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Ericson Falabretti Jelson Oliveira IESDE Brasil S.A. Curitiba 2011 Filosofia: O Livro das Perguntas

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Ericson FalabrettiJelson Oliveira

IESDE Brasil S.A.Curitiba

2011

Filosofia:O Livro das Perguntas

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IESDE Brasil S.A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br

Todos os direitos reservados.

© 2010 – IESDE Brasil S.A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito dos autores e do detentor dos direitos autorais.

Capa: IESDE Brasil S.A.

Imagem da capa: Domínio público

F177f Falabretti, Ericson. Oliveira, Jelson. / Filosofia: O Livro das Perguntas. / Ericson Falabretti; Jelson Oliveira. — Curitiba : IESDE Brasil S.A., 2011.

320 p.

ISBN: 978-85-387-1714-0

1. Filosofia. 2. História da Filosofia. 3. Filósofos. 4. Mito e Ciência. 5. Corren-tes Filosóficas. I. Título.

CDD 109

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Doutor e mestre em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Graduado em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Professor e coordenador do programa de pós-graduação (mestrado) em Filosofia da Pontifí-cia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Autor de artigos e ensaios na área de Filosofia.

Ericson Falabretti

Doutor em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Professor do programa de pós-graduação (mestrado) em Filosofia na Universidade Federal do Paraná (PUCPR). Diretor do curso de licenciatura em Filosofia na PUCPR. Poeta e escritor, tem artigos e livros publicados na área de Filosofia, dentre os quais A solidão como virtude moral em Nietzsche (Curitiba: Champagnat, 2010).

Jelson Oliveira

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Sumário

O Livro das Perguntas ................................................................9

De onde viemos? (O mito) .................................................... 15

O mito no mundo grego ......................................................................................................... 18

Depois do mito, a Filosofia ..................................................................................................... 23

Qual a origem do mundo? (Período naturalista) .......... 37

O momento pré-socrático ...................................................................................................... 37

Os filósofos originários ............................................................................................................ 40

Quem somos? (Platão) ............................................................ 59

O nascimento da Filosofia ...................................................................................................... 59

O inteligível e o sensível ......................................................................................................... 62

A dialética e o conhecimento ............................................................................................... 64

A alma e o conhecimento como reminiscência ............................................................. 67

O que são o ser, o mundo e o homem? (Aristóteles) ... 83

A sistematização do conhecimento ................................................................................... 83

A metafísica ................................................................................................................................. 87

A física ........................................................................................................................................... 91

A psicologia ................................................................................................................................. 94

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Como devemos viver? (Helenistas) ..................................109

O estoicismo ..............................................................................................................................113

Epicurismo .................................................................................................................................115

Ceticismo e cinismo ................................................................................................................120

Neoplatonismo ........................................................................................................................122

É possível conciliar fé e razão? (Patrística e escolástica) ...........................................................................135

Santo Agostinho: fé e razão como garantias da felicidade ......................................137

Fé e razão na escolástica .......................................................................................................143

A sistematização de São Tomás de Aquino ....................................................................145

Como podemos conhecer? (Empirismo e racionalismo) ........................................................................159

Velhos e novos problemas ...................................................................................................159

Bacon e o empirismo .............................................................................................................163

Descartes e o racionalismo moderno ..............................................................................169

A dúvida metódica e a experiência estruturada ..........................................................176

Somos livres? (Maquiavel e Rousseau) ...........................189

A força..........................................................................................................................................189

O direito político ......................................................................................................................191

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Até onde podemos conhecer? (Kant) .............................219

A era moderna e uma nova visão de mundo ................................................................221

O que posso saber?.................................................................................................................223

O que devo fazer?....................................................................................................................228

Qual o valor da vida? (Niilismo) .........................................243

O século da suspeita ..............................................................................................................243

A crise niilista ............................................................................................................................245

A morte de Deus ......................................................................................................................247

A ambiguidade do niilismo .................................................................................................250

O que é estar no mundo? (Husserl e Merleau-Ponty)........................................................................267

O esquecimento da experiência primeira ......................................................................267

Intencionalidade e redução: a redescoberta da experiência subjetiva ...............273

O ser no mundo: corpo e existência .................................................................................277

Para onde vamos? (Natureza e técnica) .........................295

A técnica como aumento do poder ..................................................................................295

O poder de Prometeu ............................................................................................................297

De como a técnica pode se converter em uma ameaça ...........................................300

O princípio responsabilidade ..............................................................................................302

O poder do homem sobre si mesmo ...............................................................................306

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O Livro das Perguntas

Quis o mito que Athena – aquela deusa parida da cabeça de Zeus a golpes de machado, já senhora das reflexões, deusa do raio, da guerra e da inteligência – adotasse uma ave como sua. Desde então, a coruja de olhar vigilante aninhou-se nas colônias gregas até as periferias da Hélade e as colunas monumentais do areó- pago central do mundo helênico, seus jardins e perípatos, sobrevoando homens e mares como poucas vezes se viu. Faz tempo que é assim. Desde que o entusias-mo do voo dessa ave sagrada entusiasmou um velho obscuro como Heráclito e/ou um desastrado como Tales. E fez profundas as marcas de suas garras na alma grega de um Sócrates ou de um Platão, ainda atônitos com a grande descoberta da razão e seus encantos, até os píncaros de um sistema tão intangível quanto o de Aristóteles e tão encantador quanto o de Epicuro e seus colegas helenistas. Tal como a fênix renascida para novo zênite depois da autocombustão, também a coruja de Athena arremeteu com força divinal ainda sob a pena de um Agostinho e um Tomás de Aquino, retraçando a metáfora do voo com um tão grande esforço de interrogação e mil olhos de lince em direção ao infinito, batizado agora com o maiúsculo codinome de Deus. Ave metafórica, com que olhos se olhou no espe-lho engendrado por um Descartes ou por um Bacon, e se debateu nas redes de um Kant ou de um Hegel, e com que espírito enfrentou o perigo de uma obra tão corrosiva como a de um Nietzsche, aquele que escreveu com sangue não para ser lido, mas para ser cantado.

Ah... Quantas viagens e quantas ressurreições foram necessárias para que essa ave rupestre, em seu hierogâmico exercício de rotas em torno do absoluto, fizes-se seu ninho ainda no coração de nossa cultura, arrebatando novos adeptos, re-presentantes de uma humanidade reflorescida em sempre outros rostos e outras interrogações. Jovens no tempo, nas alianças e nas indagações.

Pois! Que força tem o poder encantador universal dessa ave: a sombra de suas asas e o encanto de seus rodopios continuam arrebatando gente como nós. Faz muito tempo que é assim. Energia fundamental e suprema, força cega e incon-trolada? Talvez. Não existimos sem ela. Com ela, dançamos um balé de opostos complementares – alguma coisa que, parafraseando José Saramago, por mais voltas que pudéssemos dar às palavras, não conseguiríamos achar um nome para isso. Com ela, a vida ganha uma conotação ritual obediente a um princípio maior, chamado pela pomposa palavra Verdade – assunto de tantas aulas, tema de tantos discursos, mote de tantas leituras. No eclipse de uma sala de aula ou sobre o mofo de um velho livro, o filósofo coteja a verdade como quem reencena a invenção do universo. Ou como quem decifra o pensamento de um deus. A ver-dade é sua frequentação mais assídua. A coreografia de uma vida. Às vezes, sua fuga. Sua caça. Sua tontura! Seu enigmático ritual de silêncios e arrebatamentos. Dessa matéria, há tempos se diz, faz-se a vida enlevada pela filosofia. O tal filóso-fo, amante da sabedoria, enfim, como pretendemos mostrar neste livro, encarna-

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-se em todo aquele que for capaz de se deixar levar pelo encanto do voo filosófico. A filosofia não é assunto de livros empoeirados. Trata-se de uma atitude. Por isso, realiza-se pela capacidade de formular perguntas, muitas das quais, pelo exagero ou pela obviedade da aporia, tornam os seus formuladores algo estranhos, au-sentes, arrebatados. Como toda amante, a filosofia também exige exclusividade. Quase sempre ensimesmado (e por vezes também abobalhado), esse novo tipo de ser humano, mais completo, mais vivaz e plenamente realizado, apenas realiza a grandiosa tarefa que lhe foi reservada: filosofar.

Ver pelo olho da ave de hábitos crepusculares é também amar o crepúsculo, rapinando por sobre a cultura com uma desenvoltura de 360 graus. O filósofo sabe que precisa levar muitos ídolos ao crepúsculo. Foi Hegel quem disse que a coruja de Athena (ou de Minerva, entre os romanos) só levanta voo ao entardecer. E o faz para caçar. A caça, lembrem, é símbolo da sobrevivência, pelo abatimen-to da presa. Depois da refeição, dizem os biólogos, a coruja lança fora restos de ossos e pelos dos animais abatidos. Em uma época, a nossa, de tantas ignorâncias e mediocridades, tantos tecnicismos ordinários e esvaziadas comédias midiáti-cas espetacularizadas como mercadoria falsificada, é preciso manter-se prudente para completar os ciclos e derrubar falsos ídolos. Alimentar-se de seu tempo para jogar fora seus dejetos.

O homem pergunta: “É esta a minha hora?” Então, o estranho em pele de fi-lósofo lhe ensina como tocar a flauta do espírito para desencantar os habitantes dessa nova aldeia global, comovida pelo dote de malditas melodias. O percurso do som envolve uma descida ao centro desconhecido de nós mesmos, entre res-sonâncias ancestrais de um trajeto iniciático, tal como o de Orfeu em busca de sua Eurídice, aquela que habita o carvalho e fornece a matéria para o som. Ali, no mundo desconhecido das sombras, exige-se agora, mais uma vez, vigilância absoluta e um novo tipo de saúde. Aquela que não apenas se tem, mas se perde e se reconquista, para citar de novo Nietzsche, o filósofo de Sils Maria. É o drama animal de uma fênix, batizado pelos gregos de mistérios órficos. É disso que se fazem, desde muito tempo, as inúmeras ressurreições que nós temos de fabricar.

Com a filosofia, o universo se faz de novo a cada instante e nós subimos à vida novamente, em nossa anábase de mil retornos. E atrás do filósofo talvez siga ainda a cultura, como Eurídice caminhou atrás de seu amado. Mas, como Orfeu, também não corremos nós o risco de olhar para trás, contrariando as ordens dos senhores do mundo, e perdê-la para sempre? Nenhuma dor é maior que o vazio ontológico dessa perda. Porque, com ela, perdemos as joias de nossa arca, nada mais do que um alaúde de instantes que arrastamos desde o nascimento. Somos gente da reversão, da recondução, do retorno e, por isso mesmo, da resistência, da religação. Fazer vibrar a lira da filosofia pela teimosia de sempre novas perguntas,

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é fazer vibrar de novo a música do mundo, a harpa da cultura inventada naqueles primórdios, por Hermes, e emprestada a Orfeu e a tantos outros daqueles poetas originários. Nossa tarefa agora? Descer ao oco de nós mesmos para aí reanimar- -se dessa mesma ancestralidade, em horas e horas de leituras e devaneios, des-bravamentos hesitantes e dolorosos. Essa jornada interpretativa é o arroubo, ainda, da coruja de Athena. E, como jornada, o que interessa não é a chegada, mas a viagem mesma, suas errâncias e a beleza da paisagem. Solidão haverá, e talvez inúmeros daqueles sustos, dos quais falara Sócrates. Mas é esse, também, o eixo central de todos os amores.

A tarefa da pergunta, como tarefa fundamental da humanidade, torna-nos a todos herdeiros dessa tradição. E também de suas rupturas e da necessidade de suas reinaugurações. É por isso que, nesta obra didática, dirigimos nosso convite para que você, caro leitor ou leitora, reflita sobre esses valores ancestrais e sobre a necessidade de sua atualização, em um tempo em que a razão, malgrado seus benefícios, ainda pode ser responsabilizada pela tortura de corpos até envelhecer as almas, pelas milhões de crianças que sucumbem no purgatório diário da fome, ou pela destruição diária de inúmeras formas de vida sobre o planeta. Em nosso tempo, como escreveu o poeta uruguaio Mario Benedetti, “já é bastante grave que um só homem ou uma só mulher contemplem distraídos o horizonte neutro”, o que dizer quando toda a humanidade dá de ombros e vira as costas para si mesma. É preciso lembrar-se também do esquecimento.

Neste Livro das Perguntas, toda a humanidade está. E sua forma de estar pode ser a da indiferença ou do compromisso. Mas de sua leitura deve partir a tarefa viva da Filosofia. É preciso usar essa poderosa ferramenta para a educação. E educar é recorrer à memória e engendrá-la com o presente, em forma de projeto. Sonhar é o nome poético dessa atividade. Filosofia não é excentricidade, não é adorno, não é luxo, não é privilégio. Filosofia é a arte de refundar mundos. Faz tempo que é assim. Do jeito como sonhamos. Não somos sábios. Somos amantes. Não somos juízes, somos intérpretes. Não somos viajantes, mas andarilhos. Sentido último, se há? Verdade decisiva, quem poderá afirmar? A beleza está na busca. Disposto para a vertigem, como a coruja, noturno é nosso voo e estendido sobre abismos. Vale a beleza da vista. Em um tempo de misósofos (os que odeiam a sabedoria), pela força das perguntas convidamos a todos para que sejam filósofos (os que a amam). Mas essa não é uma atividade puramente intelectual, exige envolvimento absoluto e capacidade de se deixar contaminar e emocionar por ideias e ideais. Na filosofia, assim como na vida, é preciso perder o prumo. Porque todo amor é carência e falta, e todo objeto amado é completude e descontrole. Velho, doente, frágil, louco o filósofo? O homem sem ação, calado, triste, misógino, misantropo? Nada disso! Desde Nietzsche, a filosofia aprendeu a dançar e exige força aeróbica. Tarefa inútil e alienada? Não: coragem de enfrentar a suspeita, de questionar o

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útil, de engajar-se com o principal, isso sim. Em um tempo de resultados imedia-tos, os nossos nunca são alcançados. De projeções desastrosas, as nossas ainda respiram utopias. E se alguém ainda perguntar para que servem as utopias, tería-mos apenas de responder: para caminhar, ora bolas!

E, nesse caminho, o presente livro pode servir de mapa. Na sua grafia, muitos nomes, muitos lugares, muitas experiências. O livro é uma carta-convite para uma grande aventura. Tentamos marcar no mapa, perseguindo as pistas dos que nos precederam, as principais perguntas que envolvem a condição humana. Dos poetas e filósofos originários gregos aos pensadores cristãos, dos modernos até os contemporâneos. Passamos por várias áreas: política, estética, ética, epistemo-logia, linguagem etc. Encontramos fundamentos, desvelamentos, encobrimentos, construções e desconstruções. No caminho, haverá atalhos, picadas, passagens estreitas, mares abertos, momentos sem rumo, encruzilhadas. De todos esses mo-mentos comoventes se faz a arte de caminhar – e de filosofar!

O que dizemos? O que perguntamos? Qual o rumo da estrada? O que dese-jamos? Que a ave de Athena também pouse nos seus ombros, caro leitor, e, com você, a filosofia continue sendo essa tarefa do “por quê?” E não esqueçam: quanto mais a resposta pareça óbvia, mais vocês devem evitar o conforto das evidências. Que a paciência e a admiração sejam o exercício diário da Filosofia. Fujamos da pressa, prefiramos a contemplação, exijamos alegria. Não colecionemos banali-dades, não afugentemos as diferenças, não banalizemos as indiferenças. Sejamos lentos no olhar e leves na avaliação. Imparciais no trato, mas corajosos nas es-colhas. Deixemo-nos mobilizar pelas infinitas perspectivas, amemos o complexo, prefiramos o mar ao porto e as viagens longas e perigosas à permanência e ao comodismo. Pedra que rola não cria limo. Faz tempo que é assim. Com vocês, também será.

Boa aventura!

Os Autores

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A própria luta em direção aos cimos é suficiente para preencher um coração humano.

Albert Camus

A pergunta fundamental do mito é uma indagação sobre a origem de todas as coisas – homens, mundo e deuses incluídos. Como uma narrativa alegórica e/ou simbólica, o mito é uma tentativa de dizer e explicar a reali-dade, em um tempo em que a linguagem racional ainda não tinha o status que apresenta em nossos dias. Por isso, as explicações míticas não são ló-gicas, mostrando-se, ao contrário, carregadas de ambiguidade (algo que, no limite, está presente em qualquer texto poético). Um exemplo disso pode ser encontrado no prólogo escrito pelo poeta grego Hesíodo, ao seu livro Teogonia: a origem dos deuses, no qual as musas afirmam que sabem dizer a Alétheia (“verdade”) e também a Apáte (“engano”).

Dom

ínio

púb

lico.

Hesíodo.

Como inspiradoras dos poetas, as musas tanto podem dizer verdades quanto enganar, já que seu discurso é fantasioso e tem caráter de sacra-lidade, sendo articulado por meio de uma linguagem que não segue os padrões da lógica ou da semântica, efetivando-se pelas imprecisões, as fantasias e rupturas, nas quais a verdade pode ser desvelada.

De onde viemos? (O mito)

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De onde viemos? (O mito)

O mito é uma forma de conhecer o mundo e, nas suas lacunas, muitos autores têm tentado encontrar a veracidade de seus conteúdos, já que ele se apresenta com uma riqueza imensa que não cabe na lógica linguística e, por isso mesmo, só pode ser dito em forma de narrativa mítica. O mito é algo vivo e nele a imagi-nação se apresenta de forma exuberante, possibilitando que de seu tecido cheio de cores possamos extrair o sentido da vida. Assim, em seu conteúdo, lingua-gem, função e estrutura, todo mito se apresenta como antecipação da própria filosofia.

Como uma história sagrada, todo mito fala da criação do mundo, do apareci-mento dos homens e dos deuses, das façanhas de criaturas extraordinárias, ten-tando explicar atitudes e sentimentos que expressam uma relação entre todos os seres naturais. Cada cultura tem seus próprios modos de explicar esses “acon-tecimentos” e, muitas vezes, essas narrativas são transmitidas oralmente de ge-ração para geração. Assim, o mito tem uma base oral extremamente relevante: quanto menos letrada é uma sociedade, mais afeita às explicações míticas ela é. Em torno do mito, criam-se cerimônias, rituais, gestos, ornamentos, vestuários etc., que dão concretude à expressão mítica.

Não por outro motivo, o mito também está marcado pelo mistério, que é cons-tituinte da essência humana. O verbo miéin, donde ele deriva etimologica-mente, remete à ideia de que é preciso “manter a boca e os olhos fechados” para se deixar iniciar nos mistérios. De miéin também derivam mystérion e mýstes, que estão ligados àqueles que se deixam iniciar nos rituais com quais o homem tenta explicar (por essa língua enigmáti-ca) os grandes segredos interiores e ex-teriores. Por isso, Carl Gustav Jung – que usou os mitos de forma decisiva em sua psicologia – escreveu que “Para a razão, o fato de ‘mitologizar’ (mythologein) é uma especulação estéril, enquanto que para o coração e a sensibilidade é vital e salutar: confere à existência um brilho ao qual não se queria renunciar” (JUNG, 1978, p. 261).

Dom

ínio

púb

lico.

Carl Gustav Jung (aqui em uma fotografia de 1909)demonstrou o vínculo dos mitos com a estrutura psí-quica do indivíduo.

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De onde viemos? (O mito)

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O mito devolve brilho à vida, e isso o torna tão encantador. Entre os pensado-res contemporâneos, talvez Joseph Campbell deva ser citado como um dos que mais se interessaram pela vitalidade dos mitos, tentando classificar essa impor-tância em quatro questões:

cosmológica; �

metafísica; �

sociológica; �

psicológica. �

Em outras palavras, o mito tenta ordenar o mundo, dar explicações sobre as coisas que nos cercam, estruturar a sociedade humana e ajudar cada indivíduo a entender a si mesmo como parte do mundo. Segundo Campbell, “o alegre espanto diante da maravilha das coisas é, por fim, o presente imortal do mito” (CAMPBELL, 2001, p. 134).

Dom

ínio

púb

lico.

Joseph Campbell (aqui com sua esposa, a bailarina Jean Erdman) demonstrou a onipresença do mito nas narrativas, e logrou influenciar artistas da cultu-ra pop, como o diretor George Lucas, da saga Guerra nas Estrelas.

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De onde viemos? (O mito)

Como história sagrada, todo mito revisita as origens primordiais para perscru-tar como as coisas vieram a ser o que são. Mas não só isso: ele oferece a chance de que os homens de todas as épocas possam se deixar orientar por ele, por sua fecundidade e sua vivacidade:

O mito, quando estudado ao vivo, não é uma explicação destinada a satisfazer uma curiosidade científica, mas uma narrativa que faz reviver uma realidade primeira, que satisfaz a profundas necessidades religiosas, aspirações morais, a pressões e a imperativos de ordem social, e mesmo a exigências práticas. Nas civilizações primitivas, o mito desempenha uma função indispensável: ele exprime, enaltece e codifica a crença; [...] garante a eficácia do ritual e oferece as regras práticas para a orientação do homem. O mito, portanto, é um ingrediente vital da civilização humana; longe de ser uma fabulação vã, ele é ao contrário uma realidade viva, à qual se recorre incessantemente; não é absolutamente uma teoria abstrata ou uma fantasia artística [...]. (MALINOWSKI apud ELIADE, 2000, p. 23)

É essa riqueza simbólica que continua fazendo com que pensadores de dis-tintas épocas continuem recorrendo ao mito, como maneira de explicar a reali-dade e forma de compreensão dos mistérios que envolvem o espírito humano, em todos os tempos.

O mito no mundo gregoNo mundo grego, o mito se revelou como forma de expressão metafórica e

sagrada das verdades que davam sentido à vida dos homens dóricos. Sutis e fle-xíveis, essas narrativas encaixam fatos que transmitem ensinamentos estéticos, religiosos e práticos, expressando uma íntima relação do homem com a natureza. Arranjados nos poemas épicos de Homero e Hesíodo (que foram os dois principais poetas gregos, tendo vivido entre os séculos VIII e VII a.C.), os mitos são o conteúdo principal das primeiras formas literárias do Ocidente, logo após a invenção do alfa-beto grego. Como histórias que visam a dar sentido à vida e à morte dos homens, esses poemas revelam a estrutura social, a forma de compreensão de mundo, os dilemas e os valores que fundam a sociedade antiga. Questões humanas e cotidia-nas se dissolvem nas narrativas épicas, que contam a história na forma versificada dos primeiros textos poéticos. A importância do mito para a Grécia é tão forte que podemos afirmar, com certeza, que por ele passam as grandes contribuições dóri-cas em termos de arquitetura, religião e estética: templos, teatros, tesouros, textos literários, esculturas – tudo vem da visão mítica alimentada pelos gregos, tendo uma influência duradoura sobre a nossa cultura.

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Sísifo, 1920. Franz von Stuck. O mito de Sísifo representa a condi-ção humana, a condenação a existir.

Assim, para os gregos, o mito representa o primeiro discurso que, entre outras funções, procura responder sobre a origem da natureza, dos deuses, dos homens e de todas as formas de vida.

Etimologicamente, mythos deriva de dois verbos, que têm grafias e significa-dos semelhantes:

mytheyo � (“contar, narrar, falar alguma coisa para os outros”);

mytheo � (“conversar, contar, anunciar, nomear, designar”).

O mito é um discurso pronunciado para pessoas que o recebem como verda-deiro, na medida em que confiam na própria história narrada, seja para explicar o presente ou para anunciar um futuro não determinado, conforme sugere o uso do verbo mytheo.

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De onde viemos? (O mito)

Diferentemente da religião cristã, e de quase todas as crenças monoteístas, o mito grego não está assentado em uma fonte transcendente1, isto é, distinta da realidade. Ao contrário, ele estava integrado à vida como a fala ao cotidiano, como os hábitos de comer à mesa e a moral às regras de sociabilidade. Praticar o culto e honrar os deuses eram tradições que não demandavam qualquer jus-tificação ou persuasão. E assim como não havia revelação de origem completa-mente transcendente, não havia casta sacerdotal, igreja, livro sagrado e tampou-co dogmas. Para cumprir suas obrigações religiosas, bastava ao homem grego dar crédito, ter fé perante o conjunto de narrativas, as quais, em suas inúmeras variações, sempre repetidas e reafirmadas de geração em geração. E ainda que permanecessem abertas a interpretações pessoais, pois não contavam com um corpo doutrinal fixo, essas narrativas guardavam o lugar e a função dos deuses, mantinham a memória dos antepassados e da própria pólis (a cidade-Estado grega). Além disso, elas marcavam, junto à prática dos cultos e dos ritos, o sen-tido de uma religião que permanecia viva somente enquanto contava com a adesão dos homens, pois: “Rejeitar esse fundo de crenças comuns seria, da mesma forma que já não falar grego, já não viver de modo grego, deixar de ser si mesmo” (VERNANT, p. 22, 1992).

Portanto, é preciso dizer que o mito grego, diferentemente do cristianismo, não é uma religião de revelação: ao contrário, é uma religião sempre aberta à interpretação dos fatos narrados. Se para o homem grego era preciso aceitar a veracidade da narrativa, escutar a fala com a confiança de uma confissão íntima e praticar os ritos com a obediência de quem recebe uma ordem severa, por outro lado, sempre permanecia aberta para os gregos a leitura das intenções e das armadilhas dos deuses. Diante da materialidade do discurso, abria-se a liber-dade da interpretação. Aqui, certamente encontramos um ponto fundamental, que parece aproximar rito mitológico e exercício filosófico. Assim como a religião mitológica, a filosofia nasceu, antes de tudo, como um pensamento que não se reduziu à assimilação ou a conformação dos fenômenos e dos sinais da natureza.

1 De modo geral, transcendente é o que se eleva para além de um limite ou de nível qualquer. De modo particular, é aquilo que resulta da interven-ção certa de classe de seres ou de ações exteriores. Nesse aspecto, o transcendente se opõe ao imanente, aquilo que resulta do arranjo natural das coisas. No sentido kantiano, transcendente é aquilo que está além de toda experiência possível e todo juízo – por exemplo, Deus e as essências. De modo vulgar, transcendente é o que não participa de uma determinada realidade, está além dela; já imanente é o que está entre as coisas.

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Do mesmo modo que era preciso interpretar as mensagens do oráculo, já que os deuses falam por sinais, na filosofia foi fundamental procurar as razões, as causas dos fenômenos, interrogando a realidade e buscando o sentido último, que ex-plica o aparecer de todas as coisas.

Na prática diária da religião, que apresentava as aventuras divinas e discorria sobre os motivos para a ordem das estações do ano, por exemplo, esses mythoi – as narrativas – encontravam seu primeiro abrigo na vida privada e na educa-ção, patrocinada pelas mulheres. Todo grego era iniciado no culto aos mitos no interior do próprio lar, sempre por meio de colóquios privados. Mas a voz das mães não era a única que cantava os feitos dos deuses, pois a ela se somavam os cânticos dos poetas. Na tradição da oralidade, os poetas cantavam as aventuras e dádivas divinas em festas religiosas, em grandes banquetes, em concursos e jogos. A essa tradição oral dos poetas se uniu a literatura, com a invenção e o desenvolvimento da escrita. Principalmente com as obras de Homero e Hesíodo, a expressão verbal dos feitos divinos, que era fácil de memorizar e de reinventar sobretudo pela condição etérea da oralidade, adquiriu uma rigidez quase canô-nica. Desse modo, finalmente o mito grego ganhou a coesão e a duração que só a escrita podia conferir. Recolher um mito, construir uma narrativa definitiva, reconhecer a ordem no conjunto aparentemente caótico das aventuras, fixar o lugar dos deuses no panteão, e ainda transcrever em fábulas as razões da vida e da morte, foi a tarefa dos primeiros poetas. Hesíodo e Homero legaram para a filosofia uma técnica que, paradoxalmente, liberta as ideias da domesticidade para aprisioná-las na publicidade. Portanto, por meio da literatura mitológica, os poetas anteciparam as condições do pensamento filosófico: estendido na dura-ção do tempo, debatido nos espaços públicos e ordenado pela lógica da letra.

No contexto da cultura grega, a religião mitológica representa a unidade do homem com a natureza, com a família e com a pólis. A mitologia grega é politeís-ta e os diferentes deuses fazem parte de uma sociedade hierarquizada, cada um deles possuindo dons e poderes específicos. Mas os deuses não criaram o mundo: diferentemente do que ensina o cristianismo, as potências divinas gregas nasce-ram no mundo. Assim, na religião grega, não há transcendência, pois os deuses

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estão no mundo, interagem com a natureza e com os homens. Portanto, a partir da mitologia, o homem grego forjou a ideia da unidade ontológica do cosmo, contribuição central para o nascimento da filosofia como pensamento da tota-lidade. Na medida em que os mitos gregos não separam em campos opostos a natureza e o sobrenatural, o humano e o divino, esse comércio mundano dos deuses significa, entre outras coisas, que não há outro mundo a ser conhecido além deste que experimentamos, não há mundo proibido ou fechado e a reali-dade sobre a qual devemos indagar é a do cosmo, que se apresenta, ao mesmo tempo, como profana e sagrada.

Desse modo, a diferença entre o mito e a religião cristã, por exemplo, deve ser procurada na análise da estrutura complexa que separa as duas crenças. Não há entre as duas formas de religião uma relação de linearidade ou evolução. O cristianismo não suplantou o mito porque não evolui em relação a ele. Mas é preciso dizer que a estrutura complexa do mito – que, entre coisas, explica a existência humana e a existência natural, além de organizar a vida em torno de códigos sagrados – mantém, com a filosofia, um pensamento posterior, uma re-lação paradoxal. Se a filosofia superou o mito na medida em que apresentou novos problemas, constitui um novo pensamento sobre o mundo e forjou uma nova estrutura de saber, ela conserva no horizonte do seu discurso todas as in-quietações que fizeram os homens falarem por mitos. Sobre isso, vejamos o que nos diz Aristóteles: “Ora, quem duvida e se admira julga ignorar: por isso quem ama os mitos é, de certa maneira, filósofo, porque o mito resulta do maravilhoso” (ARISTÓTELES, 1978, p. 214).

O papel do poeta rapsodoA narrativa mítica é sempre contada pelo poeta, que tem a função de dizer

publicamente as verdades recebidas em revelação, pela via das musas (filhas da deusa Mnemosyne, ou seja, Memória). Assim, ao dizer o que deve ser dito, o poeta transmite a palavra dos deuses e sua fala se torna sagrada, ganha con-tornos de verdade. Ele é o porta-voz das musas e sua mensagem serve de mote educativo, revestindo-se de um ambiente pedagógico: cantando publicamente suas poesias (é bom lembrar que a poesia não é apenas a linguagem escrita, mas também – como se lê na Poética, de Aristóteles – a arte geral, que envolve melodia e ritmo), o poeta torna-se um pedagogo, já que os ouvintes decoram os seus textos e os repetem, como forma de aprendizado.

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Dom

ínio

púb

lico.

Homero, o poeta cego a quem são atribuídas as epopeias Ilíada e Odisseia.

Mas se o primeiro contato dos gregos com os mitos era doméstico, pois era função das mulheres habituar as crianças à autoridade do sagrado, os poetas davam às narrativas o seu gosto público. Escolhidos pelos deuses (segundo a crença), eles eram pessoas especiais, a quem os deuses deram a conhecer os eventos passados que explicam a existência, a origem e o significado de todas as coisas. O discurso do poeta rapsodo (o mito) torna-se, assim, algo sagrado e, por isso mesmo, incontestável, pois é um discurso de origem divina, portador de uma verdade inalienável.

Depois do mito, a FilosofiaAos poucos, a palavra poética foi deixando escapar de sua influência vários âm-

bitos da vida humana, nos quais um novo tipo de palavra começa a despertar, a pa-lavra dialógica. A Grécia viveu, por volta do século VI a.C., um processo de seculariza-ção da palavra, na qual os deuses deixam de ser conteúdos essenciais e, no seu lugar, o próprio homem faz nascer aos poucos uma nova relação com o real: a palavra

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sagrada já não satisfazia o ser humano, assolado por novas perguntas, dúvidas e in-terrogações. Ao novo tecido, logo se deu o nome de Filosofia, um discurso que, por ser costurado em retalhos míticos, encontra-se alinhavado em fios lógicos, cuja na-tureza é uma séria e provocadora especulação a respeito das coisas existentes.

Dom

ínio

púb

lico.

O pensador, Auguste Rodin. Estátua em bronze. Atualmente no Museu Rodin, em Paris.

Mas o que é filosofia? Qual o sentido desse saber que, ao mesmo tempo, ama mitos e procura superá-los?

A filosofia que estamos estudando nasceu na Grécia, por volta do século VII a.C. No entanto, a palavra filosofia, inventada pelo filósofo Pitágoras de Samos, apareceu apenas no século V a.C., para designar um saber que havia se estrutu-rado em função de princípios racionais. A palavra Philosophia é composta por duas palavras: Phília (“amor, amizade”) + Sophia (“sabedoria”). Portanto, etimo-logicamente, filosofia significa “amor, amizade pela sabedoria”. O filósofo, nesse caso, seria aquele que vive pelo saber e busca o saber como um fim.

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Segundo afirma Aristóteles, no livro Metafísica, a filosofia nasceu quando os gregos, descontentes com as respostas da tradição, e ao mesmo tempo admira-dos com a ordem da realidade, formularam novas questões e descobriram um estilo próprio para responder aos problemas e às dúvidas:

Foi, com efeito, pela admiração que os homens, assim hoje como no começo, foram levados a filosofar, sendo primeiramente abalados por dificuldades mais óbvias, e pouco a pouco até resolverem problemas maiores: por exemplo as mudanças da Lua, as do Sol e dos Astros e a gênese do Universo. (ARISTÓTELES, 1978, p. 214)

Mas a inquietação – uma parte desse grandioso sentimento de admiração – não nasceu apenas da dúvida e da crítica à tradição. Os homens, os primeiros filósofos, admiraram-se também com o reconhecimento da possibilidade intrín-seca de conhecer e elaborar um novo discurso sobre a realidade, cujo sentido podia ser entendido por todos, porque a realidade não é sagrada, porque não é fabulosa, e está estruturado racionalmente. Portanto, a filosofia nasceu com a descoberta do poder e da presença universal da razão.

A palavra razão se origina da palavra grega logos que, por sua vez, vem do verbo grego legein, que pode ser traduzido como “contar, reunir, juntar, calcu-lar”. Desse modo, é fácil compreender que a razão designa o nosso poder de pensar ordenadamente (contar), de entender as diferenças (reunir) e de desco-brir, a partir de operações mentais, como calcular o segredo da ordem racional que está no mundo. Pois a filosofia nasceu quando os gregos entenderam que o logos que organiza as nossas ideias, e permite a expressão do pensamento, também está presente como força ordenadora do próprio cosmo. Podemos fazer uma filosofia sobre o mundo somente na medida em que consideramos que os eventos do mundo seguem regras e leis necessárias e universais. Com o nascimento da filosofia, os poderes divinos, na explicação do real, cederam o lugar para a força necessária das leis.

Mas se as palavras de Aristóteles dão os primeiros motivos da admiração de um filósofo, também indicam, em um segundo momento, as questões iniciais da filosofia:

Qual a origem do cosmo e de todas as coisas? �

Quais as causas de transformações dos seres? �

Portanto, a filosofia nasceu quando o homem reaprendeu a ver o mundo e, por meio da razão, encontrou uma nova maneira de formular problemas e narrar a verdade. Por isso, a razão, diferentemente do mito, explica tudo em função de causas naturais, procurando demonstrar como e por que, no passado, no

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presente e no futuro, as coisas são como são. Em seu início, a razão tentou expli-car o surgimento da natureza por forças e relações entre os elementos naturais – água, terra, fogo e ar.

Se o mito se caracteriza pelo fabuloso e aceita o incompreensível e o discurso contraditório como verdadeiro, a razão, por seu turno, não aceita contradições, exige coerência e lógica na explicação. Enquanto o mito se fundamenta na au-toridade sagrada do poeta, o discurso racional encontra a sua legitimidade nos princípios racionais, no debate público e na possibilidade da dúvida.

Texto complementarO texto a seguir foi escrito pelo filósofo e literato franco-argelino Albert

Camus, e nele podemos encontrar um exemplo da riqueza interpretativa da lin-guagem mítica. Ao se apropriar da narrativa mítica, o autor evidencia a condi-ção humana na perspectiva da filosofia existencialista: o homem, como Sísifo, está condenado a existir. Nessa bela passagem, o mito e a filosofia se encontram como discurso que dá sentido ao existir – na verdade, uma afirmação da vida que não oculta a sua “absurdidade.”

O Mito de Sísifo (fragmento)(CAMUS, 2004, p. 135-144)

Os deuses tinham condenado Sísifo a rolar um rochedo incessantemente até o cimo de uma montanha, de onde a pedra caía de novo por seu pró-prio peso. Eles tinham pensado, com as suas razões, que não existe punição mais terrível do que o trabalho inútil e sem esperança. Se acreditarmos em Homero, Sísifo era o mais sábio e mais prudente dos mortais. Segundo uma outra tradição, porém, ele tinha queda para o ofício de salteador. Não vejo aí contradição. Diferem as opiniões sobre os motivos que lhe valeram ser o trabalhador inútil dos infernos. Reprovam-lhe, antes de tudo, certa levianda-de para com os deuses. Espalhou os segredos deles. Egina, filha de Asopo, foi raptada por Júpiter. O pai, abalado por esse desaparecimento, se queixou a Sísifo. Este, que tomara conhecimento do rapto, ofereceu a Asopo orientá-lo a respeito, com a condição de que fornecesse água à cidadela de Corinto. Às cóleras celestes ele preferiu a bênção da água. Foi punido por isso nos infernos. Homero nos conta ainda que Sísifo acorrentara a Morte. Plutão não

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pôde tolerar o espetáculo de seu império deserto e silencioso. Despachou o deus da guerra, que libertou a Morte das mãos de seu vencedor.

Diz-se também que Sísifo, estando prestes a morrer, imprudentemente quis por à prova o amor de sua mulher. Ele lhe ordenou jogar o seu corpo in-sepulto em plena praça pública. Sísifo se recobrou nos infernos. Ali, exaspe-rado com uma obediência tão contrária ao amor humano, obteve de Plutão o consentimento para voltar à terra e castigar a mulher. Mas, quando ele de novo pôde rever a face deste mundo, provar a água e o sol, as pedras aque-cidas e o mar, não quis mais retornar à escuridão infernal. Os chamamentos, as iras, as advertências de nada adiantaram. Ainda por muitos anos ele viveu diante da curva do golfo, do mar arrebentando e dos sorrisos da terra. Foi necessária uma sentença dos deuses. Mercúrio veio apanhar o atrevido pelo pescoço e, arrancando-o de suas alegrias, reconduziu-o à força aos infernos, onde seu rochedo estava preparado. Já deu para compreender que Sísifo é o herói absurdo. Ele o é tanto por suas paixões como por seu tormento. O desprezo pelos deuses, o ódio à Morte e a paixão pela vida lhe valeram esse suplício indescritível em que todo o ser se ocupa em não completar nada. É o preço a pagar pelas paixões deste mundo. Nada nos foi dito sobre Sísifo nos infernos. Os mitos são feitos para que a imaginação os anime. Neste caso, vê-se apenas todo o esforço de um corpo estirado para levantar a pedra enorme, rolá-la e fazê-la subir uma encosta, tarefa cem vezes recomeçada. Vê-se o rosto crispado, a face colada à pedra, o socorro de uma espádua que recebe a massa recoberta de barro, e de um pé que a escora, a repetição na base do braço, a segurança toda humana de duas mãos cheias de terra. Ao final desse esforço imenso, medido pelo espaço sem céu e pelo tempo sem profundidade, o objetivo é atingido. Sísifo, então, vê a pedra desabar em alguns instantes para esse mundo inferior de onde será preciso reerguê-la até os cimos. E desce de novo para a planície.

É durante esse retorno, essa pausa, que Sísifo me interessa. Um rosto que pena, assim tão perto das pedras, é já ele próprio pedra! Vejo esse homem redescer, com o passo pesado mas igual, para o tormento cujo fim não co-nhecerá. Essa hora que é como uma respiração e que ressurge tão certamen-te quanto sua infelicidade, essa hora é aquela da consciência. A cada um desses momentos, em que ele deixa os cimos e se afunda pouco a pouco no covil dos deuses, ele é superior ao seu destino. É mais forte que seu rochedo. Se esse mito é trágico, é que seu herói é consciente. Onde estaria, de fato, a sua pena, se a cada passo o sustentasse a esperança de ser bem-sucedido?

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O operário de hoje trabalha todos os dias de sua vida nas mesmas tarefas e esse destino não é menos absurdo. Mas ele só é trágico nos raros momen-tos em que se torna consciente. Sísifo, proletário dos deuses, impotente e revoltado, conhece toda a extensão de sua condição miserável: é nela que ele pensa enquanto desce. A lucidez que devia produzir o seu tormento con-some, com a mesma força, sua vitória. Não existe destino que não se supere pelo desprezo.

Se a descida, assim, em certos dias se faz para a dor, ela também pode se fazer para a alegria. Esta palavra não está demais. Imagino ainda Sísifo indo outra vez para seu rochedo, e a dor estava no começo. Quando as imagens da terra se mantêm muito intensas na lembrança, quando o apelo da felici-dade se faz demasiadamente pesado, acontece que a tristeza se impõe ao coração humano: é a vitória do rochedo, é o próprio rochedo. O enorme des-gosto é pesado demais para carregar. São nossas noites de Getsêmani. Mas as verdades esmagadoras perecem ao serem reconhecidas. Assim, Édipo de início obedece ao destino sem o saber. A partir do momento em que ele sabe, sua tragédia principia. Mas no mesmo instante, cego e desesperado, reconhece que o único laço que o prende ao mundo é o frescor da mão de uma garota. Uma fala descomedida ressoa então: “Apesar de tantas experiên-cias, minha idade avançada e a grandeza da minha alma me fazem achar que tudo está bem.” O Édipo de Sófocles, como o Kirílov de Dostoiévski, dá assim a fórmula da vitória absurda. A sabedoria antiga torna a se encontrar com o heroísmo moderno. Não se descobre o absurdo sem ser tentado a escrever algum manual de felicidade. “Mas como, com umas trilhas tão estreitas?” No entanto, só existe um mundo. A felicidade e o absurdo são dois filhos da mesma terra. São inseparáveis. O erro seria dizer que a felicidade nasce for-çosamente da descoberta absurda. Ocorre do mesmo modo o sentimento do absurdo nascer da felicidade. “Acho que tudo está bem”, diz Édipo, e essa fala é sagrada. Ela ressoa no universo feroz e limitado do homem. Ensina que tudo não é e não foi esgotado. Expulsa deste mundo um deus que nele havia entrado com a insatisfação e o gosto pelas dores inúteis. Faz do destino um assunto do homem e que deve ser acertado entre os homens.

Toda a alegria silenciosa de Sísifo está aí. Seu destino lhe pertence. Seu rochedo é sua questão. Da mesma forma o homem absurdo, quando con-templa o seu tormento, faz calar todos os ídolos. No universo subitamente restituído ao seu silêncio, elevam-se as mil pequenas vozes maravilhadas da

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terra. Apelos inconscientes e secretos, convites de todos os rostos, são o re-verso necessário e o preço da vitória. Não existe sol sem sombra, e é preciso conhecer a noite. O homem absurdo diz sim e seu esforço não acaba mais. Se há um destino pessoal, não há nenhuma destinação superior ou, pelo menos, só existe uma, que ele julga fatal e desprezível. No mais, ele se tem como senhor de seus dias. Nesse instante sutil em que o homem se volta sobre sua vida, Sísifo, vindo de novo para seu rochedo, contempla essa sequência de atos sem nexo que se torna seu destino, criado por ele, unificado sob o olhar de sua memória e em breve selado por sua morte. Assim, convencido da origem toda humana de tudo o que é humano, cego que quer ver e que sabe que a noite não tem fim, ele está sempre caminhando. O rochedo con-tinua a rolar. Deixo Sísifo no sopé da montanha! Sempre se reencontra seu fardo. Mas Sísifo ensina a fidelidade superior que nega os deuses e levanta os rochedos. Ele também acha que tudo está bem. Esse universo doravante sem senhor não lhe parece nem estéril nem fútil. Cada um dos grãos dessa pedra, cada clarão mineral dessa montanha cheia de noite, só para ele forma um mundo. A própria luta em direção aos cimos é suficiente para preencher um coração humano. É preciso imaginar Sísifo feliz.

Dicas de estudoHESÍODO. Teogonia. São Paulo: Iluminuras, 2006.

VERNANT, Jean-Pierre. Mito e Religião na Grécia Antiga. Campinas: Papirus, 1992.

Atividades1. Considerando o mito grego como expressão de uma religião, explique, de

modo geral, a distinção entre o mito e o cristianismo, a partir da perspectiva da revelação.

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2. Explique, de modo geral, a diferença entre mito e filosofia.

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3. Qual é a função do poeta rapsodo no mito?

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Gabarito1. A distinção mais evidente entre a religião mítica grega e o cristianismo é

que a primeira é politeísta, e a segunda, monoteísta. Mas a diferença fun-damental do mito em relação à religião cristã, e quase todas as crenças monoteístas, é que o mito grego não está assentado em uma revelação que deve ser aceita como um dogma. Ao contrário, o mito estava integra-do à vida como a fala ao cotidiano, como os hábitos de comer à mesa e a moral às regras de sociabilidade. Praticar o culto e honrar os deuses eram tradições que não demandavam qualquer justificação ou persuasão. As-sim, no mito, não encontramos casta sacerdotal, igreja, livro sagrado e, tampouco, dogmas. Para cumprir suas obrigações religiosas, bastava ao grego dar crédito, ter fé perante o conjunto de narrativas que eram, ape-sar das inúmeras variações, sempre repetidas e afirmadas de geração em geração. Portanto, é preciso dizer que o mito grego, diferentemente do cristianismo, não é uma religião de revelação: ao contrário, é uma religião sempre aberta à interpretação dos fatos narrados. Mesmo considerando que os poetas recebiam os mitos das musas por meio de revelações, es-ses mitos não permaneciam como dogmas porque, diferentemente do cristianismo, no mito a história revelada ganha o seu sentido na inter-pretação e na leitura sempre aberta das experiências contingentes da vida privada, e no exercício da imaginação. Enquanto no cristianismo a revelação é sobre uma verdade que deve ser obedecida, no mito, sobre toda e qualquer revelação, temos que construir a verdade: enquanto o cristianismo aceita a palavra, o mito constrói.

2. O mito representa o primeiro discurso que, entre outras funções, procura responder sobre a origem da natureza, dos deuses, dos homens e de to-das as formas de vida. Etimologicamente, mythos deriva de dois verbos, que têm grafias e significados semelhantes: mytheyo (“contar, narrar, falar alguma coisa para outros”) e mytheo (“conversar, contar, anunciar, nome-ar, designar”). O mito é um discurso pronunciado para pessoas que o re-cebem como verdadeiro, na medida em que confiam na própria história narrada, seja para explicar o presente ou, ainda, para anunciar um futuro não determinado, conforme sugere o uso do verbo mytheo. Portanto, o mito se caracteriza pelo fabuloso e aceita o incompreensível e o discur-so contraditório como verdadeiro. Diferentemente dessa perspectiva, a filosofia, por seu turno, não aceita contradições, exige coerência e lógica

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na explicação. Enquanto o mito se fundamenta na autoridade sagrada do poeta, o discurso racional encontra a sua legitimidade nos princípios racionais, no debate público e na possibilidade da dúvida.

3. A narrativa mítica é sempre contada pelo poeta, que tem a função de dizer publicamente as verdades recebidas em revelação, pela via das musas (filhas da deusa Mnemosyne, ou Memória). Assim, ao dizer o que deve ser dito, o poeta transmite a palavra dos deuses e sua palavra se tor-na sagrada, ganha contornos de verdade. Ele é o porta-voz das musas e sua mensagem serve de mote educativo, revestindo-se de um ambiente pedagógico: cantando publicamente suas poesias (é bom lembrar que a poesia não é apenas a linguagem escrita, mas também – como se lê na Poética, de Aristóteles – a arte geral, que envolve melodia e ritmo), o poeta se torna um pedagogo, já que os ouvintes decoram os seus textos e os repetem, como forma de aprendizado.

ReferênciasARISTÓTELES. Metafísica. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

CAMPBELL, Joseph. Mitos, Sonhos e Religião. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.

CAMUS, Albert. O Mito de Sísifo. Rio de Janeiro: Record, 2004.

CHAUI, Marilena. Convite à Filosofia. 13. ed. São Paulo: Ática, 2003.

ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. São Paulo: Perspectiva, 2000.

HESÍODO. Teogonia. São Paulo: Iluminuras, 2006.

JUNG, C. G. Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978.

VERNANT, Jean-Pierre. Mito e Religião na Grécia Antiga. Campinas: Papirus, 1992.