florbela espanca - livro de sÓror saudade · charneca em flor. agora, em dezembro de 1930, morta a...
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Orelhas
Florbela Espanca
Bíblia de iniciação amorosa,
dicionário das vicissitudes da
mulher, libro-de-horas da dor −
assim é a poesia de Florbela
Espanca. Dela emana um feitio
insurrecto que tem
escandalizado e encantado,
desde 1930, seus leitores,
quando apenas depois de
morta, a poetisa se torna
(afinal) conhecida. Daí por
diante suas obras em verso têm
cumprido uma história de
acirradas polêmicas e de
veemente best-seller, todas aqui
publicadas, a começar pelo
manuscrito inaugural, ainda há
pouco inédito, além da seleção
dos poemas esparsos: Trocando
Olhares (1915-1917), Livro de
Mágoas (1919), Livro de Sóror
Saudade (1923), Charneca em
Flor (1931) e Reliquiae (1931).
A interlocução com o universo
masculino e o exercício
permanente do amor imprimem
a tal obra uma continuada
verrumagem acerca da condição
feminina, que vasculha os ritos
sociais, os jogos de sedução, os
interditos, os privilégios − a
maldição. Nessa rota,
assenhorando-se do estatuto
tradicional da mulher para pô-
lo em causa, Florbela acaba
retirando dele um corolário que
o torna ativo, visto que
redimensionado em bem
literário. E eis que o infortúnio,
tornado na acepção de
prerrogativa feminina, se
converte, por seu turno, numa
estética em que a dor é a
matéria prima, capaz de criar,
apurar e transfigurar o mundo −
única e verdadeira senda de
conhecimento reservada à
mulher.
Como o leitor há de constatar,
Florbela consegue, através dos
seus poemas, o prodígio de
transmutar a histórica
inatividade da mulher em...
genuína força produtiva! E esse
(a bem dizer) é apenas um dos
seus muitos dons.
Maria Lúcia Dal Farra
Poemas de
Florbela Espanca
Estudo Introdutório, Organização e Notas de
Maria Lúcia Dal Farra
Martins Fontes
São Paulo - 1977
Copyright Livraria Martins Fontes Editora Ltda.
São Paulo, 1996, para a presente edição
1ª edição - dezembro de 1966
2ª tiragem - outubro de 1997.
Organização da edição e estabelecimento do texto
Maria Lúcia Dal Farra
Revisão
Sonia Maria Amorim
Preparação do original
Vadim Valentinovitch Nikitin
Revisão Gráfica
Juliane Rodrigues de Abreu
Lilian Jenkino
Produção Gráfica
Geraldo Alves
Paginação
Moacir K. Matsusaki
Fotolitos
Studio 3 Desenvolvimento Editorial
Capa
Suzana Laub
Florbela,
um caso feminino e poético
******************************************
Digitalização,
Revisão e Formatação
U
Luis Antonio Vergara Rojas
******************************************
LAVRo
A Renata Dal Farra Carsava
I.
O Affaire Florbela Espanca
Pode-se dizer de Florbela Espanca o mesmo que de
Inês, já que aquela se tornou, tanto quanto esta, rainha − e
apenas depois de morta.
Até a passagem do dia 7 para 8 de dezembro de 1930
− data em que, ritualisticamente, Florbela se suicida no
momento em que completa trinta e seis anos −, ela havia
alcançado publicar, tão-somente às próprias custas, a
pequena tiragem de duzentos exemplares para cada um
dos seus dois volumes de poesia: o Livro de Mágoas, em
1919, e o Livro de "Sóror Saudade", em 1923.
Ignorada por completo pelo público leitor e pela
crítica, sua obra tinha sido vagamente saudada na altura,
pelos comentaristas de plantão, como mais uma das
(abundantes e inexpressivas) flores do galante ramalhete
das poetisas de salão, onde, logo mais, se iniciaria o
fulgurante (e hoje absolutamente esquecido) reinado de
Virginia Victorino. Deveras; o Correio da Manhã
parabenizava alegremente, através de Florbela, o
"contingente de senhoras" poetisas, que "cresce dia a dia",
aclamando-as e considerando serem sempre "benvindas
quando, como esta, saibam versejar"!
Gastão de Bettencourt, em O Azeitonense, aplaudia o
Livro de Mágoas como "missal de amargura que a nossa
Florbela Espanca Poemas X
alma compreende, sente e partilha, subindo numa
ascensão maravilhosa em que suavíssimos cânticos nos
envolvem"... Dos recortes que conservou sobre o primeiro
livro, Florbela lera que imprimia a seus versos "toda a
ternura, todo o sentimento de uma alma de mulher". Que o
volume se irradiava como um... "verdadeiro mimo", o que,
sem dúvida, na suspeita hierarquia de tais considerações,
angariava para ela uma (sic) "formosíssima estréia no
mundo das letras", como bem o assegurava o Século da
Noite.
Do Livro de "Sóror Saudade", o mesmo periódico dizia
que se tratava de uma obra "de ternura e de bondade, um
pouco dolorosa, talvez, impregnada de uma tristeza de
renúncia", altruísmo consoante ao que se aguarda das
mulheres, o que, supostamente, deveria alçá-lo à
benquerença e à cumplicidade das colegas de infortúnio.
E o Diário de Lisboa comentava que Florbela tinha
ingressado, então, numa "fase de confidências
murmuradas com lábios levemente tocados do exílio do
claustro"...
Mas, por entre esse coro afinado de pasmaceiras,
Florbela tivera a oportunidade de conhecer o solo de uma
voz, cujo reacionarismo pontuava solto com saliências de
prima-dona, e no qual a complacência preconceituosa era
substituída pelo seu reverso: a indignação. O jornal lis-
boeta católico A Época acusava o Livro de "Sóror Saudade"
de "revoltantemente pagão" e "digno de ser recitado em
honra da Vênus impudica"1 Florbela "blasfema", tem
atitudes de "requintada voluptuosidade", de típica "escrava
1 Todos os comentários que gloso sobre o Livro de Mágoas e sobre o Livro de
''Sóror Saudade" foram encontrados nos papéis pessoais de Florbela, em recortes
que ela conservou e que se acham hoje depositados no seu espólio da Biblioteca
Nacional de Lisboa. Tais guardados provam que a poetisa teve conhecimento
completo dessas amenidades controversas...
Florbela Espanca Poemas XI
de harém", porque nem sequer chegou a descobrir "o
tesouro escondido no Evangelho"! Era preciso, pois,
infringir a ela que purificasse, com "carvão ardente", os
"lábios, literariamente manchados", e que pedisse "perdão"
a Deus por ter feito "mau emprego" das aptidões com que o
Criador a galardeara... O diretor J. Fernando de Sousa,
escondido no pseudônimo de "Nemo", terminava o artigo −
e, este sim, deve ter queimado a vista da poetisa! −
esclarecendo: "Com pesar afirmo que é um livro mau o seu,
um livro desmoralizador."
Já se vê que, das críticas recebidas em vida por
Florbela, a única veemência que ressoa dentre as pérolas
da apatia benevolente, sacramentadora dos preconceitos, é
aquela descarnadamente moral e depreciativa, aliás, da
mesma natureza que estes... De resto, é a sua
contemporânea Thereza Leitão de Barros quem informava,
na altura e com conhecimento, sobre o "frio acolhimento"
que as obras da poetisa tinham obtido. Ela mesma,
interessada em levantar uma história da literatura
feminina em Portugal, se ocupara em 1927, em duas meias
páginas dos seus dois volumes de Escritoras de Portugal,
em indicar os "tão evidentes 'senões'" da poesia de Florbela
Espanca. Enquanto se comprazia em comentar, com fartos
elogios, a obra de Virginia Victorino, restringia-se em
reparos inócuos sobre o estranho nome da poetisa,
dedicando-se sobretudo ao que julgava serem seus
defeitos: o "exagerado subjetivismo elegíaco", o
"egocentrismo por vezes fatigante", embora surpreendesse
nos versos de Florbela uma "qualquer coisa", que não sabia
bem definir, mas que lhes imprimia "rara amplitude e
elevação lírica".
O parecer de Thereza Leitão de Barros vai-se
modificar, e muito, depois do suicídio de Florbela... Já
então porque será filtrado tanto pela admiração ao
póstumo Charneca em Flor quanto pelo testemunho da
Florbela Espanca Poemas XII
tácita e distante convivência que ambas mantiveram na
Portugal Feminino − revista na qual Florbela colaborara no
último ano de vida, que reunia uma facção do extinto
Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas. Aliás, será
Leitão de Barros uma das mais vibrantes articulistas da
primeira hora a tentar provar a legitimidade feminina e
poética da obra de Florbela, num esforço sutil e antecipado
em defesa das insinuantes acusações biográficas que, a
seguir, iriam grassar. Para tal, concorre imenso um fato
primordial: o de a imolada Florbela estar se constituindo,
involuntariamente, em bandeira política para a reativação
dos grupos feministas, dissolvidos pelo Estado Novo logo
em 1926.
Por outro lado, saliento que compreensão, mesmo,
Florbela só recebera, em vida, dos poetas seus pares. Em
1919, Américo Durão fizera publicar, na página literária de
O Século, de Lisboa, o soneto "Sóror Saudade", a ela
dedicado, cujo título Florbela adotará para o livro de 1923,
que ali comparecia acompanhado da resposta da poetisa –
"O meu nome". No mesmo ano, o volume de poemas Sol
poente, de Botto de Carvalho, estampava, numa de suas
páginas, uma peça dirigida "Para a Senhora Dona Florbela
Dalma". E é bizarro como ''A Princesa incompreendida",
deste que foi seu colega na Faculdade de Direito de Lisboa,
já revela, nessa altura, algo que a hoje divulgada biografia
da poetisa não registrava:
Frio e esguio, num dos seus pulsos,
Finos, nervosos, convulsos,
Terrível, pequenino e inapagável
O primeiro sinal dum suicídio em vão...
O fato é que Florbela sabia como ninguém que, para
ter leitores e ser reconhecida no seu trabalho, tinha de se
preocupar com o "mercado, com a publicidade, coisas
Florbela Espanca Poemas XIII
imprescindíveis a quem quer vencer". Desde as tentativas
que empreende a partir de 1916 para ser publicada,
quando já tinha pronto o seu primeiro livro de versos, o
Trocando Olhares, vai-se adensando nela essa convicção,
através da sua correspondência com as diretoras de
suplementos femininos, Madame Carvalho e Júlia Alves, e,
já de maneira mais lúcida e crítica, com Raul Proença2 Mas
o "horror" que demonstra, nesta carta de 1928 a José
Emídio Amaro, a "tudo quanto de perto ou de longe se
assemelha à popularidade" levara-a, como assevera por
último, a se fechar em si "como num sacrário". E é no
mínimo patético que só às custas da profanação desse
santuário Florbela se tivesse tornado... lida!
Apenas em 1930 ela conhecera Guido Battelli,
professor italiano, visitante na Universidade de Coimbra.
E, como ele se oferecera para editar suas últimas
produções, encantado com as próprias versões que, de
alguns poemas de Florbela, publicara na Itália (espécie de
passaporte para o exercício da sua corte a uma certa
nobreza decadente), ela então lhe confiara os originais de
2 Em Florbela Espanca, Trocando Olhares (Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da
Moeda), elaborei o estabelecimento dos oitenta e oito poemas do primeiro
manuscrito de Florbela Espanca, o Trocando Olhares, bem como a reconstituição
literária e histórica de cada um dos projetos poéticos nele contidos, que incluem,
inauguralmente, o homônimo Trocando Olhares, a que agora me refiro. A propósito
da interlocução de Florbela com Raul Proença, fundamental para a definição dos
rumos da sua poética, esclareço que, ao contrário do que afirma Rui Guedes, na
publicação que de Florbela empreendeu (Obras completas, Lisboa, Dom Quixote,
1985-1986), ele jamais "mexeu" nos versos da poetisa. No meu mencionado
trabalho, quando da análise do manuscrito Primeiros Passos, antologia que Florbela
remetera ao intelectual republicano logo após 18 de julho de 1916, comprovo que
a participação de Proença nesse manuscrito é impecável: anotações feitas a lápis e
à margem dos versos, identificadas por sua rubrica, e uma apreciação geral
assinada e esclarecendo os reparos. Assim fica definitivamente patenteado que o
alarde sensacionalista relativo às chamadas "ingerências" do impoluto republicano
sobre a obra de Florbela não passa de falso chamariz comercial, fabricado por Rui
Guedes, para a vendagem da sua coleção de oito volumes.
Florbela Espanca Poemas XIV
Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a
poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli,
certamente perplexo e condoído do acontecimento, dividido
entre a responsabilidade moral da edição e o montante
investido nela, vai procurar se desincumbir da tarefa pelo
menos a contento.
Nem ele nem os amigos próximos ignoravam como se
dera o desenlace, embora a versão oficial fosse a da morte
natural. O atestado de óbito, fixado nas declarações do...
carpinteiro Manuel Alves de Sousa, apontava "edema
pulmonar" como causa mortis, muito embora o terceiro
marido de Florbela fosse o Doutor Mário Lage − médico!
Há uma maciça mistificação em torno desse
acontecimento (família católica, interdição da palavra
"suicídio" na imprensa, receio de falatório), o que não
escapa a Battelli. De modo que, matreiro, enquanto a
família do marido da poetisa insiste em abafar a tragédia, o
nosso emérito professor vai manipulá-la, com o seu tanto
de mistério e de insinuações, como isca de vendagem para
a campanha publicitária que empreende, a seguir, a
preparar o iminente lançamento de Charneca em Flor3.
3 Os textos imediatos de Battelli aparecem em Coimbra ("Florbela Espanca",
Correio de Coimbra, em 20/12/1930), no Porto ("Elegia à morte de Florbela
Espanca", Jornal de Notícias, em 21/12/1930), em Lisboa ("Elegia", Portugal
Feminino, em 31/1/1931), alcançando o mais importante periódico português, o
Diário de Notícias de Lisboa, através do correspondente alentejano Celestino David
("Florbela Espanca, poetisa alentejana", em 14/12/1930, e "Charneca em Flor", em
25/1/1931, ambos no mesmo jornal), e cunhando definitivamente a obra e a vida
de Florbela por meio de um "In Memoriam", inserido na edição inaugural do
Charneca em Flor. Ali, ele apresentava as suas "Traduzioni" de onze peças do livro
(onde altera os titulas de duas delas) e publicava o "Irmã de Ariel" que,
desenvolvendo o "Florbela Espanca" do Correio de Coimbra, identificava agora a si
mesmo como sendo o tal "alguém" muito próximo a Florbela, que a versão anterior
não nomeava.
Florbela Espanca Poemas XV
No afã de prestigiar e de promover a poetisa pelas
suas próprias mãos, não se dá conta de que a equação que
veicula - a da aderência completa da biografia à obra, a
ponto de o leitor poder conhecer, através desta, as razões
secretas do insinuado suicídio –, é uma moeda de duas
caras4. Tal, digamos, avaliação, que não passa de um mero
expediente de especulação comercial, acarretará de
imediato, para a pessoa e a obra de Florbela, num contexto
social onde a moral pudibunda impera, o nariz torcido do
bom comportamento salazarista. Este se empenhará então
em interditar a obra e o recém-composto busto da poetisa,
enquanto a facção contrária tentava erguê-lo no Jardim
Público de Évora, em homenagem àquele símbolo
progressista que, sem o saber, Florbela começava então a
representar. Battelli, completamente fora de contexto, está
pouco atento às questões pelas quais passa a história
portuguesa nesse momento. Interessa-se, tão-somente, em
fazer Florbela divulgada por seus próprios meios. E é assim
que, ironicamente, o professor italiano se converte, sem o
consentimento dela, no grande anexo de Florbela, no porta-
voz oficial de tudo quanto a essa desconhecida e ignorada
escritora se referia...
O extraordinário boom editorial obtido por Charneca
em Flor é inédito na história da imprensa portuguesa.
4 Battelli entra em contato com roda a imprensa portuguesa, que, convencida do
seu conhecimento "íntimo" com a poetisa, lhe dará fé, divulgando, por todo o país,
a versão que ele lhe passa. Mais tarde, em 1937, o ilustre professor terá de
responder por isso, quando as sementes do que plantou lhe redundarão adversas.
Sobre tal específica polêmica, que ele manterá da Itália, cf. "Através da obra de
Florbela Espanca I e II", de J. Silva Júnior (Gil Vicente n. 13, vol. 3/4, Guimarães,
março-abril de 1937, pp.33-40, e n. 14, vol. 5/6, maio-junho de 1937, pp.68-77),
"À propos du 'narcisisme' de Florbela Espanca (lettre ouverte à M. Silva Júnior)",
de Battelli (Gil Vicente n. 15, vol. 9/10, setembro-outubro de 1937, pp. 135-136) e
"Florbela Espanca e a crítica: carta aberta ao ilustre Prof. Dr. Guido Battelli", de J.
Silva Júnior (Gil Vicente 11. 14, vol. 7/8, julho-agosto de 1938, pp.113-116).
Florbela Espanca Poemas XVI
Em pouco mais de uma semana a edição de janeiro de
1931 se esgota, e outra e mais outra são produzidas a
partir de então, insuflado que está o público leitor pelos
comentários veiculados pela imprensa - e, sobretudo, pelo
extenso e apaixonado editorial de António Ferro, no mais
importante periódico português de então, o Diário de
Notícias de Lisboa5. Assim, o entusiasmado Battelli pu-
blica, durante os próximos meses, tudo o que encontra de
Florbela. Reúne, no volume Juvenília, os poemas esparsos
que aqui e ali a poetisa divulgara na mocidade; reedita os
dois livros de poesias, acresce o Charneca em Flor de uma
seção, a que chamou de Reliquiae, e aproveita a boa maré
para fazer editar também o livro de contos inéditos, As
Máscaras do Destino, bem como a correspondência de
Florbela com Júlia Alves e... consigo. Tudo isso, pois, ainda
no ano de 1931! Apenas restaram inéditos os contos de O
Dominó Preto, o Diário do Último Ano, editados
5 António Ferro era casado com Fernanda de Castro, também escritora, com quem
Florbela procurara em vão se comunicar na véspera do seu suicídio (fato registrado
por aquela, na altura, e também recentemente em Ao fim da memória (vol. II
(1939-1987), Lisboa, Verbo, s/d, pp. 89-95)). Fatos bizarros esclarecem, no
affaire, a atuação móvel de Ferro, que transita de defensor loquaz e carismático da
primeira hora da causa florbeliana a opositor ferrenho e poderoso.
Ele havia sido contemporâneo de Florbela na Faculdade de Direito, segundo os
registros da Universidade de Lisboa; fora também o editor do n. 2 do Orpheu.
Graças à sua inteligência, erudição e desenvoltura, alçara-se rapidamente no
jornalismo e era, então, em 1931, diretor desse jornal. Agora toma para si a tarefa
de promover Florbela e de encabeçar uma campanha de donativos para a
confecção do busto sugerido por Celestino David no mesmo jornal, fazendo confluir
para aí também as forças das escritoras portuguesas, dentre as quais sua mulher
desempenha papel ativo. Todavia, Ferro é, em seguida, cooptado pelo Estado
Novo: torna-se Secretário da Instrução Pública em 1936 e, posteriormente, diretor
do Secretariado da Propaganda Nacional. Como tal, e já como componente do
governo salazarista, ele será o principal responsável por toda a sorte de embargos
criados contra o levantamento do busto da poetisa, segundo atestam testemunhos
da época e, em particular, um documento de António Bartolomeu Gromicho,
Presidente da Direção do Grupo Pró-Évora.
Florbela Espanca Poemas XVII
respectivamente em 1982 e 19816. E também o caderno
Trocando Olhares, caído, por acaso, nas mãos do
empresário português Rui Guedes, que o vendeu ao Estado
Português e que o publicou, aliás estapafurdiamente, em
19857.
Mas aqui a coisa se agrava. Com receio de se
comprometer, em vista da proporção espantosa que a
relação mecanicista vida-e-obra, da sua autoria, já
dimensionara, Battelli retira das cartas trechos que julga
indiscretos à sua pessoa, confunde ou extrai datas,
interfere nos originais, fabricando, enfim, a seu gosto,
interpolações de toda sorte. De maneira que a Florbela que
resulta dessa correspondência, e que serve de padrão para
a posteridade, não passa de um modelito que ele forjou e
esculpiu segundo seus próprios padrões, por meio de
específico diapasão moral e ideológico. Em uma palavra:
Guido Battelli se apropria do manancial Florbela Espanca,
que lhe pende dos céus, e indevidamente o veste como uma
luva que ganha as marcas das suas digitais, fabricando
também outras tantas que a sua fantasia lhe queria
impingir.
Tal equívoco tinha tudo para ser esclarecido logo a
partir de 7 de dezembro de 1940, quando, cumpridas as
exigências do professor para o depósito das cartas de
Florbela – ele deixa definitivamente Portugal em janeiro de
1932 –, a Biblioteca Pública de Évora colocava à disposição
6 Os apontados volumes foram publicados pela Berrrand e contam com as
extraordinárias apresentações de, respectivamente, Yvette Kate Centeno e Natália
Correia. A segunda edição de As Máscaras do Destino, também da Berrrand (a
primeira é do Porto, Editora Maranus, 1931, revisada pelo Dr. Cláudio Basto),
vinda à luz em 1979, estampava a lucidez e a sensibilidade de Agustina Bessa-Luís
como prefácio. 7 Acerca da mencionada publicação de Rui Guedes, cf. o meu ''A primeira edição do
manuscrito Trocando Olhares", em Homenagem a Florbela Espanca, Cadernos de
Teoria e Crítica Literária, Araraquara, Unesp, 1988, pp. 93-105.
Florbela Espanca Poemas XVIII
dos leitores esse material para consultas. Mas o bizarro é
que não há nenhum registro de que florbelianos ou
salazaristas tivessem se dado conta da enorme vala entre as
cartas originais e as engendradas. Os primeiros, quem sabe,
afeitos à imagem que o professor tinha dela patenteado, e os
segundos, sobejamente acomodados ao estereótipo maldito
que a pecha do suicídio outorgava, portanto, a essa mulher.
Quase quarenta anos depois, quando em 1979
Agustina Bessa-Luís se vale desse espólio para escrever o
seu Florbela Espanca, a vida e a obra é que pela primeira vez
os disparates perpetrados por Battelli vêm finalmente à luz.
E desde então pode-se avaliar o que atravessa a
inaugural apresentação que o professor faz de Florbela aos
leitores portugueses (partidários ou não da xenofilia), onde
a contradição romântica está presente, mas não o
anarquismo, onde a pagã e a panteísta são apagadas em
nome de uma quase ortodoxa mulher de fé, onde a
desafiadora e irreverente "pantera" está domada em ovelha,
só momentaneamente desgarrada, a oferecer-se em ritual
de sacrifício, mercê da desatenção, incompreensão e
desdém dos seus contemporâneos, e onde também o seu
orgulho resta triturado em pedidos de compaixão...
A imagem que Florbela lhe oferecia era, em
contrapartida, bem outra!8 A da mulher escritora, rebelde e
irreverente, avessa à publicidade, à glória, aos críticos e
jornalistas, sem editor e sem dinheiro para dar a lume seus
livros; orgulhosíssima, a ponto de jamais mendigar favores,
o que "tem sido a minha suprema defesa", "o meu amparo e
a minha forca". Florbela não se diz a ele católica, nem
8 A correspondência de Florbela com Battelli, tal como se acha depositada na
Biblioteca Pública de Évora, compõe-se de vinte e quatro peças (entre cartas e
cartões); foi iniciada em 14 de junho de 1930 e encerrada em 5 de dezembro do
mesmo ano, nas vésperas da sua morte.
Florbela Espanca Poemas XIX
protestante, nem budista, nem maometana ou teosofista;
enfim, afirma apenas não ser "nada": "O meu racionalismo
à Hegel, apoiado numa espécie de filosofia à Nietzsche,
chegou-me por muito tempo. Hoje... a minha sede de
infinito é maior do que eu, do que o mundo, do que tudo, e
o meu espiritualismo ultrapassa o céu."
Acerca da sua biografia, não permite a Battelli que
acuse a educação que recebeu "dos defeitos do meu
caráter. Eu sou hoje o que fui sempre". Trata-se, segundo
ela, da "eterna história da lâmina corroendo a bainha",
porque o certo é que há "transformações irrealizáveis: uma
figueira nunca poderá dar rosas".
A mãe morreu de "nevrose", o irmão desapareceu num
vôo de treino mergulhando no Tejo, e esse "horror arrasou-
me, esfacelou-me". Mas nem por isso tornou-se uma
Jeremias; ela se diz ser, antes de mais nada, uma revol-
tada Job, o que não a impede de saber-se, hoje, "um
canceroso: podem as várias morfinas aliviar-me, curar-me
nunca. Estou doente, tenho os nervos destrambelhados".
Vive só e retirada, não porque seja incompreendida,
mas porque é alguém "que não compreende nada", deixando-
se rodear tão-só pelos seus livros, flores e cão, uma vez que
por vontade própria se acha enclausurada na "cela de Sóror
Saudade". Só dorme às custas de "Veronal" (de cuja dosagem
letal se valeria para morrer), e seu estado de espírito está
"desejoso da transformação universal pela morte".
Como se vê, a relação que mantém com a morte não
inclui nem culpa nem perdão. É a mais telúrica possível,
como a reencontramos na sua obra, desprendida e ausente
da sombra de qualquer consciência cristã – muito diversa,
portanto, daquela que Battelli lhe imputaria. Florbela
declara: ''A pantera está enjaulada e bem enjaulada, até que
a morte lhe venha cerrar os olhos, e da sua miserável
Florbela Espanca Poemas XX
carcaça cinzele um tronco robusto a latejar de seiva, ou uma
sôfrega raiz a procurar fundo a água que lhe mate a sede."9
Ora, se a obra de Florbela passou, a partir do seu
falecimento, por inúmeras apropriações ideológicas, tanto
da parte dos aficionados quanto da parte dos detratores,
imagine-se, pois, o que ocorreu com a biografia da poetisa,
assim tão atrelada por Battelli à sua produção!
Insinuações, as mais contraditórias, sobre o seu
comportamento moral abrangiam – graças ao fato de estar
sendo erigida em emblema das renascentes causas
feministas – desde o lesbianismo até a ninfomania! E é
bom não esquecer que Florbela nunca teve filhos; que se
casara três vezes, num tempo em que o divórcio, acionado
pela recente e fulminante República, ainda não era em
verdade praticado... Também do incesto ela não escapou!
De resto, como a moral salazarista poderia explicar o seu
afeto desmedido pelo irmão e pelo pai?
Contestada também no nível político pelos processos
de difamação, seus amigos chegaram ao cúmulo de invocar
trechos de suas cartas, distorcendo-os, apenas para provar
9 O perfil que Florbela constrói do professor, nessa correspondência, a partir do
que ele lhe informa, é o seguinte: trata-se de um senhor de meia-idade (ele
contava sessenta e um anos na altura), ansioso por remoçar diante da juventude
dela, de um estudioso de literatura apaixonado por Portugal e sua cultura, inimigo
de Eugénio de Castro, para a depreciação de cuja obra, empenhado em
ridicularizar, pede em vão o concurso da poetisa... Situa-se politicamente como
cidadão simpático ao fascismo e a seus chemises noires, como católico praticante e
fervoroso, como uma espécie de relações-públicas do mundo artístico italiano. É
sobretudo o tradutor e divulgador das produções da poetisa na Itália, bem como o
versejador que almeja sempre o seu parecer.
A partir de 10 de julho, propõe-se a bancar a edição do Charneca em Flor, faz
empenho em conhecer pessoalmente a poetisa, o que ocorre entre 10 e 25 de
setembro, em Matosinhos. Na época, ou logo após, se insinua a Florbela, mas
retrocede de imediato, uma vez que; ela entende estrategicamente suas palavras
"como versos dum poeta a quem a imaginação bastas vezes ilude". Além disso,
jamais se tutearam, ao contrário da intimidade que ele arrota ter com ela, quando
a trata por "tu" nos textos que lhe redige depois de morta.
Florbela Espanca Poemas XXI
que "Florbela não foi inimiga do Estado Novo, e, ao
contrário, eu posso considerá-la sua (sic) precursora"! Eis o
que o desesperado José Emídio Amaro – que, em 1949,
publicaria com Azinhal Abelho as Cartas de Florbela
Espanca – reitera, em 1936, na imprensa, demonstrando
como "Florbela causticava, com a sua ironia profunda, a
comédia vergonhosa dos partidos, antes da gloriosa
Revolução Nacional"10.
Nunca ninguém teve tão vasculhada a sua
intimidade, em busca de provas tanto a favor quanto
contra, como essa mulher insurrecta! Rainha, sim, mas a
duras penas, a ponto de terem profanado aviltantemente a
sua privacidade, o bem que lhe era mais caro,
vilipendiando-a, denegrindo-a! À proporção que, ano a ano,
se tornava best-seller – lugar que a sua obra ainda
conserva hoje em dia –, mais ataques lhe eram dirigidos no
sentido de evitar o risco de ser tomada como "exemplo"
para as gerações femininas criadas à sombra do
salazarismo. E o expressivo e volumoso material a respeito
desse affaire me autoriza a afirmar que – desde 25 de
janeiro de 1931, quando Celestino David sugere a idéia do
busto em homenagem à poetisa (logo concretizada por uma
campanha que angariou fundos para a escultura de Diogo
de Macedo e para o plinto de Jorge Segurado), até, pelo
menos, 17 de maio de 1964, quando a campanha para a
exumação dos restos mortais da poetisa alcança vitória,
realizando uma verdadeira peregrinação nacional de
10 A matéria em questão se intitula "Florbela Espanca e o Estado Novo", publicada
em Noticias do Alentejo, Vila Viçosa, em 13/9/1936. Aliás, a respeito dos amigos
que a causa florbeliana angariou, não posso deixar de referir a devoção com que
sobretudo três mulheres a ela se dedicaram: Aurélia Borges, Maria Alexandrina e
Hortense de Almeida. Também é digna de nota a presença eficiente e permanente
do Grupo Amigos de Vila Viçosa (do qual se destacam Alexandre Torrinha, Azinhal
Abelho e José Emídio Amaro) e do Prô-Évora (em que tem grande importância o
referido Antônio Bartolomeu Gromicho, também Reitor do Liceu Nacional).
Florbela Espanca Poemas XXII
desagravo, que parte de Matosinhos (com escala nas
diferentes cidades entre Porto e Alentejo, notadamente na
Universidade de Coimbra, onde Florbela foi saudada em
cerimônia formal pelos estudantes), para aportar
finalmente em Vila Viçosa, sua terra natal – as polêmicas
em torno da obra e da vida de Florbela permaneceram
assiduamente acesas na vida literária e política
portuguesa11.
Em vista das várias manifestações contrárias da
Igreja ("a obra que deixou não pode merecer a aprovação da
Igreja, a qual por conseguinte não pode associar-se à sua
glorificação") e das bizarras artimanhas políticas
(considera-se o busto de Florbela uma obra de arte, o que
significa que não pode ficar exposto em praça pública; deve
ser recolhido ao Museu de Évora, onde de fato se
encontrou por um bom tempo – no porão... ) – o incansável
e republicano pai João Maria Espanca toma uma decisão
que lhe era absurda porque gratuita. Na altura com oitenta
e três anos de idade, ele, convencido de que a ilegitimidade
de Florbela se constituísse num dos entraves para o
reconhecimento literário da filha, acaba por pateticamente
perfilhá-la em cartório, depois de dezenove anos de seu
falecimento – em 13 de junho de 1949!
Cinco dias depois, em 18 de junho, e já então
desatentos da necessária autorização e decididamente à
revelia, alguns florbelianos, dentre os quais Celestino
David e António Bartolomeu Gromicho, inauguram
finalmente o busto de mármore, retirado dos porões do dito
Museu e acimentado à socapa, no Jardim Público de
Évora, onde até hoje se encontra. 11 Constam de mais de trezentos títulos os móveis dessa questão, em pauta na
imprensa portuguesa de então. É sobre tal objeto que atualmente trabalho, na
tentativa de compreender de perto as apropriações ideológicas de que padeceram
a vida e a obra da poetisa.
Florbela Espanca Poemas XXIII
As reações se seguiram de imediato, indignadas, e
lembro apenas, dentre o arsenal posto em uso, os libelos
de José-Augusto Alegria e de Narino de Campos, na década
de 50, obras subvencionadas pelo Centro de Estudos D.
Manuel Mendes da Conceição Santos, arcebispo de Évora12.
O fato é que, hoje em dia, após a queda do
salazarismo, Florbela começa, paulatinamente, a ser
redimida pelo clero português, que recupera, também
através de fortes marcas ideológicas, sua biografia e obra13.
Após o 25 de Abril, tende-se, pois, a justificar, pela
"histeria", e a legitimar, graças à caridade cristã do
"perdão", a figura dessa mulher, sobretudo nos estudos de
António Freire (1977) e António Capão (1982). E é bom
recordar que a recente publicação das Obras completas de
Florbela Espanca, pelo referido empresário português Rui
Guedes, conhecido pela sua atuação junto à televisão
portuguesa antes do 25 de Abril (associada a programas
como A visita de Cornélia e Topo Gigio), e a arbitrariedade e
a incompetência utilizadas por ele na reconstituição dessa
obra tornam-se ainda mais graves porque, implicitamente
ou não, revolvem todo o peso dessa memória política de
que se impregnou a produção de Florbela Espanca14.
12 Trata-se de A poetisa Florbela Espanca: processo de uma causa, de José-
Augusto Alegria (Évora, 1956), e de A poesia, o drama e a glória de Florbela
Espanca, de Narina de Campos (Lisboa, 1955). 13 Recordo apenas que o clero português foi o mais forre aliado político de Salazar,
uma vez que, tendo sido banido do poder durante a curta República Portuguesa
(1910-1926), regressou a toda a força no Estado Novo, encabeçado pelo então
cardeal-patriarca de Lisboa, D. Manuel Gonçalves Cerejeira. Claro está que a
situação política da Igreja mudou consideravelmente após a queda do salazarismo. 14 Consulte-se a respeito dessa publicação os meus reparos nas revistas
Colóquio/Letras n. 92 ("Florbela Espanca. Contos, Contos e Diário, Fotobiografia",
Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, junho de 1986, pp. 87-90), n. 94 ("Cartas
(1906-1922), Cartas (1923-1930)" e ''Acerca de Florbela Espanca", idem,
setembro-outubro de 1987, respectivamente pp. 109-111 e 111-113) e a
repercussão deles junto à imprensa portuguesa ("Florbela em questão na
'Colóquio/Letras"', de Luís Miranda Rocha, no Diário de Lisboa de 18/9/1986).
Florbela Espanca Poemas XXIV
Mas é no contexto de tais fatos, em extremo densos,
complexos e repletos de um sem-número de peripécias, que
é preciso situar o descobrimento que fazem, da obra de
Florbela Espanca, José Régio (em 1944), Jorge de Sena (em
1946) e Vitorino Nemésio (em 1949), os primeiros críticos a
se dedicarem, não só à causa política que ela representava,
mas também a seus poemas. Da perspectiva presencista,
de cujo projeto Régio é o mentor, ele observa a obra de
Florbela como uma "literatura viva", como "a expressão
poética de um caso humano", discernindo e imprimindo
um estatuto literário àquilo que, para Battelli, não passava
de uma relação mecanicista. Para Jorge de Sena, é já o
"ideário do destino feminino", de que se alimenta a obra de
Florbela, o que emperra e justifica a morosidade com que
transcorria, naquele momento, aquilo que ele viu
certeiramente como sendo o "processo disciplinar" de
Florbela, a passagem das suas produções e do seu
comportamento pelos "trâmites do costume". Nemésio, por
sua vez, focando a obra de Florbela no seu aspecto
regionalista (que também se constituiu num dos objetos da
polêmica), procura separar a "lenda de Florbela" da "poesia
de Florbela" e conclui que as "relutâncias e resistências
que retardaram a imagem de mármore nos calmos jardins
de Évora" se deveram ao fato de que a sua produção
encarna os mitos literários alentejanos, o próprio genius
Numa dessa obras, na Fotobiografia, "a reconstrução de uma época descamba,
de álbum de retratos, para uma lição de anatomia que devassa, não a intimidade
poética ou a vida particular de Florbela, mas a sua integridade física e a sua
legítima privacidade post-mortem", constato eu. Isso porque ali se exibem, ao lado
de outras, duas fotos que são apresentadas como – pasme, ó esclarecido leitor! –
"metade esquerda do maxilar inferior de Florbela" e "pedaços do seu cabelo"! A
meu ver, é apenas ali que se pode compreender o acentuado e propalado "rigor
científico" da edição.
Florbela Espanca Poemas XXV
loci errante das planícies, a alma alentejana, "uma
insistência, uma crença, um poder de afirmar
verdadeiramente puro"15.
É essa pureza telúrica, essa sinceridade alva de
sentimentos o que, já em 1941, Manuel da Fonseca, como
poeta e alentejano, identificava e cantava no seu "Para um
poema a Florbela", onde a malquerença, a ela destinada,
também não lhe escapa enquanto dado definidor de uma
certa classe social citadina:
Senhora numa cidade,
a cidade abandonou ...
– porque lá ninguém a queria...
Jogou-se às estradas da vida,
caminhos do Alentejo,
esbanjando braçadas cheios
da grande vida que tinha!
E os campaniços leais
que bem a compreendiam!
Raparigas de olhos pretos
o modo como a olhavam!
Maiorais de largo gado
(navios atalhos desciam
até as estradas reais.
15 Régio entra em campo a propósito do monumento, a partir de 1944, no Jornal de
Noticias do Porto, e o seu célebre ensaio "Sobre o caso e a arte de Florbela
Espanca" data de 1946. Sena profere a conferência "Florbela Espanca ou a
expressão do feminino na poesia portuguesa" numa homenagem do Clube dos
Penianos Portuenses a Florbela, em 1946. Nemésio, na sua coluna "Leitura
Semanal" do Diário Popular de Lisboa, dedica-se a "Florbela" em 29/6/1949.
Florbela Espanca Poemas XXVI
Moinhos presos nos cerros,
velas pelo céu giravam;
nos longes do descampado
ardem queimadas vermelhas!...
E Florbela, de negro,
esguia como quem era,
seus longos braços abria
esbanjando braçadas cheios
da grande vida que tinha!
E deve datar de ainda antes, já que Pessoa faleceu em
1935, um poema datilografado, encontrado no seu espólio
e "à memória de Florbela Espanca" dirigido, que, incitando-
a a dormir e a encontrar finalmente paz na sepultura,
identifica-a como "alma sonhadora / Irmã gêmea da
minha!".
II
A obra de Florbela Espanca
Quem acompanha, pois, as produções de Florbela
desde o seu primeiro manuscrito conhecido, o Trocando
Olhares (1915-1917) – que compreende oitenta e oito
poemas e três contos, matriz de onde se irradiam poemas
para a formulação de Livro de Mágoas e Livro de "Sóror
Saudade'; e cuja temática vai atravessar toda a sua
produção futura – sabe que a predileção inaugural da
jovem poetisa recai sobre as quadras em redondilha
maior, ao gosto popular16. Para que se tenha uma idéia
do influxo de tal cultura anônima e oral sobre a sua
nascente poética, adianto que só o primeiro projeto de
Florbela Espanca encerra cerca de cinqüenta e dois 16 Para o conhecimento pormenorizado dos projetos contidos nesse manuscrito
inaugural (Trocando Olhares, Alma de Portugal, O Livro d'Ele, Minha Terra, Meu
Amor) e das antologias produzidas a partir dele (Primeiros Passos e Primeiros
Versos), remeto o leitor para o meu ensaio "A nascente poética de Florbela
Espanca" (Estudos Portugueses e Africanos 17, Campinas, Unicamp, 1991, pp.
97-108), refundição de "O primeiro manuscrito de Florbela Espanca (1915-
1917)" (XIII Encontro de Professores Universitários Brasileiros de Literatura
Portuguesa, Rio de Janeiro, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1992, pp.
224-228), e também ao mencionado Florbela Espanca, Trocando Olhares. Acerca
do segundo desses projetos, o Alma de Portugal, em que a natureza amorosa de
Florbela deixa o amado para cantar a pátria, cf. também o meu "Especulações
em torno da reconstituição de um projeto inédito de Florbela Espanca: Alma de
Portugal" (Actas do III Congresso da Associação Internacional de Lusitanistas,
Coimbra, Universidade de Coimbra, 1991, pp. 319-324).
Florbela Espanca Poemas XXVIII
poemetos desse tipo, dispostos em três grandes
conjuntos intitulados ''As quadras dele".
O exame minucioso desse caderno17 mostra, pois, que
a interlocução inicial de Florbela ocorre com uma literatura
de oitiva, típica da cultura alentejana de onde a poetisa se
origina, e que, desse fecundo e ilimitado manancial, ela
recorta e adota para si as trovas de cunho lírico-amoroso.
Precisamente as que retêm resquícios das cantigas d'amigo
e d'amor medievais, pendendo então para as ditas de
"desgraça" e de "elegia abstrata", e adotando, como seu,
esse mundo mítico-mágico de raízes populares, onde
imperam o panteísmo e a força telúrica. O perfil poético
próprio de Florbela, que se delineia nessas quadras, e que
se expande para as formas que vai experimentando até
alcançar o soneto decassílabo, começa a se erigir, então, a
partir de um específico tratamento da emissão poética e do
destino que a jovem poetisa confere aos temas eleitos
dentre tal tradição folclórica.
A introdução do "tu" no coração do poema, a torná-lo
uma comunicação direta, imediata e coloquial com o outro,
esse cativo amado, confere sempre à peça a impressão de
um movimentado dialogismo. Este, todavia, é desmentido
em seguida graças ao recurso imantador do "eu" emissor,
que desloca a atenção sobre si mesmo e atrai para si o
mundo ao redor. O amor, por sua parte, é valorizado
sobretudo segundo a dor que acarreta, e o receio da
solidão, o medo da rejeição, o uso da indiferença na relação
amorosa, a propensão para o funéreo – são os elementos
que, da poesia oral, Florbela redimensiona sublinhando
para si. Por outro lado, ao mesmo tempo em que segue, de
perto, a convenção amorosa da cantiga d'amigo, altera a
17 O leitor encontrará, neste volume, a reprodução dos poemas do manuscrito
Trocando Olhares.
Florbela Espanca Poemas XXIX
seu favor a cantiga d'amor, transformando, então, as
prerrogativas masculinas em... femininas, como a atualizar
e a desmistificar, a partir da sua própria experiência de
mulher, o verdadeiro agente da vassalagem.
Aderem-se, a tais recortes, a implicitação da
sensualidade e do erotismo (seja através de uma figura
elíptica, seja por meio da atribuição de sentimentos
amorosos conferidos às manifestações da natureza,
sempre tratada animicamente), a escolha do "sonho" como
registro de capturação da realidade, o peso concreto da
morte, associado ao amor, e a escolha de valores noturnos
enquanto específicos designadores do feminino. E desde
aqui, desde a nascente poesia de Florbela, ficam defini-
tivamente seladas e imbricadas as suas mais significativas
constantes: a condição feminina e a marginalidade.
Tanto a morte quanto o sonho abrem a vida, para
esta jovem poetisa, em um espaço intervalar, revertem-na
num universo de exceção, num mundo-fora-da-existência
que, gratificantemente, descobre uma brecha na ordem
inabalável e convencional. Aí, a vida se desloca do curso
habitual e as regras se tornam outras. Há uma suspensão
do tempo real e do espaço físico, que contraria o princípio
de realidade – visto por Florbela como prerrogativa
masculina – e que instaura, ao contrário, o princípio do
prazer, atribuição feminina.
Eis como, já na primeira Florbela, a morte ganha
uma avaliação positiva, de universo liberto das cadeias da
convenção, das hierarquias, das referências codificadas,
da proibição, das restrições. E o motivo do sonho e o da
morte se imbricam então para compor esse estado
paralelo ao real, que descobre um espaço de
marginalidade, habitado apenas pelo princípio feminino.
Há, como se vê nessa poesia inaugural, uma
ascendência do mundo masculino sobre a mulher, e,
Florbela Espanca Poemas XXX
nesse contexto, a dor – dote exclusivamente feminino –
decorre da instabilidade do olhar solar do amado,
tornando-se esta motor para a produção literária,
convertendo-se em móvel de poesia. É a ausência do
sentido protecional de tal olhar – e, por que não dizer,
patriarcal – que lança essa jovem mulher no seu mundo
noturno, livre mas marginal, o que, contraditoriamente,
lhe é em absoluto fecundo, visto que a incita a escrever e
a converte em poeta. E não é à toa que a tópica da solidão,
da ausência do amado, é aqui (ou em toda a sua poesia) a
grande permanência. De um lado, explica a natureza da
sua produção, a maneira de reverter o infortúnio numa
estética, embora, de outro, situe Florbela numa espécie de
limbo, de imagem sem definição e sem auto-
reconhecimento, porque não é delineada e, por
conseguinte, não identificada pelos olhos dele. Somente
através dessa visão masculina, discernidora, é que essa
jovem poetisa adquire identidade.
E, já agora, observo como, desse ponto de vista, a
emergente poética de Florbela Espanca se apropria da
histórica e tradicional condição feminina, com o seu tanto de
fiat Maria, de percalços de abnegação e conformismo, para
problematizá-la, para retirar dela um corolário que a torne
ativa – para redimensioná-la em dom literário. Repare o leitor
como Florbela transforma expressivamente a histórica
"inatividade" social da mulher, decorrente da tutoria que o
mundo masculino exerce sobre ela, em força produtiva.
Num dos sonetos desse manuscrito, dedicados de
maneira direta a ''A Mulher", Florbela advertia: "sê em
Vênus sempre Marte", máxima que, no contexto da peça, se
assentava como uma espécie de divisa para o procedimento
feminino. Assim, longe de ser ineficaz, essa colocação em
discordância entre masculino e feminino, esse embate
entre dois inconciliáveis é fortemente motivador, porque, de
Florbela Espanca Poemas XXXI
um lado, autoriza o jogo de sedução feminino e a densidade
dos movimentos psicológicos que, aliás, movimentam toda
a poesia, passada ou futura, de Florbela. De outro,
remetendo a mulher para o âmbito da marginalidade,
provoca o sofrimento, o requerido impulso para a criação
artística. E o poema se torna, então, uma operação
sensitiva, onde a dor é a matéria-prima capaz de criar,
apurar e transfigurar o mundo, a grande e original via – o
único atalho verdadeiramente feminino – de conhecimento.
E é justo essa aprendizagem que um curioso ciclo de
sonetos – com que o caderno Trocando Olhares se encerra
entre 24 e 30 de abril de 1917, conjunto de sonetos que se
constitui, ao mesmo tempo, em passaporte para o Livro de
Mágoas – registra. Trata-se, agora, do primeiro exercício
direto e continuado de interlocução, do primeiro esboço
claro e evidente do encontro da poética de Florbela com
uma outra alheia, que não a tradição oral,
intertextualização, aliás, exposta metalingüisticamente
nos referidos poemas18.
Nessa precisa ocasião, Florbela acabara de tomar
contato com o Vitral da Minha Dor, de Américo Durão, com
o qual se encanta. Numa carta de 5 de janeiro de 1920 ao
poeta, confessando a estima que há tempos nutre pelos
versos dele, a poetisa rememora o dia em que esse livro
lhe caiu por acaso nas mãos e o deslumbramento com que
o leu "duas ou três vezes", quando com o volume topou às
18 Refiro-me a uma precisa prática, indiciada pela dedicatória ao ciclo de poemas
em causa, que tive a oportunidade de constatar ser a mais prolongada e de
maior influxo sobre a sua poética de então. De resto, a interlocução de Florbela
com a literatura erudita já vinha sendo marcada ao longo do caderno, através do
uso de uma epígrafe de Júlio Dantas, através de referências claras a Antônio
Nobre, da imitação da temática ou do estilo de Cesário Verde, de Antero de
Quental etc. No entanto, esse ciclo de sonetos atesta um nível de
intertextualidade muito mais vincado que nos outros casos, visto que esclarecido
metalingüisticamente, o que justifica a minha afirmação.
Florbela Espanca Poemas XXXII
quatro da manhã, depois de ter chegado de um baile,
"cansada, sonolenta". E conclui explicando:
Do seu livro veio o meu livro.
Obrigado, Amigo meu!
O arrebatamento de Florbela por tal volume é em
absoluto sincero: essa obra de Américo Durão filtra e
atualiza, para ela, toda uma tradição poética com que se
identifica e que tem como horizonte. Ela realiza uma
espécie de amálgama entre Antônio Nobre e Antero de
Quental, presidida por uma tonalidade um tanto maldita,
de origem baudelairiana, com ressaibos irônicos de
Cesário Verde, onde a sensibilidade malade de Nobre toma
convulsões quase epilépticas, e onde a grandiloqüência do
ideal anteriano é puxada ao extremo mais patético. E tudo
isso permeado por uma postura que corrige qualquer
ilusão de sinceridade, já que se desmascara sempre como
uma atitude puramente estética.
Dita assim, essa obra, embora partindo das mesmas
vertentes que a da jovem Florbela, é em tudo o seu
contrário: tanto daquela já produzida quanto da que a
poetisa engendraria a partir de então. Todavia, nos
sonetos do referido ciclo dedicado, no manuscrito, "Ao
grande e estranho poeta A. Durão", cujos três primeiros,
refundidos, surgirão no Livro de Mágoas com os títulos de
''A Minha Tragédia", ''A Um Livro" e ''A Maior Tortura" –
esse imenso desacordo entre ambos aparece apenas
enquanto identificação profunda, a ponto de Florbela
adotar, posteriormente, para o seu primeiro livro de
poemas publicado, o titulo que confere, no ciclo de
sonetos, a tal obra de Durão: "livro cheio de mágoa".
Apenas um cuidadoso estudo das apropriações que
a jovem empreende diante da referida obra de Durão, e o
Florbela Espanca Poemas XXXIII
exame das transformações efetuadas nessas matrizes do
caderno, aquando da passagem de tais sonetos para o
Livro de Mágoas, podem atestar, com clareza, como esse
ciclo de sonetos se assenta, na história da poética de
Florbela Espanca, enquanto o seu primeiro fundamental
ritual de diferenciação e de individuação poética que,
aliás, já se esboçara desde as apreciações que Raul
Proença lhe enviara sobre a sua antologia Primeiros
Passos19.
Deles, sobretudo o segundo soneto desse ciclo, o ''A
Um Livro", registra com clareza a semelhança que a
Florbela desse manuscrito surpreende existir entre ambas
as poéticas. Em tal peça, ela declara ler-se a si mesma no
livro de Durão; ou não bem isso, mas é como se a obra dele
a mimetizasse, a copiasse, a salmodiasse, com a diferença
de que aquela lhe é superior, uma vez que, em Durão, ela
se depara com o que não sabe – por muito sentir –
expressar. Donde a obra de Durão é a de Florbela, se ela
tivesse capacidade poética para imprimir a seus versos
uma objetividade que, em Durão, compreende a
desmistificação do sofrimento enquanto atitude estética,
divisa geral do Vitral da minha dor, que o poema ''Abúlicos''
se incumbe de esclarecer: ''Antes de sermos nós, somos
estetas". Ora, tal objetividade Florbela não pode ter – o que,
por decorrência, torna formalmente imperfeitos os seus
versos – simplesmente porque é... mulher!
E o poema se encerra assim:
Poeta igual a mim, ai quem me dera
Dizer o que tu dizes! ... Quem soubera
Velar a minha Dor desse teu manto! ...
19 E remeto o leitor para o meu estudo "A interlocução de Florbela com a poética
de Américo Durão", Colóquio/Letras n. 132/133, Lisboa, Fundação Calousre
Gulbenkian, 1994, pp. 99-110.
Florbela Espanca Poemas XXXIV
Ou seja: para obter a almejada perfeição formal,
como a que ela crê que ele detenha, seria necessário a ela
"velar", a partir da capa "estética" e objetiva de Durão, a
sua "Dor". Mas, para tal, segundo o testemunha a sua
produção anterior – e a posterior o confirmará –, seria
preciso que Florbela desistisse da imensa prerrogativa
poética que a sua condição feminina lhe confere!
Ora, a chave de ouro de "A Um Livro", embora
desenhe um sinal de menos para a poética de Florbela
diante da de Durão, revela que a jovem poetisa deve ver
nessa impossibilidade de descartar-se das conturbações
emotivas antes um atestado da sua superioridade feminina,
da qual, aliás, jamais abdica. E é isso mesmo o que torna
ambas as poéticas tão desconformes: uma é... masculina –
quer confessar a dor como fingimento; a outra é... de
mulher e tem a convicção de que sofre, o que transfigura o
poema naquela operação sensitiva a que me referi.
Pois bem. Se na discussão da condição feminina,
empreendida por Florbela desde o caderno Trocando
Olhares, a lição luminosa que ela retira dali é a dessa
especificidade poética própria tão-somente da mulher, tal
virtude, recordo, não pode deixar de conviver com o seu
reverso noturno, visto que a dor, matéria-prima desse
fazer artístico, se origina do embate amoroso desigual
entre masculino e feminino, o que também angaria o
estatuto de marginalidade.
Já no Livro de Mágoas, no Livro de "Sóror Saudade"
e no Charneca em Flor20, que se regem por esse mesmo
20 Registro aqui três importantes estudos sobre a obra poética de Florbela
Espanca: o "No trilho de um sítio incerto", de José Carlos Seabra Pereira (Poesia
1903-1917, Lisboa, Dom Quixote, 1985, pp. I-XXVII), o "Florbela Espanca: o
discurso do outro e a imagem de si", de Zina Bellodi Silva (Cadernos de Teoria e
Critica Literária n. 19, Araraquara, Unesp, 1992) e o Images of the self a study
of Florbela Espanca, de Cláudia Pazos Alonso (Oxford, 1994). No Brasil, também
têm-se ocupado dela Lúcia Castelo Branco, Haquira Osakabe e Renata Junqueira.
Florbela Espanca Poemas XXXV
princípio de criação literária, Florbela procederá a um
reexame desses motivos, reatualizando poeticamente os
rituais ancestrais destinados à mulher. Trata-se de igual
reflexão acerca dessa verdade histórica: o fato de, como
apêndice social do homem, ela carecer de uma identidade
própria, independente da que ele lhe outorga21, de
maneira que, nessas obras, o "olhar" masculino de
Trocando Olhares, princípio de vida (ou de morte), será a
rigor ampliado enquanto graus de formalizações
nitidamente sociais. Observe-se, pois, como os passos
que Florbela adota na travessia poético-amorosa têm o
pendor de questionar os papéis culturais oferecidos à
mulher, enquanto regras do pacto social. E, da maneira
como são percorridos pela sua poesia a partir de Livro de
Mágoas, tendem a constituir-se numa via arguta de
busca de identidade.
Relembro que o alvo almejado e tantas vezes
acalentado pela sua poética é a fusão amorosa – o estar
um-no-outro, a transformação do amador na causa
amada e vice-versa, da matéria-prima na forma, que,
para Florbela, se erige na imagem da casa, onde ela mora
– "tão bom" – dentro dele, e ele - "Oh, meu amor!" –
dentro dela! É também a metáfora do universo:
São os teus braços dentro dos meus braços,
Via Láctea fechando o Infinito!
Mas antes que ela aí mergulhe e se integre no outro,
a vontade de amor a encaminha para um processo
conturbado de autoconhecimento22. Uma expressiva porção
21 Para a história do antifeminismo e das diferentes formulações históricas a
respeito da condição feminina, cf. La Femme. Antiféminisme et christianisme, de
Jean-Marie Aubert (Paris, Cerf/Desclée, 1975). 22 Refleti alongadamente sobre essa questão em "O amor na poesia de Florbela
Espanca" ("Suplemento Cultural" de O Estado de S. Paulo, São Paulo,
21/6/1986, pp. 10-11).
Florbela Espanca Poemas XXXVI
da sua poesia é atravessada por pungentes apelos para que
lhe respondam "quem sou eu", ao mesmo tempo em que se
representa como reflexo, sombra, prolongamento, como
sonho de um Alguém, que tem o poder de metamorfoseá-la.
Diante dele, ela se põe à mercê, invertendo, como já
apontei, a vassalagem da cantiga d'amor, sempre pronta a
se transfigurar na denominação que ele lhe conferir. Assim,
ora é a "Princesa Desalento", ora a "Maria das Quimeras",
ora a "Sóror Saudade". Ele a chama por um nome... e logo
ela se torna esse próprio nome:
E na minh' alma o nome iluminou-se
Como um vitral ao sol,
tal como Florbela o assegura em "Sóror Saudade", o poema
que confere título ao segundo dos seus livros publicados.
Chamo a atenção, aqui, para o fato de que esse
poema apreende e reflete, diretamente, um ritual que,
como mulher, Florbela também experimentou. A menção
ao "vitral" não é gratuita! O leitor se recorda de que esse
era o título do livro de Durão – Vitral da Minha Dor –, do
mesmo poeta que em 1919 estampara, em O Século, um
"Soneto" a ela dedicado, onde a denominava "Sóror
Saudade", ao qual Florbela respondera com o seu "O Meu
Nome", que, aliás, não é outro senão o "Sóror Saudade"
de que agora me ocupo.
Ter tido enorme admiração pelo livro de Durão não
lhe passou incólume junto aos contemporâneos da
Faculdade de Direito de Lisboa, que Florbela começara a
freqüentar em 1917, onde travou conhecimento com o
próprio poeta em questão. O exame da sua
correspondência demonstra também que é como "Sóror
Vitral", como "prolongamento" do livro de Durão, que
Augusto D'Esaguy se refere a ela, cognome corrente
Florbela Espanca Poemas XXXVII
durante essa ocasião e anterior, aliás, ao de "Sóror
Saudade", pelo qual também será conhecida23.
Esclareço, a propósito, que na sua deliciosa
Memória das palavras o poeta José Gomes Perreira,
também contemporâneo da poetisa na Universidade de
Lisboa, testemunhava, em 1966, o período acerbo
atravessado por ela nos meios acadêmicos, aquando da
divulgação do recentemente publicado Livro de Mágoas.
Ela que, por mais perto que estivesse dos colegas, distava
deles léguas, graças à sua altivez, ao orgulho e ao
desdém que lhe eram próprios... Cito-o:
Autoriza-me a atestar o que afirmo o exemplar da 1ª
edição do Livro de Mágoas em meu poder, anotado com
exuberância por amigos e companheiros de todos-os-
dias de então. Pelas apostilas à margem e escólios
imbecis, tendentes a frisar os ridículos e possidonices
do texto, infere-se que, no bando, o único defensor
leonino de Florbela era eu. Os mais, todos à uma, em
esquadrão compacto, num escarnir cabeçudo,
forcejavam por desconvencerem-me do talento da
estreante, autora dum livro "licoroso para homens",
como aventura um dos comentadores, e escrito, segundo
outro, por um "António Nobre de saias, de dor
imaginária", asserção que os primeiros versos
traduzidos do Só provavam de sobejo.
As revelações de Gomes Perreira comprovam
escancaradamente a porção de preconceito com que
topou Florbela nos meios universitários e intelectuais que
freqüentou. E a atitude digna com que enfrentou a
hostilidade masculina, que também atribuíam, à sua
poesia, as ingerências de Durão, não escapa ao poeta.
23 O tratamento em pauta pode ser atestado por Uma carta inédita de "Sóror
Saudade" (Lisboa, Editorial Império, 1954). A carta data de 15/1/1920, e, nela,
dirigindo-se a D'Esaguy, Florbela se nomeia ao amigo apenas como "Sóror
Vitral".
Florbela Espanca Poemas XXXVIII
Diante de tal acusação, diz ele, Florbela jamais a negou;
antes exibiu-a "com orgulho de artista suficientemente
pujante para transformar em ouro tudo em que tocasse".
Ora, o que sua poesia registra em "Sóror Saudade",
portanto, enquanto passos da travessia pelos
comportamentos sociais predeterminados à mulher, é que
sua identidade está disponível, é ainda um lugar vago,
somente uma candidatura, pois que padece, então, do
feitiço da nomeação. Ignora quem seja, e a sua identidade
emana do homem. Todavia, esse ritual, que é tardio dentro
do universo feminino – o da cerimônia inicial do batismo –,
vai tomar, ao lado daquele concernente a um outro ritual, o
da eterna espera pelo homem redentor, direções bem
insuspeitadas durante esse longo percurso poético.
Acerca do aguardo desse "Prince Charmant", que virá
para despertar a mulher de um sono mágico, de uma
imobilização feiticeira e, por decorrência... salvá-la, refiro
as advertências de Virginia de Castro que, em 1913,
penetrando no que há de suspeito tanto no "sono" quanto
no "beijo" que vem desencantá-la – maneira mais eficaz de
paralisia e alienação social – deplorava estarrecida:
Mulheres da minha terra! Gatas Borralheiras com o
cérebro vazio, que esperam, sentadas à lareira e com
estremecimentos mórbidos, a hipotética aparição do
príncipe encantado; criadas graves, que passam a vida
com as chaves da despensa e a agulha na mão, sem
terem a menor noção de economia doméstica nem de
higiene; (...) bonecas de luxo, vestidas como as senhoras
de Paris e com a inteligência toda absorvida na
decifração das modas, incapazes de outro interesse ou
de outra compreensão! (...) Pobres mulheres da minha
terra!24
24 Cf. da autora A mulher, Lisboa, Livraria Clássica Editora, 1913, pp.16-17.
Florbela Espanca Poemas XXXIX
Tais reparos têm como alvo, sem dúvida, as
vicissitudes pelas quais passam as mulheres portuguesas
no momento em que vive Florbela. Mas esta, que não se
inseria em nenhum desses protótipos visados, e que não
tinha receio de ser chamada "literata" – o epíteto que,
segundo Ana de Castro Osório, era o "mais desagradável
que poderia ser dito a uma senhora que era vista com um
livro na mão"25 –, sonha com um Príncipe Encantado, um
herói das demandas que,
Como audaz cavaleiro em velhas lendas
Virá, talvez, nas névoas da manhã!
Mas, se ele é devaneado como o Infante, o Eleito, o
Desejado, "o que há de vir e amar-me em doida ardência",
ele também realiza, para essa Florbela, um desencontro
emblemático, já que, afinal, será sempre aquele que
chegou tarde demais – e "há cem anos eu era nova e
linda...". Ora, apesar da súplica para que ele lhe mostre a
luz, que lhe ensine o "preceito", que a salve e que a
"levante redimida"; apesar do enaltecimento que lhe dirige
– "Águia real, aponta-me a subida!" –, o herói de Florbela
é, contra o mito oficial feminino, um D. Sebastião que
jamais romperá a cortina de névoa da sua espera. Isso
porque a mulher, que a poetisa põe a suplicar por ele, é
permanentemente a insatisfeita, a insaciável, a que não
pode ser encontrada, visto que, ativa, Florbela transfere,
para aquela, as prerrogativas desse "outro", desse mesmo
Príncipe que era destino feminino aguardar. E eis que em
tal interlocução com esse protótipo masculino ela acaba
por se reconhecer e por se denominar, antes, como a
"Princesa Encantada da Quimera", o que, aliás, como
conclui, a torna em tudo diversa das "outras raparigas"...
25 Cf. da autora As mulheres portuguesas, Lisboa, Livraria Editora Viúva Tavares
Cardoso, 1905, p. 107.
Florbela Espanca Poemas XL
Sublinho, pois, que a nossa poetisa se apodera dos
mitos sociais masculinos, não para suportá-los enquanto
tais, não para reproduzi-los, mas para dialogar com eles,
para conhecê-los, vasculhando-os por dentro a ponto de
vestir deles a máscara, num esforço crítico de
descerramento da sua própria feição íntima.
O primeiro sintoma de desconfiança diante do
empréstimo de que padece – o de ser tomada como alguém
que talvez não seja – surge sintomaticamente num
deslocamento psicológico muito significativo! Porque o "eu"
que lhe conferiram não flui de si mesma, Florbela,
intuindo a vala entre o que lhe dizem ser e a incógnita que
para si mesma é, cria, para se designar, um pronome
pessoal que lhe é impessoal: o "tu". E o intervalo entre o
"eu" desconhecido e o "tu" de empréstimo fica
espantosamente delineado num soneto em que busca se
definir, não por acaso denominado "O que tu és...".
Ora, esse mesmo recurso de verrumagem, de
autoconhecimento por meio de um desempenho alheio, o
"tu" na medida em que o uso da máscara privilegia um
espaço entre o que se representa e o que se é –, vai ser
manipulado por Florbela na abordagem dessa figura
inicial que toma de empréstimo: a da "Sóror", a da monja.
Porque assumir uma atribuição oferece, sem dúvida, a
oportunidade de descerrar, desempenhando-a, aquilo que
nela não compactua com o que não se sabia ser. De
maneira que aceitar a identidade de "Sóror Saudade" é,
contraditoriamente, discernir o que nesse molde há ou
não há de si mesma. E trata-se, novamente, do mesmo
esforço de diferenciação e de individuação poética, de um
processo de busca de identidade.
E essa assunção se revela absolutamente prodigiosa!
Por meio dela, Florbela recupera, de um lado, uma porção
Florbela Espanca Poemas XLI
sua que a produção anterior já patenteava: a da
abnegação e do despojamento, resultantes da inversão da
vassalagem amorosa, de que, por exemplo, o soneto "De
joelhos", cuja matriz, que se encontra no manuscrito
Trocando Olhares, e que aparece refundida em Livro de
Mágoas, dava conta:
E se mais que eu, um dia, te quiser
Alguém, bendita seja essa Mulher,
Bendito seja o beijo dessa boca!
Ela consegue reaver, ao mesmo tempo, aquilo que,
no Livro de Mágoas, a dor exibia de emparedamento, de
labiríntico, de convulsivo e solitário, na metáfora, então
incipiente, de convento:
A minha Dor é um convento ideal
Cheio de claustros, sombras, arcarias,
Aonde a pedra em convulsões sombrias
Tem linhas dum requinte escultural.
E sublinho que, não como freira, mas como princesa
– como a "Castelã da Tristeza" –, Florbela lia, em Livro de
Mágoas, "toda de branco, um livro de horas, à sombra
rendilhada dos vitrais...".
Agora no seu segundo livro, vestindo com o título o
hábito e recolhendo-se, então, à cela da "Sóror", ela tem
oportunidade de estabelecer, para a sua poética, o que a
dor encerra de recolhimento, de renúncia, de unção, de
humilhação atualizada e precisa no diapasão semântico
de "hóstia comungada". A partir de tal tonalidade
religiosa, o amor toma a conformação condizente de
martírio, de "calvário", de desistência do mundo, sondado
na imagem do claustro, remodulando e re-significando,
assim, mais um motivo anterior que, aliás, é recorrente
Florbela Espanca Poemas XLII
desde Trocando Olhares: o da "precoce velhice", Já agora,
nos seus arrebatamentos amorosos, tonificados enquanto
êxtases francamente místicos, Florbela, se oferecendo "de
rastros" diante do amado – transfigura-o em..., "Deus:
Princípio e Fim!", ou acolhe-o, então caridosamente,
como a um... irmão, a um amigo, num "fervor de crente"
e de "Irmã compadecida".
Claro está que a inferioridade ou a superioridade
feminina, resultantes desse jogo, se dispõem conforme ela
mobilize o seu caleidoscópio poético... Mas até da
submissão Florbela se prevalece, albergando nela a outra
face do conformismo! Os poemas atestam que é apenas
através dos seus "versos", da sua força, da vontade, dos
seus dotes femininos, enfim, da sua criação literária, que o
amado se capacita a ser... divino, já que é ele quem emana
dela a demiurga! – como "prolongamento"..., poético seu!
Tão-somente por meio do verso de amor que ela lhe oferece,
o amado pode ser "eterno por toda a eternidade...".
É, portanto, a arte poética dessa mulher, revertendo
em bem, em força produtiva, as vicissitudes negativas da
condição feminina – o sofrimento amoroso e a margina-
lidade – que permite a Florbela, como "freira", a
consecução de..., milagres!
Como se observa, o batismo de Sóror Saudade lhe
descerra um privilégio dialético fantástico! Permite que ela
recupere e expanda os traços anteriores da sua poética,
atualizando-os e redimensionando-os segundo a nova
referência semântica, e que explore, dentro desse nome,
aquilo que, como natureza adversa debatendo-se no
interior de uma armadura de empréstimo, a sua
experiência poética em trânsito pode constatar. E o que
Florbela descobre nesse espaço conventual, nesse ritual
poético de iniciação por dentro desse "outro" que é o hábito
Florbela Espanca Poemas XLIII
negro – tão diferente dos claros trajes daquela Princesa do
Livro de Mágoas! – é que a vestição não passa de uma...
"mortalha" e que a experiência amorosa que esta alberga
não é outra senão a da "morte"! De maneira que o patético
soneto em que a Sóror se debate contra a tentação da vida
e da luz de Eros, ditas, indicialmente – "Satanás" –, não por
acaso é o "Renúncia": e nele está uma vez mais cunhado o
mencionado intervalo entre o "eu" e o "tu".
Assim, é no cerne dessa travessia poética por dentro
do burel e da estamenha, dessa interlocução com a
máscara, que Florbela realiza o seu noviciado místico,
cuja aprendizagem jamais a abandonará:
o amor dum homem? - Terra tão pisada,
Gota de chuva ao vento baloiçada...
Um homem? - Quando eu sonho o amor de um Deus!...
Mas a grande e inestimável conquista da passagem
por esse ritual é, sem dúvida alguma, a da pura explosão
do erotismo que, assim testado pelo lado adverso, não só
toma lugar, mas se adensa e eclode, irrompendo
transbordante em Charneca em Flor! Por meio da
contenção exigida pelo corpo atado ao hábito de monja,
essa força latente e pulsante de toda a sua poética
anterior se precipita, se liberta, recuperando no
panteísmo das trovas populares – as suas origens, as
suas raízes literárias! – a necessária imagem da natureza
animizada enquanto corpo e sensualidade próprios. E já
o titulo do último livro o escancara, apontando para o
renascimento que a experiência iniciática da morte por
dentro do burel a conduziu:
E, nesta febre ansiosa que me invade,
Dispo a minha mortalha, o meu burel,
E, já não sou, Amor, Sóror Saudade...
Florbela Espanca Poemas XLIV
Olhos a arder em êxtases de amor,
Boca a saber a sol, a fruto, a mel:
Sou a charneca rude a abrir em flor!
Depois do inverno, do claustro, do negro, da prisão
estereótipo feminino do fiat Maria, Florbela se abre em
espaço sem limites, em pura alegria, em compartilhação
absoluta com a natureza, em "Primavera":
É Primavera agora, meu Amor!
O campo despe a veste de estamenha;
Não há árvore nenhuma que não tenha
O coração aberto, todo em flor!
(...)
Também despi meu triste burel pardo,
E agora cheiro a rosmaninho e a nardo
E ando agora tonta, à tua espera...
Pus rosas cor-de-rosa em meus cabelos...
Parecem um rosal! Vem desprendê-las!
Meu Amor, meu Amor, é Primavera! ...
A mediação da natureza para a inovação do corpo e
do desejo, se, de um lado, não deixa de ser sintoma do
pudor traduzido da convivência com a Sóror, por outro se
impõe como o mais eficaz meio de sedução, mercê do
enviesamento e da insinuação próprios. Mas, enfim, são
esses os ganhos por ter atravessado, poeticamente, os
graus de uma senda feminina; a recompensa por Florbela
ter-se enveredado criticamente nos modelos femininos
oficiais. Ela alcançou, assim, a liberdade e o direito de
abrir ou fechar, segundo o seu próprio alvitre, a sua cela
– atingiu, finalmente, a tão ansiada maioridade poética!
Florbela Espanca Poemas XLV
Pequena biografia de Florbela Espanca
1894 No princípio da madrugada de 8 de dezembro, nasce,
em Vila Viçosa (Alentejo), Florbela d'Alma da
Conceição Espanca, na casa da sua mãe Antónia da
Conceição Lobo, à Rua do Angerino. O pai, o
republicano João Maria Espanca, casado com
Mariana do Carmo Ingleza, providenciará para que a
esposa se torne madrinha de batismo da filha, em
20 de junho de 1895, oferecendo-lhe como padrinho
o amigo Daniel da Silva Barroso.
Embora nos registros da Igreja Nossa Senhora da
Conceição de Vila Viçosa conste Florbela ser "filha
ilegítima de pai incógnito", será a menina criada
pelo pai e pela madrasta desde o nascimento. Igual
procedimento se verá da parte de João Maria para
com Apeles, o único irmão da poetisa, filho da
mesma mãe e do mesmo pai, que vai nascer em 10
de março de 1897. Também como Florbela, Apeles
será registrado "filho ilegítimo de pai incógnito".
1899 Florbela freqüenta a escola primária em Vila Viçosa.
O pai viaja muito, trabalhando, nessa altura, como
antiquário, e já em 1900 torna-se um dos
introdutores do cinematógrafo em Portugal,
projetando, por todo o país, filmes em salas
particulares, graças ao recém-adquirido "Vitascópio
de Edson". A paixão pela fotografia o levará,
Florbela Espanca Poemas XLVI
também, a abrir um estúdio em Évora, o "Photo
Calypolense de J. M. Espanca", despertando na filha
o gosto pelo retrato e elegendo-a o seu modelo
predileto, visto que a iconografia de Florbela
Espanca, sobretudo a da sua lavra, é bastante farta.
João Maria Espanca e o pai de Milburges Ferreira
(a amiga e vizinha Buja, também afilhada de
Mariana Ingleza) serão, como republicanos
ferrenhos, num tempo em que tal era suspeito,
perseguidos ao longo de diversas ocasiões, como
inimigos do regime monárquico.
1903 Data de 11 de novembro o poema ''A vida e a morte",
provavelmente a primeira peça escrita por Florbela, e
a poesia parece ter-se constituído, na infância da
jovem, num meio particular de aproximação com os
outros, espécie de doação generosa de si mesma, de
original presente que ela oferece, sobretudo ao pai e
ao irmão, ambos foco do seu carinho e de toda a sua
atenção.
1908 O rei D. Carlos e o príncipe herdeiro D. Luís Felipe
são, em 1º de fevereiro (dia do aniversário de João
Maria Espanca), assassinados em Lisboa, quando
voltavam do Palácio Ducal de Vila Viçosa (residência
de férias da Coroa), e este é um dos acontecimentos
que vão precipitar a instauração revolucionária da
República em 5 de outubro de 1910.
Florbela ingressa no Liceu de Évora, onde
permanecerá até 1912, de modo que a família
muda-se nesse ano para Évora, a fim de facilitar-
lhe a permanência nos estudos. Ainda em 1908,
falece, em Vila Viçosa, terra natal a que regressara,
Antónia da Conceição Lobo, então com vinte e nove
anos de idade.
Florbela Espanca Poemas XLVII
1913 Florbela batiza, em 8 de maio, o primo Túlio Espanca,
a quem se dedicará sempre com desvelos de assídua
madrinha. Este, recentemente falecido, tornar-se-á
editor de A Cidade de Évora e importante autoridade
nos meios intelectuais portugueses, graças à sua
competência de profundo conhecedor de história da
arte, vogal das Academias Portuguesas de História e
Nacional de Belas Artes, tendo sido encarregado de
elaborar, dentre outras obras, o Inventário Artístico de
Portugal – Distrito de Évora. No dia do seu
aniversário, Florbela casa-se, na Conservadoria do
Registro Civil de Vila Viçosa, com Alberto de Jesus
Silva Moutinho, um ano mais velho que ela, rapaz
que, desde o primário, era seu colega de estudos.
1914 Logo em janeiro, Florbela e o marido vão morar em
Redondo; ali atravessarão um período econômico
difícil, já que se sustentam dos parcos rendimentos
das aulas particulares a alunos de colégio. Por isso,
em setembro de 1915, o jovem casal regressará a
Évora, para viver em casa de João Maria Espanca e
para dar aulas no Colégio de Nossa Senhora da
Conceição. Por essa época, Mariana Ingleza já se
acha doente (ela morrerá em dezembro de 1925), e o
pai de Florbela, sob os olhares complacentes da
mulher, vive livremente na mesma casa com a
empregada Henriqueta de Almeida. João Maria vai
divorciar-se de Mariana em 9 de novembro de 1921 e
casar-se com Henriqueta em 4 de julho de 1922. Em
3 de julho de 1954, João Maria Espanca virá a
falecer, depois de, na Conservadoria do Registro Civil
de Vila Viçosa, ter perfilhado Florbela em 13 de junho
de 1949.
1916 Em meados de abril de 1916, vivendo novamente em
Redondo, Florbela seleciona, dentre a sua produção
Florbela Espanca Poemas XLVIII
poética, cerca de trinta peças produzidas a partir de
10 de maio de 1915, com as quais inaugura o
projeto e o manuscrito Trocando Olhares. Esse
caderno (32,2 x 11cm), contendo capa dura e apre-
sentando quarenta e sete folhas, encontra-se hoje
depositado no seu espólio da Biblioteca Nacional de
Lisboa. Compreende oitenta e oito poemas e três
contos e parece se impor, da maneira como subsiste,
como uma expressiva "oficina literária", acolhendo
projetos poéticos de distintas naturezas, anotações,
refundições de poemas em páginas que, por vezes,
se assemelham a palimpsestos. Prestou-se ele
também como matriz a duas antologias dali
retiradas na altura, como importante foco irradiador
de peças que emigrarão, refundidas, para o Livro de
Mágoas e para o Livro de "Sóror Saudade': e,
enquanto campo temático, como precioso propulsor
para a restante obra de Florbela.
Datam também de 1916 os primeiros esforços da
jovem poetisa para ser publicada, e a sua correspon-
dência com Madame Carvalho, diretora do Suple-
mento "Modas e Bordados" de O Século de Lisboa,
tem início em 8 de janeiro desse ano. Ao longo de
1916, Florbela inicia colaboração no mencionado
Suplemento, em Notícias de Évora e em A Voz
Pública de Évora. Muitos desses poemas, enviados a
Júlia Alves (com quem enceta correspondência a
partir de 16 de junho de 1916 e que se alonga até 5
de abril de 1917), serão recuperados e publicados no
póstumo ]uvenília.
Portugal inicia a sua intervenção na Primeira
Grande Guerra Mundial em 9 de março de 1916, e
Florbela, entusiasmada com essa causa republicana,
começa, a partir de princípio de junho, a se ocupar
Florbela Espanca Poemas XLIX
de um novo projeto poético, o Alma de Portugal em
"homenagem humilíssima à pátria que estremeço",
como o registra a sua correspondência e segundo o
atestam os poemas do referido manuscrito. Logo
após 18 de julho, ela está enviando a Raul Proença,
por meio do pai, que é amigo de Luís Sangreman
Proença (irmão do intelectual republicano), a sua
antologia Primeiros Passos. A apreciação do
importante Conservador da Biblioteca Nacional de
Lisboa, de que Florbela toma conhecimento nos dias
imediatamente anteriores a 12 de agosto, será
fundamental para o auto-reconhecimento do que
produzia então, bem como valiosa para a definição
da sua personalidade poética. O exame do parecer
de Proença demonstra ter sido ele o único crítico
efetivamente competente com quem Florbela deveras
dialogou, acontecimento verdadeiramente isolado
nos minguados horizontes literários da sua
existência. A crer nas únicas duas peças da
correspondência de Florbela com o republicano
(depositadas no espólio de Proença na Biblioteca
Nacional de Lisboa), a interlocução crítica que com
ele manteve deve ter-se alongado pelo menos até
1927 (quando Proença foi exilado em virtude da sua
publicação Primeiro panfleto contra a ditadura
militar), e foi decisiva para o engendramento e
seleção dos sonetos que perfariam o Livro de Mágoas
e, quem sabe, também o Livro de "Sóror Saudade";
visto que nessa obra se acham traços da continuada
epistolografia (o "Prince Charmant..." é a ele
dedicado, tendo sido antes publicado, em 1º de
agosto de 1922, no n. 16 da Seara Nova, revista
literária que se tornou o símbolo da resistência ao
salazarismo e da qual Proença era um dos
fundadores e integrantes do corpo diretivo).
Florbela Espanca Poemas L
Por volta de 28 de julho, Florbela reavalia o seu
manuscrito e elege peças que, ao lado de outras
que comporá, perfarão mais um dos seus projetos
poéticos: O Livro d'Ele.
Em outubro do mesmo ano, a poetisa está de volta
a Évora como explicadora no mesmo Colégio. Por
essa altura, engendra um novo projeto poético,
indicado no manuscrito, apenas pelo título das
duas partes de que se compõe: Minha Terra, Meu
Amor, condensando nele a essência dos
abandonados Alma de Portugal e O Livro d'Ele.
Apenas em novembro retoma o liceu interrompido,
de maneira que concluirá o Curso Complementar de
Letras em 24 de julho de 1917.
1917 Florbela encerra o manuscrito Trocando Olhares em
30 de abril desse ano (quando se dá a mencionada
interlocução com a poética de Américo Durão),
regressando posteriormente a ele para anotações
acerca de uma nova antologia, a Primeiros Versos
(provavelmente destinada à leitura de Raul Proença),
e para rascunhar refundições de poemas presentes
ou não no caderno.
Apeles, que tem dotes artísticos e que pratica
sensivelmente a pintura, está seguindo carreira
oposta em Lisboa: em 19 de agosto, termina o Curso
da Escola Naval, graduando-se aspirante.
Em 9 de outubro, Florbela, vivendo desde setembro
na capital do país, subsidiada pelo pai, matricula-se
na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa,
que abandonará em meados de 1920: dentre os
trezentos e quarenta e sete alunos inscritos, é
apenas de quatorze o número de mulheres.
Conhecerá aí José Schmidt Rau, Américo Durão,
João Botto de Carvalho, por intermédio de Apeles,
Florbela Espanca Poemas LI
que também se aplica em mostrar para a irmã a vida
artística de Lisboa, acompanhando-a na visita a
exposições. Embora Florbela tenha sido colega de
Alfredo Pedro Guisado na Universidade, ligado,
portanto, ao grupo do Orpheu, não há nenhum
indício de que ela tenha tomado conhecimento da
existência do Modernismo em Portugal nem dos seus
mentores, embora a temática da "despersonalização"
atravesse, mas como condição feminina, a sua obra,
que, nesse aspecto da "fragmentação", aparenta-se
sobretudo com a de Mário de Sá-Carneiro.
1918 Em abril, Florbela, que se encontra adoentada, vai
com o marido a Quelfes (Algarve) para repouso,
permanecendo o casal hospedado em Olhão, na
casa de Dorothea Moutinho. A carta que envia dali
a Proença, em 7 de maio, atesta a efabulação do
volume que se tornaria o Livro de Mágoas.
1919 Em junho vem à luz, pela Tipografia Maurício de
Lisboa, o Livro de Mágoas, dedicado ''A meu Pai. Ao
meu melhor amigo" e "À querida Alma irmã da
minha. Ao meu Irmão" e, já em seguida, Florbela
começa a trabalhar num novo projeto que, entre
essa data e pelo menos o final de 1922, terá seu
título oscilando entre Livro do Nosso Amor e
Claustro de Quimeras, conforme o atestam dois
diferentes manuscritos depositados na Biblioteca
Nacional de Lisboa.
Durante toda a fase em Lisboa que, intermiten-
temente, se prolonga até novembro de 1923,
Florbela está sempre em contato com Buja, que ali
reside então, e trabalha como explicadora particular
de português. Data de tal experiência profissional a
amizade com Aurélia Borges que, após sua morte e
por ocasião do moroso affaire, se transformará em
Florbela Espanca Poemas LII
empenhada defensora da causa florbeliana,
publicando, entre outras obras, o Florbela Espanca
e sua obra (1946).
1921 Apeles é graduado guarda-marinha pela Escola
Naval. Em 30 de abril é decretado, em Évora, o
divórcio de Florbela com Moutinho. Em 29 de junho,
Florbela se casa, na Conservadoria do Registro Civil
do Porto, com o alferes de artilharia da Guarda
Republicana, António José Marques Guimarães,
então com vinte e seis anos, e o novo casal vai
residir naquela freguesia, transferindo-se, em março
de 1922, para uma quinta na Amadora e, já em
junho do mesmo ano, para Lisboa.
1922 Apeles, que está em vias de tornar-se segundo-
tenente, presta serviços no cruzador "Carvalho
Araújo", que transporta, de Portugal para o Brasil,
um dos aviões utilizados para a célebre travessia
aérea de Gago Coutinho e Sacadura Cabral.
Corresponde-se assiduamente com a irmã, que
acompanha pelos jornais os acontecimentos e que
conserva fotos da façanha, em algumas das quais
Apeles se acha presente. Também das incursões do
cruzador pela África o irmão lhe dá notícias em
cartas bem humoradas, em que se compromete, por
exemplo, a trazer, das caçadas pelo interior de
Luanda, umas "penas para um chapéu para Bela".
1923 Em janeiro vem a lume pela Tipografia A Americana
de Lisboa o Livro de "Sóror Saudade': refundição dos
dois referidos manuscritos anteriores: as provas
tipográficas do volume se acham depositadas na
Biblioteca Nacional de Lisboa. Também lá se encon-
tram, entre recortes ou apreciações manuscritas de
outrem a respeito da publicação do Livro de Mágoas,
sete peças; a propósito do Livro de "Sóror Saudade"
Florbela Espanca Poemas LIII
outras sete, além de duas outras que atestam
comentários de passagem sobre a sua poesia – que
Florbela conservou. Tal montante certifica, pois, que
ela acompanhou com atenção, recortando e guar-
dando para si, a pífia repercussão das suas obras.
Em novembro, a poetisa se encontra novamente
adoentada e segue para Gonça (Guimarães) a fim de
tratar-se.
1922 A 4 de abril, em Lisboa, António Guimarães entra
com pedido de divórcio contra Florbela, na 6ª Vara
Cível, que será deferido em 23 de junho de 1925. Em
17 de setembro de 1925, António Guimarães se casa
com Rosa de Oliveira Roma Leão e, muito mais
tarde, ele fundará, em Lisboa, uma importante
agência, a de "Recortes", que se aplica em, através
de assinaturas, enviar para os respectivos autores
qualquer matéria publicada que lhes diga respeito.
Não deixa de ser curioso que o espólio pessoal de
António Guimarães se componha do mais
abundante material que sobre Florbela se publicou
desde 1945 até 1981, ano em que faleceu em Lisboa:
são cerca de cento e trinta e três recortes.
1925 Em 15 de outubro, ela se casa, na Repartição do
Registro Civil de Matosinhos (e a 29 do mesmo mês,
na Igreja do Bom Jesus de Matosinhos), com Mário
Pereira Lage, médico que contava então trinta e dois
anos, passando o casal a residir em Esmoriz e
transferindo-se, em junho de 1926, para a casa dos
pais de Lage, em Matosinhos (Porto). Data dessa
época uma foto sua, ao lado de outras senhoras,
numa campanha para angariar fundos para a Cruz
Vermelha.
1926 É publicado o decreto ditatorial, com força de lei, que
dissolve o Congresso da República.
Apeles gradua-se primeiro-tenente da Marinha.
Florbela Espanca Poemas LIV
1927 Durante esse ano, Florbela começa a colaborar no D.
Nuno de Vila Viçosa (cujo diretor é José Emídio
Amaro), e os poemas ali estampados são por ela
indicados como pertença de Charneca em Flor. Inicia
também o seu trabalho de tradutora de romances
franceses para a Civilização do Porto, função que
desempenhará até a morte, e em 15 de maio, numa
carta a José Emídio Amaro, dá notícias do Charneca
em Flor, que diz ter pronto, e de um livro dê contos
que está preparando, provavelmente O Dominó Preto.
Em vôo de treino com o hidroavião Hanriot 33, em 6
de junho, Apeles mergulha no Tejo, diante de Porto
Brandão, cumprindo, presumivelmente, a decisão
que expusera à irmã em carta imediata à morte da
noiva (Maria Augusta Teixeira de Vasconcelos),
ocorrida em dezembro de 1925.
Florbela reage heroicamente pondo-se a produzir
com afinco um livro de contos, à memória dele
dedicado – "A meu Irmão, ao meu querido Morto" –,
o As Máscaras do Destino. Mas, desde então, embora
continue a colaborar no D. Nuno, a escrever poemas
que, provavelmente, já constituem o póstumo
Reliquiae; embora se esforce por fazer publicar o
último livro de contos, e embora permaneça com a
tarefa das traduções – ela se declara quase
permanentemente deprimida, doente dos nervos,
fumando em demasia e emagrecendo sensivelmente.
1930 Inicia a colaboração no recém-fundado Portugal
Feminino com poemas e contos, na revista
Civilização e no Primeiro de Janeiro, ambos do Porto;
desloca-se de quando em vez para Évora ou para
Lisboa, onde participa das reuniões da revista
feminina (e há mesmo uma foto, publicada na altura
Florbela Espanca Poemas LV
pelo Portugal Feminino, que registra esse aconteci-
mento, na qual Florbela se acha presente ao lado de
outras tantas intelectuais e feministas, como Elina
Guimarães, Maria Amélia Teixeira, diretora da
revista, Branca da Gonta Colaço, Ana de Castro
Osório, Alice Ogando, Maria Lamas, Thereza Leitão
de Barros, Laura Chaves e Fernanda de Castro).
O seu Diário do último ano, encetado em 11 de
janeiro, dá conta do estado de solidão em que
Florbela está mergulhada: "O olhar dum bicho
comove-me mais profundamente que um olhar
humano. Há lá dentro uma alma que quer falar e não
pode, princesa encantada por qualquer fada má.
Num grande esforço de compreensão, debruço-me,
mergulho os meus olhos nos olhos do meu cão: tu
que queres? E os olhos respondem-me e eu não
entendo... Ah, ter quatro patas e compreender a
súplica humilde, a angustiosa ansiedade daquele
olhar! Afinal... de que tendes vós orgulho, ó gentes?"
E certamente não é em vão que Florbela se faz
acompanhar, durante esse último percurso, por essa
imagem: não é o cão mitológico o guardião da morte?
Em 18 de junho, dá inicio à correspondência com
Guido Battelli que, entre 18 de novembro até a
última peça, de 5 de dezembro, apenas registra a
sua preocupação pelo aspecto estético e comercial
do Charneca em Flor, que se encontra no prelo, e
pelas provas tipográficas da obra, das quais ela
chega a revisar mais de uma dúzia de folhas.
Seu Diário se encerra em 2 de dezembro com uma
única frase: "e não haver gestos novos nem palavras
novas!" Na passagem de 7 para 8 de dezembro,
Florbela d'Alma da Conceição Espanca suicida-se
em Matosinhos e é enterrada, no mesmo dia 8, no
Florbela Espanca Poemas LVI
Cemitério de Sedim. Seus restos mortais serão, em
17 de maio de 1964, transportados para o Cemitério
de Vila Viçosa, "a terra alentejana a que
entranhadamente quero", como à terra natal tivera
oportunidade de se referir na mencionada carta a
José Emídio Amara, em 15 de maio de 1927.
Florbela Espanca Poemas LVII
Bibliografia de Florbela Espanca26
Livro de Mágoas. Lisboa, Tipografia Maurício, 1919.
Livro de Sóror Saudade. Lisboa, Tipografia A Americana,
1923.
Charneca em Flor. Coimbra, Livraria Gonçalves, 1931.
Charneca em Flor (com 28 sonetos inéditos). Coimbra,
Livraria Gonçalves, 1931.
Cartas de Florbela Espanca (a Dona Júlia Alves e a Guido
Battelli). Coimbra, Livraria Gonçalves, 1931.
As Máscaras do Destino. Porto, Editora Maranus, 1931.
Sonetos Completos (Livro de Mágoas, Livro de Sóror
Saudade, Charneca em Flor, Reliquiae). Coimbra,
Livraria Gonçalves, 1934.
Cartas de Florbela Espanca. Lisboa, Edição dos Autores,
s/d, prefácio de Azinhal Abelho e José Emídio Amaro
(1949).
Diário do Último Ano. Lisboa, Berrrand, 1981, prefácio de
Natália Correia.
O Dominó Preto. Lisboa, Berrrand, 1982, prefácio de Y. K.
Centeno.
26 Arrolo as primeiras edições e em ordem cronológica.
Florbela Espanca Poemas LVIII
Obras completas de Florbela Espanca. Lisboa, Publicações
Dom Quixote, 1985-1986, 8 vols., edição de Rui
Guedes.
Trocando Olhares. Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da
Moeda, 1994; estudo introdutório, estabelecimento de
texto e notas de Maria Lúcia Dal Farra.
Critérios desta edição
Apresento as obras em verso de Florbela Espanca
em ordem cronológica: Trocando Olhares (1915-1917),
Livro de Mágoas (1919), Livro de "Sóror Saudade" (1923),
Charneca em Flor (1931, póstuma) e Reliquiae (1931,
póstuma). Em seguida, conta o leitor com uma "Esparsa
Seleta", ou seja, com uma pequena antologia que elaborei
a partir das peças dispersas da poetisa, também
dispostas cronologicamente, retiradas (a) de Primeiros
Versos, seleção composta por Florbela em 1917, (b) da
publicação de Armando Nobre Gusmão ("Algumas poesias
juvenis de Florbela Espanca" em A Cidade de Évora n.
19/20, janeiro-dezembro de 1962, pp. 235-243),
produção anterior a 1919, (c) de dois manuscritos
autógrafos, depositados na Biblioteca Nacional de Lisboa
(o Claustro das Quimeras e o que tem início com o soneto
"Livro do Nosso Amor"), que redundaram no Livro de
Mágoas, composição anterior a 1923. Também reproduzo
(d) manuscritos autógrafos de propriedade do Grupo
Amigos de Vila Viçosa e dos herdeiros de Ângelo Cesar,
datados de 1930. Do (e) Juvenília, publicado
postumamente por Guido Banelli, apenas um poema foi
eleito, visto que a maioria deles é pertença de Trocando
Olhares, e, nesse caso, trata-se de um soneto incompleto,
provavelmente escrito em 1930.
Florbela Espanca Poemas LX
Os oitenta e oito poemas de Trocando Olhares se
acham aqui transcritos na ordem original que ostentam
no manuscrito autógrafo de igual título, depositado na
Biblioteca Nacional de Lisboa. As datas, quando as há,
acompanham as peças e estas comparecem em textos-
base27. Para a reprodução das restantes obras, valho-me
das respectivas primeiras edições do Livro de Mágoas
(Lisboa, Tipografia Maurício, 1919), do Livro de "Sóror
Saudade" (Lisboa, Tipografia A Americana, 1923), de
Charneca em Flor (Coimbra, Livraria Gonçalves, 1931).
Para Reliquiae, foi tomada a edição de Charneca em Flor
(com vinte e oito sonetos inéditos, Coimbra, Livraria
Gonçalves, 1931) e ainda, para o caso dos cinco sonetos
acrescidos a essa recolha póstuma ("Pobrezinha', "Roseira
Brava', "Navios-Fantasmas", "O Meu Soneto" e "Nihil
Novum", cuja ordem altero), a edição de 1934 de
Charneca em Flor (Coimbra, Livraria Gonçalves, 1934).
Quanto às obras acionadas para a "Esparsa Seleta',
são elas o livro de António da Costa Leão, Poetas do Sul -
Bernardo de Passos e Florbela Espanca (Lisboa,
Portugália, s/d), no que concerne à antologia Primeiros
Versos; o citado artigo de Armando Nobre Gusmão (A
Cidade de Évora n. 45/46, Évora, janeiro-dezembro de
1962/1963, pp. 235-243) e a primeira edição do Juvenília
(Coimbra, Livraria Gonçalves, 1931). Para os restantes
poemas do último ano de vida da poetisa, já referi os
espólios de que me valho.
Por outro lado, busco registrar os títulos dos
poemas segundo comparecem nos originais – e, quando
27 Remeto o leitor interessado ao meu já citado Florbela Espanca, Trocando
Olhares, onde estampo as variações posteriormente perpetradas sobre os
poemas e as refundições que sofreram a partir desse original, cogito sobre a
viabilidade de existência dos projetos poéticos ali delineados e também discuto
as antologias que, a partir desse manuscrito, Florbela elaborou.
Florbela Espanca Poemas LXI
inexistentes, nos índices das respectivas primeiras
edições onde ficam distinguidos por maiúsculas e
minúsculas, pois que tal discriminação é importante na
obra de Florbela, já que ela se vale, na maioria das vezes,
da maiusculização simbolista.
TROCANDO OLHARES
(1915-1917) (*)
(*) Toda a numeração ente parênteses que acompanha as peças não é da
lavra de Florbela. Atribuí-as aos respectivos poemas para discernir os
títulos repetidos ou para ordenar um ciclo de poemas, como é o caso dos
finais. De resto, a disposição do poema na página obedece apenas às
necessidades internas desta edição.
Dedicatória
E só teu o meu livro: guarda-o bem;
Nele floresce o nosso casto amor
Nascido nesse dia em que o destino
Uniu o teu olhar à minha dor!
Florbela Espanca Poemas 4
As Quadras Dele (I)
Saudades e amarguras
Tenho eu todos os dias,
Não podem pois adejar
Em meus versos, alegrias.
Saudades e amarguras
Tenho eu todas as horas,
Quem noites só conheceu,
Não pode cantar auroras.
*
Se é um pecado sonhar
Tenho um pecado na vida,
Peço a Deus por tal pecado
A penitência merecida.
Quando o meu sonho morrer
(Que penitência tão dura!)
Vai encontrar em teu peito
Carinhosa sepultura.
*
Florbela Espanca Poemas 5
Onde estás ó meu amor,
Que te não vejo apar'cer?
Para que quero eu os olhos
Se não servem pra te ver?
Que m'importa a luz suave
Dos olhos que o mundo tem?
Não posso ver os teus olhos
Não quero ver os de ninguém.
*
Tens um coração de pedra
Dentro dum peito de lama
Pois nem sabes distinguir
Quem te odeia ou quem te ama.
Por uma vez que te despreza,
Teu coração endoicece;
E a pobre que te quer bem
Só teus desprezos merece!
*
Desde que o meu bem partiu
Parecem outras as cousas;
Até as pedras da rua
Têm aspectos de lousas!
Quando por acaso as piso,
Perturba-me um tal mistério!...
Como se pisasse à noite
As pedras dum cemitério...
*
Florbela Espanca Poemas 6
Teus olhos têm uma cor
Duma expressão tão divina,
Tão misteriosa, tão triste,
Como foi a minha sina.
É uma expressão de saudade
Vogando num mar incerto.
Parecem negros de longe,
Parecem azuis de perto.
Mas nem negros nem azuis
São teus olhos, meu amor,
Seriam da cor da mágoa
Se a mágoa tivesse cor!
*
Nem o perfume dos cravos,
Nem a cor das violetas,
Nem o brilho das estrelas,
Nem o sonhar dos poetas,
Pode igualar a beleza
Da primorosa flor,
Que abre na tua boca
O teu riso encantador.
*
Levanta os olhos do chão,
Olha de frente pra mim
Fingindo tanto desprezo,
Que podes ganhar assim?
Florbela Espanca Poemas 7
Não andes tão distraído,
Contando as pedras da rua,
Não sei pra que finges tanto...
Tu és meu e eu sou tua...
Levanta os olhos do chão,
Que podes ganhar assim?
Se Deus nos fez um pro outro,
Para que foges de mim?
*
Coveiros, sombrios, desgrenhados,
Fazei-me depressa a cova,
Quero enterrar minha dor
Quero enterrar-me assim nova.
Coveiros, só o corpo é novo,
Que há poucos anos nasceu;
Fazei-me depressa a cova
Que a minha alma morreu.
*
Amar a quem nos despreza
É sina que a gente tem;
Eu desprezo quem m'odeia,
E adoro quem me quer bem.
*
Ai, tirem-me o coração
Que o tenho todo desfeito!
Cada pedaço um punhal
Que trago dentro do peito.
*
Florbela Espanca Poemas 8
Eu quero viver contigo
Muito juntinhos os dois
O tempo que dura um beijo,
Embora eu morra depois.
*
Meu coração é ruína
Caindo todo a pedaços,
Oh, dá-lhe a hera piedosa
Bendita desses teus braços!
*
Quando fito o teu olhar
Tão frio e tão indiferente,
Fico a chorar um amor
Que o teu coração não sente.
*
O fado não é da terra,
O fado criou-o Deus,
O fado é andar doidinha
Perdida p'los olhos teus.
*
Esmaguei meu coração
Para o triste te esquecer,
Mas ao sentir os teus passos,
Põe-se a bater... a bater...
*
Andam pombas assustadas
No teu olhar, adejando,
Mal sentem os meus olhos,
Batem as asas, voando.
*
Florbela Espanca Poemas 9
Há sonhos que ao enterrar-se,
Levam dentro do caixão,
Bocados da nossa alma,
Pedaços de coração!
*
Andam sonhos cor do mar
Nas minhas quadras, imersos,
Se queres comigo sonhar,
Canta baixinho os meus versos.
12/2/1916
Florbela Espanca Poemas 10
Cantigas Leva-as o Vento...
A lembrança dos teus beijos
Inda na minh'alma existe,
Como um perfume perdido,
Nas folhas dum livro triste.
Perfume tão esquisito
E de tal suavidade,
Que mesmo desapar'cido
Revive numa saudade!
1/1/1916
Florbela Espanca Poemas 11
Num Postal
Luar! lírio branco que se esfolha...
Neve, que do céu anda perdida,
Asas leves d'anjo, que pairando,
Reza pela terra adormecida...
Florbela Espanca Poemas 12
Sonhos...
Sonhei que era a tua amante querida,
A tua amante feliz e invejada;
Sonhei que tinha uma casita branca
À beira dum regato edificada...
Tu vinhas ver-me misteriosamente,
A horas mortas quando a terra é monge
Que reza. Eu sentia, doidamente,
Bater o coração quando de longe
Te ouvia os passos. E anelante,
Estava nos teus braços num instante,
Fitando com amor os olhos teus!
E, vê tu, meu encanto, a doce mágoa:
Acordei com os olhos rasos d'água,
Ouvindo a tua voz um longo adeus.
6/2/1916
Florbela Espanca Poemas 13
No Minho
Casitas brancas do Minho
Onde guardam os tesouros,
As fadas d'olhos azuis
E lindos cabelos loiros.
Filtros de beijos em flor,
Corações de namoradas,
Nas casas brancas do Minho
Guardam ciosas as fadas.
I0/5/1915
Florbela Espanca Poemas 14
A Doida
A Noite passa, noivando.
Caem ondas de luar.
Lá passa a doida cantando
Num suspiro doce e brando
Que mais parece chorar!
Dizem que foi pela morte
D'alguém, que muito lhe quis,
Que endoideceu. Triste sorte!
Que dor tão triste e tão forte!
Como um doido é infeliz!
Desde que ela endoideceu,
(Que triste vida, que mágoa!)
Pobrezinha, olhando o céu,
Chama o noivo que morreu,
Com os olhos rasos d'água!
Florbela Espanca Poemas 15
E a noite passa, noivando.
Passa noivando o luar:
"Num suspiro doce e brando,
Podre doida vai cantando
Que esse teu canto, é chorar!"
12/12/1915
Florbela Espanca Poemas 16
Poetas
Ai as almas dos poetas
Não as entende ninguém;
São almas de violetas
Que são poetas também.
Andam perdidas na vida,
Como as estrelas no ar;
Sentem o vento gemer
Ouvem as rosas chorar!
Só quem embala no peito
Dores amargas e secretas
É que em noite de luar
Pode entender os poetas
E eu que arrasto amarguras
Que nunca arrastou ninguém
Tenho alma pra sentir
A dos poetas também!
8/1/1916
Florbela Espanca Poemas 17
Desafio
Ela
Ó luar que lindo és,
Luar branco de Janeiro!
Não há luar como tu,
Nem amor como o primeiro.
Ele
Deixa-me rir, ó Maria!
Qual é pra ti o primeiro?!
Chamas o mesmo ao segundo,
Chamas o mesmo ao terceiro!
Ela
O que Deus disse uma vez
Na minh'alma já é velho;
Vai pedir ao Senhor Cura
Que o leia no Evangelho!
......................................
Florbela Espanca Poemas 18
Uma voz ouve-se ao longe
Que sobe alto, desgarrada:
"Por muito amar, Madalena,
No céu serás perdoada!"
12/12/1915
Florbela Espanca Poemas 19
O Teu Olhar
Quando fito o teu olhar,
Duma tristeza fatal,
Dum tão íntimo sonhar,
Penso logo no luar
Bendito de Portugal!
O mesmo tom de tristeza,
O mesmo vago sonhar,
Que me traz a alma presa
Às festas da Natureza
E à doce luz desse olhar!
Se algum dia, por meu mal,
A doce luz me faltar
Desse teu olhar ideal,
Não se esqueça Portugal
De dizer ao seu luar
Florbela Espanca Poemas 20
Que à noite, me vá depor
Na campa em que eu dormitar,
Essa tristeza, essa dor,
Essa amargura, esse amor,
Que eu lia no teu olhar!
8/1/1916
Florbela Espanca Poemas 21
Crisântemos
Sombrios mensageiros das violetas,
De longas e revoltas cabeleiras;
Brancos, sois o casto olhar das virgens
Pálidas que ao luar, sonham nas eiras.
Vermelhos, gargalhadas triunfantes,
Lábios quentes de sonhos e desejos,
Carícias sensuais d'amor e gozo;
Crisântemos de sangue, vós sois beijos!
Os amarelos riem amarguras,
Os roxos dizem prantos e torturas,
Há-os também cor de fogo, sensuais...
Eu amo os crisântemos misteriosos
Por serem lindos, tristes e mimosos,
Por ser a flor de que tu gostas mais!
21/11/I915
Florbela Espanca Poemas 22
Que diferença!...
Quando passas a meu lado,
E que olhas para mim,
Tornas-te da cor da rosa,
E eu da cor do jasmim.
Vê tu que expressões dif'erentes
Da nossa mesma ansiedade:
A cor da rosa é despeito,
A palidez é saudade!
21/1/1916
Florbela Espanca Poemas 23
Os Teus Olhos
O céu azul, não era
Dessa cor, antigamente;
Era branco como um lírio,
Ou como estrela cadente.
Um dia, fez Deus uns olhos
Tão azuis como esses teus,
Que olharam admirados
A taça branca dos céus.
Quando sentiu esse olhar:
"Que doçura, que primor!"
Disse o céu, e ciumento,
Tornou-se da mesma cor!
21/1/1916
Florbela Espanca Poemas 24
Doce Milagre
O dia chora. Agonizo
Com ele meu doce amor.
Nem a sombra dum sorriso,
Na Natureza diviso,
A dar-lhe vida e frescor!
A triste bruma, pesada,
Parece, detrás da serra
Fina renda, esfarrapada,
De Malines, desdobrada
Em mil voltas pela terra!
As avezitas, coitadas,
'Squeceram hoje o cantar.
As flores pendem, fanadas
Nas finas hastes, cansadas
De tanto e tanto chorar...
Florbela Espanca Poemas 25
O dia parece um réu.
Bate a chuva nas vidraças.
É tudo um imenso véu.
Nem a terra nem o céu
Se distingue. Mas tu passas...
...E o sol doirado aparece.
O dia é uma gargalhada.
A Natureza endoidece
A cantar. Tudo enternece
A minh'alma angustiada!
Rasgam-se todos os véus
As flores abrem, sorrindo.
Pois se eu vejo os olhos teus
A fitarem-se nos meus,
Não há de tudo ser lindo?!
Se eles são prodigiosos
Esses teus olhos suaves!
Basta fitá-los, mimosos,
Em dias assim chuvosos,
Para ouvir cantar as aves!
A Natureza, zangada,
Não quer os dias risonhos?...
Tu passas... e uma alvorada
Pra mim abre perfumada,
Enche-me o peito de sonhos!
6/2/1916
Florbela Espanca Poemas 26
Folhas de Rosa
Todas as prendas que me deste, um dia,
Guardei-as, meu encanto, quase a medo,
E quando a noite espreita o pôr-do-sol,
Eu vou falar com elas em segredo...
E falo-lhes d’amores e de ilusões,
Choro e rio com elas, mansamente...
Pouco a pouco o perfume do outrora
Flutua em volta delas, docemente...
Pelo copinho de cristal e prata
Bebo uma saudade estranha e vaga,
Uma saudade imensa e infinita
Que, triste, me deslumbra e m’embriaga
O espelho de prata cinzelada,
A doce oferta que eu amava tanto,
Que refletia outrora tantos risos,
E agora reflete apenas pranto,
Florbela Espanca Poemas 27
E o colar de pedras preciosas,
De lágrimas e estrelas constelado,
Resumem em seus brilhos o que tenho
De vago e de feliz no meu passado...
Mas de todas as prendas, a mais rara,
Aquela que mais fala à fantasia,
São as folhas daquela rosa branca
Que a meus pés desfolhaste, aquele dia...
18/1/1916
Florbela Espanca Poemas 28
Dantes...
Quando ia passear contigo ao campo,
Tu ias sempre a rir e a cantar;
E lembra-me até uma cotovia
Que um dia se calou pra te escutar,
Enquanto eu apanhava os malmequeres
Que nos cumprimentavam da estrada,
Que, depois esfolhavas, impiedoso,
Na eterna pergunta: muito ou nada?
Tu beijavas as f'ridas carminadas
Que, em meus dedos, faziam os espinhos
Das rosas que coravam, vergonhosas,
Zangadas, de nos ver assim sozinhos.
Fitávamos as nuvens do espaço.
Que imensas! que bonitas e que estranhas!
E ficávamos horas a pensar
Se seriam castelos ou montanhas...
Florbela Espanca Poemas 29
Que adoráveis canções de mimo e graça
Os teus lábios proferiam a cantar!
Tão mimosas, que as relvas da campina
Ficavam pensativas a sonhar...
As fontes murmuravam docemente,
Os teus beijos cantavam namorados;
Cintilavam as pedras do caminho,
Sorriam as flores pelos valados...
A hora sonhadora do poente
Tinham maiores palpitações os ninhos.
Lembras-te? Íamos lavar as mãos,
Vermelhas das amoras dos caminhos.
Eu brincava a correr atrás de ti;
Uma sombra perseguindo um clarão...
E no seio da noite, os nossos passos
Pareciam encher de sol a 'scuridão!
Olhando tanta estrela, tu dizias:
Olha a chuva de prata que nos cobre!
Depois, numa expressão amarga e branda
Recitavas, chorando, António Nobre!...
Eu tinha medo, um medo atroz infindo
De passear pelos campos a tal hora,
Mas, olhando os teus olhos cintilantes,
A noite semelhava uma aurora!
Florbela Espanca Poemas 30
E já passaram esses áureos tempos,
E já fugiu a nossa mocidade!...
Mas quando penso nesses dias lindos,
Que tortura, minh'alma e que saudade!
18/1/1916
Florbela Espanca Poemas 31
As Quadras Dele (II)
Digo pra mim quando oiço
O teu lindo riso franco,
"São seus lábios espalhando,
As folhas dum lírio branco..."
*
Perguntei às violetas
Se não tinham coração,
Se o tinham, porque 'scondidas
Na folhagem sempre estão?!
Responderam-me a chorar,
Com voz de quem muito amou:
Sabeis que dor os desfez,
Ou que traição os gelou?
*
Meu coração, inundado
Pela luz do teu olhar,
Dorme quieto como um lírio,
Banhado pelo luar.
*
Florbela Espanca Poemas 32
Quando o ouvido vier
Teu amor amortalhar,
Quero a minha triste vida,
Na mesma cova, enterrar.
*
Eu sei que me tens amor,
Bem o leio no teu olhar,
O amor quando é sentido
Não se pode disfarçar.
Os olhos são indiscretos;
Revelam tudo que sentem,
Podem mentir os teus lábios,
Os olhos, esses, não mentem.
*
Bendita seja a desgraça,
Bendita a fatalidade,
Bendito sejam teus olhos
Onde anda a minha saudade.
Não há amor neste mundo
Como o que eu sinto por ti,
Que me ofertou a desgraça
No momento em que te vi.
*
O teu grande amor por mim,
Durou, no teu coração,
O espaço duma manhã,
Como a rosa da canção.
*
Florbela Espanca Poemas 33
Quando falas, dizem todos:
Tem uma voz que é um encanto
Só falando, faz perder
Todo juízo a um santo.
*
Enquanto eu longe de ti
Ando, perdida de zelos,
Afogam-se outros olhares
Nas ondas dos teus cabelos.
*
Dizem-me que te não queira
Que tens, nos olhos, traição.
Ai, ensinem-me a maneira
De dar leis ao coração!
*
Tanto ódio e tanto amor
Na minha alma contenho;
Mas o ódio inda é maior
Que o doido amor que te tenho.
Odeio teu doce sorriso,
Odeio teu lindo olhar,
E ainda mais a minh'alma
Por tanto e tanto te amar!
*
Quando o teu olhar infindo
Poisa no meu, quase a medo,
Temo que alguém adivinhe
O nosso casto segredo.
Florbela Espanca Poemas 34
Logo minh'alma descansa;
Por saber que nunca alguém
Pode imaginar o fogo
Que o teu frio olhar contém.
*
Quem na vida tem amores
Não pode viver contente,
É sempre triste o olhar
Daquele que muito sente.
*
Adivinhar o mistério
Da tua alma quem me dera!
Tens nos olhos o outono,
Nos lábios a primavera...
Enquanto teus lábios cantam
Canções feitas de luar,
Soluça cheio de mágoa
O teu misterioso olhar...
Com tanta contradição,
O que é que a tua alma sente?
És alegre como a aurora,
E triste como um poente...
Desabafa no meu peito
Essa amargura tão louca,
Que é tortura nos teus olhos
E riso na tua boca!
*
Florbela Espanca Poemas 35
Os teus dentes pequeninos
Na tua boca mimosa,
São pedacitos de neve
Dentro de um cálix de rosa.
*
O lindo azul do céu
E a amargura infinita
Casaram. Deles nasceu
A tua boca bendita!
16/2/1916
Florbela Espanca Poemas 36
Junquilhos...
Nessa tarde mimosa de saudade
Em que eu te vi partir, ó meu amor,
Levaste-me a minh'alma apaixonada
Nas folhas perfumadas duma flor.
E como a alma, dessa florzita,
Que é a minha, por ti palpita amante!
Oh alma doce, pequenina e branca,
Conserva o teu perfume estonteante!
Quando fores velha, emurchecida e triste,
Recorda ao meu amor, com teu perfume
A paixão que deixou e qu'inda existe...
Ai, dize-lhe que se lembre dessa tarde,
Que venha aquecer-se ao brando lume
Dos meus olhos que morrem de saudade!
17/2/1916
Florbela Espanca Poemas 37
O Fado
Corre a noite, de manso num murmúrio,
Abre a rosa bendita do luar...
Soluçam ais estranhos de guitarra...
Oiço, ao longe, não sei que voz chorar...
Há um repoiso imenso em toda a terra,
Parece a própria noite a escutar...
E o canto continua mais profundo
Que uma página sentida de Mozart!
É o fado. A canção das violetas:
Almas de tristes, almas de poetas,
Pra quem a vida foi uma agonia!
Minha doce canção dos deserdados,
Meu fado que alivias desgraçados,
Bendito sejas tu! Ave Maria!...
28/2/1916
Florbela Espanca Poemas 38
Verdades Cruéis
Acreditar em mulheres
É coisa que ninguém faz;
Tudo quanto amor constrói
A inconstância desfaz.
Hoje amam, amanhã 'squecem,
Ora dores, ora alegrias;
E o seu eternamente
Dura sempre uns oito dias!...
28/2/1916
Florbela Espanca Poemas 39
[Li Um Dia, Não Sei Onde](*)
Li um dia, não sei onde,
Que em todos os namorados
Uns amam muito, e os outros
Contentam-se em ser amados.
Fico a cismar pensativa
Neste mistério encantado...
Digo pra mim: de nós dois
Que ama e quem é amado?...
28/2/1916
(*) Poema sem título no original
Florbela Espanca Poemas 40
As Quadras Dele (III)
Há em tudo quanto fitas
Pureza igual à dos céus,
Até são belos meus olhos
Porque lá poisam os teus!
*
Que filtro embriagante
Me deste tu a beber?
Até me esqueço de mim
E não te posso esquecer!...
*
Está tudo quanto olho
Na 'scuridão mais intensa,
Faltou de teus olhos lindos
A luz profunda e imensa...
*
Viver sozinha no mundo
É a minha triste sorte.
Ai quem me dera trocá-la
Embora fosse p'la morte!
*
Florbela Espanca Poemas 41
Teus lábios cor das papoilas,
Vermelhos como o carmim,
Não são lábios nem papoilas
São pedaços de cetim.
*
Quando um peito amargurado
Adora seja quem for,
Por muito infame que seja
Bendito seja esse amor!
*
Tenho por ti uma paixão
Tão forte e acrisolada,
Que até adoro a saudade
Quando por ti é causada.
*
A vezes quando anoitece
Cai em meu peito tal mágoa!...
Quero cantar. E num instante
Sinto os olhos rasos d'água!
*
Quando me não quiseres mais
Mata-me por piedade!
Deixares-me a vida, sem ti
É bem maior crueldade!
*
Queria ser a erva humilde
Que pisasses algum dia,
Pra debaixo de teus pés
Morrer em doce agonia.
*
Florbela Espanca Poemas 42
Há beijos na tua boca
Pode colhê-los quem quer.
Só eu não posso. Vê tu
Que desgraçada mulher!
*
Quem me dera um coração
Que por mim bata somente...
Dai-me essa esmola, Senhor,
Para que eu morra contente!
*
Há no fado das vielas
Notas tão sentimentais,
Tão delicadas, tão belas,
Que não s'esquecem jamais!
*
Andam teus olhos de luto;
Sempre eles de negro andaram,
Pelas feridas que fizeram,
Pelas mortes que causaram.
*
Olhos negros, noite infinda
Sede meu norte, meu guia,
Ó noite escura e bendita
Sê o meu sol, o meu dia!
*
Gosto imenso dumas flores
Muito escuras, quase pretas,
Modestas, lindas graciosas
Que se chamam violetas.
Florbela Espanca Poemas 43
Por isso quando eu morrer,
Em prova do teu amor
Inunda de violetas
O caixão aonde eu for.
*
Não sei que têm meus versos;
Alegres quero fazê-los
Mas ficam-me sempre tristes
Como a cor dos teus cabelos.
Florbela Espanca Poemas 44
Carta Para Longe
O tempo vai um encanto,
A primavera está linda,
Voltaram as andorinhas...
E tu não voltaste ainda!...
Por que me fazes sofrer?
Por que te demoras tanto?
A primavera 'stá linda...
O tempo vai um encanto...
Tu não sabes, meu amor,
Que, quem 'spera, desespera?
O tempo está um encanto...
E vai linda a primavera...
Há imensas andorinhas;
Cobrem a terra e o céu!
Elas voltaram aos ninhos.
Volta também para o teu!...
Florbela Espanca Poemas 45
Adeus. Saudades do sol,
Da madressilva, e da hera;
Respeitosos cumprimentos
Do tempo e da primavera.
Mil beijos da tua qu'rida;
Que é tua por toda a vida.
1/3/1916
Florbela Espanca Poemas 46
Triste Passeio
Vou pela estrada, sozinha.
Não me acompanha ninguém.
Num atalho, em voz mansinha:
"Como está ele? Está bem?"
É a toutinegra curiosa;
Há em mim um doce enleio...
Nisto pergunta uma rosa:
"Então ele? Inda não veio?"
Sinto-me triste, doente...
E nem me deixam esquecê-lo!...
Nisto o sol impertinente:
"Sou um fio do seu cabelo..."
Ainda bem. É noitinha.
Enfim já posso pensar!
Ai, já me deixam sozinha!
De repente, oiço o luar:
Florbela Espanca Poemas 47
"Que imensa mágoa me invade,
Que dor o meu peito sente!
Tenho uma enorme saudade
De ver o teu doce ausente!"
Volto a casa. Que tristeza!
Inda é maior minha dor...
Vem depressa. A natureza
Só fala de ti, amor!
1/3/1916
Florbela Espanca Poemas 48
Mentiras
''Ai quem me dera uma feliz mentira, Que
fosse uma verdade para mim!"
J. Dantas
Tu julgas que eu não sei que tu me mentes
Quando o teu doce olhar poisa no meu?
Pois julgas que eu não sei o que tu sentes?
Qual a imagem que alberga o peito teu?
Ai, se o sei, meu amor! Eu bem distingo
O bom sonho da feroz realidade...
Não palpita d'amor, um coração
Que anda vogando em ondas de saudade!
Embora mintas bem, não te acredito;
Perpassa nos teus olhos desleais,
O gelo do teu peito de granito...
Mas finjo-me enganada, meu encanto,
Que um engano feliz vale bem mais
Que um desengano que nos custa tanto!
10/3/1916
Florbela Espanca Poemas 49
Cemitérios
Cemitério da minha terra,
Paredes a branquejar;
Que bom será lá dormir
Um bom sonho sem sonhar!...
De manhã, muito cedinho
Dormir de leve, embalada
P'las canções das raparigas
Que gentis passam na 'strada...
Cantem mais devagarinho,
Mais baixinho, camponesas,
Que os vossos cantos pareçam
Tristes preces, doces rezas...
À noitinha, ao sol posto
Ouvindo as Ave-Marias!
Meu Deus, que suavidade!
Que paz de todos os dias!
Florbela Espanca Poemas 50
Os murmúrios dos ciprestes
São doces canções aladas,
Serenatas de paixão
Às almas enamoradas!
O luar imaculado
Em noites puras, serenas,
É um rio, que vai fazendo
Florir as açucenas...
Canta triste o rouxinol
Beijam-se lindos uns goivos,
E no fundo duma campa
Dormem felizes uns noivos...
Dum túmulo a outro se fala:
"Por que morreste tão nova?
Por que tão cedo vieste
Dormir numa fria cova?"
"Eu era infeliz na terra,
Ninguém me compreendia,
Quando a minh'alma chorava
Todos pensavam que eu ria..."
"E tu tão triste e tão linda,
Com olhos de quem chorou?"
"Eu tive um amor na vida
Que por outra me deixou!"
Florbela Espanca Poemas 51
"E tu?" "Sozinha no mundo
Nunca tive o que outros têm:
Pai, mãe ou um namorado...
Morri por não ter ninguém!..."
Uma diz: "Chorava um filho
Que é uma dor sem piedade",
Outra diz num vago enleio:
"Eu cá, morri de saudade!"
De todas as campas sai
Um choro que é um mistério
É então que os vivos sentem
As vozes do cemitério...
... Vão-se calando os soluços...
E as pobres mortas de dor
Vão dormindo, acalentando
Uns sonhos brancos d'amor...
Invejo estes doces sonhos
Neste terreno funéreo.
Ai quem me dera dormir
No meu lindo cemitério!
10/3/1916
Florbela Espanca Poemas 52
A Mulher
I
Um ente de paixão e sacrifício,
De sofrimentos cheio, eis a mulher!
Esmaga o coração dentro do peito,
E nem te doas coração, sequer!
Sê forte, corajoso, não fraquejes
Na luta; sê em Vênus sempre Marte;
Sempre o mundo é vil e infame e os homens
Se te sentem gemer hão de pisar-te!
Se às vezes tu fraquejas, pobrezinho,
Essa brancura ideal de puro arminho
Eles deixam pra sempre maculada;
E gritam então os vis: "olhem, vejam
É aquela a infame!" e apedrejam
A pobrezita, a triste, a desgraçada!
Florbela Espanca Poemas 53
A Mulher
II
Ó Mulher! Como és fraca e como és forte!
Como sabes ser doce e desgraçada!
Como sabes fingir quando em teu peito
A tua alma se estorce amargurada!
Quantas morrem saudosas duma imagem
Adorada que amaram doidamente!
Quantas e quantas almas endoidecem
Enquanto a boca ri alegremente!
Quanta paixão e amor às vezes têm
Sem nunca o confessarem a ninguém
Doces almas de dor e sofrimento!
Paixão que faria a felicidade
Dum rei; amor de sonho e de saudade,
Que se esvai e que foge num lamento!
13/3/1916
Florbela Espanca Poemas 54
No Hospital
A Theá
Na vasta enfermaria ela repoisa
Tão branca como a orla do lençol.
Gorjeia a sua voz ternos queixumes,
Como no bosque à noite o rouxinol.
É delicada e triste. O seu corpito
Tem o perfume casto da verbena.
Não são mais brancas as magnólias brancas
Que a sua boca tão branca e tão pequena!
Oiço dizer: Seu rosto faz sonhar!
Serão pétalas de rosa ou de luar?
Talvez a neve que chorou o inverno...
Mas vendo-a assim tão branca, penso eu:
É um astro cansado, que do céu
Veio repoisar nas trevas dum inferno!
1/3/1916
Florbela Espanca Poemas 55
Os Meus Versos
Leste os meus versos? Leste? E adivinhaste
O encanto supremo que os ditou?
Acaso, quando os leste, imaginaste
Que era o teu esse olhar que os inspirou?
Adivinhaste? Eu não posso acreditar
Que adivinhasses, vês? E até, sorrindo,
Tu disseste pra ti: "Por um olhar
Somente, embora fosse assim tão lindo,
Ficar amando um homem!... Que loucura!"
− Pois foi o teu olhar, a noite escura,
(eu só a ti o digo, e muito a medo...)
Que inspirou esses versos! Teu olhar
Que eu trago dentro d'alma a soluçar!
........................................................
Ai não descubras nunca o meu segredo!
8/4/1916
Florbela Espanca Poemas 56
As Quadras Dele (IV)
Sou mais infeliz que os pobres
Que têm fome na rua.
Também eu ando faminta
De beijos da boca tua.
*
A saudade é tão cruel,
É uma tão profunda dor,
Que em troca eu quisera o fel
Que bebeu Nosso Senhor!
*
A tristeza mais amarga,
A mais negra, a mais tristonha,
Dantes, morava em teus olhos
De luz bendita e risonha.
Dava-se mal a tristeza
Com essa luz d'alegria,
Mudou-se então pros meus olhos
Que choram de noite e dia.
*
Florbela Espanca Poemas 57
Há uma palavra na terra
Que tem encanto do céu;
Não é amor, nem esperança,
Nem sequer o nome teu.
Essa palavra tão doce,
De tanta suavidade,
Que me faz chorar de dor
Quando a murmuro: é saudade!
*
Amor, é comunhão d'almas
No mesmo sagrado altar;
Contigo, amor da minh'alma,
Quem me dera comungar!
*
Não julgues tu que m'importo
Quando passas sem me olhar;
Lembra-me logo o ditado:
"Quem desdenha, quer comprar!"
*
Parte a minh'alma em pedaços
E atira-os pelo mundo fora;
Pequenas almas que sentem,
Como a grande sente agora!
Chega para encher o mundo
O céu, a terra, os espaços,
Estas almas pequeninas,
Estes pequenos pedaços!
Florbela Espanca Poemas 58
Mesmo assim sendo tão grande
Esta alma, ó sonhos meus!
É pequena pra conter
O fulgor dos olhos teus!
*
Abaixo sempre os meus olhos
Quando encontro o teu olhar;
De ver o sol de frente
Ninguém se pode gabar!
*
Meu fado, meu doce amigo
Meu grande consolador
Eu quero ouvir-te rezar,
Orações à minha dor!
Só no silêncio da noite
Vibrando perturbador,
Quantas almas não consolas
Nessa toada d'amor!
Cantado p'r uma voz pura
Eu quero ouvir-te também
P'r uma voz que me recorde
A doce voz do meu bem!
Pela calada da noite
Quando o luar é dolente
Eu quero ouvir essa voz
Docemente... docemente...
16/4/1916
Florbela Espanca Poemas 59
Aos Olhos Dele
Não acredito em nada. As minhas crenças
Voaram como voa a pomba mansa;
Pelo azul do ar. E assim fugiram
As minhas doces crenças de criança.
Fiquei então sem fé; e a toda a gente
Eu digo sempre, embora magoada:
Não acredito em Deus e a Virgem Santa
É uma ilusão apenas e mais nada!
Mas avisto os teus olhos, meu amor,
Duma luz suavíssima de dor...
E grito então ao ver esses dois céus:
Eu creio, sim, eu creio na Virgem Santa
Que criou esse brilho que m'encanta!
Eu creio, sim, creio, eu creio em Deus!
17/4/1916
Florbela Espanca Poemas 60
Súplica (I)
Digo pra mim
Quando ele passa:
Ave Maria
Cheia de graça!
E quando ainda
Mal posso vê-lo:
Bendito Deus
Como ele é belo! (1)
(1) Entre este e o próximo poema, folhar foram arrancadas ao
manuscrito autógrafo. É de supor, portanto, que este "Súplica"
esteja incompleto.
Florbela Espanca Poemas 61
Embalada num sonho aurifulgente
Sei apenas que sonho vagamente,
Ao avistar, amor, teus olhos belos,
Em castelãs altivas, medievais,
Que choram às janelas ogivais,
Perdidas em românticos castelos! (2)
25/4/1916
(2) Trata-se presumivelmente de um soneto cujos dois quartetos
pertenciam à folha anterior do manuscrito, que nele não se
encontra, pelo menos da maneira como este se acha depositado na
Biblioteca Nacional de Lisboa.
Florbela Espanca Poemas 62
Mistério D'Amor
Um mistério que eu trago dentro em mim
Ajuda-me, minha'alma a descobrir...
É um mistério de sonho e de luar
Que ora me faz chorar, ora sorrir!
Vivemos tanto tempo tão amigos!
E sem que o teu olhar puro toldasse
A pureza do meu. E sem que um beijo
As nossas bocas rubras desfolhasse!
Mas um dia, uma tarde... houve um fulgor
Um olhar que brilhou... e mansamente...
Ai dize ó meu encanto, meu amor:
Por que foi que somente nessa tarde
Nos olhamos assim tão docemente
Num grande olhar d'amor e de saudade?!
25/4/1916
Florbela Espanca Poemas 63
Escreve-me...
Escreve-me! ainda que seja só
Uma palavra, uma palavra apenas,
Suave como o teu nome e casta
Como um perfume casto d'açucenas!
Escreve-me! Há tanto, há tanto tempo
que te não vejo, amor! Meu coração
Morreu, já e no mundo aos pobres mortos
Ninguém nega uma frase d'oração
"Amo-te! cinco letras pequeninas,
Folhas leves e tenras de boninas,
Um poema d'amor e felicidade"
Não queres mandar-me esta palavra apenas?
Olha, manda então... brandas... serenas...
Cinco pétalas roxas de saudade...
27/4/1916
Florbela Espanca Poemas 64
O Meu Alentejo (3)
Meio-dia. O sol a prumo cai ardente,
Doirando tudo... Ondeiam nos trigais
D'oiro fulvo, de leve... docemente...
As papoilas sangrentas, sensuais...
Andam asas no ar; e raparigas,
Flores desabrochadas em canteiros,
Mostram, por entre o oiro das espigas,
Os perfis delicados e trigueiros...
Tudo é tranqüilo, e casto, e sonhador...
Olhando esta paisagem que é uma tela
De Deus, eu penso então: Onde há pintor,
Onde há artista de saber profundo,
que possa imaginar coisa mais bela,
Mais delicada e linda neste mundo?!
11/5/1916
(3) Observe-se a refundição definitiva deste soneto em "Alentejano"
do Livro de "Sóror Saudade".
Florbela Espanca Poemas 65
A Voz de Deus
Ó rosas que baixais as castas frontes
Quando, à tarde, vos beija o sol poente,
Dizei-me que murmúrios vos segreda
O sol que vos beija docemente?...
Ó Luar cristalino e abençoado
Por que entristeces tu em noites belas
Quando chora baixinho o rouxinol
Um choro só ouvido p'las estrelas!...
Mistério das coisas! Em tudo existe
Um coração que sente e que palpita
Desde o sol rubro até à urze triste!
Ó mistério das coisas! Voz de Deus
Em tudo eternamente sê bendita
Na terra imensa assim como nos céus!
11/5/1916
Florbela Espanca Poemas 66
Paisagem
Uns bezerritos bebem lentamente
Na tranqüila levada do moinho.
Perpassa nos seus olhos, vagamente,
A sombra duma alma cor do linho!
Junto deles um par. Naturalmente
Namorados ou noivos. De mansinho
Soltam frases d'amor... e docemente
Uma criança canta no caminho!
Um trecho de paisagem campesina,
Uma tela suave, pequenina,
Um pedaço de terra sem igual!
Oh, abre-me em teu seio a sepultura,
Minha terra d'amor e de ventura,
Ó meu amado e lindo Portugal!
17/5/1916
Florbela Espanca Poemas 67
Filhos
À Exma Srª D. Glória Lomba
Filhos são as nossas almas,
Desabrochadas em flores;
Filhos, estrelas caídas
No fundo das nossas dores!
Filhos, aves que chilreiam
No ninho do nosso amor,
Mensageiros da felicidade
Mandados pelo senhor!
Filhos, sonhos adorados,
Beijos que nascem de risos;
Sol que aquenta e dá luz
E se desfaz em sorrisos!
Em todo o peito bendito
Criado pelo bom Deus,
Há uma alma de mãe
Que sofre p'los filhos seus!
Florbela Espanca Poemas 68
Filhos! Na su'alma casta,
A nossa alma revive…
Eu sofro pelas saudades
Dos filhos que nunca tive!…
17/5/1916
Florbela Espanca Poemas 69
As Mães de Portugal
Ó mães doloridas, celestiais,
misericordiosas,
Ó mães d'olhos benditos, liriais,
Ó mães piedosas
Calai as vossas mágoas, vossas dores!
Longe na crua guerra
Vossos filhos defendem, vencedores,
A nossa linda terra!
E se eles defendem a bandeira
Da terra que adorais,
Onde viram um dia a luz primeira
Ó mães, por que chorais?!
Uma lágrima triste, agora é
Cobardia, fraqueza!
Nos campos de batalha cai de pé
A alma portuguesa!
Florbela Espanca Poemas 70
Pela terra de estrela e tomilhos,
De sol, e de luar,
Deixai ir combater os vossos filhos
Ao longe, heróis do mar!
Dum português bendito, sem igual
Eu sigo o mesmo trilho:
Por cada pedra deste Portugal
Eu arriscava um filho!
Por isso ó mãe doloridas, pelo leito
De morte, onde ajoelhais,
Esmagai vossa dor dentro do peito
Ó mães não choreis mais!
A pátria rouba os filhos, mas é mãe
A mãe de todos nós
Direito de a trair não tem ninguém
Ó mães nem sequer vós!
19/5/1916
Florbela Espanca Poemas 71
Doce Certeza
Por essa vida fora hás de adorar
Lindas mulheres, talvez; em ânsia louca,
Em infinito anseio hás de beijar
Estrelas d'oiro fulgindo em muita boca!
Hás de guardar em cofre perfumado
Cabelos d'oiro e risos de mulher,
Muito beijo d'amor apaixonado;
E não te lembrarás de mim sequer!...
Hás de tecer uns sonhos delicados...
Hão de por muitos olhos magoados,
Os teus olhos de luz andar imersos!...
Mas nunca encontrarás p'la vida fora,
Amor assim como este amor que chora
Neste beijo d'amor que são meus versos!...
6/6/1916
Florbela Espanca Poemas 72
O Teu Segredo
O mundo diz-te alegre porque o riso
Desabrocha em tua boca, docemente
Como uma flor de luz! Meigo sorriso
Que na tua boca poisa alegremente!
Chama-te o mundo alegre. Ai, meu amor,
Só eu inda li bem nessa alegria!…
Também parece alegre a triste cor
Do sol, à tarde, ao despedir-se o dia!…
És triste; eu sei. Toda suavidade
Tão roxa, como é roxa uma saudade
É a tua alma, amor, cheia de mágoa.
Eu sei que és triste, sei. O meu olhar
Descobriu o segredo, que a cantar
Repoisa nos teus olhos rasos d’água!…
6/6/1916
Florbela Espanca Poemas 73
Sonho Morto
Nosso sonho morreu. Devagarinho,
Rezemos uma prece doce e triste
Por alma desse sonho! Vá… baixinho…
Por esse sonho, amor, que não existe!
Vamos encher-lhe o seu caixão dolente
De roxas violetas; triste cor!
Triste como ele, nascido ao sol poente,
O nosso sonho… ai!… reza baixo… amor…
Foste tu que o mataste! E foi sorrindo,
Foi sorrindo e cantando alegremente,
Que tu mataste o nosso sonho lindo!
Nosso sonho morreu… Reza mansinho…
Ai, talvez que rezando, docemente,
O nosso sonho acorde… mais baixinho…
8/6/1916
Florbela Espanca Poemas 74
Súplica (II)
Olha pra mim, amor, olha pra mim;
Meus olhos andam doidos por te olhar!
Cega-me com o brilho de teus olhos
Que cega ando eu há muito por te amar.
O meu colo é arminho imaculado
Duma brancura casta que entontece;
Tua linda cabeça loira e bela
Deita em meu colo, deita e adormece!
Tenho um manto real de negras trevas
Feito de fios brilhantes d'astros belos
Pisa o manto real de negras trevas
Faz alcatifa, oh faz, de meus cabelos!
Os meus braços são brancos como o linho
Quando os cerro de leve, docemente…
Oh! Deixa-me prender-te e enlear-te
Nessa cadeia assim eternamente! …
Florbela Espanca Poemas 75
Vem para mim, amor… Ai não desprezes
A minha adoração de escrava louca!
Só te peço que deixes exalar
Meu último suspiro na tua boca!…
Florbela Espanca Poemas 76
Sonhando...
É noite pura e linda. Abro a minha janela
E olho suspirando o infinito céu,
Fico a sonhar de leve em muita coisa bela
Fico a pensar em ti e neste amor que é teu!
D’olhos fechados sonho. A noite é uma elegia
Cantando brandamente um sonho todo d’alma
E enquanto a lua branca o linho bom desfia
Eu sinto almas passar na noite linda e calma.
Lá vem a tua agora… Numa carreira louca
Tão perto que passou, tão perto à minha boca
Nessa carreira doida, estranha e caprichosa,
Que a minh’alma cativa estremece, esvoaça
Para seguir a tua, como a folha de rosa
Segue a brisa que a beija… E a tua alma passa!…
Florbela Espanca Poemas 77
Noites da Minha Terra
Anda o luar espalhando fios de prata
Pelos campos fora… Lírios a flux
Lança o azul do céu… e a terra grata
Transforma em mil perfumes toda a luz!
As estrelas cadentes vão ’spalhando
Lírios brancos também… agora a terra
Parece noiva linda, que sonhando
Caminha pró altar, além na serra…
É meia-noite agora. Tudo quieto
Na noite branda, dorme… Entreaberto
Vai esfolhando o lírio do luar
As alvas folhas, que cobrindo o céu,
E todo o mar e toda a terra, um véu
Branco, de noiva, lembra a palpitar!…
17/6/1916
Florbela Espanca Poemas 78
Vozes do Mar
Quando o sol vai caindo sobre as águas
Num nervoso delíquio d’oiro intenso,
Donde vem essa voz cheia de mágoas
Com que falas à terra, ó mar imenso?…
Tu falas de festins, e cavalgadas
De cavaleiros errantes ao luar?
Falas de caravelas encantadas
Que dormem em teu seio a soluçar?
Tens cantos d’epopéias? Tens anseios
D’amarguras? Tu tens também receios,
Ó mar cheio de esperança e majestade?!
Donde vem essa voz, ó mar amigo?…
… Talvez a voz do Portugal antigo,
Chamando por Camões numa saudade!
17/6/1916
Florbela Espanca Poemas 79
Cravos Vermelhos
Bocas rubras de chama a palpitar,
Onde fostes buscar a cor, o tom,
Esse perfume doido a esvoaçar,
Esse perfume capitoso e bom?!
Sois volúpias em flor! Ó gargalhadas
Doidas de luz, ó almas feitas risos!
Donde vem essa cor, ó desvairadas,
Lindas flores d'esculturais sorrisos?!
... Bem sei vosso segredo... Um rouxinol
Que vos viu nascer, ó flores do mal
Disse-me agora: "Uma manhã, o sol,
O sol vermelho e quente como estriga
De fogo, o sol do céu de Portugal
Beijou a boca a uma rapariga..."
17/6/1916
Florbela Espanca Poemas 80
Saudade
És a filha dileta da noss'alma
Da noss'alma de sonho e de tristeza,
Andas de roxo sempre, sempre calma
Doce filha da gente portuguesa!
Em toda a terra do meu Portugal
Te sinto e vejo, toda suavidade
Como nas folhas tristes dum missal
Se sente Deus! E tu és Deus, saudade!…
Andas nos olhos negros, magoados
Das frescas raparigas, Namorados
Conhecem-te também, meu doce ralo!
Também te trago n'alma dentro em mim,
E trazendo-te sempre, sempre assim,
É bem a pátria qu'rida que eu embalo!
17/6/1916
Florbela Espanca Poemas 81
Visões da Febre
Doente. Sinto-me com febre e com delírio
Enche-se o quarto de fantasmas. 'Ma visão
Desenha-se ante mim tão branca como um lírio
Debruça-se de leve… Estranha aparição!
É uma mulher de sonho e suavidade
Como a doce magnólia florindo ao sol poente
E disse-me baixinho: "Eu chamo-me Saudade
E venho para levar-te o coração doente!
Não sofrerás mais; serás fria como o gelo;
Neste mundo de infâmia o que é que importa sê-lo
Nunca tu chorarás por tudo mais que vejas!"
E abriu-me o meu seio; tirou-me o coração,
Despedaçado já sem 'ma palpitação,
Beijou-me e disse "adeus!" E eu: "bendita sejas!"
Florbela Espanca Poemas 82
Oração
Ó Deus, senhor da terra, omnipotente,
Senhor do vasto mar! Senhor do céu!
Atentei esta prece humilde e crente,
Ouvi-me por piedade, Senhor meu!
Olhai por todos que amam sua terra,
Guiai aqueles que amam Portugal
Protegei os que andam pela guerra
A defender o seu torrão natal!
Lançai o vosso olhar de piedade
Por todos os que arrastam 'ma saudade
Pela pátria distante, muito além!…
Consolai, ó meu Deus, os orfãozinhos,
As mães, as noivas e os que têm ninhos
Despedaçados pela guerra. Amém.
19/6/1916
Florbela Espanca Poemas 83
A Guerra
Fala o canhão. Estala o riso da metralha
Os clarins muito ao longe tocam a reunir.
O Deus da guerra ri nos campos de batalha
E tu, ó Pátria, ergues-te a sorrir!
Vestes alva cota bordada e rosicleres,
Desfraldas a bandeira rubra dos combates,
Levas no heróico seio a alma das mulheres,
E ergue-se contigo a alma de teus vates!
Levanta-se do túmulo a voz dos teus heróis,
Cintila em tua fronte o brilho desses sóis,
Até o próprio mar t’incita a combater!
Nun’Alvares arranca a espada de glória,
E diz-te em voz serena: "Em busca da vitória
Meu belo Portugal, combate até morrer!"
20/6/1916
Florbela Espanca Poemas 84
Meu Portugal
Meu Portugal querido, minha terra
De risos e quimeras e canções
Tens dentro em ti,esse teu peito encerra,
Tudo que faz bater os corações!
Tens o fado. A Canção triste e bendita
Que todos cantam pela vida fora;
O fado que dá vida e que palpita
Na calma da guitarra onde mora!
Tu tens também a embriagues suave
Dos campos, da paisagem ao sol poente,
E esse sol é como um canto d'ave
Que expira à beira-mar, suavemente…
Tu tens, ó pátria minha, as raparigas
Mais frescas, mais gentis do orbe imenso,
Tens os beijos, os risos, as cantigas
De seus lábios de sangue!… Às vezes, penso
Florbela Espanca Poemas 85
Que tu és, pátria minha, branca fada
Boa e linda que Deus sonhou um dia,
Para lançar no mundo, ó pátria amada
A beleza eterna, a arte, a poesia!…
19/6/1916
Florbela Espanca Poemas 86
Desejo
Quero-te ao pé de mim na hora de morrer.
Quero, ao partir, levar-te, todo suavidade,
Ó doce olhar de sonho, ó vida dum viver
Amortalhado sempre à luz duma saudade!
Quero-te junto a mim quando o meu rosto branco
Se ungir da palidez sinistra do não ser,
E quero ainda, amor, no meu supremo arranco
Sentir junto ao meu seio teu coração bater!
Que seja a tua mão tão branda como a neve
Que feche o meu olhar numa carícia leve
Num perpassar de pétala de lis…
Que seja a tua boca rubra como o sangue
Que feche a minha boca, a minha boca exangue!…
……………………………………...........................….
Ah, venha a morte já que eu morrerei feliz!…
20/6/1916
Florbela Espanca Poemas 87
Anseios
À minha Júlia
Meu doido coração aonde vais,
No teu imenso anseio de liberdade?
Toma cautela com a realidade;
Meu pobre coração olha que cais!
Deixa-te estar quietinho! Não amais
A doce quietação da soledade?
Tuas lindas quimeras irreais,
Não valem o prazer duma saudade!
Tu chamas ao meu seio, negra prisão!…
Ai, vê lá bem, ó doido coração,
Não te deslumbre o brilho do luar!
Não 'stendas tuas asas para o longe…
Deixa-te estar quietinho, triste monge,
Na paz da tua cela, a soluçar!…
26/6/1916
Florbela Espanca Poemas 88
O Espectro
Anda um triste fantasma atrás de mim
Segue-me os passos sempre! Aonde eu for,
Lá vai comigo… E é sempre, sempre assim
Como um fiel cão seguindo o seu Senhor!
Tem o verde dos sonhos transcendentes,
A ternura bem roxa das verbenas,
A ironia purpúrea dos poentes,
E tem também a cor das minhas penas!
Ri sempre quando eu choro, e se me deito,
Lá vai ele deitar-se ao pé do leito,
Embora eu lhe suplique: "Faz-me a graça
De me deixares nessa hora ser feliz!
Deixa-me em paz!…" Mas ele, sempre diz:
"Não te posso deixar, sou a Desgraça!"
28/6/1916
Florbela Espanca Poemas 89
Confissão
Aborreço-te muito. Em ti há qualquer cousa
De frio e de gelado, de pérfido e cruel,
Como um orvalho frio no tampo duma lousa,
Como em doirada taça algum amargo fel.
Odeio-te também. O teu olhar ideal
O teu perfil suave, a tua boca linda,
São belas expressões de todo o humano mal
Que inunda o mar e o céu e toda a terra infinda.
Desprezo-te também. Quando te ris e falas,
Eu fico-me a pensar no mal que tu calas
Dizendo que me queres em íntimo fervor!
Odeio-te e desprezo-te. Aqui toda a minh'alma
Confessa-to a rir, muito serena e calma!
……………………………………………………..
Ah, como eu te adoro, como eu te quero, amor!
3/7/1916
Florbela Espanca Poemas 90
Poder da Graça
Altiva e perfumada em cetinoso trem
Passeio uma mundana à luz da tarde quente,
O seu olhar gelado onde se lê desdém
Passeia pela rua, altivo e insolente.
Para ninguém abaixa o orgulhoso olhar;
Passa o luxo da alta em luminoso traço;
Parece não ouvir da rua o murmurar,
Que seu olhar altivo é sempre triste e baço.
Nem o rir da criança ou o sorrir da luz
Dão vida àquela sombra altiva que seduz
A multidão absorta em roda, a murmurar…
Uma mendiga passa. É 'ma beleza ideal!
Nasceu do seu olhar o céu de Portugal!
…………………………....................……..
Abaixa então a rica o luminoso olhar!
8/7/1916
Florbela Espanca Poemas 91
Aonde?...
Ando a chamar por ti, demente, alucinada,
Aonde estás, amor? Aonde… aonde… aonde?…
O eco ao pé de mim segreda… desgraçada…
E só a voz do eco, irônica, responde!
Estendo os braços meus! Chamo por ti ainda!
O vento, aos meus ouvidos, soluça a murmurar;
Parece a tua voz, a tua voz tão linda
Cantando como um rio banhado de luar!
Eu grito a minha dor, a minha dor intensa!
Esta saudade enorme, esta saudade imensa!
E só a voz do eco à minha voz responde…
Em gritos, a chorar, soluço o nome teu
E grito ao mar, à terra, ao puro azul do céu:
Aonde estás, amor? Aonde… aonde… aonde?…
8/7/1916
Florbela Espanca Poemas 92
Quem Sabe?!...
Eu sigo-te e tu foges. É este o meu destino:
Beber o fel amargo em luminosa taça,
Chorar amargamente um beijo teu, divino,
E rir olhando o vulto altivo da desgraça!
Tu foges-me, e eu sigo o teu olhar bendito;
Por mais que fujas sempre, um sonho há de alcançar-te
Se um sonho pode andar por todo o infinito,
De que serve fugir se um sonho há de encontrar-te?!
Demais, nem eu talvez, perceba se o amor
É este perseguir de raiva, de furor,
Com que eu te sigo assim como os rafeiros leais.
Ou se é então a fuga eterna, misteriosa,
Com que me foges sempre, ó noite tenebrosa!
…………………….......................………………..
Por me fugires, sim, talvez me queiras mais!
8/7/1916
Florbela Espanca Poemas 93
Nunca Mais!
Ó castos sonhos meus! Ó mágicas visões!
Quimeras cor de sol de fúlgidos lampejos!
Dolentes devaneios! Cetíneas ilusões!
Bocas que foram minhas florescendo beijos!
Vinde beijar-me a fronte ao menos um instante,
Que eu sinta esse calor, esse perfume terno;
Vivo a chorar a porta aonde outrora o Dante
Deixou toda a esp'rança ao penetrar o inferno!
Vinde sorrir-me ainda! Hei de morrer contente
Cantando uma canção alegre, doidamente,
A luz desse sorriso, ó fugitivos ais!
Vinde beijar-me a boca ungir-me de saudade
Ó sonhos cor de sol da minha mocidade!
Cala-te lá destino!… "Ó Nunca, nunca mais!…"
8/7/1916
Florbela Espanca Poemas 94
Triste Destino!
Quando às vezes o mar soluça tristemente
A praia abre-lhe os braços e deixa-o a gemer;
Embala-o com amor, de leve, docemente,
E canta-lhe cantigas pra o adormecer!
Quando o outono leva a folha rendilhada,
O vestido real da branda primavera,
O rio abre-lhe os braços e leva amortalhada
A pequenina folha, essa ideal quimera!
O sol, agonizante e quase moribundo,
Estende os braços nus, alegre, para o mundo
Que o faz amortalhar em púrpura de lenda!
O sol, a folha, o mar tudo é feliz! Mas eu
Busco a mortalha minha até no alto céu!
E nem a cruz pra mim tem braços que m'estenda!
8/7/1916
Florbela Espanca Poemas 95
Humildade
Toda a terra que pisas, eu qu’ria, ajoelhada,
Beijar terna e humilde em lânguido fervor;
Qu’ria poisar fervente a boca apaixonada
Em cada passo teu, ó meu bendito amor!
De cada beijo meu, havia de nascer
Uma sangrenta flor! Ébria de luz, ardente!
No colo purpurino havia de trazer
Desfeito no perfume o mist'rioso Oriente!
Qu’ria depois colher essas flores reais,
Essas flores de sonho, estranhas, sensuais,
E lançar-tas aos pés em perfumados molhos.
Bem paga ficaria, ó meu cruel amante!
Se, sobre elas, eu visse apenas um instante
Cair como um orvalho os teus divinos olhos!
I2/7/1916
Florbela Espanca Poemas 96
Oração de Joelhos (4)
Bendita seja a mãe que te gerou!
Bendito o leite que te fez crescer!
Bendito o berço aonde te embalou
A tua ama pra te adormecer!
Bendito seja o brilho do luar
Da noite em que nasceste tão suave,
Que deu essa candura ao teu olhar
E à tua voz esse gorjeio d'ave!
Benditos sejam todos que te amarem!
Os que em volta de ti ajoelharem
Numa grande paixão, fervente, louca!
E se mais, que eu, um dia te quiser
Alguém, bendita seja essa mulher!
Bendito seja o beijo dessa boca!
12/7/1916
(4) Remeto o leitor para a versão definitiva deste soneto, intitulada
"De Joelhos", em Livro de Mágoas.
Florbela Espanca Poemas 97
Aos Olhos D'Ele
É noite de luar casto e divino...
Tudo é brancura, tudo é castidade…
Parece que Jesus, doce bambino,
Anda pisando as ruas da cidade…
E eu que penso na suavidade
Do tempo que não volta, que não passa,
Olho o luar, chorando de saudade
De teus olhos claros cheios de graça!…
Oceanos de luz que procurando
O seu leito d’amor, andam sonhando
Por esta noite linda de luar…
Talvez o perfumado, o brando leito
Que procurais, ó olhos, no meu peito
Esteja à vossa espera a soluçar…
18/7/1916
Florbela Espanca Poemas 98
Desdém
Andas dum lado pro outro
Pela rua passeando;
Finges que não queres ver
Mas sempre me vais olhando.
É um olhar fugidio,
Olhar que dura um instante,
Mas deixa um rasto d'estrelas
O doce olhar saltitante…
É esse rasto bendito
Que atraiçoa o teu olhar,
Pois é tão leve e fugaz
Que eu nem o sinto passar!
Quem tem uns olhos assim
E quer fingir o desdém,
Não pode nem um instante
Olhar os olhos d'alguém…
Florbela Espanca Poemas 99
Por isso vai caminhando…
E se queres a muita gente
Demonstrar que me desprezas
Olha os meus olhos de frente!…
18/7/1916
Florbela Espanca Poemas 100
Rústica
Eu qu’ria ser camponesa;
Ir esperar-te à tardinha
Quando é doce a Natureza
No silêncio da devesa,
E só voltar à noitinha…
Levar o cântaro à fonte
Deixá-lo devagarinho,
E correndo pela ponte
Que fica detrás do monte
Ir encontrar-te sozinho…
E depois quando o luar
Andasse pelas estradas,
D'olhos cheios do teu olhar
Eu voltaria a sonhar,
P'los caminhos de mãos dadas.
Florbela Espanca Poemas 101
E depois se toda a gente
Perguntasse: "Que encarnada,
Rapariga! Estás doente?"
Eu diria: "É do poente,
Que assim me fez encarnada!"
E fitando ao longe a ponte,
Com meu olhar cheio do teu,
Diria a sorrir pro monte:
"O cant’ro ficou na fonte
Mas os beijos trouxe-os eu…"
18/7/1916
Florbela Espanca Poemas 102
?!...
Se as tuas mãos divinas folhearem
As páginas de luto uma por uma
Deste meu livro humilde; se poisarem
Esses teus claros olhos como espuma
Nos meus versos d'amor, se docemente
Tua boca os beijar, lendo-os, um dia;
Se o teu sorrir pairar suavemente
Nessas palavras minhas d'agonia,
Repara e vê! Sob essas mãos benditas,
Sob esses olhos teus, sob essa boca,
Hão de pairar carícias infinitas!
Eu atirei minh'alma como um rito
Às trevas desse livro, assim, ó louca!
A noite atira sóis ao infinito!...
21/7/1916
Florbela Espanca Poemas 103
Súplica (III)
A prece que eu murmuro, a soluçar
Ao Deus todo bondade e todo amor,
É rezada de rastos no altar
Onde a tristeza reza com a dor!
A minha boca reza-a comovida,
Chora-a meus olhos, beija-a o meu peito,
Sonha-a minh’alma sempre enternecida
Ao ver-te rir, ó meu Amor Perfeito...
Que o Deus do céu atenda a minha prece,
Embora eu saiba nesta desventura
Que Deus só ouve aquele que o merece!
Mas vou pedindo ao Deus de piedade,
Que te conceda anos de ventura,
Como dias a mim de inf’licidade!…
21/7/1916
Florbela Espanca Poemas 104
A Anto!
Poeta da saudade, ó meu poeta qu'rido
Que a morte arrebatou em seu sorrir fatal,
Ao escrever o "Só" pensaste enternecido
Que era o mais triste livro deste Portugal,
Pensaste nos que liam esse teu Missal,
Tua Bíblia de dor, teu chorar sentido
Temeste que esse altar pudesse fazer mal
Aos que comungam nele a soluçar contigo!
Ó Anto! Eu adoro os teus estranhos versos,
Soluços que eu uni e que senti dispersos
Por todo o livro triste! Achei teu coração…
Amo-te como não te quis nunca ninguém,
Como se eu fosse, ó Anto, a tua própria mãe
Beijando-te já frio no fundo do caixão!
21/7/1916
Florbela Espanca Poemas 105
Escuta...
A Beatriz Carvalho
Escuta, amor, escuta a voz que ao teu ouvido
Te canta uma canção na rua em que morei,
Essa soturna voz há de contar-te, amigo
Por essa rua minha os sonhos que sonhei!
Fala d’amor a voz em tom enternecido,
Escuta-a com bondade. O muito que te amei
Anda pairando aí em sonho comovido
A envolver-te em oiro!… Assim s’envolve um rei!
Num ninho de saudade e doce como a asa
Recorta-se no céu a minha humilde casa
Onde ficou minh’alma assim como penada
A arrastar grilhões como um fantasma triste.
É dela a voz que fala, é dela a voz que existe
Na rua em que morei… Anda crucificada!
2I/7/I9I6
Florbela Espanca Poemas 106
Talvez...
A esta hora branda d’amargura,
A esta hora triste em que o luar
Anda chorando, Ó minha desventura
Onde estás tu? Onde anda o teu olhar?
A noite é calma e triste… a murmurar
Anda o vento, de leve, na doçura
Ideal do aveludado ar
Onde estrelas palpitam… Noite escura
Dize-me onde ele está o meu amor,
Onde o vosso luar o vai beijar,
Onde as vossas estrelas co'o fulgor
Do seu brilho de fogo o vão cobrir!
Dize-me onde ele está!… Talvez a olhar
A mesma noite linda a refulgir…
29/7/1916
Florbela Espanca Poemas 107
Sol Posto
Sol posto. O sino ao longe dá Trindades.
Nas ravinas do monte andam cantando
As cigarras dolentes… E saudades
Nos atalhos parecem dormitando…
É esta a hora em que a suave imagem
Do bem que já foi nosso nos tortura
O coração no peito, em que a paisagem
Nos faz chorar de dor e d’amargura…
É a hora também em que cantando
As andorinhas vão p’lo meio das ruas
Para os ninhos, contentes, chilreando…
Quem me dera também, amor, que fosse
Esta a hora de todas a mais doce
Em que eu unisse as minhas mãos às tuas!…
29/7/1916
Florbela Espanca Poemas 108
Estrela Cadente
Traço de luz… lá vai! lá vai! morreu.
Do nosso amor me lembra a suavidade…
Da estrela não ficou nada no céu
Do nosso sonho em ti nem a saudade!
Pra onde iria a ’strela? Flor fugida
Ao ramalhete atado no infinito…
Que ilusão seguiria entontecida
A linda estrela de fulgir bendito?…
Aonde iria, aonde iria a flor?
(Talvez, quem sabe?… ai quem soubesse, amor!)
Se tu o vires minha bendita estrela
Alguma noite… Deves conhecê-lo!
Falo-te tanto nele!… Pois ao vê-lo
Dize-lhe assim: "Por que não pensas nela?"
29/7/1916
Florbela Espanca Poemas 109
Versos
Versos! Versos! Sei lá o que são versos…
Pedaços de sorriso, branca espuma,
Gargalhadas de luz, cantos dispersos,
Ou pétalas que caem uma a uma.
Versos!… Sei lá! Um verso é teu olhar,
Um verso é teu sorriso e os de Dante
Eram o seu amor a soluçar
Aos pés da sua estremecida amante!
Meus versos!… Sei eu lá também que são…
Sei lá! Sei lá!… Meu pobre coração
Partido em mil pedaços são talvez…
Versos! Versos! Sei lá o que são versos...
Meus soluços de dor que andam dispersos
Por este grande amor em que não crês!…
29/7/1916
Florbela Espanca Poemas 110
Duas Quadras
Não sei se tens reparado
Quando passeia, o luar
Pára sempre à tua porta
E encosta-se a chorar:
E eu que passo também
Na minha mágoa a cismar
Para junto dele, e ficamos
Abraçados a chorar!
8/8/1916
Florbela Espanca Poemas 111
Baladas
Amei-te muito, e eu creio que me quiseste
Também por um instante nesse dia
Em que tão docemente me disseste
Que amavas ‘ma mulher que o não sabia.
Amei-te muito, muito!Tão risonho
Aquele dia foi, aquela tarde!…
E morreu como morre todo o sonho
Deixando atrás de si só a saudade! …
E na taça do amor, a ambrosia
Da quimera bebi aquele dia
A tragos bons, profundos, a cantar…
Pra que morreste, ó sonho?! Desgraçada!...
……………………………........................…
E como o rei de Thule da balada
Deitei também a minha taça ao mar…
9/8/1916
Florbela Espanca Poemas 112
"Noite Trágica"
O pavor e a angústia andam dançando…
Um sino grita endechas de poentes…
Na meia-noite d´hoje, soluçando,
Que presságios sinistros e dolentes!…
Tenho medo da noite!… Padre nosso
Que estais no céu… O que minh'alma teme!
Tenho medo da noite!… Que alvoroço
Anda nesta alma enquanto o sino geme!
Jesus! Jesus, que noite imensa e triste
A quanta dor a nossa dor resiste
Em noite assim que a própria Dor parece…
Ó noite imensa, ó noite do Calvário,
Leva contigo envolto no sudário
Da tua dor a dor que me não 'squece!
10/8/1916
Florbela Espanca Poemas 113
Sonhos
Ter um sonho, um sonho lindo,
Noite branda de luar,
Que se sonhasse a sorrir…
Que se sonhasse a chorar…
Ter um sonho, que nos fosse
A vida, a luz, o alento,
Que ao sonhar beijasse doce
A nossa boca… um lamento…
Ser pra nós o guia, o norte,
Na vida o único trilho;
E depois ver vir a morte
Despedaçar esses laços!…
… É pior que ter um filho
Que nos morresse nos braços!
12/10/1916
Florbela Espanca Poemas 114
Vulcões
Tudo é frio e gelado. O gume dum punhal
Não tem a lividez sinistra da montanha
Quando a noite a inunda dum manto sem igual
De neve branca e fria onde o luar se banha.
No entanto que fogo, que lavas, a montanha
Oculta no seu seio de lividez fatal!
Tudo é quente lá dentro… e que paixão tamanha
A fria neve envolve em seu vestido ideal!
No gelo da indiferença ocultam-se as paixões
Como no gelo frio do cume da montanha
Se oculta a lava quente do seio dos vulcões…
Assim quando eu te falo alegre, friamente,
Sem um tremor de voz, mal sabes tu que estranha
Paixão palpita e ruge em mim doida e fremente!
4/5/1916
Florbela Espanca Poemas 115
Errante
Meu coração da cor dos rubros vinhos
Rasga a mortalha do meu peito brando
E vai fugindo, e tonto vai andando
A perder-se nas brumas dos caminhos.
Meu coração é místico profeta,
O paladino audaz da desventura,
Que sonha ser um santo e um poeta,
Vai procurar o Paço da Ventura…
Meu coração não chega lá decerto…
Não conhece o caminho nem o trilho,
Nem há memória desse sítio incerto…
Eu tecerei uns sonhos irreais…
Como essa mãe que viu partir o filho,
Como esse filho que não voltou mais!
23/4/1917
Florbela Espanca Poemas 116
Só
Eu tenho pena da Lua!
Tanta pena, coitadinha,
Quando tão branca, na rua
A vejo chorar sozinha!…
As rosas nas alamedas,
E os lilases cor da neve
Confidenciam de leve
E lembram arfar de sedas...
Só a triste, coitadinha…
Tão triste na minha rua
Lá anda a chorar sozinha…
Eu chego então à janela:
E fico a olhar pra lua…
E fico a chorar com ela! …
23/4/1917
Florbela Espanca Poemas 117
Sonetos (*)
Ao grande e estranho poeta A. Durão
(*) Busquei atestar em Florbela Espanca, Trocando Olhares a
suposição de que os três poemas iniciais deste ciclo de "soneto",
aliados aos "Tortura" e "Vaidade", de Livro de Mágoas, e ao "Meu
Amor", de Primeiros Versos (aqui publicado na "Esparsa Seleta"),
comprovam explicitamente a interlocução de Florbela com o livro
Vitral da Minha Dor, de Américo Durão. Segundo cogitei, os apontados
seis sonetos integrariam também a antologia que Florbela preparou
em 1917, a Primeiros Versos, da qual nos dá notícia Costa Leão.
Florbela Espanca Poemas 118
(I) Desalento (*)
Às vezes oiço rir, é 'ma agonia
Queima-me a alma como estranha brasa,
Tenho ódio à luz e tenho raiva ao dia
Que me põe n'alma o fogo que m'abrasa!
Tenho sede d'amar a humanidade…
Eu ando embriagada… entontecida…
O roxo de maus lábios é saudade
Duns beijos que me deram n'outra vida!
Eu não gosto do Sol, eu tenho medo
Que me vejam nos olhos o segredo
De só saber chorar, de ser assim…
Gosto da noite, imensa, triste, preta,
Como esta estranha e doida borboleta
Que eu sinto sempre a voltejar em mim!
(*) Uma vez refundido, este "Desalento" ganha o título de "A Minha
Tragédia" em Livro de Mágoas, para o qual remeto o leitor.
Florbela Espanca Poemas 119
(II) A Um Livro (*)
No silêncio de cinzas do meu Ser
Agita-se uma sombra de cipreste,
É uma sombra triste que ando a ler,
No livro cheio de mágoa que me deste!
Estranho livro aquele igual a mim!
Cheira a mortos a rir e a cantar…
É dum branco sinistro de jasmim.
Que só me dá vontade de chorar!
Parece que folheio toda a minh'alma!
O livro que me deste, em mim salma
As orações que choro e rio e canto!
Poeta igual a mim, ai quem me dera
Dizer o que tu dizes! Quem soubera
Velar a minha Dor desse teu manto!
(*) Com o mesmo título, este soneto alcança sua versão definitiva no
Livro de Mágoas.
Florbela Espanca Poemas 120
(III) Maior Tortura (*)
Na vida para mim não há deleite.
Ando a chorar convulsa noite,
E não tenho nem sombra em que me acoite,
E não tenho uma pedra em que me deite!
Ah! Toda eu sou sombras, sou espaços!
Perco-me em mim na dor de ter vivido!
E não tenho a doçura duns abraços
Que me façam sorrir de ter nascido!
Sou como tu um cardo desprezado
A urze que se pisa sob os pés,
Sou como tu um riso desgraçado!
Mas a minha Tortura inda é maior:
Não ser poeta assim como tu és
Para concretizar a minha Dor!
(*) Com o título de "A Maior Tortura", dedicado "A um grande poeta
de Portugal" este soneto comparece refundido em Livro de Mágoas.
Florbela Espanca Poemas 121
(IV) Cegueira Bendita
Ando perdida nestes Sonhos verdes
De ter nascido e não saber quem sou,
Ando ceguinha a tactear paredes
E nem ao menos sei quem me cegou!
Não vejo nada, tudo é morto e vago…
E a minha alma cega, ao abandono
Faz-me lembrar o nenúfar dum lago
'Stendendo as asas brancas cor do sono…
Ter dentro d'alma a luz de todo o mundo
E não ver nada nesse mar sem fundo,
Poetas meus irmãos, que triste sorte!…
E chamam-nos a nós Iluminados!
Pobres cegos sem culpas, sem pecados,
A sofrer pelos outros 'té à morte!
24/4/1917
Florbela Espanca Poemas 122
(V) Noivado Estranho
O Luar branco, um riso de Jesus,
Inunda a minha rua toda inteira,
E a Noite é uma flor de laranjeira
A sacudir as pétalas de luz…
O Luar é uma lenda de balada
Das que avozinhas contam à lareira,
E a Noite é uma flor de laranjeira
Que jaz na minha rua desfolhada…
O Luar vem cansado, vem de longe,
Vem casar-se co' a Terra, a feiticeira
Que enlouqueceu d'amor o pobre monge…
O Luar empalidece de cansado…
E a noite é uma flor de laranjeira
A perfumar o místico noivado!…
30/4/1917
Livro de Mágoas
(1919)
A meu Pai
Ao meu melhor amigo
A querida Alma irmão da minha,
Ao meu Irmão
Florbela Espanca Poemas 129
Procuremos somente a beleza, que a vida
É um punhado infantil de areia ressequida,
Um som d'água ou de bronze e uma sombra que passa...
EUGÉNIO DE CASTRO
Isoléns dans l’amour ainsi qu’em um bois noir,
Nos deux coeurs, exalant leur tendresse paisable,
Seront deux rossignols qui chantent dans le soir.
VERLAINE
Florbela Espanca Poemas 131
Este Livro...
Este livro é de mágoas. Desgraçados
Que no mundo passais, chorai ao lê-lo!
Somente a vossa dor de Torturados
Pode, talvez, senti-lo... e compreendê-lo.
Este livro é para vós. Abençoados
Os que o sentirem, sem ser bom nem belo!
Bíblia de tristes... Ó Desventurados,
Que a vossa imensa dor se acalme ao vê-lo!
Livro de Mágoas... Dores... Ansiedades!
Livro de Sombras... Névoas... e Saudades!
Vai pelo mundo... (Trouxe-o no meu seio...)
Irmãos na Dor, os olhos rasos de água,
Chorai comigo a minha imensa mágoa,
Lendo o meu livro só de mágoas cheio!...
Florbela Espanca Poemas 132
Vaidade
Sonho que sou a Poetisa eleita,
Aquela que diz tudo e tudo sabe,
Que tem a inspiração pura e perfeita,
Que reúne num verso a imensidade!
Sonho que um verso meu tem claridade
Para encher todo o mundo! E que deleita
Mesmo aqueles que morrem de saudade!
Mesmo os de alma profunda e insatisfeita!
Sonho que sou Alguém cá neste mundo...
Aquela de saber vasto e profundo,
Aos pés de quem a Terra anda curvada!
E quando mais no céu eu vou sonhando,
E quando mais no alto ando voando,
Acordo do meu sonho...
E não sou nada!...
Florbela Espanca Poemas 133
Eu...
Eu sou a que no mundo anda perdida,
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada... a dolorida...
Sombra de névoa tênue e esvaecida,
E que o destino amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida!...
Sou aquela que passa e ninguém vê...
Sou a que chamam triste sem o ser...
Sou a que chora sem saber por quê...
Sou talvez a visão que Alguém sonhou,
Alguém que veio ao mundo pra me ver,
E que nunca na vida me encontrou!
Florbela Espanca Poemas 134
Castelã da Tristeza
Altiva e couraçada de desdém,
Vivo sozinha em meu castelo: a Dor!
Passa por ele a luz de todo o amor...
E nunca em meu castelo entrou alguém!
Castelã da Tristeza, vês?... A quem?...
– E o meu olhar é interrogador –
Perscruto, ao longe, as sombras do sol-pôr...
Chora o silêncio... nada... ninguém vem...
Castelã da Tristeza, por que choras
Lendo, toda de branco, um livro de horas,
À sombra rendilhada dos vitrais?...
À noite, debruçada, p'las ameias,
Por que rezas baixinho?... Por que anseias?...
Que sonho afagam tuas mãos reais?...
Florbela Espanca Poemas 135
Tortura
Tirar dentro do peito a Emoção,
A lúcida Verdade, o Sentimento!
– E ser, depois de vir do coração,
Um punhado de cinza esparso ao vento!...
Sonhar um verso d'alto pensamento,
E puro como um ritmo d'oração!
– E ser, depois de vir do coração,
O pó, o nada, o sonho dum momento!...
São assim ocos, rudes, os meus versos:
Rimas perdidas, vendavais dispersos,
Com que eu iludo os outros, com que minto!
Quem me dera encontrar o verso puro,
O verso altivo e forte, estranho e duro,
Que dissesse, a chorar, isto que sinto!
Florbela Espanca Poemas 136
Lágrimas Ocultas
Se me ponho a cismar em outras eras
Em que ri e cantei, em que era qu’rida,
Parece-me que foi noutras esferas,
Parece-me que foi numa outra vida...
E a minha triste boca dolorida,
Que dantes tinha o rir das primaveras,
Esbate as linhas graves e severas
E cai num abandono de esquecida!
E fico, pensativa, olhando o vago...
Toma a brandura plácida dum lago
O meu rosto de monja de marfim...
E as lágrimas que choro, branca e calma,
Ninguém as vê brotar dentro da alma!
Ninguém as vê cair dentro de mim!
Florbela Espanca Poemas 137
Torre de Névoa
Subi ao alto, à minha Torre esguia,
Feita de fumo, névoas e luar,
E pus-me, comovida, a conversar
Com os poetas mortos, todo o dia.
Contei-lhes os meus sonhos, a alegria
Dos versos que são meus, do meu sonhar,
E todos os poetas, a chorar,
Responderam-me então: "Que fantasia,
Criança doida e crente! Nós também
Tivemos ilusões, como ninguém,
E tudo nos fugiu, tudo morreu!..."
Calaram-se os poetas, tristemente...
E é desde então que eu choro amargamente
Na minha Torre esguia junto ao Céu!...
Florbela Espanca Poemas 138
A Minha Dor
A você
A minha Dor é um convento ideal
Cheio de claustros, sombras, arcarias,
Aonde a pedra em convulsões sombrias
Tem linhas dum requinte escultural.
Os sinos têm dobres de agonias
Ao gemer, comovidos, o seu mal...
E todos têm sons de funeral
Ao bater horas, no correr dos dias...
A minha Dor é um convento. Há lírios
Dum roxo macerado de martírios,
Tão belos como nunca os viu alguém!
Nesse triste convento aonde eu moro,
Noites e dias rezo e grito e choro,
E ninguém ouve... ninguém vê... ninguém...
Florbela Espanca Poemas 139
Dizeres Íntimos
É tão triste morrer na minha idade!
E vou ver os meus olhos, penitentes
Vestidinhos de roxo, como crentes
Do soturno convento da Saudade!
E logo vou olhar (com que ansiedade!...)
As minhas mãos esguias, languescentes,
De brancos dedos, uns bebês doentes
Que hão de morrer em plena mocidade!
E ser-se novo é ter-se o Paraíso,
É ter-se a estrada larga, ao sol, florida,
Aonde tudo é luz e graça e riso!
E os meus vinte e três anos... (Sou tão nova!)
Dizem baixinho a rir: "Que linda a vida!..."
Responde a minha Dor: "Que linda a cova!"
Florbela Espanca Poemas 140
As Minhas Ilusões
Hora sagrada dum entardecer
D'Outono, à beira-mar, cor de safira.
Soa no ar uma invisível lira...
O sol é um doente a enlanguescer...
A vaga estende os braços a suster,
Numa dor de revolta cheia de ira,
A doirada cabeça que delira
Num último suspiro, a estremecer!
O sol morreu... e veste luto o mar...
E eu vejo a urna d’oiro, a baloiçar,
À flor das ondas, num lençol d’espuma!
As minhas Ilusões, doce tesoiro,
Também as vi levar em urna d’oiro,
No mar da Vida, assim... uma por uma...
Florbela Espanca Poemas 141
Neurastenia
Sinto hoje a alma cheia de tristeza!
Um sino dobra em mim Ave-Maria!
Lá fora, a chuva, brancas mãos esguias,
Faz na vidraça rendas de Veneza...
O vento desgrenhado chora e reza
Por alma dos que estão nas agonias!
E flocos de neve, aves brancas, frias,
Batem as asas pela Natureza...
Chuva... tenho tristeza! Mas por quê?!
Vento... tenho saudades! Mas de quê?!
Ó neve que destino triste o nosso!
Ó chuva! Ó vento! Ó neve! Que tortura!
Gritem ao mundo inteiro esta amargura,
Digam isto que sinto que eu não posso!...
Florbela Espanca Poemas 142
Pequenina
À Maria Helena Falcão Risques
És pequenina e ris... A boca breve
É um pequeno idílio cor-de-rosa...
Haste de lírio frágil e mimosa!
Cofre de beijos feito sonho e neve!
Doce quimera que a nossa alma deve
Ao Céu que assim te faz tão graciosa!
Que nesta vida amarga e tormentosa
Te fez nascer como um perfume leve!
O ver o teu olhar faz bem à gente...
E cheira e sabe, a nossa boca, a flores
Quando o teu nome diz, suavemente...
Pequenina que a Mãe de Deus sonhou,
Que ela afaste de ti aquelas dores
Que fizeram de mim isto que sou!
Florbela Espanca Poemas 143
A Maior Tortura
A um grande poeta de Portugal
Na vida, para mim, não há deleite.
Ando a chorar convulsa noite e dia...
E não tenho uma sombra fugidia
Onde poise a cabeça, onde me deite!
E nem flor de lilás tenho que enfeite
A minha atroz, imensa nostalgia!...
A minha pobre Mãe tão branca e fria
Deu-me a beber a Mágoa no seu leite!
Poeta, eu sou um cardo desprezado,
A urze que se pisa sob os pés.
Sou, como tu, um riso desgraçado!
Mas a minha tortura inda é maior:
Não ser poeta assim como tu és,
Para gritar num verso a minha Dor!...
Florbela Espanca Poemas 144
A Flor do Sonho
A Flor do Sonho, alvíssima, divina,
Miraculosamente abriu em mim,
Como se uma magnólia de cetim
Fosse florir num muro todo em ruína.
Pende em meu seio a haste branda e fina.
E não posso entender como é que, enfim,
Essa tão rara flor abriu assim!...
Milagre... fantasia... ou, talvez, sina...
Ó Flor que em mim nasceste sem abrolhos,
Que tem que sejam tristes os meus olhos
Se eles são tristes pelo amor de ti?!...
Desde que em mim nasceste em noite calma,
Voou ao longe a asa da minh’alma
E nunca, nunca mais eu me entendi...
Florbela Espanca Poemas 145
Noite de Saudade
A Noite vem poisando devagar
Sobre a terra, que inunda de amargura...
E nem sequer a bênção do luar
A quis tornar divinamente pura...
Ninguém vem atrás dela a acompanhar
A sua dor que é cheia de tortura...
E eu oiço a Noite imensa soluçar!
E eu oiço soluçar a Noite escura!
Por que és assim tão ’scura, assim tão triste?!
É que, talvez, ó Noite, em ti existe
Uma Saudade igual à que eu contenho!
Saudade que eu sei donde me vem...
Talvez de ti, ó Noite!... Ou de ninguém!...
Que eu nunca sei quem sou, nem o que tenho!
Florbela Espanca Poemas 146
Angústia
Tortura do pensar! Triste lamento!
Quem nos dera calar a tua voz!
Quem nos dera cá dentro, muito a sós,
Estrangular a hidra num momento!
E não se quer pensar!... E o pensamento
Sempre a morder-nos bem, dentro de nós...
Qu'rer apagar no céu – Ó sonho atroz! –
O brilho duma estrela, com o vento!...
E não se apaga, não... nada se apaga!
Vem sempre rastejando como a vaga...
Vem sempre perguntando: "O que te resta?..."
Ah! não ser mais que o vago, o infinito!
Ser pedaço de gelo, ser granito,
Ser rugido de tigre na floresta!
Florbela Espanca Poemas 147
Amiga
Deixa-me ser a tua amiga, Amor;
A tua amiga só, já que não queres
Que pelo teu amor seja a melhor
A mais triste de todas as mulheres.
Que só, de ti, me venha mágoa e dor
O que me importa a mim?! O que quiseres
É sempre um sonho bom! Seja o que for
Bendito sejas tu por m'o dizeres!
Beija-me as mãos, Amor, devagarinho...
Como se os dois nascêssemos irmãos,
Aves cantando, ao sol, no mesmo ninho...
Beija-mas bem!... Que fantasia louca
Guardar assim, fechados, nestas mãos
Os beijos que sonhei pra minha boca!...
Florbela Espanca Poemas 148
Desejos Vãos
Eu qu’ria ser o Mar d’altivo porte
Que ri e canta, a vastidão imensa!
Eu qu’ria ser a pedra que não pensa,
A pedra do caminho, rude e forte!
Eu queria ser o sol, a luz intensa,
O bem do que é humilde e não tem sorte!
Eu qu’ria ser a árvore tosca e densa
Que ri do mundo vão e até da morte!
Mas o Mar também chora de tristeza...
As árvores também, como quem reza,
Abrem, aos Céus, os braços, como um crente!
E o Sol altivo e forte, ao fim dum dia,
Tem lágrimas de sangue na agonia!
E as Pedras... essas... pisa-as toda a gente!...
Florbela Espanca Poemas 149
Pior Velhice
Sou velha e triste. Nunca o alvorecer
Dum riso são andou na minha boca!
Gritando que me acudam, em voz rouca,
Eu, náufraga da Vida, ando a morrer!
A Vida, que ao nascer, enfeita e touca
D'alvas rosas a fronte da mulher,
Na minha fronte mística de louca
Martírios só poisou a emurchecer!
E dizem que sou nova... A mocidade
Estará só, então, na nossa idade,
Ou está em nós e em nosso peito mora?!...
Tenho a pior velhice, a que é mais triste,
Aquela onde nem sequer existe
Lembrança de ter sido nova... outrora...
Florbela Espanca Poemas 150
A Um Livro
No silêncio de cinzas do meu Ser
Agita-se uma sombra de cipreste,
Sombra roubada ao livro que ando a ler,
A esse livro de mágoas que me deste.
Estranho livro aquele que escreveste,
Artista da saudade e do sofrer!
Estranho livro aquele em que puseste
Tudo o que eu sinto, sem poder dizer!
Leio-o, e folheio, assim, toda a minh’alma!
O livro que me deste é meu, e salma
As orações que choro e rio e canto!...
Poeta igual a mim, ai quem me dera
Dizer o que tu dizes!... Quem soubera
Velar a minha Dor desse teu manto!...
Florbela Espanca Poemas 151
Alma Perdida
Toda esta noite o rouxinol chorou,
Gemeu, rezou, gritou perdidamente!
Alma de rouxinol, alma da gente,
Tu és, talvez, alguém que se finou!
Tu és, talvez, um sonho que passou,
Que se fundiu na Dor, suavemente...
Talvez sejas a alma, a alma doente
D’alguém que quis amar e nunca amou!
Toda a noite choraste... e eu chorei
Talvez porque, ao ouvir-te, adivinhei
Que ninguém é mais triste do que nós!
Contaste tanta coisa à noite calma,
Que eu pensei que tu eras a minh’alma
Que chorasse perdida em tua voz!...
Florbela Espanca Poemas 152
De Joelhos
"Bendita seja a Mãe que te gerou."
Bendito o leite que te fez crescer.
Bendito o berço aonde te embalou
A tua ama, pra te adormecer!
Bendita essa canção que acalentou
Da tua vida o doce alvorecer...
Bendita seja a Lua, que inundou
De luz, a Terra, só para te ver...
Benditos sejam todos que te amarem,
As que em volta de ti ajoelharem
Numa grande paixão fervente e louca!
E se mais que eu, um dia, te quiser
Alguém, bendita seja essa Mulher,
Bendito seja o beijo dessa boca!
Florbela Espanca Poemas 153
Languidez
Tardes da minha terra, doce encanto,
Tardes duma pureza d'açucenas,
Tardes de sonho, as tardes de novenas,
Tardes de Portugal, as tardes d’Anto,
Como eu vos quero e amo! Tanto! Tanto!...
Horas benditas, leves como penas,
Horas de fumo e cinza, horas serenas,
Minhas horas de dor em que eu sou santo!
Fecho as pálpebras roxas, quase pretas,
Que poisam sobre duas violetas,
Asas leves cansadas de voar...
E a minha boca tem uns beijos mudos...
E as minhas mãos, uns pálidos veludos,
Traçam gestos de sonho pelo ar...
Florbela Espanca Poemas 154
Para Quê?!
Tudo é vaidade neste mundo vão...
Tudo é tristeza, tudo é pó, é nada!
E mal desponta em nós a madrugada,
Vem logo a noite encher o coração!
Até o amor nos mente, essa canção
Que o nosso peito ri à gargalhada,
Flor que é nascida e logo desfolhada,
Pétalas que se pisam pelo chão!...
Beijos de amor! Pra quê?!... Tristes vaidades!
Sonhos que logo são realidades,
Que nos deixam a alma como morta!
Só neles acredita quem é louca!
Beijos d'amor que vão de boca em boca,
Como pobres que vão de porta em porta!...
Florbela Espanca Poemas 155
Ao Vento
O vento passa a rir, torna a passar,
Em gargalhadas asp'ras de demente;
E esta minh’alma trágica e doente
Não sabe se há de rir, se há de chorar!
Vento de voz tristonha, voz plangente,
Vento que ris de mim sempre a troçar,
Vento que ris do mundo e do amor,
A tua voz tortura toda a gente!...
Vale-te mais chorar, meu pobre amigo!
Desabafa essa dor a sós comigo,
E não rias assim!... O vento, chora!
Que eu bem conheço, amigo, esse fadário
Do nosso peito ser como um Calvário,
e a gente andar a rir p’la vida fora!...
Florbela Espanca Poemas 156
Tédio
Passo pálida e triste. Oiço dizer:
"Que branca que ela é! Parece morta!"
e eu que vou sonhando, vaga, absorta,
não tenho um gesto, ou um olhar sequer...
Que diga o mundo e a gente o que quiser!
– O que é que isso me faz? O que me importa?...
O frio que trago dentro gela e corta
Tudo que é sonho e graça na mulher!
O que é que me importa?! Essa tristeza
É menos dor intensa que frieza,
É um tédio profundo de viver!
E é tudo sempre o mesmo, eternamente...
O mesmo lago plácido, dormente...
E os dias, sempre os mesmos, a correr...
Florbela Espanca Poemas 157
A Minha Tragédia
Tenho ódio à luz e raiva à claridade
Do sol, alegre, quente, na subida.
Parece que a minh’alma é perseguida
Por um carrasco cheio de maldade!
Ó minha vã, inútil mocidade,
Trazes-me embriagada, entontecida!...
Duns beijos que me deste noutra vida,
Trago em meus lábios roxos, a saudade!...
Eu não gosto do sol, eu tenho medo
Que me leiam nos olhos o segredo
De não amar ninguém, de ser assim!
Gosto da Noite imensa, triste, preta,
Como esta estranha e doida borboleta
Que eu sinto sempre a voltejar em mim!...
Florbela Espanca Poemas 158
Sem Remédio
Aqueles que me têm muito amor
Não sabem o que sinto e o que sou...
Não sabem que passou, um dia, a Dor
À minha porta e, nesse dia, entrou.
E é desde então que eu sinto este pavor,
Este frio que anda em mim, e que gelou
O que de bom me deu Nosso Senhor!
Se eu nem sei por onde ando e onde vou!
Sinto os passos da Dor, essa cadência
Que é já tortura infinda, que é demência!
Que é já vontade doida de gritar!
E é sempre a mesma mágoa, o mesmo tédio,
A mesma angústia funda, sem remédio,
Andando atrás de mim, sem me largar!...
Florbela Espanca Poemas 159
Mais Triste
É triste, diz a gente, a vastidão
Do Mar imenso! E aquela voz fatal
Com que ele fala, agita o nosso mal!
E a Noite é triste como a Extrema-Unção.
É triste e dilacera o coração
Um poente do nosso Portugal!
E não vêem que eu sou... eu... afinal,
A coisa mais magoada das que são?!...
Poentes de agonia trago-os eu
Dentro de mim e tudo quanto é meu
É um triste poente d’amargura!
E a vastidão do Mar, toda essa água
Trago-a dentro de mim num mar de Mágoa!
E a noite sou eu própria! A Noite escura!
Florbela Espanca Poemas 160
Velhinha
Se os que me viram já cheia de graça
Olharem bem de frente em mim,
Talvez, cheios de dor, digam assim:
"Já ela é velha! Como o tempo passa!..."
Não sei rir e cantar por mais que faça!
Ó minhas mãos talhadas em marfim,
Deixem esse fio d'oiro que esvoaça!
Deixem correr a vida até o fim!
Tenho vinte e três anos! Sou velhinha!
Tenho cabelos brancos e sou crente...
Já murmuro orações... falo sozinha...
E o bando cor-de-rosa dos carinhos
Que tu me fazes, olho-os indulgente,
Como se fosse um bando de netinhos...
Florbela Espanca Poemas 161
Em Busca do Amor
O meu Destino disse-me a chorar:
"Pela estrada da Vida vai andando;
E, aos que vires passar, interrogando
Acerca do Amor, que hás de encontrar."
Fui pela estrada a rir e a cantar,
As contas do meu sonho desfiando...
E noite e dia, à chuva e ao luar,
Fui sempre caminhando e perguntando...
Mesmo a um velho eu perguntei: "Velhinho,
Viste o Amor acaso em teu caminho?"
E o velho estremeceu... olhou... e riu...
Agora pela estrada, já cansados,
Voltam todos pra trás, desanimados...
E eu paro a murmurar: "Ninguém o viu!..."
Florbela Espanca Poemas 162
Impossível
Disseram-me hoje, assim, ao ver-me triste:
"Parece Sexta-Feira de Paixão.
Sempre a cismar, cismar d’olhos no chão,
Sempre a pensar na dor que não existe...
O que é que tem?! Tão nova e sempre triste!
Faça por ’star contente! Pois então?!..."
Quando se sofre, o que se diz é vão...
Meu coração, tudo, calado, ouviste...
Os meus males ninguém mos adivinha...
A minha Dor não fala, anda sozinha...
Dissesse ela o que sente! Ai quem me dera!...
Os males d’Anto toda a gente os sabe!
Os meus... ninguém... A minha Dor não cabe
Nos cem milhões de versos que eu fizera!...
Livro de "Sóror Saudade"
(1923)
Florbela Espanca Poemas 165
Irmã; Sóror Saudade, ah! se eu pudesse
Tocar de aspiração a nossa vida,
Fazer do mundo a Terra Prometida
Que ainda em sonho às vezes me aparece!
AMÉRICO DURÃO
II n'a pas à se plaindre celui qui attend un sentiment
plus ardent et plus généreux.II n'a pas à se plaindre
celui qui attend Le désir d'un peu plus de bonbeur,
d'un Peu plus de beauté, d'un peu plus de justice.
MAETERLINCK - La Sagesse et a Destinée
Florbela Espanca Poemas 167
"Sóror Saudade"28
A Américo Durão
Irmã, Sóror Saudade me chamaste...
E na minh'alma o nome iluminou-se
Como um vitral ao sol, como se fosse
A luz do próprio sonho que sonhaste.
Numa tarde de Outono o murmuraste,
Toda a mágoa do Outono ele me trouxe,
Jamais me hão de chamar outro mais doce.
Com ele bem mais triste me tornaste...
E baixinho, na alma da minh'alma,
Como bênção de sol que afaga e acalma,
Nas horas más de febre e de ansiedade,
28 Tanto o título do livro quanto o do poema comparecem entre aspas na primeira edição, razão por que o conservamos aqui, visto que reproduzimos a referida edição. Todavia, o uso continuo do título do livro e do soneto sem aspas acabou por consagrá-los assim.
Florbela Espanca Poemas 168
Como se fossem pétalas caindo
Digo as palavras desse nome lindo
Que tu me deste: "Irmã, Sóror Saudade"...
Florbela Espanca Poemas 169
O Nosso Livro
A A.G.
Livro do meu amor, do teu amor,
Livro do nosso amor, do nosso peito...
Abre-lhe as folhas devagar, com jeito,
Como se fossem pétalas de flor.
Olha que eu outro já não sei compor
Mais santamente triste, mais perfeito
Não esfolhes os lírios com que é feito
Que outros não tenho em meu jardim de dor!
Livro de mais ninguém! Só meu! Só teu!
Num sorriso tu dizes e digo eu:
Versos só nossos mas que lindos sois!
Ah, meu Amor! Mas quanta, quanta gente
Dirá, fechando o livro docemente:
"Versos só nossos, só de nós os dois!..."
Florbela Espanca Poemas 170
O Que Tu És...
És Aquela que tudo te entristece,
Irrita e amargura, tudo humilha;
Aquela a quem a Mágoa chamou filha;
A que aos homens e a Deus nada merece.
Aquela que o sol claro entenebrece,
A que nem sabe a estrada que ora trilha,
Que nem um lindo amor de maravilha
Sequer deslumbra, e ilumina e aquece!
Mar-Morto sem marés nem ondas largas,
A rastejar no chão como as mendigas,
Todo feito de lágrimas amargas!
És ano que não teve primavera...
Ah! Não seres como as outras raparigas
Ó Princesa Encantada da Quimera!...
Florbela Espanca Poemas 171
Fanatismo
Minh'alma, de sonhar-te, anda perdida.
Meus olhos andam cegos de te ver.
Não és sequer razão do meu viver
Pois que tu és já toda a minha vida!
Não vejo nada assim enlouquecida...
Passo no mundo, meu Amor, a ler
No mist'rioso livro do teu ser
A mesma história tantas vezes lida!...
"Tudo no mundo é frágil, tudo passa...
Quando me dizem isto, toda a graça
Duma boca divina fala em mim!
E, olhos postos em ti, digo de rastros:
"Ah! podem voar mundos, morrer astros,
Que tu és como Deus: Princípio e Fim!..."
Florbela Espanca Poemas 172
Alentejano
À Buja
Deu agora meio-dia; o sol é quente
Beijando a urze triste dos outeiros.
Nas ravinas do monte andam ceifeiros,
Na faina, alegres, desde o sol nascente.
Cantam as raparigas brandamente,
Brilham os olhos negros, feiticeiros.
E há perfis delicados e trigueiros
Entre as altas espigas d'oiro ardente.
A terra prende aos dedos sensuais
A cabeleira loira dos trigais
Sob a bênção dulcíssima dos céus.
Há gritos arrastados de cantigas...
E eu sou uma daquelas raparigas...
E tu passas e dizes: "Salve-os Deus!"
Florbela Espanca Poemas 173
Fumo
Longe de ti são ermos os caminhos,
Longe de ti não há luar nem rosas;
Longe de ti há noites silenciosas,
Há dias sem calor, beirais sem ninhos!
Meus olhos são dois velhos pobrezinhos
Perdidos pelas noites invernosas...
Abertos, sonham mãos cariciosas,
Tuas mãos doces plenas de carinhos!
Os dias são outonos: choram... choram...
Há crisântemos roxos que descoram...
Há murmúrios dolentes de segredos...
Invoco o nosso sonho! Estendo os braços!
E ele é, ó meu Amor pelos espaços,
Fumo leve que foge entre os meus dedos!...
Florbela Espanca Poemas 174
Que Importa?...
Eu era a desdenhosa, a indiferente.
Nunca sentira em mim o coração
Bater em violências de paixão
Como bate no peito à outra gente.
Agora, olhas-me tu altivamente,
Sem sombra de Desejo ou de emoção,
Enquanto as asas loiras da ilusão
Abrem dentro de mim ao sol nascente.
Minh'alma, a pedra, transformou-se em fonte;
Como nascida em carinhoso monte
Toda ela é riso e é frescura e graça!
Nela refresca a boca um só instante...
Que importa?... Se o cansado viandante
Bebe em todas as fontes... quando passa?...
Florbela Espanca Poemas 175
O Meu Orgulho
Lembro-me o que fui dantes. Quem me dera
Não me lembrar! Em tardes dolorosas
Eu lembro-me que fui a primavera
Que em muros velhos faz nascer as rosas!
As minhas mãos outrora carinhosas
Pairavam como pombas... Quem soubera
Porque tudo passou e foi quimera,
E porque os muros velhos não dão rosas!
São sempre os que eu recordo que me esquecem...
Mas digo para mim: "não me merecem..."
E já não fico tão abandonada!
Sinto que valho mais, mais pobrezinha:
Que também é orgulho ser sozinha,
E também é nobreza não ter nada!
Florbela Espanca Poemas 176
Os Versos Que Te Fiz
Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que a minha boca tem pra te dizer!
São talhados em mármore de Páros
Cinzelados por mim pra te oferecer.
Têm dolências de veludos caros,
São como sedas pálidas a arder...
Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que foram feitos pra te endoidecer!
Mas, meu Amor, eu não t'os digo ainda...
Que a boca da mulher é sempre linda
Se dentro guarda um verso que não diz!
Amo-te tanto! E nunca te beijei...
E, nesse beijo, Amor, que eu te não dei
Guardo os versos mais lindos que te fiz!
Florbela Espanca Poemas 177
Frieza
Os teus olhos são frios como as espadas,
E claros como os trágicos punhais,
Têm brilhos cortantes de metais
E fulgores de lâminas geladas.
Vejo neles imagens retratadas
De abandonos cruéis e desleais,
Fantásticos desejos irreais,
E todo o oiro e o sol das madrugadas!
Mas não te invejo, Amor, essa indiferença,
Que viver neste mundo sem amar
É pior que ser cego de nascença!
Tu invejas a dor que vive em mim!
E quanta vez dirás a soluçar:
"Ah, quem me dera, Irmã, amar assim!..."
Florbela Espanca Poemas 178
O Meu Mal
A meu irmão
Eu tenho lido em mim, sei-me de cor,
Eu sei o nome ao meu estranho mal:
Eu sei que fui a renda dum vitral,
Que fui cipreste, caravela e dor!
Fui tudo que no mundo há de maior;
Fui cisne e lírio e águia e catedral!
E fui, talvez, um verso de Nerval,
Ou um cínico riso de Chamfort...
Fui a heráldica flor de agrestes cardos,
Deram as minhas mãos aroma aos nardos...
Deu cor ao eloendro a minha boca...
Ah! De Boabdil fui lágrima na Espanha!
E foi de lá que eu trouxe esta ânsia estranha,
Mágoa não sei de quê! Saudade louca!
Florbela Espanca Poemas 179
A Noite Desce...
Como pálpebras roxas que tombassem
Sobre uns olhos cansados, carinhosas,
A noite desce... Ah! doces mãos piedosas
Que os meus olhos tristíssimos fechassem!
Assim mãos de bondade me embalassem!
Assim me adormecessem, caridosas
E em braçadas de lírios e mimosas,
No crepúsculo que desce me enterrassem!
A noite em sombra e fumo se desfaz...
Perfume de baunilha ou de lilás,
A noite põe-me embriagada, louca!
E a noite vai descendo, muda e calma...
Meu doce Amor tu beijas a minh'alma
Beijando nesta hora a minha boca!
Florbela Espanca Poemas 180
Caravelas
Cheguei a meio da vida já cansada
De tanto caminhar! Já me perdi!
Dum estranho país que nunca vi
Sou neste mundo imenso a exilada.
Tanto tenho aprendido e não sei nada.
E as torres de marfim que construí
Em trágica loucura as destruí
Por minhas próprias mãos de malfadada!
Se eu sempre fui assim este Mar Morto,
Mar sem marés, sem vagas e sem porto
Onde velas de sonhos se rasgaram!
Caravelas doiradas a bailar...
Ai, quem me dera as que eu deitei ao Mar!
As que eu lancei à vida, e não voltaram!...
Florbela Espanca Poemas 181
Inconstância
Procurei o amor que me mentiu.
Pedi à Vida mais do que ela dava.
Eterna sonhadora edificava
Meu castelo de luz que me caiu!
Tanto clarão nas trevas refulgiu,
E tanto beijo a boca me queimava!
E era o sol que os longes deslumbrava
Igual a tanto sol que me fugiu!
Passei a vida a amar e a esquecer...
Atrás do sol dum dia outro a aquecer
As brumas dos atalhos por onde ando...
E este amor que assim me vai fugindo
É igual a outro amor que vai surgindo,
Que há de partir também... nem eu sei quando...
Florbela Espanca Poemas 182
O Nosso Mundo
Eu bebo a Vida, a Vida, a longos tragos
Como um divino vinho de Falerno!
Poisando em ti o meu amor eterno
Como poisam as folhas sobre os lagos...
Os meus sonhos agora são mais vagos...
O teu olhar em mim, hoje, é mais terno...
E a Vida já não é o rubro inferno
Todo fantasmas tristes e pressagos!
A vida, meu Amor, quer vivê-la!
Na mesma taça erguida em tuas mãos,
Bocas unidas hemos de bebê-la!
Que importa o mundo e as ilusões defuntas?...
Que importa o mundo e seus orgulhos vãos?...
O mundo, Amor?... As nossas bocas juntas!...
Florbela Espanca Poemas 183
Prince Charmant
A Raul Proença
No lânguido esmaecer das amorosas
Tardes que morrem voluptuosamente
Procurei-O no meio de toda a gente.
Procurei-O em horas silenciosas
Ó noites da minh'alma tenebrosas!
Boca sangrando beijos, flor que sente...
Olhos postos num sonho, humildemente...
Mãos cheias de violetas e de rosas...
E nunca O encontrei!... Prince Charmant
Como audaz cavaleiro em velhas lendas
Virá, talvez, nas névoas da manhã!
Ah! Toda a nossa vida anda a quimera
Tecendo em frágeis dedos frágeis rendas...
– Nunca se encontra Aquele que se espera!...
Florbela Espanca Poemas 184
Anoitecer
A luz desmaia num fulgor d'aurora,
Diz-nos adeus religiosamente...
E eu, que não creio em nada, sou mais crente
Do que em menina, um dia, o fui... outr'ra...
Não sei o que em mim ri, o que em mim chora
Tenho bênçãos d'amor pra toda a gente!
E a minha alma sombria e penitente
Solução no infinito desta hora...
Horas tristes que são o meu rosário...
Ó minha cruz de tão pesado lenho!
Meu áspero e intérmino Calvário!
E a esta hora tudo em mim revive:
Saudades de saudades que não tenho...
Sonhos que são os sonhos dos que eu tive...
Florbela Espanca Poemas 185
Esfinge
Sou filha da charneca erma e selvagem:
Os giestais, por entre os rosmaninhos,
Abrindo os olhos d'oiro, p'los caminhos,
Desta minh'alma ardente são a imagem.
E ansiosa desejo – ó vã miragem –
Que tu e eu, em beijos e carinhos,
Eu a Charneca, e tu o Sol, sozinhos,
Fôssemos um pedaço da paisagem!
E à noite, à hora doce da ansiedade,
Ouviria da boca do luar
O De Profundis triste da saudade...
E à tua espera, enquanto o mundo dorme,
Ficaria, olhos quietos, a cismar...
Esfinge olhando a planície enorme...
Florbela Espanca Poemas 186
Tarde Demais...
Quando chegaste enfim, para te ver
Abriu-se a noite em mágico luar;
E pra o som de teus passos conhecer
Pôs-se o silêncio, em volta, a escutar...
Chegaste enfim! Milagre de endoidar!
Viu-se nessa hora o que não pode ser:
Em plena noite, a noite iluminar
E as pedras do caminho florescer!
Beijando a areia d'oiro dos desertos
Procura-te em vão! Braços abertos,
Pés nus, olhos a rir, a boca em flor!
E há cem anos que eu fui nova e linda!...
E a minha boca morta grita ainda:
Por que chegaste tarde, ó meu Amor?!...
Florbela Espanca Poemas 187
Cinzento
Poeiras de crepúsculos cinzentos,
Lindas rendas velhinhas, em pedaços,
Prendem-se aos meus cabelos, aos meus braços,
Como brancos fantasmas, sonolentos...
Monges soturnos deslizando lentos,
Devagarinho, em misteriosos passos...
Perde-se a luz em lânguidos cansaços...
Ergue-se a minha cruz dos desalentos!
Poeiras de crepúsculos tristonhos,
Lembram-me o fumo leve dos meus sonhos,
A névoa das saudades que deixaste!
Hora em que o teu olhar me deslumbrou...
Hora em que a tua boca me beijou...
Hora em que fumo e névoa te tornaste...
Florbela Espanca Poemas 188
Noturno
Amor! Anda o luar todo bondade,
Beijando a terra, a desfazer-se em luz...
Amor! São os pés brancos de Jesus
Que andam pisando as ruas da cidade!
E eu ponho-me a pensar... Quanta saudade
Das ilusões e risos que em ti pus!
Traçaste em mim os braços duma cruz,
Neles pregaste a minha mocidade!
Minh'alma, que eu te dei, cheia de mágoas,
E nesta noite o nenufar dum lago
Estendendo as asas brancas sobre as águas!
Poisa as mãos nos meus olhos com carinho,
Fecha-os num beijo dolorido e vago...
E deixa-me chorar devagarinho...
Florbela Espanca Poemas 189
Maria das Quimeras
Maria das Quimeras me chamou
Alguém... Pelos castelos que eu ergui,
P'las flores d'oiro e azul que a sol teci
Numa tela de sonho que estalou.
Maria das Quimeras me ficou;
Com elas na minh'alma adormeci.
Mas, quando despertei, nem uma vi
Que da minh'alma, Alguém, tudo levou!
Maria das Quimeras, que fim deste
Às flores d'oiro e azul que a sol bordaste,
Aos sonhos tresloucados que fizeste?
Pelo mundo, na vida, o que é que esperas?...
Aonde estão os beijos que sonhaste,
Maria das Quimeras, sem quimeras?
Florbela Espanca Poemas 190
Saudades
Saudades! Sim... talvez... e por que não?...
Se o sonho foi tão alto e forte
Que pensara vê-lo até à morte
Deslumbrar-me de luz o coração!
Esquecer! Para quê?... Ah, como é vão!
Que tudo isso, Amor, nos não importe.
Se ele deixou beleza que conforte
Deve-nos ser sagrado como o pão.
Quantas vezes, Amor, já te esqueci,
Para mais doidamente me lembrar
Mais decididamente me lembrar de ti!
E quem dera que fosse sempre assim:
Quanto menos quisesse recordar
Mais saudade andasse presa a mim!
Florbela Espanca Poemas 191
Ruínas
Se é sempre outono o rir das primaveras,
Castelos, um a um, deixa-os cair...
Que a vida é um constante derruir
De palácios do Reino das Quimeras!
E deixa sobre as ruínas crescer heras,
Deixa-as beijar as pedras e florir!
Que a vida é um contínuo destruir
De palácios do Reino das Quimeras!
Deixa tombar meus rútilos castelos!
Tenho ainda mais sonhos para erguê-los
Mais alto do que as águias pelo ar!
Sonhos que tombam! Derrocada louca!
São como os beijos duma linda boca!
Sonhos!... Deixa-os tombar... deixa-os tombar...
Florbela Espanca Poemas 192
Crepúsculo
Teus olhos, borboletas de oiro, ardentes
Borboletas de sol, de asas magoadas,
Poisam nos meus, suaves e cansadas,
Como em dois lírios roxos e dolentes...
E os lírios fecham... Meu Amor, não sentes?
Minha boca tem rosas desmaiadas,
E as minhas pobres mãos são maceradas
Como vagas saudades de doentes...
O Silencio abre as mãos... entorna rosas...
Andam no ar carícias vaporosas
Como pálidas sedas, arrastando...
E a tua boca rubra ao pé da minha
É na suavidade da tardinha
Um coração ardente palpitando...
Florbela Espanca Poemas 193
Ódio?
A Aurora Aboim
Ódio por ele? Não... Se o amei tanto,
Se tanto bem lhe quis no meu passado,
Se o encontrei depois de o ter sonhado,
Se à vida assim roubei todo o encanto...
Que importa se mentiu? E se hoje o pranto
Turva o meu triste olhar, marmorizado,
Olhar de monja, trágico, gelado
Com um soturno e enorme Campo Santo!
Ah! nunca mais amá-lo é já bastante!
Quero senti-lo d'outra, bem distante,
Como se fora meu, calma e serena!
Ódio seria em mim saudade infinda,
Mágoa de o ter perdido, amor ainda!
Ódio por Ele? Não... não vale a pena...
Florbela Espanca Poemas 194
Renúncia
A minha mocidade há muito pus
No tranqüilo convento da Tristeza;
Lá passa dias, noites, sempre presa,
Olhos fechados, magras mãos em cruz...
Lá fora, a Lua, Satanás, seduz!
Desdobra-se em requintes de Beleza...
É como um beijo ardente a Natureza...
A minha cela é como um rio de luz...
Fecha os teus olhos bem! Não vejas nada!
Empalidece mais! E, resignada,
Prende os teus braços a uma cruz maior!
Gela ainda a mortalha que te encerra!
Enche a boca de cinzas e de terra
Ó minha mocidade toda em flor!
Florbela Espanca Poemas 195
A Vida
É vão o amor, o ódio, ou o desdém;
Inútil o desejo e o sentimento...
Lançar um grande amor aos pés d'alguém
O mesmo é que lançar flores ao vento!
Todos somos no mundo "Pedro Sem",
Uma alegria é feita dum tormento,
Um riso é sempre o eco dum lamento,
Sabe-se lá um beijo d'onde vem!
A mais nobre ilusão morre... desfaz-se...
Uma saudade morta em nós renasce
Que no mesmo momento é já perdida...
Amar-te a vida inteira eu não podia...
A gente esquece sempre o bem dum dia.
Que queres, meu Amor, se é isto a Vida!...
Florbela Espanca Poemas 196
Horas Rubras
Horas profundas, lentas e caladas
Feitas de beijos rubros e ardentes,
De noites de volúpia, noites quentes
Onde há risos de virgens desmaiadas...
Oiço as olaias rindo desgrenhadas...
Tombam astros em fogo, astros dementes,
E do luar os beijos languescentes
São pedaços de prata p'las estradas...
Os meus lábios são brancos como lagos...
Os meus braços são leves como afagos,
Vestiu-os o luar de sedas puras...
Sou chama e neve e branca e misteriosa...
E sou, talvez, na noite voluptuosa,
Ó meu Poeta, o beijo que procuras!
Florbela Espanca Poemas 197
Suavidade
Poisa a tua cabeça dolorida
Tão cheia de quimeras, de ideal
Sobre o regaço brando e maternal
Da tua doce Irmã compadecida.
Hás de contar-me nessa voz tão qu'rida
A tua dor que julgas sem igual,
E eu, pra te consolar, direi o mal
Que à minha alma profunda fez a Vida.
E hás de adormecer nos meus joelhos...
E os meus dedos enrugados, velhos,
Hão de fazer-se leves e suaves...
Hão de poisar-se num fervor de crente,
Rosas brancas tombando docemente
Sobre o teu rosto, como penas d'aves...
Florbela Espanca Poemas 198
Princesa Desalento
Minh'alma é a Princesa Desalento,
Como um Poeta lhe chamou, um dia.
É magoada e pálida e sombria,
Como soluços trágicos do vento!
É frágil como o sonho dum momento,
Soturna como preces de agonia,
Vive do riso duma boca fria!
Minh'alma é a Princesa Desalento...
Altas horas da noite ela vagueia...
E ao luar suavíssimo, que anseia,
Põe-se a falar de tanta coisa morta!
O luar ouve a minh'alma, ajoelhado,
E vai traçar, fantástico e gelado,
A sombra duma cruz à tua porta...
Florbela Espanca Poemas 199
Sombra
De olheiras roxas, roxas, quase pretas,
De olhos límpidos, doces, languescentes,
Lagos em calma, pálidos, dormentes
Onde se debruçassem violetas...
De mãos esguias, finas hastes quietas,
Que o vento não baloiça em noites quentes...
Noturno de Chopin... risos dolentes...
Versos tristes em sonhos de Poetas...
Beijo doce de aromas perturbantes...
Rosal bendito que dá rosas... Dantes
Esta era Eu e Eu era a Idolatrada!...
Oh, tanta cinza morta... o vento a leve!
Vou sendo agora em ti a sombra leve
D’alguém que dobra a curva duma estrada...
Florbela Espanca Poemas 200
Hora Que Passa
Vejo-me triste, abandonada e só
Bem como um cão sem dono e que o procura
Mais pobre e desprezada do que Job
A caminhar na via da amargura!
Judeu Errante que a ninguém faz dó!
Minh'alma triste, dolorida, escura,
Minh'alma sem amor é cinza e pó,
Vaga roubada ao Mar da Desventura!
Que tragédia tão funda no meu peito!...
Quanta ilusão morrendo que esvoaça!
Quanto sonho a nascer e já desfeito!
Deus! Como é triste a hora quando morre...
O instante que foge, voa, e passa...
Fiozinho d'água triste... a vida corre...
Florbela Espanca Poemas 201
Da Minha Janela
Mar alto! Ondas quebradas e vencidas
Num soluçar aflito e murmurado...
Vôo de gaivotas, leve, imaculado,
Como neves nos píncaros nascidas!
Sol! Ave a tombar, asas já feridas,
Batendo ainda num arfar pausado...
Ó meu doce poente torturado
Rezo-te em mim, chorando, mãos erguidas!
Meu verso de Samain cheio de graça,
'Inda não és clarão já és luar
Como um branco lilás que se desfaça!
Amor! Teu coração traga-o no peito...
Pulsa dentro de mim como este mar
Num beijo eterno, assim, nunca desfeito!...
Florbela Espanca Poemas 202
Sol Poente
Tardinha... "Ave-Maria, Mãe de Deus..."
E reza a voz dos sinos e das noras...
O sol que morre tem clarões d'auroras,
Águia que bate as asas pelos céus!
Horas que têm a cor dos olhos teus...
Horas evocadoras d'outras horas...
Lembranças de fantásticos outroras,
De sonhos que não tenho e que eram meus!
Horas em que as saudades, p'las estradas,
Inclinam as cabeças mart'rizadas
E ficam pensativas... meditando...
Morrem verbenas silenciosamente...
E o rubro sol da tua boca ardente
Vai-me a pálida boca desfolhando...
Florbela Espanca Poemas 203
Exaltação
Viver!... Beber o vento e o sol!... Erguer
Ao céu os corações a palpitar!
Deus fez os nossos braços pra prender,
E a boca fez-se sangue pra beijar!
A chama, sempre rubra, ao alto, a arder!
Asas sempre perdidas a pairar!
Mais alto para as estrelas desprender!...
A glória!... A fama!... O orgulho de criar!...
Da vida tenho o mel e tenho os travos
No lago dos meus olhos de violetas,
Nos meus beijos estáticos, pagãos!
Trago na boca o coração dos cravos!
Boêmios, vagabundos, e poetas,
− Com eu sou vossa Irmã, ó meus Irmãos!...
Charneca em Flor
(1931, póstuma)
Florbela Espanca Poemas 207
Amar, amar; amar; amar siempre y con todo
El ser y con la tierra y con el cielo,
Con lo claro del sol y lo obscuro del lodo.
Amar por toda ciencia y amar por todo anhelo.
Y cuando la montaña de la vida
Nos sea dura y larga, y alta, y llena de abismos,
Amar la inmensidad, que es de amor encendida,
Y arder en la fusión de nuestros pechos mismos...
RUBÉN DARÍO
Florbela Espanca Poemas 209
Charneca em Flor
Enche o meu peito, num encanto mago,
O frêmito das coisas dolorosas...
Sob as urzes queimadas nascem rosas...
Nos meus olhos as lágrimas apago...
Anseio! Asas abertas! O que trago
Em mim? Eu oiço bocas silenciosas
Murmurar-me as palavras misteriosas
Que perturbam meu ser como um afago!
E nesta febre ansiosa que me invade,
Dispo a minha mortalha, o meu burel,
E, já não sou, Amor, Sóror Saudade...
Olhos a arder em êxtases de amor,
Boca a saber a sol, a fruto, a mel:
Sou a charneca rude a abrir em flor!
Florbela Espanca Poemas 210
Versos de Orgulho
O mundo quer-me mal porque ninguém
Tem asas como eu tenho! Porque Deus
Me fez nascer Princesa entre plebeus
Numa torre de orgulho e de desdém.
Porque o meu Reino fica para além...
Porque trago no olhar os vastos céus
E os oiros e os clarões são todos meus!
Porque eu sou Eu e porque Eu sou Alguém!
O mundo! O que é o mundo, ó meu amor?!
– O jardim dos meus versos todo em flor...
A seara dos teus beijos, pão bendito,
Meus êxtases, meus sonhos, meus cansaços...
– São os teus braços dentro dos meus braços,
Via Láctea fechando o Infinito.
Florbela Espanca Poemas 211
Rústica
Ser a moça mais linda do povoado,
Pisar, sempre contente, o mesmo trilho,
Ver descer sobre o ninho aconchegado
A bênção do Senhor em cada filho.
Um vestido de chita bem lavado,
Cheirando a alfazema e a tomilho...
– Com o luar matar a sede ao gado,
Dar às pombas o sol num grão de milho...
Ser pura como a água da cisterna,
Ter confiança numa vida eterna
Quando descer à "terra da verdade"...
Meu Deus, dai-me esta calma, esta pobreza!
Dou por elas meu trono de Princesa,
E todos os meus Reinos de Ansiedade.
Florbela Espanca Poemas 212
Realidade
Em ti o meu olhar fez-se alvorada
E a minha voz fez-se gorjeio de ninho...
E a minha rubra boca apaixonada
Teve a frescura pálida do linho...
Embriagou-me o teu beijo como um vinho
Fulvo de Espanha, em taça cinzelada...
E a minha cabeleira desatada
Pôs a teus pés a sombra dum caminho...
Minhas pálpebras são cor de verbena,
Eu tenho os olhos garços, sou morena,
E para te encontrar foi que eu nasci...
Tens sido vida fora o meu desejo,
E agora, que te falo, que te vejo,
Não sei se te encontrei... se te perdi...
Florbela Espanca Poemas 213
Conto de Fadas
Eu trago-te nas mãos o esquecimento
Das horas más que tens vivido, Amor!
E para as tuas chagas o ungüento
Com que sarei a minha própria dor.
Os meus gestos são ondas de Sorrento...
Trago no nome as letras de uma flor...
Foi dos meus olhos garços que um pintor
Tirou a luz para pintar o vento...
Dou-te o que tenho: o astro que dormita,
O manto dos crepúsculos da tarde,
O sol que é d'oiro, a onda que palpita.
Dou-te comigo o mundo que Deus fez!
– Eu sou Aquela de quem tens saudade,
A Princesa do conto: "Era uma vez..."
Florbela Espanca Poemas 214
A Um Moribundo
Não tenhas medo, não! Tranqüilamente,
Como adormece a noite pelo Outono,
Fecha os teus olhos, simples, docemente,
Como, à tarde, uma pomba que tem sono...
A cabeça reclina levemente
E os braços deixa-os ir ao abandono,
Como tombam, arfando, ao sol poente,
As asas de uma pomba que tem sono...
O que há depois? Depois?... O azul dos céus?
Um outro mundo? O eterno nada? Deus?
Um abismo? Um castigo? Uma guarida?
Que importa? Que te importa, ó moribundo?
– Seja o que for, será melhor que o mundo!
Tudo será melhor do que esta vida!...
Florbela Espanca Poemas 215
Eu
Até agora eu não me conhecia,
Julgava que era Eu e eu não era
Aquela que em meus versos descrevera
Tão clara como a fonte e como o dia.
Mas que eu não era Eu não o sabia
E, mesmo que o soubesse, o não dissera...
Olhos fitos em rútila quimera
Andava atrás de mim... E não me via!
Andava a procurar-me – pobre louca! –
E achei o meu olhar no teu olhar,
E a minha boca sobre a tua boca!
E esta ânsia de viver, que nada acalma,
E a chama da tua alma a esbrasear
As apagadas cinzas da minha alma!
Florbela Espanca Poemas 216
Passeio Ao Campo
Meu Amor! Meu Amante! Meu Amigo!
Colhe a hora que passa, hora divina,
Bebe-a dentro de mim, bebe-a comigo!
Sinto-me alegre e forte! Sou menina!
Eu tenho, Amor, a cinta esbelta e fina...
Pele doirada de alabastro antigo...
Frágeis mãos de madona florentina...
– Vamos correr e rir por entre o trigo! –
Há rendas de gramíneas pelos montes...
Papoilas rubras nos trigais maduros...
Água azulada a cintilar nas fontes...
E à volta, Amor... tornemos, nas alfombras
Dos caminhos selvagens e escuros,
Num astro só as nossas duas sombras!...
Florbela Espanca Poemas 217
Tarde No Mar
A tarde é de oiro rútilo: esbraseia,
O horizonte: um cacto purpurino.
E a vaga esbelta que palpita e ondeia,
Com uma frágil graça de menino,
Poisa o manto de arminho na areia
E lá vai, e lá segue ao seu destino!
E o sol, nas casas brancas que incendeia,
Desenha mãos sangrentas de assassino!
Que linda tarde aberta sobre o mar!
Vai deitando do céu molhos de rosas
Que Apolo se entretém a desfolhar...
E, sobre mim, em gestos palpitantes,
As tuas mãos morenas, milagrosas,
São as asas do sol, agonizantes...
Florbela Espanca Poemas 218
Se Tu Viesses Ver-Me...
Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,
A essa hora dos mágicos cansaços,
Quando a noite de manso se avizinha,
E me prendesses toda nos teus braços...
Quando me lembra: esse sabor que tinha
A tua boca... o eco dos teus passos...
O teu riso de fonte... os teus abraços...
Os teus beijos... a tua mão na minha...
Se tu viesses quando, linda e louca,
Traça as linhas dulcíssimas dum beijo
E é de seda vermelha e canta e ri
E é como um cravo ao sol a minha boca...
Quando os olhos se me cerram de desejo...
E os meus braços se estendem para ti...
Florbela Espanca Poemas 219
Mistério
Gosto de ti, ó chuva, nos beirados,
Dizendo coisas que ninguém entende!
Da tua cantilena se desprende
Um sonho de magia e de pecados.
Dos teus pálidos dedos delicados
Uma alada canção palpita e ascende,
Frases que a nossa boca não aprende,
Murmúrios por caminhos desolados.
Pelo meu rosto branco, sempre frio,
Fazes passar o lúgubre arrepio
Das sensações estranhas, dolorosas...
Talvez um dia entenda o teu mistério...
Quando, inerte, na paz do cemitério,
O meu corpo matar a fome às rosas!
Florbela Espanca Poemas 220
O Meu Condão
Quis Deus dar-me o condão de ser sensível
Como o diamante à luz que o alumia,
Dar-me uma alma fantástica, impossível:
– Um bailado de cor e fantasia!
Quis Deus fazer de ti a ambrosia
Desta paixão estranha, ardente, incrível!
Erguer em mim o facho inextinguível,
Como um cinzel vincando uma agonia!
Quis Deus fazer-me tua... para nada!
– Vãos, os meus braços de crucificada,
Inúteis, esses beijos que te dei!
Anda! Caminha! Aonde?... Mas por onde?...
Se um gesto dos teus a sombra esconde
O caminho de estrelas que tracei...
Florbela Espanca Poemas 221
As Minhas Mãos
As minhas mãos magritas, afiladas,
Tão brancas como a água da nascente,
Lembram pálidas rosas entornadas
Dum regaço de Infanta do Oriente.
Mãos de ninfa, de fada, de vidente,
Pobrezinhas em sedas enroladas,
Virgens mortas em luz amortalhadas
Pelas próprias mãos de oiro do sol poente.
Magras e brancas... Foram assim feitas...
Mãos de enjeitada porque tu me enjeitas...
Tão doces que elas são! Tão a meu gosto!
Pra que as quero eu – Deus! – Pra que as quero eu?!
Ó minhas mãos, aonde está o céu?
... Aonde estão as linhas do teu rosto?
Florbela Espanca Poemas 222
Noitinha
A noite sobre nós se debruçou...
Minha alma ajoelha, põe as mãos e ora!
O luar, pelas colinas, nesta hora,
É água dum gomil que se entornou...
Não sei quem tanta pérola espalhou!
Murmura alguém pelas quebradas fora...
Flores do campo, humildes, mesmo agora.
A noite, os olhos brandos, lhes fechou...
Fumo beijando o colmo dos casais...
Serenidade idílica de fontes,
E a voz dos rouxinóis nos salgueirais...
Tranqüilidade... calma... anoitecer...
Num êxtase, eu escuto pelos montes
O coração das pedras a bater...
Florbela Espanca Poemas 223
Lembrança
Fui Essa que nas ruas esmolou
E foi a que habitou Paços Reais;
No mármore de curvas ogivais
Fui Essa que as mãos pálidas poisou...
Tanto poeta em versos me cantou!
Fiei o linho à porta dos casais...
Fui descobrir a Índia e nunca mais
Voltei! fui essa nau que não voltou...
Tenho o perfil moreno, lusitano,
E os olhos verdes, cor do verde Oceano,
Sereia que nasceu de navegantes...
Tudo em cinzentas brumas se dilui...
Ah, quem me dera ser Essas que eu fui,
As que me lembro de ter sido... dantes!...
Florbela Espanca Poemas 224
A Nossa Casa
A nossa casa, Amor, a nossa casa!
Onde está ela, Amor, que não a vejo?
Na minha doida fantasia em brasa
Constrói-a, num instante, o meu desejo!
Onde está ela, Amor, a nossa casa,
O bem que neste mundo mais invejo?
O brando ninho aonde o nosso beijo
Será mais puro e doce que uma asa?
Sonho... que eu e tu, dois pobrezinhos,
Andamos de mãos dadas, nos caminhos
Duma terra de rosas, num jardim,
Num país de ilusão que nunca vi...
E que eu moro – tão bom! – dentro de ti
E tu, ó meu Amor, dentro de mim...
Florbela Espanca Poemas 225
Mendiga
Na vida nada tenho e nada sou;
Eu ando a mendigar pelas estradas...
No silêncio das noites estreladas
Caminho, sem saber para onde vou!
Tinha o manto do sol... quem m'o roubou?!
Quem pisou minhas rosas desfolhadas?!
Quem foi que sobre as ondas revoltadas
A minha taça de oiro espedaçou?!
Agora vou andando e mendigando,
Sem que um olhar dos mundos infinitos
Veja passar o verme, rastejando...
Ah, quem me dera ser como os chacais
Uivando os brados, rouquejando os gritos
Na solidão dos ermos matagais!...
Florbela Espanca Poemas 226
Supremo Enleio
Quanta mulher no teu passado, quanta!
Tanta sombra em redor! Mas que me importa?
Se delas veio o sonho que conforta,
A sua vinda foi três vezes santa!
Erva do chão que a mão de Deus levanta,
Folhas murchas de rojo à tua porta...
Quando eu for uma pobre coisa morta,
Quanta mulher ainda! Quanta! Quanta!
Mas eu sou a manhã: apago estrelas!
Hás de ver-me, beijar-me em todas elas,
Mesmo na boca da que for mais linda!
E quando a derradeira, enfim, vier,
Nesse corpo vibrante de mulher
Será o meu que hás de encontrar ainda...
Florbela Espanca Poemas 227
Toledo
Diluído numa taça de oiro a arder
Toledo é um rubi. E hoje é só nosso!
O sol a rir... Viv'alma... Não esboço
Um gesto que me não sinta esvaecer...
As tuas mãos tateiam-me a tremer...
Meu corpo de âmbar, harmonioso e moço
É como um jasmineiro em alvoroço
Ébrio de sol, de aroma, de prazer!
Cerro um pouco o olhar onde subsiste
Um romântico apelo vago e mudo,
– Um grande amor é sempre grave e triste.
Flameja ao longe o esmalte azul do Tejo...
Uma torre ergue ao céu um grito agudo...
Tua boca desfolha-me num beijo...
Florbela Espanca Poemas 228
Outonal
Caem as folhas mortas sobre o lago;
Na penumbra outonal, não sei quem tece
As rendas do silêncio... Olha, anoitece!
– Brumas longínquas do País do Vago...
Veludos a ondear... Mistério mago...
Encantamento... A hora que não esquece,
A luz que a pouco e pouco desfalece,
Que lança em mim a bênção dum afago...
Outono dos crepúsculos doirados,
De púrpuras, damascos e brocados!
– Vestes a terra inteira de esplendor!
Outono das tardinhas silenciosas,
Das magníficas noites voluptuosas
Em que eu soluço a delirar de amor...
Florbela Espanca Poemas 229
Ser Poeta
Ser Poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!
É ter de mil desejos o esplendor
E não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!
É ter fome, é ter sede de Infinito!
Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim...
É condensar o mundo num só grito!
E é amar-te, assim, perdidamente...
É seres alma e sangue e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda gente!
Florbela Espanca Poemas 230
Alvorecer
A noite empalidece. Alvorecer...
Ouve-se mais o gargalhar da fonte...
Sobre a cidade muda, o horizonte
É uma orquídea estranha a florescer.
Há andorinhas prontas a dizer
A missa d'alva, mal o sol desponte.
Gritos de galos soam monte em monte
Numa intensa alegria de viver.
Passos ao longe... um vulto que se esvai...
Em cada sombra Colombina trai...
Anda o silêncio em volta a querer falar...
E o luar que desmaia, macerado,
Lembra, pálido, tonto, esfarrapado,
Um Pierrot, todo branco, a soluçar...
Florbela Espanca Poemas 231
Mocidade
A mocidade esplêndida, vibrante,
Ardente, extraordinária, audaciosa,
Que vê num cardo a folha duma rosa,
Na gota de água o brilho dum diamante;
Essa que fez de mim Judeu Errante
Do espírito, a torrente caudalosa,
Dos vendavais irmã tempestuosa,
– Trago-a em mim vermelha, triunfante!
No meu sangue rubis correm dispersos:
– Chamas subindo ao alto nos meus versos,
Papoilas nos meus lábios a florir!
Ama-me doida, estonteadoramente,
O meu Amor! que o coração da gente
É tão pequeno... e a vida, água a fugir...
Florbela Espanca Poemas 232
Amar!
Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: Aqui... além...
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente...
Amar! Amar! E não amar ninguém!
Recordar? Esquecer? Indiferente!...
Prender ou desprender? É mal? É bem?
Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!
Há uma Primavera em cada vida:
É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!
E se um dia hei de ser pó, cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder... pra me encontrar...
Florbela Espanca Poemas 233
Nostalgia
Nesse País de lenda, que me encanta,
Ficaram meus brocados, que despi,
E as jóias que p'las aias reparti
Como outras rosas de Rainha Santa!
Tanta opala que eu tinha! Tanta, tanta!
Foi por lá que as semeei e que as perdi...
Mostrem-me esse País onde eu nasci!
Mostrem-me o Reino de que eu sou Infanta!
O meu País de sonho e de ansiedade,
Não sei se esta quimera que me assombra,
É feita de mentira ou de verdade!
Quero voltar! Não sei por onde vim...
Ah! Não ser mais que a sombra duma sombra
Por entre tanta sombra igual a mim!
Florbela Espanca Poemas 234
Ambiciosa
Para aqueles fantasmas que passaram,
Vagabundos a quem jurei amar,
Nunca os meus braços lânguidos traçaram
O vôo dum gesto para os alcançar...
Se as minhas mãos em garra se cravaram
Sobre um amor em sangue a palpitar...
– Quantas panteras bárbaras mataram
Só pelo raro gosto de matar!
Minha alma é como a pedra funerária
Erguida na montanha solitária
Interrogando a vibração dos céus!
O amor dum homem? – Terra tão pisada!
Gota de chuva ao vento baloiçada...
Um homem? – Quando eu sonho o amor dum deus!...
Florbela Espanca Poemas 235
Crucificada
Amiga... noiva... irmã... o que quiseres!
Por ti, todos os céus terão estrelas,
Por teu amor, mendiga, hei de merecê-las,
Ao beijar a esmola que me deres.
Podes amar até outras mulheres!
– Hei de compor, sonhar palavras belas,
Lindos versos de dor só para elas,
Para em lânguidas noites lhes dizeres!
Crucificada em mim, sobre os meus braços,
Hei de poisar a boca nos teus passos
Pra não serem pisados por ninguém.
E depois... Ah! depois de dores tamanhas,
Nascerás outra vez de outras entranhas,
Nascerás outra vez de uma outra Mãe!
Florbela Espanca Poemas 236
Espera...
Não me digas adeus, ó sombra amiga,
Abranda mais o ritmo dos teus passos;
Sente o perfume da paixão antiga,
Dos nossos bons e cândidos abraços!
Sou a dona dos místicos cansaços,
A fantástica e estranha rapariga
Que um dia ficou presa nos teus braços...
Não vás ainda embora, ó sombra amiga!
Teu amor fez de mim um lago triste:
Quantas ondas a rir que não lhe ouviste,
Quanta canção de ondinas lá no fundo!
Espera... espera... ó minha sombra amada...
Vê que pra além de mim já não há nada
E nunca mais me encontras neste mundo!...
Florbela Espanca Poemas 237
Interrogação
Neste tormento inútil, neste empenho
De tornar em silêncio o que em mim canta,
Sobem-me roucos brados à garganta
Num clamor de loucura que contenho.
Ó alma de charneca sacrossanta,
Irmã da alma rútila que eu tenho,
Dize pra onde vou, donde é que venho
Nesta dor que me exalta e me alevanta!
Visões de mundos novos, de infinitos,
Cadências de soluços e de gritos,
Fogueira a esbrasear que me consome!
Dize que mão é esta que me arrasta?
Nódoa de sangue que palpita e alastra...
Dize de que é que eu tenho sede e fome?!
Florbela Espanca Poemas 238
Volúpia
No divino impudor da mocidade,
Nesse êxtase pagão que vence a sorte,
Num frêmito vibrante de ansiedade,
Dou-te o meu corpo prometido à morte!
A sombra entre a mentira e a verdade...
A nuvem que arrastou o vento norte...
– Meu corpo! Trago nele um vinho forte:
Meus beijos de volúpia e de maldade!
Trago dálias vermelhas no regaço...
São os dedos do sol quando te abraço,
Cravados no teu peito como lanças!
E do meu corpo os leves arabescos
Vão-te envolvendo em círculos dantescos
Felinamente, em voluptuosas danças...
Florbela Espanca Poemas 239
Filtro
Meu Amor, não é nada: – Sons marinhos
Numa concha vazia, choro errante...
Ah, olhos que não choram! Pobrezinhos...
Não há luz neste mundo que os levante!
Eu andarei por ti os maus caminhos
E as minhas mãos, abertas a diamante,
Hão de crucificar-se nos espinhos
Quando o meu peito for o teu mirante!
Para que corpos vis te não desejem,
Hei de dar-te o meu corpo, e a boca minha
Pra que bocas impuras te não beijem!
Como quem roça um lago que sonhou,
Minhas cansadas asas de andorinha
Hão de prender-te todo num só vôo...
Florbela Espanca Poemas 240
Mais Alto
Mais alto, sim! mais alto, mais além
Do sonho, onde morar a dor da vida,
Até sair de mim! Ser a Perdida,
A que se não encontra! Aquela a quem
O mundo não conhece por Alguém!
Ser orgulho, ser águia na subida,
Até chegar a ser, entontecida,
Aquela que sonhou o meu desdém!
Mais alto, sim! Mais alto! A Intangível!
Turris Ebúrnea erguida nos espaços,
A rutilante luz dum impossível!
Mais alto, sim! Mais alto! Onde couber
O mal da vida dentro dos meus braços,
Dos meus divinos braços de Mulher!
Florbela Espanca Poemas 241
Nervos D'oiro
Meus nervos, guizos de oiro a tilintar
Cantam-me n'alma a estranha sinfonia
Da volúpia, da mágoa e da alegria,
Que me faz rir e que me faz chorar!
Em meu corpo fremente, sem cessar,
Agito os guizos de oiro da folia!
A Quimera, a Loucura, a Fantasia,
Num rubro turbilhão sinto-As passar!
O coração, numa imperial oferta.
Ergo-o ao alto! E, sobre a minha mão,
É uma rosa de púrpura, entreaberta!
E em mim, dentro de mim, vibram dispersos,
Meus nervos de oiro, esplêndidos, que são
Toda a Arte suprema dos meus versos!
Florbela Espanca Poemas 242
A Voz da Tília
Diz-me a tília a cantar: "Eu sou sincera,
Eu sou isto que vês: o sonho, a graça,
Deu ao meu corpo, o vento, quando passa,
Este ar escultural de bayadera...
E de manhã o sol é uma cratera,
Uma serpente de oiro que me enlaça...
Trago nas mãos as mãos da Primavera...
E é para mim que em noites de desgraça
Toca o vento Mozart, triste e solene,
E à minha alma vibrante, posta a nu,
Diz a chuva sonetos de Verlaine..."
E, ao ver-me triste, a tília murmurou:
"Já fui um dia poeta como tu...
Ainda hás de ser tília como eu sou..."
Florbela Espanca Poemas 243
Não Ser
Quem me dera voltar à inocência
Das coisas brutas, sãs, inanimadas,
Despir o vão orgulho, a incoerência:
– Mantos rotos de estátuas mutiladas!
Ah! arrancar às carnes laceradas
Seu mísero segredo de consciência!
Ah! poder ser apenas florescência
De astros em puras noites deslumbradas!
Ser nostálgico choupo ao entardecer,
De ramos graves, plácidos, absortos
Na mágica tarefa de viver!
Ser haste, seiva, ramaria inquieta,
Erguer ao sol o coração dos mortos
Na urna de oiro duma flor aberta!...
Florbela Espanca Poemas 244
?
Quem fez ao sapo o leito carmesim
De rosas desfolhadas à noitinha?
E quem vestiu de monja a andorinha,
E perfumou as sombras do jardim?
Quem cinzelou estrelas no jasmim?
Quem deu esses cabelos de rainha
Ao girassol? Quem fez o mar? E a minha
Alma a sangrar? Quem me criou a mim?
Quem fez os homens e deu vida aos lobos?
Santa Teresa em místicos arroubos!
Os monstros? E os profetas? E o luar?
Quem nos deu asas para andar de rastros?
Quem nos deu olhos para ver os astros
– Sem nos dar braços para os alcançar?
Florbela Espanca Poemas 245
In Memoriam
Ao meu morto querido
Na cidade de Assis, "Il Poverello"
Santo, três vezes santo, andou pregando
Que o sol, a terra, a flor, o rocio brando,
Da pobreza o tristíssimo flagelo,
Tudo quanto há de vil, quanto há de belo,
Tudo era nosso irmão! – E assim sonhando,
Pelas estradas da Umbria foi forjando
Da cadeia do amor o maior elo!
"Olha o nosso irmão Sol, nossa irmã Água..."
Ah, Poverello! Em mim, essa lição
Perdeu-se como vela em mar de mágoa
Batida por furiosos vendavais!
– Eu fui na vida a irmã dum só Irmão,
E já não sou a irmã de ninguém mais!
Florbela Espanca Poemas 246
Árvores do Alentejo
Ao Prof. Guido Battelli
Horas mortas... Curvada aos pés do Monte
A planície é um brasido... e, torturadas,
As árvores sangrentas, revoltadas,
Gritam a Deus a bênção duma fonte!
E quando, manhã alta, o sol posponte
A oiro a giesta, a arder, pelas estradas,
Esfíngicas, recortam desgrenhadas
Os trágicos perfis no horizonte!
Árvores! Corações, almas que choram,
Almas iguais à minha, almas que imploram
Em vão remédio para tanta mágoa!
Árvores! Não choreis! Olhai e vede:
– Também ando a gritar, morta de sede,
Pedindo a Deus a minha gota de água!
Florbela Espanca Poemas 247
Quem Sabe?...
Ao Ângelo
Queria tanto saber por que sou Eu!
Quem me enjeitou neste caminho escuro?
Queria tanto saber por que seguro
Nas minhas mãos o bem que não é meu!
Quem me dirá se, lá no alto, o céu
Também é para o mau, para o perjuro?
Para onde vai a alma que morreu?
Queria encontrar Deus! Tanto o procuro!
A estrada de Damasco, o meu caminho,
O meu bordão de estrelas de ceguinho,
Água da fonte de que estou sedenta!
Quem sabe se este anseio de Eternidade,
A tropeçar na sombra, é a Verdade,
É já a mão de Deus que me acalenta?
Florbela Espanca Poemas 248
A Minha Piedade
A Bourbon e Menêses
Tenho pena de tudo quanto lida
Neste mundo, de tudo quanto sente,
Daquele a quem mentiram, de quem mente,
Dos que andam pés descalços pela vida,
Da rocha altiva, sobre o monte erguida,
Olhando os céus ignotos frente a frente,
Dos que não são iguais à outra gente,
E dos que se ensangüentam na subida!
Tenho pena de mim... pena de ti...
De não beijar o riso duma estrela...
Pena dessa má hora em que nasci...
De não ter asas para ir ver o céu...
De não ser Esta... a Outra... e mais Aquela...
De ter vivido e não ter sido Eu...
Florbela Espanca Poemas 249
Sou Eu!
À Laura Chaves
Pelos campos em fora, pelos combros,
Pelos montes que embalam a manhã,
Largo os meus rubros sonhos de pagã,
Enquanto as aves poisam nos meus ombros...
Em vão me sepultaram entre escombros
De catedrais duma escultura vã!
Olha-me o loiro sol tonto de assombros,
E as nuvens, a chorar, chamam-me irmã!
Ecos longínquos de ondas... de universos...
Ecos dum Mundo... dum distante Além,
Donde eu trouxe a magia dos meus versos!
Sou eu! Sou eu! A que nas mãos ansiosas
Prendeu da vida, assim como ninguém,
Os maus espinhos sem tocar nas rosas!
Florbela Espanca Poemas 250
Panteísmo
Ao Botto de Carvalho
Tarde de brasa a arder, sol de verão
Cingindo, voluptuoso, o horizonte...
Sinto-me luz e cor, ritmo e clarão
Dum verso triunfal de Anacreonte!
Vejo-me asa no ar, erva no chão,
Oiço-me gota de água a rir, na fonte,
E a curva altiva e dura do Marão
É o meu corpo transformado em monte!
E de bruços na terra penso e cismo
Que, neste meu ardente panteísmo
Nos meus sentidos postos e absortos
Nas coisas luminosas deste mundo,
A minha alma é o túmulo profundo
Onde dormem, sorrindo, os deuses mortos!
Florbela Espanca Poemas 251
Pobre de Cristo
A José Emídio Amaro
Ó minha terra na planície rasa,
Branca de sol e cal e de luar,
Minha terra que nunca viste o mar
Onde tenho o meu pão e a minha casa...
Minha terra de tardes sem uma asa,
Sem um bater de folha... a dormitar...
Meu anel de rubis a flamejar,
Minha terra mourisca a arder em brasa!
Minha terra onde meu irmão nasceu...
Aonde a mãe que eu tive e que morreu,
Foi moça e loira, amou e foi amada...
Truz... truz... truz... Eu não tenho onde me acoite,
Sou um pobre de longe, é quase noite...
Terra, quero dormir... dá-me pousada!...
Florbela Espanca Poemas 252
A Uma Rapariga
À Nice
Abre os olhos e encara a vida! A sina
Tem que cumprir-se! Alarga os horizontes!
Por sobre lamaçais alteia pontes
Com tuas mãos preciosas de menina.
Nessa estrada da vida que fascina
Caminha sempre em frente, além dos montes!
Morde os frutos a rir! Bebe nas fontes!
Beija aqueles que a sorte te destina!
Trata por tu a mais longínqua estrela,
Escava com as mãos a própria cova
E depois, a sorrir, deita-te nela!
Que as mãos da terra façam, com amor,
Da graça do teu corpo, esguia e nova,
Surgir à luz a haste duma flor!...
Florbela Espanca Poemas 253
Minha Culpa
A Artur Ledesma
Sei lá! Sei lá! Eu sei lá bem
Quem sou? Um fogo-fátuo, uma miragem...
Sou um reflexo... um canto de paisagem
Ou apenas cenário! Um vaivém...
Como a sorte: hoje aqui, depois além!
Sei lá quem Sou?! Sei lá! Sou a roupagem
Dum doido que partiu numa romagem
E nunca mais voltou! Eu sei lá quem!...
Sou um verme que um dia quis ser astro...
Uma estátua truncada de alabastro...
Uma chaga sangrenta do Senhor...
Sei lá quem sou?! Sei lá! Cumprindo os fados,
Num mundo de vaidades e pecados,
Sou mais um mau, sou mais um pecador...
Florbela Espanca Poemas 254
Teus Olhos
Olhos do meu Amor! Infantes loiros
Que trazem os meus presos, endoidados!
Neles deixei, um dia, os meus tesoiros:
Meus anéis, minhas rendas, meus brocados.
Neles ficaram meus palácios moiros,
Meus carros de combate, destroçados,
Os meus diamantes, todos os meus oiros
Que trouxe d'Além-Mundos ignorados!
Olhos do meu Amor! Fontes... cisternas..
Enigmáticas campas medievais...
Jardins de Espanha... catedrais eternas...
Berço vindo do céu à minha porta...
Ó meu leite de núpcias irreais!...
Meu suntuoso túmulo de morta!...
Florbela Espanca Poemas 255
He hum não querer mais que bem querer.
CAMÕES
Florbela Espanca Poemas 256
I
Gosto de ti apaixonadamente,
De ti que és a vitória, a salvação,
De ti que me trouxeste pela mão
Até ao brilho desta chama quente.
A tua linda voz de Água corrente
Ensinou-me a cantar... e essa canção
Foi ritmo nos meus versos de paixão,
Foi graça no meu peito de descrente.
Bordão a amparar minha cegueira,
Da noite negra o mágico farol,
Cravos rubros a arder numa fogueira!
E eu, que era neste mundo uma vencida,
Ergo a cabeça ao alto, encaro o sol!
– Águia real, apontas-me a subida!
Florbela Espanca Poemas 257
II
Meu Amor, meu Amado, vê... repara:
Poisa os teus lindos olhos de oiro em mim,
– Dos meus beijos de amor Deus fez-me avara
Para nunca os contares até ao fim.
Meus olhos têm tons de pedra rara,
– E só para teu bem que os tenho assim –
E as minhas mãos são fontes de Água clara
A cantar sobre a sede dum jardim.
Sou triste como a folha ao abandono
Num parque solitário, pelo Outono,
Sobre um lago onde vogam nenúfares...
Deus fez-me atravessar o teu caminho...
– Que contas dás a Deus indo sozinho,
Passando junto a mim, sem me encontrares? –
Florbela Espanca Poemas 258
III
Frêmito do meu corpo a procurar-te,
Febre das minhas mãos na tua pele
Que cheira a âmbar, a baunilha e a mel,
Doido anseio dos meus braços a abraçar-te,
Olhos buscando os teus por toda a parte,
Sede de beijos, amargor de fel,
Estonteante fome, áspera e cruel,
Que nada existe que a mitigue e a farte!
E vejo-te tão longe! Sinto a tua alma
Junto da minha, uma lagoa calma,
A dizer-me, a cantar que me não amas...
E o meu coração que tu não sentes,
Vai boiando ao acaso das correntes,
Esquife negro sobre um mar de chamas...
Florbela Espanca Poemas 259
IV
És tu! És tu! Sempre vieste, enfim!
Oiço de novo o riso dos teus passos!
És tu que eu vejo a estender-me os braços
Que Deus criou pra me abraçar a mim!
Tudo é divino e santo visto assim...
Foram-se os desalentos, os cansaços...
O mundo não é mundo: é um jardim!
Um céu aberto: longes, os espaços!
Prende-me toda, Amor, prende-me bem!
Que vês tu em redor? Não há ninguém!
A terra? – Um astro morto que flutua...
Tudo o que é chama a arder, tudo o que sente,
Tudo o que é vida e vibra eternamente
É tu seres meu, Amor, e eu ser tua!
Florbela Espanca Poemas 260
V
Dize-me, Amor, como te sou querida,
Conta-me a glória do teu sonho eleito,
Aninha-me a sorrir junto ao teu peito,
Arranca-me dos pântanos da vida.
Embriagada numa estranha lida,
Trago nas mãos o coração desfeito,
Mostra-me a luz, ensina-me o preceito
Que me salve e levante redimida!
Nesta negra cisterna em que me afundo,
Sem quimeras, sem crenças, sem ternura,
Agonia sem fé dum moribundo,
Grito o teu nome numa sede estranha,
Como se fosse, Amor, toda a frescura
Das cristalinas águas da montanha!
Florbela Espanca Poemas 261
VI
Falo de ti às pedras das estradas,
E ao sol que é loiro como o teu olhar,
Falo ao rio, que desdobra a faiscar,
Vestidos de Princesas e de Fadas;
Falo às gaivotas de asas desdobradas,
Lembrando lenços brancos a acenar,
E aos mastros que apunhalam o luar
Na solidão das noites consteladas;
Digo os anseios, os sonhos, os desejos
Donde a tua alma, tonta de vitória
Levanta ao céu a torre dos meus beijos!
E os meus gritos de amor, cruzando o espaço,
Sobre os brocados fúlgidos da glória,
São astros que me tombam do regaço!
Florbela Espanca Poemas 262
VII
São mortos os que nunca acreditaram
Que esta vida é somente uma passagem,
Um atalho sombrio, uma paisagem
Onde os nossos sentidos se poisaram.
São mortos os que nunca alevantaram
Dentre escombros a Torre de Menagem
Dos seus sonhos de orgulho e de coragem,
E os que não riram e os que não choraram.
Que Deus faça de mim, quando eu morrer,
Quando eu partir para o País da Luz,
A sombra calma dum entardecer,
Tombando, em doces pregas de mortalha,
Sobre o teu corpo heróico, posto em cruz,
Na solidão dum campo de batalha!
Florbela Espanca Poemas 263
VIII
Abrir os olhos, procurar a luz,
De coração erguido ao alto, em chama,
Que tudo neste mundo se reduz
A ver os astros cintilar na lama!
Amar o sol da glória e a voz da fama
Que em clamorosos gritos se traduz!
Com misericórdia, amar quem nos não ama,
E deixar que nos preguem numa cruz!
Sobre um sonho desfeito erguer a torre
Doutro sonho mais alto e, se esse morre,
Mais outro e outro ainda, toda a vida!
Que importa que nos vençam desenganos,
Se pudermos contar os nossos anos
Assim como degraus duma subida?
Florbela Espanca Poemas 264
IX
Perdi os meus fantásticos castelos
Como névoa distante que se esfuma...
Quis vencer, quis lutar, quis defendê-los:
Quebrei as minhas lanças uma a uma!
Perdi minhas galeras entre os gelos
Que se afundaram sobre um mar de bruma...
– Tantos escolhos! Quem podia vê-los? –
Deitei-me ao mar e não salvei nenhuma!
Perdi a minha taça, o meu anel,
A minha cota de aço, o meu corcel,
Perdi meu elmo de oiro e pedrarias...
Sobem-me aos lábios súplicas estranhas...
Sobre o meu coração pesam montanhas...
Olho assombrada as minhas mãos vazias...
Florbela Espanca Poemas 265
X
Eu queria mais altas as estrelas,
Mais largo o espaço, o sol mais criador,
Mais refulgente a lua, o mar maior,
Mais cavadas as ondas e mais belas;
Mais amplas, mais rasgadas as janelas
Das almas, mais rosais a abrir em flor,
Mais montanhas, mais asas de condor,
Mais sangue sobre a cruz das caravelas!
E abrir os braços e viver a vida,
– Quanto mais funda e lúgubre a descida
Mais alta é a ladeira que não cansa!
E, acabada a tarefa... em paz, contente,
Um dia adormecer, serenamente,
Como dorme no berço uma criança!
Outubro, I930.
Florbela Espanca Poemas 267
Reliquiae
(1931, póstuma)
Florbela Espanca Poemas 269
Évora
Ao amigo vindo da luminosa Itália,
a minha cidade, como eu soturna
e triste...
Évora! Ruas ermas sob os céus
Cor de violetas roxas... Ruas frades
Pedindo em triste penitência a Deus
Que nos perdoe as míseras vaidades!
Tenho corrido em vão tantas cidades!
E só aqui recordo os beijos teus,
E só aqui eu sinto que são meus
Os sonhos que sonhei noutras idades!
Évora!... O teu olhar... o teu perfil...
Tua boca sinuosa, um mês de Abril
Que o coração no peito me alvoroça!
... Em cada viela o vulto dum fantasma...
E a minha alma soturna escuta e pasma...
E sente-se passar menina-e-moça...
Julho, I930.
Florbela Espanca Poemas 270
À Janela de Garcia de Rezende
Janela antiga sobre a rua plana...
Ilumina-a o luar com o seu clarão...
Dantes, a descansar de luta insana,
Fui, talvez, flor no poético balcão...
Dantes! Da minha glória altiva e ufana,
Talvez... Quem sabe?... Tonto de ilusão,
Meu rude coração de alentejana
Me palpitasse ao luar nesse balcão...
Mística dona, em outras Primaveras,
Em refulgentes horas de outras eras,
Vi passar o cortejo ao sol doirado...
Bandeiras! Pajens! O pendão real!
E na tua mão, vermelha, triunfal,
Minha divisa: um coração chagado!...
Florbela Espanca Poemas 271
O Meu Impossível
Minh’alma ardente é uma fogueira acesa,
É um brasido enorme a crepitar!
Ânsia de procurar sem encontrar
A chama onde queimar uma incerteza!
Tudo é vago e incompleto! E o que mais pesa
É nada ser perfeito! É deslumbrar
A noite tormentosa até cegar
E tudo ser em vão! Deus, que tristeza!...
Aos meus irmãos na dor já disse tudo
E não me compreenderam!... Vão e mudo
Foi tudo o que entendi e o que pressinto...
Mas se eu pudesse, a mágoa que em mim chora.
Contar, não a chorava como agora,
Irmãos, não a sentia como a sinto!...
Florbela Espanca Poemas 272
Em Vão
Passo triste na vida e triste sou
Um pobre a quem jamais quiseram bem!
Um caminhante exausto que passou,
Que não diz onde vai nem donde vem.
Ah! Sem piedade, a rir, tanto desdém
A flor da minha boca desdenhou!
Solitário convento onde ninguém
A silenciosa cela procurou!
E eu quero bem a tudo, a toda a gente!...
Ando a amar assim, perdidamente,
A acalentar o mundo nos meus braços!
E tem passado, em vão, a mocidade
Sem que no meu caminho uma saudade
Abra em flores a sombra dos meus passos!
Florbela Espanca Poemas 273
Voz Que Se Cala
Amo as pedras, os astros e o luar
Que beija as ervas do atalho escuro,
Amo as águas de anil e o doce olhar
Dos animais, divinamente puro.
Amo a hera que entende a voz do muro,
E dos sapos, o brando tilintar
De cristais que se afagam devagar,
E da minha charneca o rosto duro.
Amo todos os sonhos que se calam
De corações que sentem e não falam,
Tudo o que é Infinito e pequenino!
Asa que nos protege a todos nós!
Soluço imenso, eterno, que é a voz
Do nosso grande e mísero Destino!...
Florbela Espanca Poemas 274
Para Quê?
Ao velho amigo João
Para que ser o musgo do rochedo
Ou urze atormentada da montanha?
Se a arranca a ansiedade e o medo
E este enleio e esta angústia estranha
E todo este feitiço e este enredo
Do nosso próprio peito? E é tamanha
E tão profunda a gente que o segredo
Da vida como um grande mar nos banha?
Pra que ser asa quando a gente voa
De que serve ser cântico se entoa
Toda a canção de amor do Universo?
Para que ser altura e ansiedade,
Se se pode gritar uma Verdade
Ao mundo vão nas sílabas dum verso?
Florbela Espanca Poemas 275
Sonho Vago
Um sonho alado que nasceu num instante,
Erguido ao alto em horas de demência...
Gotas de água que tombam em cadência
Na minh’alma tristíssima, distante...
Onde está ele o Desejado? O Infante?
O que há de vir e amar-me em doida ardência?
O das horas de mágoa e penitência?
O Príncipe Encantado? O Eleito? O Amante?
E neste sonho eu já nem sei quem sou...
O brando marulhar dum longo beijo
Que não chegou a dar-se e que passou...
Um fogo-fátuo rútilo, talvez...
E eu ando a procurar-te e já te vejo!...
E tu já me encontraste e não me vês!...
Florbela Espanca Poemas 276
Primavera
É Primavera agora, meu Amor!
O campo despe a veste de estamenha;
Não há árvore nenhuma que não tenha
O coração aberto, todo em flor!
Ah! Deixa-te vogar, calmo, ao sabor
Da vida... não há bem que nos não venha
Dum mal que o nosso orgulho em vão desdenha!
Não há bem que não possa ser melhor!
Também despi meu triste burel pardo,
E agora cheiro a rosmaninho e a nardo
E ando agora tonta, à tua espera...
Pus rosas cor-de-rosa em meus cabelos...
Parecem um rosal! Vem desprendê-los!
Meu Amor, meu Amor, é Primavera!...
Florbela Espanca Poemas 277
Blasfêmia
Silêncio, meu Amor, não digas nada!
Cai a noite nos longes donde vim...
Toda eu sou alma e amor, sou um jardim,
Um pátio alucinante de Granada!
Dos meus cílios, a sombra enluarada,
Quando os teus olhos descem sobre mim,
Traça trêmulas hastes de jasmim
Na palidez da face extasiada!
Sou no teu rosto a luz que o alumia,
Sou a expressão das tuas mãos de raça...
E os beijos que me dás já foram meus!
Em ti sou Glória, Altura e Poesia!
E vejo-me – milagre cheio de graça! –
Dentro de ti, em ti, igual a Deus!...
Florbela Espanca Poemas 278
O Teu Olhar
Passam no teu olhar nobres cortejos,
Frotas, pendões ao vento sobranceiros.
Lindos versos de antigos romanceiros,
Céus do Oriente, em brasa, como beijos,
Mares onde não cabem teus desejos;
Passam no teu olhar mundos inteiros,
Todo um povo de heróis e marinheiros,
Lanças nuas em rútilos lampejos;
Passam lendas e sonhos e milagres!
Passa a Índia, a visão do Infante em Sagres,
Em centelhas de crença e de certeza!
E ao sentir-te tão grande, ao ver-te assim,
Amor, julgo trazer dentro de mim
Um pedaço da terra portuguesa!
Outubro, I930.
Florbela Espanca Poemas 279
Noite de Chuva
Chuva... Que gotas grossas!... Vem ouvir:
Uma... duas... mais outra que desceu...
É Viviana, é Melusina a rir,
São rosas brancas dum rosal do céu...
Os lilases deixaram-se dormir...
Nem um frêmito... a terra emudeceu...
Amor! Vem ver estrelas a cair:
Uma... duas... mais outra que desceu...
Fala baixo, juntinho ao meu ouvido,
Que essa fala de amor seja um gemido,
Um murmúrio, um soluço, um ai desfeito...
Ah, deixa à noite o seu encanto triste!
E a mim... o teu amor que mal existe,
Chuva a cair na noite do meu peito!
Florbela Espanca Poemas 280
Tarde de Música
Só Schumann, meu Amor! Serenidade...
Não assustes os sonhos... Ah!, não varras
As quimeras... Amor, senão esbarras
Na minha vaga imaterialidade...
Liszt, agora, o brilhante; o piano arde...
Beijos alados... ecos de fanfarras...
Pétalas dos teus dedos feito garras...
Como cai em pó de oiro o ar da tarde!
Eu olhava para ti... "É lindo! Ideal!"
Gemeram nossas vozes confundidas.
– Havia rosas cor-de-rosa aos molhos –
Falavas de Liszt e eu... da musical
Harmonia das pálpebras descidas,
Do ritmo dos teus cílios sobre os olhos...
Florbela Espanca Poemas 281
Chopin
Não se acende hoje a luz... Todo o luar
Fique lá fora. Bem Aparecidas
As estrelas miudinhas, dando no ar
As voltas dum cordão de margaridas!
Entram falenas meio entontecidas...
Lusco-fusco... Um morcego, a palpitar,
Passa... torna a passar... torna a passar...
As coisas têm o ar de adormecidas...
Mansinho... Roça os dedos p’lo teclado,
No vago arfar que tudo alteia e doira,
Alma, Sacrário de Almas, meu Amado!
E, enquanto o piano a doce queixa exala,
Divina e triste, a grande sombra loira,
Vem para mim da escuridão da sala...
Florbela Espanca Poemas 282
O Meu Desejo
Vejo-te só a ti no azul dos céus,
Olhando a nuvem de oiro que flutua...
Ó minha perfeição que criou Deus
E que num dia lindo me fez sua!
Nos vultos que diviso pela rua,
Que cruzam os seus passos com os meus...
Minha boca tem fome só da tua!
Meus olhos têm sede só dos teus!
Sombra da tua sombra, doce e calma,
Sou a grande quimera da tua alma
E, sem viver, ando a viver contigo...
Deixa-me andar assim no teu caminho
Por toda a vida, Amor, devagarinho,
Até a morte me levar consigo...
Florbela Espanca Poemas 283
Escrava
Ó meu Deus, ó meu dono, ó meu senhor,
Eu te saúdo, olhar do meu olhar,
Fala da minha boca a palpitar,
Gesto das minhas mãos tontas de amor!
Que te seja propício o astro e a flor,
Que a teus pés se incline a terra e o mar,
P’los séculos dos séculos sem par,
Ó meu Deus, ó meu dono, ó meu senhor!
Eu, doce e humilde escrava, te saúdo,
E, de mãos postas, em sentida prece,
Canto teus olhos de oiro e de veludo.
Ah, esse verso imenso de ansiedade,
Esse verso de amor que te fizesse
Ser eterno por toda a Eternidade!...
Florbela Espanca Poemas 284
Divino Instante
Ser uma pobre morta inerte e fria,
Hierática, deitada sob a terra,
Sem saber se no mundo há paz ou guerra,
Sem ver nascer, sem ver morrer o dia,
Luz apagada ao alto e que alumia,
Boca fechada à fala que não erra,
Urna de bronze que a Verdade encerra,
Ah! ser Eu essa morta inerte e fria!
Ah, fixar o efêmero! Esse instante
Em que o teu beijo sôfrego de amante
Queima o meu corpo frágil de âmbar loiro;
Ah, fixar o momento em que, dolente,
Tuas pálpebras descem, lentamente,
Sobre a vertigem dos teus olhos de oiro!
Florbela Espanca Poemas 285
Silêncio!...
No fadário que é meu, neste penar,
Noite alta, noite escura, noite morta,
Sou o vento que geme e quer entrar,
Sou o vento que vai bater-te à porta...
Vivo longe de ti, mas que me importa?
Se eu já não vivo em mim! Ando a vaguear
Em roda à tua casa, a procurar
Beber-te a voz, apaixonada, absorta!
Estou junto de ti e não me vês...
Quantas vezes no livro que tu lês
Meu olhar se poisou e se perdeu!
Trago-te como um filho nos meus braços!
E na tua casa... Escuta!... Uns leves passos...
Silêncio, meu Amor!... Abre! Sou eu!...
Florbela Espanca Poemas 286
O Maior Bem
Este querer-te bem sem me quereres,
Este sofrer por ti constantemente
Andar atrás de ti sem tu me veres
Faria piedade a toda a gente.
Mesmo a beijar-me a tua boca mente...
Quantos sangrentos beijos de mulheres
Poisa na minha a tua boca ardente,
E quanto engano nos seus vãos dizeres!...
Mas que me importa a mim que me não queiras.
Se esta pena, esta dor, estas canseiras,
Este mísero pungir, árduo e profundo
Do teu frio desamor, dos teus desdéns,
É, na vida, o mais alto dos meus bens?
É tudo quanto eu tenho neste mundo?
Florbela Espanca Poemas 287
Os Meus Versos
Rasga esses versos que eu te fiz, Amor!
Deita-os ao nada, ao pó ao esquecimento,
Que a cinza os cubra, que os arraste o vento,
Que a tempestade os leve aonde for!
Rasga-os na mente, se os souberes de cor,
Que volte ao nada o nada dum momento.
Julguei-me grande pelo sentimento,
E pelo orgulho ainda sou maior!...
Tanto verso já disse o que eu sonhei!
Tantos penaram já o que eu penei!
Asas que passam, todo o mundo as sente...
Rasga os meus versos... Pobre endoidecida!
Como se um grande amor cá nesta vida
Não fosse o mesmo amor de toda a gente!...
Florbela Espanca Poemas 288
Amor Que Morre
O nosso amor morreu... Quem o diria!
Quem o pensara mesmo ao ver-me tonta,
Ceguinha de te ver, sem ver a conta
Do tempo que passava, que fugia!
Bem estava a sentir que ele morria...
E outro clarão, ao longe, já desponta!
Um engano que morre... e logo aponta
A luz doutra miragem fugidia...
Eu bem sei, meu Amor, que pra viver
São precisos amores, pra morrer
E são precisos sonhos pra partir.
Eu bem sei, meu Amor, que era preciso
Fazer do amor que parte o claro riso
Doutro amor impossível que há de vir!
Florbela Espanca Poemas 289
Sobre a Neve
Sobre mim, teu desdém, pesado jaz
Como um manto de neve... Quem dissera
Porque tombou em plena primavera
Toda essa neve que o Inverno traz!
Coroavas-me inda há pouco de lilás
E de rosas silvestres... quando eu era
Aquela que o Destino prometera
Aos teus rútilos sonhos de rapaz!
Dos beijos que me deste não te importas,
Asas paradas de andorinhas mortas...
Folhas de Outono em correria louca...
Mas inda um dia, em mim, ébrio de cor,
Há de nascer um roseiral em flor
Ao sol de Primavera doutra boca!
Florbela Espanca Poemas 290
Eu Não Sou de Ninguém...
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Eu não sou de ninguém!... Quem me quiser
Há de ser luz do sol em tardes quentes,
Nos olhos de água clara há de trazer
As fúlgidas pupilas das videntes!
Há de ser seiva no botão repleto
Voz no murmúrio do pequeno inseto,
Vento que enfuna as velas sobre os mastros!...
Há de ser Outro e Outro num momento!
Força viva, brutal, em movimento,
Astro arrastando catadupas de astros!
Florbela Espanca Poemas 291
Vão Orgulho
Neste mundo vaidoso o amor é nada,
É um orgulho a mais, outra vaidade,
A coroa de loiros desfolhada
Com que se espera a Imortalidade.
Ser Beatriz! Natércia! Irrealidade...
Mentira... Engano de alma desvairada...
Onde está desses braços a verdade,
Essa fogueira em cinzas apagadas?...
Mentira! Não te quis... não me quiseste...
Eflúvios sutis dum bem celeste?
Gestos... palavras sem nenhum condão...
Mentira! Não fui tua... não! Somente...
Quis ser mais do que sou, mais do que gente,
No alto orgulho de o ter sido em vão!...
Florbela Espanca Poemas 292
Último Sonho de "Sóror Saudade"
Àquele que se perdera no caminho...
Sóror Saudade abriu a sua cela...
E, num encanto que ninguém traduz,
Despiu o manto negro que era dela,
Seu vestido de noiva de Jesus.
E a noite escura, extasiada ao vê-la,
As brancas mãos no peito quase em cruz,
Teve um brilhar feérico de estrela
Que se esfolhasse em pétalas de luz!
Sóror Saudade olhou... Que olhar profundo
Que sonha e espera?... Ah! como é feio o mundo.
E os homens vãos! – Então, devagarinho,
Sóror Saudade entrou no seu convento...
E, até morrer, rezou, sem um lamento,
Por Um que se perdera no caminho!...
Florbela Espanca Poemas 293
Esquecimento
Esse de quem eu era e que era meu,
Que foi um sonho e foi realidade,
Que me vestiu a alma de saudade,
Para sempre de mim desapar’ceu.
Tudo em redor então escureceu,
E foi longínqua toda a claridade!
Ceguei... tateio sombras... Que ansiedade!
Apalpo cinzas porque tudo ardeu!
Descem em mim poentes de Novembro...
A sombra dos meus olhos, a escurecer...
Veste de roxo e negro os crisântemos...
E desse que era meu já me não lembro...
Ah, a doce agonia de esquecer
A lembrar doidamente o que esquecemos!...
Florbela Espanca Poemas 294
Roseira Brava
Há nos teus olhos de oiro um tal fulgor
E no teu riso tanta claridade,
Que o lembrar-me de ti é ter saudade
Duma roseira brava toda em flor.
Tuas mãos foram feitas para a dor,
Para os gestos de doçura e piedade;
E os teus beijos de sonho e de ansiedade
São como a alma a arder do próprio Amor!
Nasci envolta em trajes de mendiga;
E, ao dares-me o teu amor de maravilha,
Deste-me o manto de oiro de rainha!
Tua irmã... teu amor... e tua amiga...
E também – toda em flor – a tua filha,
Minha roseira brava que é só minha!...
Florbela Espanca Poemas 295
Pobrezinha
Nas nossas duas sinas tão contrárias
Um pelo outro somos ignorados:
Sou filha de regiões imaginárias,
Tu pisas mundos firmes já pisados.
Trago no olhar visões extraordinárias
De coisas que abracei de olhos fechados...
Em mim não trago nada, como os párias...
Só tenho os astros, como os deserdados...
E das tuas riquezas e de ti
Nada me deste e eu nada recebi,
Nem o beijo que passa e que consola.
E o meu corpo, minh'alma e coração
Tudo em risos poisei na tua mão!...
... Ah! como é bom um pobre dar esmola!...
Florbela Espanca Poemas 296
O Meu Soneto
Em atitudes e em ritmos fleugmáticos,
Erguendo as mãos em gestos recolhidos,
Todos os brocados fúlgidos, hieráticos,
Em ti andam bailando os meus sentidos...
E os meus olhos serenos, enigmáticos,
Meninos que na estrada andam perdidos,
Dolorosos, tristíssimos, extáticos,
São letras de poemas nunca lidos...
As magnólias abertas dos meus dedos
São mistérios, são filtros, são enredos
Que pecados d’amor trazem de rastos...
E a minha boca, a rútila manhã,
Na Via Láctea, lírica, pagã,
A rir desfolha as pétalas dos astros!...
Florbela Espanca Poemas 297
Navios-Fantasmas
O arabesco fantástico do fumo
Do meu cigarro traça o que disseste,
A azul, no ar; e o que me escreveste,
E tudo o que sonhaste e eu presumo.
Para a minha alma estática e sem rumo,
A lembrança de tudo o que me deste
Passa como o navio que perdeste,
No arabesco fantástico do fumo...
Lá vão! Lá vão! Sem velas e sem mastros,
Têm o brilho rutilante de astros,
Navios-fantasmas, perdem-se à distância!
Vão-me buscar, sem mastros e sem velas,
Noiva-menina, as doidas caravelas,
Ao ignoto País da minha infância...
Florbela Espanca Poemas 298
Nihil Novum
Na penumbra do pórtico encantado
De Bruges, noutras eras, já vivi;
Vi os templos do Egito com Loti;
Lancei flores, na Índia, ao rio sagrado.
No horizonte de bruma opalizado,
Frente ao Bósforo errei, pensando em ti!
O silêncio dos claustros conheci
Pelos poentes de nácar e brocado...
Mordi as rosas brancas de Ispaã
E o gosto a cinza em todas era igual!
Sempre a charneca bárbara e deserta,
Triste, a florir numa ansiedade vã!
Sempre da vida – o mesmo estranho mal,
E o coração – a mesma chaga aberta!
Florbela Espanca Poemas 299
Loucura
Tudo cai! Tudo tomba! Derrocada
Pavorosa! Não sei onde era dantes.
Meu solar, meus palácios meus mirantes!
Não sei de nada, Deus, não sei de nada!...
Passa em tropel febril a cavalgada
Das paixões e loucuras triunfantes!
Rasgam-se as sedas, quebram-se os diamantes!
Não tenho nada, Deus, não tenho nada!...
Pesadelos de insônia, ébrios de anseio!
Loucura a esboçar-se, a enegrecer
Cada vez mais as trevas do meu seio!
Ó pavoroso mal de ser sozinha!
Ó pavoroso e atroz mal de trazer
Tantas almas a rir dentro da minha!
Florbela Espanca Poemas 300
Deixai Entrar a Morte
Deixai entrar a Morte, a Iluminada,
A que vem para mim, pra me levar.
Abri todas as portas par em par
Com asas a bater em revoada.
Que sou eu neste mundo? A deserdada,
A que prendeu nas mãos todo o luar,
A vida inteira, o sonho, a terra, o mar
E que, ao abri-las, não encontrou nada!
Ó Mãe! Ó minha Mãe, pra que nasceste?
Entre agonias e em dores tamanhas
Pra que foi, dize lá, que me trouxeste
Dentro de ti?... Pra que eu tivesse sido
Somente o fruto amargo das entranhas
Dum lírio que em má hora foi nascido!...
Florbela Espanca Poemas 301
À Morte
Morte, minha Senhora Dona Morte,
Tão bom que deve ser o teu abraço!
Lânguido e doce como um doce laço
E como uma raiz, sereno e forte.
Não há mal que não sare ou não conforte
Tua mão que nos guia passo a passo,
Em ti, dentro de ti, no teu regaço
Não há triste destino nem má sorte.
Dona Morte dos dedos de veludo,
Fecha-me os olhos que já viram tudo!
Prende-me as asas que voaram tanto!
Vim da Moirama, sou filha de rei,
Má fada me encantou e aqui fiquei
À tua espera,... quebra-me o encanto!
Florbela Espanca Poemas 303
Esparsa Seleta
(1917-1930)
Florbela Espanca Poemas 305
Idílio29
Um idílio passou à minha rua
Ontem a horas mortas e caladas,
Ele e Ela passaram de mãos dadas,
Mais brancos do que a própria luz da lua.
Passaram ao clarão do amor primeiro,
Olhos nos olhos cheios de luar.
E no seio da noite aquele olhar
Par'cia encher de sol o mundo inteiro!
29 Os quatro sonetos que se seguem – "Idílio", "Idílio Rústico", "A Minha Morte" e "Meu Amor" – surgem, pela primeira vez, na edição já citada de Costa Leão, Poetas do Sul – Bernardo de Passos e Florbela Espanca. Inéditos até 1948, ano
dessa publicação, eles integravam uma antologia de dezessete peças, preparada por Florbela em 1917, com o título de Primeiros Versos, com o fito de, segundo Costa Leão, obter editor. Os restantes poemas dessa antologia, como já discuti
em Florbela Espanca, Trocando Olhares, pertenceriam a Livro de Mágoas e a Trocando Olhares. Deles, segundo cogito, o "Meu Amor" guarda traços da interlocução de Florbela com a poética de Américo Durão, sobretudo pela menção explícita de buscar "o ideal na dor" (que o último verso do segundo quarteto registra)
Florbela Espanca Poemas 306
E Deus mandou que a terra se calasse,
Que ouvisse os passos deles, que escutasse
Como o Amor caminha devagar...
Era a terra calada como um monge...
E os passos deles ao perder-se ao longe,
O coração da noite a palpitar!...
Florbela Espanca Poemas 307
Idílio Rústico
O Sol ia dormir pra além do monte
E antes de dormir 'stava a rezar...
Dois namorados riam junto à fonte,
Rezando as orações do seu sonhar!
Ela era a mais formosa rapariga
Ali e nas dez léguas ao redor;
Se me não acreditam, que ele o diga
Se não era a mais linda e a melhor.
Mas o Sol já dormia além do monte...
E a namorada linda junto à fonte
Corava dum pedido, envergonhada...
Mas eram horas, tinha de ir pra casa...
... E o beijo leve como um bater de asa
Soou na noite... Mas não digam nada!
Florbela Espanca Poemas 308
A Minha Morte
Eu quero, quando morrer, ser enterrada
Ao pé do Oceano ingênuo e manso,
Que reze à meia-noite em voz magoada
As orações finais em meu descanso...
Há de embalar-me o berço derradeiro
O mar amigo e bom para eu dormir!
Velei na vida o meu viver inteiro,
E nunca mais tive um sonho a que sorrir!
E tu hás de lá ir... bem sei que vais...
E eu do brando sono hei de acordar
Para os teus olhos ver uma vez mais!
E a Lua há de dizer-me em voz mansinha:
– Ai, não te assustes... dorme... foi o Mar
Que gemeu... mas não foi nada... 'stá quietinha...
Florbela Espanca Poemas 309
Meu Amor
De ti somente um nome sei, Amor,
É pouco, é muito pouco e é bastante
Para que esta paixão doida e constante
Dia após dia cresça com vigor!
Como de um sonho vago e sem fervor
Nasce assim uma paixão tão inquietante!
Meu doido coração triste e amante
Como tu buscas o ideal na dor!
Isto era só quimera, fantasia,
Mágoa de sonho que se esvai num dia,
Perfume leve dum rosal do céu...
Paixão ardente, louca isto é agora,
Vulcão que vai crescendo hora por hora...
O meu amor, que imenso amor o meu!
Florbela Espanca Poemas 310
A Uma Saudade30
Roxa saudade, roxa! Triste... Triste!...
Um doce olhar aveludado e puro
Fazes surgir do meu passado escuro,
Na mesma dor imensa em que surgiste!
És cinza dum amor que não existe!
Evocas na minh'alma o que murmuro
Sem saber o quê, o que procuro
Na minha vida amargamente triste!
30 Os quatro sonetos seguintes - "A Uma Saudade", "Crepúsculo",
"Desdenhando" e "O Meu Amor" – foram publicados por Armando Nobre
Gusmão, no citado artigo, pp. 241-243. Ele indica que tais peças, acrescidas de
outras tantas (na sua maioria, pertenças de Trocando Olhares), jaziam
ignoradas, "na sua maior parte, em números vários do jornal Noticias de Évora,
do ano de 1916". Todavia, embora registre nas outras peças as respectivas
referências bibliográficas, já no que concerne a estas não há qualquer anotação
de data ou de origem. Mas, como o título do seu texto refere-se a poesia
"juvenis" de Florbela, é de convir que, segundo ele, as em pauta sejam
anteriores a Livro de Mágoas (1919).
Florbela Espanca Poemas 311
Roxa saudade, és um soluço imenso!
O símbolo de tudo quanto penso!
Única luz de tudo quanto eu vejo!
Roxa saudade! Ó meu perfume leve
És um amor que se esqueceu tão breve,
Que nem durou o frêmito dum beijo...
Florbela Espanca Poemas 312
Crepúsculo
Horas crepusculares tão magoadas,
Correm de leve, preguiçosamente...
Cai a tardinha sonhadoramente...
Vamos os dois sozinhos, de mãos dadas!...
Sonham as flores das hastes debruçadas...
Fecho os olhos, cansada, languescente...
É todo oiro e púrpura o poente!
Que lindas são as sombras das estradas!...
São sorrisos teus olhos... Teu olhar
Anda abraçado ao meu, sem o beijar
Numa carícia imensa, ardente, louca!
Anda já o luar pelos caminhos...
Há brandas serenatas pelos ninhos...
– Tu fitas num anseio a minha boca!
Florbela Espanca Poemas 313
Desdenhando
Irrita-me esse olhar tão de desdém,
Esse teu ar de superioridade,
Altivo para mim, como de quem
Olha de longe o mundo e a vaidade.
Sei que me tens amor e, na verdade,
De que serve fingir, se quem o tem
Nunca pode escondê-lo de ninguém;
E toda a gente o tem na nossa idade!
"Amor" – linda palavra, tão suave!
É riso de criança, trilo d'ave,
Renda tecida à noite p'lo luar!
Eu digo-a tantas vezes com fervor,
Que nem sei como ela, meu Amor,
Te custe uma só vez a murmurar!...
Florbela Espanca Poemas 314
O Meu Amor
Trago dentro de mim, amortalhado,
Um amor de tragédia, extraordinário,
Amor que é uma cruz sobre um Calvário
Onde o meu peito jaz crucificado!
Amor que é um rosal, já desfolhado,
De pétalas dum branco funerário,
Amor que tem os gelos dum sudário,
E as chamas dum inferno não sonhado!
Amor que compreende mil amores,
Amor que tem em si todas as dores,
Amor que nem eu sei o que ele encerra...
Amor de sacrifício e de saudade,
Amor que é um poema de bondade,
Amor que é o maior amor da terra!
Florbela Espanca Poemas 315
O Que Alguém Disse31
"Refugia-te na Arte" diz-me Alguém
"Eleva-te num vôo espiritual,
Esquece o teu amor, ri do teu mal,
Olhando-te a ti própria com desdém.
Só é grande e perfeito o que nos vem
Do que em nós é Divino e imortal!
Cega de luz e tonta de ideal
Busca em ti a Verdade e em mais ninguém!"
No poente do irado como a chama
Estas palavras morrem... E n'Aquele
Que é triste, como eu, fico a pensar...
31 Este poema pertence ao manuscrito autógrafo depositado na Biblioteca
Nacional, intitulado Claustro das Quimeras, que contém trinta e cinco sonetos. Trata-se de um dos originais do Livro de "Sóror Saudade", e apenas este soneto, dentre todos, não veio à luz no livro em questão. Data o poema de antes de 1923, situando-se presumivelmente entre a estréia literária de Florbela e a segunda obra.
Florbela Espanca Poemas 316
O poente tem alma: sente e ama!
E, porque o sol é cor dos olhos d'Ele,
Eu fico olhando o sol, a soluçar...
Florbela Espanca Poemas 317
Mentira 32
Andava a procurar-te, ó doce Irmão!
E foi esta talvez a minha sina:
Ter pra te dar minh'alma, alma divina,
E encontrar-te... e tudo ser em vão...
Dementa-me, alucina-me a expressão,
A linha altiva, desdenhosa e fina,
Romântica, perversa e feminina
Dessa boca que é sonho e perfeição.
Mas nem um beijo quero, ó meu Amor!
Tu sabes lá amar seja quem for!...
Tu podes lá sentir amor, sequer!...
32 Os seis poemas que se seguem – "Mentira", "O Teu Livro", "Outono",
"Mãezinha", "Quem?..." e "Sem Palavras" – pertencem ao manuscrito autógrafo sem título, depositado na Biblioteca Nacional de Lisboa, que começa com o soneto "Livro do Nosso Amor", composto de trinta peças. Os restantes ingressaram no Livro de "Sóror Saudade": presumivelmente são anteriores a 1923 e posteriores a 1919.
Florbela Espanca Poemas 318
A minha boca em tua boca expira,
– Mas tudo é sonho, Amor! Tudo é mentira!
É mentira o que eu digo... Eu sou mulher!... –
Florbela Espanca Poemas 319
O Teu Livro
Li o teu livro, Amor, sofregamente;
Li-o, e nele em vão me procurei!
No teu livro d'amor não me encontrei,
Tendo lá encontrado toda a gente.
Um livro é a nossa alma, nunca mente!
Um livro somos nós, eu bem o sei...
E se em teus lindos versos não me achei
É que a tua alma nem sequer me sente!
As rosas do teu livro! As tuas rosas!
Rubros beijos de bocas mentirosas,
Desfolhaste-as por todas as mulheres!
Mas deixa, meu Amor, mesmo pisadas,
As tuas lindas rosas desfolhadas,
Eu apanho-as do chão, se tu quiseres...
Florbela Espanca Poemas 320
Outono
Outono vem em fulvas claridades...
Vamos os dois esp'rá-lo de mãos dadas:
Tu, desfolhando as rosas das estradas,
E eu, escutando o choro das saudades...
Outono vem em doces suavidades...
E a acender fogueiras apagadas
Andam almas no céu, ajoelhadas...
E a terra reza a prece das Trindades.
Choram no bosque os musgos e os fetos.
Vogam nos lagos pálidos e quietos,
Como gôndolas d'oiro, as borboletas.
Meu Amor! Meu Amor! Outono vem...
Beija os meus olhos roxos, beija-os bem!
Desfolha essas primeiras violetas!...
Florbela Espanca Poemas 321
Mãezinha
Andam em mim fantasmas, sombras, ais...
Coisas que eu sinto em mim, que eu sinto agora;
Névoas de dantes, dum longínquo outrora;
Castelos d'oiro em mundos irreais...
Gotas d'água tombando... Roseirais
A desfolhar-se em mim como quem chora...
– E um ano vale um dia ou uma hora,
Se tu me vais fugindo mais e mais!...
Ó meu Amor, meu seio é como um berço!
Ondula brandamente... brandamente...
Num ritmo escultural d'onda ou de verso!
No mundo quem te vê?! Ele é enorme!...
Amor, sou tua mãe! Vá... docemente
Poisa a cabeça... fecha os olhos... dorme...
Florbela Espanca Poemas 322
Quem?...
Não sei quem és. Já te não vejo bem...
E oiço-me dizer (ai, tanta vez!...)
Sonho que um outro sonho me desfez?
Fantasma de que amor? Sombra de quem?
Nevoa? Quimera. Fumo? Donde vem?...
– Não sei se tu, Amor, assim me vês!...
Nossos olhos não são nossos, talvez...
Assim, tu não és tu! Não és ninguém!...
És tudo e não és nada... És a desgraça...
És quem nem sequer vejo; és um que passa...
És sorriso de Deus que não mereço...
És Aquele que vive e que morreu...
És Aquele que é quase um outro Eu...
És Aquele que nem sequer conheço...
Florbela Espanca Poemas 323
Sem Palavras
Brancas, suaves, doces mãos de irmã
Que são mais doces do que as das rainhas,
Hão de poisar em tuas mãos, as minhas
Numa carícia transcendente e vã.
E a tua boca a divinal manhã
Que diz as frases com que me acarinhas,
Há de poisar nas dolorosas linhas
Da minha boca purpurina e sã...
Meus olhos hão de olhar teus olhos tristes;
Só eles te dirão que tu existes
Dentro de mim num riso d'alvorada!
E nunca se amará ninguém melhor:
Tu calando de mim o teu amor,
Sem que eu nunca do meu te diga nada!...
Florbela Espanca Poemas 324
[Trazes-Me Em Tuas Mãos de Vitorioso]
Trazes-me em tuas mãos de vitorioso33
Todos os bens que a vida me negou,
E todo um roseiral, a abrir, glorioso,
Que a solitária estrada perfumou.
Neste meio-dia límpido, radioso,
Sinto o teu coração que Deus talhou
Num pedaço de bronze luminoso,
Como um berço onde a vida me poisou.
O silêncio, em redor, é uma asa quieta...
E a tua boca que sorri e anseia,
Lembra um cálix de túlipa entreaberta...
Cheira a ervas amargas, cheira a sândalo...
E o meu corpo ondulante de sereia
Dorme em teus braços másculos de vândalo...
33 Dito de 1930, o autógrafo deste soneto sem título pertence aos herdeiros de Ângelo Cesar.
Florbela Espanca Poemas 325
Liberta!34
Eu ponho-me a sonhar transmigrações
Impossíveis, longínquas, milagrosas,
Vôos amplos, céus distantes, migrações
Longe... noutras esferas luminosas!
E pelo meu olhar passam visões:
Ilhas de bruma e nácar, d'oiro e rosas...
E eu penso que, liberta de grilhões,
Hei de aportar às Ilhas misteriosas!
....................................................
....................................................
....................................................
34 Os autógrafos dos três sonetos seguintes ("Liberta!", "À Tua Porta Há Um Pinheiro Manso" e "Há Nos Teus Olhos de Dominador" – os dois últimos sem
título) pertencem ao Grupo Amigos de Vila Viçosa e foram-lhe doados por Mário Lage, derradeiro marido de Florbela. Os dois últimos ostentam a data de "Outubro de 1930", mas este inicial tem a metade da folha suprimida, razão por que se desconhecem sua data e seus tercetos. Guido Battelli o publicou em Juvenilia.
Florbela Espanca Poemas 326
[A Tua Porta Há Um Pinheiro Manso]
A tua porta há um pinheiro manso
De cabeça pendida, a meditar,
Amor! Sou eu, talvez, a contemplar
Os doces sete palmos do descanso.
Sou eu que para ti agito e lanço,
Como um grito, meus ramos pelo ar,
Sou eu que estendo os braços a chamar
Meu sonho que se esvai e não alcanço.
Eu que do sol filtro os ruivos brilhos
Sobre as loiras cabeças dos teus filhos
Quando o meio-dia tomba sobre a serra...
E, à noite, a sua voz dolente e vaga
É o soluço da minha alma em chaga:
Raiz morta de sede sob a terra!
Florbela Espanca Poemas 327
[Há Nos Teus Olhos de Dominador]
Há nos teus olhos de dominador,
No teu perfil altivo de romano,
No teu riso de graça e de esplendor
Um misterioso ideal divino e humano.
Cruz de Cristo sangrando sobre o pano
Das velas altas, lá vai, sobre o fragor
Dum mar sereno, cristalino e plano,
A tua barca de conquistador!
Eu quero ir contigo a esses distantes
Reinos! Deixa-me erguer as brancas velas,
Ser um dos teus audazes navegantes!
Meus olhos cegos são dois poços fundos...
– Conta-me o céu! Ensina-me as estrelas!
Mostra-me a estrada dos teus Novos Mundos!
Florbela Espanca Poemas 329
Índice
Florbela: um caso feminino e poético, V
I. O Affaire Florbela Espanca, IX
II. A Obra de Florbela Espanca, XXVII
Pequena Biografia de Florbela Espanca, XLV
Bibliografia de Florbela Espanca, LVII
Critérios Desta Edição, LIX
Trocando Olhares (1915-1917), I
Dedicatória, 3
As Quadras Dele (I), 4
Cantigas Leva-as o Vento... , I0
Num Postal, 11
Sonhos..., 12
No Minho, 13
A Doida, 14
Poetas, 16
Desafio, 17
O Teu Olhar, 19
Florbela Espanca Poemas 330
Crisântemos, 21
Que Diferença!..., 22
Os Teus Olhos, 23
Doce Milagre, 24
Folhas de Rosa, 26
Dantes..., 28
As Quadras dele (II), 31
Junquilhos..., 36
O Fado, 37
Verdades Cruéis, 38
[Li Um Dia, Não Sei Onde], 39
As Quadras Dele (III), 40
Carta Para Longe, 44
Triste Passeio, 46
Mentiras, 48
Cemitérios, 49
A Mulher - I, 52
A Mulher - II, 53
No Hospital, 54
Os Meus Versos, 55
As Quadras Dele (IV), 56
Aos Olhos Dele, 59
Súplica (I), 60
[Embalada Num Sonho Aurifulgente], 61
Mistério D'amor, 62
Escreve-me..., 63
O Meu Alentejo, 64
A Voz de Deus, 65
Paisagem, 66
Filhos, 67
Às Mães de Portugal, 69
Doce Certeza, 71
O Teu Segredo, 72
Sonho Morto, 73
Florbela Espanca Poemas 331
Súplica (II), 74
Sonhando..., 76
Noites da Minha Terra, 77
Vozes do Mar, 78
Cravos Vermelhos, 79
Saudade, 80
Visões da Febre, 81
Oração, 82
À Guerra!, 83
Meu Portugal, 84
Desejo, 86
Anseios, 87
O Espectro, 88
Confissão, 89
Poder da Graça, 90
Aonde?..., 91
Quem Sabe?!..., 92
Nunca Mais!, 93
Triste Destino!, 94
Humildade, 95
Oração de Joelhos, 96
Aos Olhos d'Ele, 97
Desdém, 98
Rústica, 100
?!..., 102
Súplica (III), 103
A Anto!, 104
Escuta, I05
Talvez, I06
Sol Posto, I07
Estrela Cadente, I08
Versos, I09
Duas Quadras, 110
Balada, 111
Florbela Espanca Poemas 332
"Noite Trágica", 112
Sonhos, 113
Vulcões, 114
Errante, 115
Só, 116
Sonetos, 117
(I) Desalento, 118
(II) A Um Livro, 119
(III) Maior Tortura, 120
(IV) Cegueira Bendita, 121
(V) Noivado Estranho, 122
Livro de Mágoas (1919), 123
Este Livro..., 131
Vaidade, 132
Eu..., 133
Castelã da Tristeza, 134
Tortura, 135
Lágrimas Ocultas, 136
Torre de Névoa, 137
A Minha Dor, 138
Dizeres Íntimos, 139
As Minhas Ilusões, 140
Neurastenia, 141
Pequenina, 142
A Maior Tortura, 143
A Flor do Sonho, 144
Noite de Saudade, 145
Angústia, 146
Amiga, 147
Desejos Vãos, 148
Pior Velhice, 149
Florbela Espanca Poemas 333
A Um Livro, 150
Alma Perdida, 151
De Joelhos, 152
Languidez, 153
Para quê?!, 154
Ao Vento, 155
Tédio, 156
A Minha Tragédia, 157
Sem Remédio, 158
Mais Triste, 159
Velhinha, 160
Em Busca do Amor, 161
Impossível, 162
Livro de "Sóror Saudade" (1923), 163
"Sóror Saudade", 167
O Nosso Livro, 169
O Que Tu És..., 170
Fanatismo, 171
Alentejano, 172
Fumo, 173
ue Importa?...., 174
O Meu Orgulho, 175
Os Versos Que Te Fiz, 176
Frieza, 177
O Meu Mal, 178
A Noite Desce..., 179
Caravelas..., 180
Inconstância, 181
O Nosso Mundo, 182
Prince Charmant..., 183
Anoitecer, 184
Q
Florbela Espanca Poemas 334
Esfinge, 185
Tarde Demais..., 186
Cinzento, 187
Noturno, 188
Maria das Quimeras, 189
Saudades, 190
Ruínas, 191
Crepúsculo, 192
Ódio?, 193
Renúncia, 194
A Vida, 195
Horas Rubras, 196
Suavidade..., 197
Princesa Desalento, 198
Sombra, 199
Hora Que Passa, 200
Da Minha Janela, 201
Sol Poente, 202
Exaltação, 203
Charneca em Flor (1931, póstuma), 205
Charneca Em Flor, 209
Versos de Orgulho, 210
Rústica, 211
Realidade, 212
Conto de Fadas, 213
A Um Moribundo, 214
Eu, 215
Passeio ao Campo, 216
Tarde no Mar, 217
Se Tu Viesses Ver-me..., 218
Mistério, 219
Florbela Espanca Poemas 335
O Meu Condão, 220
As Minhas Mãos, 221
Noitinha, 222
Lembrança, 223
A Nossa Casa, 224
Mendiga, 225
Supremo Enleio, 226
Toledo, 227
Outonal, 228
Ser Poeta, 229
Alvorecer, 230
Mocidade, 231
Amar!, 232
Nostalgia, 233
Ambiciosa, 234
Crucificada, 235
Espera..., 236
Interrogação, 237
Volúpia, 238
Filtro, 239
Mais Alto, 240
Nervos D'oiro, 241
A Voz da Tília, 242
Não Ser, 243
?, 244
In Memoriam, 245
Árvores do Alentejo, 246
Quem Sabe?..., 247
A Minha Piedade, 248
Sou Eu!, 249
Panteismo, 250
Pobre de Cristo, 251
A Uma Rapariga, 252
Minha Culpa, 253
Florbela Espanca Poemas 336
Teus olhos, 254
He Hum Não Querer Mais Que Bem Querer, 255
I, 256
II, 257
III, 258
IV, 259
V, 260
VI, 261
VII, 262
VIII, 263
IX, 264
X, 265
Reliquiae (1931, póstuma), 267
Évora, 269
A Janela de Garcia de Rezende, 270
O Meu Impossível, 271
Em Vão, 272
Voz Que Se Cala, 273
Para Quê?, 274
Sonho Vago, 275
Primavera, 276
Blasfêmia, 277
O Teu Olhar, 278
Noite de Chuva, 279
Tarde de Música, 280
Chopin, 281
O Meu Desejo, 282
Escrava, 283
Divino Instante, 284
Silêncio!..., 285
O Maior Bem, 286
Florbela Espanca Poemas 337
Os Meus Versos, 287
Amor Que Morre, 288
Sobre a Neve, 289
Eu Não Sou de Ninguém..., 290
Vão orgulho, 291
Último sonho de "Sóror Saudade", 292
Esquecimento, 293
Roseira Brava, 294
Pobrezinha, 295
O Meu Soneto, 296
Navios-Fantasmas, 297
Nihil Novum, 298
Loucura, 299
Deixai Entrar a Morte, 300
A Morte, 301
Esparsa Seleta (1917-1930), 303
Idílio, 305
Idílio Rústico, 307
A minha Morte, 308
Meu Amor, 309
A Uma Saudade, 310
Crepúsculo, 312
Desdenhando, 313
O Meu Amor, 314
O Que Alguém Disse, 315
Mentira, 317
O Teu Livro, 319
Outono, 320
Mãezinha, 321
Quem?..., 322
Sem Palavras, 323
Florbela Espanca Poemas 338
[Trazes-me Em Tuas Mãos de Vitorioso], 324
Liberta!, 325
[À Tua Porta Há Um Pinheiro Manso], 326
[Há Nos Teus Olhos de Dominador], 327
Impressão:
Gráfica Palas Alhena
Florbela Espanca Poemas 339