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[T] Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 26, n. 39, p. 671-691, jul./dez. 2014 Wittgenstein e Moore: sobre a certeza Wittgenstein and Moore: On Certainty Arturo Fatturi Doutor em Filosofia, professor de Filosofia na Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) – Campus Chapecó, Santa Catarina, SC - Brasil, e-mail: arturo.fatturi@uffs.edu.br Resumo Neste ensaio será analisada a resposta fornecida por George Edward Moore ao questio- namento do filósofo cético quanto à existência de objetos exteriores a nós. Num primei- ro momento analisar-se-á a resposta oferecida por Moore e sua estrutura. Num segundo momento se faz a análise da efetividade que as respostas de Moore apresentam como soluções à dúvida cética. Após essas análises, passamos a considerar criticamente a em- preitada de Moore segundo o ponto de vista da filosofia de Ludwig Wittgenstein expos- ta em sua obra On Certainty. Nossa conclusão é que as proposições apresentadas por Moore não servem de provas, uma vez que elas não são provenientes de investigações empíricas. Sendo assim, as alegadas proposições de Moore são de fato as estruturas que permitem que toda dúvida e investigação sejam lançadas. A partir disso, examinamos se as proposições de Moore podem ser consideradas conhecimento. Por fim, analisamos o status filosófico da dúvida cética que Moore pretende responder. Nossa intenção é mostrar que a dúvida cética não possui sentido e, por tal razão, apresenta-se como pa- radoxo ao nosso entendimento. Nossa conclusão é que a análise do ceticismo filosófico, tal como elaborado por Moore e Wittgenstein, possibilita-nos alcançar clareza quanto ao DOI: 10.7213/aurora.26.039.DS09 ISSN 0104-4443 Licenciado sob uma Licença Creative Commons

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Artigo "Wittgenstein e Moore: sobre a certeza"

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  • [T]

    Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 26, n. 39, p. 671-691, jul./dez. 2014

    Wittgenstein e Moore: sobre a certeza

    Wittgenstein and Moore: On Certainty

    Arturo Fatturi

    Doutor em Filosofia, professor de Filosofia na Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) Campus Chapec, Santa Catarina, SC - Brasil, e-mail: [email protected]

    Resumo

    Neste ensaio ser analisada a resposta fornecida por George Edward Moore ao questio-

    namento do filsofo ctico quanto existncia de objetos exteriores a ns. Num primei-

    ro momento analisar-se- a resposta oferecida por Moore e sua estrutura. Num segundo

    momento se faz a anlise da efetividade que as respostas de Moore apresentam como

    solues dvida ctica. Aps essas anlises, passamos a considerar criticamente a em-

    preitada de Moore segundo o ponto de vista da filosofia de Ludwig Wittgenstein expos-

    ta em sua obra On Certainty. Nossa concluso que as proposies apresentadas por

    Moore no servem de provas, uma vez que elas no so provenientes de investigaes

    empricas. Sendo assim, as alegadas proposies de Moore so de fato as estruturas que

    permitem que toda dvida e investigao sejam lanadas. A partir disso, examinamos se

    as proposies de Moore podem ser consideradas conhecimento. Por fim, analisamos

    o status filosfico da dvida ctica que Moore pretende responder. Nossa inteno

    mostrar que a dvida ctica no possui sentido e, por tal razo, apresenta-se como pa-

    radoxo ao nosso entendimento. Nossa concluso que a anlise do ceticismo filosfico,

    tal como elaborado por Moore e Wittgenstein, possibilita-nos alcanar clareza quanto ao

    DOI: 10.7213/aurora.26.039.DS09 ISSN 0104-4443Licenciado sob uma Licena Creative Commons

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    conjunto de proposies que fazem parte do sistema do qual as dvidas e investigaes

    podem ser levantadas.

    Palavras-chave: Certeza. Conhecimento. Dvida. Ludwig Wittgenstein. George Moore.

    Abstract

    In this essay I will present an analysis of the response provided by George Edward Moore

    to the question of the skeptic concerning the doubt surrounding the existence of objects

    outside us. In the first step an analysis of the answer offered by Moore and its structure is

    present. In the second step I investigate Moores capacity of answering the skeptical doubt.

    After these analyses, my endeavor is to critically consider Moores answers from the point

    of view of the philosophy of Ludwig Wittgenstein, as exposed in his work On Certainty. My

    conclusion is that the propositions presented by Moore do not serve as evidence to prove

    the existence of the external world, since those propositions are not derived from empirical

    investigations. Thus, the alleged Moores propositions are in fact the structures that allow us

    to launch our doubts and investigations. From this investigation I examine if Moores propo-

    sitions can be considered knowledge. Finally, I analyze the philosophical status of skeptical

    doubt that Moore intends to respond. My intention here is to show that the skeptical doubt

    has no sense, and for that reason has the aspect of a paradox. My final conclusion is that the

    analysis of philosophical skepticism, as designed by Moore and Wittgenstein, enables us to

    achieve clarity on the set of propositions that are part of the system where the doubts and

    inquiries have sense.

    Keywords: Certainty. Knowledge. Doubt. Ludwig Wittgenstein. George Moore.

    Penso, portanto, que no caso de todos os tipos de coisas, que so tais que se existe um par de coisas, ambas as quais so de um desses tipos, ou um par de coisas uma das quais de um deles e uma delas de outo, ento seguir-se- imediatamente que exis-tem algumas coisas a serem encontradas no espao, verdade tambm que posso provar que existe um par de coisas, uma das

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    quais um desses tipos e a outra de outro, ou um par do qual as duas coisas de um desses tipos ento terei ipso facto provado que existem pelo menos duas coisas fora de ns.

    (G. E. Moore, Prova de um Mundo exterior, p. 129)

    Neste ensaio vou apresentar e discutir a prova da existncia de um mundo exterior lanada por George Moore. Os argumentos de Moore sero, mais frente, cotejados com os comentrios de Ludwig Wittgenstein em sua obra On Certainty quanto ao sucesso da emprei-tada de Moore. Meu objetivo mostrar que a estratgia de Moore de alegar ser impossvel provar a verdade das proposies que usa como provas, ainda que evite uma nova rodada de questes do filsofo ctico, no cumpre com este objetivo. Em segundo lugar, apresento e analiso alguns dos argumentos lanados por Wittgenstein a fim de de-monstrar que a dvida do filsofo ctico no faz sentido, pois erra ao solicitar provas da verdade de proposies que pertencem estrutu-ra do jogo de linguagem que permite a prpria dvida. Meu objetivo principal mostrar que as tentativas de provar a existncia do mun-do exterior podem ser filosoficamente instigantes, mas no nos levam muito alm da perplexidade.

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    Ao elaborar sua prova de um mundo exterior, George Moore ar-gumenta que ela de fato correta. Segundo Moore, sua prova satisfaz o critrio de correo lgica que qualquer prova genuna deve possuir, a saber: (a) ela deve ser um argumento vlido; (b) suas premissas devem ser verdadeiras; e (c) as premissas devem conhecidas como verdadei-ras. Entretanto, se perguntssemos a Moore se ele poderia provar que suas premissas so verdadeiras, ele admitiria que no pode provar e que para fazer isso antes ele teria de provar que no est sonhando quando faz aquela afirmao. Ainda mais: Moore afirma que nem ele, nem qualquer outra pessoa que afirme aqui est uma mo enquanto

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    mostra sua mo direita, por exemplo, poderia provar que no est so-nhando naquele momento isso , que seu gesto e sua afirmao fa-zem parte de um sonho. Moore, portanto, concede ao ctico quanto existncia do mundo exterior, admitindo que se ele estivesse sonhando no poderia saber que era sua mo que ele levantava naquele momento e, portanto, saberia que no estava sonhando. Podemos, ento, afirmar que para Moore a proposio eu sei que p, quando afirmada como verdadeira, pode no ter prova. Ou seja, seria dizer eu sei que p, mas no posso provar a verdade de p.

    Por qual razo Moore afirma saber algo ou saber que uma pro-posio verdadeira, mas, ao mesmo tempo, no saber como prov-la? Ora, relembremos agora o argumento lanado pelo oponente ctico de Moore aquele que diz que ele se ele no puder provar que no momento que afirmamos eis aqui uma mo no estamos sonhando, ento, no sabemos na verdade que a proposio eis aqui uma mo verdadeira. Aqui est envolvido o argumento ctico clssico na epis-temologia desde Descartes: se no pudermos provar que no estamos sonhando quando afirmamos saber algo, ento, nossa afirmao faz parte do prprio sonho. Logo, camos numa petio de princpio, uma vez que a proposio eis aqui minha mo verdadeira se, e somente se, no estivermos sonhando. Seria necessrio, primeiramente, provar que no se est sonhando.

    Moore evita cair nessa falcia ao dizer que sabe que a proposio eis aqui minha mo verdadeira, mas que no sabe como prov-la. Seu raciocnio quanto a este ponto aparece em seu ensaio Prova de um Mundo Exterior, logo aps a apresentao de sua prova.

    Nesse ensaio, Moore argumenta que a proposio eis aqui uma mo, enunciada quando apresenta sua mo, uma prova da existn-cia de objetos exteriores a ns. Entretanto, nos comentrios finais de seu ensaio, Moore diz ter cincia de que alguns filsofos no concor-daro com ele. Esses filsofos, diz Moore1 (PME, p. 132) no se senti-ro satisfeitos com sua prova por duas razes. Primeiramente, afirma Moore, iro alegar que no ele forneceu prova alguma. Sua alegao

    1 PME designa daqui em diante o ensaio Prova de um Mundo Exterior de George Edward Moore (1980).

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    ser a de que ao no provar as proposies usadas como premissas, a prova no vlida. Contudo, Moore reafirma que ao mostrar suas duas mos como prova, ele de fato mostrou existirem objetos que sabe-mos serem exteriores a ns. Mas a insatisfao desses filsofos provm da exigncia de uma forma geral vlida para provar proposies deste tipo. A qual tipo de proposies Moore se refere? Ora, s proposies que afirmam a existncia de objetos exteriores a ns. Entretanto, alega Moore, isso no foi apresentado (PME, p. 132) e ele no cr que al-gum filsofo possa apresentar uma forma geral para provar a verdade de proposies do mesmo tipo2. Para fazer isto seria necessrio pro-var primeiro que no estou sonhando agora, tal como Descartes mos-trou. Tenho evidncia conclusiva, diz Moore, de que estou acordado. Contudo, isto diferente de dizer que posso prov-lo. Neste caso seria, ento, necessrio dizer qual ou o que faz parte de toda essa evidncia e isto, diz Moore, no sou capaz de faz-lo.

    2

    interessante notar aqui o paralelo entre o exemplo fornecido por Moore e outro exemplo explicativo de sua prova, este apresentado alguns pargrafos antes. Refiro-me ao exemplo de Moore dos trs erros de imprensa contidos numa pgina de certo livro. Uma pessoa A afir-ma que pode provar que existem os trs erros, enquanto outra pessoa, B, tende a negar isso. Ora, se A diz que sabe que existem tais erros ele est em condies de poder prov-lo. E a prova disponvel para A o fato de que pode mostrar o livro em questo, apontar para a pgi-na onde constam os erros alegados e, logo aps, apontar cada um dos trs erros. Se tomarmos as palavras de Moore quanto sua prova e as evidncias que fornece para que aceitemos tal prova, e perguntarmos agora para A quais so as suas evidncias?, o que A listaria como

    2 As palavras de Moore so [...] o que eles realmente requerem no apenas uma prova destas duas proposies, mas alguma coisa parecida a um enunciado geral de como se pode provar quaisquer proposies deste tipo. Isto, obviamente, no foi apresentado; e no acredito que se possa apresentar: se isto o que significa por prova da existncia das coisa exteriores, no acredito que possvel qualquer prova da existncia de coisas exteriores (PME, p.132).

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    evidncias do que sabe? Ora, alegar Moore, se A afirma que est con-dies de provar que existem trs erros de imprensa em determinada pgina de um livro, ele est em condies de estar certo da existncia desses trs erros. Ou seja, as evidncias que A possui so de tal nature-za que elas permitem que ele diga que est certo de que existem os trs erros (PME, p. 131).

    Contudo, voltemos agora ao que diz Moore sobre no poder pro-var que sabe serem suas proposies verdadeiras: em contraposio ao caso de A, Moore alega que no poderia estar certo, isto , ele no est elaborando uma hiptese sobre a verdade de suas mos. Se este fosse o caso, deveria ser possvel a Moore mostrar como a possibilidade con-trria falsa, isto , que ele no sabe que suas duas mos existem. Por exemplo, se algum suspeitasse que uma de suas mos fosse artificial (PME, p. 132), Moore poderia provar que no era o caso ao mostrar sua mo e permitir que a pessoa que duvida a tocasse para ver que era natural. Ou seja, que a mo de Moore possa ser artificial algo que se pode provar como falso ou verdadeiro, e que Moore sabe que sua mo no artificial algo de que ele poderia estar certo (PME, pg. 131)3. Mas como provar que ao exibir suas mos como exemplos de objetos exte-riores Moore eliminou a hiptese contrria, a saber, que aquelas no eram suas mos? Parte do que Moore teria de provar era que naquele momento ele no estava sonhando, ainda que tenha evidncias de que isto no ocorre.

    Portanto, a estratgia de Moore afirmar que o ctico exige uma espcie de forma geral da prova de proposies que afirmam a existncia de objetos exteriores a ns, uma forma geral que elimine a possibilidade de estar sonhando. Isto, contudo, exige que se tenha disponibilidade de analisar todas as evidncias em favor da verdade de uma prova da existncia de objetos exteriores a ns e afastar todas

    3 Moore comenta aqui o caso da disputa entre A e B e a existncia ou no de trs casos de erros de impresso numa pgina. A certa altura de sua argumentao diz Moore (PME, p. 131): Como poderia A provar que est certo? Certamente ele poderia prov-lo pegando o livro, virando at chegar pgina, e apontar nela trs lugares separados, dizendo h um erro de impresso aqui, outro aqui e outro aqui; certamente este um mtodo pelo qual isto poderia ser provado!. Mais adiante, Moore comenta: Mas dizer que ele poderia prov-lo dessa maneira, dizer que ele poderia estar certo de que havia trs erros. Os itlicos so de Moore.

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    as hipteses contrrias a essa verdade. Ao executar este movimento Moore est concedendo ao filsofo ctico e, ao mesmo tempo, jogan-do a hiptese do sonho para um campo que est alm das evidncias disponveis.

    Este movimento argumentativo de Moore sustentado ainda mais pela segunda razo4, pela qual certos filsofos no concordaro com ele em sua alegao de que forneceu uma prova de objetos do mundo exterior, a saber: tais filsofos partem da admisso de que se no se pode provar a verdade de uma premissa; ento a premissa no conhecida e, portanto, torna invlido o argumento. Ou seja, se no con-seguimos provar a verdade de p, ento no sabemos que p. Teramos de aceitar que sabemos que p verdadeira com base apenas em nossa f de que sabemos p. Ora, alegar Moore, a possibilidade de que objetos exteriores a ns existem , ainda que impossvel de ser provada, uma possibilidade baseada em boas razes, enquanto a hiptese contrria no parece ter base em boas razes. Esta segunda razo , alega Moore, uma das causas da insatisfao que alguns filsofos sentem com a pro-va que ele forneceu. Contudo, dada a argumentao de Moore, essa in-satisfao no tem boas razes para se impor. Ou seja, Moore concede ao ctico que provar que no se est sonhando seria uma determinao necessria a fim de tornar todas as evidncias claras; contudo, o fato de que isto no seja factvel no impede que se possa saber a verdade do que se afirma.

    Ainda que persistente, a exigncia ctica no razovel. A linha argumentativa de Moore parte do fato de que se sabe que p e se admi-te que no se pode provar que p verdadeira, mas, ao mesmo tempo, afirma que admitir que p verdadeira mais razovel que admitir que p falsa. Ou seja, seria como dizer: sei que no estou sonhando neste momento, que percebo objetos exteriores a mim, contudo, no posso prov-lo; mas, ao mesmo tempo, a crena de que sei que estou acordado tem mais sucesso do que a dvida quanto a isto. A dvida

    4 Porm, outra razo pela qual algumas pessoas se sentiriam insatisfeitas com minha prova penso ser no apenas que elas querem uma prova de alguma coisa que no provei, mas que elas pensam que, se no posso apresentar tais provas extras; ento as provas que apresentei no so de modo algum provas conclusivas (PME, p. 133).

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    quanto s premissas de sua prova, diz Moore5, est errada, embora se possa mostrar apenas pelo uso de premissas que no se sabem se-rem verdadeiras, a menos que saibamos da existncia de coisas exte-riores (PME, p. 133).

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    Considerando os argumentos apenas a partir do que at aqui se disse, a prova de Moore no parece ser, de todo, uma prova. Contudo, analisando os argumentos de Moore em seu ensaio Prova do Mundo Exterior e Defesa do Senso Comum, poderemos ver que as proposies que Moore alega saber fazem parte de um conjunto que ele denomina ponto de vista de senso comum sobre o mundo. Esse ponto de vista comum composto por afirmaes como sei que a Terra existiu an-tes de eu nascer, existiram outros seres humanos sobre a Terra antes de mim, a Terra existe desde muitos anos antes deste momento. Tais proposies, afirma Moore, so do tipo no ambguo e que todos ns entendemos seu significado (DSC, p. 85)6. Ao mesmo tempo, saber qual a anlise correta de uma proposio como sei que a Terra existiu h muitos anos em qualquer ocasio apresenta-se como uma ques-to extremamente complicada e para a qual, afirma Moore, ningum sabe a resposta (DSC, p. 85). Isto , no de todo claro como podemos determinar o que torna a proposio a Terra existiu h muitos anos uma proposio verdadeira. Mas, ao mesmo tempo, esta incapacidade no elimina o fato de que entendemos o que a proposio diz e, desta forma, seria insensato dizer que se no sabemos analisar a proposio, ento no a entendemos.

    Portanto, um dos pontos da argumentao de Moore quanto in-satisfao que certos filsofos sentem em relao sua prova baseia-se

    5 Penso que se pode mostrar que tal viso, embora tenha sido muito comum entre os filsofos, est errada embora se possa mostrar apenas pelo uso de premissas que no se sabe serem verdadeiras a menos que saibamos da existncia de coisas exteriores (PME, p. 133).

    6 DSC a sigla para Uma Defesa do Senso Comum seguido pelo nmero da pgina. Esse ensaio encontra-se na coleo Os Pensadores, So Paulo, Abril Cultural, 1980. Todas as citaes desse ensaio sero indicadas como DSC.

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    na crena de que existe uma forma geral de analisar as proposies e Moore, ao fornecer suas premissas na forma da proposio eis aqui uma mo, no demonstrou que a mesma era verdadeira. Mas as pre-missas de Moore so proposies de um tipo especial: proposies que todos ns entendemos, ainda que no tenhamos provas das mesmas. Ora, alegar Moore (DSC, p. 91), saber que tais proposies pertencem ao senso comum significa admitir que as mesmas so verdadeiras, pois seria contraditrio afirmar que sabemos o que tais proposies expres-sam, mas no sabemos se elas so verdadeiras7. Este o argumento que Moore lana contra a dvida ctica clssica expressa no chamado ar-gumento do sonho isto , se no se pode provar que est acordado, no se pode garantir a verdade de suas premissas.

    Em sua anlise dos argumentos de Moore, o filsofo estaduni-dense Avrum Stroll (1994) chama ateno para a estratgia de Moore, salientando que esta concede espao para a dvida ctica, enquanto afirma, por outro lado, que as proposies que constituem o ponto de vista do senso comum so trusmos bvios. Sendo assim, a defesa de Moore ser considerar que qualquer pessoa ter de admitir que sabe que tais proposies so verdadeiras. Neste caso, observa Stroll (1994, p. 97), Moore considera que provar a verdade das mesmas ser um expediente ocioso. Moore diz o seguinte a respeito dos filsofos que no consideram que as proposies do senso comum so verdadeiras:

    [Quando] se diz: estas crenas so crenas do senso comum, mas no questes de conhecimento [se] est dizendo existiram muitos ou-tros seres humanos, alm de mim mesmo, que compartilharam estas crenas, mas nem eu, nem outro qualquer jamais soubemos que eram verdadeiras. Em outras palavras, ele afirma com confiana que suas crenas so crenas do Senso Comum, e parece falhar frequentemente em perceber que, se elas o so, devem ser verdadeiras [...] (DSC, p. 89).

    7 Diz Moore (DSC, 91): [...] se sabemos que elas so caractersticas da viso do mundo de Censo Comum, segue-se que so verdadeiras, portanto, continua Moore auto contraditrio manter que ns sabemos que elas so caractersticas da viso de Senso Comum, e que ainda assim elas no so verdadeiras, uma vez que dizer que ns sabemos isto quer dizer que so verdadeiras. Itlicos do original.

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    Portanto, admitir que uma proposio como a Terra existiu h muito tempo uma proposio do senso comum implica admitir, se-gundo argumenta Moore, que a mesma verdadeira8. Este o primeiro argumento lanado por Moore contra o ctico ou idealista ctico. O segundo ponto argumentar que no se consegue fornecer uma anli-se dessas proposies de senso comum, pois tal anlise deveria supor a falsidade das mesmas e demonstrar que tal falsidade no o caso. Contudo, alegar Moore, no se sabe quais as evidncias que deve-riam ser analisadas para tal tarefa. Toda a argumentao de Moore visa neutralizar a dvida ctica ao alegar que certas proposies so sabi-damente verdadeiras, ainda que no tenhamos provas dessa verdade.

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    Quando Ludwig Wittgenstein analisa os argumentos de Moore em sua obra On Certainty9 ele ataca duas pressuposies bsicas de sua argumentao: primeiramente, chama ateno para as proposies que Moore diz saber serem verdadeiras, as quais afirma no serem pro-posies empricas e sim gramaticais; em segundo lugar, mostra que a dvida ctica no faz sentido, uma vez que as proposies que so questionadas fazem parte da prpria estrutura da dvida. No que se segue vou tratar, em primeiro lugar, da argumentao de Wittgenstein quanto ao estatuto das proposies que Moore diz saber e, em segundo lugar, da anlise que Wittgenstein faz da dvida ctica.

    Na seo 15110 de OC, Wittgenstein faz uma observao para-doxal sobre o argumento de Moore que diz que ele sabe que vrias proposies que fazem parte do senso comum so verdadeiras. Diz Wittgenstein: Eu poderia dizer: Moore no sabe o que afirma saber [...].

    8 Admitem que de fato acreditamos em proposies desses dois tipos, e que elas podem ser verdadeiras: alguns at diriam que sabemos que elas so altamente provveis; mas negam que sabemos com certeza que so verdadeiras (DCS, p. 89 itlicos no original).

    9 Para esta obra usaremos as iniciais OC seguidas do nmero da seo. Assim, OC 345 significa On Certainty seo 345.10 Eu diria: Moore no sabe aquilo que afirma que sabe, contudo ponto assente para ele assim como para mim; considerar

    isso como matria assente faz parte do nosso mtodo de dvida e investigao.

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    Analisando as proposies que Moore afirma que sabe, encontra-mos alguns exemplos como: sei que a Terra existe h muito tempo, existe presentemente um corpo humano que meu corpo (DSC, p. 83), muitos corpos humanos diferentes do meu viveram antes do momento atual na Terra (DSC, p. 83), percebi frequentemente meu prprio corpo e outras coisas que faziam parte de seu ambiente (DSC, p. 82). Segundo o raciocnio de Moore essas proposies so verdadeiras, ainda que no se possa prov-las. Mas Wittgenstein vai considerar que tais proposies no revelam conhecimento, nem so resultado de conhecimento.

    Analisando as alegaes de Moore quanto a essas proposies, Wittgenstein nos ajuda a perceber que se cada uma delas o resultado de conhecimento, ento as suas negativas devem ser afastadas como no sendo verdadeiras. Por exemplo, se sei que este meu corpo uma proposio verdadeira, ento a proposio no sei que este meu corpo deve, de alguma forma, ser falsa. Ainda: para que uma das duas proposies seja falsa, como resultado de uma investigao de co-nhecimento, ser necessrio saber qual o mtodo pelo qual elaboramos este conhecimento. Por exemplo: tenho dvidas quanto a este corpo que agora vejo ser meu corpo. Pergunta-se: qual o tipo de investigao que devemos realizar para nos certificarmos disto? Uma investigao emprica? Suponhamos que eu me observe num espelho que reflete mi-nha imagem de corpo inteiro. Se ns temos dvidas quanto a este ser meu corpo, a imagem apenas ser outra instncia de observao deste corpo que duvido ser o meu e, portanto, no tem validade epistmica para solucionar minha dvida.

    O mesmo se pode afirmar de uma proposio como percebi frequentemente meu prprio corpo e outras coisas que faziam parte de seu ambiente: como podemos afirmar que sabemos ser verdadeira essa proposio? Ora, seria necessrio analisar em que casos tal pro-posio poderia ser falsa e isto demonstra que a mesma no fruto de uma investigao sobre as coisas que conheo. Antes, estas proposies fazem parte de minha constituio de mundo, pois a partir delas que lano minhas investigaes sobre as coisas que posso conhecer. Neste caso, se tal proposio colocada sob o crivo da dvida, no sabemos

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    que tipo de resposta se deve fornecer. Por exemplo, suponhamos que afirmo, apontando para meu corpo, que este corpo que agora vejo meu corpo, que sempre o reconheci como sendo meu corpo e que sei que este corpo que agora vejo meu corpo. Caso algum me questione quanto ao que sei sobre meu corpo, que tipo de evidncias eu poderia lhe fornecer?

    Algum poderia responder que necessrio fornecer as evidn-cias que permitiram meu conhecimento de meu corpo, isto , os passos que me permitiram ter certeza de que o corpo era meu. Contudo, como eu vim a saber que este meu corpo? Esta uma proposio para a qual devo ter evidncias da verdade? Em On Certainty ( 4), Wittgenstein faz uma observao sobre a falta de fundamento para a dvida quan-to a determinadas proposies. Tal como no caso da proposio sei que este meu corpo, o mesmo se pode dizer da proposio sei que sou um ser humano. Para percebermos a falta de sentido claro nes-sas proposies, basta considerarmos as suas negativas. Como se pode duvidar delas? Como diz Wittgenstein (OC, 4), tudo fala a favor da verdade das mesmas e nada contra ou seja, teramos de imaginar uma situao em que fizesse sentido uma dvida quanto nossa possi-bilidade de saber se somos humanos ou no. O mesmo caso se aplica s proposies de Moore: em que situao uma pessoa poderia duvidar se ela sabe que tem duas mos? A situao aqui no a mesma, vamos supor, de uma proposio como sei que existem trs canetas sobre minha escrivaninha, pois nesse caso possvel construir a hiptese de que eu no saiba, de que possa estar enganado. O mesmo vale para os exemplos fornecidos por Wittgenstein na seo 52 de On Certainty: ao comparar as duas proposies a tal e tal distncia do Sol existe um planeta e aqui est uma mo (nomeadamente, minha prpria mo).

    A segunda proposio no pode ser denominada legitimamente como uma hiptese, enquanto a primeira pode, pois a diferena entre uma e outra que a improbabilidade entre ambas diminui quando con-sideramos a primeira proposio e a segunda. Ou seja, provvel que se encontre um mtodo para investigar se existe um planeta a tal e tal distncia do Sol, podemos imaginar o que seria uma distncia menor

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    ou maior e se as observaes astronmicas podem revelar a verdade daquela hiptese.

    Contudo, os mtodos para investigar se a proposio aqui est uma mo verdadeira no so claros em nossas transaes dirias com as proposies. Teramos de considerar uma situao completa-mente fora de nosso cotidiano, como: soldados em uma trincheira que sofrem bombardeio pesado. Nesse caso, concebvel que quando al-gum pergunta todos esto bem? algum soldado possa responder sei que estou com minhas duas mos. Contudo, esses casos no so normais e sim anormais. Devemos considerar da mesma forma uma hiptese como os objetos a minha volta existem? (OC, 55)? Isto , sabemos lidar com os objetos que esto a nossa volta, sabemos como devemos procurar determinado objeto (por exemplo, uma caneta que sempre esteve sobre nossa escrivaninha)?

    Isto significa que quando algum nos diz que no percebeu que determinada caneta estava sobre nossa escrivaninha, sabemos quais as evidncias devemos arregimentar para lhe provar que a caneta sempre esteve l e que a pessoa no percebeu, no se deu conta disto. Essa pessoa poder no aceitar certas evidncias que lhe fornecemos, mas, mesmo assim, dever aceitar outras, segundo um grau de razoabilida-de. Contudo, se algum afirma no saber se existem canetas no mundo em que vivemos, no saberemos que tipo de evidncias lhe fornecer. Mesmo que lhe mostremos uma caneta, ele no aceitar o espcime como evidncia ou prova. Neste caso no sabemos como provar que a proposio existem canetas no mundo em vivemos verdadei-ra, pois essa pessoa ultrapassou ou abandonou as regras pelas quais podemos construir evidncias para proposies sobre canetas e uma dessas evidncias que existem canetas no mundo em que vivemos. Sendo assim, tal pessoa viola as regras pelas quais podemos elaborar hipteses sobre objetos fsicos e suas proposies no fazem sentido. O mesmo se pode dizer das proposies que afirmam, por exemplo, existem canetas no mundo em que vivemos ou sabemos que somos seres humanos e no robs: tais proposies juntamente com as provas de Moore no so proposies empricas e sim proposies

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    gramaticais, elas servem como fundamento do qual partem nossas hi-pteses e dvidas. Assim, sei que tenho duas mos no uma pro-posio emprica e sim uma regra que servir de fundamento para que construamos nossos jogos de linguagem com outras proposies e es-tas, por sua vez, podero ser hipteses. Por exemplo, suponhamos que um carpinteiro afirme para outro posso subir apoiando-me apenas em uma de minhas mos por aquela escada ou posso serrar com apenas minha mo direita. Nesses exemplos, no est em dvida a existncia das duas mos do carpinteiro que faz as afirmaes, antes, este um fato dado para compreender suas afirmaes. A partir delas o outro carpinteiro poder dizer sim, no ou at mesmo que duvida.

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    At aqui meu objetivo foi mostrar, acompanhando os argumen-tos de Wittgenstein e Moore, que as proposies que Moore diz saber serem verdadeiras no so proposies empricas e no resultam de uma anlise epistemolgica de evidncias que estavam sua disposi-o. O prprio Moore reconhece que no saberia qual a anlise correta desse tipo de proposio. Contudo, Moore cr que o fato de no ser possvel fornecer uma anlise destas proposies seria uma indicao de que elas devem ser aceitas como verdadeiras. Ao mesmo tempo, assim argumentando Moore acredita que forneceu uma resposta d-vida ctica quanto existncia de objetos exteriores a ns. Meu objetivo agora mostrar, por meio da anlise de Wittgenstein em On Certainty, que as dvidas do ctico e do idealista ctico no fazem sentido e que, sendo assim, no admitem respostas verdadeiras ou falsas. Essas dvi-das no fazem sentido.

    O ponto de partida de Wittgenstein interpretar a dvida com a qual Moore se debate. Na seo 24 de On Certainty, diz Wittgenstein:

    A questo do Idealista seria algo como Que direito tenho eu de no duvidar da existncia de minhas mos? (E para esta a resposta no pode ser: Eu sei que elas existem). Contudo, algum que faz tal tipo de

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    questo est ultrapassando o fato de que uma dvida a respeito da exis-tncia apenas funciona em um jogo de linguagem. Assim, ns devemos nos perguntar primeiramente: com o que se parecer tal dvida?

    Ou seja, Wittgenstein chama ateno para o fato de que uma dvida deve pertencer a um determinado jogo de linguagem no qual possui algum funcionamento. Assim, uma dvida sobre a existncia de um objeto pertence ao jogo de linguagem em que objetos perceptveis so postos em questo e esta dvida possui seus limites dentro deste jogo de linguagem. Por exemplo, posso duvidar da existncia de um sof vermelho na minha sala e esta dvida me permitir certos meios de averiguao. O mesmo se pode dizer quanto ao carro estar ou no na garagem. Para sanar esse tipo de dvida, que faz parte do jogo de linguagem, h alguns mtodos de averiguao simples, como ir at a sala e verificar se h l um sof vermelho ou ir at a garagem conferir se nosso caro est mesmo. O mesmo se poderia dizer da proposio sobre a existncia das duas mos de Moore: teria Moore duas mos? Para responder a isso, certos meios seriam possveis. Contudo, os meios dis-ponveis para averiguar a existncia de objetos como mos, carros e sofs no so os mesmos que poderiam ser utilizados para proposies como sei que a Terra existe bem antes de eu nascer ou sei que meu corpo existe ou existem objetos exteriores a mim, pois os mtodos de verificao destas proposies no so claros. Caso uma delas seja colocada em dvida, o mtodo de verificar a existncia de um sof no adequado, uma vez que um sof, obviamente, um objeto externo a ns. Sendo assim, essas trs proposies usadas por Moore como exemplos do que ele sabe no so conhecimento, pois no consegui-mos compreender um mtodo para verificar sua verdade. Wittgenstein chama ateno para isto em On Certainty, seo 32:

    No uma questo de Moore saber que h uma mo l; antes, no devemos compreend-lo como se ele dissesse Mas, claro, posso estar errado quanto a isto. Poderamos perguntar O que significa cometer um erro destes? por exemplo, ao que se pareceria descobrir que isto era um erro?

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    Portanto, a certeza de Moore quanto existncia de objetos exte-riores a ele no proveniente de conhecimento, pois no lhe seria poss-vel um mtodo de verificao de qualquer objeto do tipo caso estivesse em dvida. Ou seja, entendo o que seja uma dvida quanto existncia de determinado objeto dentro de uma gaveta, por exemplo, mas no compreensvel que se lance dvida quanto existncia de seu prprio corpo. O que ocorre aqui que a dvida que Moore deseja enfrentar ul-trapassa o jogo de linguagem de duvidar de proposies relacionadas existncia de objetos, uma vez que duvidar de certos objetos exige que proposies sejam falsas ou verdadeiras (OC, 81). Aqui reside um dos pontos importantes da argumentao de Wittgenstein contra a tentativa de Moore, a saber: a dvida quanto existncia de objetos exteriores ultrapassa os limites do jogo de linguagem da dvida, por duas razes, ao menos: (a) se uma pessoa duvida de todas as coisas e cr que no existe conhecimento de fato algum, ento ela no ter de admitir que no sabe se suas palavras possuem significado. Ou seja, tal pessoa, ao duvidar de tudo, dever duvidar do significado de suas pa-lavras. Como poder uma pessoa, numa situao de dvida radical como o caso de quem no sabe se est ou no acordado saber que as palavras que informam a outrem sobre sua dvida possuem signifi-cado? Essa observao de Wittgenstein na seo 114 de On Certainty j demonstra o quanto a dvida do ctico parte de premissas admitidas, mas no esclarecidas isto , ele tem segurana de que suas palavras sero compreendidas e, logo aps, duvida que o mundo exterior a ele exista. Mesmo assim, para manter o argumento, o ctico poderia dizer que ele sabe o que as palavras significam e que todos que o compre-endem tambm sabem, mas que isto, por sua vez, no implica que os significados sejam certos, mas apenas partilhados.

    A dvida do ctico ultrapassa os limites do jogo de linguagem do duvidar tambm por outra razo: (b) duvidar de todas as coisas podem nos levar to longe quanto no duvidar de coisa alguma (OC, 115), pois para que o jogo da dvida possa ser levado adiante algo tem de ser admitido ainda que no tematizado como seguro. Ou seja, o fun-damento da dvida tem de ser estabelecido sob a certeza de algumas proposies, por exemplo, que todos partilhamos os significados das

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    palavras ou minha expresso com as palavras duvido da existncia de objetos exteriores a mim deve ser entendida como uma dvida e no como uma assero. Portanto, deve existir a certeza num critrio de separao gramatical entre assero de dvida e assero de certe-za. Se no duvido de coisa alguma, ento sou dogmtico e no elaboro uma investigao que me leve longe, pois no h objeto de dvida. Por outro lado, se duvido de todas as coisas, tenho de assumir que nada deve ser admitido sem que antes seja provado, inclusive esta prpria assero, a saber, nada deve ser admitido sem que antes seja prova-do. Mas tal proposio, por sua vez, no poder ser provada, uma vez que a dvida radical coloca todas as possibilidades de prova em questo e, com isto, no se chega a lugar algum.

    Isto nos remete observao de Wittgenstein de que existe um sistema no qual a dvida e a confirmao existem e que infirmar uma proposio se d dentro deste sistema. Tal observao encontramos na seo 105 de On Certainty:

    Todo testar, toda confirmao e invalidao de uma hiptese ocorrem j no interior de um sistema. Este sistema no um ponto de partida, mais ou menos arbitrrio e duvidoso, para todos nossos argumentos: no. Pertence essncia daquilo que chamamos um argumento. O sis-tema no tanto o ponto de partida, mas o elemento onde vivem os argumentos.

    O jogo da dvida, para fazer sentido, deve obedecer a este siste-ma que serve de elemento em que vivem os argumentos e as hipteses. Contudo, as proposies que fazem parte desse elemento no so pro-vadas como verdadeiras ou falsas, e este um ponto importantssimo esquecido tanto pelo ctico, quanto por Moore ao indicarem as pro-posies que servem como provas da existncia de objetos exteriores. Ambos cometem o mesmo engano quanto a essas proposies: o c-tico, por acreditar que duvidar no pressupe que certas proposies sejam tomadas como base de sua dvida; Moore, por sua vez, por crer que proposies do senso comum so, de fato, conhecimento ou podem representar exemplos de proposies de conhecimento. Essas proposies, entretanto, como diz Wittgenstein na citao anterior,

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    so como bases sobre as quais lanamos nossas dvidas e elaboramos nossas hipteses, mas no so fruto de conhecimento. Por exemplo, a proposio sei que tenho um corpo faz parte da estrutura de minha ao no mundo, isto , quando realizo uma ao como a de movi-mentar uma cadeira, no penso primeiramente na certeza da verdade desta proposio.

    Contudo, posso duvidar de minha altura ou do peso da cadeira e tenho mtodos plausveis para conferir isto. Mas quais mtodos plausveis poderei utilizar para uma dvida como como sei se al-gum dia estive na Lua?? Todas as minhas convices me indicam que nunca estive na Lua, e se algum me solicitasse uma descrio des-se sistema de convices, no saberia claramente o que deveria fazer parte do mesmo e o que deveria ser deixado de lado. Isto, contudo, no indica que tenho um sistema de convices que no verdadeiro. Quanto a isto diz Wittgenstein (OC, 103):

    E agora, se eu dissesse minha convico inabalvel que etc., isso significaria, no presente caso tambm, que eu no cheguei consciente-mente convico seguindo uma linha de raciocnio especial, mas que ela est ancorada em todas as minhas perguntas e respostas e de tal maneira que no posso tocar-lhe.

    Assim, ao elaborar suas dvidas quanto possibilidade de pro-var a existncia de objetos exteriores o filsofo ctico no atenta para o fato de que sua dvida apenas possvel se algumas proposies estiverem assentadas e no forem questionadas. Essas proposies, por sua vez, no so fruto de conhecimento e sim da estrutura do prprio jogo de linguagem em que a dvida possui sentido.

    ***

    Como vimos ao longo da argumentao, a tentativa de respon-der de forma direta ao filsofo ctico considera em primeiro lugar que a dvida lanada por ele tem uma possvel resposta. Assim, Moore en-frenta o filsofo ctico a partir de um conjunto de argumentos que vi-sam a mostrar que nossa concepo de senso comum possui elementos

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    que podem servir de resposta s dvidas cticas. As proposies que Moore fornece como provas so retiradas dessa viso comum do mun-do. Por exemplo: a proposio que afirma que suas duas mos existem. Se as duas mos de Moore existem, ento dois objetos exteriores a ns podem ser apontados. Ou seja, a resposta de Moore, em outras pala-vras, seria dizer sei que a proposio eis aqui uma mo verdadeira, pois sei que minha mo est aqui. Outras proposies exemplificam essa estratgia e pertencem ao mesmo conjunto de proposies que constituem uma viso comum do mundo, a saber: sei que existiram pessoas na Terra antes de mim e tenho um corpo.

    Outro aspecto dessa estratgia de Moore argumentar que essas proposies, ainda que verdadeiras, no possuem uma anlise clara a ponto de fornecer toda evidncia possvel para as mesmas. Com isto, Moore est tentando cessar a estratgia ctica que consiste em, nova-mente, solicitar os fundamentos da verdade das proposies que afir-ma serem verdadeiras. Esta ao defensiva de Moore pode ser interpre-tada como uma falha, mas, de fato, Moore est alegando que mesmo sendo incapaz de fornecer uma anlise completa das proposies que alega saber, a hiptese contrria, isto , de que tais proposies sejam falsas, no se fundamenta em uma hiptese satisfatria ou para a qual tenhamos boas razes. Tal resposta, contudo, no impede que o ctico permanea com sua dvida.

    Analisando a tarefa que Moore se imps, por outro aspecto, po-demos questionar se a dvida que ele pretende responder vlida. Ou seja, duvidar da existncia de uma caneta em certo lugar do escritrio possui alguma possibilidade de verificao como base da compreenso da prpria dvida. Isto significa que se uma pessoa duvida de algo a possibilidade de compreender sua dvida faz parte do sistema em que a dvida pode ser elaborada11. Ora, questionar a existncia de objetos exteriores a ns parte do suposto que a possibilidade de compreender o que um objeto exterior implique saber o que devemos provar.

    Ora, a dvida parte desse mesmo pressuposto: que compreen-demos o que um objeto exterior para provar a sua existncia. Sob tal

    11 OC 18.

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    aspecto, a dvida no faz sentido, pois parte do pressuposto de que o objeto a que se refere possui uma cadeia de raciocnios que o tornam existente. Entretanto, compreendemos a dvida por compreender o significado das palavras em que ela elaborada.

    Ou seja, tudo se passa como se o ctico tomasse como garantido o significado das palavras que usa e, ao mesmo tempo, levanta suspeita sobre o objeto que a expresso objeto exterior se refere. Ao mesmo tempo, o filsofo ctico comete o engano de usar a expresso objeto exterior da mesma forma que a expresso objeto colorido ou ob-jeto com 1,5 metro de altura, mas no se sabe como apontar para um objeto exterior a ns da mesma forma como sabemos apontar para um objeto colorido. Ou seja, o filsofo ctico usa expresses diferen-tes, como se possussem o mesmo uso. Por exemplo, possvel que algum duvide da existncia de objetos com 1,5 metro de comprimento num determinado lugar uma oficina, por exemplo. Por outro lado, no faz sentido, neste mesmo jogo de linguagem, duvidar de que ali existam objetos exteriores. Seria necessrio pensar num jogo de lingua-gem em que a expresso objetos exteriores tivesse um uso significa-tivo talvez num caso de intoxicao coletiva por alguma substncia alucingena. Nesse caso, faz sentido perguntar ser que estou vendo objetos exteriores a mim ou so apenas efeitos de minha mente?. Mas tal caso incomum e no pode ser transposto para o uso significativo comum. Por fim, isto tudo indica que o filsofo ctico no poder usar a linguagem fora dos padres de significatividade o que, por um lado, garante que sua dvida seja compreendida e, por outro, demons-tra a falta de sentido de tal dvida.

    O questionamento do filsofo ctico, ainda que intrigante e pa-radoxal, permite que ao tentar lhe responder toquemos nas bases nas quais fundamentamos as proposies que tomamos como verdadeiras ou falsas. Essa base (ou fundamento), por sua vez, no um conjunto de fatos verdadeiros ou bem fundamentados. Antes, esse fundamen-to nossa viso de mundo ou, como Wittgenstein a denomina, nossa imagem do mundo. No a temos por ser verdadeira ou provvel, pois ela o substrato de que elaboramos nossas questes e investiga-es. Assim, a pergunta quanto a como sabemos se o mundo existe h

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    muito tempo antes de nascermos no exige uma investigao emprica. Antes, por sabermos que o mundo existia antes de ns que outras proposies podem ser investigadas e critrios de evidncia podem ser elaborados. O exerccio de responder ao filsofo ctico nos ajuda a compreender que o fundamento de nossa imagem de mundo no permite questionamentos, uma vez que se o questionarmos tornare-mos nossa questo sem sentido. Com isto, o filsofo ctico aparente-mente nos lana numa investigao pelos critrios de nossa certeza. Ao fim e ao cabo, a tentativa de responder dvida ctica faz com que obtenhamos clareza quanto ao nosso jogo de linguagem de duvidar.

    Referncias

    MOORE, G. E. Defesa do Senso Comum. So Paulo: Abril Cultural, 1980. (Os pensadores).

    MOORE, G. E. Prova de um Mundo Exterior. So Paulo: Abril Cultural, 1980. (Os pensadores).

    STROLL, A. Moore and Wittgenstein on certainty. New York : Oxford University Press, 1994.

    WITTGENSTEIN, L. On Certainty. Oxford: Blackwell, 1969.

    Recebido: 02/07/2014Received: 07/02/2014

    Aprovado: 02/08/2014Approved: 08/02/2014