mesmo Raoul seria capaz de seduzir uma sensata mulher do Norte no pouco tempo que ficaremos por aqui.

Mas não era de Raoul que lorde William queria falar.

— Quero lhe fazer uma pergunta, meu filho: pretende ficar com Jehanne?

— Sim. Até a morte. E além.

— Ah, então ela se explicou. — Lorde William largou-se de encontro à poltrona. — Estupro. Eu sabia. Foi...

— Jehanne não explicou nada, mas duvido de que tenha sido estupro.

— Não explicou! — O velho senhor pôs-se em pé. — Pelas chamas do inferno, Galeran, obrigue-a a explicar!

— Como?

— Mas...

Galeran também se levantou, mas com calma.

— É melhor eu me ir, se quisermos chegar a Heywood antes que anoiteça. Prometa-me, meu pai, que irá cuidar dela, se preciso for.

Após um momento de silêncio, seu pai deu um suspiro profundo antes de afirmar:

— É evidente que cuidarei dela. E você, trate de fazer com que Lowick nunca tire proveito do que aconteceu.

— Prometa-me também que ela nunca ficará sem a filha.

— Quem mais iria querê-la? Pobre bastardinha...

— Lowick ficaria feliz em criar um monstro aleijado seja julgasse que isso poderia ajudá-lo a colocar suas garras sobre Heywood.

— Por falar nisso... — Lorde William passou o nó dos dedos pelos lábios. — É melhor tornar a se sentar, meu filho. Tenho algumas informações que você deveria ouvir com muita atenção.

Um pouco mais tarde, Galeran montou seu cavalo e fez sinal aos acompanhantes, que já esperavam por ele à garupa de suas montadas, avisando-os de que estavam de partida para Heywood. Dois de seus homens tinham ficado em Brome e quatro soldados da confiança de lorde William agora seguiam atrás dele.

— Por que essa expressão preocupada? — quis saber Raoul. — Seu pai lhe deu más notícias?

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— Mais ou menos. Agora é certo que Lowick está em Durham, com o bispo Flambard, que o recebeu calorosamente. Não posso imaginar nem mesmo Flambard tentando um assalto a um castelo ligado a Brome, mesmo assim...

— Se não atacar Heywood, o que mais o bispo pode fazer?

— Alegar que possui jurisdição sobre o caso de Lowick e Jehanne. Trata-se de uma questão que envolve pecado e também um cruzado. Uma questão da Igreja, portanto.

— Perigoso.

—Bastante. O tempo está se escoando, Raoul. Preciso tomar uma atitude.

— Não sei. Não me parece que esse bispo vá se meter com a sua família. Talvez o tempo conserte tudo.

— Será? Quando há um ferimento, deve ser tratado, caso contrário irá piorar em vez de melhorar. E um ferimento em vias de supuração por certo irá chamar a atenção do guardião do direito moral.

Seguiam para Heywood numa marcha ligeira, detendo-se em mais três vilarejos. Às vezes eram parados por homens que trabalhavam nos campos ou por viajantes que encontravam pela estrada. Galeran gostava da idéia de estar fazendo com que todos soubessem que estava de volta ao seu território, vivo, com saúde e no comando de tudo. Esperava também que seus modos tranqüilos convencessem sua gente de que o mundo seguia sem percalços e de que ninguém por ali tinha motivos para desassossego.

Na última aldeia daquela rota, Hey Hamlet, assentada junto a um cruzamento de vias quase fora da visão de Heywood, Galeran notou uma atmosfera de estranha inquietação. Então se pôs a conversar com os aldeões a respeito do tempo e das colheitas, à espera de que lhe dissessem o que se passava por ali.

Por fim, o chefe local indagou:

— Pensava encontrar lady Jehanne no castelo, lorde?

Galeran sentiu o coração falsear. Por um instante, não soube o que dizer, mas logo em seguida se deu conta de que não tinha como escapar à verdade.

— Sim. Por quê? Ela não está lá?

—Não está, não, senhor. Passou por aqui pouco tempo atrás, com uma pequena comitiva que contava com várias mulheres e um bebê. Parece que seguiam para Burstock.

Um caminho que partia de Hey Hamlet levava a Brome, o outro passava por Burstock, a meio dia de viagem dali. O castelo de Burstock pertencia ao tio de Jehanne, pai de Aline.

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— Entendo — disse Galeran, no tom mais calmo de que foi capaz. — Então acho melhor ir atrás deles. É tarde para que lady Jehanne esteja na estrada.

Custou-lhe muito mais do que poderia supor, mas ele não fez seu cavalo disparar. E ainda se obrigou a aceitar um punhado de mirtilo de uma senhora acanhada, e agradecer-lhe efusivamente. Só então conduziu sua tropa a um trote ligeiro até a estradinha margeada de árvores que levava a Burstock. Mas, uma vez longe dos olhos dos moradores de Hey Hamlet, bateu com toda a força nos flancos do cavalo, fazendo-o disparar num galope desembestado.

Jehanne estava fugindo para o amante.

Iria matá-la.

Não, isso não.

Dessa vez iria surrá-la de verdade e mantê-la em completo confinamento.

Lowick, no entanto, ele iria matar, sim. Com requintes de crueldade.

Ao final de uma curva da estradinha, viu a comitiva de Heywood bem ao longe, fora do abrigo das árvores, já cruzando uma região pantanosa. Eles também viajavam com pressa, certamente por terem ouvido o galope dos cavalos em sua perseguição.

Galeran sacou da espada.

Raoul correu para emparelhar seu cavalo ao dele, gritando:

— Não faça nada de que venha a se arrepender, meu amigo!

A resposta de Galeran foi imprimir mais velocidade à sua montaria.

A seta que partira do arco de uma besta foi alojar-se em seu elmo, jogando-lhe a cabeça para trás. Com o movimento, violento e inesperado, Galeran foi obrigado a puxar as rédeas de seu cavalo, e o animal se deteve com um tranco. A segunda seta cravou-se no seu escudo, a um dedo de distância da proteção de metal ao redor da estrutura em madeira.

Quase no mesmo instante, seus homens puseram-se num círculo ao redor dele, escudos erguidos. O ataque, contudo, parou tão abruptamente quanto havia se iniciado. Nenhuma outra seta foi desfechada. Nenhum homem armado saltou dos bosques silenciosos.

Erguendo o olhar a um ponto distante da estrada, Galeran viu que a comitiva que perseguia com tanto desespero sumia ao longe. Então rompeu a cortina de escudos à sua frente e mergulhou por entre arbustos para ganhar a floresta à margem do caminho.

Ruídos sibilantes denunciaram o homem que o atacara e que, agora corria em busca de salvar a própria pele. Com o único cuidado de não guiar seu cavalo a um lamaçal ou fazê-lo pisar em alguma fenda do terreno, Galeran disparou ao encalço

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do agressor, gritando a seus homens que se espalhassem e que não deixassem o maldito escapar. Latindo como loucos, seus cães correram atrás dele.

O disparo seguinte só não o acertou porque seu cavalo erguera a cabeça. A seta acabou por enterrar-se entre os olhos do animal, matando-o instantaneamente.

Galeran tentou se equilibrar, mas esparramou-se no chão em cima de folhas caídas, quase se ferindo com a própria espada. Assim que se pôs em pé, largou o escudo e correu na. direção do arqueiro, que tentava se livrar dos cachorros com as duas setas que lhe restavam.

Como um possesso, Galeran cortou ambas as mãos do homem e, antes mesmo que o infeliz pudesse gritar, atravessou-lhe o coração com a espada. Uma vez. Duas. Três...

Quando se deu conta do que acontecia, sentiu que Raoul o arrastava para longe do corpo caído sobre uma poça de sangue. Seu amigo tinha uma expressão zangada, como aquela que costumava turvar-lhe o rosto nas batalhas na Terra Santa.

Estariam outra vez em Jerusalém?

Galeran experimentou um estranho estremecimento ao longo da espinha, e a inusitada sensação o fez voltar a si. Raoul lhe entregou um odre de vinho, dizendo:

— Presumo que esse não seja o cadáver de Raymond de Lowick.

— Deus, não. — Galeran limpou a boca com as costas da mão trêmula, depois tomou um longo gole de vinho. — Raymond é quase tão alto quanto você, tem cabelos loiros e uma postura nobre. O tipo por quem as mulheres gostam de suspirar.

— Acredita que foi ele o responsável por isso?

— Quem mais o faria, Raoul?

— Como posso saber? Jehanne?

Afastando dos pensamentos a horrenda suposição, Galeran olhou para seus homens, que cuidavam de acalmar os cães e agiam como se não tivesse acontecido nada fora do comum.

— Bogo, Godfrey, cavem uma sepultura e enterrem o corpo. E então ele retornou à estradinha, acompanhado de perto pelo amigo.

— O que vai fazer? — O tom de Raoul era cuidadosamente neutro.

— Não se preocupe, já me acalmei. No entanto, estou curioso para ver se alguém voltará para contar quantos cadáveres jazem por aqui.

— Está imaginado que caiu numa armadilha? — Raoul devolveu-lhe a espada, que cuidara de limpar numa ramagem.

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— A isca parecia lançada, e aquele homem estava à minha espera. Mas não quero falar disso.

Galeran tinha medo de ouvir suas suposições na boca de outra pessoa, como também tinha medo de negá-las. Se não fossem expressas, talvez perdessem a força. Ainda em silêncio, ele guardou a espada à bainha e respirou fundo.

— O sol começa a se pôr — observou Raoul. — Vamos passar a noite aqui?

— Evidente que não. Seguiremos viagem a Burstock para uma visita ao tio de minha esposa.

Galeran ficou com o cavalo de Bogo e mandou o soldado de volta a Heywood, sob ordens de não contar a ninguém o incidente. Sob um céu que começava a perder a cor, e sem deixar de prestar atenção ao solo, guiou seu pequeno destacamento pelo restante do caminho. Chuvas recentes haviam deixado a terra macia o suficiente para registrar marcas de patas de cavalos, assim não lhe era difícil concluir que o séqüito de Jehanne não se detivera e nenhum de seus integrantes retornara ao local do ataque.

Seria possível que aquilo fosse de fato uma visita inocente a um parente nas imediações? Mas a comitiva de sua esposa parecia ter pressa e apertara o passo quando perseguida. Além disso, ele deixara ordens explícitas para que Jehanne não deixasse o castelo. E havia o arqueiro, obviamente.

Não, ele não iria pensar nisso tudo agora.

O Castelo de Burstock constituía uma estrutura mais simples do que as fortalezas de Brome e Heywood e desenvolvera-se, cerca de vinte anos atrás, ao redor de um velho solar situado perto de um rio. Um aterro fora erguido às pressas atrás do casarão, mas até hoje somente uma torre de guarda feita de madeira o ocupava. A família habitava o confortável solar de madeira no interior dos muros.

Àquela hora da noite, evidentemente, os portões estavam cerrados.

— Eles nos deixarão entrar? — perguntou Raoul, assim que se detiveram a pouca distância dali.

— É provável, mas prefiro que acampemos aqui fora durante a noite.

— E por quê?

— Quero ver o que acontecerá pela manhã.

— Não temos comida. E nosso precioso vinho está acabando.

— Finja que estamos em Lent. Não vamos fazer fogueiras. Seus homens não ficaram muito satisfeitos com o arranjo,

mesmo assim não houve queixumes. O que não foi de se admirar, em vista da explosão nervosa que Galeran havia tido.

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Lavaram-se no rio, alimentaram-se de frutas e deitaram-se sobre a relva úmida em busca de descanso. Enrolado em seu manto, Galeran via o sono esvair-se na pergunta que não deixava de atormentá-lo: Lowick estaria em Burstock, à espera do rival? Ele e Jehanne estariam juntos numa cama naquele instante, lamentando-se do fato de que ela tivera de fazer amor com o marido para lhe desviar as suspeitas?

Jehanne não tinha outro motivo para deixar a segurança do castelo. E lhe fora ordenado que permanecesse lá. Se estivesse esperando por notícias da morte do marido pelas mãos de um arqueiro, então saber que ele retornava são e salvo poderia tê-la deixado em pânico, obrigando-a a fugir para o refúgio mais próximo.

Ainda que essa hipótese fosse plausível, Galeran tinha dificuldade em aceitá-la. A trama cruel não combinava com Jehanne. Nem com a mensagem que ela lhe enviara... A menos que o recado fosse mais um truque para afastá-lo de quaisquer suspeitas.

Santo Deus, parecia que mais nada fazia sentido!

Alguns dias atrás, Galeran podia jurar que Jehanne era ainda a mesma mulher honrada de sempre e que o pecado que havia cometido não passara de uma aberração. Agora, via-se obrigado a perguntar se não se deixara enganar pela esperança e pelo desejo. Fosse como fosse, a realidade era uma só: buscava a verdade, buscava compreender o que se passava, e encontrara apenas confusão e aturdimento.

Galeran acabou pegando no sono, mas acordou aos primeiros ruídos do amanhecer, fatigado pelo parco descanso e umedecido pelo orvalho. Levantou-se e esticou os músculos, depois foi examinar Burstock.

Lars, o guarda de vigia, sacudiu a cabeça para indicar que nada acontecera ainda. Mas os galos cantavam e, em algum lugar dentro dos muros, um cachorro latia. Enquanto o sol transformava o róseo do céu em dourado, as pessoas que moravam na aldeia mais próxima e trabalhavam no castelo iam cruzando os portões, que já tinham sido abertos para dar passagem aos seus habitantes.

Colocando-se ao lado de Galeran, Raoul queixou-se de que tinha fome.

— Muito bem — disse Galeran — vamos entrar e esclarecer toda essa história.

Cruzaram os portões com seu estandarte desfraldado. Por acreditar que Jehanne viera esconder-se ali, ele imaginava que seriam detidos; os guardas, porém, apenas ergueram suas lanças em sinal de reconhecimento e fizeram sinal para que pas-sassem. Tarde demais Galeran cogitou que aquilo pudesse ser uma outra armadilha, mas, ainda que o mundo inteiro tivesse enlouquecido, estava pronto a jurar que o tio de Jehanne, Hubert, não seria capaz de golpe tão baixo.

Olhou ao redor à procura de traição e perigo. Tudo o que viu foi a agitação do dia-a-dia nas imediações de um castelo pacífico. Em Burstock, o pátio continha a casa do

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velho solar e também os costumeiros abrigos para animais e oficinas de artesãos, na verdade, assemelhava-se mais a uma pequena aldeia do que ao entorno de um castelo. Enquanto eles avançavam, pessoas conversavam, crianças brincavam em meio a aves empertigadas, mulheres enfiavam roupas em grandes tinas.

Quase ao mesmo tempo, cavalariços vieram cuidar de suas montarias e Hubert de Burstock apareceu para recebê-los. O pai de Aline era um homem de baixa estatura e compleição compacta, conhecido tanto pela força física quanto pela honestidade ríspida.

De repente, Galeran sentiu-se relaxar. Como pudera imaginar que Hubert iria favorecer um encontro entre amantes proibidos?

— Um mau negócio, Galeran — o homem foi logo lhe dizendo.

Como não soubesse a que negócio o pai de Aline se referia, Galeran fez a pergunta que lhe pareceu menos comprometedora:

— Jehanne está bem?

— Sim, sim. Preocupada, evidentemente, mas ilesa. Venham, vamos entrar. Já fizeram o desjejum?

— Não.

— Então precisam se alimentar! Venham.

Hubert os conduziu em direção às largas portas do solar com cobertura de palha, e em suas maneiras não havia nada que indicasse a menor má vontade para com o marido de sua sobrinha. Assim que entrou no grande salão ensolarado, sustentado nas laterais por enormes vigas de madeira, Galeran correu a procurar Jehanne com os olhos. No entanto, ela não se achava ali.

Hubert teria mentido?

Mas Hubert de Burstock nunca mentia.

Como calculasse que ainda não era necessário executar uma busca no local por meio da força, e também porque estivesse faminto, Galeran deixou-se guiar até um lugar na longa mesa fixa, sobre a qual estavam dispostas travessas com pão e carne, além de jarras com cerveja.

Hubert sentou-se ao lado dele e não perdeu tempo em perguntar:

— Que atitude pretende tomar? A situação é bastante delicada.

— É verdade. — Galeran serviu-se com a calma de que foi capaz, depois indagou: — O que me aconselha?

— Talvez não fosse má idéia livrar-se do bebê. A pequenina por certo seria muito bem cuidada e, tão logo você emprenhar Jehanne de novo, ela se esquecerá da menina.

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— Não estou certo disso.

— Se Jehanne sofrer, será bem-feito! Depois do que fez, que direito ela tem de colocar seus interesses acima dos interesses de todos nós?

— Nós? — Sem conseguir entender como Hubert poderia ser prejudicado pelos feitos de Jehanne, Galeran resignou-se a comer.

— E tem mais — prosseguiu o tio dela. — Assim que Jehanne tiver outro filho, que por sorte haverá de ser um menino, qualquer pretensão que essa menina pudesse ter em relação a Heywood perderá grande parte do fundamento.

— Isso é verdade. Mas a experiência me mostrou que ter filhos e fazer com que eles sobrevivam não é tarefa fácil.

— Entendo o que você quer dizer, Galeran. De qualquer modo, Flambard não irá gostar nem um pouco de saber que Jehanne sumiu com Donata. E ficará menos satisfeito ainda quando souber que dei abrigo a ambas aqui. E eu não quero complicações com a Igreja.

Galeran teve a impressão de que só agora aquela conversa parecia ter alguma lógica. Devolvendo ao prato o pedaço de chouriço que ia levar à boca, quis se certificar de que entendera corretamente o que Hubert tinha acabado de dizer.

— O bispo de Durham quer Donata?

— Mas disso você já sabia, não é mesmo? O que ainda não se sabe é como aqueles idiotas pretendem cuidar da menina sem mulheres ou uma ama-de-leite para...

— Galeran! — Jehanne, que acabara de sair de um dos aposentos particulares nos fundos do salão, correu ao encontro dele. — Oh, os Céus sejam louvados! Que medidas você já tomou?

Contente por não ter de falar com a esposa com a mente turva pela desconfiança, Galeran se pôs em pé e segurou-lhe as mãos.

— Não tomei medida nenhuma. Vim direto para cá.

— Por quê?

Excelente pergunta. Se sua mulher e a filha dela estavam em segurança num outro lugar, ele deveria ter ficado em Heywood para lidar com os inoportunos homens da Igreja. Isso, obviamente, se soubesse o que estava se passando.

— Seria melhor conversarmos a sós, Jehanne.

Hubert acenou um gesto afirmativo, e ela levou Galeran aos aposentos onde estivera até então. A câmara era pequena, mas tinha uma ampla janela com vista para o jardim de ervas do castelo, por onde entravam o sol e os aromas da manhã.

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Aline achava-se lá, segurando Donata. Ao ver Galeran, no mesmo instante se preparou para deixar os aposentos. Ele a deteve.

— Dê-me a criança.

Ela olhou para Galeran sob suas sobrancelhas severas, porém não fez menção de lhe obedecer.

— Faça o que ele pede, Aline — disse Jehanne.

Aline entregou-lhe o bebê junto com um olhar de reprovação, depois deixou o dormitório.

Galeran baixou o olhar aos grandes olhos azuis, delineados por cílios longos e claros, e aos pequeninos lábios que pareciam prontos a sugar.

— Aline tem medo de mim — ouviu-se dizer.

— Não. O que todos tememos é a fúria que você traz dentro de si.

Capítulo V

Galeran olhou para ela.

— Inclusive você?

Jehanne foi sentar-se num banco junto à janela.

— Acho que até desejo que essa sua raiva venha para fora. Esperar até que isso aconteça é que é muito difícil.

— Então deixe que essa espera seja o seu castigo.

Ainda sem tirar os olhos dele, Donata fez um ruído melindroso. Galeran tornou a olhar para o bebê. E percebeu que não seria capaz de odiar uma criaturinha inocente.

Agitando-se toda, a menina voltou a choramingar, dessa vez com mais estridência. Ele a balançou por alguns momentos, mas o choro agora era alto, bastante queixoso.

— Ela ainda tem fome — explicou Jehanne. — Eu estava amamentando Donata quando vieram me dizer que você havia chegado.

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Galeran entregou-lhe a criança. Então viu sua esposa erguer a túnica, libertar um dos seios do corpete de algodão branco e oferecê-lo à filha, que, com um suspiro aliviado, tomou o mamilo um pouco escurecido.

Exatamente como Gallot já teria... Afastando a idéia triste, ele perguntou:

— Podemos conversar enquanto você a alimenta?

— Claro que sim.

Galeran apoiou um dos pés numa arca e curvou-se sobre o joelho erguido.

— Quando os homens do bispo chegaram?

— Ontem, bem cedo. Suspeitei que alguma coisa não estivesse bem, então ordenei aos guardas na muralha que permitissem somente a entrada dos três monges. O irmão Forthred pareceu desapontado ao saber que você não se encontrava no castelo. Acho que ele contava com seu apoio.

— Meu apoio significaria deixá-lo levar a menina?

Em resposta, ela acariciou a penugem loirinha que cobria a cabeça da filha.

— Jehanne, uni-me à Cruzada e fui lutar do outro lado do mundo para que você tivesse um filho. Será que imagina que eu realmente seria capaz de lhe arrancar um rebento dos braços?

— Oh, Galeran...

— Fique calma e me conte tudo o que aconteceu.

Jehanne fez um esforço para se recompor, depois declarou:

— Raymond confessou-se com o bispo Flambard, e Flambard lhe ordenou uma penitência por seu pecado: criar ele mesmo a criança concebida através da ligação espúria! E eles vieram buscá-la para levá-la a Raymond!

— Uma trama ardilosa.

— Eu não podia deixar que a levassem! Protestei com todas as alegações que me ocorreram, mas o irmão Forthred não parará de falar em pecados e perdições, prometendo a danação a todos os que me auxiliassem. Tive medo de que o povo de Heywood acabasse entregando Donata a ele só para fazê-lo parar com as ameaças.

— E como conseguiu fugir de lá?

— Fingi ceder e disse que iria buscá-la, mas fui mandar um recado ao capitão da guarda. Não tinha certeza de que Walter iria me apoiar contra a Igreja, principalmente porque você havia deixado ordens expressas para que eu não deixasse o castelo. Mas, graças a Maria Bendita, ele me ajudou. Às claras, Walter pediu que se formasse um grupo de homens para ir ao seu encontro a fim de avisá-lo do que estava se passando; à furtiva, cuidou para que eu, o bebê e Aline saíssemos pelos fundos da propriedade e dali nos ajudou a ganhar a estrada. Mas

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sei que Forthred virá atrás de nós. E, por mais que pense, não consigo imaginar o próximo lugar onde iremos nos esconder.

— Jehanne...

— Ninguém consegue se opor à Igreja, Galeran! O que haveremos de fazer?

— Numa localidade distante como a nossa aqui, no Norte, não é fácil nos atingir.

— Não estaremos seguros por muito tempo. E Flambard tem poder sobre a Coroa também. Ah, Deus!... Por que tenho de ser fraca e não fazer o que esperam de mim?

— O que quer dizer com isso?

Galeran pensou que ela não fosse responder. No entanto, Jehanne desviou os olhos para a parede à sua frente e, baixando a voz a um murmúrio, explicou:

— Quando... quando descobri que tinha um filho no ventre, pensei em me livrar dele. Imaginei os problemas que iria trazer... a nós dois. E até cheguei a preparar as ervas. Mas então percebi que... que não podia. E não fui capaz.

— Teria sido um pecado. E um pecado somado a outro não tem como trazer o bem. Não havia, e não há, como anular o seu adultério, Jehanne.

— Sei que não. Mas eu poderia ter evitado este gosto amargo ao seu retorno. Não escondendo a minha estupidez, e sim evitando esta ignomínia aos olhos de todos, sem a presença de uma criança para confundir ainda mais a questão. Eu teria lhe contado tudo, Galeran. Eu jamais mentiria para você, jamais lhe ocultaria o que quer que fosse.

Sentindo que Donata largara seu peito, Jehanne baixou o olhar à filha e viu que a pequenina adormecera. Então arrumou as próprias roupas e ergueu a menina de encontro ao ombro, batendo-lhe de leve às costas. Donata deu um arrotinho e sorriu, como se sonhasse um sonho muito doce.

Galeran estendeu os braços.

— Eu gostaria de segurá-la mais um pouco.

— Espere. Ela está molhada.

— Ah!... Ainda há muito que preciso aprender a respeito de crianças.

Jehanne estendeu uma manta no chão e pôs-se a limpar e trocar o bebê. Galeran não pôde deixar de encantar-se com o corpinho tão pequeno, de aparência macia e absolutamente perfeita. Donata não acordou. Envolvendo-a novamente em roupas limpas e na manta, Jehanne acomodou-a no berço.

— Às vezes me pergunto por que isso tudo tinha de acontecer conosco — ela então disse baixinho. — Com você, em particular...

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— Se Deus tivesse nos dado um filho logo nos primeiros anos de nosso casamento, nossas vidas seriam completamente diferentes. Assim, tudo o que houve deve ter sido da Sua vontade.

— Não é verdade. Foi tudo resultado da minha má intenção e do meu orgulho, e somente eu deveria pagar por isso.

Fascinado pela pequena adormecida, Galeran foi sentar-se ao lado do berço, questionando a esposa num tom reprovador:

— E pretende pagar entregando a inocente?

— Não... Eu tento, Galeran, mas não consigo ser passiva.

— Nem eu queria que você fosse. E como não estamos dispostos a entregar Donata aos lobos, seria melhor que começássemos a pensar que medidas tomar contra eles, não?

O bebê se mexeu e, no mesmo instante, Galeran pôs-se a balançar o berço. Donata retornou a um sono profundo.

— Como você é capaz de aceitá-la? — perguntou Jehanne, num fio de voz. — Como é capaz de aceitar tudo?

— Poderia ser diferente? Você quer ser açoitada? Trancafiada? Arder numa fogueira? Quer que eu sufoque essa criança? Não me provoque, Jehanne. Não exija demais de mim. Vamos lidar com os problemas mais simples primeiro. Lowick estava com os monges?

— Não. Você não chegou a falar com Forthred?

— Não voltei a Heywood. Disseram-me que você tinha vindo para estes lados, e eu fiz o mesmo.

Olhando-o de cima a baixo, só então Jehanne percebeu que ele tinha as roupas sujas de sangue. Galeran tratou de explicar:

— Alguém tentou me matar.

— O quê?

— Ontem. No caminho entre Heywood e Burstock, quando pensei que sua comitiva estivesse fugindo de mim.

— Então... então eram vocês que estavam no nosso encalço? Pensei que fossem os homens do bispo! Mas... Alguém tentou matar você?

Galeran percebia que a confusão e a surpresa de sua esposa eram genuínas. E sentiu um alívio imenso por isso.

— Havia um homem com uma besta à beira da estrada. Ele disparou contra mim.

— Santo Deus! E onde está esse sujeito agora?

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— Debaixo da terra.

— Louvado seja! Mas... Não teria sido melhor poupar-lhe a vida e interrogá-lo?

— Acho que eu não estava pensando com muita clareza. Mesmo assim, não é difícil supor quem esteja por trás disso tudo.

— Raymond? Não sei... Ele não é um homem perverso, Galeran. Você o conhece.

— Ele tentou me matar, Jehanne.

— Sim, você tem razão. E eu...

— Minha fúria enfim veio à tona. — Galeran pôs-se em pé. — O que não significa que não possa retornar.

No salão, Raoul viu Aline deixar os aposentos para depois deter-se ali, diante da porta fechada. Não podia ver o rosto da moça, apenas seu corpo pequeno, de formas roliças. Por algum motivo, resolveu ir até ela.

— Lady Aline... É impressão minha ou você está preocupada?

Girando sobre os calcanhares, ela o encarou.

— Há problemas de sobra por aqui para quem se preocupa com alguma coisa além dos prazeres básicos.

— É mesmo? Por que não se senta naquele banco e me fala desses problemas?

— Está tentando me fazer de tonta, sir? Você sabe muito bem o que está se passando.

Aline fez menção de se afastar, mas ele a segurou pelo braço. Ao vê-la corar até a raiz dos cabelos, Raoul concluiu que devia ser raro alguém tocá-la daquela maneira.

— Não sei o que se passa por aqui, lady Aline. Mas creio que deveria me inteirar da situação.

— O que quer dizer com isso?

— No caminho de volta a Heywood, fomos avisados de que lady Jehanne tinha vindo para cá e também viemos. Tive a impressão de que seu pai deu informações importantes a Galeran, mas, como ambos falavam muito baixo, não consegui saber o assunto de que tratavam. Assim sendo, peço-lhe o imenso favor de me colocar a par dos últimos acontecimentos.

Aline hesitou um breve instante. Porém, quando o francês largou-lhe o braço, fez um gesto assertivo e dirigiu-se ao banco que ele apontara.

Evitando pensar que o mero caminhar da prima de Jehanne provocava-lhe imensa vontade de beijá-la da cabeça aos pés, Raoul sentou-se ao lado dela, mas não perto demais. Não teria chegado aos vinte e oito anos de idade se desvirginasse moci-nhas na casa do pai delas.

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— E então, o que fez lady Jehanne fugir para cá?

O belo rosto de Aline ficou muito sério, e ela olhou-o nos olhos.

— Raymond de Lowick, que Deus lhe apodreça determinadas partes do corpo, decidiu-se por uma nova linha de ataque. Fez devotada confissão ao bispo e aceitou a penitência que lhe foi imposta. E vendo a baderna que seu desejo desgovernado causou, estou citando as palavras usadas pelo irmão Forthred, Raymond resolveu consertar o malfeito tomando para si mesmo o fardo de criar o infeliz produto de sua união espúria.

— Uma manobra esperta. Você acha que isso tudo foi planejado por ele?

— Não sei. Sir Raymond não é de todo estúpido, mesmo assim não estou certa de que teria pensado numa rota tão intrincada para chegar ao seu objetivo. Talvez o bispo... Embora eu não saiba que serventia teria isso tudo para Flambard.

— Ah, sim, Galeran havia mencionado o bispo Flambard... Seja como for, a Igreja adora ter os homens na palma da mão, e eu imagino que o pai de Galeran seja um estorvo no caminho do inflamado bispo. Que tipo de homem ele é?

— Ninguém sabe de onde ele veio, sabe-se apenas que serviu ao Conquistador e agora ocupa o posto mais influente junto a Guilherme Rufus. Sua principal função é arrecadar dinheiro para o rei e para si mesmo. O nome dele é uma maldição tanto para os laicos quanto para os clérigos, pois Flambard não poupa nem uns nem outros.

Contendo o impulso de alisar com a ponta do dedo a testa que ela franzia ao falar, Raoul julgou conveniente ater-se ao assunto em questão.

— Então Flambard se mantém porque é protegido pelo rei?

— Sim, embora no ano passado houvessem tentado matá-lo. Ele escapou do ataque, e agora não vai a lugar nenhum sem a companhia de homens armados.

— Entendo. Mas, se o tal irmão Forthred tivesse conseguido levar a criança, lady Jehanne teria ido junto?

— E como poderia ser diferente, se eles não haviam providenciado uma ama-de-leite?

— Muito esperto...

— Está insinuando que o propósito deles era levar minha prima, e não Donata?

— Não vejo que interesse um prelado idoso e um jovem lorde possam ter num bebê de seis meses de idade.

— Santo Salvador, essa idéia me apavora... Mas você está um bocado ensangüentado, sir. Isso é sinal de que já houve um confronto por causa da visita dos monges?

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Baixando o olhar, Raoul deu-se conta de que tinha manchas de sangue pelas vestes. Era o preço que pagara por conter a explosão furiosa de Galeran.

— Preciso tirar esta armadura para mandar limpá-la. E também tomar um bom banho... Não é mesmo, lady Aline?

— Ah, não!... Quero dizer, claro que sim. Venha. Temos aposentos próprios para banho aqui.

Intrigado, satisfeito e um pouquinho excitado, Raoul acompanhou-a até um outro canto do salão e dali até uma pequena câmara onde havia braseiros e uma tina de madeira. Como fosse verão, os braseiros achavam-se apagados mas uma lareira numa das laterais do aposento irradiava calor para o ambiente. Dois caldeirões grandes estavam suspensos sobre as brasas, o que proporcionava água quente para quem quisesse se banhar.

— Excelentes acomodações — ele observou.

Aline estava curvada sobre uma arca, de onde tirava os panos de que iria necessitar. Grandes e arredondadas, suas ancas cobertas por um vestido em rico tecido vermelho chamaram a atenção de Raoul. Ela não usava roupas próprias a uma jovem que desejasse tornar-se freira. Ele perguntou-se por quê, calculando que seria melhor para todos se Aline de Burstock tivesse sinais aparentes indicando que pertencia a Cristo.

Ela se virou de repente. Ocupada com as roupas, não percebeu que Raoul estivera a admirá-la com olhos gulosos.

— Velhos solares como este possuem algumas vantagens — comentou. — É mais fácil construir cômodos pequenos quando se trabalha com madeira. A desvantagem maior, no entanto, diz respeito à defesa.

— Foi por isso que seus antepassados normandos conseguiram tomá-lo?

— De jeito nenhum. — Aline afastou mechas soltas do penteado do rosto afogueado. — A batalha de Hastings deixou minha avó viúva, e ela foi dada em matrimônio ao meu avô. Até onde se sabe, ambos foram muito felizes e ninguém nunca tentou tomar Burstock.

— Um lugar de bênçãos. Aline acenou em sinal de concordância, então foi abrir a'-

porta para chamar ordenanças. Em questão de instantes, dois homens vieram ajudar Raoul a tirar a cota de malha e levá-la. para limpar, outros dois vieram despejar água dos enormes caldeirões na tina e levar os recipientes para enchê-los novamente. Depois foi a vez das criadas, que traziam jarros de água fria, pequenas bolsas com ervas e um frasco de óleo.

Quando tornou a se ver a sós com Aline, Raoul deixou que a curiosidade falasse mais alto:

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— Vai tornar-se freira, lady Aline?

— E essa a minha intenção.

— Então talvez seja contra sua vontade assistir um homem; a banhar-se.

Ela olhou-o por um breve momento, a tentação estampada em seus olhos azuis, mas depois balançou a cabeça.

— Não se preocupe com isso. Não há nada pecaminoso em tal cortesia.

— Mas você tem uma cunhada que é a responsável pelos arranjos domésticos, não tem?

— Catherine. Ela está no convento de St. Radegund, onde foi cuidar de assuntos de família.

Raoul decidiu que fizera o seu melhor na tentativa de ser virtuoso. Por certo não iria requisitar a assistência de Jehanne, já que aquela não era a casa dela, e exigir a presença de uma criada seria um insulto a Aline, que agora enrolava para o alto do cotovelo as mangas do vestido carmim. Contendo um sorriso, ele pôs-se a despir suas roupas.

Era difícil dizer por que aquela jovem o intrigava tanto. Talvez fosse pelo fato de ser tão contraditória. Aline era tão direta e prática quanto a mãe dele; além de jovem, ruborizava com freqüência e rapidez assombrosas. Mostrava-se quase sempre nervosa na presença de homens, especialmente os mais novos, um dado estranho para uma moça com cinco irmãos; todos pareciam pensar que suas reações fossem mais um prova de vocação inconteste à vida religiosa, mas ele não estava tão certo disso.

A voz dela lhe interrompeu as divagações:

— Esse sangue em suas roupas não é de Galeran, certamente.

— Não, não é. É de alguém que encontramos pelo caminho.

Aline virou-se novamente assim que uma nova leva de criados entrou no cômodo para recolocar os caldeirões em seus lugares, atiçar o fogo na lareira e encher as jarras com água pura o enxágüe. Raoul esperou que eles saíssem e, quando se viu completamente despido, sentou-se no fundo da tina. A água eslava na temperatura ideal, aromatizada por uma bolsa de ervas e um filetezinho de óleo.

Aos poucos, Aline tornou a virar-se: primeiro os olhos, depois a cabeça e então, após se assegurar de que ele estava imerso na tina, girou o corpo inteiro e se aproximou. Utilizando-se do pote de sabão e de um pano, cuidou de lhe esfregar as costas. Raoul apanhou um outro pano e pôs-se a lavar o peito, as pernas e os braços. Como era comum entre estranhos, ele limpava as partes do corpo que pudesse alcançar.

— Então quer mesmo tornar-se freira, lady Aline?

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— Sim.

— Quais são as normas que deve seguir enquanto estiver longe do convento?

— Nenhuma. Ainda não fiz os votos para o noviciado.

— Por que não?

— Estava prestes a fazê-lo quando Galeran uniu-se à Cruzada, então tive de ir para Heywood para ficar com Jehanne.

— Sente saudade do convento.

— Claro que sim.

Mas a voz dela não transmitia convicção. Interessante.

— Não deve ser fácil ser dócil e obediente. — Como ela se mantivesse calada, Raoul prosseguiu: — Principalmente quando as ordens são tolas. É comum isso acontecer numa batalha.

— E mesmo assim você obedece?

— Geralmente. É assim que os exércitos funcionam. E também as comunidades religiosas, imagino. Por isso, continuo me perguntando por que você quer ser freira.

— E por que não?

— Dizem tratar-se de uma vida estéril.

— Quem diz isso são aqueles que não pensam em outra coisa a não ser as compensações carnais. — Ela endireitou-se e atirou o pano ao chão. — Está pronto para se enxaguar?

— Num instante.

Satisfeito por Aline ter se colocado num lugar onde ele conseguia vê-la, Raoul fingiu concentrar-se em limpar os pés enquanto a observava de soslaio. Gostava do que via: as faces coradas, os cabelos loiros umedecidos pelo vapor da água, as curvas generosas... Sentindo seu corpo responder ao estímulo visual, ele deixou escapar um suspiro.

— Que trabalho espera fazer no convento, lady Aline?

— Rezar, é claro. Cuidar dos desafortunados. E também trabalhar com números. Fazer contas.

— Uma mulher casada também poderia fazer tudo isso.

— Só a de um mercador, que homem deixaria a esposa saber de todos os seus negócios?

— Então talvez você possa se casar com um mercador.

— Eu o faria de boa vontade, mas meu pai jamais o permitiria.

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— E por isso não se importa em ficar solteira pelo restante da vida?

— Ainda não está pronto para enxaguar, sir Raoul? A água vai esfriar.

Sem maiores avisos, ele se pôs em pé. A primeira reação de Aline foi virar os olhos para o teto, mas depois, retomando o controle, ela lhe entregou a água limpa para que ele a derramasse sobre o corpo. Em seguida, estendeu-lhe a toalha.

Deixando a tina, Raoul enrolou-se na grande toalha branca e, sem resistir a um impulso, correu o dedo pela face dela.

— Obrigado, lady Aline.

Aline tomava o cuidado de não tirar os olhos dos dele.

— Não há de quê. Apenas cumpri uma obrigação.

— Pois a cumpriu muito bem, ainda que não fosse de seu agrado. Espero não tê-la incomodado demais.

— Não, não...

— Deve ter me achado um homem bastante grande. Seu pai não é muito alto.

— Um homem é um homem. Tamanho não conta.

Antes que ele pudesse fazer mais algum comentário, Aline virou-se e começou a recolher os panos que ambos haviam utilizado. Mesmo tratando de se enxugar, Raoul voltou à carga:

— Tamanho às vezes é uma vantagem. É bom que um guerreiro seja grande e forte. — Como ela não mordesse a isca, ele mudou de tática: — Se me fizesse um favor, lady Aline, tenho roupas limpas que estão no bornal que deixei no salão...

Antes que ele pudesse ao menos terminar o que dizia, Aline já tinha disparado pela porta.

Ao notar que havia certo alvoroço no pátio, Raoul deixou a toalha de lado e foi espiar pela janela. Teve a impressão de que alguém acabara de chegar, no entanto lhe era impossível ver o pátio dali. E Aline de Burstock certamente era um assunto mais interessante do que qualquer visitante que pudesse chegar à casa dela. Pensou em lhe dizer que sua família tinha vários negócios no ramo mercantil e que...

Aline estava de volta, e entrara correndo para anunciar:

— Forthred está aqui!

Dessa vez, ela não desviou o olhar do corpo nu bem à sua frente. Em vez disso, ficou a admirá-lo, boquiaberta, estudando-o pedacinho a pedacinho como se ele fosse um valioso manuscrito.

Quando sentiu que estava a ponto de ter uma ereção, Raoul foi até ela e, fazendo-a virar-se, empurrou-a com delicadeza em direção à porta.

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— Preciso me vestir. Galeran já sabe da novidade?

— Meu pai foi contar a ele... a eles. O que vamos fazer?

— Se você não for buscar minhas roupas, terei de ir ao salão nu em pêlo e com isso conseguirei, pelo menos, desviar a atenção de todos do problema.

Assim que Raoul fechou a porta às costas dela, Aline deu uma risadinha marota e correu a procurar o bornal.

Galeran esperou que Jehanne contasse em detalhes seu encontro com o irmão Forthred, depois ambos se puseram a considerar várias formas de lidar com o novo problema. Nem um nem outro, porém, estava disposto a praticar uma ofensa de morte à Igreja.

Ele ainda não tivera tempo para retirar a armadura ou banhar-se, e quando Hubert apareceu para avisar que o monge havia chegado, viu que era tarde demais para pensar nesses assuntos. Desse modo, não teve outra escolha senão se encaminhar ao salão no estado lastimável em que se encontrava.

Hubert, evidentemente, via a situação com olhos preocupados.

— Seria um aborrecimento imenso para mim que um representante da Igreja fosse maltratado em minha casa, Galeran.

Mesmo certo de que o bispo Flambard não merecesse tal deferência, Galeran sabia que Hubert era um devoto e cuidou de tranqüilizá-lo:

— Com a bênção de Deus, isso não será necessário.

Já no salão, ele foi até as grandes portas e viu três clérigos, com os cabelos cortados em tonsura, entrarem no pátio ao lombo de suas mulas; cinco guardas bastante fortes os acompanhavam. Apesar das vestes simples que os monges trajavam, Galeran calculou que ao menos um deles fosse um homem de relativa importância: havia inteligência e esperteza em seu rosto barbeado, e sua postura era a de alguém que conhecia seu valor.

O irmão Forthred, sem dúvida.

Hubert foi recebê-lo.

— Receba meus cumprimentos, irmão. Seja bem-vindo a Burstock.

— Abençoado seja este lugar — respondeu o monge, apeando de sua montaria. —Viemos de Heywood, uma vez que lady Jehanne aparentemente recebeu um chamado para vir ver seus familiares aqui. Temos assuntos a tratar com ela. Assuntos do bispo.

— Então seus assuntos são comigo, irmão. — Galeran deu um passo à frente. — Sou Galeran de Heywood.

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— Meus cumprimentos, meu lorde. — O monge parecia um pouco surpreso. — Sou o irmão Forthred, deão do bispo. Meus companheiros são o irmão Aiden e o irmão Nils. Em nome do bispo Flambard, gostaria de congratulá-lo por sua abençoada viagem à Terra Santa e pelo regresso em saúde e segurança.

— Dê meus agradecimentos à Sua Senhoria. Tenho alguns artigos de Jerusalém em Heywood e, se as circunstâncias assim o permitirem, gostaria que você os levasse ao bispo.

— Posso lhe assegurar que ele lhe será muito grato, meu lorde.

Forthred não só não se ofendera com o suborno, como também não parecia se colocar acima da aura dos cruzados. Na verdade, era como se a presença de Galeran ali por algum motivo o constrangesse.

Hubert os conduziu ao salão, onde Galeran encontrou Aline ocupada em dispor sobre a mesa vinho e tortas doces, tarefa na qual contava com a estranha ajuda de um agora limpo e bem vestido Raoul. Como ele mesmo havia ordenado, Jehanne mantinha-se longe das vistas dos visitantes.

Galeran sentou-se ao lado do irmão Forthred. Os dois assistentes do monge permaneceram em pé às suas costas, um deles segurando um bloco de cera pronto para receber anotações do processo.

— Então — disse Galeran —, que assuntos os trazem a estas paragens, irmão? Como sabem, acabei de regressar à Inglaterra, mas, se em minha ausência, alguns tributos foram negligenciados ou se meu povo ofendeu de algum modo a Igreja, tais ações serão devidamente reparadas.

Após um momento de hesitação, o monge, que agora tinha o rosto levemente corado, encontrou as palavras.

— Meu lorde, houve de fato uma séria ofensa. O bispo foi avisado de uma grave irregularidade ocorrida nos domínios de Heywood, um problema capaz de trazer a discórdia a alguns de seus melhores homens. E mandou-me para cá com o intuito de investigar.

— Entendo. Que investigações foram feitas?

— O bispo foi mal informado, meu lorde? — O monge lançou um olhar pelo salão, depois tomou um gole de vinho. — Perdoe-me a crueza das palavras, mas disseram-lhe que sua esposa portou-se como uma meretriz e deu à luz um bastardo.

— Mais do que cruas, suas palavras são grosseiras. É verdade, sim, que minha esposa deu à luz uma criança que não é minha. Isso, porém, não dá direito a ninguém, dentro ou fora das Ordens Sagradas, de referir-se a ela como meretriz.

O irmão Aiden, que esculpia traços ligeiros na cera, deixou cair sua agulha de madeira.

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— Bem, meu lorde... — Forthred vacilou, mas logo se recompôs. — De um modo ou de outro, a verdade é que lady Jehanne pecou.

— Todos nós pecamos. E ela já foi perdoada.

— Por Deus?

— Isso você tem de perguntar a Ele. Minha esposa recebeu o meu perdão.

— Foi um gesto muito nobre de sua parte, meu lorde.

— Irmão Forthred, não faz muito eu refiz os caminhos que Nosso Salvador trilhou na Terra Santa. Ele não disse que somente aqueles sem pecados na alma poderiam atirar pedras nos outros? E creio que, nesse caso em particular, a pecadora era uma mulher que cometera adultério.

— Isso é verdade, meu lorde. Mas nos tempos atribulados em que vivemos é preciso sermos mais práticos...

— Por que tenho a impressão de que o próprio Cristo foi pressionado por essas mesmas palavras?

— Lorde Galeran, este não é o momento mais adequado para frivolidades! O bispo Flambard está preocupado com a possibilidade de que o desrespeito ao seu casamento e o insulto ao seu lar possam fazer com que você cometa atos de violência.

— Pois pode garantir à Sua Senhoria que não os cometerei. Desde que o problema não se repita.

— Além do mais, o bispo teme que a presença da prova do pecado possa levar ao descontrole o mais tolerante dos homens, que...

— A graça de Deus não permitirá que isso aconteça.

Forthred pôs-se em pé.

— Meu lorde, foi instruído a me encarregar da criança bastarda e levá-la comigo para York, onde ela será cuidada até que a questão esteja solucionada.

— Que questão precisa de solução, irmão Forthred?

— A posse do bebê.

Foi a vez de Galeran se levantar.

— Quem reivindica a guarda da criança além da mãe dela?

— O pai, obviamente.

— Quem é ele?

— Você... não sabe?

— Por que você não me diz?

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O monge olhou ao redor, como se buscasse auxílio das demais pessoas reunidas ali. Tudo o que recebeu foram sorrisos forçados. Ele então voltou os olhos estreitados para Galeran.

— Sir Raymond de Lowick confessa ser o pai da criança, meu lorde. Admite seu pecado, mas declara que tanto ele como lady Jehanne acreditavam que você estivesse morto quando o bebê foi concebido. Ele se rejubila com seu regresso e está verdadeiramente arrependido pela grave ofensa cometida. Como penitência, e reconhecendo quão problemática é a presença da filha dele na sua casa, sir Raymond tomará para si próprio o fardo de criar a menina.

Galeran deixou passar um estudado momento de silêncio, depois observou:

— Acredito que a penitência dele deveria ser um pouco mais severa do que isso.

— Meu lorde bispo também lhe impôs uma multa de vinte xelins, além das orações.

— Minha esposa já reza ardorosamente pela misericórdia de Deus, mas certamente deverá pagar a mesma multa. Meu lorde Hubert, será que poderia me emprestar esse valor?

Hubert fez um gesto afirmativo antes de dizer a um criado que fosse buscar as moedas.

Galeran tornou a se dirigir ao monge:

— Quanto ao bebê, insisto na penitência de criá-lo eu mesmo.

— Não há por que carregar tal peso em seus ombros, meu lorde. — Forthred empalidecera ao perceber a armadilha. — Você não tem culpa pelo que ocorreu.

— Ah, não sei se isso é verdade. Afinal, deixei minha esposa sem a devida orientação por um bom espaço de tempo. Até mesmo o santo papa Urbano, que fez o chamado à Cruzada, tinha dúvidas quanto a que os homens casados se unissem ao empreendimento sagrado.

— Mas qualquer pecado que você pudesse trazer na alma foi limpo pela Cruzada, lorde Galeran.

— Então estou certo de que Nosso Salvador irá me dar forças para suportar incômodo tão pequeno em meu lar.

— Meu lorde, o bispo insiste em que a criança fique aos cuidados dele até que este assunto seja resolvido!

Galeran descansou a mão sobre a empunhadura da espada.

— Irmão Forthred, a menina não pode se afastar da mãe, pois mama no peito.

— Uma ama-de-leite será providenciada...

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— Não creio que se deva alimentar uma criança nobre com o leite de uma criada. E nem me agrada a idéia de que minha esposa vá a Durham com o bebê. Cheguei há pouco de uma Cruzada e acredito merecer todos os confortos.

Os lábios de Forthred se apertaram num indício de que ele estava a ponto de perder a compostura, mas o monge manteve-se calado. Aproveitando a oportunidade, Galeran mandou chamar Jehanne. Em questão de instantes, ela se apresentava para curvar-se numa leve mesura diante do marido.

— Pois não, meu lorde?

— Minha esposa, fui informado de que Raymond de Lowick confessou seu pecado ao bispo de Durham e foi perdoado ante o pagamento de vinte xelins e a promessa de suportar o ônus de criar Donata. Creio ser justo que você pague a mesma penitência.

Jehanne imaginou que não fosse capaz de levar tudo aquilo adiante, mesmo assim cuidou de manter-se calma.

O criado de Hubert aproximou-se com uma sacola e entregou-a ao seu senhor. No mesmo instante, Hubert passou a bolsa a Galeran e ele a colocou nas mãos de Jehanne. Respirando fundo, ela então se ajoelhou diante do monge.

— O bispo é sábio e misericordioso, irmão Forthred. Com toda a boa vontade, contribuo com este dinheiro para seus trabalhos sagrados e peço as preces de todos para auxiliar na minha súplica pelo perdão de nosso Todo-Poderoso Pai do Céu.

Assim que o monge apanhou o dinheiro, Galeran ajudou-a a pôr-se em pé novamente, em seguida declarou:

— Também eu agradeço ao bispo por agir como um fazedor da paz entre mim e Raymond de Lowick, que tão odiosamente se aproveitou da minha ausência. Em troca, prometo não erguer minha mão contra ele a menos que volte a ser ofendido. Podemos considerar esta questão solucionada, irmão Forthred?

— Duvido — respondeu o monge, antes de deixar o salão seguido de perto por seus auxiliares.

Galeran e Jehanne foram atrás deles; junto às portas do saldo, ficaram a vê-los montarem ao lombo de suas mulas e, escoltados por seus guardas, cruzarem os portões.

Tão logo os visitantes sumiram a distância, ela olhou para o marido e, com indisfarçável admiração, perguntou-lhe:

— Galeran, como você conseguiu?

Ele riu.

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— Ah, deve ter sido meu encanto pessoal. E eu até pensava em dar um banho e colocar roupas limpas nesse encanto, mas creio que será melhor estarmos de volta à segurança de Heywood antes que o próximo raio nos alcance.

Tendo em vista o incidente com o arqueiro, Galeran estava satisfeito em poder contar com um bom número de guardas a escoltá-los na volta a Heywood. Ainda assim, tomava o cuidado de cavalgar a uma boa distância de Jehanne e Donata, te-mendo que uma nova investida contra ele pudesse vir a feri-las.

E quem teria sido o responsável pelo arqueiro?, imaginava. E se ele tivesse sido morto no ataque? Sem sua proteção, Jehanne talvez tivesse cedido às intervenções de Forthred em Burstock e, se escolhesse lhe entregar a menina, possivelmente teria ido junto da filha para Durham.

Num só lance, Flambard teria amealhado duas peças para seu jogo sinistro. Com a morte de Galeran, e com a autoridade da Igreja às suas costas, Lowick estaria casado com Jehanne e instalado em Heywood em questão de dias, e haveria muito pouco que lorde William ou o rei pudessem fazer se não quisessem lançar mão de uma guerra.

Além do mais, era quase certo que o monarca acabasse dando seu apoio a Flambard. E assim sendo, se o pai de Galeran se opusesse à posse de Lowick sobre Heywood, Rufus não hesitaria em mandar suas forças ao Norte no intuito de domar a poderosa família de William de Brome.

Raoul emparelhou seu cavalo ao dele.

— Por que essa expressão preocupada, Galeran? Não está imaginando que haverá um outro atentado contra sua vida, está?

— É uma hipótese improvável, mas não devemos descartá-la. Até onde sei, minha morte favoreceria o interesse de várias pessoas.

— Você se desvencilhou muito bem daquele clérigo.

— Só que o jogo não terminou naquele lance. Você nunca ouviu falar do bispo Flambard, não é?

— Só o pouco que você e Aline me contaram a respeito dele. Se bem entendi, trata-se de uma criatura ardilosa, mas que se acha sob a proteção do monarca.

— Flambard é mais do que ardiloso, Raoul. E é também o braço direito do rei. Já faz anos que vem administrando o país, e agora que Rufus o alçou ao bispado de Durham, ele e meu pai disputam o poder aqui, no Norte.

— Ainda não entendi muito bem por que o bispo haveria de pensar que vale a pena dar seu apoio ao pleito de Lowick. Por que uma pessoa tão poderosa iria precisar de um aliado fraco?

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— Veja a situação em que nos encontramos aqui. O bispado de Durham controla uma pequena porção do Norte, desde Carlisle até Durham. Por outro lado, meu pai detém uma série de propriedades, incluindo Brome, que é o maior baronato da região, além de possuir um castelo que comanda a vau de um rio crucial; nas imediações estão os baronatos de Heywood e Burstock, ambos aliados próximos de Brome, Já que sou casado com a sobrinha de Hubert de Burstock e uma outra sobrinha dele é esposa de meu irmão, Will. Eu já tinha lhe contado que o irmão da minha mãe possui o controle das terras costeiras, inclusive dois portos bastante importantes?

Raoul deu um assobio.

— Sua família tem esta parte do país nas mãos, Galeran. E possibilidades reais para colocar um freio às pretensões do bispo.

— É verdade. Além disso, meu pai não é homem de se calar diante dos abusos.

— Mas se controlasse Heywood, o bispo teria como enfraquecer significativamente o poder de lorde William de Brome.

— E se meu pai se opusesse, o rei teria uma desculpa para lutar contra o poder dele.

— Então é muito provável que, de um modo ou de outro, o bispo e seus lacaios voltem a atacar.

Apesar das ameaças que pairavam pelo ar, a comitiva, alerta e cautelosa, chegou ilesa a Heywood no final da manhã. Fazendo disso um acontecimento, Galeran tomou Donata nos braços para que Jehanne pudesse apear de sua montaria e, acompanhado de perto pela esposa, levou ele mesmo o bebê para o interior do castelo.

Ao ver-se a sós com o marido no salão, Jehanne encheu-se de coragem para declarar:

— Galeran, eu teria aberto mão de Donata para ficar com você. Juro que sim. Não se comprometa com o problema dela.

Ele lhe devolveu a criança.

— Já me comprometi, Ela é inocente, Jehanne. Eu não entregaria o bebê de uma criada aos lobos e não entregarei Donata a Flambard e Lowick. Èla nasceu no meu castelo e está sob minha proteção. Vá lhe dar de mamar. E depois... Eu gostaria de tomar um banho.

Jehanne afastou-se, o coração apertado por um amor angustiante. Às vezes lhe parecia que Galeran era bom até os limites da insanidade, e isso lhe dava ganas de atracar-se com ele como fizera quando eram jovens. Entretanto, sabia que esse imenso senso de justiça não fazia seu marido cego à realidade, pois ele era, e sempre fora, uma pessoa de inteligência e percepção extremamente atiladas.

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E Galeran provara isso naquele mesmo dia.

Só que ele era também profundamente idealista. E isso era perigoso.

Enquanto chamava pelas aias, lembrou-se das vezes em que, quando seu pai estava vivo, Raymond viera a Heywood e flertara com ela. Sempre tivera um medo terrível de que Galeran fosse entender o gesto bobo como uma grave ofensa e fazer disso uma questão a ser resolvida num confronto homem a homem. Ele, porém, ignorara o fato por julgá-lo exatamente como era: um gesto realmente tolo e infantil.

Ela não mentira: embora isso fosse dilacerá-la, preferiria entregar Donata aos lobos a ver Galeran morrer por defender sua filha bastarda.

Suas aias haviam chegado com água quente e roupas limpas. Jehanne deixou que banhassem e trocassem Donata, enquanto ela mesma se banhava para depois tomar um pouco de cerveja e refrescar-se da viagem. Precisava começar a manter uma distância racional da própria filha, pois isso seria melhor para ambas, uma vez que seria impossível adivinhar o que o futuro lhes reservava.

Mas quando a menina chorou e o leite escapou de seu seio em resposta, correu a tomar a pequena nos braços com alegria e desespero no coração.

Depois que John o ajudou a tirar a cota de malha e. levou-a para limpar, Galeran procurou Walter de Matlock para agradecê-lo pela assistência prestada a Jehanne.

— Eu sabia, lorde, que o senhor não iria querer nem uma nem outra carregada para Durham.

— Você faria o mesmo, se o bispo me excomungasse?

— Ele seria tolo a esse ponto, meu lorde? Tentar tirar a bênção de um cruzado?

— Ah, é verdade. Vivo me esquecendo de que um halo de glória me acompanha.

A menção, ainda que indireta, à Terra Santa fez Galeran ir remexer em seus guardados e dentre eles desembrulhar vários artigos.

Com gestos reverentes, ele tirou de um fino invólucro de pano folhas de palmeiras da estrada que conduzia a Jerusalém, uma cruz de prata cujo interior guardava água do rio Jordão, um galho seco do Jardim das Oliveiras, uma pequenina bolsa com terra do Calvário e uma lasca de pedra do lugar onde supostamente estaria o Santo Sepulcro.

Após olhar com certa hesitação para um outro embrulho de forma esférica, respirou fundo e acabou por desfazê-lo, tomando entre as mãos o pequeno crânio. "O crânio de São João Batista quando criança, senhor!", sussurrara-lhe o ávido vendedor.

As palavras do homem tinham lhe provocado uma vontade de rir que ele não sentia havia muito, muito tempo e, junto à idéia de dividir a brincadeira com Jehanne, fizeram-no comprar o artigo. Prodígios poderiam ter preservado frascos com o leite da Virgem ou o vinho de Canaã, mas seria preciso bem mais do que um milagre

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para preservar o crânio de criança de um homem que morrera com mais de trinta anos.

Galeran tornou a embrulhar a peça. Como quisesse ver-se livre daquele pequeno crânio que agora ameaçava lhe provocar emoções melancólicas, concluiu que aquilo seria o presente ideal para Ranulph Flambard. Com um pouco de sorte, o bispo não se daria conta do absurdo que a peça propunha, pois muitas pessoas espertas não o tinham percebido. E se Flambard apreendesse a extensão da fraude, Galeran lhe diria que ele próprio se enganara.

Com isso em mente, pediu ao escriba que viesse para tomar nota de uma carta muito cortês. Nela, agradecia ao bispo pelo auxílio no esclarecimento do problema entre ele e Raymond de Lowick, e lhe implorava que aceitasse o presente e não se esquecesse de Heywood em suas preces.

Jehanne foi ao encontro do marido justamente quando ele despachava o mensageiro. Galeran contou-lhe o que havia feito, mas não lhe disse o que era a relíquia, receando que um objeto antes tão banal agora pudesse fazê-la pensar no filho morto, exatamente como se passara com ele.

— Acho que você fez bem em agradecer-lhe — ela comentou, inspecionando os demais artigos. — Embora eu não acredite que isso vá fazer alguma diferença.

— De qualquer modo, eu havia prometido a Forthred que mandaria um presente.

Quanto às folhas secas, reverentemente, Jehanne quis saber:

— Que tipo de árvore é a palmeira? Isto se parece mais com folhas de junco.

Enquanto preparavam seu banho, Galeran descreveu as palmeiras e também as oliveiras, então lhe falou do calor e do deserto e de como Belém era simples.

Ajudando-o a livrar-se das roupas sujas, ela indagou:

— Você ficou decepcionado?

— Só por alguns instantes. Depois gostei de saber que o nosso Cristo viveu como um homem comum. Não era o príncipe fulgurante dos manuscritos, mas um homem com poeira na pele e calos nas mãos. Esse pensamento me alimentou. Jesus foi humano por algum tempo, então deve compreender os homens.

— Sinto o mesmo a respeito da mãe do Cristo. Ainda que não goste muito da idéia de que fosse virgem.

— É estranho... — Galeran acomodou-se na tina e deixou escapar um suspiro ao contato da água quente com sua pele.

— Fale-me mais daqueles banhos em Constantinopla.

Ele o fez, mas também lhe falou da comida e dos costumes das terras que havia visitado, mas sempre evitando mencionar as batalhas cruentas que vira ou de que participara.

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Enquanto Galeran se enxugava e os criados esvaziavam a tina, Jehanne comentou:

— Eu gostaria de ter uma sala para banhos como aquela em Burstock.

— Teria de ser lá fora, no pátio, perto das cozinhas — ele observou. — O que há de errado com o arranjo que fazemos aqui?

— Nada. — Ela sorriu. — É que eu queria uma daquelas banheiras de mármore grandes o bastante para podermos nadar nela.

— Eu lhe daria o céu e as estrelas se me fosse possível, Jehanne. Mas uma banheira de mármore dessas proporções está fora do meu alcance.

Corando, ela deu uma gargalhada. Era a primeira vez desde o seu regresso que Galeran a via rir de modo tão aberto e sincero.

Ao vê-la olhar para a cama, no entanto, ele sentiu como se uma campainha lhe soasse em algum lugar do cérebro. Seria muito fácil voltar aos hábitos de antigamente, mas antes era preciso que algumas coisas começassem a fazer sentido.

— Jehanne, preciso saber o que realmente se passou entre você e Raymond.

Ela empalideceu. Por um momento, Galeran pensou que sua esposa fosse sair correndo dali. Contudo, não foi isso o que Jehanne fez. Recolhendo roupas úmidas largadas junto à tina de banho, ela limpou a garganta antes de declarar:

— Nunca traí você no meu coração, Galeran. Nunca desejei Raymond. Será que isso não é o suficiente?

— Não. Ele violentou você?

— Não.

— Se você não o desejava, se ele não a forçou, então o que houve?

Ela não respondeu.

— Jehanne, como vou lidar com essa questão no futuro, que atitude devo esperar que Lowick tome, tudo isso depende do que aconteceu aqui na noite da morte de Gallot.

Parecia que ela havia se transformado numa estátua de pedra, parada ali, apertando um pano molhado entre as mãos. Então, de um instante para outro, Jehanne largou o pano e caiu de joelhos ao lado dele no amontoado colorido formado por seu vestido.

— Tenho medo de que você vá me odiar.

— Não sou homem de alimentar o ódio. E amo você. Ela descansou a cabeça sobre sua perna.

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— Não mereço o seu amor.

— Jehanne, por favor... Conte-me. Explique-se.

— Nem sei se sou capaz de fazê-lo. Talvez seja mais simples dizer que eu estava fora de mim.

— Isso não seria de se admirar. — Ele lutou contra o impulso de lhe acariciar os cabelos. — Você tinha perdido seu filho.

— E era possível que tivesse perdido você também. Quando ouvi a notícia de sua morte, pensei que Deus tivesse tirado sua vida em troca do filho que nos havia dado. — Jehanne ergueu os olhos para ele. — Eu não queria uma dor como aquela, Galeran!

— Nem Deus faria tal barganha.

Ela tornou a deitar o rosto sobre a coxa firme, como se buscasse contagiar-se daquela firmeza.

— Eu sabia que você iria entender... Não sou boa como você, Galeran, e faço Deus à minha imagem. Barganhei com Ele que enviaria você à Cruzada em troca de um filho. Eu sabia que você não queria ir, mas o empurrei como pude, sem pensar nos seus sentimentos. Quando me disseram que você tinha morrido, quase não acreditei, mas então me perguntei se... se Deus não haveria tomado mais do que ofereci a Ele. Ou se ele havia oferecido mais do que tinha imaginado. Rezei por você pelo seu bem-estar, pela sua vida. Todo dia eu rezava. E rezava, e rezava, mas então Gallot morreu...

Incapaz de continuar resistindo, Galeran passou a mão pela mechas de ouro e prata.

— Foi tudo tão repentino, tão inexplicável... Naquele mo mento, decidi que Deus tinha ouvido minhas preces daquele modo, trocando as mercadorias como um vendedor desonesto numa feira de...

— Jehanne!

— Odiei Deus. Odiei-o com todas as minhas forças. Eu quis consolo, sim, e um breve momento de esquecimento. Mas, mais do que tudo, quis fazer a coisa mais cruel e perversa que pude imaginar. E então seduzi Raymond.

Galeran não sabia se se enfurecia ou chorava.

— Isso foi o que de mais cruel e perverso você conseguiu pensar?

— Mais do que isso só matar meu próprio filho. E talvez eu já o tivesse feito...

Ele sentiu um arrepio de horror lhe percorrer a espinha, mas, antes que pudesse abrir a boca, Jehanne prosseguia:

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— Não, eu não matei Gallot. Mesmo assim, foi como se algum pensamento meu, alguma atitude minha... Todas aquelas orações... — Erguendo-se, ela se pôs a andar de um lado para outro. — Crianças não morrem assim, sem motivo. Vai ver as preces que fiz por você foram atendidas. Talvez eu tivesse de escolher entre você e Gallot, e eu tinha escolhido você...

— Isso tudo não faz sentido. Como pode ter certeza de que Raymond não o matou?

— Como eu já disse, não tenho o sono pesado. Eu sempre acordava quando você deixava a cama, não acordava?

— E se ele tivesse lhe dado alguma droga?

— Eu saberia. De qualquer forma, Raymond não faria uma crueldade dessas. Ele gostava de Gallot. Gostava de brincar com o menino e...

Foi a vez de Galeran pôr-se em pé num salto.

— Pela misericórdia de Deus, Jehanne! Já não basta ele ter tomado o meu lugar na sua cama, ainda preciso ouvir que brincava com o filho que não cheguei a conhecer?

Sentindo como se ele a tivesse esbofeteado uma vez mais, Jehanne tentou se explicar:

— Desculpe-me, eu quis lhe dizer a verdade.

— Então não falemos mais disso.

— Galeran...

— Saia daqui.

— Galeran!

— Saia!

Jehanne correu, o que demonstrou bom senso, pois ele já sentia a fúria inflamando suas entranhas como uma língua de fogo prestes a consumir absolutamente tudo em seu caminho.

Deixando-se cair de volta ao banco, Galeran cobriu o rosto com as mãos. No fundo, sua esposa estava certa: precisavam da verdade para limpar aquelas feridas. Só que... Ainda não. Verdades como as que tinham acabado de ser ditas eram mais do que ele seria capaz de suportar num só dia. Bastavam-lhe, por enquanto.

Galeran tornou a se levantar, dessa vez quase calmo, quase contido. Se ainda não era o momento de enfrentar algumas verdades, por certo passara da hora de ele presidir uma lauta refeição em seu salão para convencer até os mais renitentes de que a paz e a harmonia reinavam em Heywood.

Começou a vestir as roupas limpas que Jehanne separara para ele.

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Paz. Harmonia.

A quem queria enganar?

Ela seduzira Lowick porque estava com ódio de Deus? Parecia loucura, mas era bem o tipo de coisa que sua esposa faria em sua voluntariosa juventude. E ele que pensara que Jehanne tivesse amadurecido e domado aqueles ímpetos selvagens...

Ao finalizar o nó na roupa de baixo, Galeran olhou para a rosa de marfim em sua mesa. A pétala partida estava no lugar.

Jehanne tivera uma explosão de cólera. Uma ira dilacerante contra Deus. Ah, que Ele a perdoasse. Que ela nunca confessasse tal pecado em público.

Enquanto ajustava o cinto dourado sobre a túnica azul de lã leve, teve a sensação de que aquele conversa tão dolorosa lhe trouxera algum consolo. Agora a compreendia. O problema, pensou, escolhendo uma corrente de ouro e prata para colocar ao pescoço, seria convencer o mundo de que não havia necessidade de punição.

Talvez uma significativa apresentação como lorde e dama fosse um bom começo. Com essa idéia em mente, mandou chamar Jehanne e lhe disse que se vestisse mais ricamente.

Ela trocou o vestido de uso diário por uma túnica de seda e a trança simples por um penteado enfeitado por pérolas e fios de ouro. Vestiu-se em silêncio, sem olhar para ele uma só vez.

— Não tenha medo de mim — Galeran lhe disse. — Já recuperei o controle sobre minhas emoções.

Jehanne deixou erguida no ar a mão pronta para levar o brinco a uma de suas orelhas.

— É melhor que eu tenha medo de você, pois assim serei cautelosa. Se algum dia vier a me ferir, Galeran, você jamais se perdoará por isso.

Ela o conhecia bem demais. Assim como ele a conhecia.

— Dei-lhe um tapa...

— E isso ainda o incomoda.

— Imensamente.

— Então serei cuidadosa por nós dois.

— Você confessou seu pecado?

— Não. Como Deus iria perdoar uma...

— Deus pode perdoar qualquer coisa. E se o padre lhe der uma penitência, talvez você deixe de desejar que eu a castigue.

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— Tenho sido um fardo pesado demais para você, não tenho?

Galeran riu, depois se aproximou para tomá-la entre os braços.

— Você é tudo para mim, Jehanne. Tudo. Mas ambos precisaremos de tempo para sair desta situação. Assim sendo, por que não nos damos o tempo de que necessitamos?

— Quero acreditar que o destino também será paciente conosco.

Ele ia responder, mas o soar de uma trombeta anunciou o almoço. Segurando na mão dela, Galeran levou-a para presidir a refeição ao seu lado.

À exceção dos guardas de vigia e uns poucos criados que trabalhavam em outros lugares, todos os demais se encontravam reunidos no grande salão. À mesa principal achavam-se Raoul, Aline, Matthew, o mordomo-mor e o escriba, irmão Cyril. Galeran e Jehanne tomaram seus lugares nas cadeiras centrais. Tudo estava como fora na maior parte do tempo de suas vidas de casados.

Os serviçais do castelo sentavam-se a mesas distribuídas como em patamares. Os cavaleiros de Galeran ocupavam os lugares mais próximos à mesa principal, as criadas de Jehanne misturadas a eles. Depois vinham os criados de funções mais elevadas: o falcoeiro, o chefe dos cavalariços, a responsável pelas tecelãs e o ferreiro. Nas mesas mais baixas ficavam os demais serviçais e os soldados.

Os empregados das cozinhas vieram com jarros, tigelas e travessas, apresentando os alimentos primeiramente à mesa principal. Num gesto cortês, Galeran escolheu os melhores pedaços e os colocou no trincho de Jehanne. Sorrindo em agradecimento, ela fez o mesmo para o marido. De um modo ou de outro, ele não conseguia deixar de pensar que tudo aquilo poderia estar sendo muito melhor se sua esposa não tivesse lhe despertado um ciúme agoniado de Lowick. Raymond e Jehanne juntos o devoravam como um cancro.

Galeran tomou um gole da taça que ambos dividiam. Jehanne seduzira Lowick num surto de ódio a Deus e se isso soaria como loucura para alguns, para ele, que conhecia tão bem a esposa, fazia todo o sentido. Jehanne tinha uma imagem bas-tante humana de Deus, a quem imaginava como alguém a ser admirado em ocasiões boas, culpado em épocas más e temido em todas as oportunidades. "Mais ou menos como nos sentimos em relação a um rei", concluiu consigo mesmo.

Olhando de soslaio para ela, Galeran viu também que Raoul e Aline aparentavam um casal bem mais feliz do que ele e sua esposa.

Raoul e Aline?

Galeran amava o amigo como a um irmão, mas não alimentava ilusões quanto ao comportamento dele em relação às mulheres. Ainda assim, Raoul por certo não seria tolo a ponto de tentar seduzir uma dama virgem. Especialmente uma dama co-mo a prima de Jehanne, que estava prometida à Igreja.

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No entanto, ela estava ruborizada.

Aline não saberia dizer se se achava no Céu ou no inferno.

A bem da verdade, Raoul de Jouray era o tipo de homem de que ela desgostava. E o fato de ser belo e encantador o fazia ainda mais petulante, como se imaginasse que qualquer mulher, de origem nobre ou humilde, devesse se esfarelar ante seus sorrisinhos galanteadores.

Mesmo assim, desde o banho daquela manhã era como se ela tivesse uma comichão sob a pele sempre que o francês se aproximava ou lhe capturava o olhar do outro lado do salão. Suas idéias, sempre tão bem ordenadas, encontravam-se agora em permanente confusão, provavelmente porque não conseguisse pensar em mais nada, a não ser em quando ou como iria vê-lo e o que ele diria ou faria nesse momento.

Por algum motivo, tê-lo visto nu fazia com que as roupas dele, até mesmo a cota de malha, agora lhe parecessem transparentes. Desde aquele instante, aos seus olhos era como se Raoul de Jouray continuasse absolutamente despido.

A viagem de Burstock a Heywood tinha sido uma verdadeira tortura, já que ele cavalgara o tempo todo ao lado dela. Aline tentara ignorá-lo, mas ele lhe fazia pergunta atrás de pergunta sobre o campo e a vida rural, o que a forçara a responder. E sempre que ela se calava, ele se punha a falar da sua terra natal na França, de suas viagens à Espanha e à Terra Santa.

Naquele momento, durante o jantar, Raoul não flertava com ela. Não lhe dirigia olhares especiais, não a tocava como por acaso. Não lhe elogiava a tez, os olhos, os lábios, os cabelos... Apenas conversava e comia.

E por que isso a fazia sentir-se inquieta e quente?

Ele falava a respeito de Flandres.

— Creio que você iria gostar de lá, lady Aline. Os flamengos são pessoas muito práticas.

— Acha que sou prática?

— Sim. Por quê, não é?

— No momento, não.

Antes que ela pudesse morder a língua por ter dado uma resposta tão tola, Raoul recostou-se ao espaldar da cadeira e sorriu, comentando:

— Mas, na sua idade, interessar-se por homens é uma atitude bastante prática.

— Eu não tenho tais interesses!

— Então você é notadamente diferente do restante da espécie humana, lady Aline. Mocinhas se interessam por rapazes, e rapazes se interessam por mocinhas.

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— E os velhos? Assim como você.

Algo cintilou nos olhos de Raoul, e então ele riu.

— Anciãos com vinte e oito anos de vida como eu interessam-se por mulheres das mais variadas idades. Mas você sabe que nós, os velhos, temos muitas coisas a nosso favor, não sabe? Paciência é uma delas. Autodomínio é outra.

— Ah. — Aline serviu-se de um pedaço de torta de framboesa. — Creio que queira dizer que é paciente com relação à sedução, sir, mas impaciente quando o jogo termina, não?

— Jamais. Posso lhe assegurar, lady Aline, que nunca sou impaciente com uma mulher.

Apesar de sentir o rosto em brasa, ela devolveu:

— Algumas mulheres não se deixam seduzir, sir Raoul, por mais paciência que o caçador possa ter.

— Um bom caçador sabe buscar sua presa com muito cuidado. Mais vinho, minha dama?

Com um arrepio provocado pelas palavras insinuantes, Aline o viu encher sua taça de prata. Um arrepio de medo ou de excitação?, perguntou-se.

— Acredita que eu possa ser seduzida?

— Acredita que não poderia?

— Sim!

— Talvez você esteja certa. Gostaria de colocar-se à prova?

— Não!

Com muita calma, Raoul aproximou a travessa com a torta de framboesa e escolheu mais um pedaço para colocar no prato dela.

— Então não jogaremos o jogo, minha dama.

— Que jogo?

— Sedução. É óbvio que não iríamos levá-lo até as últimas conseqüências, pois isso iria arruinar suas chances de tornar-se uma noiva de Cristo. Além de me causar uma série de problemas com os quais eu não gostaria de lidar.

Era verdade. O pai e os irmãos dela por certo reduziriam Raoul a pedacinhos se ele a desonrasse.

Brincando com o pedaço de torta em seu prato, Aline percebeu que tinha o coração acelerado. Estava farta de saber que ele agia como um caçador, preparando iscas e armadilhas, mesmo assim sentia certa atração por aquele esporte que, dadas as circunstâncias, pareceu-lhe bastante seguro.

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— Então seria como um jogo...

— Exatamente, minha dama. Como as batalhas falsas que os homens lutam para prepararem para a guerra. Como nessas batalhas, seria uma espécie de treinamento para você. E eu acredito que esteja precisando treinar práticas de defesa.

— Como assim?

— Por que não gosta de ajudar os homens a se banharem, Aline?

Era a primeira vez que Raoul não a tratava por "lady", e isso era uma demonstração de que o jogo havia começado.

— Porque sou um pouco acanhada.

— Não acredito que fique chocada ao ver o corpo de um homem nu.

— Não... Vai ver que, como quase nunca executo essa tarefa, fico envergonhada.

— Não creio que seja a tarefa que a deixe envergonhada, Aline.

— Você tem razão. Acho que os homens são muito... excitantes. Os jovens, saudáveis, bem entendido. Tento lutar contra o que sinto, mas nunca consigo, então prefiro evitar uma situação que possa me levar ao pecado.

Ele sorriu, como se tivesse feito um ponto na partida.

— Não é prudente evitar aquilo que nos provoca fraqueza. Como você mesma deve ter percebido na manhã de hoje, isso pode nos deixar vulneráveis. É como um soldado que evita escalar muralhas porque tem medo de altura, um dia ele será obrigado a fazê-lo, e por certo acabará morrendo porque não se preparou como devia. Guerreiros têm de ser fortes em todos os sentidos. Precisam praticar até se livrar de suas fraquezas, para que suas habilidades estejam sempre afiadas.

— Deixe-me ver se o compreendi: está oferecendo-se para me treinar nas habilidades de que irei necessitar para evitar a tentação carnal?

— Não exatamente. — Raoul ajustou o bracelete de ouro que trazia no punho, e Aline teve a impressão de que o gesto tinha por objetivo chamar a atenção dela para seus músculos. — Creio que você precisa de uma dama para treiná-la nessas habilidades. Estou me oferecendo para desfechar alguns ataques falsos contra as suas defesas, pois assim você saberá quais habilidades necessitam de treino.

— Ah.

— Na verdade, lady Aline, em vez de ofertar meus serviços, prometo que vou ajudá-la. Creio que é chegado o momento de você começar a reforçar as suas muralhas e seus estoques de setas.

— Quer eu queira, quer não?

— Quer você queira, quer não.

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Ela tentou lhe dar um de seus olhares mais severos.

— Eu deveria me queixar a Galeran sobre o seu comportamento, sir.

—Isso a colocaria numa situação bastante constrangedora. E não é necessário. Lembre-se, Aline: você tem minha palavra de que não irei invadir sua cidadela, ainda que ela se abra para mim.

Mesmo tendo ofegado à imagem tão crua, ela respondeu:

—Muito bem. Mas devo avisá-lo, sir, de que minhas defesas são verdadeiramente firmes. E às vezes os assaltantes sofrem mais do que a cidadela que atacam.

Com isso, Aline virou-se para observar as quatro criadas de Jehanne que executavam uma dança, um bailado de passos bastante intrincados cujo único propósito era demonstrar a harmonia e a graça das bailarinas aos homens presentes ali. Por que Raoul não ia praticar seus jogos com uma delas?

Só que ela seria capaz de correr atrás das moças com um punhal se ele o fizesse... A constatação forçou-a a concluir que suas defesas eram de palha e gravetos. E que Raoul certamente já tinha percebido isso.

De súbito, Aline deu-se conta de que queria um pouco de diversão. Em breve, provavelmente antes do Natal, regressaria, ao convento de St. Radegund e, como já contasse dezoito anos de idade, poderia fazer seus votos para o noviciado. Aquela por certo seria sua última oportunidade para explorar o estranho e assustador mundo dos homens e das mulheres. E quanto a uma coisa, ao menos, Raoul tinha razão: ela precisava fortalecer suas defesas.

Galeran cutucou a esposa.

— Temo que Raoul esteja flertando com Aline. Jehanne olhou de soslaio para o casal.

— Raoul logo perceberá que está perdendo seu tempo.

— Aline tinha catorze anos quando decidiu tornar-se freira, e passou apenas um ano no convento antes de vir para cá para lhe fazer companhia. Talvez seu interesse pelo sexo oposto exista de fato e esteja somente atrasado.

— Então é bom que se manifeste agora, enquanto é tempo.

— Ela não está prometida à Igreja?

— Não, isso é coisa da cabeça de minha prima. É claro que tio Hubert está contente; devoto que é, ele gosta da idéia de ter uma filha para rezar por sua alma. Mas se Aline resolver o contrário, ninguém poderá impedi-la.

— Mesmo assim, temo que Raoul esteja apenas se distraindo. Posso colocar um ponto final nisso, se você julgar que devo.

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— Não. Como disse, creio que será bom para Aline descobrir sua verdadeira natureza. Assim, se resolver fazer os votos para noviça, o fará conhecendo as próprias fraquezas.

—Tenho medo de que meu amigo possa magoá-la.

— Partir-lhe o coração, você quer dizer? Isso seria um excelente aprendizado para a vida adulta.

Com um gole de vinho, Galeran afastou essas preocupações. No entanto, tudo o que gostaria de deixar de pensar, e não conseguia, resumia-se a uma só idéia: seria possível que Jehanne amasse Lowick e desejasse o marido morto?

Capítulo VI

Os cavaletes que suportavam as mesas começavam a ser desmontados, e os moradores do castelo pareciam relaxar, conversando entre si e trocando olhares. Vendo Galeran caminhar por entre sua gente para conversar com eles e ouvir as novidades que lhe contavam, Jehanne percebeu o quanto fora egoísta. Sentira imensamente a falta do marido, mas não pensara na saudade que ele estaria sentindo de Heywood e dos muitos eventos que se davam ali.

Galeran adoraria testemunhar o namoro de Hugh e Margaret. Gostaria de poder ajudar Sven quando ele perdera a mão. Sentiria muito orgulho de Ann quando ela resgatara uma criança do rio...

Com um nó na garganta, Jehanne virou o rosto e então deparou com a maneira como Aline olhava para Raoul. Ah, Deus. Foi ao encontro da prima.

— Raoul de Jouray é um homem bonito — disse-lhe. — Infelizmente, ele sabe disso.

— Seria difícil ele não saber. Do mesmo modo como você sabe que é muito bonita.

— E como você tem o meu tipo, então também deve saber dos seus encantos, Aline.

— Só que ninguém nunca me descreveria como esguia como um galho de salgueiro.

— Isso é bobagem. Detalhes que não contam.

— Talvez. Mas ser a única menina numa casa cheia de homens endurece uma mulher.

Rindo da observação, Jehanne abraçou a prima.

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— Não vejo mal algum em que você coloque sua vocação à prova com um homem como Raoul de Jouray, pois ele é tentador como a maçã no Paraíso. Mas tome cuidado para não ir longe demais. E não pense que ele se casará com você. Ho-mens sem terras como ele geralmente não se casam.

— E quem se casar com ele logo se arrependerá por ter arrumado um marido com olhos para todas as mulheres sobre a face da Terra.

As duas riram, depois Jehanne cuidou de avisar que o descanso no meio do dia chegava ao fim e que todos deveriam retornar às suas tarefas.

Como os dias ainda fossem longos, a refeição da noite foi servida num horário avançado, mas não tarde o suficiente para que os habitantes do castelo dispensassem uns bons momentos de distração.

A música começou tão logo as mesas foram desmontadas. Foi quando tiveram início também as histórias que passavam de boca em boca. Como Galeran e Raoul tivessem visitado as terras místicas, seus relatos eram ouvidos com extremada aten-ção. Além das narrativas passadas na Terra Santa, Raoul falou-lhes de casos ocorridos na Espanha, tanto no Norte cristão quanto no Sul mourisco. O francês lhes narrou inclusive um, encontro que tivera com o famoso Cid Campeador, Rodrigo Diaz de Vivar, o mais poderoso guerreiro espanhol, que passara os últimos anos lutando contra os mouros numa cruzada própria.

Depois foi a vez de um cavaleiro tomar o centro do salão para contar histórias de monstros e magias. E assim a noite foi se aprofundando...

Quando julgou que já tivesse passado um bom espaço de tempo na companhia dos seus, Galeran conduziu Jehanne aos aposentos senhoriais. Tinha a impressão de que a noite fora como tantas outras e, ainda assim, diferente. Os problemas continuavam ali.

A pajem trouxe Donata, e Jehanne sentou-se à beirada da cama para amamentá-la. Mas, tão logo a menina mostrou-se, satisfeita, ela pediu à moça que a levasse.

Escolhendo não comentar a atitude da esposa, Galeran tirou o cinto e a túnica. De ceroula e camisa, convidou:

— Quer jogar xadrez?

— Prefiro fazer amor.

— Eu também.

Com o corpo já em brasa, ele estendeu-lhe os braços e Jehanne foi ao seu encontro. Tomando-a junto ao peito, Galeran beijou-a profundamente. E percebeu que fazia muito, muito tempo que não sentia o gosto da mulher a quem tanto amava.

— Santo Deus, não nos beijamos... — Enterrou a cabeça entre os cabelos dela. — Na última vez, não nos beijamos!

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Jehanne abraçou-o com força.

— Eu sei. Tinha percebido. Por que será que o beijo é sempre o primeiro e o último gesto?

— Talvez o beijo seja universal. Até mesmo os que pregam a castidade beijam, ainda que seja um beijo de paz.

Só que agora, como uma febre, Galeran precisava de mais do que beijos. E com a pressa que o desejo lhe impunha, pôs-se a despi-la.

Largando-se entre os braços do marido, Jehanne ofegou quando ele lhe acariciou os seios túmidos, primeiro com a mão, depois com a boca. Quando percebeu, agarrava-se a Galeran, aos ombros dele, ao seu pescoço, aos seus cabelos.

Ao terminar de despi-la enquanto lhe afagava o corpo com os lábios, ele se livrou do restante de suas roupas. Ergueu-a nos braços, levou-a até a cama nova e, após depositá-la com cuidado sobre as cobertas, fechou as cortinas ao redor do grande leito, enclausurando-os num mundo onde o mal não pudesse entrar.

— Isto é o paraíso — murmurou Jehanne. — Se ao menos pudéssemos ficar neste casulo quente e convidativo para sempre...

Essa aspiração era impossível, ambos o sabiam. O que não podiam imaginar eram as notícias que viriam no dia seguinte.

William de Brome chegou a Heywood quando eles tinham acabado de fazer o desjejum e, ao entrar no salão com o manto esvoaçando ao seu caminhar ligeiro, foi logo avisando:

— O rei está morto.

No mesmo instante, Galeran dispensou os homens com quem estivera discutindo a construção de um novo poço.

— Rufus morreu? Como?

— Acertado por uma flecha enquanto caçava. Você acredita nisso? Acredita que tenha sido um acidente?

— Mas...

Lorde William interrompeu o filho, acenando com a cabeça para que fossem conversar nos aposentos do segundo piso do castelo. Tranqüilizando-o, Galeran levou-o até seu quarto particular.

Jehanne e Aline encontravam-se na antecâmara, na companhia de Donata e sua pajem. Imediatamente as mulheres prepararam-se para deixar o aposento, mas Galeran sugeriu:

— Jehanne, você devia ficar.

Assim que os três ficaram sozinhos, ele pediu:

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— Conte-nos o que aconteceu, pai.

Lorde William deixou-se cair sobre um banco, as mãos apoiadas nas pernas fortes.

— Tudo o que sei é a nota oficial e um pouco de mexericos. Dois dias atrás, Rufus foi caçar em Winchester. Em meio à comitiva estavam seu irmão, o príncipe Henrique, Wat Tyrel, que tem ligações com os Clare, e os irmãos Beaumont. E Wat Tyrel deu um jeito de meter uma flecha no rei.

Jehanne arfou. Galeran poderia ter arfado também, mas disse apenas:

— Muito conveniente.

— Ah! Você foi diretamente ao ponto! — observou seu pai. — Rufus nem tinha esfriado e Henrique correu de Winchester com os Beaumont à cata do tesouro. Fui chamado a Londres para ajudar a escolher o novo soberano, mas creio que nem valeria a viagem. A esta hora, Henrique já deve ter sido coroado, a menos que houvesse um movimento muito forte de oposição ao seu nome. O que é muito pouco provável, já que Rufus era muito impopular e o outro irmão, Robert, também não é benquisto.

— Mas Robert é o mais velho — assinalou Jehanne. — Não irá contestar a escolha?

— Isso é o que eu gostaria de saber,— disse lorde William. — Você deve ter conhecido Robert na Cruzada, Galeran.

— Servi na força dele a maior parte do tempo. Voltei para cá na sua companhia, e só nos separamos porque ele resolveu vadiar pela Sicília.

— Uma vadiagem da qual ele irá se arrepender pelo resto de seus dias.

— Não sei. Tenho a impressão de que, se Robert tivesse retornado para casa antes, Rufus teria morrido mais cedo.

Após alguns instantes de silêncio, Jehanne indagou:

— Henrique mandou matar o irmão?

— É difícil acreditar que não. — Lorde William sacudiu a cabeça. — Henrique Beauclerk sempre quis a Inglaterra. Por ser o único filho do Conquistador nascido aqui, sempre imaginou que este país lhe pertencia por direito de nascença, mas tinha somente dezenove anos quando o pai morreu e não estava em condições de se impor. Agora, aos trinta e dois, é um homem esperto, habilidoso. Sem dúvida alguma, estava apenas esperando por uma oportunidade como esta.

— Oportunidade? Parece tratar-se de um caso de homicídio.

— Acidentes acontecem, Jehanne, até mesmo numa caçada. Ainda assim... — disse Galeran, sentando-se diante do pai. — Vamos pensar com calma. Cheguei a Bruges com um pequeno grupo de cruzados, e alguns deles iam seguir para o Sul em vez de vir para o Norte. Desse modo, há cerca de uma semana Henrique foi avisado de que o irmão estava retornando são e salvo da Cruzada, coberto por todas as glórias

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de quem salvou Jerusalém dos infiéis. Mais ainda: Robert saiu-se muito bem por lá, onde alcançou um reconhecimento maior do que aquele que possui por aqui. Henrique deve ter imaginado que, se conseguisse destituir Rufus, Robert seria escolhido rei da Inglaterra. Então talvez tenha achado mais seguro recorrer à crueldade.

— A questão é: o que faremos? — quis saber lorde William, mas não esperou que o filho ou a nora respondessem. — Podemos apoiar a reivindicação de Robert.

— Por que faríamos isso? — perguntou Galeran, imaginando ser essa também a dúvida de Jehanne.

— Pela lei, pelo direito! Com mil demônios, Galeran, você anda tão perdido nas noções de certo e errado que apoiaria um vilão fratricida na luta pelo trono?

— Eu apoiaria quem viesse a ser o melhor rei.

— E você acha que o melhor seria Henrique?

— Sim. Não queremos a Inglaterra como uma província da Normandia outra vez.

— Certo, certo. — Seu pai deu um longo suspiro. — Ainda assim, devo confessar que isso não me cai bem.

— Rufus também não me caía bem, com seus seguidos incontroláveis e sua roubalheira desenfreada por intermédio de homens como Flambard.

Lorde William franziu as grossas sobrancelhas grisalhas.

— Você não está pensando nisto tudo como uma boa maneira de se livrar da interferência de Ranulph Flambard nos seus assuntos pessoais, está?

— Admito que a idéia me seja atraente. Sem a proteção de Rufus, parece-me que a tocha de Flambard tende a se extinguir, Mas com relação ao rei, que opção temos?

— Como eu disse, ouvi alguns mexericos além do mensageiro oficial. E eles dão conta de que alguns homens já se mexem para apoiar Robert.

— Que Deus nos ajude a todos, então. Vamos ter uma guerra pela Coroa?

— Não podemos manchar a lei e o direito pelo medo à luta.

— Já tive o meu quinhão de batalhas nesta vida.

— Nenhum homem pode escapar ao seu destino, Galeran; lemos de fazer o que é correto e justo. Isso, porém, pode esperar. Pode esperar. — O velho lorde afastou o manto dos ombros. — E por falar em Flambard... Que histórias são essas que ouvi sobre a busca da criança e de um arqueiro?

— Ambas deram em nada, pai. Como ficou sabendo?

— Hubert me mandou uma mensagem. Mas parece que meu próprio filho pretende me manter na ignorância.

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— Eu não queria aborrecê-lo.

— Não queria me aborrecer? — Lorde William pôs-se em pé. — Desde quando tenho outra coisa na vida a não ser aborrecimento? E por que Flambard haveria de querer a pirralha?

— Talvez seja mais certo supor que Lowick queira Donata.

— Porquê?

— Porque Jehanne teria de ir junto com a filha.

O pai de Galeran olhou feio para a nora.

— O miserável ainda deseja você, é?

Ruborizada até a raiz dos cabelos, ela conseguiu responder com muita calma:

— Raymond deseja Heywood.

— Pelas chamas do inferno! — sussurrou lorde William entre os dentes. — Henrique Beauclerk não será gentil com Flambard, e se Flambard vir sua ruína, certamente Lowick não verá coisa melhor.

— Exatamente — disse Galeran. — Assim sendo, tão logo declararmos nosso apoio a Henrique, poderei ir vê-lo para lhe pedir que repare a situação de Donata.

Lorde William tornou a se sentar.

— Ele terá de se ater à lei, e um pai tem direitos aos seus filhos.

— Um homem que sofreu uma injúria em sua casa tem direitos também. E o que pesará na decisão do monarca será você, pai. Se você apoiar Henrique leal e firmemente no Norte, ele não irá tentar transferi-lo daqui. E você não quer ser trans-ferido, eu presumo.

— Não seria muito mais fácil afogar a pirralha?

— Talvez seja o momento de você conhecer sua nova neta. Por que não vai buscá-la, Jehanne?

Assim que viu a nora sair pela porta, o velho nobre resmungou num balbucio:

— Ela não é minha neta.

— Acho melhor começar a se acostumar a tratá-la como tal.

Quando Jehanne retornou com Donata, Galeran apanhou a menina e colocou-a nos braços do pai. A mão de Deus fazia com que a pequena estivesse nos seus melhores momentos, sequinha, acordada e sem fome.

Galeran enviou uma mensagem silenciosa à esposa, que deslizou novamente para fora dos aposentos senhoriais. O bebê então olhou para as faces avermelhadas de William de Brome e mexeu os lábios como se quisesse falar.

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— Ora, ora... Parece uma avezinha, hein? — disse lord William, dando-lhe um dedo curto e caloso para agarrar. Ela faz lembrar o irmão, quando tinha a mesma idade.

A menção ao filho que ele não chegara a conhecer fez chão sumir sob os pés de Galeran. Mesmo assim, ele tentou mostrar-se impassível.

— E ela já tem força na mão — observou lorde William. — Pena que nunca irá segurar uma espada.

— Não esteja tão certo disso, pai. Donata é filha de Jehanne.

— É verdade! E... Está tudo bem entre vocês dois?

— Está como está. Não renunciarei a Jehanne e nem permitirei que alguém lhe faça mal. Como também não deixarei que levem a filha dela de nós.

Lorde William mexeu as sobrancelhas para uma encantada Donata.

— Você, tão pequenina assim, é uma trouxinha de problemas, não é mesmo? — Ele ergueu o olhar para o filho. — O que acha que Lowick irá fazer?

— Talvez tentar se apoderar de Jehanne e Donata por meio da força, não sei. E se não conseguir me matar, as chances dele de conseguir Heywood são pequenas, mesmo com as duas sob seu poder.

— E se ele se voltar ao duque Robert? Caso Robert venha contra nós, a proteção que daremos a você pode não vai significar muita coisa.

— Pai, conheço tanto Henrique como Robert. Se Robert herdar a Coroa, então esse terá sido um dos mais absurdos caprichos do destino.

— Como foi a vitória do Conquistador contra todas as adversidades e como foi uma flecha de caça ir cravar-se em Rufus? O destino parece gostar de pregar peças nos reis da Inglaterra, Galeran. Não espere que tudo vá se resolver pela lógica. — Erguendo-se, lorde William entregou-lhe o bebê. — Vou para Londres, fazer o juramento. Talvez você devesse ir comigo para apresentar seu caso diretamente a Henrique antes que mais alguém pense nisso. Seremos uma comitiva forte, que causar boa impressão.

Donata agitou-se, e Galeran ajeitou-a de encontro ao ombro, como vira Jehanne fazer. Descansando a cabecinha de encontro ao pescoço dele, a pequenina se acalmou.

— Quando pretende partir, meu pai?

— Em poucos dias.

— Mulheres e um bebê farão lenta sua viagem.

— Não me importo de viajar devagar. Só não quero que pareça que estou vagabundeando pela estrada.

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Galeran acariciou as costinhas de Donata, e isso fez com que a menina se largasse ainda mais de encontro a ele. Seria bom se permanecessem no aconchego do castelo, à espera d que os outros acabassem por se esquecer daquele serzinho tão indefeso quanto inocente. Infelizmente, porém, isso não seria possível.

— Iremos com você, pai.

Tão logo lorde William deixou os aposentos senhoriais, Jehanne foi ao encontro do marido. Ele lhe contou a conversa que tivera com o pai, depois quis saber:

— Você e Donata podem fazer unia viagem assim tão longa?

Ela olhou com carinho para a menina ainda adormecida junto ao ombro de Galeran.

— Claro que sim. Alimentá-la não será problema. Mas, temos mesmo de ir?

Percebendo o quanto sua esposa parecia temerosa, ele tento tranqüilizá-la:

— Precisamos resolver nosso problema, Jehanne. E ninguém melhor do que o rei para fazê-lo.

— Mas por que temos de partir às pressas? Ainda não é tão certo de que Henrique se mantenha no trono.

— Não podemos perder mais tempo. Com tantas questões confusas por conta da morte de Rufus, Flambard pode decidir-se pela força para impor sua vontade. Não quero pegar em armas contra a Igreja. No mínimo, isso iria me custar uma fortuna em multas.

— Mas o rei não irá colocar nosso problema diante de um tribunal eclesiástico?

— Se o fizer, será sob a jurisdição do bispo de Londres.

— E se ele decidir contra nós?

— Não podemos nos esconder num buraco e ficar perguntando "E se...?". — Galeran entregou-lhe a menina, depois lhe passou o braço ao redor do ombro. — Confia em mim?

— Claro que confio em você. E estou tentando mudar. Tenho tentado não ser tão difícil, juro.

— Não mude demais, Jehanne. — Ele beijou-lhe o rosto. — Amo minha esposa combativa, de língua afiada. E não gostaria de ver-me casado com uma dócil criatura com voz de mel que desmaia só de ver um javali.

Ela sorriu e, baixando os olhos à filha, disse-lhe num murmúrio:

— Seu pai é maluco. — Quando percebeu o que tinha feito, Jehanne sentiu as pernas fraquejarem.

Galeran, no entanto, não parecia incomodado com a observação.

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— A não ser pela questão do sangue, o pai de Donata sou eu. O que não sou é maluco.

A caminho do pátio, Aline perguntava-se como podia ter-imaginado que não se interessasse pelos assuntos terrenos. Após a missa daquela manhã, falara com o padre Robert, constrangendo-se até o último fio de cabelo para lhe explicar seus sentimentos confusos. Esperava ouvir que qualquer contacto com Raoul seria perigoso e malévolo e que ela devia retornar imediatamente ao convento.

Contudo, o conselho do padre tinha sido bem outro.

— Lady Aline, você ainda não fez os votos para noviça e assim não precisa se apressar para descobrir qual é a maneira pela qual Deus deseja que você Lhe sirva. Sofrer as tentações da carne não irá impedi-la de tornar-se freira. Os que estão na Ordem Sagrada também são tentados, mas aprendem a resistir, é desse modo que renovam suas forças.

E foi assim que Aline viu-se imaginando se seus preocupantes sentimentos para com Raoul de Jouray eram uma mensagem de Deus dizendo-lhe que ela devia casar, ou uma tentação do demônio enviada para fortalecê-la.

Ao mesmo tempo, afligia-se na tentativa de adivinhar se Raoul nutria-lhe algum sentimento. Ou ela seria apenas um desafio, mera diversão a um homem cheio de energia sem te muito que fazer no norte do país?

Sabendo que provavelmente o encontraria ali, Aline dirigiu-se à área de treinamento, num canto afastado do pátio. Raoul era talhado para as práticas militares. Na véspera, empoleirada numa janela seteira, ela o vira exercitar-se, junto a dois soldados, no uso do martelo de guerra. Hoje, no entanto, por algum motivo resolvera que não iria se esconder para observá-lo e seu treino.

Com esse pensamento em mente, Aline foi pisando duro até o terreno reservado à prática marcial. E lá chegando viu que os homens treinavam táticas de ataque em grupos de quatro soldados.

Seminus.

O dia estava bastante quente, e era evidente que os homens se ressentiam do calor. A maioria deles havia tirado a camisa, mas foi o peito de Raoul que fez o coração de Aline disparar. Ela já o vira completamente nu na sala de banhos da casa do pai, mas, na ocasião, concentrara-se mais em não olhar para ele do que em lhe admirar a excelente forma física. Hoje, à luz da conversa que tinham tido à mesa de Jehanne e Galeran, sentia-a obrigada a avaliar as armas de que ele dispunha.

Que lhe pareceram de fato poderosas.

A grande estatura de Raoul equilibrava-se a uma constituição física bastante forte, fazendo dele o homem mais impressionante do grupo reunido ali. Mas eram seus gestos, ágeis e harmoniosos, que capturavam a atenção de Aline. Ele se mo-

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vimentava com a elegância natural de um animal selvagem, girando, saltando, derrubando seus oponentes ao chão sem se deixar tocar.

Aline assistia à prática com a mão na boca e o coração aos pulos. Ao cabo de alguns minutos, quando enfim notou que ela estava parada ali, Raoul deu um sorriso largo, os dentes muito brancos ressaltados pela poeira que trazia no rosto.

— Quer arriscar-se a uma estocada, minha dama?

Sem pensar no que fazia, ela deu-lhe as costas e disparou para o salão.

Instantes depois, da poltrona junto ao berço de Donata, Jehanne ergueu os olhos do bordado para perguntar à esbaforida prima:

— O que houve?

— Nada. — Aline ajeitou o véu enquanto tentava recuperar o fôlego.

— Como, nada? Alguma coisa deve ter acontecido. — Os, lábios de Jehanne curvaram-se discretamente. — Deixe-me adivinhar... Raoul de Jouray.

Sentando-se perto dela, Aline acalmou-se o suficiente para tomar de seu fuso para tecer e contar dos exercícios a que assistira na área de treinamento.

— Ele é o tipo de homem que gosta de lutar e caçar acima de tudo — observou Jehanne.

— Isso é um aviso? — Aline esforçava-se para prestar atenção ao movimento da roca.

— Talvez. Mas eu não disse que nada mais interessa a Raoul. Estou certa de que ele aprecia os jogos amorosos também.

— Pois esses são os assuntos que não me interessam.

— Bom. De qualquer forma, se ele está tão sujo como você disse, por certo vai querer banhar-se.

Mesmo sabendo que ruborizava até arder, Aline murmurou uma desculpa e foi verificar se havia água quente, a excitação fazendo-a caminhar como se pisasse em ovos. Mentira ao dizer à prima que os jogos amorosos não lhe interessavam. E, se quisesse ser honesta de verdade, deveria ter dito que já havia uma espécie de jogo amoroso entre ela e Raoul. Um jogo que, esperava, estaria somente nos lances iniciais...

Após um lapso de tempo, quando começou a estranhar que Raoul não aparecia, Aline foi à procura dele. Encontrou-o sentado entre os homens com quem havia treinado, todos com suas camisas, conversando e rindo enquanto cuidavam de suas armas. Ele lhe pareceu razoavelmente limpo, e deslizava uma pedra de amolar ao longo da lâmina de sua espada com o cuidado de um amante.

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Ao avistá-la, Raoul ergueu-se, embainhou a espada e foi ao encontro dela com um semblante quase sombrio.

— Lady Aline, espero que não tenha levado minhas palavras a mal. Talvez eu não tenha usado de uma expressão adequada para convidá-la a treinar o manejo de uma arma de combate.

— Ah, você é impossível! — O franzido que ela tinha na testa se apagou. — Será que posso perguntar como está tão limpo?

Ele olhou para as roupas um tanto amarrotadas que vestia e sorriu.

— Este aspecto de limpeza é cortesia de uns bons baldes de água do poço. Estou limpo o suficiente para um beijo?

— Claro que não!

— Era o que eu temia. Mas se você não vai me beijar, doçura, então devo voltar a cuidar de minha espada já que ela, com toda a certeza, aprecia bastante os meus carinhos.

E foi o que ele fez, deixando Aline corri uma enorme sensação de abandono.

Depois disso, contudo, ela não teve muito tempo para refletir sobre tais assuntos: Jehanne precisava de sua ajuda para preparar a viagem.

No dia seguinte, enquanto reviravam arcas e selecionava roupas apropriadas, sua prima lhe disse:

— Você não precisa vir conosco, Aline. Pode retornar a Burstock, ou mesmo a St. Radegund, se preferir.

— Mas eu nunca estive no Sul, e sempre quis ir...

— A viagem será longa, árdua, e não sabemos que perigos podem nos espreitar.

— Não faz mal. E certamente lorde William e Galeran saberão nos proteger de qualquer ameaça. — Aline hesitou, mas então prosseguiu: — E Raoul de Jouray também. Ele estará na comitiva, não é mesmo?

— Suponho que sim. Galeran disse qualquer coisa sobre Raoul querer ir a Londres à procura de uvas. Ele deve estar sentindo muita falta de sua casa no sul da França.

Alarmada com o medo que sentia de ser deixada para trás, Aline mergulhou o rosto vermelho como pimenta numa das arcas.

Numa pequena e aconchegante sala de visitas no Palácio do Bispo em Durham, Ranulph Flambard desembrulhava um pacote, desfazendo camadas de couro e tecido até revelar um pequeno crânio branco. Robusto, de meia-idade, de rosto comprido e tez amarelada, era um homem inteligente e sagaz, e ambas as qualidades estampavam-se em sua fisionomia. Era também brutalmente desejoso de força e poder, mas isso se via em suas atitudes.

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A carta que acompanhava o presente dissera-lhe pelo que esperar, mesmo assim ele ainda considerava as implicações contidas naquelas palavras. Tendo chegado quase ao mesmo tempo em que a notícia da morte do rei Guilherme Rufus, o estranho presente era especialmente perturbador.

A morte de Rufus trazia em si um duro golpe, mas Flambard não era homem de apoquentar-se com aquilo que não podia mudar. No momento, o que lhe importava era manter sua riqueza, seu poder e sua influência.

Se dependesse de sua vontade, seguiria despreocupado sob o governo de Henrique Beauclerk, ainda que o novo rei nunca tivesse demonstrado boa vontade para com ele. Para se sustentar no trono, Henrique, assim como Rufus, iria precisar de dinheiro, mas mesmo sendo perito em espremer dinheiro dos súditos, Ranulph Flambard não estava certo de que o monarca conseguiria manter-se em sua posição.

A constatação o fez pensar no irmão de Henrique, Robert da Normandia, que era um homem menos esperto e, desse modo, mais manipulável. A ascensão de Robert ao trono, porém, se daria por meio de uma guerra, o que significava que ele iria favorecer os homens com poderio militar em detrimentos daqueles com habilidades administrativas. E Flambard não conseguiria amealhar poder no Norte a menos que destruísse William de Brome.

Após contemplar o crânio por mais alguns instantes, ele mandou chamar Raymond de Lowick.

O homem que chegou pouco depois quase teve de se curvar para passar sob a verga da porta, e o tamanho excessivo de seus músculos pareciam ocupar espaço demais ali, naquela saleta. Flambard considerava Lowick uma aborrecida mistura de ambição e escrúpulos, mas seus cabelos loiros, seu tórax maciço e sua postura altiva faziam as mulheres considerá-lo atraente. E era exatamente uma mulher quem estava no âmago daquela questão.

— Meu lorde bispo, o senhor tem novidades para mim?

Ignorando o quanto o incomodava ver aquele homem ali, a mão na empunhadura da espada como se pronto para o combate num momento tão inadequado como aquele, Flambard respirou fundo e contou-lhe sobre as aventuras do irmão Forthred em Heywood e Burstock.

Raymond franziu as sobrancelhas.

— Como uma missão tão simples pôde ter malogrado?

— Lorde Galeran é bem mais inteligente do que você me fez supor, sir Raymond.

— O que inteligência tem a ver com isso? O senhor disse que eu tinha direitos sobre minha filha.

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— Mas mães e filhas não podem ser separadas, uma alegação com a qual já contávamos, e lorde Galeran reivindica o direito às atenções da esposa.

— Jehanne sempre me amou, meu lorde bispo, e não queria se casar. O pai dela teve de açoitá-la até o altar para obrigá-la a fazer seus votos àquele biltre.

Flambard deixou escapar um suspiro. Não era isso o que os fatos recentes demonstravam.

— Mesmo assim ela não deixou o castelo na sua companhia quando teve oportunidade para fazê-lo, sir Raymond.

— Jehanne é uma mulher que honra seus compromissos. Admiro-a por ser assim.

— É de fato deveras admirável... Bem, de acordo com as informações que tive, ela não trocou intimidades com você durante o período da gravidez. Ou depois.

Lowick corou.

— Admiro-a por isso também. Jehanne não é uma pecadora, meu lorde bispo. Fomos fracos, mas tão-somente uma vez.

— Mas você tentou persuadi-la a pecar novamente.

— Eu o confessei ao senhor.

Flambard estudou o homem a quem via como um mero instrumento. Queria acreditar que Jehanne de Heywood preferia Lowick ao marido; pela sua experiência, porém, sabia que as mulheres não eram propensas a escrúpulos nobres e admirá-veis, principalmente quando supunham o marido morto. Se lady Jehanne estivesse com medo de fugir do esposo, isso se resolveria com a morte do infeliz. No entanto, se estivesse realmente arrependida de seu pecado, poderia dar a si mesma, e sua propriedade, a um convento, e isso não se resolveria de modo nenhum.

Jehanne de Heywood poderia constituir-se num meio para ele dar um fim ao poder de William de Brome sobre o Norte. E também poderia fazer um desastre dos seus planos de hegemonia sobre todo o país. Era por isso, dentre outros motivos, que ele preferia as mulheres dóceis. Ou melhor, estúpidas.

— O irmão Forthred trouxe de Heywood uma história dando conta de que lorde Galeran foi atacado nas proximidades de seu castelo.

— Bandidos? — Lowick não parecia muito interessado.

— Duvido. O agressor era um arqueiro. Estava sozinho e manejava uma besta.

— Uma besta! Aquilo é uma arma do demônio. O que um desgraçado desses esperava conseguir?

— A morte de lorde Galeran, presumo.

— Galeran foi ferido?

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— De modo algum.

— Dou graças por isso. Nenhum homem deveria morrer de maneira tão desonrosa. Pela Santa Cruz, se eu colocasse minhas mãos num patife como aquele que...

— O assunto já foi resolvido, sir Raymond. Lorde Galeran o despachou desta vida. E com considerável rigor, pelo que ouvi dizer.

— À sua maneira, ele é um homem capaz.

— E mesmo com tudo isso você ainda acredita estar apto para derrotá-lo numa batalha jurídica?

— Sem sombra de dúvida, meu lorde. Pelo bem de Jehanne e nossa filha, estou disposto a fazer o que for preciso.

Embora Lowick fosse reconhecido como um formidável oponente, Flambard não estava mais seguro de poder contar ' com o sucesso daquela empreitada. Por algum motivo, sentia agora uma ponta de incerteza acerca de toda aquela questão. A exceção de uma bofetada, as reações que o lorde de Heywood tivera desde seu retorno da Terra Santa não tinham sido naturais. E batalhas judiciais eram sempre um jogo arriscado, o qual se deveria evitar quando houvesse formas mais seguras de lutar.

Sem maior aviso, ele lançou a informação seguinte:

— O rei morreu.

— Rufus? Como?

— Ao contrário do lorde de Heywood, ele não escapou a uma conveniente seta.

— O rei estava com Galeran?

Flambard muniu-se de uma paciência que estava longe de dispor.

— Não. Rufus estava com o irmão, Henrique, na Floresta Nova. Presumo que a uma hora destas, Henrique já tenha reivindicado o trono. Infelizmente, ele não é meu amigo. Devemos torcer para que o duque Robert volte da Normandia em breve.

— O senhor acha que o duque seria favorável ao meu caso?

— Pela promessa do seu apoio a ele, sim. Se Wiliiam de Brome alinhar seus partidários com Henrique, o duque Robert buscará um apoiador firme e leal aqui no Norte. Esse homem poderei ser eu, e poderá ser você, uma vez que Galeran de Heywood estivesse morto e a viúva dele fosse sua esposa.

Com a impressão de que a idéia fazia Lowick crescer em altura, Flambard passou a mão pelo liso crânio branco sobre sua mesa.

— O que é isso? — Lowick não dissimulou certa aversão. — O crânio de uma criança?

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— O crânio de São João Batista quando infante.

Lowick pôs-se de joelhos.

— Meu lorde! Posso tocá-lo?

Flambard tornou a suspirar.

— Claro.

Após encostar o dedo reverentemente no osso branquinho, Raymond beijou-o de leve, sua expressão suavizando-se quase a um encantamento infantil.

— Onde conseguiu tal milagre, meu lorde bispo?

— Um milagre, de fato. É um presente de Galeran de Heywood, em agradecimento por eu ter promovido a paz entre você e ele.

Lowick correu a se levantar.

— Um suborno, o senhor quis dizer. Agora entendi. Está apoiando a causa dele contra a minha.

— Essa hipótese tem seus atrativos, devo admitir. Mas, não. Não vejo futuro nela, pois a família dele não se uniria a mim em nenhuma circunstância. Temos de virar a morte de Rufus em nosso favor, mas, não importa o que façamos, a solução do problema ainda é a morte do lorde de Heywood.

— Ficarei feliz em matá-lo num confronto honroso.

— Não é provável que você venha a ter essa chance a menos que ele o desafie.

— Ele não teria coragem!

— Cuidado como fala, sir Raymond. Jamais se esqueça de que lorde Galeran é um cruzado. Ele é tido em grande consideração e respeito.

Lowick pôs-se a andar de um lado para outro, o manto e a bainha da espada ameaçando os pequenos objetos dispostos pela sala.

— Só porque ele esteve lá? Pois eu gostaria de ter ido também. Teria lhes mostrado o que é o verdadeiro heroísmo!

— Estou certo de que muitos compartilham desse desejo, sir Raymond. — Quando a bainha quase derrubou um candelabro, Flambard explodiu. — Mantenha-se quieto, por favor!

Lowick obedeceu no mesmo instante.

— Escute com atenção, sir. Ouvi dizer que William de Brome e Galeran de Heywood planejam ir ao Sul para declararem-se a favor de Henrique. E claro que, com isso, esperam pela adesão do rei às suas reivindicações. Lady Jehanne e a filha devem acompanhá-los. Você também deverá seguir para o Sul sem demora, para tentar arregimentar apoio ao seu pleito antes que eles cheguem. Enviarei o irmão Forthred

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para lhe dar assistência e aconselhá-lo, já que ele parece pensar que tem contas a ajustar com Heywood.

— Pensei que eu fosse prestar juramento a Robert da Normandia.

— Em Londres haverá muitos que empenharam sua lealdade a Henrique com um olho em Robert. Além do mais, Robert demorou-se na Sicília e talvez leve semanas para chegar aqui. Eu também seguirei para Londres amanhã, mas não terei con-dições de viajar na mesma velocidade que você. — E o que tenho de fazer, meu lorde?

— Aparente dar seu apoio a Henrique, e com isso ganhar simpatias à sua causa. Assim que o lorde de Heywood chegar, tente fazer da questão um desafio e o mate. Como Deus terá se manifestado por meio da sua espada, Henrique não terá muita escolha a não ser lhe dar lady Jehanne e o castelo dela. Então, se Robert declarar guerra pela Coroa, você estará em excelentes condições de lhe dar seu apoio e, desse modo, galgar a um lugar de destaque no reinado dele.

Os olhos ambiciosos de Lowick cintilaram.

— Matar Galeran será fácil. Difícil vai ser levá-lo a me desafiar.

— Dê o melhor de si. Se nada estiver resolvido quando eu chegar a Londres, buscarei novas idéias. Até lá, é suficiente que você faça sua parte e liquide lorde Galeran. Que Deus o acompanhe, sir Raymond.

Apoiando-se num joelho, Lowick beijou o anel de Flambard e depois o pequeno crânio antes de partir em sua missão sagrada.

O bispo tomou o crânio na mão.

— Que belo artigo para ludibriar os tolos é você... Mesmo assim, nesta batalha eu ainda preferia lorde Galeran de Heywood ao meu lado em vez de Raymond de Lowick.

Dois dias depois, cercada por medidas de segurança, a comitiva de Galeran deixava Heywood.

Seis dos soldados de lorde William tinham ido até lá para juntarem-se aos oito que Galeran levaria na viagem. Como o grupo incluísse Jehanne, Aline e uma criada com Donata, todos cavalgando suas próprias montarias e mais dez cavalos para transportar a bagagem, o cortejo causava impressão.

Especialmente bem-humorado, Raoul foi para perto de Galeran, que seguia no meio do comboio, com a idéia de provocá-lo.

— Poderíamos levar você numa lixeira de ferro — observou o francês. — Duvido que alguém conseguisse acertá-lo.

— E eu poderia deixá-lo tomando conta de Heywood.

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— Você não tem poder sobre mim. E eu não perderia este: passeio por nada no mundo.

— Passeio, Raoul? Espero que seja apenas uma viagem monótona seguida por um tedioso trabalho de documentos.

— Ora, você não tem o mínimo espírito aventureiro!

— É verdade. Tudo o que desejo é uma vida tranqüila junto à minha família nas minhas terras. Em prosperidade, se possível. E você? Pretende partir em busca de aventura quando tudo isto terminar?

— Talvez.

— Embora eu ame a vida campestre do Norte, não creio que ela seja capaz de segurar você aqui.

— Você está certo, Galeran. Antes que o inverno se instale, já terei partido para terras mais ensolaradas. Entretanto, perdi, o gosto por guerras santas e batalhas sem sentido. Vai ver o seu exemplo esteja me fazendo pensar em me acomodar num canto sossegado.

— Meu exemplo! A minha experiência deveria servir para afastar você das mulheres por um bom tempinho.

— Mesmo assim, você não me parece um homem infeliz.

— E verdade, Raoul. Se conseguirmos resolver a questão que envolve Donata e afastar Lowick do meu caminho para que eu possa me dedicar ao trabalho nas minhas propriedades, serei o mais feliz dos homens.

— E eu não teria o direito ao mesmo?

— Claro que sim. Só que eu me pergunto se você teria um temperamento propenso à vida doméstica. À fidelidade. Ou então... Será que você estaria pensando em estabelecer uma vida a dois junto a Aline? Deixando de lado o propósito dela em tornar-se freira, Aline é uma garota do Norte, nascida e criada aqui. O que seria do seu amor pelo sol, meu amigo?

— Tentarei seduzi-la com frutas do Sul...

— Bem, então retiro o que havia dito. Apesar de tudo, este passeio promete ser dos mais interessantes.

Após o pernoite em Brome, partiram no dia seguinte num cortejo ainda mais impressionante rumo a Richmond, de onde iriam tomar a velha estrada que seguia numa linha reta para o Sul.

Naquela noite, pediram hospedagem num convento. Como o local tivesse dormitórios separados para homens e mulheres, não foi possível que Galeran e Jehanne ficassem juntos.

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Após ajudar Aline a apear de seu cavalo, Raoul acompanhou-a até a entrada do dormitório feminino. Diante da porta de aspecto intransponível, ela deu um sorriso orgulhoso.

— Algo me diz que esta viagem não ensejará muitas oportunidades para os seus assaltos à minha cidadela, sir Raoul.

— Faz parte das habilidades de um bom soldado buscar os pontos fracos de qualquer defesa.

— Duvido de que vá encontrar algum por aqui.

— Será que não, minha dama? Na maioria dos estabelecimentos religiosos, a capela é área comum a todos.

— Ninguém ousaria namorar numa capela!

— Tem certeza?

— Sua alma não terá salvação.

Aline virou-se e fez menção de abrir a porta, mas ele lhe segurou a mão. Após depositar um suave beijo sobre os dedos agora trêmulos, Raoul disse baixinho:

— Não pense mal da minha alma ou de qualquer outra parte do meu corpo, lady Aline. Ao contrário do que imagina, talvez seja o meu coração que esteja crescendo com o que pode ser um começo de amor por você.

Ela recolheu a mão com um gesto brusco.

— Se há alguma coisa que cresce no seu corpo, sir, certamente não é o coração!

E, após uma rápida olhadela nos genitais dele, Aline girou a maçaneta e marchou para o dormitório. Raoul deu uma gargalhada, mas logo se resignou à conclusão de que ir cuidar dos cavalos, naquelas circunstâncias, seria uma boa maneira de gastar as energias.

Aline entrou no dormitório pisando duro e se censurando por curvar-se à pilhéria de mau gosto e os olhares pouco castos. As coisas que Raoul de Jouray a levava a fazer... Mas se ele imaginava que ela iria ao seu encontro na capela, ah!, como estava enganado.

Por outro lado, seria muito bom fazer as preces da noite num lugar sagrado. E ela não devia permitir que um bandido a afastasse de Deus.

Ajudando Jehanne e Winifred, a pajem de Donata, com o bebê, Aline lutava contra aquela mistura de medo, revolta e uma curiosidade desenfreada. Sentia-se como uma marionete presa por cordas de lã que, quanto mais se agitava, mais se enroscava nos fios.

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Havia mais outras três mulheres no dormitório: a esposa e a filha de um mercador e a esposa de um pedreiro. A família do mercador retornava de Nottingham, onde tinham ouvido a notícia definitiva da coroação de Henrique Beauclerk.

— Tenho medo dos problemas que poderão advir assim que o filho mais velho do Conquistador voltar para casa — comentou a magra Freda, sacudindo a cabeça. — Eu era criança quando os normandos vieram para a Inglaterra, mas me lembro bem de como foram terríveis aqueles tempos. Se eu fosse vocês, damas, não iria para o Sul tão cedo.

— O duque Robert ainda está longe — disse-lhe Jehanne. —Ele irá se apressar quando souber o que houve — retrucou a mulher. — Por via das dúvidas, prefiro permanecer no Norte. Assim que Freda e sua pálida filha acomodaram-se em suas camas, Aline perguntou baixinho a Jehanne:

— Acha que o duque Robert irá invadir nossas terras?

— Não. O Conquistador gastou uma montanha de ouro para dominar a Inglaterra, comprando soldados com moedas e a promessa de terras em nosso país. Essas terras agora estão em mãos de homens fortes descendentes dos normandos, que por certos não se disporão a desistir delas. A menos que os barões se voltem contra Henrique, Robert não tem a menor chance.

— Você disse que ele não será bem-sucedido, e não que não irá nos invadir.

— É verdade. E eu não creio que ele seja um homem muito prudente. De qualquer modo, o duque ainda está se demorando na Sicília, que fica no sul da Itália, a semanas de distância daqui. O que quer que Robert faça não irá atrapalhar nossa viagem.

— Não. Seu inimigo é Ranulph Flambard, com Raymond de Lowick como seu testa-de-ferro. Não imagino como este novo rei poderá afetá-los.

— Não temos mais o que fazer a não ser esperar e rezar, Aline. Você já está pronta para dormir?

Como se impelida por uma força fora de si, Aline ergueu-se e alisou as saias, anunciando:

— Por falar em orações, acho que vou visitar a capela.

— Muito bem. Mas não reze a noite inteira, pois amanhã, partiremos cedinho.

Com o coração descompassado, chegou correndo à pequena porta que dava acesso à capela. Respirando fundo, abaixou o trinco de latão e deslizou para o interior do santuário. Viu-se num lugar pequeno, quieto, dominado pelas sombras criadas por velas que ardiam aqui e ali.

Tomada por súbita culpa pelos pensamentos que vinha tendo e pelo motivo pelo qual tinha ido até lá, Aline ajoelhou-se diante do altar-menor e rezou à Virgem que

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trazia o Filho nos braços. Pediu forças para ser boa, rogou perdão pelos pecados. Apesar do que diziam os padres, sabia que a bondade não era correlata da virgindade. Sua mãe fora uma mulher muito boa mesmo tendo dado à luz oito filhos, e lorde Hubert era tão bom quanto o melhor dos homens mesmo sendo pai.

Galeran também era bom.

Raoul de Jouray, no entanto, era...

Irritada, ela afastou o francês de suas divagações. Contudo, antes que pudesse retomar os pensamentos, uma cantoria veio invadir-lhe os ouvidos. Aline logo concluiu que os monges estavam chegando para as completas, último ofício religioso, antes do descanso noturno. Ao levar o olhar à coluna de figuras envoltas em hábitos e capuzes que avançava pela capela, e viu Raoul de Jouray rezando, ajoelhado perto de um gradil de ferro.

Continuou a observá-lo com o canto dos olhos até ver-se envolvida pela beleza da música que lhe era tão familiar e que agora tomava todos os espaços da capela. E então se pôs a rezar pela paz e pela segurança no transcorrer da noite e da viagem.

Quando a cerimônia religiosa chegou ao fim e os monges começaram a deixar a pequena nave, Aline olhou outra vez para Raoul.

Mas ele não estava mais lá.

Pela manhã, ele veio ajudá-la a preparar seu cavalo.

— Espero que tenha dormido bem, lady Aline.

— Muito bem, obrigada. E você?

— Tive um sono desassossegado, imaginando que você estava tão perto. Sei que é estranho, mas, na noite passada, você me pareceu ainda mais próxima... Talvez pelo fato de nos encontrarmos num mundo ao qual não pertencemos.

— Estou bastante acostumada às casas religiosas, sir Raoul.

— Tenho viajado um bocado, lady Aline, e esta sensação de estranheza sempre me acomete. Seja como for, viajamos com um grupo que pode ser considerado nossa família, não é mesmo? E quando chegarmos a Londres, estaremos mais próximos do que éramos antes.

Após um instante de hesitação, Aline aproveitou que tinha as mãos e os olhos ocupados nos arreios para perguntar:

— O que fazia na capela ontem à noite?

— Rezava.

— Você disse que estaria lá para tentar uma investida contra mim.

— Investida? Prefiro que me imagine como um suplicante diante de seus portões. Implorando para que abra e me permita entrar.

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— A noite passada... A noite passada você não me pediu nada.

— Talvez a noite eu estivesse buscando o auxílio do seu Senhor Supremo. E o seu Senhor, que é também o meu, deu-me esperanças.

Ela aceitou a ajuda de Raoul para acomodar-se à sela, mas depois o repreendeu:

— Não coloque Deus nisto. Isto tudo é apenas um jogo, e dos mais estúpidos.

— Muitos homens pensam que a guerra é somente um jogo, Aline. Ainda assim, ela os leva tanto à morte quanto à glória.

E com isso Raoul se foi, deixando-a a imaginar se teria de fato compreendido o sentido de toda aquela conversa.

Em Baldersby ele lhe deu flores. Em Wetherscot presenteou-a com morangos silvestres. Em Knottingly, onde pararam por dois dias para que os cavalos descansassem, roubou-lhe um beijo.

Raoul a persuadira a dar um passeio até um riacho sombreado por árvores não muito longe da hospedaria, onde ficaram a admirar o movimento das águas na companhia de uma profusão de pássaros, insetos e flores. Enquanto desfrutavam da beleza de uma tarde de verão inglesa, ele lhe falou de sua terra natal onde, assegurou-lhe, as flores eram mais vistosas, os pássaros tinham a plumagem mais bela e os peixes saltavam sozinhos da correnteza. E onde havia campos repletos de uvas suculentas.

— Não acha, Aline, que você gostaria de viajar para poder ver esses lugares por si mesma?

Recostando-se ao tronco de plátano, ela ponderou:

— Freiras às vezes viajam...

— Não com freqüência.

— Não me agrada uma vida de perambulações.

— Viajar e perambular são coisas diferentes, Aline. Viajar significa sair de determinado lugar e depois regressar a ele. Perambular é levar uma vida sem raízes.

— Você tem raízes, Raoul?

— Sim. E você?

Aline analisou a questão. Burstock na verdade não era mais seu lar agora que sua cunhada mandava por lá. E a tímida Catherine nem dissimulara a satisfação de ver a irmã do marido partir para o convento. Não que desgostassem uma da outra, mas Aline não conseguia deixar de organizar as coisas e, desse modo, suplantava a autoridade de Catherine.

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Tão logo ela e Jehanne tinham aparecido diante dos portões de Burstock no outro dia, Catherine correra a lembrar-se de um compromisso urgente em St. Radegund e para lá havia partido sem maiores explicações. A moça não gostava de conflitos, mas, de maneira calma e resoluta, estava decidida a cuidar de tudo em sua casa.

Aline cogitou de que seu lar agora fosse St. Radegund. Ou melhor, agora não. Ainda não.

— Onde estão suas raízes? — perguntou a Raoul.

— No meu lar. Em Guyenne e na casa que meu pai tem lá.

— Você tem irmãos?

— Um só. Tenho uma propriedade perto de Jouray e pretendo me estabelecer por lá um dia destes.

Interessante. Aline imaginara que ele não tivesse bens. Enquanto ela pensava nisso, Raoul prosseguiu:

— Eu gostaria muito de lhe mostrar minha casa. Quem sabe você não concluiria que a terra por lá é boa para fincar suas raízes.

— Ora, eu... Eu mal o conheço...

— Pois eu acho que me conhece muito bem.

E fora após dizer isso que Raoul a beijara, enlaçando-a pela cintura para trazê-la junto de si.

Aline experimentou uma sensação quase devastadora. Na retina dos olhos fechados, viu um exército agressor circulando um castelo sitiado, pondo abaixo suas muralhas... Ela virou o rosto para protestar:

— Isso não é certo!

Para sua surpresa, e talvez decepção, ele soltou-a e deu um passo para trás.

— É verdade, eu deveria estar ajudando você a fortalecer suas defesas; em vez disso, estou atacando como se quisesse tomar a fortaleza.

— Se imaginou que a conquista fosse ser tão fácil, sir, enganou-se redondamente!

— Aline, eu não...

Recusando-se a lhe dar ouvidos, ela se pôs a caminho da estalagem.

Raoul foi atrás.

— Lady Aline, vamos rever o incidente e examinar de que maneira suas estratégias podem ser melhoradas.

— Não quero ao menos falar com você!

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— Para começar, você não devia ter concordado em passe comigo longe dos demais, suas defesas ainda estão frágeis demais para um combate corpo a corpo. Tendo vindo comigo, não devia ter permitido que eu a encurralasse junto àquela árvore, estratégia elementar, minha dama. Aline apressou o passo, mesmo assim retrucou:

— Confiei em você!

— Outro erro. Nunca confie num declarado oponente.

— Pensei que fôssemos amigos...

Agarrando-a pelo braço, Raoul a fez virar-se e encará-lo.

— Nós somos amigos, Aline.

— Como isso é verdade, se não posso me confiar a ficar a sós com você?

— Quando treino com Galeran, estaríamos sendo amigos se um não testasse o outro, se um não pressionasse o outro aos seus limites? De que outro modo haveríamos de nos aprimorar?

— Vocês poderiam matar-se dessa maneira.

— Essa possibilidade realmente existe.

Aline fez esforço para ignorar as mãos dele em seus ombros, perguntando:

— E quanto a nós?

Raoul afagou-lhe o rosto de leve.

— Nós estamos jogando um jogo bastante perigoso, Aline.

Na manhã seguinte, Aline constatou que ele não havia mentido.

Os homens haviam decidido tirar o restante do dia para praticar suas habilidades. O pequeno solar que os abrigava possuía uma área destinada a treinamentos de todos os tipos, mas, como chovera logo cedo, o lugar não demorou a se transformar num lamaçal onde os entusiasmados guerreiros chafurdavam em brincadeiras violentas. Até mesmo lorde William tomava parte na algazarra.

Jehanne, que viera assistir aos confrontos de mentirinha e, Donata nos braços, logo comentou:

— Ainda bem que há um rio perto daqui, pois duvido que haja no poço água suficiente para deixar todos limpos.

Os homens haviam se colocado num círculo, e cada cava leiro de Galeran enfrentava um cavaleiro de lorde William Treinavam com espadas pouco afiadas, porém cortes e arranhões eram absolutamente inevitáveis em práticas como aqueIa, ainda mais num terreno tão escorregadio. E como Raoul havia afirmado, tanto ele

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quanto Galeran exercitavam-se com tenacidade e ousadia simplesmente assustadoras.

Impressionada, Aline deixou escapar um suspiro. Era notável que a espécie humana houvesse sobrevivido num mundo tão violento.

No meio da tarde, Jehanne foi procurar pela prima e encontrou-a na varanda nos fundos do casarão, ajudando lady Marjorie, a idosa dama do solar, a preparar ervas medicinais E não pôde deixar de notar que, enquanto triturava alguma folhas, Aline tinha a testa franzida.

— Por que essa expressão tão séria? — perguntou Jehanne pegando um maço de borragem para lhes arrancar as pétalas — Ainda está impressionada com a prática dos homens?

— Não. — Aline batia o pilão com exagerada força no fundo da caçamba.

— Está com dor de cabeça?

— Nunca tenho dores de cabeça.

— Tudo muda quando as circunstâncias mudam. Então sã seus sentimentos para com Raoul de Jouray que a preocupam

Lady Marjorie olhou para uma, depois para outra, depois sacudiu a cabeça coberta por cabelos grisalhos.

— Não tenho sentimento nenhum para com ele — retrucou Aline.

— Não é nada cristão não ter sentimentos por um outro ser humano.

— Você me entendeu muito bem.

— Aline, de certo modo, sou responsável por você. E Galeran também. Tanto eu quanto ele nos sentiríamos culpados se você fizesse alguma tolice.

Aline olhou para ela. Ia dizer alguma coisa, mas teve a impressão de que sua garganta se fechava e, num gesto instintivo, tornou a baixar o olhar ao pilão. Jehanne respirou fundo antes de perguntar:

— Você se apaixonou por Raoul, é isso?

— Apaixonar? Claro que não! — Aline apanhou um galhinho de salgueiro e arrancou-lhe as folhas, depois jogou sobre a mistura que socava. — Mas estaria mentindo se dissesse que não o acho excitante. E como pretendo aprender mais sobre os sentimentos amorosos, tenho treinado com ele.

— Treinado...! — Foi a vez de Jehanne olhar para a prima. — Que tipo de treinamento é esse, menina?

— Ele tenta me seduzir, e eu aprendo como resistir.

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— Seduzir! — Jehanne deixou de lado folhas e flores. — Ficou maluca? E se ele ganhar, estará arruinada!

Aline continuou com sua lógica, que lhe parecia irretorquível:

— Se eu perder, então é porque mereço a ruína.

— Você não percebe a gravidade dessa brincadeira, Aline? É sua vida que está em jogo.

— Não se trata de brincadeira. Se quero ser freira, preciso saber se sou forte o suficiente para resistir às mais poderosas tentações do demônio.

— Mais poderosas...

Mas Jehanne não sabia como prosseguir. Galeran tinha razão: a situação era perigosa. E mesmo assim Aline não estava de todo errada. E se ela não fosse talhada para uma vida de castidade? E quanto a Raoul de Jouray? Jehanne tinha a sensação de que o francês agia como uma pessoa que nunca tivesse montado e resolvesse lançar-se ao lombo de um cavalo de batalha como primeira experiência.

Olhando de soslaio para Aline, ela suspirou. Em meio aos problemas que tinha, não precisava de mais aquele.

A primeira medida de Jehanne foi falar com Raoul. O sol se punha e todos se reuniam para a refeição da noite quando ela abriu caminho entre os criados que levavam a comida para as mesas, até chegar ao banco onde o francês conversava com um soldado do solar.

— Sir Raoul?

Ele se pôs em pé e enquanto cumprimentava Jehanne com um sorriso, o soldado afastou-se com uma mesura.

— Sir Raoul, estou um tanto preocupada com seu comportamento para com minha prima.

Assim que saiu da frente de um homem que carregava uma grande tigela, ele indagou:

— Lady Aline queixou-se de mim?

— Não, ela não fez queixa alguma. Mas você deve saber que Aline planeja entregar-se a Deus.

— É uma bela vocação. Para aqueles que realmente a possuem.

— Você acha que minha prima não tem vocação para o noviciado?

— Acho que o mais sensato seria ela mesma descobrir isso.

— O fato de você aquecer o sangue de Aline não significa que ela não tenha vocação para a vida religiosa.

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— Creio que isso depende da quantidade do calor produzido. Lady Jehanne, você iria querer Aline presa entre os limites dos muros de um convento se isso não condizer com a natureza dela?

— Ninguém jamais a forçou. Foi ela quem escolheu...

— Às vezes as pessoas mudam de idéia. Às vezes têm a sorte de não ser tarde demais para isso. Você não acha que deveríamos permitir a Aline investigar seus sentimentos antes de tomar uma decisão?

— Então cuide de investigar somente os sentimentos dela, caso contrário, cruzado ou não cruzado, seus dias investigativos não irão muito longe!

Raoul esperou que Jehanne fosse se juntar a lady Marjorie, depois deu a volta pelas laterais do salão repleto de gente para se aproximar furtivamente do local onde Aline, pensativa, sacudia o berço de Donata com o pé.

— Você não joga limpo, minha dama.

Ela deu um pulo, então se virou, as faces coradas como sempre.

— Por que diz isso?

— Não é justo mandar sua prima para ameaçar de cortar as partes do meu corpo que mais assustam você.

Aline ficou ainda mais ruborizada.

— Eu não fiz uma coisa dessas!

— Mas admite que elas a assustam? — Não seja bobo.

Obedecendo a um impulso, Raoul afastou-lhe do rosto uma mecha de cabelos que escapara ao véu curto que ela usava. Por um breve instante, teve a impressão de vê-la nua à sua frente, as curvas exuberantes cobertas somente pela massa de cabelos loiros, longos e sedosos como... Um arrepio o fez estremecer.

— Raoul de Jouray, você poderia dançar completamente despido diante de mim sem que a minha força de vontade sequer se abalasse. No entanto, duvido de que o contrário seja verdadeiro.

Ele deu uma gargalhada.

— Ah, lady Aline, nunca imaginei que pudesse encontrar uma pupila tão rebelde aos meus ensinamentos!

Mesmo entretida numa conversa com lady Marjorie a respeito da dentição de crianças pequenas, Jehanne lançava olhares preocupados a Aline e Raoul. Era como assistir à aproximação de uma tempestade de verão sabendo que nada podia impedir os raios: havia apenas que rezar para que não causassem danos irreparáveis.

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Ocorreu-lhe mandar a prima de volta para Burstock, isso, porém, significaria enfraquecer o poder de defesa da comitiva, e ela não faria nada que pudesse colocar Galeran em perigo. Ocorreu-lhe também pedir a ele que se livrasse do perigoso amigo; contudo, além da descortesia de tal atitude, tranqüilizava-a saber que seu marido podia contar com um guerreiro tão hábil como Raoul para qualquer imprevisto.

Além do mais, havia certa verdade nos argumentos do francês. Todos sempre tinham aceitado que Aline quisesse uma vida religiosa e que pouco se interessasse por homens e pelo casamento. Mas se nada disso correspondesse à realidade, então era melhor que ela o descobrisse antes que fizesse seus votos ao noviciado.

Jehanne viu-se apartada de suas divagações pela criada que lhe entregou um pequeno rolo de pergaminho.

— De quem é? — perguntou à moça.

— Não sei, minha dama. O homem que estava no portão disse que era para a senhora.

Contente por saber ler, o que não era comum, Jehanne desenrolou o pedaço de papel. Ao reconhecer o nome de Raymond, prendeu a respiração sem perceber que o fazia.

A nota dizia simplesmente: "Ainda que não deseje o mal aos seus, não pretendo perder você nem minha filha. Leve Donata à igreja do vilarejo antes que haja derramamento de sangue".

Jehanne até chegou a pensar em como faria para, sozinha, proteger a vida dos homens a quem tinha enredado. Contudo, logo se lembrou de que Raymond talvez tivesse tentado matar Galeran e tramava roubar-lhe a filha. Ele não merecia sua proteção.

Foi ao encontro dó marido.

— Galeran, preciso falar com você.

Ele pediu licença ao pai, depois perguntou à esposa o que acontecera. Jehanne entregou-lhe a mensagem. Galeran a leu por no mínimo três vezes, então quis saber:

— Como obteve isto?

— Uma criada trouxe para mim.

— Você pensou em ir até lá?

— Sim. Mas somente no propósito de proteger você.

— A mim?

— Talvez os dois, Galeran. Se alguém tem de pagar pelo que houve, que seja eu.

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— Você protegeria Lowick?

Galeran a segurava pelo braço, e Jehanne amaldiçoou-se por feri-lo quando tudo o que mais queria na vida era o bem dele, Por que sua honestidade tinha de machucá-lo como um punhal?

— Talvez eu o protegesse da morte, Galeran. Mas jamais iria ajudá-lo contra você.

Ele balançou a cabeça.

— Vou até a tal igreja. Não quero que você saia do solar.

— Não vá sozinho, pelo amor de Deus!

— Será que você me julga um perfeito idiota?

— Não distorça minhas palavras, Galeran.

— Desculpe-me. Meu orgulho masculino se exacerba vezes. — Ele tocou-lhe o rosto com os nós dos dedos. — Bem pelo menos você não saiu por aí, tentando solucionar tudo sem a ajuda de ninguém.

— Tenho estudado bastante para ser uma boa esposa.

— Então que os Céus nos ajudem!

Jehanne suspirou de alívio. Ele enfim sorrira. Quando Galeran deixou o salão acompanhado por quatro de seus homens, ela não os seguiu; como uma boa esposa dever fazer, foi sentar-se ao lado do berço da filha para tecer. Ali rezou para que seu marido retornasse aos seus braços são e salvo.

Capítulo VII

Ávila de Knottingly estendia-se ao longo do rio, nas imediações do composto do solar. Pequena, feita de pedras, com telhado de palha, a igreja simplesinha a meia distância entre a correnteza e o casarão, circundada por seu cemitério. Ao ver que não havia outra construção nos arredores, Galeran imaginou que o padre morasse na aldeia.

À exceção das ovelhas que pastavam por ali, o local pareceu-lhe deserto. Mesmo assim, ele sabia que as sombras da noite que chegava poderiam ocultar o perigo. Talvez devesse ter trazido Raoul e seus olhos de lince...

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No entanto, evidentemente, preferia enfrentar Lowick ele mesmo. E se tivesse de morrer, que assim fosse. Sinal de que era essa a vontade de Deus.

Galeran havia traçado um plano simples e ficou, na companhia de dois de seus homens, entre as árvores enquanto os outros dois soldados passavam ao lado da igrejinha em direção ao vilarejo. Ali, iriam perguntar pela presença de estranhos nas imediações e tentar descobrir quem enviara a mensagem a Jehanne.

Não havia sinal de movimentação pela igreja, mas Galera obrigou-se a permanecer à proteção de um carvalho até seus homens surgirem na estrada próxima à aldeia e sinalizar que a área estava livre. Seguido de perto pelos outros dois soldados; ele então avançou em direção à igreja, os três com as espadas em riste e os escudos em punho.

Esgueirando-se até a porta do pequeno santuário, Galeran abriu-a com um pontapé e adentrou a nave. A não ser pelo altar em madeira e duas mesas de orações para o senhor e a dama do solar, a igrejinha estava vazia.

Perto do altar, a parede de pedra, toscamente pintada com cenas bíblicas, continha uma porta. Ao abri-la com cautela, Galeran encontrou a sacristia também vazia, exceto por umas poucas arcas que, era de se supor, guardavam paramentos do padre e utensílios usados na missa.

Devolvendo a espada à bainha, ele tornou a olhar ao redor enquanto se perguntava qual o sentido de tudo aquilo. Ao imaginar que tivesse caído numa armadilha, espreitou por uma janela, a igreja, porém, era cercada por grandes áreas abertas não havia como alguém aproximar-se dali sem ser visto. E para além do rio não se via mais nada a não ser campos listrado pela semeadura e algumas árvores.

Galeran deixou escapar um suspiro. O que era aquilo, uma brincadeira?

Não. Certamente tinha sido um teste.

Talvez Lowick estivesse por ali a fim de ver se Jehanne iria obedecer à sua intimação. Se fosse isso, Galeran sorriu para si mesmo, o miserável estaria agora bastante decepcionado.

O chamado de um de seus homens tirou-o do devaneio. Cor rendo para junto dele, Galeran viu que os outros dois soldados retornavam da aldeia.

— À exceção da sua comitiva, nenhum outro nobre foi visto por estas paragens, lorde — reportou o homem. — A mensagem foi trazida por um rapaz de Bartletor, uma aldeia do outro lado do rio. Podemos cruzar a vau para ir buscá-lo.

— Não é preciso. — Seguido pelos quatro, Galeran deixou d igrejinha para ganhar a noite, ainda sedento por bater-se em duelo com Lowick. — O rapaz provavelmente recebeu a nota de um outro, que a recebeu de mais outro... Seguir essa trilha nos custaria dias de viagem. Vamos retornar ao solar e comer.

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À garupa de seu cavalo, ele deixou que os pensamentos voltassem a vagar. Era difícil crer que Lowick, um homem de bela compleição e pouca inteligência, tivesse planejado uma brincadeira ou um teste como aquele. O mais alto grau de diversão que o bonito cavaleiro podia conceber era amarrar um porco a outro pelo rabo para ver ambos berrarem.

Não, o teste, ou a brincadeira, trazia a marca de Ranulph Flambard. Mas o que o bispo pretendia obter com aquilo?

Como o prior Joseph declarara-se extasiado por poder emprestar seus aposentos a tão eminente visitante, Flambard recebeu seu homem na sala do prior no seminário de Hitchinborough.

— E então? — perguntou-lhe, enquanto escolhia com grande cuidado um pedaço de pato assado.

Lucas, um forte homem de meia-idade, permanecia de joelhos.

— Nenhuma mulher foi à igreja, meu lorde bispo.

— Ah. — Levando um naco de carne à boca, Flambard saboreou-o demoradamente, depois limpou os lábios com o guardanapo. — Alguém foi lá?

— Sim, meu lorde. Três homens invadiram a igreja, dois soldados comuns e um nobre.

— Invadiram, você disse. — Flambard usou da colher de prata para separar pedaços de legumes do caldo. — Você acha que, se houvesse alguém no santuário, eles teriam lhe feito mal?

— Tenho certeza de que fariam, meu lorde bispo.

— Foi o que imaginei.

Então Jehanne de Heywood não perdera tempo em mostrar a mensagem ao marido. Isso jogava mais sombras sobre a história de Raymond de Lowick e do amor dela por ele. Por que as pessoas eram tão estúpidas?

— Obrigado, Lucas. Cuide de manter um olho na comitiva de Heywood e me informar dos movimentos deles.

O homem fez um gesto assertivo, depois se levantou e rumou para a porta.

— E, Lucas... — As palavras o fizeram deter-se e voltar-se para Flambard, que prosseguiu: — Espero que eu não tenha lhe dado uma impressão errada a respeito disso tudo. Eu ficaria profundamente desgostoso se viesse a saber que lorde Galeran sofreu alguma desgraça durante a viagem.

— Ficaria, meu lorde?

— Ah, não é fácil explicar o trabalho a um arqueiro que maneja uma besta. Mas aquilo, Lucas, foi um equívoco.

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— Mesmo assim...

— Sim?

— Pensei que o senhor quisesse lorde Galeran morto, meu lorde.

— Um homem não deve buscar justiça pelas próprias mãos se pode contar com o auxílio de Deus. Raymond de Lowick espera travar uma batalha judicial com lorde Galeran devido a uma questão que envolve a dama Jehanne. Seria uma pena, acredito eu, que algum infortúnio viesse a impedi-lo de solicitar o julgamento divino.

Lucas não era um imbecil, por isso julgou mais prudente não fazer perguntas: apenas tornou a curvar-se, depois saiu sem olhar para trás.

Flambard voltou sua atenção a um pastelzinho recheado de uma carne levemente adocicada. Tudo corria como o esperado. A única falha do plano seria que lady Jehanne não sofresse o suficiente pelos problemas que causara. Mas ele iria se encarregar disso, uma vez que, como representante da Igreja, era direito seu ordenar punições.

E mesmo que tivesse atrasado seu avanço em direção a Londres, amanhã tentaria apressar a viagem. Afinal, não queria perder o momento do triunfo.

No dia seguinte, a comitiva de Brome prosseguiu rumo ao sul. Apesar do bom tempo propício a viagens, todos pareciam estar com pressa ou irritadiços.

A começar por Jehanne, atipicamente nervosa, e sua filhinha, que só parava de chorar para recuperar o fôlego e voltar a chorar outra vez. As mulheres passavam Donata aos braços uma da outra e, embora isso acalmasse a pequenina por alguns momentos, não era suficiente para um sossego duradouro.

Quando Galeran emparelhou seu cavalo ao da esposa para lhe perguntar se Donata não estava bem, ouviu-a reclamar num tom exaltado:

— Ela tem fome, mas não quer mamar. Estou estourando de tanto leite, mas ela não se alimenta direito. Eu e as outras mulheres passamos a noite em claro porque ela não queria adormecer. Lady Marjorie deve estar feliz da vida porque fomos embora de lá!

Reprimindo uma risada, Galeran sugeriu:

— Talvez alguém estranho seja capaz de acalmá-la. Passe Donata para Raoul.

— Raoul? O que ele sabe a respeito de bebês?

— Provavelmente nada, mas tem uma habilidade rara para acalmar as mulheres.

Raoul tomou a menina nos braços sem hesitação, ajeitando-a com cuidado ao encontro de sua cota de malha. De olhos arregalados, Donata soluçou e parou de chorar.

Jehanne previu:

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— Isso não vai durar.

No entanto, durou.

Com um suspiro aliviado, Galeran guiou sua montaria a linha de frente do cortejo, verificando o correto arranjo de homens, cavalos e bagagem.

Meia hora depois, quando retornou ao centro da comitiva, onde se agrupavam as mulheres e os animais de carga, encontrou Donata dormindo a sono solto na curva do braço direito de seu amigo.

— Como faz isso? — perguntou-lhe.

— É um dom mágico. — Raoul sorriu de orelha a orelha.

Mais meia hora se passou até que o francês, com o braço adormecido, se aproximasse de Aline para lhe indagar:

— Será que conseguiria tomar Donata de mim sem acorda-Ia? Meu braço adormeceu.

Detendo seu cavalo junto ao enorme garanhão que ele montava, Aline deu-lhe um olhar desconfiado.

— Não me diga que um bebê tão pequeno é pesado demais para você.

— Não posso dizer que o fardo me seja leve, lady Aline. Ela tem pulmões poderosos, e tremo só de pensar em acordá-la.

Como se percebesse que a trocavam de colo, Donata agitou-se e pôs-se a movimentar a boquinha. Olhando a menina agora em seus braços, Aline comentou:

— Jehanne ficará contente se ela resolver mamar. — Ela ergueu os olhos a Raoul. — Pense só: passar a vida num convento poupa a mulher da tirania destes pequenos monstros.

— É verdade. E eu estou certo de que você não tem a mínima vontade de segurar um filho seu nos braços.

Como sempre, Raoul havia mirado e acertado o alvo. Última a nascer na. sua família, Aline não se vira perto de um bebê antes de pisar em St. Radegund. Como dama de companhia de Jehanne, assistira ao nascimento de Gallot e Donata e cuidara de ambos nos bons e maus momentos. Um deles, ela abraçara já morto. A experiência servira para lhe mostrar que a vida junto a uma criança não era um mar de rosas. Ainda assim, ela queria um filho. Queria muito.

— E você? — Aline perguntou, enquanto se punham no passo da comitiva. — Quer filhos?

— A idéia de engravidar você com um filho meu é extremamente tentadora.

Indignada com o comentário, ela o ameaçou:

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— Minha família iria obrigá-lo a casar-se comigo.

— Prefiro casar com você antes que fique grávida, Aline.

Com isso, Raoul se afastou. E como se despertada pela ausência dele, Donata abriu os olhinhos, pronta para choramingar.

— Ah, não seja uma mocinha tão tola — repreendeu-a Aline.

— Ele adora brincar, aquele um. Adora conquistar, mas depois perde o interesse. E só tomar o castelo, e então ele parte para o próximo. Na próxima vez em que ele tomá-la nos braços, Donata, berre com toda a força de que for capaz.

A pequena abriu a boquinha, mas logo tornou a fechá-la. Aline levou-a até Jehanne.

— Acho que ela está com fome. Por que você não tenta fazê-la mamar?

Tomando Donata, Jehanne ajeitou-a sob seu manto e ofereceu-lhe o peito. Em questão de instantes, o bebê mamava deleitosamente, como havia dias não fazia. Jehanne ergueu os olhos ao céu.

— Louvado seja.

— Pena que é tão arrogante. — Aline acenou com a cabeça na direção de Raoul.

— Aline, vou ser bem objetiva: você está prestes a se enamorar de Raoul de Jouray. Aos meus olhos, você não parece a castelã no domínio de sua fortaleza, mas sim uma dama tola que deixa uma tropa de soldados adentrar os portões simples-mente porque eles sorriem e professam boas intenções.

— Se ao menos eu tivesse certeza de que ele quer verdadeiramente me conquistar...

— Como assim?

— E se quando eu abrir os portões, ele simplesmente cair na risada antes de virar as costas?

— Se é isso o que pensa, então deveria redobrar sua guarda.

— É tão difícil decidir o que é certo e o que é errado Jehanne!

— Não, não é. O certo é levar o assunto para seu pai e acatar a decisão que ele tomar.

— Meu pai está longe.

— Então se comporte até que esteja outra vez nos domínios dele.

— Mas você e Galeran...

— Não. Nós já temos problemas suficientes. Se quer aconselhar-se, procure lorde William.

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Aline sabia que Jehanne não imaginava que ela fosse aceitar a sugestão. Pelo prazer de contrariá-la, balançou a cabeça num gesto afirmativo e foi ao encontro do pai de Galeran no final do cortejo.

Firme como uma rocha sobre a sela ricamente ornamentada, o imponente manto de lã estendido sobre as ancas do cavalo, lorde William aparentava o que de fato era: um barão poderoso e um homem sagaz.

Ao aproximar-se dele, Aline supôs que talvez tivesse se precipitado. Mas logo percebeu que não havia como voltar atrás e alinhou seu cavalo ao lado do garboso garanhão.

— Bom dia, lady Aline — cumprimentou ele. — Está gostando da nossa viagem?

— Ela tem tido momentos prazerosos e momentos penosos, meu lorde.

— A maioria das viagens é assim.

O brilho nos olhos do velho nobre a fez concluir que ele já sabia de seus prazeres e suas penas.

— Lorde William, Jehanne sugeriu que eu tratasse com o senhor sobre uma questão pessoal.

— Bem, posso dizer que sou o líder aqui.

— E meu pai está longe. — Aline fixou os olhos num ponto entre as orelhas de seu cavalo. — Eu gostaria de saber se o senhor recomendaria Raoul de Jouray como marido.

— Para quem?

Levando o olhar a lorde William, ela viu que um par olhos castanhos a observavam atentamente.

— Para uma dama qualquer.

— Isso alarga os limites da sua pergunta. Por certo no vasto mundo de Deus há uma mulher para qualquer homem e um homem para qualquer mulher.

— Então digamos que seja para mim.

— Ah, bem. Nesse caso, irá depender das propriedades deles se é que há alguma além do cavalo e da espada, e da quantia que você poderá levar a essa união.

— Bens? Dote? É só isso o que conta?

— De modo algum. Mas até que isso seja acordado, não faz sentido tratar das outras questões.

Após menear a cabeça em sinal de assentimento, Aline foi emparelhar seu cavalo à montaria de Raoul.

— Sim, minha pequena? — disse-lhe ele, do alto da sela de seu garanhão.

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Ela não se fez de rogada:

— Você falou em casamento, não falou? Pois bem, acho que é hora de esclarecer alguns detalhes.

— Eu falei em casamento de uma forma hipotética.

— Então considere hipotética a pergunta que vou lhe fazer

— Do que se trata?

— Além do seu cavalo e da sua espada, você tem outras propriedades?

— Sim. Terras perto da casa de meu pai em Guyenne. você, tem bens para levar a um casamento?

— Tenho. Aluguéis de uma propriedade em Yorkshire Quanto vale suas terras?

— Cerca de cinqüenta marcos anuais. E os seus bens?

— Metade disso.

— Parece-me adequado.

Resistindo ao impulso de sorrir ao brilho que via cintilar nos olhos dele, Aline retornou para junto de lorde William. O velho nobre ergueu uma sobrancelha para ela.

— Vai acabar cansando sua montaria, lady Aline, se não parar de conduzi-la para lá e para cá.

Aline ignorou o comentário para ir direto à questão.

— Ele tem uma propriedade na França que vale duas vezes os meus bens dotais.

— Eu teria de verificar tal informação, pois não é difícil a um estrangeiro mentir a respeito desses assuntos. No entanto, se for verdade, ele é um marido apropriado para você.

— Mas o senhor falou que havia outras questões além do dinheiro.

— Claro que sim. O temperamento é uma delas. Um lar repleto de desavenças e mal-entendidos torna-se tedioso depois de uma década ou duas.

— Não creio que isso será problema.

— Mesmo que ele tenha olhos que gostam de vagar?

— Não são tanto os olhos que me perturbam.

— Há mulheres que não se importam com que o marido busque alívio fora de seu leito conjugal, outras, porém, magoam-se terrivelmente com situações como essa e até buscam vingar-se. Como pode ver, é uma questão de temperamento.

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Aline franziu as sobrancelhas no seu jeito tão característico. Sempre imaginara a si mesma como uma pessoa calma, de natureza fácil, contudo não estava certa de que reagiria com tranqüilidade se seu marido... se Raoul buscasse alívio por aí.

— Obrigada, lorde William. Pensarei em suas palavras. Mas... E se Raoul de Jouray fosse um marido fiel?

Nos dias seguintes, mesmo percebendo as estranhas manobras entre Raoul e Aline, Galeran escolheu tirar essa preocupação dos pensamentos. Havia assuntos mais sérios a administrar.

A medida que se aproximavam de Londres, o tráfego pesado em direção à cidade era sinal da excitação pelo novo rei e também de aceitação ao recém-coroado Henrique. No entanto, quanto mais se acercavam da capital, mais inquieto lorde William ficava.

A entrada de Avaltham, o velho nobre comentou em voz baixa com seu filho:

— Se fizermos nosso juramento a Henrique, não haverá como voltarmos atrás.

— Henrique será um rei melhor do que Robert — Galeran tentou tranqüilizá-lo.

— Não se estiver amaldiçoado. Deixei que minha antipatia, por Flambard e minha preocupação para com você me levassem a apoiar Henrique, mas não estou seguro de que ele seja a escolha certa.

— Pai, você não pode ir a Westminster e não jurar lealdade, a Henrique.

— Eu sei, eu sei. Seja como for, a verdade é que estou com uma dor tão esquisita...

E quando chegaram à abadia onde passariam a noite, lorde William gemia e se contorcia sobre a sela.

Assim que o acomodaram e deixaram que os monges tratassem dele, Jehanne foi ter com Galeran.

— Seu pai está doente de verdade?

— Se tiver sorte, ficará bem mal depois de todos os remédios que tomou.

Jehanne suspirou. Abrindo um bornal com gestos irritados, Galeran baixou o tom de voz para explicar:

— Ele nunca aceitou as condições em que envolveram a morte de Rufus. Foi a interferência de Flambard em nossos assuntos pessoais que o levou a apoiar Henrique. Agora, no entanto, sua consciência o faz vacilar. Na opinião de meu pai, e talvez ele esteja certo, uma operação política que se iniciou com um assassinato não pode ser bem-sucedida.

— E nenhuma iniciativa que tenha partido de Flambard pode ser digna!

— Penso o mesmo, mas o que se passa com meu pai não é uma coisa lógica.

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— E o que acontecerá conosco se lorde William permanecer aqui?

— Desde que ele não apóie a reivindicação de Robert abertamente, não teremos problema algum.

— Então seguiríamos sem ele?

— Certamente. Precisamos resolver nossa pendência, e estes dias de início de reinado serão provavelmente a melhor época para isso. Aposto que Henrique prometerá qualquer coisa a qualquer pessoa no afã de conquistar simpatias e apoio.

— No fundo, seu pai tem razão, Galeran. Tudo isto não deveria se resumir a uma questão de vantagens ou conveniências. Se não fosse por mim, vocês dois poderiam fazer uma escolha livre e isenta.

Galeran afagou o rosto dela.

— Jehanne, eu a perdoei. Tudo seria mais fácil se você também se perdoasse.

Ela fechou os olhos.

— Não é tão fácil assim. Pense como tudo seria diferente se...

— Talvez não, meu amor, especialmente no ponto que diz respeito ao monarca. Conheço Robert e não o quero rei da Inglaterra, pouco importa quem tenha disparado a maldita flecha. — Galeran passou o braço ao redor dos ombros dela. — Venha, vamos dar uma olhada em Raoul e Aline antes que eles acabem se excedendo em suas brincadeiras.

A abadia estava repleta de viajantes que se dirigiam a Londres e, desse modo, havia pouquíssimo perigo de que seu amigo e a prima de Jehanne encontrassem momentos de privacidade, se por acaso o buscassem. E, evitando a aglomeração nos diversos aposentos para visitantes, os quatro resolveram passear por uma feira nos arredores.

Na manhã seguinte, Galeran visitou o pai e reparou que ele se esforçava imensamente para parecer fraco e indisposto.

— Será melhor que eu fique — observou lorde William. Isso o manterá inseguro quanto a nós.

— O que não vai ser difícil, já que você mesmo não sabe que pretende fazer.

— Não zombe de mim, rapaz. No final das contas, tudo que importa neste mundo é nossa honra e nossa alma. Preciso refletir sobre a situação.

— Eu o compreendo, pai.

— Cuidado com Flambard. Ele fará o que estiver ao seu alcance para nos destruir. Enquanto isso, estarei rezando por vocês.

Galeran foi montar seu cavalo, lembrando a si mesmo que acreditava em orações e num Deus justo e misericordioso, mesmo assim gostaria de poder contar com o pai

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a seu lado. Nenhum soberano rejeitaria o apoio de William de Brome. Um soberano incerto desse apoio, porém, poderia resolver que a melhor medida fosse dissolver por completo o poder da família.

O bispo Flambard certamente pensava assim.

A estrada ao coração de Londres não dava conta de saltimbancos, mercadores, gentis e nobres, aos quais por certo se misturava todo o tipo de ladrões. Na companhia de mulheres e um bebê, Galeran preferiu evitar usar dos cavalos para abrir caminho e, ensimesmado, resignou-se à lentidão do fluxo.

Ao menos uma coisa o deixava tranqüilo: terem todos onde ficar. Raoul possuía parentes distantes, mercadores de vinho, que moravam na cidade, e já lhes enviara um mensageiro com um pedido de hospedagem. A comitiva acabara de receber a notícia de que Hugo e Mary teriam imensa satisfação em lhes dar guarida, embora os avisassem que o espaço era pequeno.

O que significava que, tão cedo, não haveria noites de amor nos braços de sua esposa, ele concluiu. Isso o fez pensar que desejava a vida pacífica e serena em Heywood mais do que nunca. Uma vida que parecia tão próxima, quase ao alcance de sua mão, mas que o rei poderia ceifar de um só golpe.

Ainda que parecesse impossível, as multidões eram ainda maiores no interior dos limites dos muros da cidade. As aglomerações de pessoas, montarias e veículos de transporte fizeram com que levassem horas para chegar à casa de seus hos-pedeiros na Corser Street. E enquanto Jehanne e Galeran acomodavam sua comitiva nos dois dormitórios disponíveis, anuindo ao fato de cavalariços e soldados terem de dormir nos galpões nos fundos da residência, Raoul encarregou-se de sair à cata de novidades.

Ele retornou uma hora depois, com uma cesta de tortas e uma rede cheia de cerejas. Tirando o pó das roupas, anunciou:

— O rei vai abrir a corte. Obviamente, no intuito de aceitar homenagens do maior número possível de pessoas.

— Qual é o "clima" lá fora? — indagou Galeran, servindo, ao amigo um pouco do vinho de Hugo.

— Favorável a Henrique, eu diria. O velho rei Guilherme não era muito mais popular por aqui do que era no Norte, e o, tom geral parece indicar entusiasmo. Ainda mais depois da declaração de Henrique na coroação, afirmando que iria restabelecer as leis antigas.

Jehanne cuidava do bebê num outro aposento, mas Aline achava-se ali, lutando para libertar as cerejas polpudas da rede, Interrompendo o que fazia, ela olhou para ambos e franziu as sobrancelhas.

— Espero que ele não seja louco pela lei e pela ordem.

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— Por que não? — quis saber Raoul, indo até Aline para' rasgar a rede com seu punhal.

Ao notar que até mesmo uma operação tão simples como aquela era capaz de produzir grande tensão entre o casal, foi a vez de Galeran franzir a testa. Custava-lhe crer que Aline ainda pensasse em ter uma vida religiosa.

Ela pegou uma cereja e, em vez de colocá-la na boca, cogitou:

— E se o rei aumentar e reforçar as leis contra o adultério?

Espetando uma cereja com ponta do punhal, Raoul perguntou a Galeran:

— Isso é provável? — Depois, levou a cereja à boca. Quase da cor da fruta, Aline imitou-lhe o gesto.

— Espero que não — respondeu Galeran, com ganas de bater a cabeça de ambos uma contra a outra. — Ninguém nunca acusou Henrique Beauclerk de ser complacente.

— Isso é verdade! — confirmou Aline, após tirar a semente da cereja da boca. — Ele usou das próprias mãos para atirar um dissidente das muralhas de Rouen.

— Seja como for, precisamos confiar no bom senso de Henrique e no seu desejo de ter meu pai ao lado dele. Você descobriu mais alguma coisa interessante, Raoul?

— Creio que não. — Raoul guardou o punhal na bainha. — Perguntei por Raymond de Lowick, mas ninguém soube me informar de nada a respeito dele, o que não chega a ser surpreendente. No entanto, consegui notícias do bispo de Durham. Ele chegou ontem.

— Flambard já está aqui? Não pensei que fosse ser tão ligeiro... — Galeran suspirou. — Ele é nosso inimigo, estou certo disso. Aparte suas ambições pelo Norte, ele nunca nos perdoará por frustrar seus planos.

— A julgar pelo que ouvi por aí, Flambard é um homem bastante odiado.

— Ah, isso é verdade. Mas esse ódio ainda não foi capaz de detê-lo. É como se ele vivesse escapando como por magia dos problemas.

— Você escolhe inimigos interessantes. — Raoul fez uma careta. — O homem parece ter um dom especial para conseguir dinheiro, e que rei poderia ignorar um talento desses?

— Henrique não ousará apoiar alguém tão impopular. Bem, é o que espero.

— Presumo que você irá à corte amanhã para solicitar uma audiência. Conseguiremos informações mais precisas lá.

Jehanne, que chegava à sala trazendo a filha recém-alimentada nos braços, sentiu-se empalidecer àquelas palavras.

— Amanhã? — ouviu-se dizer. — Por que tão cedo?

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Galeran passou o braço pelos ombros dela.

— Mas não viemos correndo para cá no propósito de ganharmos tempo?

— Ah. — Jehanne pôs-se a balançar o bebê com evidente nervosismo. — É difícil não me preocupar. Se ao menos eu pudesse ir também...

— Não creio que isso possa ajudar.

— Eu sei, eu sei. E que me sinto uma... inútil.

— Por que não conversamos sobre o assunto? Talvez isso a tranqüilize um pouco.

Raoul espalhou as tortas e as cerejas pela mesa, e os quatro sentaram-se para comer e discutir os planos para o dia seguinte. Entretanto, não havia muitas opções. Trajado com suas melhores vestes, Galeran levaria presentes, inclusive artigos da Terra Santa, e esperança. E se o monarca lhe concedesse uma audiência privada, colocaria a situação para.ele... A menos que tivesse a impressão que alguém se antecipara aos seus movimentos e lhe preparara armadilhas. Nesse caso, não tinha estratégias com que contar, apenas seu bom senso.

Mais tarde, quando ele e Raoul dirigiam-se ao aposento que lhes fora destinado, Galeran perguntou ao amigo:

— Quer ir também amanhã?

— Não seria melhor que eu ficasse por aqui, para proteger as mulheres?

— Acho que, quanto mais longe você se mantiver das mulheres, melhor.

Raoul olhou para a cama com desânimo. Depois, suspirando, confessou:

— Lá na feira, enquanto você e Jehanne não tiravam os olhos das acrobacias do engolidor de espada, perguntei a Aline se ela não iria comigo para a França.

— Após se casarem?

— Ficou subentendido, você não acha?

— Não sei. E...?

— Ela disse que não gostaria de deixar sua terra natal.

Galeran não estava surpreso com a resposta da prima de Jehanne, ainda assim tentou ser amável com o amigo:

— Isso é bobagem. Tenho certeza de que você será capaz de dissuadi-la.

— Bem que eu gostaria de pensar o mesmo... E então, quer que eu o acompanhe amanhã?

— Por que não? Lowick não tentaria roubar o bebê de uma casa repleta de pessoas, e Flambard não tem jurisdição sobre Londres. E eu gostaria de saber sua opinião a respeito de Henrique Beauclerk.

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Naquela noite, Raymond de Lowick bateu à porta da suntuosa casa do bispo de Durham nos arredores de Westminster. Quando um guarda veio abri-la, Raymond, surpreso com a impopularidade de Ranulph Flambard em Londres, logo pensou que tal proteção fosse de fato necessária. Ele bem que gostaria de não ter de lidar com aquele homem, mas quem mais haveria de apoiá-lo contra William de Brome?

Tudo por causa de Jehanne, lembrou a si mesmo. Pela bela Jehanne, forçada a casar-se com outro mesmo que desejosa de casar-se com ele. E agora ela se achava em perigo, uma vez que, era evidente, Galeran aguardava somente uma boa oportunidade para castigá-la exemplarmente. Afinal, já dera mostras do que era capaz quando batera nela.

E quanto à criança? Raymond gostava do bebê. Que homem não haveria de gostar de uma criatura tão pequenina e indefesa? Até onde sabia, Donata era sua única filha, e sua honra o obrigava a protegê-la. Galeran não era mau, mas nenhum homem poderia esquecer as origens daquela menina. Tão logo tivesse uma chance, era quase certo que ele daria Donata para que alguma camponesa a criasse.

Raymond queria que o problema não tivesse de ser resolvido pela morte. Só que não via outra maneira de proteger Jehanne e sua filha.

E de ter Heywood. Aquele era seu objetivo menos nobre, ele o sabia, mesmo assim não deixava de ser uma meta a ser atingida.

Do mesmo modo que o rei Henrique julgava que a Inglaterra fosse sua por um direito de nascença, Raymond alimentara a certeza de que Heywood lhe pertenceria no momento em que, o último filho de Fulk morrera. Ele era o preferido de Fulk. Ele era reconhecido como um dos melhores guerreiros do Norte. Quem mais mereceria casar-se com Jehanne.

Assim que os olhos de Fulk voltaram-se para Brome, Raymond dera vida e energia ao ligeiro interesse que seu amigo Eustace havia demonstrado pela Guerra Santa contra os mouros. Fora tudo muito mais fácil do que ele poderia supor, e caminho logo se abrira à sua frente.

Ou melhor, ele pensara que estivesse aberto.

Ver Jehanne e Heywood dadas numa bandeja ao mirrado Galeran quase o fizera afogar-se na própria bílis. Não era certo. Não podia ser direito. Deus mostrara isso ao negar um filho Galeran até que ele se unisse à Cruzada e depois lhe tirando esse filho para dar a Raymond a sua chance.

Enquanto era conduzido à presença do bispo, Raymond viu-se uma vez firme em suas crenças. Era da vontade de Deus que ele tivesse Heywood, Jehanne e Donata. Mesmo que isso custasse a vida de Galeran de Heywood.

— Meu lorde bispo, seja bem-vindo de volta a Londres...

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No dia seguinte, Galeran e Raoul levaram quase meia manhã para percorrer o caminho que deixava a cidade murada e acompanhava a longa curva do rio Tâmisa até o Palácio de Westminster, onde o rei mantinha sua corte e criadagem. A estrada estava tomada por caravanas de nobres, mercadores esperançosos e curiosos dos mais variados níveis sociais, todos com o espaço e os movimentos ainda mais tolhidos pelas barracas alinhadas à margem do1 percurso e por um pequeno exército de mendigos. O rio talvez fosse uma rota alternativa, mas as águas também se encontravam atulhadas de todo o tipo de embarcações.

Por fim, terminaram por alcançar a grande área aberta ao redor do grande Palácio de Westminster e da construção anexa a ele, a nobre abadia do rei Eduardo. Lá também se aglomerava um grande número de pessoas, mas o espaço amplo tinha como acomodá-las e ao barulho que faziam. No entanto, havia certa organização por ali: inúmeros guardas bastante disciplinados patrulhavam o local, cuidando de retirar vendedores e curiosos do enclave para devolvê-los às ruas apinhadas.

Galeran guiou seu séqüito aos estábulos temporários destinados às montarias dos visitantes nobres, onde entregaram seus animais aos cuidados dos cavalariços. Então um clérigo, trazendo nas mãos tabuletas de cera, aproximou-se deles.

— Seus nomes, gentis senhores?

Ainda que sentisse os nervos contorcerem-se, ele respondeu com calma:

— Galeran de Heywood, da Nortúmbria, e Raoul de Jouray, de Guyenne.

O homem anotou-lhes os nomes, depois disse num modo inexpressivo:

— Sua Majestade, o rei Henrique, é muito agradecido ao fato de que tantos súditos venham homenageá-lo e congratulá-lo por sua ascensão ao trono. O grande número de visitantes, contudo, faz com que seja impossível ao monarca conceder audiências privadas a todos por esta ocasião. Se fizerem o favor de entrar no salão, meus lordes, o rei os receberá em grupos.

Ele então se voltou ao próximo grupo.

— Interessante — comentou Raoul, enquanto se encaminhavam à enorme construção em madeira, tão finamente esculpida quanto pintada e adornada por estandartes. — Henrique parece gostar de ordem. Se bem entendi, os nomes são enviados ao rei e ele seleciona com quem quer falar. Bem, vamos ver se você será um dos escolhidos.

— Meu pai talvez o fosse, mas eu não tenho tanto poder.

— Você é filho dele.

— Por aqui, quase ninguém sabe. Talvez eu tenha de esperar semanas por uma audiência, e não sei dizer com certeza se isso seria um mau negócio.

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Unindo-se à corrente de nobres elegantemente trajados que circulava por entre as portas abertas do salão, foram dar numa câmara onde a quantidade de visitantes já não era tão opressiva, se comparada ao imenso espaço disponível. Músicos tocavam, num canto, havia comida nas mesas e criados circulavam com canecas de vinho. Galeran e Raoul serviram-se, provaram da bebida e trocaram um olhar. O vinho era bom.

Caminhando até uma área vazia próxima a uma janela, Galeran encostou-se à parede e tentou se acalmar. A ausência de seu pai por certo seria notada, e ele não sabia que conseqüências isso poderia acarretar. Contudo, sabia com certeza que algumas daquelas pessoas eram homens do rei, que ali estavam com o único propósito de ouvir o que se falava. E talvez isso tivesse ficado evidente a todos, pois tudo o que se ouvia eram conversas amenas a respeito de colheitas e cavalos.

Um homem robusto e de expressão um pouco nervosa aproximou-se, apresentando-se a Galeran e a Raoul como Robert de Keyworth, próximo a Nottingham, para depois pôr-se a falar do tempo e do preço da lã.

Num dado instante, Galeran arriscou indagar:

— Por acaso você conhece um certo Raymond de Lowick, que se casou com uma mulher na região de Nottingham?

— Ora, conheço, sim. A esposa dele era uma parenta distante. Infelizmente, ela morreu.

— Foi o que ouvi dizer. — Tentando não se demonstrar excessivamente interessado, Galeran prosseguiu: — E sabe me dizer o que causou a morte dela?

— A febre das manchas. A coitadinha não era muito forte. Então Lowick não tinha matado a esposa como parte de um plano planejado em tempos remotos.

— Pobre mulher. — Galeran suspirou, menos por pena do que por alívio.

— É verdade. Pelo que me lembro, sir Raymond ficou bastante desgostoso. Você o conhece? É muito bom soldado.

— Conheço-o de longe, mas sei que, de fato, trata-se de grande guerreiro.

— É. — Robert olhou ao redor. — Parece que o rei está por aqui. A multidão está se comprimindo.

Antes que Galeran pudesse dizer alguma coisa, alguém lhe tocou o ombro.

— Meu lorde de Heywood? — indagou-lhe um rapaz, talvez um pajem. — Se fizer o favor de me acompanhar... Há uma pessoa que gostaria de lhe falar.

— Meu companheiro, Raoul de Jouray, pode vir comigo? — Galeran esforçava-se para não prestar atenção ao coração acelerado.

— Como for da preferência de ambos, meus lordes.

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Após pedir licença a Robert de Keyworth, os dois foram atrás do rapazote, abrindo caminho por entre a aglomeração. Talvez fosse algum amigo, ou amigo de seu pai, que o avistara e enviara um criado para buscá-los. Galeran, porém, logo deixou essa hipótese de lado: algo lhe dizia que estava sendo levado ao rei.

Ao homem que podia ter tramado o assassinato do próprio irmão.

O jovem os conduziu ao outro lado do salão, onde cruzaram a soleira de uma porta lateral para ganhar um espaço aberto e dali, dando volta à edificação, chegar a uma entrada bem guardada que se abria a uma pequena câmara.

Assim como Burstock, o Palácio de Westminster fora erguido em madeira, o que lhe facultava ter qualquer número de aposentos menores ao redor da grande câmara central. Aquele, em especial contava com dois guardas armados, um monge, sentado a uma escrivaninha sobre a qual havia um grande livro aberto e certo número de rapazes que iam e vinham. Tão logo -eles entraram, um dos rapazes saiu em alguma missão e, logo depois, outro se aproximou da escrivaninha com um conjunto de tabletes de cera. Após examiná-los rapidamente, o monge murmurou uma mensagem ao moço, que saiu dali apressado.

O monge então olhou para os recém-chegados.

— Meus lordes — disse-lhes, num tom cordial —, o rei está muito contente por terem vindo tão rapidamente trazer-lhe suas homenagens. Por favor, sigam adiante.

No aposento seguinte também havia dois guardas, que os estudaram com presteza e discrição competentes. Um deles abriu uma outra porta, e Galeran e Raoul caminharam enfim à presença do soberano.

Essa câmara de solar, grande e ricamente mobiliada, também estava repleta de pessoas. Olhando à sua volta, Galeran reconheceu o monarca entre a pequena multidão por dois únicos motivos: ninguém ousava dar as costas ao rei e Henrique usava sua coroa.

Além disso, ele vira Henrique Beauclerk alguns anos atrás, e o soberano não estava muito mudado. Talvez estivesse um pouco mais gordo, ainda assim parecia saudável e atlético; seus cabelos escuros e brilhantes curvavam-se à altura dos ombros, penteados como ditava a moda da época. Henrique sorria para todos, um sorriso que parecia genuíno nos lábios de um homem que afinal concretizara sua ambição de tornar-se o soberano da Inglaterra, diante de quem metade do mundo estava ansiosa para ajoelhar-se em reconhecimento ao fato.

Galeran passou os dedos pela bolsa que continha folhas de palmeira e uma lasca de pedra do Santo Sepulcro. Mais do que nunca, teve certeza de que o duque Robert da Normandia não tinha grandes chances de arrancar a Inglaterra das mãos do irmão.

Um homem alto, de cabelos escuros e idade próxima à dele, aproximou-se.

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— Lorde Galeran de Heywood? Galeran o confirmou e apresentou Raoul.

— Sou FitzRoger — o homem disse simplesmente. Reconhecendo o nome, Galeran entendeu que estava diante

de um dos mais importantes competidores de torneios da época, amigo íntimo de Henrique Beauclerk. Os trajes de FitzRoger eram magníficos, mas era sua postura que transmitia força e poder.

— Seu pai, lorde William, não o acompanha? Direto ao ponto.

— Ele veio para o Sul, sir, mas passou mal e teve de permanecer na Abadia de Waltham. Ele virá tão logo se recupere.

Inteligentes olhos verdes o observaram por alguns instantes, fazendo Galeran imaginar o que seria feito dele e de seu pai.

— O rei lamentará o ocorrido, mas ficará contente com a sua presença, meu lorde. Por favor, venha comigo.

Abrindo caminho pelo recinto, FitzRoger deu a impressão de comunicar-se com o monarca por meio de pensamento: assim que eles se acercaram de Henrique, o soberano se virou.

Quando seus olhos se encontraram, Galeran teve mais uma certeza. Ele realmente matou o irmão. Bastava fitar Henrique Beauclerk para que a verdade inconteste se afirmasse: aqueles homem não deixaria que os escrúpulos se interpusessem entre si e o que almejava.

Galeran e Raoul se ajoelharam, depois tornaram a se erguer

— Meu caro amigo! — exclamou Henrique. — Eu o chamo assim porque sua família tem se mantido amiga da minha família desde que todos viemos para a Inglaterra.

— É um privilégio para nós, senhor.

— Bom homem! E você retornou recentemente da Terra Santa. Como eu gostaria que me tivesse sido possível unir-me à empreitada em nome de Deus!

Sabendo que o impedimento de Henrique resumia-se à falta de recursos e à obsessão dele pela Coroa inglesa, Galeran não fez qualquer comentário. Em vez disso, aproveitou a oportunidade do assunto para apresentar seus presentes.

O próprio Henrique cuidou de abrir a bolsa, e a cor que lhe saltou às faces mostrava que nem ele era imune à mística da Cruzada. Manuseando os artigos com reverência, mostrou-os aos demais, depois disse a Galeran:

— Iremos fazer relicários para guardá-los, meu bom lorde. Agradecer-lhe sinceramente pelo presente. — Henrique entregou os itens aos cuidados de um monge e, pegando-o no braço de Galeran, o fez aproximar-se um pouco mais. — Agora me fale dos assuntos do Norte. Eu nasci em Yorkshire, como deve saber.

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Galeran não disse muito mais do que o rei já devia saber. E quando o viu fazer menção de se afastar em direção a um outro grupo, encheu-se de coragem. Jehanne e Donata não podiam mais esperar.

— Senhor...

Henrique virou-se, estreitando os olhos.

— Sim?

— Tenho uma questão a ser posta sob seu julgamento, num momento oportuno.

— Compreendo. — Não havia surpresa na expressão do rei. — Amanhã iremos ouvi-lo. Pelo que sei, o bispo de Durham também tem interesse no problema, assim como um outro homem...

— Raymond de Lowick — acudiu FitzRoger.

— Ah, sim. Amanhã, lorde Galeran. — Com isso e o sorriso de volta ao rosto, ele foi ao encontro de uma comitiva de Devon.

A caminho da porta, na companhia de Raoul e sob a cortês escolta de FitzRoger, Galeran deixou escapar um suspiro aliviado. Antes de deixarem o recinto, porém, ele achou que aquele seria um bom momento de buscar uma informação importante.

— O bispo Flambard já falou com o rei?

— Ontem. Rapidamente.

— E Lowick?

— Prestou suas homenagens na grande câmara. Não fora admitido ao santuário, em outras palavras. Já à soleira da porta, FitzRoger comentou:

— Você tem uma natureza muito clemente, lorde Galeran. Então o monarca e seus criados já sabiam de tudo.

— Não é nosso dever perdoar os penitentes, sir FitzRoger?

— Talvez seja esse um dos aspectos do cristianismo que os homens têm mais dificuldade de aceitar.

— Não é difícil perdoar alguém que errou num momento de grande aflição, especialmente quando se ama a pessoa que pecou. Difícil é perdoar aquele que fere a quem amamos.

FitzRoger ergueu uma sobrancelha, porém logo meneou a cabeça num gesto assertivo.

— Que Deus o acompanhe, lorde Galeran.

Ao final das ante-salas, ele e Raoul enfim respiraram tranqüilamente ao ar livre. Esfregando o ombro para aliviar a tensão, Galeran fixou os olhos no amigo.

— E então, o que me diz?

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— FitzRoger não passa de um lacaio, mas o rei, creio eu, fará o que for preciso para manter a coroa da Inglaterra sobre sua cabeça. Se conseguir, acredito que fará o que estiver ao seu alcance para que o país seja próspero e seguro.

— Está dizendo que devemos torcer para que o meu problema não ameace os interesses da nação?

— E de fato não ameaça, não é verdade?

— Até onde sei, você está certo. A menos que Henrique decida que precisa mais de Flambard do que de meu pai.

— O que seria uma grande tolice. Anime-se, Galeran. De modo geral, estou com bons pressentimentos quanto ao seu futuro!

Na casa do bispo de Londres, estirado numa grande tina, Ranulph Flambard analisava sua situação. Fora ter com Henrique no dia anterior e não tivera dificuldades para obter uma audiência com o monarca. Afinal, era um bispo.

No entanto, a audiência fora breve e o rei não lhe demonstrara nem entusiasmo nem cordialidade. Flambard não esperava muito mais do que isso, mesmo assim ficara descontente. Admirava Henrique. Seria um prazer manter seu posto sob o reinado dele.

Mas o soberano achava-se nos primeiros dias de comando. Ainda não tivera tempo para avaliar os sucessos e os fracassos do irmão, nem para detectar quem fora responsável por eles. Também não tivera tempo para dar-se conta do quanto preci-sava do dinheiro que Ranulph Flambard poderia obter para a Coroa.

Por outro lado, alguns dos meios de que o bispo lançava mão para conseguir dinheiro eram um tanto... incomuns. E Henrique prometera manter-se fiel à letra da lei.

Deslizando para o interior da sala, um criado curvou-se diante de Flambard.

— Sim?

— Raymond de Lowick solicita uma audiência, meu lorde bispo.

— Mande-o entrar.

Sir Raymond adentrou a pequena câmara com certo excesso de energia e dignidade. Não usava armadura, graças aos Céus, mas sua espada ainda ameaçava vários objetos à passagem dele. Era espantoso, pensou Flambard, que homens de minúscula importância se imaginassem tão grandiosos.

— Meu lorde bispo — disse Lowick. — Lorde Galeran de Heywood e sua família estão em Londres.

— Estão? Não creio que isso seja surpreendente.

— Lorde William de Brome não se acha entre eles. Ficou, doente, em Waltham.

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— Pois isso, sim, é interessante. E nós sabemos que doença é essa?

— Não, meu lorde.

— Então você terá de ir a Waltham para descobrir o quão doente lorde William está.

— Mas Jehanne e minha filha estão aqui, bastante mal protegidas na casa de Hugo, o negociante de vinhos, na Corser Street. Não seria uma boa oportunidade para resgatá-las?

— Por enquanto, não. Não tenho jurisdição sobre esta cidade. Saber onde elas se encontram basta-nos no momento. Já falei do seu caso ao rei e espero que ele ordene obediência à minha opinião. Henrique não iria gostar de ofender a Igreja num instante em que...

Anunciando-se com uma leve batida, o criado veio à frente dele outra vez.

— Que foi?

— Peço perdão, meu lorde, mas um mensageiro traz palavras do rei.

— Então o mande entrar, homem! Mande-o entrar!

O mensageiro era um daqueles rapazes asseados que circulavam incansavelmente pela corte.

— Meu lorde bispo, trago-lhe cumprimentos do rei, que manda informá-lo de que amanhã será posto diante dele um caso que pode ser do seu interesse.

Evitando pensar que Lowick agitava-se como um garanhão à frente de uma égua no cio, Flambard tratou de emprestar um tom neutro à voz:

— Que caso é esse?

— Uma questão levantada por lorde Galeran de Heywood concernente à esposa dele e à filha dela. O senhor já havia mencionado o caso à Sua Majestade, meu lorde.

Se aquele fedelho indiscreto fosse seu criado, Flambard o açoitaria atado a um pelourinho.

— Ah, sim. Agora me lembro. Um assunto de pequena importância, mas lorde Galeran não tem nos ajudado muito.

— O rei o convida a assistir à audiência e apontar quaisquer aspectos que julgar relevantes ao caso.

— O rei é muito amável e justo. Sir Raymond aqui conosco também tem interesse no caso, visto tratar-se do pai da criança. A menos que me seja dito o contrário, eu o levarei comigo.

— Isso será relatado ao rei.

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Assim que o rapaz deixou a saleta após uma leve mesura, Lowick, mão na empunhadura da espada, desabafou:

— Por São Miguel, enfim chegou!

— E pode ir-se num piscar de olhos, se o rei for tão inteligente quanto aparenta. Henrique tem um balaio de filhos bastardos, desse modo é quase certo que não veja o adultério e a fornicação com um mínimo de seriedade.

— Acha que podemos perder, meu lorde?

— Para o caso de isso acontecer, já preparei outra arma.

— Uma arma, meu lorde?

— Você é o marido por força da lei de Jehanne de Heywood.

— Não, senhor, não sou.

Flambard apontou um documento em cima da escrivaninha. Lowick pegou o papel, mas avisou, como se isso fosse uma declaração de mérito:

— Não sei ler.

— Então deixe o documento aí. — Flambard suspirou. — Esse é o documento do seu noivado, devidamente assinado pelas testemunhas.

— Mas nunca fui noivo de Jehanne nos termos da lei.

Resistindo ao impulso de abrir a cabeça de Lowick para enfiar uma porção mínima de inteligência naquele cérebro, o bispo explicou:

— Segundo o que você me disse, a intenção de Fulk era fazê-lo noivo da filha dele, então cuidei de transformar esse propósito num compromisso real. Esse documento, sir Raymond, muda tudo. Ele lhe dá o direito de desafiar lorde Galeran.

Após pensar um breve momento, Lowick argumentou:

— Mas se eu lançar um desafio fundamentado numa mentira, Deus não estará do meu lado.

Flambard contou até dez.

— Você deve se basear na sua verdade, não no que de fato ocorreu. E para você, Jehanne foi-lhe prometida como noiva, não foi?

— Sim, mas...

— E essa promessa não invalida o posterior noivado dela com lorde Galeran?

— Invalida?

— Sim — Flambard mentiu.

— Oh. Então, se o casamento deles não tem validade... ela é minha!

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— Isso mesmo. Agora, não iremos apresentar esse documento aí a menos que seja necessário fazê-lo. Mas ele significa que não temos como perder. De um modo ou de outro, você irá desafiá-lo e matá-lo, sim? Pela sua dama e pela sua filha.

Lowick pareceu crescer.

— Pela minha dama e pela minha filha!

— Contudo, ainda nos seria útil saber o que se passa realmente com William de Brome. A distância até Waltham não é grande; vá até lá, sir, e veja o que consegue descobrir. Se lorde William estiver fingindo-se de doente, isso será mais um ponto a nosso favor.

Assim que o cavaleiro se foi, o bispo pediu uma taça de vinho ao criado e enviou Lucas à casa do negociante Hugo, na Corser Street.

Quando o homem voltou, trazia notícias muito interessantes.

Capítulo VIII

O retorno à casa de Hugo foi bem mais demorado, pois dessa vez Galeran e Raoul seguiam no sentido inverso ao fluxo de cavaleiros e pedestres. E, no meio do caminho, eles ainda pararam numa taverna para lavarem-se da poeira da cidade e se alimentar.

Foi com grande alívio que chegaram à Corser Street. Um alívio, porém, que logo se transformou numa onda de pânico quando Mary, toda desarrumada de tão agitada e nervosa, correu ao encontro deles para anunciar:

— Lorde Galeran, elas foram levadas daqui!

— Minha esposa? O bebê? Por quem? Lowick? Flambard? — Galeran tirou as rédeas de seu cavalo das mãos do rapaz prestes a levá-lo dali.

— Eram homens do rei! — Mary arfou. — Vieram com uma autorização, e não havia o que pudéssemos fazer!

— O rei! — A mente de Galeran parecia rodopiar. Henrique ouvira a versão da história da boca de Flambard no dia anterior... — Para onde as levaram?

— Ao convento de Santa Hilda. Fica na Aldersgate Street, não muito longe daqui.

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Enquanto Mary lhe ensinava como chegar lá, Galeran sentiu-se um pouco mais calmo. Um convento era um lugar bom, desde que não tencionassem trancafiar Jehanne ali para sempre.

— Quer que eu vá com você? — Raoul ofereceu.

— Não, prefiro que fique aqui.

— Então leve alguns homens, por precaução. Este jogo pode ser complexo. Talvez Flambard saiba o que se passou, o rei pode ter lhe falado de seus planos. E não devemos descartar a hipótese de uma emboscada.

— No meio da cidade? Duvido. Parece-me claro que, tão logo soube que eu estava em Westminster, Henrique mandou que viessem buscar Jehanne. Não gosto nada disso. Ele por certo já decidiu qual será seu veredicto, que mil raios o partam.

Raoul segurou no braço dele.

— Tome cuidado com o que diz em público, Galeran, e trate de se proteger. Jehanne não corre riscos diretos, mas precisa de você vivo e inteiro.

— Ela está sob custódia. O que acontecerá se Henrique e a Igreja resolverem que deve ser punida?

— Você não teria como impedi-los.

— Buscarei uma maneira de fazê-lo.

Calculando que num lugar como Londres um homem a pé pudesse ganhar mais tempo do que alguém a cavalo, Galeran deixou a casa do negociante de vinhos sem requisitar a proteção de seus homens. Se um deles quisesse escoltá-lo, que o fizesse.

O convento de Santa Hilda era uma sólida edificação que cobria uma porção de terra cercada por altos muros de madeira. Uma excelente prisão, pensou Galeran, porém não inexpugnável. Atrás dos muros via-se o alto de alguns telhados de palha e o campanário em pedra, que provavelmente devia ser parte da capela do convento. Nada que indicasse um local guardado por soldados.

Imaginando que quem invadisse um local protegido por Deus sofreria as penas dos homens, Galeran puxou a corda do sino preso junto à pesada porta de carvalho. Uma pequena portinhola abriu-se à altura de seus olhos.

— Sou Galeran de Heywood. Vim ver minha esposa.

A portinhola fechou-se e a grande porta foi aberta. A freira muito magra que o recebeu lhe disse:

— Deve falar com nossa madre superiora, meu lorde.

Galeran tranqüilizou-se um pouco. Santa Hilda não lhe parecia uma masmorra ou um lugar de terror. Por certo o rei julgara por bem manter a causa da contenda num

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ambiente seguro. Talvez sua intenção até fosse proteger Jehanne e o bebê da Igreja.

O gabinete da madre superiora era áspero: paredes caiadas, mesa e bancos simples, um crucifixo de marfim; recendia à virtude mais severa que pudesse existir. A irmã tinha uma aparência igualmente áspera, a pele amarelada e um nariz pode-roso, mas, como ocorria com sua sala, tal simplicidade lhe conferia certa majestade.

Ela indicou-lhe que se sentasse num dos bancos.

Galeran manteve-se em pé.

— Eu gostaria de falar com minha esposa.

Apoiando as mãos cruzadas sobre o tampo da mesa, a madre superiora ergueu as grossas sobrancelhas.

— Com que propósito?

— Para me certificar de que ela está bem, e satisfeita por achar-se aqui.

— E se ela não estiver?

— Levarei-a embora.

— Contra uma resolução do rei, meu lorde? Recebi ordens para manter lady Jehanne aqui até que a questão que a envolve seja resolvida.

— Tem ordens para impedir que eu fale com ela?

— Não. — A irmã ficou pensativa, depois acrescentou: — Espere aqui alguns instantes, meu lorde. Irei ver se ela deseja recebê-lo;

Galeran esperou pela madre superiora com o coração aflito e a cabeça revolta em digressões sobre a situação. Quando retornou, a freira foi direto ao ponto.

— Ela irá vê-lo, e pelas nossas regras, lorde Galeran, vocês não podem tocar um ao outro.

Ele acompanhou-a por um corredor coberto até uma porta, que a religiosa abriu para deixá-lo entrar numa cela muito pequena. À pouca claridade proporcionada por uma janela estreita e alta, Galeran demorou alguns instantes para distinguir os contornos da cama estreita, do banco e do genuflexório diante de uma cruz de madeira que mobiliavam o recinto. Aquilo não era um aposento para hóspedes. Era o claustro de uma freira.

Jehanne estava sozinha ali. Onde estariam Aline e o bebê?

A presença da madre superiora fez Galeran medir as palavras que endereçava à esposa.

— Você está bem?

— Sim, é claro. Foi um susto, mas...

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— Posso imaginar. O rei irá ouvir nosso caso amanhã, desse modo você não terá de ficar muito tempo aqui.

— Este é um ótimo lugar para se rezar.

Algo estava errado. Aquela calma pétrea não era característica de Jehanne.

— Onde estão Aline e Donata?

— Num outro aposento. Trazem-me a menina para eu amamentá-la. Não há com que se preocupar, Galeran. A privacidade me dá uma oportunidade para meditar e rezar.

Mesmo não acreditando nela, ele obrigou-se a sorrir.

— Mantenha-se tranqüila, Jehanne. É quase certo que amanhã estaremos no caminho de volta à nossa casa.

— Quando o caso será ouvido?

— À terça.

— Poderei ir? Talvez haja algo que...

Galeran conhecia sua Jehanne. Ela lhe escondia alguma coisa. E como ele poderia tentar descobrir de que se tratava, se a freira continuava a observá-los como se espreitasse dois prisioneiros envoltos em confabulações criminosas?

— Jehanne, deixe tudo em minhas mãos. Não deixarei que seja feito nenhum mal a você ou à menina. Prometo.

— É evidente que confio em você, mas... Ah, sei que fará o que é certo.

— Apenas reze, Jehanne. E espere com paciência até amanhã. Assim que ele saiu, a madre superiora girou uma pesada chave na fechadura.

— Isso não me parece necessário, irmã.

— Cumpro ordens, lorde Galeran. Você não pode negar que sua esposa pecou. As pequenas penas que ela agora paga irão ajudá-la a salvar sua alma, talvez ajudarão a salvar todos vocês.

Galeran quis refutar aquela proposição, mas logo desistiu da idéia. Se cedesse aos seus impulsos e libertasse Jehanne por meio da força, acabaria exilado ou encarcerado, e isso não lhes serviria, nem a ele nem a ela.

— Irmã, eu gostaria de ver lady Aline e o bebê.

Com um suspiro impaciente, a madre superiora conduziu-o através de um jardim ao outro lado da edificação.

— Não seria mais conveniente para elas ficarem próximas? — quis saber Galeran.

— Esses são os únicos aposentos que temos vagos, meu lorde. Muitas pessoas vieram nos pedir hospedagem durante as visitas ao rei.

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"E todas são trancafiadas como prisioneiras", ele imaginou, ao ver a religiosa destrancar uma outra porta. Mas não, não podia perder a cabeça num momento como aquele. Jehanne parecia a salvo, embora muito tensa. E se Aline, Winifred e Donata também estivessem bem, ele deixaria que aquela situação se prolongasse até o dia seguinte.

A freira o fez entrar numa cela como aquela onde se encontrava Jehanne, com a diferença de que ali havia duas camas e um berço. Aline pôs-se em pé num arroubo de alegria.

— Galeran! Graças a Deus!

A madre superiora colocou-se entre os dois.

— Comporte-se de maneira adequada, mocinha!

Aline fez um muxoxo, porém cuidou de se controlar.

— Uma tropa de homens nos trouxe para cá, Galeran. Eles tinham papéis com o selo do rei e...

— Eu sei, eu sei. Não se preocupe, Aline, tudo será resolvido amanhã. Como está Donata?

— Bem. Só que não sei por que nos deixaram separadas. Precisamos avisar quando ela chora de fome, então uma das irmãs a leva para Jehanne.

Galeran olhou com severidade para a irmã superiora, que se apressou a declarar:

— Disseram-me para deixar lady Jehanne sozinha, pois assim ela poderia contemplar seus pecados em paz, meu lorde. Crianças são sempre muito irrequietas. Sua dama afirmou que o arranjo lhe era conveniente. A menina é levada à mãe sempre que preciso.

A Galeran, tudo aquilo parecia mais uma das centenas de trapalhadas em que o governo se metia. O que o preocupava de verdade era que tais assuntos às vezes escapavam do controle. Entretanto, como não quisesse aborrecer Aline e Winifred, sorriu para ambas, ponderando:

— É provável que a tranqüilidade faça bem a Jehanne. Ela passou por momentos difíceis no último ano.

E com isso ele se foi, não sem antes dar mais uma olhadela na porta da cela de Jehanne.

Aline deixou-se cair sobre a cama dura. Queria ter podido falar a sós com Galeran, já que a situação não era nada boa. E precisava conversar com Jehanne também, fazer planos para o caso de aquele julgamento estúpido terminar com uma ordem para que Donata fosse entregue a Lowick.

Santo Deus, recolhidas a um convento e sem ter como sair dali, ela pensou. Como haveriam de lidar com mais esse problema?

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A menina agitou-se, e Winifred correu a pegá-la nos braços, evidentemente satisfeita por ter algo que fazer. Olhando ao redor, Donata levou os nós dos dedinhos à boca e pôs-se a Sugá-los.

— Ela vai começar a chorar de fome a qualquer momento — observou Winifred. — Vou trocá-la.

Aline teve uma idéia. Separando da bagagem que lhe fora permitida levar ao convento a bolsa com material para bordar, tomou o cobertorzinho de Donata e, numa das laterais, bordou grandes pontos que formavam a pergunta "Que quer fazer?". Quando a menina estava pronta, embrulhou-a na manta com o cuidado de dissimular um pouco o bordado, depois foi bater à porta e pedir que viessem buscar o bebê.

Em questão de instantes, uma freira sorridente apareceu e, ajeitando Donata junto ao colo, levou-a dali.

A menininha não voltaria tão cedo, uma vez que, nessas ocasiões, Jehanne a mantinha junto de si pelo maior espaço de tempo possível. Esperançosa, Aline retomou seus bordados. E foi só então que lhe ocorreu outra idéia, dessa vez calamitosa: Jehanne não tinha agulha e linha para bordar uma resposta.

Suspirando, Aline ergueu o olhar e deparou com Winifred placidamente adormecida na cama diante da sua. Ah, se tivesse aquela calma...

Jehanne reparou que havia letras bordadas na manta tão logo ajeitou Donata de encontro ao seio. Contudo, resignou-se a amamentar a filha, tanto porque a pequena tinha fome como pelo fato de a freira demorar-se alguns instantes à sua frente, como sempre fazia.

Quando a irmã Martha se foi, ela ainda esperou que Donata se satisfizesse e só então, certa de que o bebê dormia profundamente, esticou a borda do cobertorzinho o suficiente para compreender a mensagem.

Aline era mesmo esperta!

A pergunta, porém, era perturbadora. O que ela queria fazer?

Jehanne sabia que devia sofrer algum tipo de castigo pelo pecado que cometera; sem isso, não estava certa de conseguir voltar a ser feliz. Uma batalha judicial, porém, não lhe serenaria o coração, principalmente se levasse em conta que tal confronto seria travado pelos dois homens que haviam lhe dado seus dois filhos.

Mas graças ao bispo Flambard, ela agora tinha uma maneira de aliviar sua alma e a oportunidade de evitar um duelo entre Galeran e Raymond de Lowick.

Acomodando Donata sobre a cama, Jehanne pôs-se a lhe acariciar a cabecinha enquanto pensava na sua situação. O rei dispusera que fossem levadas para aquele convento; o bispo, porém, ordenara que ela fosse mantida em confinamento soli-

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tário, sob estrita vigilância. Tudo levava a crer que bastara a Flambard contar à irmã Eadalyth sobre o pecado da dama de Heywood para tê-la do seu lado.

Fora ele também quem ordenara a punição para Jehanne: dez golpes de vara a cada três horas. E mesmo que não lhe agradecesse por isso, ela acreditava que tal castigo pudesse salvar a todos, talvez de várias formas.

Nem a Galeran a irmã Eadalyth reservara sentimentos caridosos.

— Um homem que permite que tais pecados não sejam punidos é também um pecador — tinha declarado a religiosa, enquanto enrolava a manga do hábito para a primeira sessão de castigos, aplicada pouco antes de ele chegar. — Seu marido é como Adão, sucumbindo uma vez mais a Eva. Você é digna de pena, minha criança, por ser governada com tamanha complacência.

Jehanne perguntou-se se a madre superiora teria mudado de idéia após conhecer Galeran, afinal em nada ele fazia lembrar um homem fraco. Seu marido amava a esposa cegamente, e era desse mesmo modo que era amado por ela. Ambos seriam capazes de morrer um pelo outro. E como fora ela quem havia provocado aquele desastre na vida dos dois, cabia-lhe sofrer todas as penas pelo mal causado.

No momento, o certo era suportar o castigo, por mais doloroso que fosse, e depois usá-lo como uma arma contra o bispo. Para isso, porém, ela precisava ir à audiência do próximo dia e mostrar a todos suas costas, mostrar ao rei como Flambard passara por cima das determinações do soberano da Inglaterra.

Só que a madre superiora jamais o permitiria.

Galeran por certo também não colaboraria. Aliás, se soubesse das vergastadas, por certo colocaria um ponto final à punição. Raoul, por outro lado, parecia ser um homem mais prático... E a única maneira de enviar-lhe uma mensagem seria por meio de Aline.

Como não tivesse seu material para bordar à mão, Jehanne olhou ao redor à procura de algo que pudesse fazer uma marca. Nada encontrando, reparou que o chão era de terra batida e, com um pouco da água que as freiras lhe davam, imprimiu com muito custo uma mensagem na mantinha de Donata.

Pouco depois ouvia passos pelo corredor. Correu a embrulhar a filha no cobertor e entregou-a aos braços da irmã Martha. Então, colocando-se no genuflexório, rezou fervorosamente enquanto esperava que a madre superiora Eadalyth aparecesse com sua verga.

Ofereceu sua dor a Deus e a Sua mãe, buscando perdão pelo pecado que cometera e, mais importante, proteção para Galeran e Raymond. No fundo, pouco lhe importava o que acontecesse a Raymond de Lowick; rezava por ele porque o conhecia desde menino e porque fora ela, somente ela, a responsável pelo pro-blema em que o antes escudeiro de seu pai via-se agora metido.

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Ah, sim, merecia cada vergastada que o bispo ordenara para ela. Deveria até mesmo agradecer-lhe por isso, e o faria se não tivesse certeza absoluta de que fora Ranulph Flambard quem havia planejado o ataque que Galeran sofrerá quando voltava de sua expedição pelas terras de Heywood. Raymond tinha inúmeros defeitos, mas jamais desceria tão baixo.

Mais alguns momentos se passaram, e Jehanne ouviu a porta abrir-se às suas costas. Um leve farfalhar de tecido lhe dizia que a madre superiora enrolava a larga manga direita do hábito.

— Que o Senhor perdoe esta pobre pecadora — disse a irmã Eadalyth.

— Amém — respondeu Jehanne, num fio de voz.

E a vergasta cantou. Que a doce Maria a ajudasse, porque aquilo doía como fogo sobre a carne já machucada. Agarrada ao genuflexório, Jehanne mordia o lábio com toda a força, tentando contar.

Quatro.

Sete.

Mais uma.

Mais outra.

A última.

Acabara. O alívio foi tão grande que parecia parti-la ao meio.

Acabara... Por enquanto.

Da próxima vez, ou da vez seguinte à próxima, ela terminaria por gritar. Todo ser humano tinha limites. Seu orgulho estremeceu à idéia de que ela pudesse chorar aos golpes, mas o orgulho era uma coisa tão tola...

Ao ouvir a madre superiora deixar a cela e trancar a porta antes de se afastar dali, Jehanne baixou a cabeça e voltou a rezar, oferecendo sua dor pelo bem-estar de todos. E pela vitória no final de tudo.

Aline tinha observado o reflexo do sol mover-se um quarto do caminho pelo aposento antes que Donata regressasse, dormindo como um anjinho. Contente com que Winifred também dormisse a sono solto, ela colocou a menina no berço e trocou a manta que a agasalhava por uma outra limpa.

Sua primeira impressão foi a de que alguém tivesse secado as mãos sujas no cobertorzinho do bebê. Então, analisando o desenho formado pelos, borrões, ela percebeu que as marcas eram letras. E que formavam uma mensagem: Tenho ir audiência. Raoul.

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Deixando escapar um suspiro aliviado, Aline esfregou a mantinha para fazê-la parecer somente suja. Então Jehanne queria ir à audiência. E se escrevera o nome de Raoul, era porque imaginava que Galeran não fosse ajudá-la.

Aline sentou-se na cama e pensou.

Estava certa de que mulheres, via de regra, não assistiam a audiências judiciais diante do rei. Se Jehanne pretendia ir a uma delas, isso significava que tinha algo importante a declarar, alguma alegação que não podia ser feita através de uma simples mensagem. Contudo, estavam todas presas ali, e embora o convento não fosse um cárcere terrível, parecia bastante seguro.

Aline suspirou. Em vista do recado de Jehanne, supôs que precisasse engendrar um plano de fuga.

Então uma nova série de questões lhe veio à cabeça.

Jehanne não podia ficar longe de Donata por um longo período de tempo, e escapar com um bebê de colo se constituiria numa tarefa ainda mais penosa. Além disso, se sua prima queria ir à corte, seria melhor que a fuga se desse não muito antes da audiência, pois tentar esconder-se durante uma noite inteira, e com uma criança chorosa nos braços, parecia um feito impraticável.

Aline compreendeu por que Jehanne mencionara Raoul. Além de ser o tipo de pessoa capaz de organizar tudo aquilo, ele contava com o benefício de ser estrangeiro; se o rei tivesse um ataque de fúria por conta do comportamento deles, Raoul poderia fugir de volta à sua terra natal.

Sozinho.

Evitando pensar nessa possibilidade, Aline cuidou de traçar planos reais. Quando as freiras chegaram das orações da nona, hora da quinta prece do dia, ela já tinha uma estratégia pronta. No entanto, teria de esperar até as vésperas, outra hora canônica destinada a orações, para colocá-la em prática. Assim sendo, acomodou-se melhor sobre o colchão para desfazer a mensagem que bordara num cobertorzinho e bordar uma outra, explicando em palavras essenciais o que pretendia.

No final da tarde, irmã Martha veio buscar Donata, e Aline permaneceu sentada à beirada da cama, inquieta e absorta. Tempos depois, quando a freira retornou com o bebê, Aline levou as mãos ao ventre e pôs-se a gemer.

— O que houve menina?

— Não me sinto bem. Acho que estou doente... Não sei o que pouso ter, mas estou preocupada com o bebê... Donata pode pegar uma...

— Oh, Deus... Oh, não! — exclamou a religiosa, sem saber muito bem o que fazer.

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O sino já tocava pelas vésperas e, pela fresta da porta, Aline viu que a comunidade já se encaminhava para a capela. Cobrindo a mão com a boca como se estivesse a ponto de vomitar, ela sugeriu:

— Talvez a enfermaria... — E ofegou.

— Sim, sim! — concordou irmã Martha. — Não podemos colocar o bebê em perigo.

Antes que Aline pudesse dizer mais alguma coisa, a freira pegou-a pelo braço, arrastou-a para fora da cela e trancou a porta. Encostando-se à parede, Aline agradeceu mentalmente aos Céus e pediu que, por um golpe de sorte, a enfermeira também estivesse ocupada com as vésperas.

Após passar o braço ao redor do corpo dela, irmã Martha lhe disse:

— Venha, pobrezinha, vamos à enfermaria. Há um banheiro, e assim que as vésperas terminarem, a irmã Fredeswide irá providenciar um remedinho para ajudá-la.

Aline fez outra prece muda. Tudo levava a crer que iria ficar sozinha.

A pequena sala caiada de branco tinha seis leitos, todos vazios. Atirando-se num deles, Aline gemeu. E tornou a gemer ainda mais alto ao ver a irmã Martha sentar-se em outra cama.

— Sente dores no abdome, lady Aline?

— Sim. Dores muito fortes. Mas talvez... Talvez eu consiga dormir. Acho que o sono me fará bem.

— Será?

— Tenho certeza, irmã. E, por favor, não se sinta na obrigação de perder as vésperas por minha causa.

— Fui dispensada para que pudesse cuidar dos nossos hóspedes.

— Ah. Não acha que... que deveria ficar num lugar onde pudesse ouvir Winifred? Ela... ela pode precisar de ajuda. E se Donata ficar doente também?

— Oh, Céus, é verdade! A pequenina!... Talvez eu devesse chamar irmã Fredeswide para...

Aline começava a se desesperar. Mas antes que tivesse tempo para pensar numa saída àquela situação, a freira dizia:

— Irmã Fredeswide odeia que a incomodemos sem necessidade... Vou para o claustro, pois de lá posso ouvir tanto você quanto a pajem do bebê, caso venham a me chamar. Tem certeza de que ficará bem aqui?

— Sim. E peço perdão pelo transtorno.

— Não se preocupe, querida. Logo, logo você terá sua saúde de volta.

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Ao ver irmã Martha fora do alcance de seus olhos, Aline sentou-se na cama para investigar o terreno inimigo. Aquele recinto possuía três portas. Uma levava ao claustro. Como atrás da outra se ouviam cantos, por certo só podia tratar-se da ca-pela. Levando isso em consideração, Aline, pé ante pé, foi abrir a terceira.

No instante seguinte, estava na sala de guardados da enfermaria. O pequeno aposento, recendendo a plantas de cura e poções, tinha uma outra porta na parede oposta, que se abria ao jardim de ervas. E essa porta encontrava-se escancarada.

Mas a alegria de Aline durou pouco: não havia como sair daquele horto. Praguejando baixinho, ela então estudou o muro, que guardava dois lados do jardim. E que tinha quase duas vezes sua altura.

Mas que diferença isso fazia, se ela precisava sair dali de qualquer maneira?

Com o coração aos saltos, Aline correu de volta à enfermaria e de lá trouxe o banco mais alto que encontrou. Subindo nele, viu que quase alcançava a parte baixa do telhado de palha. E se chegasse ao telhado, dali saltaria ao muro, e do muro... ga-nharia a liberdade.

Assim que sentiu o coração mais firme, pulou em cima do banco. No terceiro impulso, logrou agarrar-se a uma das vigas de sustentação do telhado e, usando-a como apoio, conseguiu, ainda que com extrema dificuldade, alcançar a cobertura de palha. Lá de cima, olhou rapidamente ao redor. A altura não era nada desprezível.

Mas o tempo também não parava de correr. Escorregando pelo telhado, Aline chegou ao muro de madeira e, mais uma vez, sentiu-se abençoada: do outro lado estava uma rua estreita e muito tranqüila. A julgar pela ausência de movimento, quase ninguém devia passar por ali. A distância do muro ao chão, entretanto, continuava a ser quase o dobro da altura dela. Sabendo que não lhe sobrava outra escolha, Aline pediu a bênção dos santos que sempre a tinha protegido e, imaginando que Raoul de Jouray sentiria orgulho dela naquele instante, fez o que tinha de ser feito.

Aterrissou no chão de terra batida com um baque seco e a impressão de que se quebrara ao meio. Contudo, ao se pôr em pé, viu que a queda não fora tão terrível quanto havia suposto. Estava inteira, sim. Com o coração aos pulos e talvez um pouco desgrenhada, mas inteira. E o tempo continuava a passar... Mais um pouco, e o sino de Santa Hilda sinalizaria o término das orações.

Respirando fundo, ela tratou de deixar os arredores do convento em direção a uma rua mais movimentada. No percurso, sentiu os lábios curvarem-se num sorriso que não teve como reprimir. Tinha conseguido! E o que Raoul diria de tamanha proeza?

Seu entusiasmo, porém, mostrou fôlego curto. No anonimato de um abarrotado mercado a céu aberto, Aline precisou admitir que estava perdida. Por nunca ter visitado uma cidade tão grande e tão populosa como Londres, pensara que lhe

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bastaria caminhar um pouco para deparar com a casa de Hugo. Contudo, já tinha percorrido quase três ruas inteiras e ainda não vira nada que pudesse reconhecer.

Olhando ao redor, notou que todas as pessoas por ali pareciam ou absortas em suas tarefas ou apressadas em voltar para casa. Fregueses faziam compras de última hora, e vendedores começavam a guardar suas mercadorias. Ninguém parecia se importar com uma jovem de dezoito anos, com olhos e cabelos claros, vestindo creme sob a túnica vermelha ricamente bordada, e... fugitiva de um convento, aonde fora parar por ordem do rei.

Aline deixou que o fluxo da multidão a levasse ao final da fileira de barracas, e dali se aproximou de uma senhora que colocava jarros de mel e cestas de bolos numa carroça pequena.

— Será que poderia me fazer o grande favor de indicar o caminho para a Corser Street, senhora?

— Está perdida, querida? — perguntou a mulher. — Não é para menos, com a loucura que parece ter tomado conta da cidade nestes últimos dias. Corser Street, é? Corser Street...

— Fica perto de Fetters Lane — acudiu o homem que vendia chouriços perto dali. — Na parte baixa do rio.

— Ah, é verdade! — A mulher voltou sua atenção a Aline. — Siga esta rua até Cooper's Lane. Vire à esquerda lá e logo estará junto ao rio. Corser Street fica naquela zona. Você irá encontrá-la.

Aline teve vontade de abraçá-la por conta da gentileza, mas apenas agradeceu e apressou-se em direção ao seu destino. Caminhando de cabeça baixa, evitando deixar-se notar, seguiu em frente pensando nos motivos que Jehanne teria para querer participar da audiência. Nada lhe ocorreu. Mas, fosse o que fosse, de uma coisa tinha certeza: sua prima era incrivelmente inteligente e por certo sabia o que fazia.

Ao fim da rua, ela ergueu a cabeça e viu as palavras Cooper´s Lane escritas num muro. Virou à esquerda e, alguns metros adiante, deduziu que as pessoas por ali deviam fabricar ou negociar barris, pois cada casa tinha uma pilha deles.

Barris.

Vinho.

A associação a fez concluir que os tanoeiros deviam conhecer os negociantes de vinho.

Quando viu um homem de meia-idade rolando um barril de volta à sua oficina, Aline foi ao encontro dele.

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— Desculpe-me, senhor, mas por acaso conhece Hugo, o comerciante de vinhos que mora na Corser Street?

O homem endireitou-se, olhou-a de cima a baixo, depois sorriu.

— E se eu conhecer, mocinha linda? Convencendo-se de que ele estava brincando, Aline encontrou coragem para explicar:

— Sou nova na cidade, senhor, e estou perdida. Será que poderia me ajudar a voltar para casa?

— Está bem, vamos lá. — Tocando-lhe o braço e fazendo-a olhar em direção ao fim da via, o tanoeiro ensinou: — Continue.

— Ela está sob a custódia do rei, Aline. Fugir para ir confrontá-lo não fará com que ele se solidarize com a causa dela.

Resistindo ao desejo de aninhar-se de encontro ao peito largo de Raoul, Aline retrucou:

— Eu sei, mas ela está decidida. E não quer que Galeran saiba da sua resolução. Acho que Jehanne pensa que ele iria tentar detê-la.

— Talvez a idéia de sua prima seja evitar que o marido se defronte com Lowick numa batalha da corte judicial E Galeran está tentando evitar que ela se torne o foco da questão e seja punida por seus pecados. Ah, o amor leva as pessoas inteligentes por caminhos estranhos...

— E nós, que faremos?

— Antes de mais nada, vamos procurar um lugar decente para você ficar. Espere um instante.

Aline o viu deslizar para fora do acanhado dormitório sem mais explicações. Enquanto aguardava, tentou obrigar o lado prático de sua mente a preocupar-se com Jehanne e com a reivindicação de Lowick por Donata. Não demorou muito, po-rém, para constatar que, no fundo não só da sua mente mas também do seu coração, era Raoul a pessoa mais importante do mundo naquele momento.

Assim que ele voltou, Aline pôs-se em pé.

— Fui pedir um endereço a Paul, o dono da hospedaria — Raoul explicou. — Não se preocupe, Aline. Não permitirei que ninguém lhe faça mal.

Meneando a cabeça num gesto assertivo, ela se perguntou por que a vida não era simples como deveria ser. Já que tinha de apaixonar-se, por que não fora se apaixonar por um sensato homem do Norte?

Raoul conduziu-a para fora da fétida hospedaria pela saída dos fundos, de onde sairiam para um quintal repleto de porcos. Abrindo caminho em meio a outros quintais como aquele, foram dar numa rua larga e dela rumaram para uma via mais silenciosa e deserta. Na metade do quarteirão, ele se deteve para bater a uma porta.

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O pesado vestíbulo de madeira se abriu, e uma senhora de aparência frágil os examinou.

— Gostaríamos de um quarto para pernoite — disse Raoul.

— São seis centavos.

Tão logo ele lhe entregou a moeda, a mulher os guiou por um corredor e dois lances de degraus estreitos. O lugar era tão escuro e acanhado quanto o anterior, mas pelo menos cheirava a asseio.

Após abrir uma porta esquálida, presa à parede com dobradiças de couro, a mulher se afastou sem dizer palavra. Aline deu uma olhada à sua volta. Mesa, banco, cama. Limpos.

— Agora irei ao convento para ver se consigo falar com Jehanne — disse Raoul. — Preciso descobrir o que...

— Vai me deixar aqui?

Ele lhe tomou as mãos nas suas.

— Calma, amor. Você estará em segurança aqui. De acordo com Paul, a sra. Helswith cuida deste lugar com mãos de ferro. Se houver problemas, ela tem uma ninhada de filhos muito fortes na casa do ferrador, que fica aqui ao lado.

Aline forçou-se a sorrir.

— Está bem.

— Esta é a minha menina corajosa... — Com isso, ele tomou-a nos braços para beijá-la profundamente.

Aline ouviu seu senso de prudência lhe ordenar que resistisse. No entanto, faltou-lhe força de vontade para fazê-lo. E se Raoul a deitasse na cama naquele momento, ela por certo continuaria a não resistir.

Não foi o que ele fez. Lentamente, como quem tirasse a boca de um favo de mel, ele afastou os lábios dos de Aline para então olhá-la nos olhos.

— Como já deve ter imaginado, voltarei para passar a noite com você aqui.

— Eu não iria querer passar a noite sozinha neste lugar. Raoul tirou da bainha presa à cintura seu punhal, uma reluzente lâmina com empunhadura cinzelada em prata.

— Fique com isto.

Enquanto Aline levava a arma de encontro ao peito, ele se foi.

Caminhando pelas ruas de Londres, Raoul continuava a lutar contra o desejo insano pela tão brava quanto doce donzela que deixara na hospedaria. Queria Aline, sim, e acima de tudo a queria por esposa. Não tencionava desonrá-la. Ainda que a desejasse como jamais havia desejado outra mulher na vida...

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Por mais que isso lhe custasse, tentou se concentrar nos problemas que tinha à sua frente. Organizar uma fuga era algo perigoso. E por que Jehanne queria ser resgatada do convento para ir ter com o rei? Seria possível que tencionasse oferecer a si mesma à punição como modo de impedir que Galeran tivesse de enfrentar Lowick à lâmina de uma espada?

Quando a portinhola no portão do convento se abriu, ele disse à freira que viera atender que estava ali em busca de notícias de lady Aline. Depois de ouvir da religiosa que a prima de Jehanne de Heywood ainda não fora encontrada, pediu para falar com a madre superiora sobre o assunto.

Apesar da relutância inicial da freira, em questão de momentos Raoul estava na sala muito simples da irmã Eadalyth. Entre preocupada e contrariada, a madre superiora queixou-se:

— Não posso imaginar o que se passou com aquela menina que a fez tomar uma atitude tão absurda. E lady Aline é quase uma freira!

— Preocupa-me ainda mais o fato de ela não conhecer a cidade — retrucou Raoul. — Seria possível eu falar com lady Jehanne? Gostaria de saber se Aline tem parentes ou amigos nas proximidades, a quem possa ter ido pedir refúgio.

A religiosa pareceu hesitar um instante, mas depois o levou até a esposa de Galeran. Jehanne estava de joelhos, rezando; ergueu-se imediatamente ao vê-lo ali e, apesar da expressão surpresa, não disse nada.

Estudando-a com atenção, Raoul lhe disse:

— Aline desapareceu.

Apoiando a mão no genuflexório, ela ficou ainda mais pálida.

— Desapareceu? Como? O que está acontecendo? E Donata?

— A criança está bem, com a pajem — irmã Eadalyth apressou-se a responder. — De algum modo, sua prima logrou deixar o convento e não foi vista desde então. Londres é uma cidade repleta de perigos.

A partir de então, Raoul teve uma certeza: tanto o espanto de Jehanne ao vê-lo ali como a surpresa dela pela fuga da prima eram ensaiados, mero fingimento. Após trocar mais algumas palavras protocolares com ela a respeito do sumiço de Aline, ele lhe disse:

— Se tiver alguma mensagem para Galeran, posso levá-la. Dessa vez, Jehanne foi objetiva:

— Você poderia dizer-lhe que eu gostaria de estar ao lado dele durante a audiência, mas creio que isso não alterará o rumo que tudo vem tomando.

— Compreendo. Até lá, você estará bem? Tive receio de que um tratamento inadequado aqui fosse o motivo que levou Aline a fugir.

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— Não tenho do que me queixar.

Ainda que a madre superiora não o incitasse, Raoul sabia que precisava ir embora. Contudo, antes de seguir à hospedaria onde Aline o esperava, parou na Corser Street e ali encontrou Galeran, com uma péssima aparência, andando de um lado para outro.

— Aline está a salvo — Raoul lhe disse.

— Deus seja louvado! Onde ela está?

— Num lugar seguro. Julguei mais prudente não trazê-la de volta para cá. De qualquer modo, preciso retornar para junto dela. Aline está bastante assustada.

— Então por que fugir do convento?... Raoul, se bem entendi, você pretende passar a noite com ela?

— De certo modo.

Erguendo do peito o crucifixo de prata, Galeran mostrou-o ao amigo.

— Jure sobre a Cruz. Jure que você não irá desonrá-la.

— Você devia confiar em mim.

— E confio. Confio que não quebrará um juramento, seja qual for a tentação.

Sentindo certo alívio por aquele reforço às suas boas intenções, Raoul levou a mão à relíquia e fez o juramento. Depois, anunciou:

— Passei no convento também e falei com Jehanne. Ela me pareceu bem, apesar dos últimos contratempos. Mas, e você? Por que não vai dormir, agora que estamos todos em segurança?

— Não é má idéia, meu bom pajem.

Raoul gostou muito de ver Galeran esboçar um sorriso. Pois se tivesse de assistir a seu querido amigo enfrentar a morte, preferia enfrentá-la ele mesmo.

No convento, a madre superiora retornava à cela armada de sua vergasta.

— O que sua prima tola está preparando, lady Jehanne?

— Não sei.

— Acho que sabe. Você é uma pecadora perversa, e deve pagar não só pelos seus pecados como pelo perigo a que ela está se arriscando.

Jehanne virou-se e pôs-se de joelhos. Não podia sequer imaginar o risco a que Aline escolhera se expor no intuito de recrutar o auxílio de Raoul. Mas se era para manter Galeran a salvo, ela tornaria a pedir a ajuda da prima. Mil vezes, se preciso fosse.

Assegurando-se de que não era seguido, Raoul retornou à casa da sra. Helswith por um caminho tortuoso, o que lhe possibilitou refletir a situação. Tendo avaliado o

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convento, concluiu que tirar Jehanne de lá seria brincadeira de criança; violar um estabelecimento religioso, porém, não era dos riscos o mais leve.

E mesmo tendo resgatado Jehanne sem maiores problemas, levá-la à presença do rei em Westminster seria o mesmo que proclamar ao mundo os pecados da esposa de seu melhor amigo. Era difícil imaginar como isso poderia ajudar a que o soberano se manifestasse a favor deles.

Evitando pensar nas considerações que envolviam Aline, em Cheapside ele comprou um odre de vinho, um coelho assado e um filão de pão, e de lá seguiu para a hospedaria, que não ficava muito longe.

A solidão ajudara Aline a organizar os pensamentos, assim ela o recebeu com um entusiasmo genuíno, porém contido. Enquanto se alimentavam, Raoul lhe falou da visita ao convento, depois, em comum acordo, ambos escolheram assuntos mais amenos sobre o que conversar.

Finda a refeição, chegava enfim o momento de descansar para as aventuras, ou desventuras, que o dia seguinte lhes reservaria. Apegando-se ferrenhamente ao juramento que fizera, Raoul deitou-se ao lado de Aline no firme intento de somente tocá-la depois que se casassem. E, como se Deus abençoasse suas nobres intenções, ela adormeceu quase que imediatamente.

Ele lhe ajeitou a cabeça sobre seu peito e, olhando para o teto, sorriu consigo mesmo. Aline de Burstock era uma mulher extraordinária em todos os sentidos.

Os ruídos pela hospedaria e o feixe de luz que cruzava um orifício na parede vieram avisar Raoul de que o novo dia havia chegado. Após ele despertar Aline, ambos fizeram um rápido desjejum em Cheapside e de lá rumaram a Santa Hilda. No caminho, ela lhe deu mais detalhes das dependências que conhecera no claustro.

Ao chegarem a uma viela nos fundos do convento, Raoul estudou o muro de madeira.

— Pular essa proteção não será tão difícil. — Ele deixou escapar um suspiro. — O problema será se alguém me ouvir.

— Posso criar um alvoroço para distrair a atenção das freiras.

— Não. É muito arriscado.

— Não é, não. Direi às freiras que fugi pensando em procurar Galeran para me queixar do fato de estarmos separadas de Jehanne, mas acabei me perdendo e, morta de medo de mendigos e bandidos, procurei um abrigo onde me esconder durante a noite. Agora, depois de tantos sustos, vim de volta à segurança do convento.

Raoul não pôde deixar de sorrir. Assim como a prima, ela também parecia empenhada em ajudar um homem em apuros.

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— Está bem, Aline. Vamos tentar.

Sem perda de tempo, ela desfez as trancas do penteado já bastante desalinhado e, enquanto se sujava com a poeira da rua, Raoul lhe rasgou a bainha e um ombro do vestido.

— Pronta?

— Pronta.

Ele deu-lhe um beijo na testa e, ocultando-se atrás do tronco de uma árvore, viu-a disparar em direção à entrada do convento. Instantes depois, ouviu o sino à porta da instituição soar com estridência. Então contou até três, olhou ao redor certificando-se de que não havia ninguém pelas imediações, afastou-se um pouco e, com uma corrida curta até o muro, saltou e agarrou-se à parte alta da proteção de madeira.

Bastou-lhe uma espiada para ver que algumas freiras trabalhavam na moenda no outro lado do terreno e que o jardim de ervas estava deserto. Após se erguer ao topo do muro, Raoul lançou-se a um ponto atrás de um perfumado arbusto e, dando prosseguimento à primeira parte do plano, cruzou a enfermaria do convento em direção à capela.

Não havia como saber quem encontraria atrás daquela sólida porta. A sorte, porém, parecia lhe sorrir: ao abri-la, ele viu apenas duas freiras ajoelhadas diante do altar, sua cabeças baixas e os olhos presumidamente fechados em fervorosa oração. Com o corpo à parede, Raoul deslizou para o interior da capela e, esgueirando-se pelo corredor lateral, chegou à porta principal do pequeno santuário. Abriu-a, saiu, tornou a fechá-la. Então se ocultou entre dois pilares para pensar no movimento seguinte. Tentava decidir que direção tomar quando Jehanne, sem sequer imaginar que o fazia, veio em seu socorro. No final de algum daqueles corredores, ela exclamava:

— Alguém aí! O que está acontecendo? É Aline quem está gritando?

Jehanne pôs-se a esmurrar uma porta. Contendo o riso, Raoul viu a madre superiora deixar sua sala e, esbaforida, passar por ele a caminho da cela de Jehanne. Tão logo destrancou e abriu a porta do pequeno aposento, a religiosa a repreendeu:

— Comporte-se, lady Jehanne. Sua prima desmiolada retornou e, apesar de ilesa, parece um tanto descontrolada. — Após fechar a porta de um só golpe, a irmã Eadalyth marchou de volta ao seu gabinete, gritando às demais: — Levem a moça à capela. Isto aqui está uma desordem. Até parece que...

Mas enquanto a voz dela sumia e o grupo de religiosas retornava ao interior do claustro trazendo a manca e desgrenhada Aline, Raoul deu-se conta de que não ouvira a madre superiora girar a chave na fechadura da cela de Jehanne. Ele correu para lá.

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Encontrou-a andando de um lado a outro. Ela estacou no lugar ao vê-lo ali, a expressão de quem não acreditava nos próprios olhos, mas logo em seguida seu rosto se suavizou.

— Então é tudo fingimento? Ah, Maria seja louvada!

Jehanne já se encaminhava para a porta, porém Raoul lhe agarrou os ombros no intuito de detê-la. Ela berrou, um grito de agonia e dor.

Ele largou-a no mesmo instante. Não precisava que lhe dissessem o que se passava.

— Você tem sido surrada? Deus do Céu! Por ordem de quem?

Jehanne vacilou, mas então o admitiu.

— Do bispo Flambard. Dez vergastadas a cada três horas.

— Por que não nos disse nada? Galeran ou eu poderíamos ter dado um basta a isso.

— Eu não iria querer. Você sabe tão bem quanto eu que mereço este castigo. E que o mundo jamais iria se contentar enquanto eu não fosse punida.

"E desse modo Galeran não será obrigado a fazê-lo", pensou Raoul, admirando a coragem dela e imaginando que seu amigo ficaria furioso quando soubesse do ocorrido.

— Há uma outra vantagem — prosseguiu Jehanne, com um sorriso. — Não creio que o rei ficará feliz ao saber que o bispo antecipou-se e lhe tirou a oportunidade de decidir sobre a questão.

Mais uma vez Raoul viu-se obrigado a apreciar a coragem daquela mulher. Ela fizera de seu castigo uma arma a ser utilizada contra o poderoso Ranulph Flambard. Era uma guerreira, e não um mártir.

A surpresa estampada no rosto dele a fez declarar:

— Não me importa o quanto eu tenha de apanhar. O que importa é que o rei dê Donata para nós, não para Raymond. E que Galeran e Raymond não se batam num duelo de espadas. Farei o que for preciso para alcançar esses objetivos. Apesar de tudo, Raymond não merece morrer.

— O quê! Está me dizendo que sua preocupação é para com Lowick?

— Sim. — Ela o enfrentou com olhos exasperados. — Amo Galeran mais do que a própria vida, Raoul. Mas não posso usar a morte de um inocente como forma de limpar meu caminho.

— Inocente?

— Você nunca fez sexo com uma mulher casada? Acha que merece morrer por isso?

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Aquilo, Raoul não tinha argumentos. Dificilmente alguém teria.

— Quando Galeran souber que tirei você daqui... — Ele passou a mão pela barba de um dia. Se Jehanne vinha apanhando desde que fora para o convento, suas costas deviam estar em carne viva. — Só não sei como conseguirá pular o muro nesse estado.

— Acredite: já fiz coisas mais difíceis. Aline está bem, não está?

— Sim. Ela estava só distraindo a atenção das freiras. Jehanne esboçou um sorriso. Então anunciou:

— Não irei com você, Raoul. Creio que me submeter à ordem do bispo pesará mais do que irromper à audiência. Acha que pode levar minhas palavras ao rei e fazer com que meus argumentos soem persuasivos?

Com um passo à frente, ele tomou-lhe a mão entre as suas.

— Tudo isto terminará em breve, Jehanne. Juro-lhe fazer com que este seu sofrimento não seja inútil, que sua causa seja vitoriosa. Você terá sua filha e Galeran, ilesos. E Raymond de Lowick não morrerá. Agora preciso ir-me.

— Obrigada, Raoul. Rezarei por você.

— E eu rezarei por você. Que Deus lhe dê forças. Raoul beijou-lhe a mão, depois espiou pela fresta da porta.

O claustro pareceu-lhe deserto, e assim ele se foi sem mais palavras. Quando chegou ao jardim das ervas, resistiu ao impulso de ir buscar Aline, uma vez que isso poderia significar mais problemas para ela e Jehanne. De uma maneira ou de outra, todo aquele tormento estava perto do fim.

De volta às ruas, pôs-se a refletir sobre se deveria ou não colocar Galeran a par do que se passava no convento. Por fim, decidiu-se por contar tudo ao amigo e deixar que ele escolhesse as medidas que gostaria de tomar. No entanto, não teve tempo para fazê-lo: ao chegar à Corser Street, Galeran já tinha ido para Westminster, deixando uma mensagem na qual lhe pedia que o encontrasse lá.

Atormentado com a idéia de que Jehanne estivesse prestes a enfrentar mais uma sessão de seu suplício, Raoul lavou-se rapidamente e colocou roupas limpas. Seguiu para Westminster a pé, lutando contra a vontade de arrumar uma boa briga com quem lhe aparecia pela frente. Isso certamente o ajudaria a livrar-se da insuportável tensão que o acometia.

Em vez de lhe providenciar uma confusão desnecessária, o destino quis que ele encarasse o homem que, naquele momento, talvez viesse a ser a resposta a uma boa parte de seus problemas. Ao reconhecê-lo, Raoul estacou no lugar como se um raio o tivesse atingido.

— Lorde FitzRoger!

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O grande campeão do rei se deteve e, afastando-se alguns passos dos três soldados que o acompanhavam.

— Sou Raoul de Jouray, companheiro de Galeran de Heywood.

— Ah, sim. A questão que envolve o senhor de Heywood deve ser resolvida em pouco tempo. Está perdido, sir?

— Não, eu estava a caminho de Westminster. Mas tenho um assunto com o qual o senhor poderia me ajudar, se é que não se importa.

— Não tenho nenhum compromisso urgente.

Raoul dissera aquilo num impulso, e agora se via em palpos de aranha para selecionar as palavras que melhor retratassem a situação. Escolheu ser objetivo.

— Lady Jehanne de Heywood, a esposa de lorde Galeran, está confinada no convento de Santa Hilda.

— Ouvi dizer.

— Ela tem recebido castigos lá. E, até onde sei, isso não são ordens do rei.

FitzRoger, que até então ouvira com polida atenção, mostrou-se realmente interessado.

— E quem ordenou a punição? O marido dela?

— Não, o bispo de Durham. Lady Jehanne tem recebido dez vergalhadas a cada hora de oração.

— Não seria incorreto dizer que a dama merece sofrer por seus pecados, sir.

— Não acredita que caiba ao marido dela ou ao rei decidir tal questão? Parece-me que o bispo excedeu seus poderes.

FitzRoger observou-o por alguns instantes, obviamente analisando todas as implicações do caso. De sua parte, Raoul rezava para que o homem não lhe perguntasse como ele sabia de tudo aquilo.

— Vou providenciar para que tal medida seja suspensa, sir Raoul. Grato por me alertar.

Com isso, um disparou para Westminster enquanto o outro seguia a passos largos para o convento.

Ao entrar no palácio, Raoul ainda pensava em como cumprir a promessa que fizera a Jehanne. E fazer com que o sofrimento dela tivesse valido a pena.

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Capítulo IX

Temendo que Jehanne não fosse sustentar o peso do próprio corpo, a irmã Eadalyth dessa vez trazia duas freiras em sua companhia. Cada uma delas segurou num braço de Jehanne, e ambas fizeram-na se ajoelhar.

— Que o Senhor perdoe esta vil pecadora — disse a madre superiora.

— Amém. — Jehanne tentara manter a voz firme, mas, ao primeiro golpe, gritava de dor e lutava para escapar à agonia.

Antes da terceira vergastada, ela ouviu vozes. E só conseguiu pensar que a interrupção vinha aliviar um pouco da dor que parecia lhe chegar à alma.

Voz de homem. Galeran? Não, não era ele.

A voz da madre superiora, que protestava. Argumentava.

As mãos das duas freiras soltaram seus braços.

O que estaria acontecendo?

Alguém mencionou o rei.

Quando encontrou forças, Jehanne pôs-se em pé e se virou, agarrando o genuflexório em busca de equilíbrio. A madre superiora estava à porta da cela, os lábios crispados, uma expressão ainda mais dura.

— O rei mandou suspender sua punição até o final da audiência, lady Jehanne. Pergunto-me como ele ficou sabendo.

A irmã Eadalyth se foi, mas as duas outras freiras permaneceram ali. Instantes depois, entrou no aposento um homem alto, de cabelos escuros, não muito mais velho do que ela.

— Sou FitzRoger, criado do rei Henrique.

Jehanne não conseguiu dizer nada.

— Por que não se senta, lady Jehanne? — ele sugeriu, após examiná-la da cabeça aos pés.

Mesmo que quisesse continuar ali, enfrentando o olhar de FitzRoger com o que lhe restava de dignidade, ela não foi capaz. Deixou-se cair sobre o banco rústico.

— Isso não foi idéia do rei, minha dama.

— Eu sei. — Jehanne quase sorriu ao perceber que reencontrara a voz. — Disseram-me que foram ordens do bispo de Durham.

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— Que não tem jurisdição sobre estes assuntos. Relatarei seu caso ao rei, lady Jehanne. E para que minhas observações sejam precisas, eu gostaria de ver os seus ferimentos.

— Não me oponho. Irmãs?

As freiras assentiram com um gesto.

Alarmada, Jehanne deu-se conta de que não conseguia se levantar e pediu às religiosas que lhe erguessem a túnica. O esforço para mover os braços causou-lhe uma dor tão intensa que ela sentiu o estômago se retorcer. Mesmo assim, a túnica foi levantada e FitzRoger se aproximou.

Após alguns momentos, o representante do rei, com um ar bastante sério e consternado, foi colocar-se outra vez diante dela.

— Creio que você deveria ir a Westminster, minha dama.

— Contrariando a ordem do rei para ficar aqui?

— Tenho autoridade para suspender um comando do monarca, ainda que temporariamente. Estou certo de que ele gostaria de ver suas costas por si mesmo.

Enquanto ela arrumava as vestes e se punha em pé, FitzRoger perguntou às freiras se o convento possuía meios de transportes. Inteirado de que contavam com uma carroça e alguns ginetes, perguntou a Jehanne se ela conseguiria montar e sugeriu-lhe que se utilizasse de um dos cavalinhos para ir ao palácio.

— Confio que Deus sempre me dá forças para fazer o que deve ser feito, sir.

— É como penso, minha dama. — Ele fez um gesto em direção à porta.

A alegria que Jehanne experimentou por sentir o sol na pele e o aroma das flores a lhe invadir as narinas quase a levou às lágrimas. Engolindo o pranto de alívio, ela virou-se para FitzRoger.

— Precisamos levar minha filha, a pajem dela e minha prima Aline também.

Ele realmente devia ser um homem influente, pois em questão de minutos a pequena comitiva deixava o convento: Jehanne ao lombo do ginete, os demais a pé.

Como ela havia suposto, Deus lhe dava forças para seguir em frente. A dor continuava a torturá-la, mas, no momento, não havia muito que fazer quanto a isso. Na verdade, enquanto abriam caminho em meio à população citadina, Jehanne ima-ginava que talvez já tivesse sofrido o suficiente. O sufocante peso da culpa que carregara por um ano ou mais começava a ficar mais leve sobre seus ombros. Pensando nisso, baixou a cabeça e pôs-se a rezar em agradecimento.

As preces e os pensamentos bons ajudaram-na no decorrer do percurso. Mesmo assim, ao chegar a Westminster ela teve de ser ajudada a entrar na edificação e a mover-se pelas entranhas do palácio. Por sorte, não demorou muito a ver-se num pequeno aposento que continha um diva estofado. Enquanto se acomodava no

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canapé, percebeu que FitzRoger a deixava sozinha ali. Teria ido falar com o rei? Ou contar tudo a Galeran?

Os momentos que ela passara longe do marido doíam-lhe mais do que os ferimentos nas costas. Quando o instigara a juntar-se à Cruzada, jamais poderia imaginar a falta que iria sentir dele. Com o descuido que lhe era peculiar, não havia levado em conta que Galeran era o sal e o sol da sua vida, pedaço de todos os seus pensamentos, parte das suas ações. Não percebera o quanto dependia de seu marido, de ele estar ao seu lado para conversar, discutir, brigar, aconselhar, opor-se, confortar.

Mesmo dedicando seu amor a Gallot e desfrutando da companhia de Aline, sentira-se quase uma morta-viva durante a ausência de Galeran. Seduzir Raymond talvez não tivesse sido só um ato de desespero e revolta, mas também o produto de uma solidão que havia se tornado enlouquecedora com a perda de seu filho. Uma solidão que de certo modo ainda permanecia, pois seu pecado se interpusera entre ela e o marido.

Doce Maria, seria possível que...

Alguém entrava.

Era Aline, acompanhada por um monge.

— Sou o irmão Christopher, minha dama. Trouxe um ungüento para seus ferimentos. Se me permitir...

Ela fez que sim, e Aline aproximou-se para ajudar a lhe descobrir as costas. No entanto, em vez de lhe erguer a túnica, sua prima rasgou-a do decote até quase a cintura.

Jehanne ouviu Aline ofegar.

— A pele está lacerada? — perguntou-lhe. Foi o monge quem respondeu:

— Não, suas roupas evitaram que isso acontecesse. A carne está bastante escoriada, vermelha, inchada... É muito doloroso, eu sei, mas o risco de infecção é pequeno.

Irmão Christopher começou a espalhar alguma coisa fria nas costas dela. A princípio Jehanne sentiu muita dor, mas logo a finalidade calmante do preparado começou a fazer efeito. Suspirando, ela relaxou. E antes que percebesse, adormeceu.

Galeran seguira logo cedo para Westminster, apesar de Raoul ainda não ter regressado com notícias de Aline. Apesar de que o mensageiro que ele enviara a Waltham com informações para seu pai também não ter retornado.

Fora induzido. Induzido pela preocupação por Jehanne e Donata. Induzido pelo afã de ver-se outra vez em casa, com todos aqueles assuntos resolvidos. Induzido pela

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idéia tola de que, quanto mais cedo chegasse, mais cedo sairia de lá com uma solução para seu caso.

Pensara também em conversar com o campeão do rei, FitzRoger. Galeran sabia que os grandes homens eram temperamentais e com freqüência deixavam que seus pontos fracos interferissem com a justiça. Henrique tivera muitos relacionamentos e desse modo viera a ser pai de vários filhos bastardos. Isso afetaria seu ponto de vista em relação a questão que envolvia Jehanne? Talvez FitzRoger pudesse dizer algo útil a esse respeito, mas ele não se achava em Westminster.

Assim sendo, a Galeran não restou outra alternativa a não ser pôr-se a andar de um lado para outro numa pequena sala, à espera da hora da audiência. À espera de tentar livrar Jehanne de quaisquer punições que quisessem lhe impor. À espera de tentar evitar que uma criança fosse tirada de sua mãe para ser entregue a um homem sem uma esposa que o ajudasse a criá-la.

Muito tempo se passou até que Galeran ouvisse os sinos anunciarem a terça. No mesmo instante, ele fez o sinal-da-cruz, então pediu por si mesmo e Jehanne, por Raoul que não aparecia e também por Aline. Naquilo tudo, ela era tão inocente quanto Donata e não merecia sofrer.

Pouco depois chegava Raoul, estranhamente perturbado e com os cabelos em desalinho. Contudo, não houve tempo para conversarem, pois Galeran já seguia por um corredor, logo atrás do pajem enviado para levá-lo à câmara do rei.

Henrique os aguardava no mesmo aposento do dia anterior; dessa vez, porém, ocupava altivamente seu trono, coroa sobre a cabeça. Estava na companhia de algumas pessoas, mas entre elas Galeran não reconheceu nenhum emissário ou visitante. Um monge se achava a uma mesa alta, pronto para registrar as medidas legais.

Após cumprimentar o rei, Galeran tentou identificar os homens ali reunidos sem despertar muita atenção. Dois nobres e um bispo. Uma dupla de pajens. Dois soldados.

Ele então se curvou novamente perante o rei.

— Agradeço uma vez mais, meu suserano, pela sua atenção a esta pequena causa.

— Nenhuma causa é pequena demais pára a minha atenção, lorde Galeran. — Henrique sorria como um lobo. — Teve notícias de seu pai?

— Não, senhor. Por certo eu teria sido avisado se o estado de saúde dele piorasse, mesmo assim estou preocupado. Tão logo o problema que envolve a criança esteja solucionado, pretendo ir à Abadia de Waltham.

Antes que o rei pudesse tecer algum comentário, a porta se abriu para dar passagem a Flambard, na plena glória de suas vestes de bispo adornadas com ouro, a bengala pertinente ao cargo na mão. Atrás dele vinham Lowick, o irmão

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Forthred e um funcionário. Olhando para Galeran, o irmão Forthred sorriu em antecipada vingança.

Galeran ignorou-lhe o gesto para estudar Lowick. Era a primeira vez que o via desde que partira para a Terra Santa, desde que o infeliz se deitara com Jehanne. Lowick continuava o homem belo de sempre, mas Galeran sabia que o antigo escudeiro de Fulk não valia o surto de cólera que se removia em suas entranhas, uma cólera que ameaçava lhe torcer os lábios num esgar furioso.

Escolheu tirar os olhos do rival. Aquele era um lugar destinado à lei e à razão, não à vingança. Em virtude disso, iria ignorar a parte de si que queria sacar da espada e varrer a elegante câmara com o sangue de Raymond de Lowick. Além do mais, ele precisava da lei e da razão para arrancar do coração a dor que a lógica e o perdão pareciam incapazes de alcançar.

Flambard e Lowick prestaram seus cumprimentos ao rei, que indicou dois bancos para que as partes se sentassem, dizendo:

— Acomodem-se, para que tentemos resolver o impasse de modo satisfatório a todos.

Galeran e Raoul sentaram-se num dos bancos, Flambard e Lowick no outro, os monges permaneceram em pé atrás deles.

— Primeiro — disse Henrique —, faço conhecê-los nossos conselheiros: Sua Senhoria, o bispo de Londres; Henry Beaumont, conde de Warwick; Ralph Bassett, meu conselheiro jurídico.

O bispo era um homem já idoso, mas robusto e firme. Ainda jovem, Warwick trazia a autoridade e a força estampadas em cada linha do rosto e do corpo. Bassett tinha uma expressão cordial, era muito amigo do rei e grande estudioso das leis. Os três acenaram à menção de seus nomes.

— Alguém se opõe a que estes homens assistam à audiência e me aconselhem no que for necessário? — Como ninguém objetasse, Henrique prosseguiu: — De acordo com o que nos foi apresentado, enquanto você, lorde Galeran, estava ausente da Inglaterra na missão sagrada de libertar a Terra Santa, sua esposa deu à luz um filho de Raymond de Lowick. Alguém aqui contesta esse fato?

O silêncio lhe respondeu.

— Notícias, felizmente falsas, chegaram à Inglaterra dando conta de sua morte, lorde Galeran, o que talvez possa ter levado lady Jehanne e sir Raymond a julgarem-se livres para uma ligação mais íntima. Contudo, o seu retorno deixou claro a todos o pecado em que ambos haviam incorrido. Raymond de Lowick confessou-se ao bispo de Durham, e nós presumimos que sua esposa tenha se confessado a seu padre e a você, que é o senhor terreno dela.

— Sim, senhor — respondeu Galeran, julgando que aquilo fosse uma pergunta.

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— Sir Raymond recebeu uma penitência do bispo, penitência essa que está sendo contestada aqui — continuou o rei. — Que penitência recebeu lady Jehanne?

— Senhor, tão logo tive conhecimento do sábio julgamento do bispo, anunciei que minha esposa deveria submeter-se à mesma penitência: orações, uma oferenda aos trabalhos de Deus e a educação da filha.

— O que nos traz ao nosso dilema. Como o rei Salomão bem o disse, uma criança não pode ser dividida entre as partes conflitantes. Lorde Galeran, você não pensou em impor uma pena adicional à sua esposa?

— Não, senhor. — Antes que o olhar dos presentes o reduzisse a pó, ele concluiu: — A angústia e o genuíno arrependimento de minha esposa já foram castigos suficientes.

— Você é cordato demais, lorde Galeran. Cordato demais. — Flambard deu um sorriso falso. — Para as mulheres, é muito fácil chorar e gemer. E elas não hesitam em lançar mão de tal habilidade no intuito de escapar à punição.

— Acredita que eu deveria tê-la surrado, meu lorde bispo? Mas se levarmos em conta que minha esposa recebeu a mesma penitência dada a sir Raymond, então não podemos supor que ele também devesse ser surrado? Aliás, eu mesmo devo a ele uma boa sova.

Lowick pôs-se em pé num salto.

— Sente-se! — rosnou Flambard.

— Deixaremos o assunto pertinente à penitência para uma outra oportunidade — interveio o rei. — A questão que nos foi apresentada diz respeito à criança, e ao direito do bispo de dispor sua guarda. Surpreende-me, lorde Galeran, vê-lo tão determinado a acolher um filho que não é seu.

Havia uma série de motivos a apontar, mas Galeran decidiu ater-se às razões de ordem prática.

— O bebê mama no peito, senhor, e como bem sabemos, privar uma criança do leite da mãe pode ser prejudicial a ambas. Não vejo motivos para penalizar um inocente. Como desejo minha esposa a meu lado, é natural que a filha dela permaneça conosco. E Donata, por ser menina, não irá ameaçar o interesse dos nossos futuros filhos.

— Então está disposto a criar a menina com a dedicação e a afeição que daria a um filho seu, cuidando do futuro bem-estar dela?

— Sim, senhor.

O rei virou-se ao outro banco.

— Sir Raymond, duvido de que esteja em condições de proporcionar o mesmo à sua filha.

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— Ainda assim, ela é minha filha — disse Raymond com firmeza.

— Mas você não tem como amamentar uma criança. E se lhe entregarmos a menina quando ela deixar de mamar, como irá cuidar dela? Você não tem esposa. Não tem um lar.

— Encontrei uma esposa, senhor. Farei um lar.

— Isso não é fácil, como eu mesmo pude constatar. Tenho filhas nascidas fora do vínculo matrimonial, mas me dou por satisfeito com que suas mães as criem. Diga-me, sir Raymond, por que deseja sobrecarregar-se com uma criança?

— Porque... Porque ela é minha. Tenho o direito de fazê-lo.

Recostando-se ao espaldar do trono, Henrique dirigiu-se aos seus conselheiros.

— Meus lordes? Desejam questionar as partes ou me endereçar alguma recomendação?

— Senhor, creio que devemos considerar os direitos da Igreja — observou o bispo de Londres.

— Ah, sim.

Se o rei não parecia muito contente com a lembrança, Galeran sentiu um arrepio gelado pela espinha.

— Senhor, como o bispo de Durham exerceu seu direito de impor uma pena ao pai da criança, como lorde Galeran também exerceu seu direito de impor uma pena à esposa, e mesmo assim o conflito persiste, sugiro que haja uma compensação — disse o bispo. — Se lorde Galeran fizer uma doação adicional a alguma instituição religiosa, isso iria contrabalançar a porção do bebê que ele subtrai a sir Raymond. Sir Raymond, por seu lado, deveria sujeitar-se a uma outra penitência. Já que dizem tratar-se de excelente guerreiro, sugiro que siga o exemplo de lorde Galeran e vá lutar contra os infiéis.

Ao ver o rei voltar a olhar para ele, Lowick apressou-se em declarar:

— Eu me sentiria muito honrado em lutar em nome de Cristo, senhor, mas sinto que tenho por primeiro dever proteger minha filha e a mãe dela...

Flambard usou do castão da bengala para fazê-lo sentar-se. Depois, dirigiu-se ao rei:

— Perdão, senhor, mas há um aspecto da questão que ainda não foi exposto.

— Sim, meu lorde bispo? — retrucou Henrique, que julgara que o assunto estivesse prestes a se encerrar.

Se suas vestimentas e a mitra lhe conferiam uma aparência quase bíblica, o sorriso de Flambard fazia pensar na figura do demônio.

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— O senhor, meu suserano, assim como meu irmão bispo, partiram do pressuposto de que o intercurso carnal entre Raymond de Lowick e Jehanne de Heywood é ilegal. Essa era também a minha crença no momento em que impus minha penitência. No entanto, em discussões posteriores com sir Raymond, vim a descobrir que ele se julgava no direito de fazer o que fez. E não só porque imaginava que lorde Galeran estivesse morto, mas principalmente porque acreditava ser ele próprio o legítimo marido de lady Jehanne.

— Como isso seria possível? — indagou Galeran, visivelmente alterado.

— Devido a um noivado anterior ao seu casamento com ela, meu lorde. — Flambard dirigiu-lhe um sorriso afetado.

— É mentira! — Galeran avançou contra o bispo, e o teria alcançado se não fosse contido por Raoul e um dos guardas.

— Sente-se, lorde Galeran. — O rei esperou vê-lo acomodado, depois perguntou ao bispo: — Tem provas disso?

Flambard estalou os dedos, e o irmão Forthred aproximou-se para entregar um documento a Lowick. Lowick então se ajoelhou para apresentar o papel ao rei.

Galeran olhava para o pergaminho como se aquilo fosse uma víbora no deserto. Um noivado prévio poderia invalidar seu casamento. E casos de noivados celebrados na infância e posteriormente esquecidos ou ignorados apareciam aqui e ali... A emoção que o dominava, porém, era de pura raiva. Aqueles dois, o bispo e seu lacaio, estavam tentando destruir tudo o que ele e Jehanne haviam construído juntos? Pois ele os mataria a ambos antes que conseguissem.

Após desenrolar o pergaminho, Henrique o leu rapidamente, depois o entregou a Bassett. O conde de Warwick, que parecera meramente enfadado até então, pediu licença ao rei para interpelar Lowick e, permissão concedida, fez sua questão:

— Sir Raymond, se era noivo de lady Jehanne, por que não se opôs ao casamento dela com lorde Galeran?

— Não vi sentido em fazê-lo, meu lorde. — Lowick foi firme. — O pai de Jehanne tinha mudado de idéia. E eu sabia que, se quisesse, ele encontraria uma maneira de negar o noivado.

Galeran, que era muito jovem à época do noivado e do casamento com Jehanne, sabia que poderia ter sido enganado. Mas e os demais, como haveriam de desconhecer um noivado anterior ao seu? Seu pai, por exemplo, não poderia ignorar tal circunstância.

— Quando o noivado foi redigido, Jehanne era nova demais para se casar e ainda tinha os dois irmãos vivos — dizia Lowick. — Quando seus irmãos morreram, o que fez dela uma herdeira, seu pai resolveu casá-la com outro.

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— Por quê? — quis saber o conde. — Ele não julgava você apto para administrar suas propriedades?

Após alguns instantes de hesitação, Lowick, muito vermelho, respondeu:

— Ele queria se aliar a uma família poderosa. Eu não tenho família.

A história pareceu plausível a Galeran. Mesmo assim, ele se indagava como um compromisso de noivado pudesse ser mantido em segredo. E por quê?

Ralph Bassett e o bispo de Londres examinaram o documento de noivado, depois Bassett se manifestou:

— O documento parece ser válido, senhor — ele disse ao rei. — Mas como sempre nesses assuntos, são as testemunhas que contam. Elas devem se apresentar para atestar a verdade.

— Um instante, senhores — interveio Flambard. — Já encaminhei buscas nesse sentido, e posso dizer que nenhuma das testemunhas ainda vive.

Todos ergueram as sobrancelhas àquela afirmação, e Galeran suspirou, aliviado. Estava claro: o documento era forjado e tinha a assinatura de testemunhas falsas, ali arroladas pelo único motivo de estarem mortas.

— Quem são essas testemunhas? — ele indagou. Ralph Bassett leu os nomes. Os primeiros eram o velho Fulk e seus filhos, todos obviamente falecidos. Depois vinha o mordomo-mor Gregory, morto havia não muito tempo.

— Conheci esse homem — Galeran assinalou. — Ele morreu recentemente, e foi testemunha de meu casamento. Gregory não teria posto seu nome num documento ilegal.

Bassett prosseguiu com a leitura dos nomes. Ao verificar que eram oito no total, Galeran voltou a intervir:

— Senhores, o documento que atesta meu compromisso de noivado tem mais de trinta pessoas como testemunhas. Sendo um homem de grande influência no Norte, lorde Fulk poderia ter arrolado mais testemunhas neste documento aqui apresen-tado. Por que, por exemplo, nem meu pai nem Hubert de Burstock foram chamados a presenciar a cerimônia?

— Bem observado — aprovou o rei.

Galeran, porém, já tinha abandonado a esperança de ver um desfecho favorável àquele caso. Decidindo-se pelo passo que tanto odiava quanto ansiava ardentemente, ele se pôs em pé para anunciar:

— Estou disposto a colocar esta questão à prova da espada, senhores. Desafio Raymond de Lowick a provar o direito à sua reivindicação com o próprio corpo.

Lowick também se levantou.

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— Eu aceito.

O rei não parecia muito satisfeito com o rumo que a discussão tomava. Mas, mesmo sabendo que a opção pelo embate era um direito que assistia ambos os homens, fez questão de salientar:

— Trata-se de um confronto de morte, senhores, com Deus por juiz.

Antes que alguém se manifestasse, um pajem entrou na sala e foi murmurar ao ouvido do conde, que depois se inclinou para passar o recado ao rei. A expressão de Henrique se suavizou.

— Senhores, talvez possamos esclarecer este problema de outras maneiras. William de Brome acaba de chegar.

Ao virar-se para receber o pai, Galeran viu o rosto de Flambard contraído e a testa de Lowick vincada. Era evidente que nenhum nem outro contavam com aquilo.

Portando suas melhores vestimentas e jóias, lorde William adentrou o recinto seguido por três criados igualmente bem trajados e foi colocar-se diante do rei, apoiado num joelho e com as mãos estendidas para o monarca. O gesto, uma versão simplificada do juramento de lealdade, deixou Henrique bastante satisfeito; após cobrir as mãos do velho nobre com as suas como mandava o protocolo, ele lhe disse:

— Lorde William, é com extrema satisfação que o vemos em excelente estado de saúde.

— Ah, sim, sim. — O pai de Galeran pôs-se em pé. — Mais um dia ou dois de repouso não me fariam mal, senhor, mas ouvi rumores de que Raymond de Lowick estava em Waltham perguntando sobre mim, então resolvi vir ver o que ele queria comigo.

— É mesmo? Sente-se, por favor. — Henrique lhe indicou a única cadeira vaga, esperou que ele se acomodasse e então continuou: — Chegou em boa hora, meu lorde, pois talvez seja capaz de nos ajudar com a questão que nos preocupa no mo-mento. Sir Raymond de Lowick alega que era legalmente noivo de lady Jehanne antes que ela noivasse e casasse com seu filho, Galeran. Ele nos trouxe um documento que parece confiável, mas, infelizmente, todas as testemunhas arroladas estão mortas. Lorde William arregalou os olhos como se tivessem lhe dito que a lua era feita de queijo.

— Isso é bobagem, senhor. Alguém poderia fazer a gentileza de ler o nome de tais testemunhas para mim? — Ao final da pequena lista, lorde William bufou. — Alguém deve ter varrido a Nortúmbria à cata de homens de envergadura mortos nos últimos dez anos, senhor. De qualquer maneira, lá no Norte todos os homens importantes se conhecem uns aos outros, e eu posso lhe garantir que as pessoas citadas jamais se reuniram no mesmo lugar uma única vez. Especialmente em Heywood, que é

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vizinha à minha propriedade. Além do mais, faltam a esse documento alguns nomes de peso que o fariam verossímil. A começar pelo meu.

— Talvez lorde Fulk quisesse manter o noivado em sigilo — sugeriu Flambard, menos por lógica do que por desespero.

— Esse documento, que eu reputo como de boa-fé, gera dúvidas quanto ao direito de lorde Galeran sobre criança, esposa e castelo, por isso não nos surpreende que você queira desacreditá-lo, lorde William. Desse modo, a única prova verdadeira será o confronto com espadas.

— Meu lorde bispo, não consigo entender por que se mostra tão ardentemente interessado neste caso — foi a resposta de lorde William.

— Apenas desejo que o direito prevaleça, sir, pois é esse o meu dever.

Como se ignorasse a alegação do bispo, Henrique declarou:

— A mim também me parece que há uma forte suspeita sobre a autenticidade desse documento de noivado. Forte suficiente para que eu o desconsidere, a menos que houvesse outras provas para ratificá-lo. Mas como todas as testemunhas arroladas estão mortas, tais provas se configuram como inexistentes.

Vendo Lowick ficar branco como cera, Galeran sentiu que o desejo de matar aquele homem se esvaía dentro de si. O pobre diabo no fundo era digno de pena. Fora usado por Jehanne. E enganado por Flambard.

FitzRoger, que entrara no recinto minutos atrás e se mantivera ao lado de Henrique enquanto o monarca falava, curvou-se para lhe dizer algo ao ouvido. Ambos trocaram algumas palavras. Observando-os com olhos atentos, Galeran imaginou se estariam cuidando dos detalhes para a batalha de espadas.

Pouco depois, o rei anunciava:

— Lorde FitzRoger tem algo a nos relatar.

O campeão deu um passo adiante.

— No cumprimento de ordens reais, lady Jehanne, sua prima, sua filha e a pajem do bebê foram levadas para o convento de Santa Hilda, nesta cidade, onde deveriam permanecer até o final desta audiência, a salvo de quaisquer imprevistos que viessem a causar transtornos ao bom andamento do processo.

Perguntando-se o que estaria por trás daquelas afirmações, Galeran à sua volta. Lowick parecia confuso. Flambard suava.

— A madre superiora em Santa Hilda é muito severa — prosseguia FitzRoger — e acredita piamente no castigo como forma de afastar a tentação. E quando soube do pecado cometido por lady Jehanne, não precisou de muito encorajamento para puni-la.

— Deus do Céu... — murmurou Galeran, seguro pelo pai e por Raoul.

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— A dama recebeu dez vergastadas a cada uma das horas canônicas desde que chegou ao convento. Intervi pela suspensão da medida antes da terça do dia de hoje.

Livrando-se do pai e do amigo, Galeran levantou-se para indagar:

— Quem ordenou essa arbitrariedade?

— O bispo Flambard.

Antes que conseguissem detê-lo, ele agarrou Flambard pela gola das vestes.

— Então creio que é o bispo quem deve me enfrentar num duelo!

Sem perda de tempo, Henrique deixou seu trono para colocar as mãos sobre as mãos de Galeran, declarando num tom baixo, ainda assim ameaçador:

— Quem usa a força sou eu, quem faz o juízo sou eu. — A ameaça, porém, não era dirigida a ele, e sim a Flambard. — Com que direito, meu lorde bispo, você se sobrepôs a uma ordem que eu havia dado?

Assim que Galeran o soltou, Flambard afastou-se até encostar as pernas no banco. Suando em bicas, tentou se explicar:

— Não me sobrepus à sua vontade, senhor. Como príncipe da Igreja, tenho direito a impor uma pena ao pecado.

— E que pena você ordena a quem produz um documento de noivado falso?

Flambard desabou sobre o banco.

— Se o documento é falso, senhor, não tive parte na falsificação!

— Não? Creio que algumas inquirições pelo Norte irão nos dizer a verdade. — Henrique virou-se abruptamente para Lowick. — E então, sir Raymond, houve de fato um noivado anterior?

— Não, senhor! — Igualmente sem cor, Raymond caiu de joelhos ante a ira do monarca. — Houve conversas sobre um possível noivado, mas os irmãos de Jehanne vieram a falecer antes que o compromisso fosse formalizado.

— Mas você amava a dama e imaginou-a sua por uma questão de direito? — Mais calmo, Henrique oferecia uma saída a Lowick.

— Sim, senhor. E quando lady Jehanne deu-me uma filha, busquei apenas protegê-las junto a mim. Humildemente, peço o seu perdão.

— E foi o bispo Flambard quem sugeriu o plano de fingir que o noivado tivesse de fato ocorrido? — Dando a impressão de que começava a se divertir com a história, o rei ajudou Lowick a pôr-se em pé.

— Sim, senhor.

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— Muito bem, sir Raymond, agora queira, por favor, nos dizer que explicação o bispo lhe deu para ajudá-lo a conquistar o domínio sobre Heywood. — Ao ver Lowick hesitar, o soberano encorajou-o. — E então?

— Senhor, o bispo se ressente do poder de William de Brome e sua família. Ele imaginava que, se tivesse um forte apoiador em Heywood, granjearia mais força e influência no Norte.

Tendo recuperado parte do autocontrole, Flambard tratou de lutar pela própria vida.

— Eu queria apenas colocar um pouco de ordem no Norte, senhor. Foi por esse motivo que o seu irmão me destacou para lá.

— E como a morte de lorde Galeran traria ordem ao Norte? — Sem se deixar intimidar pela menção à morte de Rufus, Henrique trouxe à baila o atentado nas cercanias de Heywood.

— Lorde FitzRoger colocou um criado seu sob custódia esta manhã, meu lorde bispo, um homem que já nos tinha dado boas informações. A besta é uma arma demoníaca, como bem sabe. Até o papa concorda que deveria ser utilizada somente contra os bárbaros.

— Você? — Lowick voltou-se para o bispo de Durham.

— Ranulph Flambard — o rei sobrepôs-se à indignação de Lowick —, você se encontra sob suspeita de tentativa de homicídio, falsificação de documento e abuso da sua autoridade clerical.

— Com o devido respeito... — O olhar de Flambard chamejava. — O senhor não tem jurisdição sobre um príncipe da Igreja.

— Não tenho? — Henrique foi sentar-se novamente em seu trono. — Então digo ao bispo de Londres que gostaria de ver esse clérigo suspeito sob custódia até que uma investigação plena dirima as suspeitas que pairam sobre ele.

— A Igreja sente-se honrada por poder ajudá-lo, senhor — respondeu o bispo de Londres.

— Assim sendo, declaro que o bispo de Durham deve ser encarcerado na Torre até que a verdade seja esclarecida. Ele parece-me voluntarioso e cheio de orgulho; talvez precise penitenciar-se para conseguir enxergar os próprios erros e buscar, a salvação. Cuide para que a penitência que lhe venha a ser dada seja aplicada rigorosamente, lorde FitzRoger.

— Com prazer, senhor — disse FitzRoger, antes de cuidar da remoção do desesperado bispo.

— Irá arrepender-se disto! — gritou Flambard, enquanto os guardas o empurravam em direção à porta. — O senhor verá que precisa de mim, assim como seu irmão precisava!

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— Vá em paz, Flambard. — Henrique sorriu. — Umas boas vergastadas esperam por você.

Quando o fechar da porta deu fim às ameaças e às súplicas do bispo de Durham, Galeran respirou fundo e dirigiu-se ao rei:

— Senhor, devo ir ao encontro de minha esposa para...

— Num momento, meu lorde. Asseguro-lhe que ela está bem, descansando sob cuidados zelosos.

Henrique então olhou para Lowick, mas, antes que lhe dissesse alguma coisa, Raoul levantou-se e ajoelhou-se à sua frente.

— Peço-lhe permissão para falar, Vossa Majestade.

— Você é parte neste pleito? — indagou o rei.

— De certo modo... É que lady Jehanne me pediu que falasse em seu nome. Ela pede pela vida de seu marido e também pela vida de sir Raymond, afirmando ser a única responsável por tudo o que se passou. De minha parte, tendo em conta que a dama já recebeu a punição por seu pecado, peço clemência para ela.

Galeran compreendeu as intenções de Jehanne, por isso se adiantou para dizer:

— Perdoei minha esposa, senhor, e não creio que sir Raymond seja mais culpado do que ela pelo adultério. Contudo, pelos demais pecados que ele cometeu, sugiro que o senhor siga a orientação do bispo de Londres e o envie para lutar por Cristo. Seu grande talento para a guerra deveria ser colocado a serviço de Deus.

— O que me diz, sir Raymond?

— Aceito esse julgamento misericordioso, senhor, desde que tenha a palavra de lorde Galeran de que ele não punirá lady Jehanne mais do que ela já foi punida nem fará mal à minha filha.

O leve apertar dos lábios de Henrique mostrou a Galeran que o rei começava a se impacientar.

— Raymond, você me julga capaz de ferir uma criança inocente, ou mesmo Jehanne, a quem amo com todo o meu coração? Se cheguei a erguer a mão para minha esposa, juro que nunca mais tornarei a fazê-lo. E Donata já é como uma filha para mim.

— Sendo assim, peço-lhe perdão por tudo o que lhe fiz, Galeran. — Lowick virou-se para o rei. — Vejo agora, senhor, que me deixei guiar pelo meu amor por lady Jehanne, pelos sentimentos naturais por minha filha e pela minha desmedida ambição por terras. Por tudo isso, irei com grande satisfação lutar por Cristo.

— Que assim seja — disse o rei, dispensando-o com um gesto quase irritado.

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Tão logo Lowick deixou o recinto, Henrique tirou a coroa da cabeça e, depositando-a sobre a mesa ao lado do trono, deu um longo suspiro.

— Está satisfeito, lorde Galeran?

— Completamente, senhor. Tenho minha esposa e a filha dela e posso retornar a minha casa.

O rei então olhou para lorde William.

— Assisti sua família hoje, meu lorde. Espero que você assista a minha.

O pai de Galeran suspeitava de que o monarca tivesse atendido aos próprios interesses, confinando Flambard com a bênção da Igreja e amarrando William de Brome à sua causa. Mesmo assim, curvou a cabeça.

— O senhor tem a minha palavra, meu suserano.

— Então você e os seus terão sempre a minha atenção. — Após tomar um gole de vinho, Henrique tornou a olhar para Galeran. — Você está em comichões para ver sua esposa, não está? Vá, meu lorde, vá em paz. E permaneça a meu lado no Norte.

Mesmo que seus pensamentos se achassem tomados por cenas que falavam do amor entre um homem e uma mulher, dessa feita Galeran aproximava-se de Heywood com menos afoiteza. Naquela noite, na cama nova, ele e Jehanne se amariam como não tinham se amado desde o seu regresso da Terra Santa. Mas com ela agora a seu lado, não havia por que se apressar.

Tinham se retardado em Londres para o casamento de Aline e Raoul, e depois para vê-los embarcarem rumo ao novo lar em Guyenne. A felicidade que Galeran vira estampada no rosto do casal o fazia desejar e torcer para que fossem assim felizes para o restante de suas vidas.

Quando Jehanne enfim se recuperara, tinham dado início à longa viagem de volta ao Norte, detendo-se em vários lugares para visitar parentes e cimentar alianças. Embora houvessem pernoitado em locais onde seria possível fazerem amor, ele e Jehanne concordaram em esperar. Seria como aguardar por um casamento, um novo recomeço.

E agora lá estava Heywood, erguendo-se à sua frente como em seus sonhos em Jerusalém. Seu lar. O lugar de tudo o que ele mais prezava no mundo.

Lorde William e seus homens haviam deixado a comitiva para rumar para Brome, e Hubert, que fora a Londres para o casamento da filha, também já seguira com seu séqüito para Brome. Galeran cavalgava em direção a Heywood com Jehanne a seu lado, e nenhum exército cercava a fortaleza. Dessa vez, ao perceberem a aproximação de seu senhor, os criados haviam aberto os portões em sinal de boas-vindas e todos traziam um sorriso caloroso no rosto.

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Ele levava Donata nos braços. Não foi preciso fazer anúncios sobre o que acontecera em Londres, pois a história espalhara-se por si mesma. Todos já sabiam que Jehanne fora punida. E também perdoada.

Tudo voltara ao que sempre fora.

Algo em seu coração negou a constatação.

Desmontando, Galeran entrou no castelo e ali Jehanne tomou-lhe Donata dos braços para ir cuidar do bebê na companhia de suas aias. Os cães vieram saudá-lo e ele lhes fez um agrado, depois tomou um pouco de cerveja para lavar a poeira da estrada.

Na boca, um gosto amargo que a cerveja não conseguiu apagar.

Galeran olhou pelo salão, então subiu aos aposentos senhoriais. Lá, deteve-se diante da grande cama nova. Fora por tudo aquilo que ele lutara, não fora? Por seu lar tranqüilo, por sua esposa adorada, pelo leito de casal. Sem pensar muito bem no que fazia, apanhou o enfeite sobre a mesa, a rosa de marfim.

A pétala partida caiu.

A pontada que Galeran sentiu no peito poderia tê-lo matado.

Seu filho.

Seu filho estava morto.

A flor, mesmo partida, ele tinha como apertar entre os dedos.

Do filho, não tinha nada. Nem a lembrança de uma imagem, de um sorriso, de algum balbucio, de um cheiro. Nada.

Para ele, Gallot não existira.

Ouviu Jehanne chamá-lo, mas disparou pela escada antes que ela fosse ao seu encontro. Do salão ganhou o pátio e de lá foi ao cemitério, cair de joelhos diante da pequena lápide. Mas ali não havia nada a não ser um nome. E um vazio que crescia a cada instante, ameaçando devorar toda a alegria que ele acabara de alcançar.

Passos sobre a relva e vestígios de perfume avisaram-no de que Jehanne estava às suas costas. Só que ele não a queria ali naquele instante. Sua esposa possuía o que ele jamais teria.

Ela tinha uma criança de quem se lembrar em suas recordações.

Após se ajoelhar ao lado dele, Jehanne lhe entregou um rolo de pergaminho. Mais por cortesia do que por interesse, Galeran tomou-o numa das mãos, pois na outra tinha a rosa de marfim e suas pétalas partidas. Depois de largar o enfeite ao pé do arbusto em que cresciam rosas verdadeiras, ele desfez o laço que prendia o pergaminho e o desenrolou, constatando tratar-se de várias páginas soltas,

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cuidadosamente alinhadas, e uma linha com um nó entre as folhas. As primeiras palavras que seus olhos viram o fizeram congelar.

No dia de Santo Estevão, no Abençoado Ano do Senhor de 1099, nasceu no Castelo de Heywood na Nortúmbria, Gallot, filho de Galeran e Jehanne, sua esposa, senhor e senhora deste domínio...

Galeran ergueu o olhar para ela.

— Pedi que o escriba fizesse isso para você. — Jehanne tinha os olhos marejados. — Eu sabia que gostaria de saber... E nem podia imaginar que...

Com o coração contrito, ele continuou a ler.

Sua altura no dia do nascimento corresponde ao nó na linha. Todas as mulheres dizem que é um tamanho muito bom e que ele será bastante alto. Gallot respirou depressa e bem, e movimentou o intestino logo no primeiro dia de vida.

Galeran tornou a olhar para ela. Jehanne explicou:

— O irmão Cyril achou impróprio registrar uma coisa dessas, mas são detalhes que...

Ele contou as páginas. Eram cinco.

— Está tudo aqui?

— Tudo de que me lembrei de registrar. O lado bom e o desagradável também. Como as três noites em que ele nos manteve a todos acordados por causa dos dentinhos que despontavam. Como a maneira com que ele se balançava ao som de um tambor. Eu... Eu não lhe entreguei isso antes porque...

— Você estava certa. Eu não estava pronto. Mas agora... Agora... Sou-lhe muito grato por isso. — Galeran tomou-a nos braços. — Obrigado. Ah, Deus, obrigado.

— De certo modo, eu também não o pranteei como deveria. — Jehanne afagou-lhe o rosto. — Tudo escapou ao meu controle tão depressa... Se você quiser, leremos tudo isso juntos. E choraremos juntos.

Galeran fez que sim e então, apoiando a cabeça no ombro dela, pediu ao filho, agora um anjinho no Céu, que intercedesse por eles. Certamente mereciam a felicidade e uma oportunidade para tentar fazer o bem neste mundo. E talvez, se Deus fosse realmente compreensivo, ter um dia um outro filho, junto de quem pudessem viver em paz e harmonia.

Mais tarde, naquela noite, depois de lágrimas e risos, com uma imagem do filho a lhe aquecer o coração, Galeran amou sua esposa de corpo e alma. Não como imaginara a caminho de casa no retorno de Jerusalém, prestes a estourar de uma necessidade física. Não como haviam feito pouco depois, na tentativa de remendar os pedaços do amor que dividiam da única forma que conseguiram encontrar. Mas encantando-se um pelo outro, aquele alumbramento que sempre fora tão bom e que

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haveria de tornar-se, após vencer provas tão brutas, um tesouro de inestimável valor.

Jouray, Guyenne, Setembro de 1103

Deixando a casa fortificada que era agora seu lar, Aline foi à procura de Raoul, que verificava a colheita das uvas. Levava no colo o pequeno Hubert que, com pouco mais de um ano, já se debatia para ser posto no chão.

— Espere só um pouquinho, meu amor. Preciso contar as novidades ao seu pai.

Ainda admirada com a riqueza e a abundância de flores e frutos naquela região, Aline se apressou por um caminho margeado por arbustos em botão. Às vezes sentia saudade de sua terra natal, mas essas ocasiões eram sempre mais raras. Afinal, o melhor lugar do mundo era ao lado de seu adorado marido.

— Papai! — chamou Hubert, apontando para Raoul.

Ele acenou do lugar onde supervisionava os trabalhadores, que acomodavam grandes cachos de uva rosada em cestas de vime. Assim que Aline se aproximou, ergueu as sobrancelhas para ela.

— Problemas?

— Exatamente o contrário! — Aline acenou com a carta. — Jehanne deu à luz um menino três semanas atrás.

Tomando o filho nos braços, Raoul pediu:

— Grande novidade! Leia para mim.

Querida prima,

Envio-lhe a melhor e mais feliz notícia que poderia lhe dar: fomos abençoados com um filho no dia de St. Giles. O parto foi fácil, e ele nasceu ao amanhecer. Nós lhe demos o nome de Henry, já que o rei tem algo a ver com nossa felicidade e suas atenções podem nos vir a ser úteis algum dia. Henry não se parece muito com Gallot, pois, até agora, tem cabelos e olhos escuros.

Donata adora o irmãozinho, a quem chama Henny. Obviamente quer segurá-lo a qualquer custo, mas como ainda é pequena não permitimos que o faça sem nossa supervisão. Ela está esperta e levada, e todos dizem que é como eu nessa idade. Vou ter de lhe ensinar a pensar antes de agir...

Tudo tem estado tranqüilo por aqui, louvado seja Deus, desde a fracassada tentativa de invasão do duque Robert. O rei Henrique tem governado com leis e mãos firmes, e nesta primavera a rainha deu à luz o primeiro filho de ambos, de modo que a Inglaterra poderá esperar por paz e prosperidade.

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Espero que em breve vocês venham para Stockton num dos navios da família de Raoul e de lá venham nos visitar aqui no frio Norte, pois estou ansiosa por revê-la e tomar seu filhinho nos braços outra vez. Da prima que muito lhe quer bem, Jehanne de Heywood

Como Hubert estivesse inquieto demais, Raoul o colocou no chão.

— Parece que Deus enfim sorriu para eles — comentou. — Houve vezes em que cheguei a duvidar de que Galeran e Jehanne pudessem voltar a viver em paz.

— Mas eles confiaram e venceram. — Aline passou o braço pela cintura do marido. — Com confiança, tudo é possível. Já lhe disse que confio em você?

— Todos os dias, de todas as formas. — Raoul beijou-lhe os lábios. — Como eu confio em você. Na verdade, confio tanto que seria capaz de deixá-la me amarrar.

— Amarrar você! Mas eu... Isso foi uma sugestão?

— Talvez. Por que não vai para casa e planeja sua estratégia enquanto eu termino meu trabalho?

Após lhe dar uma piscadinha, Aline pegou o filho no colo e disparou para casa. Aquela noite prometia grandes confrontos...

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