fernanda novo da silva
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Tese que trata dos processos de geração de identidade da vitivinicultura na região do pampa gaúchoTRANSCRIPT
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS Programa de Ps-Graduao em Sistemas de Produo
Agrcola Familiar
Tese
IDENTIDADE, TERRITRIO E DESENVOLVIMENTO:
o caso da vitivinicultura na Campanha Gacha, RS.
Fernanda Novo da Silva
Pelotas, 2013
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FERNANDA NOVO DA SILVA
IDENTIDADE, TERRITRIO E DESENVOLVIMENTO: o caso da vitivinicultura na Campanha Gacha, RS
Orientador: Prof. Dr. Flvio Sacco dos Anjos
Co-orientadora: Professora. Dra. Carmen Lozano Cabedo
UNED - Espanha
Pelotas, 2013
Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Sistemas de Produo Agrcola Familiar da Faculdade de Agronomia Eliseu Maciel, Universidade Federal de Pelotas, como requisito parcial obteno do ttulo de Doutor em Agronomia.
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Universidade Federal de Pelotas / Sistema de Bibliotecas Catalogao na Publicao
Elaborada por Gabriela Machado Lopes CRB: 10/1842
S 111i Silva, Fernanda Novo da Identidade, territrio e desenvolvimento: o caso da
vitivinicultura na Campanha Gacha, RS / Fernanda Novo da Silva: Flvio Sacco dos Anjos, orientador; Carmen Lozano Cabedo, coorientadora. - Pelotas, 2013.
181f. : il. Tese (Doutorado) Programa de Ps-Graduao em
Sistemas de Produo Agrcola Familiar, Faculdade de Agronomia Eliseu Maciel. Universidade Federal de Pelotas. Pelotas, 2013.
1. Identidade territorial. 2.Construo identitria. 3.
Diferenciao Agroalimentar. 4. Indicaes Geogrficas I Anjos, Flvio Sacco dos, orient. II .Cabedo, Carmen Lozano, coorient. III. Ttulo.
CDD 662.03
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Niederle
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Agradecimentos
Chega o momento de agradecer, o que me conduz a refazer, mentalmente, as
trajetrias que conduziram tese. Esta andarilhagem me permitiu emparceirar com
diversas pessoas e instituies. Aqui neste espao ser praticamente impossvel
eleger palavras que sejam capazes de exprimir toda gratido que sinto. Entretanto,
no irei furtar-me do desafio de faz-lo.
De pronto agradeo a meu comit de orientao. Ao Prof. Dr. Flvio Sacco
dos Anjos pela parceria de anos, pela confiana, pelo apoio, pelo dilogo e pela
compreenso. minha co-orientadora Professora. Dra. Carmen Lozano Cabedo,
que acompanhando minha passagem pela Espanha, contribuiu de forma mpar
minha formao socioprofissional.
Agradeo Banca Examinadora pelas contribuies que qualificaram esta
tese, assim como pelas sugestes que nortearo a produo cientfica decorrente,
bem como futuras pesquisas. Sou muito grata pela acolhida e empenho dos
professores Dra. Catia Grisa, Dr. Jos Marcos Froehlich, Dr. Paulo Andr Niederle,
Dra. Ndia Velleda Caldas e Dr. Volnei Krause Kohls que aceitaram a tarefa de
examinar a presente tese.
Agradecimentos a todos entrevistados que dedicaram parte de seu tempo
para compartilhar suas percepes, contar suas trajetrias e abrir novas portas,
contribuindo para o desenvolvimento desta pesquisa. Destaco os membros da
Associao de Vinhos Finos da Campanha, do SEBRAE-RS (Bag), da Embrapa
Uva e Vinho, do IBRAVIN, da UVIBRA, da APROVALE, da ASPROVINHO e da
Secretaria da Agricultura do RS.
s instituies de fomento (CAPES e CNPq) que propiciaram as bolsas de
doutorado e doutorado sanduche, bem como s instituies (FAPERGS e CNPq)
que aportaram recursos financeiros para a realizao do trabalho de campo.
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Registro merecidos e especiais agradecimentos ao colega de trabalho e
amigo Germano Ehlert Pollnow, cujo auxilio propiciou o escrutnio dos dados no
menor tempo possvel. Tambm agradeo aos momentos de compartilhamento e
aprendizagem vivenciados junto ao grupo de pesquisadores do Nupear.
Sem dvida, sou muito grata por haver encontrado em minha trajetria
pessoal e profissional pessoas to dedicadas e contagiantes como Cludio, Fabiana
e Shirley, com os quais fiz parte do quarteto fantstico.
Ao longo de muitos anos tambm tenho contado com a presena
encorajadora de uma grande amiga pessoal e profissional. Ndia, muito obrigada
pelo alento nas horas difceis.
Aos professores, funcionrios e colegas do PPGSPAF, especialmente aos
professores Dr. Edgar Ricardo Schffel e Dr. Carlos Mauch que muito auxiliaram
durante o processo seletivo ao doutorado sanduche.
Agradeo aos colegas e pesquisadores do grupo TECUDE. Um abrao
especial a Dra. Encarnacin Aguilar Criado, que no mediu esforos para fazer-me
sentir em casa. Correndo o risco de no nominar outras pessoas que foram
fundamentais para tornar esta estada em solo europeu mais rica e prazerosa:
Igncio, Paula, Isabel, Alberto, Santiago, Rosa, Dario, Davi, Carmen, Giselle,
Alejandro e Roco. Ademais, aproveito o ensejo para dividir esta realizao com
minha irm de corao, Fabiana, com quem muito aprendi e ensinei.
Chegando reta final, registro que durante todo perodo no me faltou um
porto seguro. No seio familiar encontrei muito afeto e apoio para superar todos os
obstculos. Agradeo a todos meus familiares que fizeram o grande esforo de
compreender minha ausncia e forneceram meios para que me fosse possvel
perseverar. Especialmente agradeo ao meu companheiro Alisson, que em toda
minha caminhada sempre dividiu simplesmente todos os momentos (bons e ruins).
Ele me auxiliou na orientao das minhas escolhas; apoiou-me nas decises e
compartilhou todas as consequncias. Sem dvida, sem sua presena, seu
entusiasmo, sua fora e presena de esprito, amor, amizade, respeito, motivao e
confiana no teria sido possvel concluir esta etapa, alcanando tais resultados.
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Resumo
SILVA, Fernanda Novo da. Identidade, territrio e desenvolvimento: o caso da vitivinicultura na Campanha, RS. 2013. 181f. Tese (Doutorado) Programa de Ps-Graduao em Sistemas de Produo Agrcola Familiar. Universidade Federal de Pelotas, Pelotas. A presente tese, estruturada em forma de captulos, apresenta um estudo sobre a relao entre identidade, territrio e diferenciao de produtos agroalimentares, a partir da vitivinicultura. Tendo como universo emprico a regio da Campanha Gacha, esta pesquisa busca problematizar o tema das identidades territoriais no que tange ao reconhecimento da diferenciao de produtos agroalimentares, objetivando compreender se, e em que medida, estamos diante da construo de uma nova territorialidade na Campanha Gacha, a partir da vitivinicultura e de que modo este processo repercute sobre o desenvolvimento dessa regio. O itinerrio metodolgico que acompanhou esta pesquisa constitui-se de diversas tcnicas e instrumentos de natureza qualitativa. Valemo-nos de pesquisa bibliogrfica, de pesquisa documental, de observao, de caderneta de campo e, especialmente, de entrevistas. A pesquisa envolveu a realizao (entre outubro de 2011 e agosto de 2012) de 28 entrevistas com distintos atores implicados na cadeia vitivincola e no projeto de criao de uma indicao de procedncia para os vinhos da Campanha Gacha. Os dados demonstram que a narrativa que est sendo, em meio criao da IP, vem sendo construda a partir de um conjunto de interesses que mobilizam certos grupos num jogo de poder entre duas perspectivas: a do vinho e pampa e a do vinho e paralelo 31. Desde nosso ponto de vista, as indicaes geogrficas tm sido vistas como instrumentos para acessar mercados mais exigentes, em meio a esta economia de qualidades e tipicidade que marcaram os ltimos anos no mundo dos vinhos e dos demais produtos agroalimentares. Nosso estudo mostra que esse ambiente tem estimulado a orquestrao de dinmicas que se movem no sentido de recriar as narrativas que sustentam as identidades territoriais, construindo novas territorialidades, como vem ocorrendo na Campanha. Entendemos que a converso desta dinmica em uma ao positiva ao desenvolvimento do territrio no depende da amplitude histrica que sustente tal iniciativa ou do seu apoio tcnico-cientfico, mas do grau de coeso territorial, do envolvimento de uma ampla rede de atores que estabeleam entre si relaes extrassetoriais, que transcendam o mbito estrito de uma cadeia produtiva e que atuem no fomento e fortalecimento do capital social, tendo em vista a necessidade de conceber estratgias que assegurem o desenvolvimento do territrio. Estas aes caminham em direo construo narrativa de uma nova identidade territorial, resultando na (re)construo dos referentes relativos a este espao. Esta (re)elaborao, ainda que recente, permite a criao de novas fronteiras simblicas de pertencimento e de enraizamento social, dotando de sentido esta sociedade em seu tempo e seu espao. Neste sentido, a vitivinicultura tambm se torna partcipe da reedificao do territrio, estabelecendo um cenrio de relaes e de sociabilidades que do contorno fsico e temporal ao mesmo.
Palavras-chave: identidade territorial; construo identitria; diferenciao agroalimentar; indicaes geogrficas.
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Abstract
SILVA, Fernanda Novo da. Identity, territory and development: the case of vitiviniculture in Campanha, RS. 2013. 181sh. Thesis (Ph.D.) Graduate Program in Family Agricultural Production Systems. Federal University of Pelotas, Pelotas. The present thesis, structured in form of chapters, presents a study on the relation between identity, territory and differentiation of agri-food products from the vitiviniculture. Having as empirical universe the Campanha Gacha region, this research seeks to problematize the issue of the territorial identities in relation to the recognition of the differentiation of agri-food products, in order to understand whether, and to what extent, we are facing the construction of a new territoriality in Campanha Gacha, from the vitiviniculture. The methodological itinerary that accompanied this research is made of various techniques and tools of qualitative nature. We have used bibliographic research, documentary research, observation, field notebook and, especially, interviews. The research involved the conducting (between October 2011 and August 2012) of 28 interviews with distinct actors involved in the vitiviniculture chain and in the project of creating an indication of provenance for the wines of the Campanha Gacha. The data demonstrate that the narrative to be enunciated in a common mark, as the one of the future IP, is being constructed from a set of interests that mobilize certain groups in a "power game" between two perspectives: that of the "wine and pampa" and of the "wine and parallel 31". From our point of view, geographical indications have been seen as tools to access most demanding markets, in the midst of this economy of qualities and typicality that marked the last years in the world of wines and of the other agri-food products. Our study shows that this environment has stimulated the orchestration of dynamics that move towards recreating the narratives that sustain the territorial identities, building new territorialities, as has been happening in the Campanha. We understand that the conversion of this dynamic in an action positive to the development of the territory does not depend on the historical amplitude that sustains such an initiative or its technical and scientific support, but on the degree of territorial cohesion, on the involvement of a broad network of actors that establish among themselves extra-sectoral relations, that transcend the narrow confines of a supply chain and that act in the promotion and strengthening of the social capital, having view in the need to conceive strategies that ensure the development of the territory. These actions walk toward the narrative construction of a new territorial identity, resulting in the (re)construction of the referents relative to this space. This (re)elaboration, although recent, allows the creation of new symbolic boundaries of belonging and of social rooting, giving sense to this society in its time and space. In this regard, the vitiviniculture also becomes a participant in the rebuilding of the territory, establishing a scenario of relations and sociabilities which give physical and temporal shape at the same time.
Keywords: Territorial identity; Identity construction; Agrifood differentiation; Geographical indications
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Lista de Figuras
Figura 01 Mapa ilustrativo de localizao das vincolas da Associao Vinhos Campanha ........................................................................... 73
CAPTULO 01
Figura 01 Grfico da evoluo das IG (IP e DO) ............................................. 83
Figura 02 Mapa de distribuio dos projetos de indicaes geogrficas de vinhos e espumantes da Embrapa .................................................. 89
CAPTULO 02
Figura 01 Mapa ilustrativo destacando a regio indicada para produo de vinhos finos no Rio Grande do Sul .................................................. 102
Figura 02 Fotografia da vista interna da Cave com a disposio dos rtulos por vincola ........................................................................... 114
Figura 03 Fotografia da fachada da Associao e Cave de Vinhos da Campanha, na divisa com a Fronteira Brasil-Uruguai . 114
Figura 04 Imagem da capa da apresentao realizada pela Embrapa Uva e Vinho ............................................................................................ 116
CAPTULO 03
Figura 01 Referentes mobilizados por vincolas de Santana do Livramento ... 125
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Figura 02 Rtulos da vincola Rio Velho .......................................................... 126
Figura 03 Rtulos dos vinhos Quinta do Seival ............................................... 127
Figura 04 Imagem da logomarca da vincola Batalha Vinhas e Vinhos ........... 127
Figura 05 Rtulos da vincola Peruzzo ............................................................ 128
Figura 06 Excerto da ilustrao da pgina eletrnica da vincola Irmos Camponogara .................................................................................. 129
Figura 07 Ilustrao dos vinhos da Vincola Routhier & Darricarrre .............. 131
Figura 08 Referentes mobilizados pela vincola Guatambu ............................. 132
Figura 09 Imagem da logomarca da Vincola Guatambu ................................. 133
Figura 10 Imagem da logomarca da Campos de Cima ................................... 133
Figura 11 Referentes mobilizados pela vincola Campos de Cima .................. 134
Figura 12 Animais silvestres e videiras ............................................................ 135
Figura 13 Imagens da passagem de Galvo Bueno pela Cave de vinhos da Campanha .................................................................................. 137
Figura 14 Imagens de Tiago Lacerda na vincola Guatambu. ......................... 138
Figura 15 Reproduo de parte do folder da Associao Vinhos da Campanha. ...................................................................................... 139
Figura 16 Fotografias do ato de abertura oficial da colheita da uva no RS ..... 142
Figura 17 Imagens do evento de degustao harmonizada entre carne e vinhos .............................................................................................. 143
Figura 18 Fotografias de placas na BR 293, nos limites no municpio de Candiota, RS . 157
Figura 19 Ilustrao parcial da pgina eletrnica da Prefeitura Municipal de Candiota, RS . 158
Figura 20 Fotografias de placas de sinalizao em Santana do Livramento e Bag ............................................................................................. 158
Figura 21 Imagem do braso do municpio de Santana do Livramento ........... 159
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Lista de Tabelas
Tabelo 01 Categorias de anlise ...................................................................... 75
CAPTULO 01
Tabela 01 Cronologia das indicaes geogrficas brasileiras deferidas, por modalidade (tipo), unidade federativa (UF) e produto/servio ......... 82
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Lista de siglas
AFAVIN Associao Farroupilhense de Produtores de Vinhos, Espumantes, Sucos e Derivados
APROBELO Associao dos Vitivinicultores de Monte Belo do Sul
APROMONTES Associao dos Produtores de Vinhos dos Altos Montes
APROVALE Associao dos Produtores de Vinhos Finos do Vale dos Vinhedos
ASPROVINHO Associao dos Produtores de Vinhos de Pinto Bandeira
BEX Bolsa no exterior
CAPES Coordenao de Aperfeioamento Pessoal de Nvel Superior
CIG Coordenao de incentivo Indicao Geogrfica de Produtos Agropecurios
CNPq Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico
COPTEC Cooperativa de Prestao de Servios Tcnicos
DCSA Departamento de Cincias Sociais Agrrias
DEPTA Departamento de Propriedade Intelectual e Tecnologia Agropecuria
DO Denominao de Origem
EMATER Empresa de Assistncia Tcnica e Extenso Rural
EMBRAPA Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuria
FAEM Faculdade de Agronomia Eliseu Maciel
FAPERGS Fundao de Amparo Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul
FINEP Financiadora de Estudos e Projetos
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica
IG Indicao Geogrfica
INPI Instituto Nacional de Propriedade Intelectual
IP Indicao de Procedncia
LPI Lei de Propriedade Intelectual
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MAPA Ministrio da Agricultura Pecuria e Abastecimento
MCT Ministrio de Cincia e Tecnologia
MDIC Ministrio do Desenvolvimento Indstria e Comrcio
MEC Ministrio de Educao e Cultura
MERCOSUL Mercado Comum do Sul
PPGSPAF Programa de Ps-Graduao em Sistemas de Produo Agrcola Familiar
PRONAF Programa Nacional de Apoio a Agricultura Familiar
PT Partido dos Trabalhadores
SDC Secretaria de Desenvolvimento Agropecurio e Cooperativismo
SEBRAE Servio Brasileiro de Apoio s Micro e Pequenas Empresas
TECUDE Grupo de Pesquisa Territorio, Cultura y Desarrollo
UCS Universidade de Caxias do Sul
UFPel Universidade Federal de Pelotas
UFPR Universidade Federal do Paran
UFRGS Universidade Federal do Rio Grande do Sul
UFSM Universidade Federal de Santa Maria
UNED Universid Nacional de Ensino a Distncia
VALEXPORT Associao de Produtores e Exportadores de Hortigranjeiros e Derivados do Vale do So Francisco
VINHOVASF Instituto do Vinho do Vale do So Francisco
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Sumrio
1. INTRODUO ............................................................................................. 15
1.1 Problema de pesquisa ................................................................................. 18
1.2 Hipteses .................................................................................................... 20
1.3 Objetivos ...................................................................................................... 20
2. REVISO DE LITERATURA ........................................................................ 22
2.1 Identidade .................................................................................................... 22
2.1.1 A identidade no eixo das discusses ....................................................... 23
2.1.2 As abordagens sobre identidade na contemporaneidade ........................ 26
2.1.3 A questo da identidade na contemporaneidade ..................................... 34
2.2 Identidade e territrio .................................................................................. 50
2.2.1 Territrio ................................................................................................... 51
2.2.2 Identidade Territorial ................................................................................. 56
2.3 Produtos Agroalimentares e identidade territorial ........................................ 61
3. ORIENTAES METODOLGICAS ........................................................... 69
CAPTULO 1 - A diferenciao agroalimentar em seu contexto ................. 76
1. Indicaes geogrficas no Brasil ................................................................... 76
1.1 Panorama das indicaes geogrficas brasileiras ...................................... 81
2. Indicaes geogrficas de vinhos no Rio Grande do Sul .............................. 84
3. Consideraes finais ..................................................................................... 89
CAPTULO 2 - A vitivinicultura e a Campanha Gacha ................................. 91
1. Contextualizao ........................................................................................... 91
2. A vitivinicultura na Campanha ....................................................................... 98
3. Projeto de diferenciao de vinhos na Campanha Gacha ........................... 110
4. Consideraes finais ..................................................................................... 117
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CAPTULO 3 - Vitivinicultura: a construo de uma (nova) identidade territorial na Campanha ..................................................................................
120
1. Introduo ..................................................................................................... 120
2. A identidade como processo ......................................................................... 121
3. A nova identidade da Campanha: recursos mobilizados, narrativas
construdas . 123
3.1 O vinho e a Campanha: recursos mobilizados ............................................ 124
3.2 O vinho e a Campanha: narrativas construdas .......................................... 140
4. Consideraes finais ..................................................................................... 161
CONSIDERAES FINAIS .............................................................................. 163
REFERNCIAS ................................................................................................. 169
ANEXOS ........................................................................................................... 180
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1 Introduo
Primeiramente, cabe explicitar que o interesse em estudar a relao entre
identidade, territrio e diferenciao de produtos agroalimentares, a partir da
vitivinicultura, reside no fato de que os vinhos possuem larga trajetria no emprego
do uso de topnimos ou selos para identificar uma caracterstica ou exprimir uma
qualidade1.
O desenvolvimento de uma investigao centrada na anlise desta trade, a
partir da vitivinicultura, se justifica por diversas razes.
Em primeiro lugar, pela importncia que adquiriram as estratgias de
qualificao de produtos agroalimentares e mais concretamente das indicaes
geogrficas (IG), como estratgia de desenvolvimento territorial. Estas iniciativas
adquiriram crescente interesse tendo em vista sua potencialidade para dinamizar
socioeconomicamente os territrios, e estabelecer novos vnculos entre espaos
rurais e urbanos, entre produtores e consumidores, assim como entre inovao e
tradio.
Entendemos, portanto, que existe, a partir de iniciativas para dotar de
ancoragem (anclaje) territorial aos vinhos, uma interface importante de relaes
entre o tradicional e o moderno. Por mais que este produto possua um forte vnculo
histrico, no atual contexto, os vitivinicultores do velho e do novo mundo tm
buscado adaptar-se aos desafios impostos pela globalizao, imprimindo uma
atualizao dos processos produtivos e de veiculao de imagem, buscando
conectar o produto a uma srie de referentes que o tornem peculiar. Em boa
1 Falcade (2011, p.51) sustenta que uma indicao geogrfica o uso de um topnimo para referir a
origem geogrfica de um produto, mas tambm para designar o produto, de tal modo que, quando o uso tiver promovido a simbiose completa do produto com o topnimo, este passa a denominar o produto, como pode ser exemplificado no caso do vinho Jerez, Porto ou Champagne.
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medida, anseiam dizer que seus vinhos sean y sigan siendo los clsicos modernos
por antonomasia (PASCUAL HERNNDEZ, 2010, p.218).
Em segundo lugar, se pode assinalar que no escopo da temtica da
diferenciao de produtos agroalimentares (notadamente no caso do vinho) a
questo do territrio e das identidades tem ganhado cada vez mais fora e
importncia. O que parece ser objeto de disputa o estatuto de uma identidade
autntica (tradicional) e intocada em confronto com uma perspectiva que concebe a
(re)construo socioidentitria e o potencial da mobilizao de recursos territoriais.
Este tema amplo e no menos complexo, envolvendo diversas reas do
conhecimento (sociologia, antropologia, geografia, economia, etc) e assumindo-se
como atual e relevante para pensar sobre os rumos das regies rurais em nosso
pas.
Em terceiro lugar, o presente estudo elegeu como campo de investigao
uma regio determinada do Rio Grande do Sul Campanha Gacha cuja trajetria
vitivincola bastante recente, mas que vem apresentando grande expanso frente
s regies brasileiras historicamente consolidadas2, por uma conjuno de fatores
que logo analisaremos. De outro lado, pretendeu-se construir uma aproximao em
relao realidade europeia, a qual foi viabilizada pelo Doutorado Sanduche
(PDSE/CAPES - BEX: 9817-12-3), sob orientao da Dra. Carmen Lozano Cabedo,
junto ao Grupo de Pesquisa Territorio, Cultura y Desarrollo (TECUDE), vinculado ao
Departamento de Antropologia Social, da Universidade de Sevilha, no perodo
compreendido entre os meses de setembro de 2012 e maro de 2013. Tal
experincia revelou-se muito importante para os objetivos desta tese, pois durante
esta etapa foi possvel conhecer a realidade da comunidade autnoma da Andaluzia
(Sul da Espanha), onde a vitivinicultura se expressa de forma marcante,
notadamente no que afeta aos instrumentos de proteo da qualidade, como o
caso das Denominaes de Origem de vinhos Jerez e Manzanilla.
A chegada a este tema identidade, territrio e diferenciao agroalimentar
no se deu de forma casual. A primeira motivao para o desenvolvimento deste
estudo surge a partir da participao no projeto de Cooperao Brasil-Espanha
(CAPES/DGU, 2009-2013) e ganha fora e continuidade sob a gide do Projeto
Territrios de Sabores, territrios de Saberes: Estudo sobre estratgias de
2 Referimo-nos regio vitivincola Serra Gacha, marcada pelos traos da colonizao italiana, que
conta larga tradio no cultivo de videiras.
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diferenciao de produtos agroalimentares na Andaluzia e no Rio Grande do Sul
(Edital MCT/CNPq/MEC/CAPES n 02/2010). Mais recentemente, por fora do
Projeto, aprovado pela FAPERGS, intitulado Qual o sabor dos territrios gachos?
Estudo sobre estratgias de diferenciao de produtos agroalimentares no Estado
do Rio Grande do Sul (Programa de Ncleos Emergentes Edital 03/2011).
Estas aes de investigao convergem para o propsito de desvendar as
novas relaes atinentes ao rural, expressadas a partir de aes estratgicas de
diferenciao de produtos agroalimentares, sendo as indicaes geogrficas de
vinhos uma delas. Esse o foco desta pesquisa e de diversas iniciativas de
investigao que vm sendo desenvolvidas pelo Ncleo de Pesquisa e Extenso em
Agroecologia e Polticas Pblicas para a Agricultura Familiar (NUPEAR) do
DCSA/UFPel, do qual fao parte. Ademais, vale frisar que este estudo se insere
dentro dos objetivos da linha Desenvolvimento Rural Sustentvel do Programa de
Ps-Graduao em Sistemas de Produo Agrcola Familiar (PPGSPAF).
Destaca-se que esta tese est construda seguindo as normas da
Universidade Federal de Pelotas, valendo-se da Estrutura em Captulos (cf. Anexo
A). Assim sendo, est estruturada com uma seo introdutria, que alm desta
breve apresentao, compreende o problema de pesquisa, as premissas e os
objetivos. A segunda seo abriga a reviso de literatura a respeito da base
conceitual sobre identidade e territrio. A terceira seo apresenta as orientaes
metodolgicas que conduziram a pesquisa e do suporte aos captulos.
Na sequncia so expostos os resultados, sistematizados na forma de trs
captulos, os quais so interdependentes e diretamente relacionados com os
objetivos da tese.
O primeiro captulo trata de contextualizar o tema das indicaes geogrficas,
atentando para o atual cenrio brasileiro. dada especial ateno ao caso das
indicaes geogrficas de vinhos finos do Rio Grande do Sul, alertando para sua
insero em um projeto mais amplo da Embrapa Uva e Vinho, que prev a criao
de indicaes de procedncia, inclusive, em territrios que no possuem trajetria
sociohistrica e reputao consagrada no mundo dos vinhos. Este o caso da
Campanha Gacha.
O segundo captulo caracteriza a zona estudada, abordando de forma
esquemtica os processos que resultaram na conformao deste territrio,
ressaltando os principais quadros identitrios que disputam, entre si, a
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(re)significao deste espao. Neste sentido, enfatiza a presena do gacho e os
elementos mobilizados na edificao deste sujeito. Tambm cumpre com o papel de
resgatar os principais eventos (pecuria extensiva, orizicultura irrigada, instalao
dos assentamentos da reforma agrria, silvicultura, cultivo de soja e, mais
recentemente, da vitivinicultura) que colocam as identidades territoriais no seio de
um campo de disputas.
A partir dessa discusso, o captulo 3 dedicado ao exame do caso da
vitivinicultura na regio pampeana3, visando analisar os referentes acionados e as
narrativas construdas. Como veremos, uma diversidade de formas e meios
empregada no esforo de criar conexes entre o produto e o territrio. Entre os
vitivinicultores constitui-se, a grosso modo, dois grupos de autoidentificao, quais
sejam: o grupo vinho e pampa e o grupo vinho e paralelo 31.
A ltima seo desta tese destinada a reunir as consideraes finais.
1.1 Problema de pesquisa
A ltima dcada coincide com a expanso da vitivinicultura brasileira. Na
Campanha Gacha esta atividade se desenvolve no interior de um cenrio
historicamente marcado pela produo pecuria extensiva, pela produo de arroz e
de outros cereais.
Assim como os vinhedos passam a compor a paisagem desta regio, outros
projetos ganham importncia, como o caso da implantao de largas reas de
cultivos de florestais exticos, como pinus e eucaliptus. Alguns autores consideram
que estes novos investimentos tm ameaado os campos naturais (CERDAN, 2009),
ou o que se veio a chamar de Bioma Pampa.
Sobre as alteraes paisagsticas, Schwanz e Zanirato (2008, p.5), apontam
que o agravamento da crise pecuria incentivou a transio de grandes extenses
de terra para o plantio de florestais exticas (eucaliptus e pinus), bem como para o
desenvolvimento de outras atividades agrcolas: Onde antes se viam pastagens,
3 Pampeana(o) uma expresso equivalente a pampiana(o). Ambos so empregados como
referncia ao que do Pampa. Adotaremos o primeiro termo, pois o mais corriqueiramente utilizado entre os entrevistados.
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agora se vem florestas. [Mas] a transformao no s visual, pois tambm implica
em mudana na flora e na fauna, assim como sobre os sistemas socioprodutivos.
O processo de ocupao do territrio imprimiu regio da Campanha certas
especificidades, a exemplo da dimenso das propriedades, como logo veremos.
Outro aspecto que, mais recentemente, modificou a cena social dessa regio refere-
se ao surgimento de 102 assentamentos da reforma agrria, distribudos em 11
municpios, alocando 3.846 famlias. Em Santana do Livramento, Hulha Negra e
Candiota, h aproximadamente 900 famlias assentadas em cada municpio
(EMATER, 2010a e 2010b; COPTEC, 2010a e 2010b).
No que tange especificamente ao desenvolvimento da viticultura na regio,
Flores (2011) aponta que o processo na regio decorre de aspectos tcnicos,
tecnolgicos e econmicos e pelo prprio esgotamento fundirio de regies como a
Serra Gacha, com forte tradio neste cultivo, mas que apresenta srias restries
do ponto de vista do clima (mido), do tamanho das reas, da topografia dos solos
e, consequentemente, de mecanizao dos processos produtivos. Para esta autora,
a Campanha Gacha representa uma regio sem tradio vitivincola, que recebe
um investimento importante e, lentamente, passa a incorporar as atividades cultura
local e atrair novos investimentos (FLORES, 2011, p.119).
Em que pese esse quadro, o caso do Vale dos Vinhedos (primeira indicao
de procedncia brasileira) serviu de fonte inspiradora para que os empresrios da
regio da Campanha Gacha comeassem a esboar um projeto similar, a partir da
constituio da Associao dos Produtores de Vinhos Finos da Campanha Gacha.
Convm frisar que as indicaes de procedncia se assentam no apelo
notoriedade, identidade e/ou aos aspectos socioculturais que conformam um dado
territrio. Diante disto, parece que a iniciativa dos vinhos da campanha gacha no
rene, a priori, tais elementos, razo pela qual nosso interesse recai no modo pelo
qual os atores se organizam e se articulam em torno construo destas narrativas
que apelam singularidade do produto e do prprio territrio.
neste cenrio que se pretendeu compreender como se (re)constri(em)
a(s) identidade(s) na Campanha Gacha a partir do desenvolvimento da
vitivinicultura? Quais elementos so mobilizados pelos diferentes atores para
essa (re)construo? Quem so os protagonistas desta construo identitria?
Para responder a essas questes h que averiguar sobre a trajetria desses
processos e os objetivos que os conduzem. Trata-se, tambm, de compreender se a
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20
vitivinicultura (e a exaltao de atributos locais atravs de uma indicao geogrfica)
promove uma (re)territorializao na Campanha, uma nova identidade territorial e
quais seus impactos para o desenvolvimento territorial da regio.
Assim, torna-se fundamental uma aproximao em relao ao universo
destes atores, visando compreender suas relaes sinrgicas e em contradio
e os desafios que encerram suas iniciativas.
1.2 Hipteses
Na conduo desta tese trs premissas principais nos orientaram. Nesse
contexto consideramos que:
a) Uma nova identidade territorial est sendo construda na Campanha Gacha
a partir de iniciativas vitivincolas. Esta identidade tem como elemento
fundante atributos ambientais e tcnicos que sustentam a possibilidade da
produo de vinhos de alta qualidade, relegando aos aspectos sociohistricos
e culturais um papel secundrio;
b) A proposta de indicao geogrfica em construo est reforando essa
postura, pois est alicerada nesse argumento do vinho de qualidade.
Entretanto, apesar de aparecer como uma estratgia consensual e coletiva,
oculta lgicas que conflitam e disputam espao na construo do projeto de
diferenciao e no estabelecimento de uma nova territorialidade.
1.3 Objetivos
Tendo como universo emprico a regio da Campanha Gacha, esta pesquisa
busca problematizar o tema das identidades territoriais no que tange ao
reconhecimento da diferenciao de produtos agroalimentares. Neste sentido, o
objetivo geral compreender se, e em que medida, estamos diante da construo
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21
de uma nova territorialidade na Campanha Gacha a partir da vitivinicultura, e de
que modo este processo repercute sobre o desenvolvimento dessa parte da
geografia gacha.
Deste objetivo geral decorrem objetivos especficos, a saber:
a) Caracterizar a trajetria da vitivinicultura na regio da Campanha Gacha;
b) Analisar as estratgias individuais e as aes coletivas implementadas
pelos atores locais para a territorializao do produto e, em concreto, para a
obteno de um selo de qualidade territorial.
c) Analisar as narrativas e os argumentos que tm dado sustentao
tentativa de construo de uma nova identidade territorial na Campanha
Gacha em torno aos produtos vitivincolas;
d) Analisar como o contexto (econmico, social, cultural e poltico) contribui
formao de projetos com vistas criao de uma indicao de procedncia
para vinhos na Campanha Gacha;
e) Investigar os conflitos de interesse e as formas de justificao pelas quais
os atores buscam legitimar a construo da indicao de procedncia para
vinhos na Regio da Campanha Gacha.
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2 Reviso de literatura
Esta seo est dividida em trs momentos distintos, os quais cumprem com
o propsito de situar o tema da identidade, enfocando a questo dos processos de
construo identitria e a relao entre diferenciao agroalimentar, identidade,
territrio e desenvolvimento.
2.1 Identidade
A identidade no um tema novo, mas de alguma forma pode-se dizer que
sua converso em objeto de estudo bastante contempornea.
O processo de construo identitria est invariavelmente enraizado no
contexto social, coletivo e histrico de cada lugar ou territrio. Trata-se de um
movimento de produo discursiva e simblica que tem por objetivo mobilizar e pr
em relevo e em movimento aspectos especficos em contraste s caractersticas
representativas de outras culturas. este percurso de identificao e legitimao
identitria que forja a personalidade territorial dentro de um contexto global.
Ao dedicar-se ao tema da identidade, Woodward (2009, p.12) elabora um rol
de questes muito pertinentes, quais sejam: Porque estamos analisando a questo
da identidade neste exato momento? Existe mesmo uma crise de identidade? Caso
a resposta seja afirmativa, porque isto ocorre? Porque as pessoas investem em
posies de identidade?. Estas questes, em grande medida, conduzem
organizao desta seo e instigam o leitor discusso empreendida nos artigos
que compem esta tese.
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23
A partir desta breve introduo, a seo est estruturada em trs tpicos. No
primeiro deles, dedicamo-nos a explicitar em que momento e por quais razes a
identidade se transforma em problema analtico e passa a despertar interesse. O
segundo est dedicado a apresentar um quadro aproximado das principais
abordagens sobre a identidade. O ltimo tpico trata propriamente do processo e de
construo identitria, fornecendo os principais elementos para a discusso sobre
vinculao entre identidade e territrio, que ser empreendida na seo
subsequente.
2.1.1 A identidade no eixo das discusses
Quando a identidade ganha importncia e se converte em uma questo?
Pode-se dizer que at pouco tempo o tema identidade no estava em
discusso, no despertava grande interesse nos estudos scio-antropolgicos e/ou
geogrficos porque a identidade era tida como uma questo resolvida, como algo
dado, como trao definido desde o nascimento de cada indivduo e que
permanecia imutvel ao longo de sua vida.
Todavia, a partir da primeira metade do sculo XX, emerge a contribuio das
Cincias Sociais4 (em sua atual forma disciplinar) e da biologia darwiniana (HALL,
2005), fazendo que a acepo vigente fosse desestabilizada e dando origem a
outras concepes, conforme veremos a seguir.
De acordo com Stuart Hall (2005), algumas noes foram especialmente
relevantes para produzir descentramentos na teoria social sobre identidade, os
quais, esquematicamente, so: a) a contribuio do marxismo para excluso da
noo de agncia individual (retirando o homem do centro das relaes sociais); b) a
descoberta do inconsciente humano por Freud e a constatao de que as
identidades so baseadas em processos psquicos e simblicos desenvolvidos ao
longo da vida, ou seja, as identidades no so inatas5, seguem uma lgica
4 O interesse pelas Cincias Sociais no tema das identidades, segundo Hall (2005), decorre da crise
de instituies sociais (como Estado, famlia e religio) e da prpria questo da identidade nacional, que contribuam, sobremaneira, estruturao de identidades pessoais. 5 Este elemento fundamental para apreenso do atual significado que as identidades assumem,
pois permite conceb-las como produtos de construo social. Para Ferreira (2008, p.2; destaques no
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extremamente distante da Razo; c) a indicao de Saussure de que no somos
autores de nossas afirmaes e/ou dos significados que estas expressam, haja
vista que a lngua um sistema social que pr-existe a ns e que conformado por
palavras carregadas de significados mveis no tempo (independentemente do nosso
desejo); d) a elaborao de Foucault a respeito da genealogia do sujeito moderno e
a constatao de um poder disciplinar que se desdobra em consequncias como a
regulao, a vigilncia e a punio, artifcios estes que conduzem a um processo de
individualizao e isolamento dos sujeitos; e) o impacto do feminismo que contribui
para descentrao conceitual dos sujeitos cartesianos e sociolgicos, a partir de
contestaes a respeito do carter poltico da identidade e da confrontao da noo
de identidade homognea.
Hall (2005) afirma que estes deslocamentos produzidos na (e pela)
modernidade tardia6 tambm apresentam duplo efeito, pois, se por um lado, eles
desarticulam as identidades estveis do passado, por outro, abrem um campo frtil
para novos arranjos: a construo de novas identidades, o surgimento de novos
sujeitos e a recomposio de conexes particulares desta articulao.
Tal assertiva corroborada por Woodward (2009), sustentando que a
globalizao (enquanto essncia da modernidade tardia) resulta em distintos efeitos
em termos de identidade:
A homogeneizao cultural promovida pelo mercado global pode levar ao distanciamento da identidade relativamente comunidade e cultura local. De forma alternativa, pode levar a uma resistncia que pode fortalecer e reafirmar algumas identidades nacionais e locais ou levar ao surgimento de novas posies de identidade. (WOODWARD, 2009, p.21)
original), a identidade uma forma social, produzida no mbito da relao indivduo-colectividade, que acaba por dar origem s vrias dimenses de outro e ao hetero. Esta autora sustenta-se na perspectiva de Berger e Luckman (1983), para os quais a identidade social reconhecida como fenmeno a partir da relao dialtica entre o indivduo e a sociedade. 6 Hall utiliza o termo modernidade tardia para referir-se ao marco de mudanas estruturais da
sociedade, aps a dcada de 1960, e a consequente mudana na percepo sobre a identidade. Outros autores cunharam outras terminologias para determinar este mesmo perodo, por exemplo: Ps-Modernidade (de Jean-Franois Lyotard, Jrgen Habermas); Hipermodernidade ou Era do Vazio (de Guilles Lipovetsky); Neomodernidade (de Srgio Paulo Rouanet); Modernidade Lquida (de Zygmunt Bauman); Modernidade Tardia ou Reflexiva (de Anthony Giddens e de Ulrich Beck); Capitalismo Tardio ou Acumulao Flexvel (de Frederic Jameson e de David Harvey), A Era da Informao (de Castells), entre outros. Cabe frisar que esta no uma discusso central nesta tese, por isto no nos deteremos nas possveis aproximaes e distanciamentos que levaram os referidos autores a imprimir distintas denominaes. De acordo com Hall (2005, p.17), a ateno deve estar posta no entendimento de que suas nfases esto alinhadas na descontinuidade, na fragmentao, na ruptura e no deslocamento.
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Com efeito, estas mudanas no campo identitrio chegaram ao ponto de
indicar a existncia de uma crise de identidade. Nas palavras de Woodward (2009,
p.19-20; destaques no original) Identidade e crise de identidade so palavras e
ideias bastante utilizadas atualmente e parecem ser vistas por socilogos e tericos
como caractersticas das sociedades contemporneas ou da modernidade tardia.
Hall (2005) sustenta a afirmao de que as identidades modernas esto
sendo descentradas, isto , deslocadas ou fragmentadas, produzindo a perda dos
referentes e indicando uma crise de identidade. Para este autor, as transformaes
estruturais iniciadas no final do sculo XX nas sociedades modernas esto alterando
a compreenso dos sujeitos e as formas de exercer suas identidades. Segundo
suas palavras:
[...] as velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, esto em declnio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o individuo moderno, at aqui visto como um sujeito unificado. A assim chamada crise de identidade vista como parte de um processo mais amplo de mudana, que est deslocando as estruturas e processos centrais da sociedade moderna e abalando os quadros de referncia que davam aos indivduos uma ancoragem estvel no mundo social (HALL, 2005, p.7, destaques no original).
Mercer argumenta que a identidade somente se torna uma questo quando
est em crise, quando algo que se supe como fixo, coerente e estvel deslocado
pela experincia da dvida e da incerteza (MERCER, 1990, apud HALL, 2005, p.9).
Esta perspectiva compartilhada por Bauman (2005), para o qual
[...] h apenas algumas dcadas, a identidade no estava nem perto do centro do nosso debate, permanecendo unicamente como objeto de meditao filosfica. Atualmente, no entanto, a identidade o papo do momento, um assunto de extrema importncia e em evidncia. [...] Voc s tende a perceber as coisas e coloc-las no foco do seu olhar perscrutador e de sua contemplao quando elas desvanecem, fracassam, comeam a se comportar estranhamente ou o decepcionam de alguma outra forma (2005, p.22-3; destaques no original).
Em resumidas contas, a identidade s passa a ser um tema central, de
interesse cientfico e presente nos grandes debates, quando se transforma em
preocupao, quando as concepes at ento legitimadas perdem seu poder
explicativo e passam a ser contestadas. Por outra parte, no exagero supor que
isso ocorre tambm em virtude da importncia estratgica que esta temtica assume
nas relaes sociais no mbito dos espaos socioprodutivos.
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2.1.2 As abordagens sobre identidade na contemporaneidade
Como vimos tratando, a modernidade tardia7 fez eclodir um novo sujeito,
melhor dizendo, produziu uma nova forma de perceb-lo. Isto, de acordo com
Giddens (1991), produto de um processo de desencaixe entre o tempo e o
espao que se caracteriza pela desuniformidade, pelo deslocamento estrutural,
pela descontinuidade e pela reflexividade8. Por sua vez, esse desencaixe tem
implicaes diretas nas identidades.
Segundo Giddens (1991), a separao entre tempo e espao tem como
marco a Revoluo Industrial no sculo XVIII, tornando-se o grande separador entre
a era pr-moderna e moderna. Esta dissociao resultado de alguns fatores, entre
os quais, a possibilidade de mensurao precisa do tempo e a reduo do tempo de
locomoo em virtude das melhorias nos sistemas de transporte que propiciaram
relaes sociais e encontros para alm do face a face. Logo, os eventos e as
prticas de sociabilidade se deslocam ou desencaixam tanto no tempo quanto no
espao. Isto quer dizer que o quando j no depende mais do onde e isso cria um
grau de dinamismo, que somado a intensificao em conhecimento e o grande
aperfeioamento tecnolgico em comunicao e transporte, acarretam na alta fluidez
e velocidade, estruturando a modernidade. O autor expressa esta ideia no excerto
abaixo, afirmando que
O advento da modernidade arranca crescentemente o espao do tempo fomentando relaes entre outros ausentes, localmente distantes de qualquer situao dada ou interao face a face. Em condies de modernidade, o lugar se torna cada vez mais fantasmagrico: isto , os locais so completamente penetrados e moldados em termos de influncias
7 Esta modernidade tardia compreendida como uma segunda modernidade, mais reflexiva. De
acordo com Beck (2003), enquanto a primeira modernidade foi fortemente caracterizada pelo Estado Nacional, pela superioridade e distino da sociedade sob a natureza e pela vinculao direta entre participao social e trabalho produtivo; na segunda modernidade ou modernidade reflexiva a oposio sociedade/natureza torna-se questionvel em virtude da tecnologia e da crise ecolgica, ou seja, o progresso tecnocientfico no consegue mais ocultar suas mazelas. Ademais, como vimos, esta segunda modernidade fruto da intensificao dos processos de globalizao e da diluio das fronteiras, que paradoxalmente intensificam a individualizao. 8 Cabe registrar que para Giddens (1991), a reflexividade no exatamente um fenmeno novo, j
existia nas sociedades pr-modernas. A inovao da reflexividade na modernidade reside em sua radicalizao, promovida pela propagao acelerada da informao e pela organizao do conhecimento cientfico, tendo como efeito o fato de que as prticas sociais passam a ser constantemente examinadas e reformuladas luz de informao renovada sobre estas prprias prticas, alterando assim constitutivamente seu carter. (GIDDENS, 1991, p.45).
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sociais bem distantes deles. O que estrutura o lugar no simplesmente o que est presente na cena; a forma visvel do local oculta relaes distantes que determinam sua natureza. (GIDDENS, 1991, p.27; destaques no original).
Outros estudos (CASTELLS, 1999; AGIER, 2001; GIDDENS, 2002; HALL,
1996, 2003, 2005; BAUMAN, 1998, 1999, 2001, 2003, 2005; CANCLINI, 2008;
WOODWARD, 2009; dentre outros) corroboram este entendimento de que a
globalizao provocou uma fluidez e intensificao de informaes e de fatores
econmicos e culturais, as quais causaram mudanas nas estruturas e nos padres
de consumo e produo, culminando na construo de identidades novas e
globalizadas.
Agier (2001) comenta que nas mais diversas partes do mundo surgiram
movimentos identitrios (tnicos, raciais, regionais ou religiosos), que por vezes
podiam se apresentar mais slidos em outras vezes mais arrebatados, mas
invariavelmente eram propulsores de novos cenrios de socializao e de expresso
individual.
Este novo contexto abriga o surgimento de grandes empreendimentos
identitrios, que tendem a ocupar o lugar das antigas tribos, das aldeias perdidas e
de outras etnias em vias de desaparecimento. Deste processo decorrem atitudes
que do ares de recolhimento e/ou de retorno s razes", quando o que
efetivamente ocorre uma ressignificao, uma releitura com olhos do hoje, uma
inovao cultural. Segundo Agier (2001, p.11), isto se torna evidente quando ao
descodificar os processos e resultados da busca [por identificao], descobrimos
antes inovaes, invenes, mestiagens e uma grande abertura para o mundo
presente.
A esse processo Canclini (2008) denominaria hibridizao. Segundo este
autor, a hibridizao um termo detonante, ou seja, um conceito que desloca e
requisita a reformulao de outros. O autor a define enquanto processos
socioculturais nos quais estruturas ou prticas discretas, que existiam de forma
separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e prticas (CANCLINI,
2008, p.XIX). As referidas estruturas ou prticas so denominadas discretas, por no
poderem ser consideradas puras, pois j foi objeto de hibridao.
A sequncia desta subseo estar dedicada exposio das principais
concepes tericas que regem, atualmente, os estudos sobre identidade.
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Comeamos indicando que o estudo antropolgico das identidades foi levado
a cabo a partir de uma abordagem simultaneamente, contextual, relacional,
construtivista e situacional. Significa dizer, desde esta perspectiva, que: a) no h
uma identidade em si mesma, ela precisa ser contextualizada, notadamente em
sociedades cada vez mais complexas; b) a identidade precisa do outro para se
ver e se relacionar/comparar e, a partir disso, se modificar; c) o processo de
afirmao (edificao/justificao) identitria ou de estabelecimento de fronteiras
entre eu e o outro baseia-se no movimento de seleo de elementos que iro
compor os enunciados, as narrativas identitrias, de modo que esta construo
social das diferenas culturais9 esteja constantemente retroalimentada por fluxos
plurais de informao; d) as identidades so seletivamente acionadas motivadas por
determinadas situaes, havendo uma espcie de plasticidade identitria que se
molda aos contextos vivenciados pelos sujeitos ou coletividades a fim de evidenciar
a maior coerncia possvel, ainda que uma anlise mais atenta revele uma grande
contraditoriedade (AGIER, 2001).
Cabe ressalvar que esta perspectiva , por assim dizer, bastante moderna,
pois durante longo tempo a identidade esteve contida no sujeito. Para Hall (2005),
esta abordagem de identidade lastreava-se na razo, no sujeito do iluminismo ou
na identidade cartesiana, que por razes j expostas, perdeu sua eficcia
explicativa e deu vida ao sujeito sociolgico. No entendimento deste autor, ao
longo da histria, as concepes de identidade transitaram entre trs tipos de
sujeitos: o sujeito iluminismo, o sujeito sociolgico e o sujeito ps-moderno.
O sujeito do iluminismo baseava-se na concepo do ser como um sujeito
completamente centrado, unificado, munido de capacidades de razo, conscincia e
ao, tendo seu centro (ou identidade) como um ncleo interno, que surgia com seu
nascimento e se desenvolvia mantendo sua essncia ao longo de sua vida
(HALL, 2005).
O sujeito sociolgico fruto do mundo moderno sustentava a noo de
que o ncleo interior (ou identidade) do sujeito no era autnomo e autossuficiente,
mas produto da interao social com outros indivduos importantes para ele.
Como possvel notar, nesta perspectiva o indivduo mantm seu eu real
(sua essncia), mas constantemente transformado pelo contato com as
9 Agier (2001) adota esta expresso fundamentando-se em Fredrik Barth (1969, 1994).
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identidades ofertadas por distintos mundos culturais, constituindo uma identidade
que costura o sujeito sua estrutura e preenche o espao entre o universo pessoal
e o pblico (HALL, 2005, p.12). Trata-se, pois, de uma forma de identidade
completamente dependente da estrutura social (no existe sem ela)10. Para Hall
(2005), esta sutura do sujeito estrutura estabiliza tanto os sujeitos quanto os
mundo culturais que eles habitam, tornando ambos reciprocamente mais unificados
e predizveis.
Esta noo de predio e unidade que assegurava certo grau de
conformidade subjetiva com as necessidades objetivas da cultura (HALL, 2005,
p.5; destaques no original) comea a ruir, criando uma conjuntura onde as
identidades tornam-se provisrias, variveis e problemticas. Neste cenrio aflora o
sujeito ps-moderno, constitudo por identidades que no so fixas, essenciais ou
permanentes.
Neste caso, a identidade converte-se em uma celebrao mvel
(re)construda historicamente (e no biologicamente) com base nas simbologias
pelas quais somos representados nos distintos universos culturais. Dito de outra
forma, o sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos,
identidades que no so unificadas ao redor de um eu coerente. [...] A identidade
plenamente unificada, completa, segura e coerente uma fantasia (HALL, 2005,
p.13; destaque no original). Por assim dizer, so produzidos novos arranjos capazes
de reorganizar e ressignificar os sistemas classificatrios e de representao
constituindo identidades mltiplas.
Tal assertiva corroborada por Ferreira (2010, p.3) que alega que cada
pessoa possui uma identidade mltipla, que tem de manejar, combinar e modificar
quotidianamente. De qualquer forma, a concepo de uma identidade completa,
estvel e nica, pura imaginao.
Em que pese o grau de liberdade proposto por este novo cenrio, o maior
resultado, segundo Bauman (2005), um quadro flagrante de ansiedade e de
insegurana. Ao mesmo tempo em que necessitamos responder quem somos, em
nossa poca lquido-moderna, em que o indivduo livremente flutuante, desimpedido,
10
Os socilogos interacionistas (George Mead, Erving Goffman e Charles Cooley, por exemplo) so precursores desta concepo interativa da identidade. importante destacar que esta foi a linha de raciocnio que se tornou clssica na sociologia e que conduziu os diversos estudos que compreendiam a identidade como produto da interao entre o eu e a sociedade.
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o heri popular, estar fixo ser identificado de modo inflexvel e sem alternativa
algo cada vez mais malvisto (2005, p.35; destaques no original).
Para Bauman (1999), o perodo representado pela modernidade
caracterizado pela luta contra a ambivalncia, deflagrando a incessante tentativa da
cincia e do Estado em identificar, classificar e ordenar o mundo11, para ento
control-lo. A superao da ambivalncia tratada pelo autor enquanto um
empreendimento da modernidade na conquista da racionalizao.
Nesta lgica, enquanto a cincia cuidava de suprimir a dubiedade, a
relatividade e a hesitao, o Estado era responsvel por eliminar qualquer tipo de
incoerncia que desse margem indeterminao. A ao do Estado configurou o
que o autor chama de Projeto Moderno.
Segundo Bauman (1999, p.29) o dito projeto racional tinha uma postura
jardineira que deslegitimou a condio presente (selvagem, inculta) da populao e
desmantelou os mecanismos existentes de reproduo e auto-equilbrio,
supostamente, indicando fontes de categorizao e avaliao da realidade. Tais
instrumentos segregaram a populao em plantas teis a serem estimuladas e
cuidadosamente cultivadas e ervas daninhas a serem removidas ou arrancadas.
Satisfaziam as necessidades das plantas teis (segundo o projeto jardineiro) e no
proviam as daquelas consideradas ervas daninhas 12.
Com efeito, esse projeto se mantinha regido por um ideal tecnocientfico que
afirmava que pelo domnio do homem sobre a natureza poder-se-ia reordenar o
mundo e suas relaes socioespaciais. O reordenamento no reconheceu as formas
socioculturais existentes, pois entendia que o ponto de partida era o estabelecimento
de uma estrutura racionalmente organizada que para legitimar-se demandava a
construo de smbolos e representaes que propiciassem certo grau de arraigo e
pertencimento ao novo.
Portanto, as culturas nacionais converteram-se na principal referncia
identitria, transformando a identidade de atribuio para realizao individual.
Todavia, a ruptura com a identidade atribuda no rompeu com a noo de
identidade slida, coesa e fixa, apenas cedeu espao concepo de que as
11
Como veremos adiante os sistemas classificatrios fornecem as bases para a construo identitria. 12
Neste ponto, cabe um parntese para introduzir a ideia de que para Bauman (2003) a identidade baseada no tal sujeito sociolgico, de Hall, foi forjada exatamente no centro da edificao dos estados nacionais.
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31
identidades deveriam ser construdas pelos sujeitos, desvencilhando-os de suas
heranas identitrias. Segundo Bauman (1998),
O projeto moderno prometia libertar o indivduo da identidade herdada. No tomou, porm, uma firme oposio contra a identidade como tal, contra se ter uma identidade, mesmo uma slida, exuberante e imutvel identidade. S transformou a identidade, que era questo de atribuio, em realizao fazendo dela, assim, uma tarefa individual e da responsabilidade do indivduo. (BAUMAN, 1998, p.30; destaques no original).
Porm, esta realizao identitria devia ser tomada como projeto de vida e
precisava ser elaborada sistematicamente por um roteiro concludo, antes mesmo de
iniciado o labor, ou seja, este processo requisitava uma clara percepo da forma
final, o clculo cuidadoso dos passos que levariam a ela, o planejamento a longo
prazo e a viso atravs das consequncias de cada movimento (BAUMAN, 1998,
p.31).
Em suma, Bauman (1998, 1999, 2003) afirma que o projeto moderno consistiu
na principal ferramenta para combater a ambivalncia, tendo consequncias diretas
na percepo sobre as identidades. Ainda que no seio deste processo as
identidades passassem a ser passveis de construo, elas mantinham um fim, um
delineamento preciso, que aps sua concepo tornavam-se imutveis13.
Aquelas identidades que no expressavam uma forma clara e objetiva ou que
davam margem a qualquer tipo de ambiguidade eram enquadradas como problema
(BAUMAN, 1999). Estes valores no so mais vlidos (BAUMAN, 1998, 1999, 2001,
2003), ao contrrio, atualmente a ambivalncia no mais temida , inclusive, tida
como um valor. Segundo Bauman (1999, p.297; destaques no original), outrora
declarada um perigo mortal para toda a ordem social e poltica, a ambivalncia no
mais um inimigo no porto. Ao contrrio: como tudo o mais, foi transformada num
dos suportes do palco para a pea chamada ps-modernidade.
Cabe referir que para Bauman (1999, p.109-0), a ps-modernidade significa
uma decidida emancipao face nsia caracteristicamente moderna de superar a
ambivalncia e promover a clareza monossmica da uniformidade. Ou seja, a ps-
modernidade inverte os sinais dos valores centrais modernidade, como a
uniformidade e o universalismo, convertendo-se na modernidade que admitiu a
impraticabilidade de seu projeto original.
13
Em analogia, seriam como artefatos de argila, que mantm um perodo determinado de maleabilidade, mas que passado este intervalo tornam-se extremante rgidos.
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32
Uma flagrante inverso que marca a passagem entre os ditos mundos slido
e lquido consiste no fato de que o grande trabalho no est mais centrado na
solidificao de identidades e no esforo de torn-las parte indissocivel de ns
mesmos. Ao invs, est focado na tarefa de evitar que ela se fixe, que seja durvel o
suficiente para tornar-se entediante.
Neste sentido, Bauman (1998, p.114) afirma que a dificuldade j no
descobrir, inventar, construir, convocar (ou mesmo comprar) uma identidade, mas
como impedi-la de ser demasiadamente firme e aderir depressa demais ao corpo.
Por assim dizer, o eixo da estratgia de vida ps-moderna no fazer a identidade
deter-se mas evitar que se fixe.
De acordo com Bauman (2005), este ambiente vitaliza uma espcie de
identidade lquida14 que permanece sempre aberta a mudanas. Esta identidade,
segundo o autor, pode ser pensada em confronto com a lgica de um quebra-
cabea, que possui um conjunto completo de peas, as quais esto voltadas
construo de uma imagem previamente conhecida. Tal imagem serve de guia, de
segurana para avaliar se cada encaixe est correto e ao mesmo tempo identificar
quanto ainda resta para completar a imagem perseguida. No caso da identidade,
existe tambm um rol de peas que podero ser organizadas e encaixadas a fim de
construir um todo significativo. Todavia, a imagem final desconhecida, inexistindo
um molde e, assim, no h una forma de saber se o caminho trilhado correto, se
as peas selecionadas conduziram a uma imagem coerente e final. O autor alerta
que a tarefa de montar um quebra-cabeas direcionada ao objetivo, enquanto a
construo identitria est direcionada aos meios, pois
No se comea pela imagem final, mas por uma srie de peas j obtidas ou que paream valer a pena ter, e ento se tenta descobrir como possvel agrup-las e reagrup-las para montar imagens (quantas?) agradveis. Voc est experimentando com o que tem. Seu problema no o que voc precisa para chegar l, ao ponto que pretende alcanar, mas quais os pontos que podem ser alcanados com os recursos que voc j possui, e quais deles merecem os esforos para serem alcanados (BAUMAN, 2005, p. 55; destaques no original).
Desde nosso ponto de vista, trata-se de dizer, de outro modo, que a
construo identitria est mais prxima de um jogo de lego, em que voc pode
14
Esta noo de Bauman (2005) encontra correspondncia com o Sujeito Ps-Moderno de Hall (2005).
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33
construir diversas formas e dar diversos significados a partir do rol de peas que
lhes so disponibilizadas, em lugar de propriamente ser um quebra-cabeas.
Para Woodward (2009) em torno discusso sobre identidade gravita a
constante tenso entre perspectivas diametralmente opostas: a essencialista e a
no-essencialista. Se, por um lado, a abordagem essencialista sugere a
existncia de um conjunto cristalino e autntico de caractersticas que todos os
membros de um determinado grupo partilham e que no se alteram no decorrer do
tempo, a no-essencialista focaliza nas diferenas, assim como as caractersticas
comuns ou partilhadas, tanto entre os membros do prprio grupo identitrio, quanto
entre este grupo e outros grupos (que o fazem existir). Este enfoque no presta
especial ateno s formas pelas quais a definio de dada identidade tem mudado
ao longo da histria.
Larrain (2003) havia proposto outro quadro explicativo que nos parece
inclusive mais adequado em que constam trs posies tericas: a essencialista,
a construtivista e a histrico-cultural. De acordo com o autor, as posies
essencialista e construtivista seriam plos extremos, enquanto que a histrico-
cultural se situaria num plano mais intermedirio/central, buscando equilbrio entre
as anteriores.
A vertente essencialista, segundo Larrain (2003, p.40; destaques no original)
a que piensa la identidad cultural como un hecho acabado, como un conjunto ya
establecido de experiencias comunes y de valores fundamentales compartidos que
se constituy en el pasado, como una esencia inmutable, de una vez para siempre.
No extremo oposto encontra-se a construtivista, derivado del postestructuralismo,
que destaca la capacidad de ciertos discursos para construir la nacin, para
interpelar a los individuos y constituirlos como sujetos nacionales. Por ltimo, Jorge
Larrain discrimina a linha histrico-cultural, a qual
Por una parte, piensa la identidad cultural como algo que est en permanente construccin y reconstruccin dentro de nuevos contextos y situaciones histricas, como algo de lo cual nunca puede afirmarse que est finalmente resuelto o constituido definitivamente como un conjunto fijo de cualidades, valores y experiencias comunes. Por otra parte, no concibe la construccin de la identidad nicamente como un proceso discursivo pblico, sino que tambin considera las prcticas y significados sedimentados en la vida diaria de las personas. (LARRAIN, 2003, p.40-1)
Do exposto, apreende-se que Larrain (2003) mantm uma posio
estruturalista ao conceber que a identidade se forja nas condies sociohistricas
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dos sujeitos. Esta concepo considera que a identidade produto de uma
interrelao dinmica entre o ambiente pblico e o privado, o que um avano em
relao s orientaes anteriores, visto que, o essencialismo, ao considerar a
identidade como uma essncia imutvel, relega a histria e o fato de que a
identidade cambiante, assim como em relao ao construtivismo, que ao
preconizar um arcabouo discursivo altamente coerente e articulado, entende que a
identidade construda verticalmente na esfera pblica, descuidando das narrativas
e prticas populares e privadas.
Ademais, convm destacar que a vertente histrico-cultural diferencia-se do
essencialismo tanto por olhar ao passado como o espao privilegiado onde esto
guardados os principais elementos da identidade, quanto por voltar-se ao futuro,
concebendo a identidade como um projeto. Desta forma, segundo Larrain (2003),
passa a importar, de igual forma, no apenas quem somos, mas quem queremos
ser.
Desde nossa perspectiva, esta abordagem especialmente importante para
as discusses que buscaremos empreender nesta tese, pois sustenta as reflexes a
respeito de como os diferentes atores vem construindo suas narrativas, que visam
justapor o vinho ao pampa.
Nesta seo tratamos de expor, como um quadro aproximado, como os
principais autores contemporneos dedicados ao tema da identidade a concebem no
atual contexto, pontuando, especialmente, algumas perspectivas que nos auxiliaro
nas discusses que empreenderemos nesta tese. At o momento, de forma
explcita, no nos dedicamos a esboar e definir um conceito de identidade. Ser
este o objeto da prxima seo.
2.1.3 A questo da identidade na contemporaneidade
No atual cenrio, em que existe um certo consenso de que as identidades
modernas esto em crise, esta seo cumpre com a difcil tarefa de responder as
inquietantes questes a respeito do que atualmente entendido por identidade e se
realmente existe um processo de (re)construo identitria. Ademais, cabe indagar
que papel as identidades assumem na atualidade?
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Num primeiro momento cabe dizer que a identidade ainda tida como um
termo polissmico, capaz de indicar dimenses individuais (pessoais) e coletivas
(sociais) (WASSERMAN, 2001), as quais so interdependentes. Para Oliveira
(2003), a sociologia tem trabalhado no sentido de demonstrar a interconexo entre
os nveis individuais e sociais, deflagrando que se trata de um mesmo fenmeno que
possui distintos estados de realizao.
Larrain (2003) fornece um alerta importante, apontando que apesar de as
identidades coletivas no devam se mostrar hipostasiadas como se tivessem uma
existncia independente e pertencessem a um sujeito coletivo totalmente integrado
(uno) no se pode ocultar ou esquecer as diferenas entre identidade coletiva e
individual. A ateno principal deve centrar-se em dois aspectos: a) uma identidade
coletiva no possui uma estrutura psquica15 (um conjunto de traos psicolgicos
especficos); b) as identidades coletivas normalmente renem vrios discursos
identitrios, enquanto as identidades individuais tendem a manifestar um s discurso
ou ao menos um discurso integrado (exceto em casos de dissociao ou
esquizofrenia).
Sobre este segundo aspecto, Larrain (2003) assevera que embora nos
tempos mais modernos os sujeitos estejam enfrentando um processo de
fragmentao, estes seguem perseguindo uma condio de coerncia interior.
Oliveira (2003) informa que a identidade coletiva fruto da atualizao do
processo de identificao/classificao e envolve a noo de grupo social, no se
desvencilhando da identidade individual, pois esta seu reflexo. Destarte, as
identidades coletivas e individuais possuem um contedo fortemente reflexivo e/ou
comunicativo, uma vez que preconizam relaes sociais e um cdigo classificatrio
que conduz e desenvolve tais relaes.
Segundo Woodward (2009, p.18), a identificao um processo pelo qual
nos identificamos com os outros, seja pela ausncia de uma conscincia da
diferena ou da separao, seja como resultados de supostas similaridades. As
pessoas ou grupos, ao afirmarem-se em suas condies, o fazem, sempre, por meio
15
Todavia, a escola culturalista norte-americana (que inclui Margaret Mead, Ruth Benedict, Ralph Linton y Clyde Kluckhohn, etc.), desenvolvia trabalhos seguindo a noo de que os indivduos de uma dada sociedade possuem uma estrutura de carter comum certo padro cultural que podem ser descritos por uma srie de traos psicolgicos e que os mesmos corresponderiam a traos psicolgicos de um carter nacional. Para Larrain (2003) esta uma orientao fortemente inadequada, pois certamente nem todos os sujeitos desta sociedade compartilham estes fatores psicolgicos. O autor alerta tambm para outro possvel equvoco que o de constituir o outro por meio de esteretipos.
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da diferenciao em relao ao outro, atravs do contraste, da oposio, ou seja,
no um processo solitrio, necessita de um referencial.
Entretanto, existem problemas quanto a isto. Esta marcao da diferena
pode criar a falsa ideia de que estes grupos detentores de identidades particulares
no apresentam similaridades, pois a diferena sustentada pela excluso (de ser
um ou outro). Outra questo diz respeito ao contexto: uma coisa a vida cotidiana,
outra uma identidade que transcende16.
H, sem dvida, momentos de conflito em que as similaridades so
praticamente escamoteadas pelas diferenas, pois estes marcadores de diferena,
ou sinais diacrticos, so selecionados, dando superioridade a algumas diferenas
em relao a outras. Quer dizer, as cartas so marcadas para a vitria de um
determinado jogo e esta deciso sempre depende das regras do jogo e do
adversrio em questo. Para Woodward (2009, p.11) a afirmao das identidades
nacionais historicamente especfica, notadamente relacionada com momentos de
conflitos particulares. Fato que nos permite afirmar que a identidade histrica,
marcada socialmente no tempo e no espao.
O processo de definio de uma identidade, segundo Brumer (1994),
pressupe e reconhece outros sujeitos e/ou grupos que so identificados e
caracterizados por uma identidade particularmente distinta, constituindo uma noo
de identidade contrastiva. Segundo Brando (1986 apud BRUMER, 1994, p.29), as
identidades no so [...] apenas o produto inevitvel da oposio por contraste, mas
o prprio reconhecimento social da diferena.
Apoiado no estudo de Laclau (1990), Stuart Hall (2005) assevera que
As sociedades da modernidade tardia [...] so caracterizadas pela diferena: elas so atravessadas por diferentes divises e antagonismos sociais que produzem uma variedade de diferentes posies de sujeito isto , identidades para os indivduos. Se tais sociedades no se desintegram totalmente no porque elas so unificadas, mas porque seus diferentes elementos e identidades podem, sob certas circunstncias, ser conjuntamente articulados. Mas esta articulao sempre parcial: a estrutura da identidade permanece aberta. (HALL, 2005, p.17; destaques no original).
De acordo com Larrain (2003, p.39), o processo discursivo de produo da
identidade tem carter, invariavelmente, seletivo e excludente, visto que so eleitos
16
Woodward (2009) ilustra suas argumentaes a partir de uma passagem da guerra na antiga Iugoslvia, argumentando que apesar de um soldado entender que na vida cotidiana srvios e croatas so a mesmssima coisa, na luta pela unidade de uma identidade nacional ele conduzido a criar uma grande diferena para prevalncia de um sobre o outro.
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alguns traos que se consideram fundamentais, relegando-se muitos outros,
construindo assim uma verso da histria.
De all que sea posible construir varias versiones sobre la identidad nacional que representan intereses, valores y grupos sociales distintos. Cuando se analiza el carcter selectivo y excluyente de todo proceso de constitucin de un discurso identitario nacional se puede ver que no hay nada natural o espontneo en l y que varias otras versiones podran igualmente ser (y de hecho son) construidas utilizando otras selecciones y exclusiones (LARRAIN, 2003, p.39).
Um dos elementos fundamentais para estabelecer este arranjo entre
diferentes caracteres e identidades so as representaes, as quais possuem uma
atuao simblica na conformao dos sistemas de classificao do mundo e das
relaes que este abriga17 (HALL, 1997 apud WOODWARD, 2009). A importncia
delegada representao enquanto sistema cultural justifica-se pelo fato de que
ela incorpora prticas simblicas que traduzem significados e que nos posicionam
enquanto sujeitos.
Segundo Woodward (2009), as representaes podem ser usadas para
analisar o processo de construo identitria, partindo do referente do que tomado
como sendo a mesma coisa e do que enunciado como diferente em cada
identidade, seria como responder para quem est ou no disponvel determinada
identidade.
Para Woodward (2009) a identidade marcada atravs da diferena, por
meio de signos ou por objetos que so usados e/ou representam ns e no eles.
Na sua viso existe uma noo entre a identidade da pessoa e as coisas que uma
pessoa usa, ou seja, a luta para afirmar as diferentes identidades tem causas e
consequncias materiais (WOODWARD, 2009, p.10).
De acordo com Larrain (2003, p.32) as identidades se conformam a partir do
arranjo de trs elementos fundamentais as categorias coletivas, as possesses, e
os Outros- que tornam o processo de construo identitrio ao mesmo tempo
cultural, material e social.
O primeiro dos elementos refere-se ao fato de que os indivduos se definem a
si prprios, ou se identificam com determinadas qualidades, em termos de certas
categorias sociais compartilhadas (religio, gnero, classe, profisso, etnia,
17
A antroploga Mary Douglas em sua clebre obra Pureza e Perigo (1976) defende a tese de que a marcao da diferena o lastro da cultura, pois as coisas e as pessoas adquirem sentido atravs de sistemas classificatrios. A respeito dos sistemas classificatrios ver tambm o captulo de Lvy-Strauss, intitulado O tringulo culinrio, presente na obra de Yvan Simonis (1979).
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sexualidade, nacionalidade). Cabe dizer que para Larrain (2003), ao formar as
identidades individuais, os sujeitos compartilham lealdades coletivas/grupais de tal
modo que a cultura passa a ser um dos determinantes da identidade pessoal. De
outra forma dizer que as identidades individuais esto enraizadas em contextos
coletivos, definidos culturalmente, conforme j referimos.
Para este autor, este seria o nascedouro das identidades culturais ou
coletivas, que correspondem s categorias compartilhadas18. Jorge Larrain assevera
que existe uma forte correlao e interdependncia entre identidade individual e
coletiva. O excerto a seguir reflete esta viso:
[] las identidades personales y colectivas estn interrelacionadas y se necesitan recprocamente. No pueden haber identidades personales sin identidades colectivas y viceversa. [] Los individuos se definen por sus relaciones sociales y la sociedad se reproduce y cambia a travs de acciones individuales. Las identidades personales son formadas por identidades colectivas culturalmente definidas, pero stas no pueden existir separadamente de los individuos. (LARRAIN, 2003, p.35)
O processo de construo de identidade material quando os seres humanos
projetam simbolicamente seu eu e suas qualidades em coisas materiais, ou seja,
quando se vem naquilo que produzem, que possuem, que adquirem e/ou que
transformam em objeto. Para Simmel (1983), numa perspectiva extremamente
ampla, o eu de um sujeito a soma de tudo o que ele pode chamar de seu, no s
seu corpo e sua mente, tambm suas roupas, sua casa, seus amigos, sua famlia,
sua profisso, sua reputao, seu carro, sua conta bancria, etc. Em linhas gerais,
o que Simmel aponta que as posses so uma espcie de projetores de nossa
personalidade, uma forma de realizar-se externamente. Como exposto pelo autor,
toda propiedad significa una extensin de la personalidad; mi propiedad es lo que obedece a mi voluntad, es decir, aquello en lo cual mi s mismo se expresa y se realiza externamente. Y esto ocurre antes y ms completamente que con ninguna otra cosa, con nuestro propio cuerpo, el cual, por esta razn, constituye nuestra primera e indiscutible propiedad (1976, p.571).
De acordo com Larrain (2003) a partir deste aspecto material que a
identidade encontra aderncia ao consumo e s indstrias tradicionais e culturais,
por meio de diversos bens de consumo (arte, objetos materiais e entretenimento). A
perspectiva do autor de que a aquisio e consumo destas mercadorias uma
18
Na modernidade as identidades culturais que assumiram papis mais relevantes foram as identidades de classe e as identidades nacionais (LARRAIN, 2003).
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forma de satisfao cultural, mas tambm pode ser uma forma de buscar
pertencimento ou reconhecimento em uma dada comunidade. Sua opinio de que
Cada compra o consumo de estas mercancas es tanto un acto por medio del cual la gente satisface necesidades como un acto cultural en la medida que constituye una manera culturalmente determinada de comprar o de consumir mercancas. As por ejemplo, yo puedo comprar una entrada para ir a la pera porque con la pera experimento un placer esttico. Pero tambin puedo comprar una entrada para la pera, que no me gusta mucho, para ser visto en compaa de cierta gente que yo estimo importante o de alto status. [Por otra parte] el acceso a ciertos bienes materiales, el consumo de ciertas mercancas, puede tambin llegar a ser un medio de acceso a un grupo imaginado representado por esos bienes; puede llegar a ser una manera de obtener reconocimiento. (LARRAIN, 2003, p.33-4)
Por ltimo, e no menos importante, Larrain (2003) afirma que a construo
identitria um processo social por ser relacional, quer dizer, por forjar-se na
referncia aos Outros. Segundo o autor, isto decorre de duas razes: primeiro pelo
fato de que os Outros so nossos referentes, cujas opinies e valores so em ns
internalizados e servem para constituir nosso auto-regramento e conduzir nossas
auto-expectativas; e, segundo porque estes Outros tambm so aqueles dos quais
queremos nos diferenciar, a partir de claras fronteiras.
Vale ressaltar que essas construes identitrias no so processos passivos
e neutros, guiados puramente ao sabor das expectativas externas. A identidade
sem dvida, un proceso de interaccin por medio del cual la identidad del sujeto es
construida no slo como una expresin del reconocimiento libre de los otros, sino
tambin como resultado de una lucha por ser reconocido por los otros (LARRAIN,
2003, p.34).
A aproximao que realizamos at este momento permite inferir que na
construo das identidades a comparao ou contraste com o Outro e o emprego
de instrumentos de diferenciao sempre cumpriram papel fundamental. Desde a
histria antiga isto pode ser percebido. Por exemplo, os gregos dividiam o mundo
entre gregos e brbaros, sendo estes ltimos os que falavam outras lnguas e eram
proibidos de falar grego. Eram, portanto, os outros da identidade grega. Segundo
Larrain, (2003, p.35), em algumas ocasies, para definir lo que se considera propio
se exageran las diferencias con los que estn fuera y en estos casos el proceso de
diferenciacin se transforma en un proceso de abierta oposicin y hostilidad al otro,
mas se a diferenciao indispensvel, a hostilidade no o .
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Por outra parte, cabe enfatizar que somente as avaliaes daqueles que
realmente contam e que so, de algum modo, significativos para o sujeito (ou que
exercem poder sobre ele)19 que so balizadores da construo e manuteno de
sua auto-imagem. Esta imagem de si mesmo construda dentro de um quadro de
referncia a respeito de um julgamento prprio que est preso percepo que este
possui a respeito da forma pela qual os outros lhe julgariam, ou seja, a identidade
construda tanto fora quanto dentro do sujeito. Portanto, conforme j alertamos, a
identidade pressupe a existncia de um coletivo, no produto de ao individual
ou algo que compe a pessoa desde seu nascimento.
Essa assertiva encontra assento na ideia de que a identidade no se constitui
enquanto uma essncia fixa que permanece imutvel e descontextualizada, histrica
e culturalmente. Ainda que no assuma uma forma rgida e que, portanto, seja de
difcil caracterizao no se trata de mero artifcio da imaginao. Tem suas
histrias e as histrias, por sua vez, tm seus efeitos reais, materiais e simblicos
(HALL, 1996, p.67). Essas identidades configuram-se enquanto pontos flexveis de
identificao ou costura, como j referimos, sendo, ento, um posicionamento.
Tratando a respeito dos pontos de confluncia e divergncia entre os pases
de colonizao negra da Amrica Central, Hall (1996) indica que estes pases so
ao mesmo tempo iguais e muito diferentes. Eles constroem uma espcie de unidade,
em virtude da origem africana do povo, mas ao mesmo tempo se diferenciam, pois a
semelhana carrega em si uma enorme diversidade de origens, santos, comidas,
danas, etc. Assim, a identidade cultural posiciona martiniquenses e jamaicanos, a
um s tempo, como iguais e diferentes (HALL, 1996, p.68). Esta variabilidade de ser
igual/diferente depende de quem e/ou de onde se projeta o olhar. Por exemplo, em
relao ao Ocidente desenvolvido estes pases so todos iguais (notadamente,
negros e pobres), mas do ponto de vista interno eles se vem como diferentes, pois
se distinguem por outros referenciais20.
O essencial a ser apreendido que a significao assumida em diferentes
tempos e lugares e so acionadas, delimitadas e posicionadas em certos contextos,
quando efetivamente h uma parada arbitrria e contingente que demarca o
posicionamento. um momento em que se para para contar como neste
19
Durante muito tempo os balizadores da construo identitria eram a famlia e a Igreja. 20
Esta uma perspectiva importante para compreender os parmetros que conduzem a construo de uma identidade vitivincola na Campanha Gacha.
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momento, sem cristaliz-lo, deixando frentes abertas para (re)cons