fascínio do cinema - joana-x.comjoana-x.com/wp-content/uploads/2019/01/nos-e-o-cinema.pdf ·...

15

Upload: others

Post on 30-Aug-2019

1 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: fascínio do cinema - joana-x.comjoana-x.com/wp-content/uploads/2019/01/nos-e-o-cinema.pdf · dormem os crimes e os heroísmos que nunca realizaremos, onde se afogam as decepções
Page 2: fascínio do cinema - joana-x.comjoana-x.com/wp-content/uploads/2019/01/nos-e-o-cinema.pdf · dormem os crimes e os heroísmos que nunca realizaremos, onde se afogam as decepções

Universidade Nova de LisboaFaculdade de Ciências Sociais e HumanasLicenciatura Ciências da ComunicaçãoCadeira SemióticaProfessor José Bártolo

Imagem da capa adaptada de The Purple Rose of Cairo, de Woody Allen

Joana Soares 238361º ano Turma B

2008/2009

joana soares nós e o cinema

1

Page 3: fascínio do cinema - joana-x.comjoana-x.com/wp-content/uploads/2019/01/nos-e-o-cinema.pdf · dormem os crimes e os heroísmos que nunca realizaremos, onde se afogam as decepções

Índice

Prólogo .............................................................................................................................................. 3

1º acto: Hipnose e devaneio: adormeço e sonho .................................................................. 3

2º acto: Erotismo urbano [Cinema versus televisão] ........................................................... 5

3º acto: Luz e voyeurismo: mecanismo-ecrã e mecanismo-espectador ......................... 5

4º acto: Logro da imagem e criação do duplo: projecção-identificação ......................... 6

5º acto: Dois corpos: duas consciências .................................................................................. 8

Epílogo .............................................................................................................................................. 9

Bibliografia/Filmografia ............................................................................................................ 11

Fotogramas .................................................................................................................................... 12

joana soares nós e o cinema

2

Page 4: fascínio do cinema - joana-x.comjoana-x.com/wp-content/uploads/2019/01/nos-e-o-cinema.pdf · dormem os crimes e os heroísmos que nunca realizaremos, onde se afogam as decepções

PrólogoA partir do artigo de Roland Barthes, “Ao Sair do Cinema”, e do livro de Edgar Morin, O Cinema ou o

Homem Imaginário, proponho-me a descodificar os textos e a estabelecer um paralelo entre as duas obras. Pretendo chegar à conclusão do que é, como se forma, de onde vem o fascínio do Cinema que Barthes tanto evoca e cujo imaginário Morin descreve aprofundadamente. A minha escolha por este tema prende-se com o próprio fascínio que surge em mim, enquanto espectadora, no Cinema – nas palavras de Morin, «o fascínio da minha adolescência, e também o meu sentimento adulto de que o Cinema é muito mais belo, comovente e extraordinário do que qualquer outra forma de representação».

Através da explicitação de conceitos como hipnose e sonho, erotismo urbano, feixe de luz e voyeurismo, papel do cineasta e papel do espectador, falsificação da imagem, duplo, projecção-identificação, corpo narcisista e corpo perverso, universo objectivo e universo onírico, linguagem do Cinema, entre outros, tento fazer compreender todo este mundo que existe entre o real e o imaginário e o fascínio que isso exerce sobre o espectador.

Exemplo máximo de todo este deslumbramento cinematográfico é o filme de Woody Allen, The Purple Rose of Cairo (1985), no qual uma personagem de um filme [dentro-do-filme] sai do ecrã para a realidade. Apaixonado por uma mulher[-real] que todos os dias assistia ao seu filme, ele estranha como é que no mundo real não há um fade-out quando duas pessoas se beijam. Penso neste filme neste contexto, pois apresenta duas questões fundamentais que serão desenvolvidas ao longo do trabalho: o mundo imaginário do Cinema e o fascínio do espectador por esse mundo. Neste filme, ‘ele’ [a personagem] é parte do imaginário, que, ironicamente, estranha a realidade; ‘ela’ [a espectadora] é a admiradora fascinada que lhe apresenta o seu mundo. Os papéis invertem-se. Torna-se muito curioso imaginar uma personagem de um filme a assistir à nossa vida e a desejar fazer parte dela, da mesma maneira como nós desejamos fazer parte da vida que se desenrola no filme.

1º acto: Hipnose e devaneio: adormeço e sonhoImagino a figura de Barthes e de um Morin adolescente, atravessando uma rua mal iluminada, depois de

sairem de uma sala de Cinema, as mãos nos bolsos do casaco, a cabeça encolhida, os passos desarticulados, ao ritmo de qualquer coisa que não está lá mas lhes pertence1. Entram num bar. Um copo de whisky. Ainda respiram o filme que acabaram de ver. Leio as suas palavras. Compreendo agora o seu estado. Acabaram de sair de uma hipnose. Não sei que filme terão visto, nem se terá sido o mesmo. Não interessa realmente. Só o seu estado interessa. Troquemos de posições, já que os ensaios são de Barthes e

joana soares nós e o cinema

3

1 Talvez seja o punctum de que Barthes fala no seu Câmara Clara, aquele “terceiro sentido” [termo também seu], aquilo que está lá, na imagem, no objecto, mas que não conseguimos decifrar o que é. Está num nível de significância, de atribuição de um sentido nosso inexplicável. É o que nos toca, é uma captação poética do imaginário, é a aura de Walter Benjamin: manifestação de uma lonjura/inacessibilidade de algo, por mais próximo que possa estar, que se apodera de nós, numa experiência passional, do nosso eu. «É na expressão fugaz de um rosto humano nas fotografias antigas que a aura acena pela última vez.» (BENJAMIN, Walter, 1936, p. 218)

Page 5: fascínio do cinema - joana-x.comjoana-x.com/wp-content/uploads/2019/01/nos-e-o-cinema.pdf · dormem os crimes e os heroísmos que nunca realizaremos, onde se afogam as decepções

Morin. Estou eu, agora, sentada no lugar deles. Saí eu de um qualquer filme, sou eu que estou em estado de hipnose.

Como entrei neste estado? São necessárias uma série de condições para que o meu ‘eu’ esteja predisposto a ser hipnotizado. 1: vazio. 2: disponibilidade. 3: ócio. Chama-lhe Barthes uma “situação de Cinema”, cujas condições equivalem às condições clássicas de hipnose. Ao reunir este 1:2:3, aceito e caminho para essa ‘alienação’, antes de ter entrado, sequer, na sala de Cinema. Como se tudo o que viesse antes de entrar fosse uma situação pré-hipnótica, sem a qual não poderia envolver-me verdadeiramente nesse processo de hipnose que é assistir a um filme.

«Vou ao Cinema do mesmo modo que adormeço.» (Maurice Henry), cita Edgar Morin no seu O Cinema ou o Homem Imaginário. Reparo logo na semelhança com as palavras de Barthes. Morin parte de um mesmo pressuposto: que adormecemos e sonhamos, isto é, entramos num estado de hipnose e devaneio, quando ‘vamos ao Cinema’. Mas como é que este delírio de devaneio surge e penetra na nossa visão cinematográfica? Morin explica, com base em análises de psicanalistas, que há grandes similitudes entre «o universo do filme e o universo onírico»2. Tanto no sonho como no filme, há processos de discurso análogos – saltos de/no tempo e espaço que, estranhamente, nem questionamos. Diante de nós, o objecto da imagem aumenta e diminui, aparece e desaparece, está aqui, está ali, está num momento, está noutro, passa rápida e lentamente. Jacques Poisson descreve, de forma explícita e derradeiramente verdadeira, esse paralelismo estreito entre a imagem sonhada e a imagem fílmica, essa imagem «do mundo secreto onde, tanto na vigília como no sonho, nos refugiamos dessa vida maior que a vida, onde dormem os crimes e os heroísmos que nunca realizaremos, onde se afogam as decepções e germinam os mais loucos desejos»3. Onde atravessamos o Louvre a correr4, onde beijamos quem queremos, onde recuamos no tempo, onde somos perfeitos. Como diz Tom Baxter, personagem do filme-dentro-do-filme The Purple Rose of Cairo, «I don’t get hurt or bleed, hair doesn’t muss; it’s one of the advantages of being imaginary.»

Também Morin se debruça sobre quais as condições para-hipnóticas que nos transportam para esse sonho mágico: a obscuridade, a descontracção, o deslumbramento [inerente ao sonho], a passividade – alguns termos diferentes dos de Barthes, mas caminhando no mesmo sentido. «Sonhamos antes de nos tornarmos espectadores»5. É o chamado “devaneio crepuscular” da psicanálise. O crepúsculo que nos encaminha para a escuridão. De uma consciência diurna para uma dormência nocturna. Da rua para uma sala obscura.

joana soares nós e o cinema

4

2 MORIN, Edgar, 1956, p. 99

3 Idem, ibidem, p. 100

4 Referência ao filme Bande À Part (1964), de Jean-Luc Godard, onde os três protagonistas atravessam o Louvre a correr. Em The Dreamers (2003), de Bernardo Bertolucci, os três personagens principais repetem a proeza, tentando bater o record daqueles que eram os seus heróis cinematográficos. (ver Imagem 1 em Fotogramas)

5 BARTHES, Roland, 1975, p. 39

Page 6: fascínio do cinema - joana-x.comjoana-x.com/wp-content/uploads/2019/01/nos-e-o-cinema.pdf · dormem os crimes e os heroísmos que nunca realizaremos, onde se afogam as decepções

2º acto: Erotismo urbano [Cinema versus televisão]Este “escuro” do Cinema6 , para além de ser fundamental para o processo de devaneio, é condição e parte de

um erotismo moderno urbano. Barthes explica este erotismo pondo em foco os corpos presentes na sala de Cinema. Os corpos dormentes, relaxados. Os corpos confortáveis. Os corpos disponíveis. Anónimos. Imortais. Respirando o mesmo escuro. O mesmo filme. Alguém se senta atrás de mim. Quem é? Como é? Sinto-lhe a presença do corpo, da respiração, do pé que bate na minha cadeira, do casaco que pousa junto a mim. Barthes chama-lhe o «trabalho invisível dos afectos» neste «casulo cinematográfico»7. Somos seduzidos pelo filme, porque estamos ‘enclausurados’ neste escuro anónimo.

Por oposição, se assistirmos ao mesmo filme em casa, na televisão, sentados no nosso sofá, na nossa sala, com os nossos livros, o nosso telefone a tocar, uma pausa para ir ao quarto-de-banho, para fazer um lanche, o ruído dos carros lá fora, a música do vizinho de cima: tudo perde a erotização anónima de uma sala de cinema; tudo é civilizado, doméstico, habitual. Não há fascínio.

A televisão emite ínfimos pontos de luz que entram todos ao mesmo tempo pela retina. O Cinema é apenas um ponto de luz que se reflecte nos olhos. Na televisão somos consumidos. No Cinema apreciamos.8 «Enquanto o espectador de Cinema se move para o interior do ecrã, o espectador de televisão assiste à intrusão da figura televisiva na sua privacidade.»9

3º acto: Luz e voyeurismo: mecanismo-ecrã e mecanismo-espectadorNo “escuro” do Cinema há algo que, embora lhe seja oposto [ou talvez por isso mesmo], o acentua. Uma luz.

«Um cone que dança, que atravessa o escuro»10, vindo do projector. Rasa as cabeças, rasa os rostos. Desenha os contornos dos bancos, dos corpos11. As partículas rodam no ar. Aquele espaço luminoso suspende o tempo, como se a poeira visível fossem résteas de pó mágico que ficou da imagem que chegou ao ecrã. Como se o raio fosse a entrada para um mundo paralelo, o das histórias do cinema. A imagem passa por nós. Não nos atrevemos a olhar esse raio de luz de frente; deixamo-nos fascinar por ele, mas fixamos a atenção no ecrã, nas imagens móveis.12 Para Morin, outra característica do Cinema

joana soares nós e o cinema

5

6 BARTHES, Roland, 1975, p. 40

7 Idem, ibidem, p. 40

8 No seu livro, Edgar Morin não se debruça sobre esta questão do Cinema versus televisão. Morin fala brevemente de um outro tipo de erotismo, relacionado com o surgimento do grande plano, onde a cara do actor ocupa todo o ecrã. «O rosto acede a uma erótica, mística, cósmica dignidade suprema.» (MORIN, Edgar, 1956, p. 130) Pareceu-me, no entanto, fundamental apresentar esta ideia de Barthes, de modo a melhor explicitar o surgimento do fascínio do Cinema.

9 FERREIRA, Carlos Melo, 2004, p. 92

10 BARTHES, Roland, 1975, p. 40

11 Barthes sublinha a presença dos corpos, ao referi-la em diversas situações no seu artigo “Ao Sair do Cinema”.

12 Só Toto [personagem do filme Nuovo Cinema Paradiso (1988), de Giuseppe Tornatore] se atreveu a olhá-lo de frente, e a sua vida foi marcada por tragédias e felicidades do/no mundo do cinema, como se tivesse sido alvo de uma maldição. (ver Imagem 2 em Fotogramas)

Page 7: fascínio do cinema - joana-x.comjoana-x.com/wp-content/uploads/2019/01/nos-e-o-cinema.pdf · dormem os crimes e os heroísmos que nunca realizaremos, onde se afogam as decepções

que leva à hipnose psíquica do público é esse feixe luminoso. «A partir deste turbilhão de luzes»13, criam-se dois mecanismos, o ecrã e o espectador, que se fundem e formam o filme. Ou seja, o mecanismo-ecrã – criado pelo projector que transporta a imagem – e o mecanismo-espectador – que se fascina por essa luz e pela imagem que ela transporta – acabam por ser a base da existência do filme. Em The Purple Rose of Cairo, referenciado no prólogo, uma das personagens retidas no ecrã, exclama «Don’t turn the projector off! No, no! It gets black and we disappear!». Lá está: sem luz e sem a percepção/visualização/interpretação do que carrega essa luz, o filme não existiria.

A partir daqui, apercebemo-nos que há duas forças na construção fílmica: a do cineasta e a do espectador, o que olha pela câmara e o que olha, através da luz, pelo ecrã. Pelo lado do espectador, Barthes fala deste halo de luz como um buraco de fechadura por onde espreitamos, voyeurs que somos, sem conseguirmos controlar o querer-saber a história que não é nossa. Pelo lado do cineasta, no filme The Dreamers, numa referência aos “Cahiers du Cinéma”, é dito que «a film-maker is like a Peeping Tom», sendo a câmara de filmar o buraco da fechadura por onde ele espreita. Assim, os filmes são vistos como crimes [não no sentido mais violento da palavra, mas em termos de ilegalidades] e os realizadores e o público como criminosos.

Estabelece-se, então, um paralelo entre o voyeur-público e o voyeur-realizador. Ambos espreitam para esse quarto num mundo à parte, embora de perspectivas diferentes. Numa perspectiva de realização e noutra de visualização-atenta, «o cinema cria uma vida surreal» (Apollinaire)14 , a que nenhum dos voyeurs resiste.

4º acto: Logro da imagem e criação do duplo: projecção-identificaçãoAo espreitar pela fechadura, Barthes «encosta o seu nariz até o esmagar no espelho do écran»15 . Também

os protagonistas de The Dreamers gostam de se sentar na sala de Cinema o mais à frente possível. Para receberem a imagem ainda nova, antes de percorrer a sala, fila a fila, enquanto se vai desgastando, até chegar completamente usada ao sítio de onde veio – a cabine do projeccionista. A eles, como a Barthes, a imagem cativa-os, captura-os, fá-los colarem-se ao que se apresenta à sua frente. Embora saibam que essa imagem fílmica é um logro, ela adere-se a eles, assim como o significado e significante se aderem; não conseguimos distinguir um e outro. «Um logro perfeito.»16 A imagem é tanto mais cativante, quanto mais natural ela se parecer; e ela é tanto mais natural, quanto mais falsa for. Esta criação da naturalidade – o logro do real – só é possível graças à técnica. A técnica do actor, a técnica do operador de câmara, a técnica do realizador, do director de fotografia, do assistente de imagem, do electricista, do director artístico, do laboratório,... E tão mais é a imagem trabalhada tecnicamente, falsificada, tanto mais fascínio e interesse ela vai causar, pois mais verídica vai pareSer.

joana soares nós e o cinema

6

13 MORIN, Edgar, 1956, p. 229

14 Idem, ibidem, p. 25

15 BARTHES, Roland, 1975, p. 41

16 Idem, ibidem, p. 41

Page 8: fascínio do cinema - joana-x.comjoana-x.com/wp-content/uploads/2019/01/nos-e-o-cinema.pdf · dormem os crimes e os heroísmos que nunca realizaremos, onde se afogam as decepções

Mas há um outro lado que tem de estar presente para o processo de hipnose ser completamente satisfeito: vermos a imagem como um espelho; num sentido narcisista, vermo-nos, ou vermo-nos como queremos, reflectidos na história do ecrã. Explicando melhor: a imagem, mesmo representando quase fielmente o real, não é mais do que essa representação, um duplo, analogon, algo que está em vez de, tal como o signo. É uma ausência, na medida em que dispõe presentemente um objecto ausente. Chama-lhe Morin uma “presença-ausência”, já que, embora o real esteja ausente, há uma representação presente. Esta representação, sendo objectiva – porque nos [a]parece como tal, devido à falsificação da imagem –, é aperfeiçoada subjectivamente pelo espectador. Ele transforma a imagem mental num real idealizado, extremo, intenso, fetichizado – Morin refere-se mesmo a alucinatório. A realidade é tão trabalhada, que se torna surreal. A imagem ganha algo que o original não possuía. É aqui, na linha de cruzamento entre a objectividade e a subjectividade da imagem, que surge o duplo, «imagem-espectro do homem»17. O duplo, parte desta nova [super-]realidade, apresenta tudo o que o espectador deseja de mais íntimo e inconsciente, todos os seus anseios, ambições e sonhos, imagem que quer reconhecer ao olhar[-se n]o reflexo do ecrã. O duplo é um nosso alter ego, um nós-outro18 que tentamos encontrar, seja de que forma for, na imagem fílmica, num processo de projecção-identificação. Na projecção transpomos esses desejos e aspirações, medos e paranóias, para o imaginário – o objecto da imagem: «atribuímos a alguém, que entretanto vamos julgando, as tendências que nos são próprias» (Fulchignoni)19. Na identificação, absorvemos o que é representado no ecrã e integramo-lo em nós: a identificação «incorpora o meio ambiente no próprio eu» (Cressey)20. Morin também classifica estas projecções-identificações, como participações afectivas, uma vez que o espectador é participante nestas transferências entre imagem e mente, sendo essa participação devaneante transportadora de uma série de emoções, estados de alma.21

É, então, preciso acreditar na história [“o verosímil” é a expressão usada por Barthes] e vermo-nos no imaginário da história, para conseguirmos realmente colar-nos a ela. «Quer isto dizer que o que atraiu as primeiras multidões não foi a saída de uma fábrica, ou um comboio a entrar numa estação22 (bastaria ir até à estação ou até à fábrica), mas uma imagem do comboio, uma imagem da saída da fábrica. Não era pelo real, mas pela imagem do real, que a multidão se comprimia às portas do Salon Indien.»23

joana soares nós e o cinema

7

17 MORIN, Edgar, 1956, p. 44

18 Ideia trabalhada por Edgar Morin.

19 MORIN, Edgar, 1956, p. 108

20 Idem, ibidem, p. 108

21 Edgar Morin refere-se, de novo, ao grande plano, como um ponto alto da participação afectiva, já que «o rosto é espelho da alma, e a própria alma, espelho do mundo.» (p. 130) O espectador projecta-se e identifica-se nesse rosto gigante, que é como um espelho, um reflexo, para ele.

22 Referênca aos filmes La Sortie des Usines Lumière (1895) e L’Arrivé d’un Train à la Ciotat (1896), dos irmãos Louis e Auguste Lumière. (ver Imagens 3 e 4 em Fotogramas)

23 MORIN, Edgar, 1956, p. 33

Page 9: fascínio do cinema - joana-x.comjoana-x.com/wp-content/uploads/2019/01/nos-e-o-cinema.pdf · dormem os crimes e os heroísmos que nunca realizaremos, onde se afogam as decepções

5º acto: Dois corpos: duas consciênciasHá, no entanto, uma série de pressupostos que, enquanto espectadores, nos podem fazer descolar, despertar

da hipnose, ou simplesmente nem sequer entrar nela. Por um lado, o próprio filme, se não me cativar; por outro, eu [o espectador], se tomar uma posição crítica perante o que vejo. Por outras palavras, «se o universo objectivo se sobrepõe ao objecto onírico, até quase o apagar»24 . A partir do momento em que tento ‘analisar’ o imaginário do filme, ele desaparece. Só existe para os que nele se deixam hipnotizar.

Perante estas situações, Barthes sugere «uma outra maneira de ir ao Cinema»25. Eu passaria a ter dois corpos. E cada um deles se ia fascinar por caminhos diferentes [tornando duplicado o fascínio do meu ‘eu’ pelo filme no Cinema].

Teria, então, por um lado, um corpo narcisista: deslumbrado com o imaginário da imagem, procurando o seu próprio reflexo nessa imagem-imago, a revivência do que não-foi26 [o duplo]. Por outro lado, um corpo perverso: «pronto a fetichizar, não a imagem, mas precisamente o que a precede»27, o fascínio que vem do artefacto, isto é, tudo o que Barthes chama de “subúrbios” – perturbam a história representada sem nunca lhe tirar o gestalt, o sentido [ao significante não é alterado o significado]. Distancio-me sem ser crítica. A distância que crio é amorosa28 , de desejo para com o objecto apresentado; estou hipnotizada, seduzida, pel[o movimento d]a imagem, mesmo que consciente do material.

Morin, em vez de falar de dois corpos, fala de duas consciências, mas, mais uma vez, apenas a escolha das palavras difere. «Aquilo que se oculta é o que é precisamente essencial: vós, nós, eu, ao mesmo tempo que somos intensamente envolvidos, possuídos, erotizados, exaltados, assustados, que amamos, sofremos, gozamos, odiamos, nunca deixamos de saber que estamos numa cadeira a contemplar um espectáculo imaginário: vivemos o cinema num estado de dupla consciência.»29 Juntam-se, desta forma, o universo objectivo e o universo onírico. Sempre que um se sobrepõe ao outro há uma resposta do segundo, que permite que o estado entre o devaneio e o consciente se mantenha equilibrado. O espectador relaxa, descontrai, mas sabe que está a assistir a um espectáculo apenas. Sabe que pode acordar quando quiser. Morin compara a situação do espectador com o “sonhar acordado”: o espectador sabe que está perante uma imagem, uma representação, um imaginário irreal, mesmo que se deixe levar

joana soares nós e o cinema

8

24 MORIN, Edgar, 1956, p. 176

25 BARTHES, Roland, 1975, p. 42

26 No seu livro Câmara Clara, Barthes fala-nos do noema da fotografia como a pose, o isto-foi; «qualquer coisa se colocou diante do pequeno orifício e lá ficou». Mas no Cinema a pose é negada, não-foi; «qualquer coisa se passou diante desse mesmo orifício: a pose é arrastada». Morin também explica esta diferença, assinalando que, embora, tal como a fotografia, o Cinema seja «uma imagem da imagem perceptiva», ele é mais: «é uma imagem animada, quer dizer, viva.»O termo não-foi, neste contexto, é também usado no sentido de um espelho no qual o espectador procura cobiçosa e ansiosamente ver o seu reflexo – mesmo que esse não exista realmente.

27 BARTHES, Roland, 1975, p. 42

28 Idem, ibidem, p. 42

29 MORIN, Edgar, 1956, p. 17

Page 10: fascínio do cinema - joana-x.comjoana-x.com/wp-content/uploads/2019/01/nos-e-o-cinema.pdf · dormem os crimes e os heroísmos que nunca realizaremos, onde se afogam as decepções

por essa realidade falsificada. «O universo do filme é permanentemente vertebrado pela percepção e pela consciência do estado de vigília.»30 Há uma prudência31 perante o filme. Afasto-me para o ver de fora. Reservo-me, aprecio com moderação. Adopto uma ‘estratégia’ de circunspecção. Mas ao tomar esta posição enamoro-me pelo que vejo. Apaixono-me não só pelo filme mas por todo o mundo do cinema. O halo de luz do projector, as partículas de pó no ar, o grão da imagem, o ruído da película, os contornos dos corpos no escuro. É como ouvir um vinil a tocar num gira-discos: a agulha a pousar no disco, o som granulado do pó, os riscos que se ouvem; apercebemo-nos de toda essa palpabilidade, mas isso não destrói o mundo imaginário – pelo contrário, até o acentua. Como num templo, presto homenagem a um ‘deus’ [a imagem], fascinada com o espaço e os sons e os cheiros, mas completamente mergulhada no culto. Descolo-me, mas permaneço imersa no encantamento. E é daí que o verdadeiro fascínio do cinema nasce.

EpílogoApercebo-me que, no seio de todo este processo, surge uma linguagem específica, a do Cinema. A imagem,

representamen, torna-se um símbolo através das suas formas visuais. «É simbólico tudo aquilo que sugere, contém ou revela outra coisa, ou algo mais que si próprio»32. Então, a imagem, sendo um fragmento, um vestígio – uma parte de – e levando a que o espectador a leia e interprete algo sugerido, é simbólica, é algo mais do que mostra. Mas a imagem-símbolo, por si só, não compreende um discurso. É na sucessão de planos [de imagens] que atribuímos um significado aos símbolos encadeados; que lemos, interpretamos e entendemos o filme. Esta linguagem discursificada, esta razão de Cinema, surge naturalmente com a sequência de imagens e através da forma como elas se ligam, ou seja, através do papel preponderante da montagem. Como se a imagem fosse a palavra, o seu encadeamento fosse a frase, e o filme final, o texto. Podemos atribuir à imagem-palavra um determinado significado isoladamente, mas só através do seu encadeamento-frase no filme-texto é que lhe damos um significado contextualizado, ou seja, em discurso. Feita esta comparação, é importante deixar claro que o Cinema não vive da palavra. O Cinema desenvolveu a sua linguagem «durante trinta anos de mutismo»33 . Esse tempo, sem voz, propiciou o surgimento da força simbólica da imagem. Conduziu, mesmo, à criação de uma linguagem própria que, apesar da aparição do som, se manteve até hoje. É a imagem que faz o discurso do Cinema – o som é um complemento.

Morin sublinha o facto desta linguagem cinematográfica ser definida, não só por uma componente cognitiva [característica de todo o tipo de linguagens, já que pretendem comunicar algo], mas também por uma componente afectiva. Esta linguagem é, então, «comunicação do pensamento, expressão dos

joana soares nós e o cinema

9

30 MORIN, Edgar, 1956, p. 178

31 Discrição é a palavra usada por Barthes no texto original, “Ao Sair do Cinema”, com a nota de que é tomada no seu sentido etimológico.

32 MORIN, Edgar, 1956, p. 198

33 Idem, ibidem, p. 216

Page 11: fascínio do cinema - joana-x.comjoana-x.com/wp-content/uploads/2019/01/nos-e-o-cinema.pdf · dormem os crimes e os heroísmos que nunca realizaremos, onde se afogam as decepções

sentimentos» (Larousse)34 . O espectador, para além de ler a[s] imagem[ns] e de lhe[s] extrair um significado, experiencia as emoções que a história lhe transporta – vive-as, sente-as. Fascina-se não só pelo objecto, como pela subjectividade que lhe inscreve. Não podemos, no entanto, distinguir um e outro lado. A especificidade da linguagem do Cinema encerra-se nisso mesmo: na impossibilidade de separar esses dois mundos, de os diferenciar. Eles estão mergulhados um no outro, permitindo a criação de um discurso contínuo e fluido. O filme tem ritmo, é musicado pela sequência de planos e pela posição, ângulo, movimento, escala que estes apresentam.35 É esse ritmo, pausado ou acelerado, que funde a “comunicação do pensamento” com a “expressão de sentimentos”, a presença cognitiva com a presença afectiva. « As significações no Cinema não se codificam directamente numa máquina que entrecruza eixos sintagmáticos e eixos paradigmáticos (...). Os códigos emaranham-se sem que nenhum deles consiga dominar os outros»36. E isso distingue o Cinema de outras linguagens, já que este, vivendo da força da imagem, objectiva e subjectivamente, se torna universal.

«Se há linguagens de palavras, não há senão uma linguagem de Cinema»37.

joana soares nós e o cinema

10

34 MORIN, Edgar, 1956, p. 213

35 «Aqui intervém a câmara com os seus meios auxiliares, plongés e contreplongés, interrupções e imobilizações, retardador e acelerador, ampliação e redução. É ela que nos inicia no inconsciente óptico, tal como a psicanálise no inconsciente pulsional.» (BENJAMIN, Walter, 1936, p. 234)

36 GUATTARI, Félix, 1975, p. 19

37 MORIN, Edgar, 1956, p. 216

Page 12: fascínio do cinema - joana-x.comjoana-x.com/wp-content/uploads/2019/01/nos-e-o-cinema.pdf · dormem os crimes e os heroísmos que nunca realizaremos, onde se afogam as decepções

Bibliografia• BARTHES, Roland, Câmara Clara (1980), Edições 70, Lisboa, 2006

• BARTHES, Roland, “Ao Sair do Cinema”, e GUATTARI, Félix, “O Divã do Pobre” in Psicanálise e Cinema

(1975), Relógio D’Água, Lisboa, 1984

• BENJAMIN, Walter, “A obra de arte na época da sua possibilidade de reprodução técnica” (1936), in A

Modernidade, Assírio & Alvim, 2007

• FERREIRA, Carlos Melo, As Poéticas do Cinema: a poética da terra e os rumos do humano na ordem do

fílmico (2004), Edições Afrontamento, Porto, 2004

• MORIN, Edgar, O Cinema ou o Homem Imaginário (1956), Relógio D’Água, Lisboa, 1997

Filmografia• Bando À Parte (Bande À Part), Jean-Luc Godard, 1964, Anouchka Films

• A Rosa Púrpura do Cairo (The Purple Rose of Cairo), Woody Allen, 1985, Orion

• Cinema Paraíso (Nuovo Cinema Paradiso), Giuseppe Tornatore, 1988, Cristaldifilm

• Os Sonhadores (The Dreamers), Bernardo Bertolucci, 2003, Recorded Picture Company

• Todos os outros filmes da minha vida

joana soares nós e o cinema

11

Page 13: fascínio do cinema - joana-x.comjoana-x.com/wp-content/uploads/2019/01/nos-e-o-cinema.pdf · dormem os crimes e os heroísmos que nunca realizaremos, onde se afogam as decepções

Fotogramas

Imagem 1

Em cima, os protagonistas de Bande À Part (1964), de Jean-Luc Godard, e, em baixo, as personagems de The Dreamers (2003), de Bernardo Bertolucci, atravessam o Louvre a correr.

joana soares nós e o cinema

12

Page 14: fascínio do cinema - joana-x.comjoana-x.com/wp-content/uploads/2019/01/nos-e-o-cinema.pdf · dormem os crimes e os heroísmos que nunca realizaremos, onde se afogam as decepções

Imagem 2

Toto e o projector, em Nuovo Cinema Paradiso (1988), de Giuseppe Tornatore.

joana soares nós e o cinema

13

Page 15: fascínio do cinema - joana-x.comjoana-x.com/wp-content/uploads/2019/01/nos-e-o-cinema.pdf · dormem os crimes e os heroísmos que nunca realizaremos, onde se afogam as decepções

Imagem 3

La Sortie des Usines Lumière (1895), de Louis Lumière

Imagem 4

L’Arrivé d’un Train à la Ciotat (1896), de Louis e Auguste Lumière

joana soares nós e o cinema

14