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1 Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução ao Estudo do Direito I Professor Regente: Luís Lima Pinheiro Professor Assistente: João Pedro Marchante Mafalda Luísa Condelipes Boavida

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Page 1: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

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Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Introdução ao Estudo do Direito I

Professor Regente: Luís Lima Pinheiro

Professor Assistente: João Pedro Marchante

Mafalda Luísa Condelipes Boavida

Page 2: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

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17/ 09/2019

1º Semestre:

à ordem jurídica: o que é?

à caracterização das ciências do direito: como estuda-lo cientificamente?

à teoria geral do direito;

à a solução do caso por vias não normativas;

à fontes do direito.

Prova escrita em Dezembro.

2º Semestre:

à Sistemática Jurídica: como é que o Direito se organizou?

à A regra jurídica;

à A determinação e aplicação das regras.

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Capitulo I

O Direito como fenómeno humano e social

O Direito é um fenómeno humano e não um fenómeno da natureza. O

Direito surge com os seres humanos e destina-se principalmente a regular a sua

vida de relação.

O Direito é um fenómeno social e não um fenómeno do homem isolado.

Coisas e animais podem ser contemplados pelo direito, mas não se

relacionam em termos do direito. Há sim, regas e condutas humanas referentes

a coisas e animais.

Não há Direito sem sociedade, por isso se diz ubi ius, ibi societas.

Mas também não há sociedade sem Direito. Ubi societas, ibi ius.

Grupo e sociedade A sociedade pressupõe a existência de um grupo de pessoas (nem todo o

aglomerado é um grupo. O grupo pressupõe uma finalidade comum).

A sociedade é um grupo social, i.e., formado por pessoas que estabelecem

entre si relações sociais.

Nos grupos sociais mais vastos, que já não correspondem a meios de

convivência direta, salienta-se, como fator agregador do grupo, a finalidade

comum.

Nem todos os grupos sociais são sociedades. A sociedade é um grupo

estável e organizado.

Os grupos podem ser formais ou informais, sendo que o Direito se ocupa dos

grupos formais.

A família, quadro imprescindível da conservação e propagação da espécie,

terá sido a primeira forma social. Terá sido mesmo resultado de uma evolução

da autoridade familiar que se formou o Estado, elemento característico das

sociedades gerais de hoje.

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Classificações de sociedade:

à sociedade perfeita, global ou de fins gerais (engloba todos os aspetos da

vida social. Tem elevado grau de autossuficiência – capacidade de satisfazer

necessidades autonomamente) e sociedade imperfeita, particular ou de fins

específicos (são sociedades menores; limitam-se a certos aspetos da vida social

e têm menos autonomia);

à sociedade civil (esfera da vida social relativa a instituições não políitcas,

ex: família) e sociedade política (formada por partidos);

à Comunidades (sociedades organizadas de acordo com laços afetivos e

não racionais) e associações (orientadas por motivos racionais com um

determinado fim, ex: movimento anti touradas);

à sociedades maiores (igreja), sociedades estaduais (critério de

subordinação ex: comunidade internacional subordina a estadual – é

supraestadual), sociedades menores (conjugação de pessoas para a

persecução de fins culturais) e sociedades paralelas ou para estaduais (estão

ao mesmo nível do estado).

Os três elementos do conceito de sociedade perfeita ou global são:

à um grupo de pessoas que prossiga determinados fins comuns;

à a estabilização, a institucionalização das relações que transforma um

grupo numa sociedade, institucionalização que se traduz na existência de uma

organização e de uma ordem social;

à um alto nível de auto suficiência relativamente ao ambiente que a rodeia.

Ordem social

A ordem social é a ordem das condutas humanas que se expressa através

de normas relacionais, pois te por objeto regular a atividade do homem e as

relações entre os membros da comunidade.

Nas sociedades humanas há necessariamente uma certa ordem - embora

também haja, em maior ou menor grau, conflito e instabilidade.

Não é uma ordem de necessidade, mas de liberdade.

Separa -se em:

à Ordem fáctica;

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à Ordem técnica;

à Ordem normativa:

à Ordem do trato social;

à Ordem religiosa;

à Ordem moral;

à Ordem Jurídica.

A ordem social assenta na institucionalização a dois níveis:

à institucionalização de valores ou comunhão de fins – tem de haver um certo

consenso sobre um núcleo básico de valores;

à a estabilização, a institucionalização das relações que transforma um grupo

numa sociedade, que exige normas de conduta, definição de papéis ou posições

sociais e a formação de organizações sociais.

Na aceção de Direito que nos interessa agora, O Direito também é uma

ordem, que faz parte da ordem social. Mas a ordem a social tem outros

componentes fácticos e normativos além do Direito.

Componentes fáctico e normativo da ordem social

Uma realidade diz-se normativa quando só se compreende do ponto de

vista do “dever ser”. Não se cifra numa mera descrição, antes se dirige a orientar

a conduta humana.

A norma tem que ver com normalidade e com normatividade.

A norma ou regra pode ser normalidade, mas é mais do que isso, é

também normatividade. Ela não se limita a descrever os comportamentos das

pessoas, é um critério de apreciação destes comportamentos e tem a pretensão

de os orientar.

A norma exprime um dever ser, designadamente pretende vincular os

seus destinatários a uma determinada conduta.

Por exemplo, deve-se respeitar a vida e a integridade física; deve-se

respeitar a propriedade alheia.

A ordem normativa da sociedade não existe só no plano do dever ser.

Também se projeta no plano do ser. A ordem normativa é realidade social porque

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é um conteúdo da consciência comum a uma pluralidade de pessoas que atua

como motivação da sua conduta coordenada. A ordem normativa cria padrões

sociais de comportamento. Mas toda a ordem normativa é violável.

Por outras palavras, a ordem normativa da sociedade tem de assentar num

mínimo de efetividade das regras e princípios de conduta que a integram,

considerados no seu conjunto. Só assim a ordem social pode realizar a sua

missão institucionalizadora da sociedade.

Em suma, a ordem normativa é um ser efetivamente, mas um ser que tem o

sentido de um devido, de um dever ser. Nenhuma combinação de causas e

efeitos é suscetível de absorver em si a riqueza das ordens normativas.

Ordem social, natureza e cultura

Na aceção mais lata (abrangente) cultura designa o conjunto das

realizações humanas e contrapõe-se à natureza.

Perante esta aceção ampla de cultura, a ordem social e, no seu seio, o

Direito, é parte da cultura. O direito é neste sentido uma realidade cultural.

As observações têm demonstrado que a natureza se rege por

determinadas leis e que existe uma certa ordem.

A nossa observação da natureza, as ciências da natureza,

designadamente a física, a química, a botânica a biologia, têm demonstrado que,

quer ao nível do infinitamente grande – das galáxias – quer ao nível do

infinitamente pequeno – os átomos, os quarks – existe uma ordem, que a

natureza se rege por determinadas “leis”.

Será esta ordem e serão estas leis da mesma natureza que a ordem e as

leis normativas? Será o Direito uma projeção desta ordem natural?

A resposta é negativa. A ordem natural e as leis naturais não são iguais

às leis normativas e o Direito não é uma projeção desta ordem natural.

As leis naturais são diferentes das normas.

As leis naturais exprimem relações de causa e efeito.

à O ser é descritivo. Ex: está a chover. Pode ser considerado verdadeiro ou falso.

à O dever ser é prescritivo tem uma função prescritiva. Não poder ser verdadeiro ou falso, mas

sim válido ou inválido.

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Estas leis podem ser formuladas como “regras” ou “normas técnicas” em

que a causa passa a ser o meio e efeito passa a ser o fim. “Para obter gelo deve

arrefecer-se a água abaixo de 0” = “se ...... logo .......”. É uma proposição

descritiva.

As leis naturais são um ser porque a proposição descritiva é verdadeira

ou falsa conforme corresponde ou não à realidade. Não é violável.

A ordem normativa é um dever ser porque a proposição normativa, a

regra, é válida ou inválida, mas dificilmente se pode dizer que é verdadeira ou

falsa. E pode ser violada, não é uma fatalidade.

Em suma, a ordem normativa da sociedade, e, nela incluído, o Direito, é

um fenómeno geral da cultura humana, porque: 1) é criada ou revelada pela atividade humana;

2) é divulgada e transmitida culturalmente;

3) é caracterizada pela liberdade humana;

4) é inspirada por valores.

Numa aceção média, a cultura pode ser entendida como conjunto de

produtos objetivos do espírito humano, que se distinguem, enquanto tal, dos

suportes materiais em que são corporizados. Pelas razões apresentadas

anteriormente, o Direito também é parte da cultura entendida neste sentido.

Numa aceção média mais restrita, a cultura pode ser entendida como um

sistema que se contrapõe a outros sistemas da vida humana, designadamente

ao sistema social e ao sistema jurídico.

Assim, para PARSONS, os sistemas culturais são caracterizados por

complexos de significado simbólico, designadamente as crenças, os mitos, os

valores éticos e estéticos e os conhecimentos científicos.

Perante esta aceção de cultura, o Direito interage com a cultura a vários

níveis.

Numa aceção mais restrita, a cultura pode ser entendida como conjunto das

atividades e realizações artísticas e científicas.

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Ordem social e comunicação

A comunicação constitui uma condição essencial para o estabelecimento da

ordem social.

A regra social, como proposição normativa que é, encerra um juízo de valor.

A consciência de cada ser humano é moldada pelas suas experiências e

vivências. Se cada ser humano tivesse os seus próprios juízos de valor,

inspirados pelas suas diferentes vivências, não haveria valores socialmente

aceites, reconhecidos pela generalidade dos membros da sociedade.

Cada pessoa com as suas vivências cria os seus juízos de valor.

A objetivação do juízo de valor pressupõe que as nossas vivências sejam

comuns ou partilhadas. Dificilmente se pode conceber que todas pessoas, e

mesmo que todos os membros de uma sociedade, vivam pessoalmente as

mesmas experiências. A objetivação é possível através da comunicação que

existe entre os seres humanos, intersubjectiva.

A comunicação exige transferência e interpenetração. É necessário que não

haja constrangimentos, que a comunicação seja livre, que a mensagem seja

clara e seja entendida corretamente. É necessário que haja um ânimo, uma

vontade de compreensão mútua.

A regra social não é só um critério de valoração, é também um critério de

conduta. Para que a norma possa orientar as condutas das pessoas a quem se

dirige (destinatários) é preciso que seja deles conhecida. O que também exige

comunicação.

A mensagem contida numa norma pode ser comunicada através de

diferentes tipos de sinais, por exemplo, sinais de trânsito. Mas em geral as

normas são comunicadas através da linguagem. Por exemplo, as normas legais

são, em regra, comunicadas através da sua publicação no Diário da República.

A forma por que se comunica também é importante.

O aparecimento da escrita assume significado decisivo não só para a

comunicação do Direito, mas também para a conformação do Direito.

Dentro da ordem normativa da sociedade o Direito surge, nas modernas

sociedades estaduais, como uma ordem cujas principais regras estão fixadas

por escrito.

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A ordem exprime-se por regras, mas não postula a existência dum corpo

escrito de regras.

Mas veremos adiante que há outros elementos normativos da ordem social

que não são, em regra, fixados por escrito.

As instituições sociais Uma sociedade não pode ser confundida com uma mera justaposição de

indivíduos. O que caracteriza e distingue caca uma destas sociedades são as

ligações que existem entre os seus membros. Não são evidentemente nexos

materiais, são uma realidade, mas de índole cultural. Elas unificam. Os

participantes numa nova unidade.

Na aceção mais ampla, é possível designar por instituição social tudo o

que é socialmente institucionalizado: valores, normas, papéis e organizações

sociais. Todos os elementos estáveis e estruturados, i.e., articulados

internamente, serão instituições.

Nesta aceção, tanto é uma instituição social o valor tutela da vida e da

integridade física, como o instituto jurídico propriedade, as relações entre

professores e alunos, ou uma organização social como a universidade.

A palavra “instituição” é utilizada, designadamente pelos juristas, noutras

aceções:

à órgão ou coletividade - por exemplo, instituições públicas, instituições de

assistência; instituições universitárias

à complexo normativo - é neste sentido que se fala de Instituições de Direito

Civil como o matrimónio, a propriedade, a sucessão hereditária.

à sinónimo de ordem social ou de ordem jurídica.

A palavra “instituição” pode ser utilizada numa outra aceção que interessa

à ordem normativa: a de estrutura social normativamente relevante, isto é,

Instituição: o que está numa sociedade e permanece para la da evolução. São: realidades objetivas e supra individuais.

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elemento da realidade social que se reveste de uma certa estabilidade e

articulação interna e que exprime uma certa normatividade.

De entre estas estruturas são de salientar as organizações sociais, i.e.,

grupos orientados a finalidades comuns e ordenados para a sua realização.

Nem todos os setores da vida se acham institucionalizados em

organizações sociais. Só os que têm um valor estratégico, uma relevância

fundamental para a vida em sociedade, e nem todos os setores fundamentais.

Principais áreas sociais em que a institucionalização mais fortemente se

evidencia:

à vida familiar: família;

àárea da educação: escolas;

àárea económica: empresas; explorações agrícolas em forma não

empresarial; associações profissionais;

àsociedade política: assembleia legislativa, governo, administração pública,

partidos;

àárea jurídica: órgãos de realização do Direito: tribunais, certos agentes

administrativos;

àárea militar: forças armadas.

Para além das organizações sociais, há estruturas sociais, meramente

relacionais, que também são portadoras de um sentido ordenador. Trata-se

agora de relações sociais típicas, i.e., que se repetem continuamente de modo

análogo, que embora não tenham dimensão organizativa, são suporte objetivo

de certas expectativas e relações normativas.

É o caso de certas modalidades contratuais típicas na vida económica, como

por exemplo esta ou aquela modalidade de compra e venda.

Ordem social, conflito e evolução

A ordem normativa e, no seu seio, o Direito, não desempenham

exclusivamente uma missão estabilizadora ou integradora.

O Direito também desempenha uma função de resolução de conflitos

sociais e pode desempenhar uma função de transformação social.

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O sistema social evolui:

- através da generalização de valores que anteriormente não reuniam

consenso e da desvalorização de outros valores;

- da formação de novas normas e a cessação de vigência de outras

normas;

- do aperfeiçoamento de papéis sociais através de uma adaptação às

novas exigências da cooperação humana; e

- da diferenciação de organizações sociais, que passa designadamente

pelo surgimento de novas organizações, cada vez mais especializadas.

Neste processo de evolução o Direito pode desempenhar dois papéis muito

diferentes:

à tem de se adaptar à sociedade e às suas exigências;

à tem de ser um instrumento de transformação social.

Mas esta função transformadora do Direito deve ser encarada com

prudência.

Uma outra razão por que o Direito também não desempenha só uma função

estabilizadora ou integradora reside na inevitabilidade dos conflitos sociais.

O Direito não é imune ao conflito social nem é alheio às grandes opções

políticas. A consciência destas opções é importante para compreender o Direito

e conhecer o método jurídico.

O Direito também serve a resolução destes conflitos por uma forma pacífica

e racionalizada.

O Direito regula as relações entre a sociedade e aqueles dos seus membros que

violam a ordem jurídica ou que discordam sobre os seus direitos e obrigações,

estabelecendo tribunais e processos jurisdicionais em que o conflito social é

resolvido pela aplicação de critérios jurídicos.

O Direito também regula relações entre os vários grupos sociais,

regulando a constituição e funcionamento dos órgãos do poder político e

definindo os mecanismos por que os membros da sociedade, incluindo os grupos

sociais e políticos exercem a sua influência sobre a produção legislativa.

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Deste modo o Direito institucionaliza até certo ponto a composição de

interesses antagónicos, constituindo uma alternativa às soluções de força, à

violência, à guerra.

Complexidade e pluralidade das ordens normativas

A ordem normativa é um fenómeno universal, mas não é um fenómeno

que se manifeste por forma uniforme em todo o Mundo. A ordem normativa de

uma sociedade estadual coexiste com outras ordens normativas.

A par da pluralidade de ordens normativas da sociedade, há a assinalar a

sua complexidade, i.e., a existência, no seio cada ordem normativa da

sociedade, de diversos sistemas ou complexos normativos.

A ordem normativa da sociedade é complexa a dois níveis:

Por um lado, no seio da ordem normativa encontramos diferentes setores

normativos: além do Direito encontramos, designadamente, complexos

normativos religiosos e morais.

Por outro lado, encontramos no seio do Direito e, em especial, da ordem

jurídica estadual, fenómenos de complexidade.

Surgem assim ordens jurídicas complexas de base territorial, em que vigora um

sistema jurídico diferente, pelo menos em parte, em cada circunscrição territorial

– por exemplo, em Espanha, nos EUA, no Reino Unido.

Também existem ordens jurídicas complexas de base pessoal, em que

vigora um sistema jurídico diferente, pelo menos em parte, para cada categoria

de pessoas.

Quando se analisam as ordens sociais é necessário ter presente que existe um

grau de interação mais ou menos intenso entre as diferentes sociedades, e

portanto, também relações entre diferentes ordens normativas da sociedade.

Isto coloca determinados problemas de articulação entre ordens jurídicas:

àDireito Internacional Público

à Direito da União Europeia

à Direito Internacional Privado

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CAP. II - A ORDEM JURÍDICA COMO ORDEM NORMATIVA – NOÇÕES INTRODUTÓRIAS

Imperatividade e vinculatividade

Já assinalei que toda a ordem normativa transcende o domínio do “ser”, é

também do domínio do “dever ser”. A norma não se limita a descrever um

comportamento. A norma valora e pretende orientar o comportamento.

Toda a norma, jurídica, moral ou outra tem a pretensão de vincular a

conduta dos seus destinatários: “não se deve matar”, “deve-se respeitar os mais

velhos”, “deve-se dar prioridade ao veículo que se apresenta pela direita”.

Muito frequentemente a estatuição da norma é um dever de conduta ou

comando. É o que se passa nos exemplos acabados de referir. Daí identificar-

se normatividade com imperatividade.

Mas tem de se reconhecer que nem toda a norma contém um imperativo

ou injunção. Vejamos alguns exemplos:

O art. 66.º/1 CC estabelece que a personalidade se adquire no momento do

nascimento completo e com vida.

O art. 130.º CC estabelece que a maioridade se atinge aos 18 anos.

O art. 1317.º CC admite a transmissão da propriedade por negócio jurídico, entre

outros modos.

Em rigor também não são injuntivas as normas que definem pressupostos

e requisitos de validade de negócios jurídicos. Por exemplo, o art. 875.º CC

quando determina que o contrato de compra e venda de imóveis tem de ser

celebrado por escritura pública ou documento particular autenticado.

A invalidade ou ineficácia do negócio em caso de não ser observada a

forma prescrita não é uma sanção, não há uma conduta ilícita.

Enfim, também não são injuntivas as regras que não constituem critérios

de conduta, por exemplo as regras legais retroativas, que se aplicam a condutas

que ocorreram antes da sua entrada em vigor.

Todas estas normas, embora não estatuam imperativos, desencadeiam

uma modificação no mundo do juridicamente vigente (uma ordenação de

vigência).

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Por exemplo, a personalidade jurídica.; a capacidade jurídica; a

possibilidade de transmissão negocial da propriedade.

Toda a norma encerra um critério de valoração, e desencadeia uma

consequência jurídica. Esta consequência jurídica tanto pode ser uma obrigação

de conduta como qualquer outra consequência que deva valer como Direito. Em

qualquer caso, a consequência jurídica vincula juridicamente os destinatários da

norma.

Enquanto critério de conduta a norma é vinculante para todas as pessoas.

Enquanto critério de decisão é vinculante para os tribunais e outros órgãos

de aplicação do Direito.

A ordem jurídica, globalmente considerada, vincula as pessoas aos seus

critérios de valoração, que podem corresponder, ou não, à sua vinculação a

determinadas condutas. A ordem jurídica caracteriza-se, portanto, pela

vinculatividade.

Direito objetivo e direito subjetivo

A palavra Direito é ambígua.

Não é no mesmo sentido que se fala de “Direito das Sucessões” e do “direito

de suceder de António”.

O Direito das Sucessões é uma ordenação da vida social. É uma realidade

normativa objetivada porque regula a transmissão por morte do património de

qualquer pessoa. Trata-se de Direito objetivo.

O direito de suceder de António é uma posição de vantagem de uma dada

pessoa, de um sujeito. É uma realidade subjetiva porque se refere a uma

determinada pessoa.

O direito subjetivo é uma posição de vantagem que resulta da afetação de

um bem aos fins de uma pessoa.

O Direito é entendido em sentido objetivo quando se reporta a um critério

geral de decisão e conduta, i.e., um critério que é aplicável a uma pluralidade de

pessoas que não são determináveis no momento da sua formação. Este critério

geral tanto poderá ser uma regra como um princípio.

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A ordem jurídica

Há fundamentalmente dois modos de encarar a ordem jurídica.

Para as orientações normativistas, a ordem jurídica resume-se a um

sistema de regras jurídicas. Uma variante mais moderada concede que, além

das regras jurídicas, o sistema jurídico também é formado por princípios

jurídicos.

Para outra corrente, seguida entre nós por L. PINTO COELHO, GOMES

DA SILVA e OLIVEIRA ASCENSÃO, a ordem jurídica é uma realidade muito

mais englobante que as regras por que se traduz.

Elementos da ordem jurídica:

à o elemento normativo (regras, princípios e nexos intrassistemáticos);

à os valores da ordem jurídica;

à os meios de tutela jurídica;

àas estruturas sociais juridicamente relevantes, designadamente as

organizações sociais;

à as situações jurídicas.

Direito e ordem jurídica

A palavra “Direito” é utilizada em várias aceções. Já contactámos com

algumas destas aceções: Direito objetivo e direito subjetivo.

Mas a palavra “Direito” também é utilizada frequentemente no sentido de

ordem jurídica, incluindo, pois todos os elementos que acabámos de enunciar,

designadamente o elemento normativo, que diz respeito ao Direito objetivo, e as

situações jurídicas individuais, que dizem respeito aos direitos subjetivos.

Além disso, a palavra “direito” é ainda empregue no sentido de justiça.

No presente curso, tender-se-á, na I Parte, a encarar o Direito como

ordem jurídica, por forma englobante, embora excluindo as situações jurídicas.

Na II Parte, o Direito será considerado essencialmente como sistema

normativo (regras, princípios e nexos intrassistemáticos).

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Em suma, quando se fala em Direito pode-se referir a mesma totalidade,

porque o Direito é necessariamente um sistema ou ordem. Neste sentido, Direito

e ordem jurídica equivalem-se. Mas pode-se também tomar Direito como a

expressão jurídica. Essa expressão é dada justamente pelas regras. Nesse

sentido o Direito seria o complexo normativo que exprime a ordem jurídica.

A regra jurídica

Estruturalmente a regra jurídica é uma proposição que enlaça pelo menos

dois elementos: a previsão e a estatuição.

A previsão é constituída pelo conjunto dos elementos que têm de estar

presentes para que a norma se aplique. Podemos designar estes elementos por

pressupostos.

A estatuição consiste numa consequência jurídica.

Por exemplo, o art. 66.º/1 CC: “A personalidade adquire-se no momento

do nascimento completo e com vida”.

Previsão: “nascimento completo e com vida”.

Pressupostos:

- nascimento;

- completo;

- com vida.

Estatuição: “A personalidade adquire-se...”.

As fontes do Direito

A expressão “Fontes do Direito” tem tradicionalmente que ver com a

génese das regras jurídicas, isto é, do Direito objetivo.

O seu alcance não abrange, assim, a génese de todos elementos da

ordem jurídica.

A expressão Fontes de Direito tem vários sentidos. Interessa-nos

fundamentalmente o sentido técnico-jurídico ou dogmático.

Neste sentido são fontes do Direito os modos de criação das regras e

princípios jurídicos.

Neste sentido são fontes, designadamente, a lei e o costume.

Page 17: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

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Na realidade o que se abrange por esta epigrafe, não é todo o Direito, é

exclusivamente o Direito Objetivo – mais precisamente as regras jurídicas que o

exprimem.

CAP. III - DIREITO E ESTADO

Direito e poder

A relação de poder é uma das formas de relacionamento social.

O poder é – em sentido sociológico – uma faculdade de determinar ou

influenciar a conduta doutrem.

Quanto ao conteúdo da relação de poder poderemos distinguir entre:

à Poder de injunção: determinar condutas com base na sanção ou

ameaça da mesma. Ex: poder político

à Poder de influência: condicionar condutas través da persuasão. Ex:

com base numa promessa.

Direito e poder político

O poder político é um poder de injunção dotado de coercibilidade material.

Coercibilidade material é a suscetibilidade do uso da força física ou da

pressão material.

O poder político tem a possibilidade de determinar a conduta das pessoas

com base na aplicação coerciva de sanções ou, como sucede na maioria dos

casos, no receio da aplicação coerciva de sanções.

Estas sanções vão desde uma privação crescente de recursos naturais

(por exemplo, a multa) até ao uso da força física (por exemplo, a privação da

liberdade – prisão).

Mas isto não quer dizer que o poder político se funde na coercibilidade.

Para se afirmar de modo duradouro e incontroverso este poder tem de ser

legítimo. Tem de ser admitido pela sociedade e de ter uma base consensual.

Nesta medida o significado da coercibilidade relativiza-se. O poder político

legítimo funda-se menos na coercibilidade do que no reconhecimento social.

Page 18: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

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Nem todo o poder político é estadual. O poder político existe pelo menos em 3

planos:

à Plano estadual: o governo português é um dos órgãos do poder político

do Estado;

à Plano supraestadual: diz-se que a Assembleia Geral das Nações

Unidas é órgão de um poder político supraestadual;

à Plano infra estadual: quando dentro de um Estado haja

descentralização política ou administrativa; Ex: os governos regionais dos

Açores e da Madeira são órgãos de poder político infra estadual; também os

órgãos das autarquias locais.

O Estado moderno é um modelo de sociedade caracterizado pelo

monopólio dos órgãos públicos na legítima utilização da força física e pela

centralização das decisões políticas mais importantes.

Porquanto o Direito tem hoje de repousar, quanto à sua coercibilidade, no

emprego da força física por parte de órgãos públicos, tem de haver uma ligação,

uma interação entre Direito e Estado.

A coercibilidade do Direito, pelo menos estadual, depende do poder

político.

Mas as relações entre o Direito e o poder político não se limitam à

coercibilidade, são mais complexas.

No Estado de Direito, diferentemente do absolutismo, a própria relação de

poder é regulada pelo Direito. Há um primado do Direito sobre o Estado e, mais

em geral, sobre o poder político (arts. 3.º/2 e 108.º CRP).

Os direitos dos cidadãos são garantidos por este primado e pela divisão do poder

político (designadamente entre o poder executivo, o poder legislativo e o poder

judicial).

O poder político é juridicamente enquadrado: a sua titularidade é

juridicamente definida, o seu objeto é juridicamente delimitado e o seu exercício

é juridicamente regulado. Portanto, o poder político é objeto do Direito.

Por outro lado, o poder político é criador de regras de conduta social

dotadas de coercibilidade, que, em princípio, são direito. Portanto, o poder

político é criador de Direito.

O que nos introduz na relação entre Direito e função legislativa do Estado.

Page 19: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

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Direito e função legislativa do Estado

Entenderemos aqui por Estado a sociedade, fixa num determinado

território, que por autoridade própria instituiu um poder político relativamente

autónomo.

Quanto à questão de saber se todo o Direito é criado pelo poder político

estadual defrontam-se duas posições diametralmente opostas.

Para o positivismo voluntarista, salvo o Direito Internacional, todo o Direito

é um produto do Estado e é efetivado pelo Estado; só as normas emanadas dos

órgãos do Estado são Direito; o costume, nomeadamente, não é Direito.

Para outras correntes, o poder político tem um papel pouco relevante na

formação do Direito. Assim, para a escola sociológica o Direito é a ordem que

efetivamente vigora na sociedade; para certas correntes jusnaturalistas o Direito

é a essência de uma ordem natural da sociedade.

Procuremos responder a esta questão perante a realidade das atuais ordens

jurídicas.

O Estado exerce a função política, a função administrativa e a função

jurisdicional. A função política subdivide-se em função legislativa e função

governativa ou política stricto sensu consoante se traduza ou não em atos

normativos.

Aos órgãos que têm a seu cargo a função legislativa pertence produzir

normas jurídicas. Mas também no exercício da função administrativa se criam

regras jurídicas (regulamentos). E o mesmo se pode verificar com o exercício da

função jurisdicional, embora o valor das decisões dos tribunais como fonte do

Direito dependa muito do sistema jurídico em causa.

Nas ordens jurídicas dos Estados modernos os órgãos do poder político

estadual tendem a desempenhar o principal papel na produção de normas

jurídicas. Pensamos principalmente nas assembleias legislativas e nas

competências legislativas do governo.

Como representantes dos membros da sociedade é natural que sejam

eles a determinar as regras que ordenarão a vida social.

Acrescente-se que o formalismo de que normalmente se reveste o

processo legislativo, e a circunstância de as leis serem publicadas, conferem à

Page 20: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

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norma legal um grau de certeza jurídica, precisão e facilidade de conhecimento

dificilmente comparável ao das regras geradas por outras fontes do Direito.

O funcionamento das modernas sociedades industriais seria impensável

se não contasse com a existência de um enorme conjunto de leis

pormenorizadas, complexas e que carecem de constantes adaptações e

aperfeiçoamentos.

Apesar de tudo, não se pode identificar o Direito com o produto da ação

normativa dos órgãos do Estado.

Desde logo, num plano muito geral, a ordem jurídica de um Estado é

apenas uma das ordens jurídicas estaduais que vigoram no mundo, e coexiste

com ordens jurídicas supraestaduais, designadamente com a ordem jurídica

internacional e, no nosso caso, com a ordem jurídica da União Europeia.

Ao nível da ordem jurídica de cada Estado, ainda que os órgãos do Estado

assumam o principal papel na produção de regras jurídicas, tal não implica um

monopólio da criação do Direito: nada obsta a que vigorem regras jurídicas que

se formaram independentemente da atividade legislativa do Estado.

Certo é que nem todo o Direito vigente na ordem jurídica estadual é

necessariamente emanado de órgãos do Estado.

Todas as normas produzidas por órgãos estaduais são Direito?

É discutido se todas as normas emanadas dos órgãos estaduais são

sempre e em qualquer caso Direito, mesmo, por exemplo, quando sejam

manifestamente injustas.

Nas ordens jurídicas dos Estados modernos os órgãos do poder político

estadual tendem a desempenhar o principal papel na produção de normas

jurídicas. Pensamos principalmente nas assembleias legislativas e nas

competências legislativas do governo.

Como representantes dos membros da sociedade é natural que sejam

eles a determinar as regras que ordenarão a vida social.

Acrescente-se que o formalismo de que normalmente se reveste o

processo legislativo, e a circunstância de as leis serem publicadas, conferem à

norma legal um grau de certeza jurídica, precisão e facilidade de conhecimento

dificilmente comparável ao das regras geradas por outras fontes do Direito.

Page 21: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

21

O funcionamento das modernas sociedades industriais seria impensável

se não contasse com a existência de um enorme conjunto de leis

pormenorizadas, complexas e que carecem de constantes adaptações e

aperfeiçoamentos.

Direito supraestadual (a cima do Estado), para estadual (ao mesmo nível do Estado) e infra estadual (a baixo do Estado)

Já se assinalou que no mundo não existe só uma pluralidade de ordens

jurídicas estaduais.

Também temos a ordem jurídica internacional que regula principalmente

as relações entre os Estados na sua qualidade de entes soberanos, as relações

entre organizações internacionais e as relações entre estas e aqueles.

O Direito Internacional Público é verdadeiro Direito, tem as suas fontes

próprias, que não dependem da vontade deste ou daquele Estado. É Direito

supraestadual. O mesmo se diga do Direito da União Europeia.

Há outras ordens ou complexos normativos que se desenvolvem em

contacto com a esfera social de vários Estados, sem que tenham qualquer

posição subordinante relativamente ao Direito estadual. Podemos falar, a este

respeito, de Direito para estadual.

É o que se verifica, designadamente, com os complexos normativos

criados por sociedades para estaduais, tais como as associações internacionais

que prosseguem fins científicos, culturais e humanitários, certas igrejas, as

associações internacionais de interesses económicos, as federações

desportivas, as empresas transnacionais.

A nível infra estadual há diversos fenómenos de produção jurídica

autónoma, independente do Estado.

Além do pluralismo jurídico associado a processos de descentralização

política ou apenas administrativa (por exemplo as Regiões Autónomas e os

Municípios), temos três casos de produção jurídica autónoma:

à Costume;

à Produção de normas no seio de organizações sociais nacionais privadas;

à Casos excecionais em que a autonomia negocial produz regras jurídicas.

Page 22: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

22

Em suma, mesmo no seio da sociedade estadual nem todo o Direito é

produzido por órgãos estaduais (ou do poder regional ou local).

No entanto, uma vez que o poder político detém o monopólio da coerção

material, a coercibilidade do Direito autónomo fica dependente da sua receção

ou, pelo menos, do seu reconhecimento pelo poder político.

Mas até que ponto a coercibilidade é uma característica essencial do Direito?

Norma jurídica e sanção

Já falamos de imperatividade (normas que estabelecem a obrigação de

conduta – normas injuntivas). Com ela se liga a categoria de sanção. Sanção é

uma consequência desfavorável normativamente prevista para o caso de

violação de uma regra, e pela qual se reforça a imperatividade desta.

Em todas as ordens normativas há sanções, embora a sua índole varie

profundamente de caso para caso.

Nem toda a regra é assistida por sanção, mas a existência de sanções é

natural consequência da imperatividade.

Sanções jurídicas

Toda a regra jurídica ou outra, pode ser assistida por uma sanção, que

reforça a sua imperatividade.

A sanção é sempre uma consequência desfavorável que atinge aquele

que violou uma regra.

É um efeito jurídico, conteúdo de uma regra jurídica cuja previsão é a

violação de uma regra de conduta. Implica, pois, sempre a entrada em rigor de

novas regras denominadas regras sancionatórias.

Por exemplo, o Art. 131.º do Código Penal determina que quem matar

outra pessoa é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos. Temos aqui uma

proposição complementar. A proposição principal é a que proíbe matar.

Page 23: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

23

Segundo a sua função as sanções jurídicas podem classificar-se nas

seguintes espécies, que se distinguem pela função que desempenham:

à Compulsória – impor uma pena ao infrator;

à Reconstitutiva – reparadora dar aquilo que era do outro;

à Compensatória - Tem uma função reparadora (reconstituir a situação

que existia antes da violação da regra) e repressiva (impor uma pena ao infrator);

à Preventiva – prevenir que volte a acontecer;

à Punitiva – Função repressiva (impor uma pena ao infrator).

Uma só violação pode desencadear várias sanções. Ex: um homicídio põe

em ação uma sanção punitiva: a prisão; uma sanção compensatória: a

indemnização por danos pessoais; e, eventualmente, uma sanção preventiva: a

prisão preventiva.

A ordem jurídica não atua só após a violação consumada, pode prever

intervenções, pela força, se necessário for, para prevenir ou evitar violações

futuras.

A verdadeira sanção também não deve confundir-se com as medidas

incentivadoras, nem com as medidas dissuasoras, por meio das quais o poder

político influencia a conduta das pessoas.

No caso das medidas incentivadoras, entre duas ou mais condutas

permitidas o poder político favorece a realização de uma delas, promove uma

certa conduta, sem a impor.

No que toca às medidas dissuasoras, a prática de uma atividade, ainda

que permitida, pode ser submetida a desvantagens que desencorajam as

pessoas a realizá-la.

Nestes casos, entre duas ou mais condutas permitidas o poder político

desfavorece a realização de uma delas, sem, no entanto, a proibir.

è Sanções compulsórias:

Têm função repressiva (impor uma pena ao infrator).

Perante a existência de uma conduta contrária à regra a sanção compulsória

atua sobre o infrator para o levar a adotar a conduta devida. Não são muito

frequentes. Ex: suponhamos que o pai condenado à prestação de alimentos aos

Page 24: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

24

seus filhos menores, se omite. Poderá ser preso até que pague. A finalidade

compulsória da prisão evidencia-se na circunstância em que irá cessar fogo, logo

que a pensão alimentar for paga.

É referida nos artigos:

à Art. 829.º-A CC estabelece a sanção pecuniária compulsória. A

requerimento do credor o tribunal pode condenar o devedor que não tenha

cumprido uma obrigação ao pagamento de uma quantia pecuniária por cada dia

de atraso no cumprimento ou por cada infração.

à Art. 250.º CP estabelece que aquele que estando legalmente obrigado

a prestar alimentos e em condições de o fazer, não cumprir a obrigação, é punido

com pena de prisão ou com pena de multa.

è Sanções reconstitutivas:

Tem uma função reparadora (reconstituir a situação que existia antes da

violação da regra).

No Direito privado, a violação de uma norma injuntiva desencadeia

normalmente uma sanção reconstitutiva. Consiste esta sanção na imposição da

reconstituição em espécie, in natura, da situação a que se teria chegado com a

observância da norma. Reposição ou restauração natural.

Ex: Se A ocupa um prédio de que B é possuidor, a reação normal a esta

situação é pedir ao tribunal que expulse A e entregue o prédio a B.

No caso da responsabilidade civil este “princípio geral” encontra-se

enunciado no art. 562.º CC.

A sanção reconstitutiva também surge nos casos em que for admitida a

execução específica de uma obrigação.

è Sanções compensatórias:

Tem uma função reparadora (reconstituir a situação que existia antes da

violação da regra) e repressiva (impor uma pena ao infrator).

A sanção reconstitutiva pode não ser possível (caso já não exista), não ser

suficiente (danos irreparáveis), ou ser excessivamente onerosa.

Page 25: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

25

Utiliza-se então, em seu lugar ou cumulativamente, uma sanção

compensatória.

Procura-se atingir uma situação que embora diferente da que resultaria da

observância da norma seja valorativamente equivalente. A sanção

compensatória opera sempre através de uma indemnização de danos sofridos.

Consoante a natureza do dano, assim, podemos distinguir várias modalidades:

à Falta do próprio bem devido;

à Danos patrimoniais;

à Danos não patrimoniais.

A impossibilidade, insuficiência ou excessiva onerosidade da reconstituição

natural encontram-se expressamente previstas, em matéria de responsabilidade

civil, pelo Art. 566.º CC, que manda fixar nestas hipóteses uma indemnização

em dinheiro.

è Sanções punitivas:

Função repressiva (impor uma pena ao infrator).

A sanção punitiva ou pena não tem por função reconstituir a situação que

existiria se a infração se não tivesse verificado, mas sim castigar o infrator. A

pena consiste numa sanção imposta de maneira a representar um sofrimento e

uma reprovação para o infrator.

Esta pena corresponde às violações mais graves da ordem jurídica.

No nosso Direito a pena consiste principalmente numa privação de recursos

ou da liberdade. Em Direito Penal isto corresponde às penas de multa e de

prisão.

è Sanções preventivas:

Reage à violação de uma regra jurídica, mas coma finalidade da sanção

preventiva é a de, perante a violação de uma norma jurídica, evitar violações

futuras.

É o que verifica com as medidas de segurança em Direito Penal.

Ex: uma pessoa que tenha cometido um crime que não lhe possa ser

imputado por sofrer de anomalia psíquica, é mandada internar em

Page 26: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

26

estabelecimento adequado se houver fundado receio de que venha a cometer

outros factos da mesma espécie (Art. 91.º/1 CP).

Coercibilidade e sanção

Enquanto suposta característica do Direito a coercibilidade é

frequentemente definida como suscetibilidade de aplicação coativa da regra.

Será isto exato?

Coercibilidade não é o mesmo que coação. Define-se muito

frequentemente como a suscetibilidade de aplicação coativa da regra.

Do exame das sanções jurídicas atrás realizado resulta que só num caso

a sanção leva à aplicação coativa da regra violada: no caso da sanção

compulsória. Em todos os restantes casos, a sanção aplicada não tem por

função impor a observância futura da norma na situação em causa.

Poderá então dizer-se que a coercibilidade é a suscetibilidade de

aplicação de uma sanção?

Também não é inteiramente exato. A sanção, como vimos, é um efeito

jurídico. Para a sanção ser aplicada basta que este efeito se produza, por

exemplo, que se imponha a uma pessoa o dever de indemnizar ou que se

condene alguém a uma pena de prisão.

Em rigor a coercibilidade liga-se à realização coativa da sanção, isto é,

quando a sanção é efetivada mediante a utilização de força física.

Certas sanções, como é o caso da prisão, são sempre de realização

coativa, ao passo que outras sanções, como a indemnização, só são realizadas

coativamente se o sancionado não cumprir a obrigação de conduta que lhe é

imposta pela proposição sancionatória.

Em suma, a coercibilidade da regra jurídica consiste na suscetibilidade de

impor o cumprimento de uma conduta através do uso da força, isto é, da

aplicação de sanções.

Ato Jurídico: é uma manifestação de autonomia privada.

Efeito Jurídico: é a consequência do ato jurídico.

Page 27: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

27

Ordens jurídicas sem coercibilidade

Será que todas as ordens jurídicas são caracterizadas pela

coercibilidade?

A resposta é negativa.

As ordens jurídicas supraestaduais (designadamente a ordem jurídica

internacional e a ordem jurídica da União Europeia são desprovidas de

coercibilidade).

As ordens jurídicas para estaduais, como o Direito Canónico, também são

em absoluto destituídas de coercibilidade.

As ordens ou complexos normativos autónomos infra estaduais são muito

diversos entre si. Em princípio, os particulares não podem utilizar diretamente a

coerção material e, por conseguinte, a coercibilidade das normas infra estaduais

depende da colaboração dos órgãos públicos.

Os fenómenos de coercibilidade do Direito infra estadual independente da

ordem jurídica estadual são limitados à instituição familiar e a comunidades

tradicionais que vivem à margem da organização do Estado.

Por conseguinte, tanto a vigência como a efetividade do Direito infra

estadual não dependem da coercibilidade.

A coercibilidade nas ordens jurídicas estaduais

A coercibilidade não é mesmo, então, característica de cada regra jurídica

tomada por si. É, todavia, uma característica das ordens jurídicas estaduais.

Em primeiro lugar, cabe recordar que nem todas as normas são injuntivas,

nem todas as normas têm sanção.

Em segundo lugar, entre as normas injuntivas, há normas que, na prática,

não têm sanção jurídica, ou só a têm em casos extremos. É o que se verifica

com muitas normas que regulam as relações que se estabelecem no seio da

família.

Page 28: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

28

Há também o caso particular das chamadas obrigações naturais. Estas

obrigações não são judicialmente exigíveis, mas se o devedor as pagar

voluntariamente não pode exigir a restituição (Art’s. 402.º e 403.º CC).

Pode ainda verificar-se que a regra seja violada por um órgão estadual

supremo, sem que haja outro órgão superior em posição de o sancionar.

Portanto, a coercibilidade não é característica de cada regra jurídica da

ordem jurídica estadual tomada de per si. Porque?

à Há regras jurídicas que não têm sanção;

à Há regras jurídicas cuja sanção não pode ser coativamente imposta.

Mas será uma característica da ordem jurídica estadual no seu conjunto? Sim.

Meios de tutela jurídica

A jurisdição designa a tarefa de dizer Direito. Esta evoluiu de um sistema

de justiça privada para um sistema de justiça pública.

O Estado moderno caracteriza-se não só pelo monopólio público dos

meios de coerção, mas também pelo princípio da tutela pública. Por força deste

princípio o Estado toma a seu cargo a tutela dos direitos e interesses protegidos

pela ordem jurídica (Art. 20.º/1 CRP). O direito de acesso aos tribunais constitui

um direito fundamental (Art’s. 20.º/1 e 268.º/4 CRP).

A tutela pública da ordem jurídica estadual incumbe a dois tipos de órgãos

públicos:

à Órgãos jurisdicionais – os tribunais (órgãos imparciais e especializados,

incumbidos do exercício dessa função);

à Órgãos administrativos – a administração central – sob a direção ou

superintendência do Governo e a administração autónoma (designadamente as

autarquias locais e as regiões autónomas).

Os tribunais têm a seu cargo a função jurisdicional que consiste na

aplicação do Direito por órgãos independentes e colocados numa posição de

imparcialidade (cf. Art. 203.º CRP).

Nos termos da Constituição, incumbe aos tribunais a defesa dos direitos

e interesses legalmente previstos, reprimir a violação da legalidade democrática

e resolver litígios (Art. 202.º/2 CRP).

Page 29: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

29

O exercício da função jurisdicional traduz-se, em regra, no julgamento: a

decisão jurisdicional ou sentença resolve um caso concreto, definindo as

situações jurídicas em causa por forma vinculativa e, em princípio, definitiva (Art.

205.º/2 CRP).

Os tribunais são órgãos independentes, colocados numa posição de

imparcialidade, e cujos titulares não podem, em regra, ser sancionados pela

forma como exercem a sua atividade (Art’s. 203.º e 216.º/2 CRP).

Os tribunais são independentes porque não estão sujeitos a quaisquer

ordens, instruções ou diretivas de qualquer superior hierárquico quanto ao

exercício da atividade jurisdicional, salvo o acatamento pelos tribunais inferiores

das decisões proferidas, em via de recurso, pelos tribunais superiores (Art. 4º do

Estatuto dos Magistrados Judiciais e Art. 5.º/1 da Lei de Organização do Sistema

Judiciário aprovada pela L n.º 62/2013, de 28/8) .

Outro aspeto desta independência resulta da nomeação, colocação,

transferência e promoção dos juízes, bem como o exercício da ação disciplinar,

não competirem ao poder executivo, isto é, ao Governo ou aos órgãos dele

dependentes, mas a um órgão autónomo, o Conselho Superior da Magistratura.

Os tribunais são imparciais porque só lhes compete declarar o Direito em

cada caso, não lhes cabendo tutelar seja os fins da Administração seja os

interesses de qualquer das partes. Os tribunais devem manter a sua

equidistância relativamente às partes em litígio.

Contrariamente ao que por vezes se afirma o princípio da tutela pública

não significa que o Estado tenha o monopólio da atividade jurisdicional.

Os tribunais arbitrais, que assentam numa convenção de arbitragem celebrada

entre as partes de um litígio ou controvérsia (arbitragem voluntária) ou numa

determinação legal (arbitragem necessária), são hoje amplamente

reconhecidos. A arbitragem é um modo de resolução jurisdicional de litígios em

que a decisão é confiada a um particular. Em muitas ordens jurídicas, como a

portuguesa, as decisões dos árbitros têm tanto valor como as sentenças

proferidas em processo declarativo por um tribunal estadual.

Aos órgãos administrativos cabe realizar fins coletivos, mas estes órgãos

também devem respeitar os direitos e interesses juridicamente protegidos dos

cidadãos face à Administração (Art. 266.º CRP). Daí que a tutela da ordem

jurídica pelos órgãos administrativos apresente dois aspetos diferentes.

Page 30: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

30

Por um lado, a Administração quer fazer valer perante os particulares os

interesses coletivos ou pretende impor a estes a observância das leis,

regulamentos ou providências concretas.

Para o efeito, a Administração recorre até certo ponto à autotutela dos

seus direitos, i.e., exerce-os pelos seus próprios meios e coercivamente sem ter

de recorrer previamente aos tribunais.

Por outro lado, pode falar-se numa tutela ou garantia administrativa dos

direitos do administrado face à própria Administração.

O administrado há de poder defender-se perante os atos administrativos

que violem a ordem jurídica.

Há garantias graciosas ou administrativas dos direitos dos administrados

que permitem impugnar atos administrativos através de reclamação para o órgão

que praticou o ato ou de recurso hierárquico para a entidade hierarquicamente

superior.

Se estes meios falharem ou, independentemente destes meios, se o

recurso hierárquico não for necessário, há as garantias contenciosas, isto é, a

ação administrativa, interposta no tribunal competente, para a impugnação de

todas as decisões que, no exercício de poderes jurídico-administrativos, visem

produzir efeitos jurídicos externos numa situação individual e concreta (Art.

51.º/1 C. Proc. Trib. Ad.). Mas trata-se então de uma tutela jurisdicional e já não

administrativa (Art. 268.º/4 CRP). Mas trata-se então de uma tutela jurisdicional

e já não administrativa (Art. 268.º/4 CRP).

A coercibilidade como uma das notas formais e materiais da ordem jurídica estadual

Voltemos então à questão de saber se a coercibilidade é uma

característica da ordem jurídica estadual considerada no seu conjunto.

Mais adiante procuraremos definir o Direito. Por agora interessa sublinhar

que o Direito é uma realidade complexa e multifacetada que é dificilmente

apreensível através de uma definição.

Vimos que nas modernas sociedades estaduais o Direito carece, para

realizar as suas funções, de um sistema organizado de sanções suscetíveis de

realização coativa.

Page 31: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

31

Verificámos também que a tutela da ordem jurídica estadual é realizada

principalmente por órgãos públicos e que, em regra, estes órgãos detêm um

monopólio da coerção material.

Portanto, a coercibilidade é um dos aspetos característicos do Direito nas

sociedades estaduais.

É uma nota formal, na medida em que a coercibilidade é algo de exterior

às regras e aos princípios jurídicos, algo de estranho ao seu conteúdo.

Mas a coercibilidade também contribui para delimitar materialmente a

ordem jurídica. Frequentemente, a opção de legislar em certa matéria é

influenciada pela necessidade garantir a observância de certa regra de conduta

social através da suscetibilidade de aplicação coativa de sanções.

Outras vezes, a decisão de não legislar em certa matéria é influenciada

pela consideração de que a inobservância de eventuais comandos legislativos

não poderá ser sancionada coativamente.

Noutros casos, dota-se de coercibilidade regras ou complexos normativos

jurídicos não-estaduais, ou mesmo extrajurídicos, por exemplo morais, mediante

uma receção pela ordem jurídica estadual.

Em suma, surge-nos como um dos aspetos característicos da ordem

jurídica estadual o ter ao seu dispor os meios de coerção material do poder

político e a inclusão de importantes complexos normativos garantidos pela

suscetibilidade de realização coativa de sanções.

Mas é apenas uma das facetas. Tomá-la como característica decisiva

seria deformar o Direito e reduzi-lo apenas à dimensão de uma ordem que

exprime o poder de injunção do poder político.

Isto é importante para a questão da validade do Direito.

Poderá a validade da ordem jurídica estadual assentar na coercibilidade?

Antes de respondermos a esta questão cabe referir alguns casos

excecionais em que é lícito aos particulares defenderem direitos, próprios ou de

outrem, mediante a utilização de força física.

Page 32: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

32

à manifestações atuais de autotutela (repor os nossos próprios direitos sem

recorrer ao tribunal) privada:

à Legitima defesa;

à Direito de resistência;

à Estado de necessidade;

à Ação direta.

Manifestações atuais de autotutela privada

Em princípio, o poder político detém o monopólio da coerção material.

O Art. 1.º CPC determina que a “ninguém é lícito o recurso à força com o

fim de realizar ou assegurar o próprio direito, salvo nos casos e dentro dos limites

declarados na lei.” (princípio do Estado Moderno).

Este preceito admite que a lei autorize formas de autotutela.

Além da ampla autotutela de que goza a Administração, há casos

excecionais em que os particulares podem atuar coercivamente a fim de

defenderem os seus direitos ou os direitos de outrem.

è legítima defesa, prevista no Art. 337.º CC e nos Art’s. 32.º e 33.º CP:

A legitima defesa é a imposição da ordem natural. Se alguém é atacado

por outrem, em lugar erróneo não é concebível que lhe seja proibido reagir ao

agressor, com a consideração de que só o Estado pode usar a força para impor

o Direito.

Segundo o n.º 1 do Art. 337.º “Considera-se justificado o ato destinado a

afastar qualquer agressão atual e contrária à lei contra a pessoa ou património

do agente ou de terceiro, desde que não seja possível fazê-lo pelos meios

normais e o prejuízo causado pelo ato não seja manifestamente superior ao que

pode resultar da agressão.”

Segundo o Art. 32.º CP “Constitui legítima defesa o facto praticado como

meio necessário para repelir a agressão atual e ilícita de interesses juridicamente

protegidos do agente ou de terceiro”.

Page 33: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

33

São pressupostos da legítima defesa civil:

à ofensa de um direito pessoal ou patrimonial próprio ou alheio – pressupõe

uma conduta voluntária e ilícita (ativa ou omissiva). MENEZES CORDEIRO

entende que a agressão também pode visar valores jurídicos que não deem

lugar a direitos subjetivos;

à a atualidade – agressão em curso de execução ou iminente;

à a intenção de defesa ou animus defendendi;

à a necessidade – a impossibilidade de recorrer à tutela pública ou a um meio

privado que evite a agressão (por exemplo, fechar uma porta ou chamar

familiares ou amigos);

à a adequação ou proporcionalidade (é controverso).

Este último pressuposto significa o seguinte: o meio tem de ser idóneo e

não pode ser manifestamente desproporcionado ao bem jurídico defendido: por

exemplo, um guarda não pode matar a tiro uma criança que furte laranjas num

pomar; uma pessoa não pode anavalhar mortalmente outra que a injurie.

Caso contrário, há excesso de legítima defesa. O ato praticado em

excesso de legítima defesa só é justificado se for devido a perturbação ou medo

não culposo do agente (art. 337.º/2 CC). É controverso se neste caso nos

encontramos ainda perante uma causa de justificação da ilicitude, ou se se trata

apenas de uma causa de exclusão da culpa.

A legítima defesa é uma causa de justificação civil e criminal. Quer dizer,

uma conduta que, em princípio, geraria responsabilidade civil ou criminal, é

considerada justificada e, portanto, lícita.

Se uma pessoa agir na suposição errónea de se verificarem os

pressupostos que justificam a legítima defesa, é obrigado a indemnizar o

prejuízo causado, salvo se o erro for desculpável (Art. 338.º CC).

Podemos em conclusão dizer que a defesa é legítima se:

à há agressão ilegal;

à a agressão está em execução ou eminente;

à é contra a pessoa ou património do agente ou de terceiros;

à é impossível recorrer à força pública;

Page 34: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

34

à há necessidade/racionalidade na defesa.

è direito de resistência (passivo, resistir a algo que viola os direitos. Não

acatar uma ordem):

Encontra-se consagrado no Art. 21.º CRP: “Todos têm o direito de resistir

a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir

pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade

pública.”

O que constitui uma manifestação de autotutela privada é o direito de

repelir pela força qualquer agressão. Trata-se de uma resistência defensiva que

tanto pode ser oposta a particulares como a agentes de autoridade pública. Aqui

parece encontrar-se uma manifestação da legítima defesa. O seu exercício está

sujeito a critérios de racionalidade ou de proporcionalidade.

è estado de necessidade. Encontra-se previsto no Art. 339.º CC e nos

Art’s. 34.º e 35.º CP:

Determina o n.º 1 do Art. 339.º CC que “é lícita a ação daquele que destruir

ou danificar coisa alheia com o fim de remover o perigo atual de um dano

manifestamente superior, quer do agente, quer de terceiro.”

Por exemplo, para combater um incêndio que lavra no seu prédio, A

necessita de entrar no prédio de B. O incêndio coloca vidas em risco. A pode

licitamente entrar no prédio de B, mesmo sem a sua autorização deste ao abrigo

do estado de necessidade.

Pressupostos do estado de necessidade civil são:

à um perigo atual de um dano (patrimonial ou pessoal), para o agente ou para

um terceiro (o dano pode estar em curso ou ser iminente);

à dano esse que seja manifestamente superior ao dano causado pelo agente;

à necessidade: a atuação do agente deve ser objetivamente adequada,

designadamente em virtude da impossibilidade de recorrer em tempo útil à

autoridade pública.

A diferença relativamente à legítima defesa reside em que o perigo não

resulta de uma agressão ilícita por parte do titular dos interesses sacrificados; O

Page 35: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

35

estado de necessidade não deriva de nenhum agente, é algo exterior como o

fogo ou uma inundação e a legitima defesa envolve duas pessoas.

Em Direito Civil tratar-se-á de uma causa de justificação de conduta ilícita

(destruição ou dano de coisa alheia)? Cp. Art. 339.º/2/2.ª parte CC: mesmo que

o perigo não seja provocado por culpa do autor da destruição ou do dano o

tribunal pode fixar uma indemnização equitativa e condenar nela não só o

agente, como aqueles que tiraram proveito do ato ou contribuíram para o estado

de necessidade. Tratar-se-á só de uma causa de exclusão ou atenuação da

culpa?

MENEZES CORDEIRO entende que se trata de uma causa de justificação

e que neste último caso há uma imputação de danos por atos lícitos (porque

justificados).

è ação direta (ativa):

Segundo o Art. 336.º/1 CC “É lícito o recurso à força com o fim de realizar

ou assegurar o próprio direito, quando a ação direta for indispensável, pela

impossibilidade de recorrer em tempo útil aos meios coercivos normais, para

evitar a inutilização prática desse direito, contanto que o agente não exceda o

que for necessário para evitar o prejuízo.”

Concebida como um tipo de maior amplitude de legitima defesa ou de

estado de necessidade. Mesmo hipóteses que não sejam abrangidas por

aqueles, podem encontrar ainda justificação na ação direta.

A ação direta pode dirigir-se contra coisas ou contra pessoas. Nos termos

do Art. 336.º/2 CC, “A ação direta pode consistir na apropriação, destruição ou

deterioração de uma coisa, na eliminação da resistência irregularmente oposta

ao exercício do direito, ou noutro ato análogo.”

São pressupostos da ação direta:

à a existência de um direito próprio (ou mais amplamente de uma posição

jurídica ativa atuável jurisdicionalmente);

à o risco de inutilização prática da posição jurídica ativa;

à a necessidade – impossibilidade de recorrer em tempo útil à tutela pública;

à adequação – o meio não pode exceder o necessário para evitar um prejuízo;

Page 36: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

36

à superioridade dos interesses que o agente visa realizar ou assegurar

relativamente aos interesses sacrificados (Art. 336.º/3 CC).

É uma causa de justificação da ilicitude.

Penso que a ação direta se distingue da legítima defesa e do estado de

necessidade por ter uma função diferente (a ação direta pretende assegurar um

direito).

Pode haver áreas de sobreposição dos respetivos âmbitos de aplicação.

O agente será beneficiado pela causa de justificação que lhe for mais favorável.

À semelhança do que se verifica com a legítima defesa, se o titular do

direito agir na suposição errónea de se verificarem os pressupostos da ação

direta, é obrigado a indemnizar o prejuízo causado, salvo se o erro for

desculpável (Art. 338.º CC).

Também parece de aplicar analogicamente o regime do excesso de

legitima defesa ao excesso desculpável de ação direta.

Coercibilidade, validade e efetividade

Foi atrás assinalado que a coercibilidade é uma das notas relevantes para

caracterizar a ordem jurídica estadual.

A validade da ordem jurídica estadual não deve ser baseada na

coercibilidade, mas na sua idoneidade para a institucionalização da sociedade,

nos fins que lhe cabe prosseguir e no reconhecimento social que decorre da

aptidão do seu conteúdo e dos seus procedimentos – perante a consciência dos

sujeitos jurídicos – para a realização destes fins.

Distinta da questão da validade de uma ordem jurídica globalmente

considerada é a da validade das suas regras singularmente consideradas.

O critério da validade de cada uma das regras do sistema também não

pode ser a coercibilidade. Não só porque nem todas as regras são dotadas de

coercibilidade, mas também porque é a coercibilidade que pressupõe a validade

e não o contrário.

Uma norma que não seja válida não deve, em caso de violação,

desencadear a aplicação de uma sanção nem a sua realização coativa.

A validade da regra jurídica tem que ver com aspetos formais do processo

de criação jurídica e com exigências materiais, relativas ao seu conteúdo,

Page 37: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

37

colocadas fundamentalmente por normas de escalão mais elevado e por

princípios constitucionais. Por conseguinte, também se liga à questão dos

valores e será retomada no capítulo seguinte.

Em suma, o critério da juridicidade, da validade normativa, não se

reconduz ao critério da coercibilidade.

E quanto às relações entre coercibilidade e efetividade?

O conceito de efetividade abrange quer o facto de a regra ser aplicada

(como critério de decisão) pelos órgãos de realização do Direito quer o facto de

ser normalmente observada pela generalidade dos destinatários da regra (como

critério de conduta).

Para distinguir estes dois aspetos da efetividade podemos falar de

aplicação do Direito pelos órgãos competentes e de observância do Direito

(KELSEN).

Para que uma regra seja normalmente observada pode contribuir, em

maior ou menor grau, o receio da realização coativa de uma sanção. Portanto, o

poder, e a coercibilidade por que se exprime, é uma das bases reais da

efetividade da norma.

Mas seria um erro supor que é a única base ou a base principal.

Ex: Numa sociedade democrática não se concebe que o Direito seja

imposto à sociedade pela força. A autoridade do Direito repousa sobre a

convicção daqueles a que se dirige de que é necessário à vida em sociedade,

de que prossegue fins da sociedade e dos seus membros e de que o seu

conteúdo é apto para a realização destes fins.

Isto liga-se à legitimidade do poder.

Numa ordem constitucional aceite por todos ou pela maior parte dos

membros da sociedade, são os órgãos legislativos do Estado que se encontram

na melhor posição para identificar os fins que devem ser prosseguidos e para

escolher os meios mais adequados à sua prossecução. Portanto, as regras

emanadas destes órgãos apresentam-se perante a consciência da generalidade

dos membros da sociedade, incluindo aqueles que pessoalmente delas

discordam, como merecedoras de observância.

A base principal da observância do Direito é, portanto, o reconhecimento

social do Direito.

Importa ainda referir as relações entre efetividade e validade do Direito.

Page 38: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

38

Já tive ocasião de sublinhar que a vigência de uma regra não depende

necessariamente da sua normal observância, porque a normatividade não se

reconduz à normalidade. A inefetividade não atinge a vigência.

Mas sublinhei também que a ordem normativa da sociedade tem de

assentar num mínimo de efetividade das regras e princípios de conduta que a

integram, considerados no seu conjunto.

Um complexo normativo que não seja predominantemente observado e

cujas regras não sejam geralmente aplicadas pelas instituições jurisdicionais não

ordena a sociedade, não integra a ordem social, é um mero modelo ideal.

CAP. IV - DIREITO E VALORES

O Direito como uma ordem dotada de “sentido”

A ordem pressupõe critérios racionalmente apreensíveis, a ordem tem de

se fundar na razão.

A ordem jurídica assenta em juízos de valor. Esta conduta é de preferir

aquela. Entre as partes de um litígio a posição de uma das partes deve

prevalecer.

A generalização de juízos de valor leva ao conceito mais abstrato de

“valor”, representação cultural do que é valioso, estimado, prezado. Os valores

informam os critérios para resolver conflitos de interesses, para determinar quais

são os interesses mais valiosos.

A estabilidade e institucionalização das relações sociais que caracterizam

uma sociedade exige, no plano cultural, que pelo menos certas normas e

instituições exprimam valores assumidos pelos seus membros com um relativo

consenso.

O Direito surge assim caracterizado por uma nota material, teleológica, de

ordem ao serviço de certos valores, como uma ordem dotada de um “sentido”.

O Direito como ordem normativa recebe ou pode receber o seu conteúdo

valorativo da política, da moral e da religião.

Como valores do Direito, tal como o conhecemos no nosso sistema

jurídico e em sistemas jurídicos semelhantes, podemos apontar a paz, a certeza

e previsibilidade jurídicas, a dignidade da pessoa humana, a igualdade, a

Page 39: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

39

liberdade, a adequação, o equilíbrio e o bem-estar económico, social, cultural e

ambiental.

A Constituição é, entre outros aspetos, a sede dos valores jurídicos

básicos acolhidos na comunidade política. Por conseguinte, é na lei

constitucional que em primeira linha devemos procurar os valores da ordem

jurídica.

Os valores da ordem jurídica são valores socialmente reconhecidos.

Se o sistema jurídico no seu conjunto é visto como servindo estes valores

é, em princípio, encarado como uma ordem de justiça.

Isto independentemente da questão de saber se as todas suas leis,

singularmente consideradas, são justas.

A justiça

A ideia de justiça surge como ideia unificadora destes valores, como

exprimindo a intencionalidade própria da ordem jurídica, o seu “sentido”.

Já os romanos definiam o Direito como a arte do bom e do justo (jus est

ars boni et aequi).

Quanto às relações entre Direito e justiça, deparamos com três conceções

fundamentais: a da escola de Direito Natural, ou jusnaturalismo, a da escola

histórica, ou historicismo, e a do juspositivismo.

è Jusnaturalismo, historicismo e juspositivismo

Para a escola de Direito Natural o Direito/ jusnaturalismo é a essência de

uma ordem natural da sociedade.

Há uma ligação essencial entre Direito e moral, o Direito é necessariamente

moral, não há apenas uma área de coincidência. A ideia de “Direito” integra a

realização de certos valores morais.

É Santo Agostinho quem afirma: “uma lei injusta não é de modo algum lei”.

Mas o jusnaturalismo não defende a desobediência a todas as leis injustas.

A lei injusta, embora não obrigue em consciência, só pode ser desobedecida

se daí não resultar um mal maior.

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Alguns admitem que nem todos os preceitos legais estabelecem deveres

morais. Concede-se que há setores normativos mais ou menos vastos que são

moralmente neutros (OLIVEIRA ASCENSÃO). Mas todas as leis têm de ser

moralmente permitidas, válidas.

A escola de Direito natural remonta aos pensadores gregos (Platão,

Aristóteles) e romanos (Cícero) e teve um dos seus momentos mais altos na

filosofia cristã medieval de S. Tomás de Aquino.

Esta conceção de Direito Natural é confrontada com objeções de diversa

ordem.

Por certo que a existência de uma ordem normativa é elemento

constitutivo de uma sociedade. Algumas normas são tradicionalmente

observadas e parecem essenciais à vida em sociedade tal como a conhecemos.

Mas é questionável o conhecimento de quaisquer normas universais, que

tenham vigorado em todas as sociedades e em todos os tempos.

Mesmo que pudéssemos determinar que certas normas foram

consideradas vinculativas em todas as sociedades este conhecimento permitiria

apenas fazer um juízo descritivo. Deste juízo descritivo não se pode deduzir a

validade destas normas.

Da circunstância de uma norma ser tradicionalmente observada não

decorre, por si só, que esta norma tenha uma pretensão de vigência

incondicional em todas as sociedades e em todos os tempos. Por exemplo, há

trezentos anos atrás a escravatura apresentar-se-ia como um instituto que tinha

existido em toda a história conhecida do homem. E, no entanto, hoje todos

aplaudimos a abolição da escravatura.

Em suma, esta conceção traz consigo o risco de uma confusão entre o

Direito que tradicionalmente vigora e o Direito que deve vigorar.

Também é assinalado que muitas das melhores realizações alcançadas

pelos seres humanos resultam de eles terem aprendido a superar a natureza –

por exemplo, sendo menos violentos do que naturalmente estão inclinados a ser.

Por outro lado, perante a incerteza sobre o conteúdo das leis naturais e

as suas decorrências no caso concreto esta escola leva a colocar o problema do

fundamento e da validade do Direito na dependência dos juízos subjetivos da

consciência de cada indivíduo. Critica-se por isso esta conceção pela

arbitrariedade dos resultados a que conduz.

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No desenvolvimento dado pelo racionalismo (GRÓCIO) e pelo iluminismo

(LOCKE), que ganhou influência com as revoluções francesa e norte-americana,

o Direito natural passa a ser um produto da razão humana, embora para alguns

tenha o seu fundamento último em Deus.

Este Direito Natural reconhece certos “direitos naturais” dos indivíduos,

que constituem limites à atividade do Estado, por exemplo, o direito à liberdade.

Esta conceção inspira as declarações de direitos, o primado da lei como

fonte do Direito e a codificação.

O jusracionalismo representa um avanço na história do pensamento

porquanto exprime uma atitude reflexiva face à lei, ao costume e ao poder. Esta

atitude favorece a indagação acerca dos valores, dos fins do Direito,

relacionando-se com uma conceção teleológica do mundo.

Também é de salientar a ideia de que certos direitos são inerentes ao ser

humano enquanto tal.

Contra as formulações jusnaturalistas anteriores, o racionalismo opõe que

só a razão humana pode reconhecer os fins e os valores da ordem social.

Contrariamente ao que pretende a conceção jusracionalista, porém, a

razão humana não pode construir em dado momento um sistema completo e

definitivo de organização social, com validade universal, independente do

circunstancialismo ambiente e da situação histórica.

O pensamento é sempre situado num contexto histórico.

Para a escola histórica do Direito/historicismo, o Direito resulta

historicamente, como produto orgânico e unitário, do espírito do povo, e das suas

faculdades ou virtudes interiores e latentes (SAVIGNY). O espírito do povo será

a sua consciência unitária.

Ao primado da razão, a que corresponde o primado da lei e a codificação,

opõe o historicismo o elemento carregado de emotividade do espírito do povo,

que se exprime essencialmente pelo costume.

À intemporalidade e a historicidade das construções jus racionalistas opõe

o historicismo um Direito que se revela nas criações históricas e varia com os

tempos e os lugares.

Esta escola tem razão quando sublinha a historicidade do Direito. Ela

também não escapa, todavia, à crítica.

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Primeiro, a escola histórica elimina da consideração histórico-jurídica o

conflito de interesses sociais e a decisão política. O Direito não é só o resultado

de um desenvolvimento “anónimo”, mas também de uma conformação criadora.

Segundo, a subserviência ao espírito do povo é adversa à crítica da

situação historicamente existente e favorece a sujeição ao estado de coisas

existente.

Enfim, a escola histórica ignora o fenómeno da influência cultural exercida

por certos sistemas jurídicos sobre outros e a multiplicidade das suas influências

recíprocas.

O positivismo em Direito desenvolve-se em vasta medida como uma

reação ao jusnaturalismo, tendo AUSTIN como o seu pioneiro.

O seu ponto de partida é o de que se deve evitar a confusão gerada pela

escola do Direito Natural traçando uma distinção precisa entre Direito e moral,

bem como entre a perspetiva do direito constituído – de iure constituto – e a do

direito a constituir – de iure condendo. Entre o que é Direito positivo e o que uma

pessoa acha que devia ser o Direito.

É também legado de AUSTIN a conceção da regra jurídica como

comando, como “método coercivo de controlo social”. É a conceção imperativista

da norma jurídica, segundo a qual só é norma jurídica a regra imperativa que for

efetivamente suscetível de aplicação coerciva

Para o positivismo sociológico a vigência da norma fundamenta-se na

suscetibilidade de realização coativa.

Posteriormente, o positivismo normativo, que teve na Teoria Pura do

Direito de KELSEN a sua formulação mais radical, flexibilizaria esta posição.

O positivismo normativo defende, por um lado, que para existir um

comando basta que a regra estatua uma sanção, não sendo necessária a

possibilidade de realizar coativamente a sanção.

Por outro lado, entende que a vigência da norma depende da sua

validade, e esta validade é aferida pela conformidade da norma com normas de

escalão superior, designadamente as normas constitucionais que regulam a

produção jurídica.

A distinção entre o Direito positivo e a política jurídica, isto é, a procura

das melhores soluções, contribuiu para o desenvolvimento da ciência jurídica,

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43

embora se tenda hoje a admitir que não há uma separação absoluta entre as

duas perspetivas.

Uma das principais críticas, se não a principal, que é dirigida ao

positivismo é a seguinte: é uma ilusão pensar que, em regra, a solução jurídica

do caso se obtém através de uma aplicação mecânica de uma regra jurídica.

Com muita frequência a solução jurídica do caso apresenta dificuldades e

o intérprete tem de fazer um trabalho criativo.

O caso extremo é o das lacunas, que surgem quando uma situação,

apesar de carecida de regulação jurídica, não é regulada por nenhuma norma

jurídica.

Mas também se verifica perante a utilização em normas jurídicas de conceitos

indeterminados e, em especial, com conceitos carecidos de preenchimento

valorativo, como o de boa fé e o de bons costumes.

A existência de lacunas e conceitos indeterminados permite ao juiz

trabalhar com os valores e decidir.

Se a ordem jurídica fosse apenas uma soma de normas restaria ao juiz

decidir discricionariamente, livremente, segundo as suas convicções pessoais.

Mas a ordem jurídica oferece outros critérios que orientam a solução do caso

(designadamente valores e princípios jurídicos gerais).

A crítica do conceito imperativista de norma jurídica como regra suscetível

de aplicação coerciva já foi feita anteriormente. O positivismo dá uma visão

deformada da ordem jurídica, que baseia na imposição forçada de deveres.

O fundamento da obrigatoriedade da norma não pode estar na coação

material. Se assim fosse poder-se-ia dizer que se um ladrão nos aponta uma

arma e exige o nosso dinheiro nós estaremos obrigados a entregar o dinheiro.

Isto não é correto: nós somos forçados a dar-lhe o dinheiro, apesar de não temos

o dever de fazê-lo.

O próprio AUSTIN explicitou este ponto, fazendo valer que nem todos os

comandos são Direito. Os comandos jurídicos teriam de se distinguir dos não-

jurídicos pela sua linhagem ou pedigree, isto é, pela legalidade da sua fonte.

O Direito é um comando formulado por um ente soberano. Isto conduz ao

positivismo voluntarista, que vê no Direito um conjunto de comandos ditados pelo

poder político.

Page 44: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

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Para o positivismo voluntarista o Direito teria o seu fundamento no poder

político. A questão da validade do Direito dilui-se na da legitimidade do poder.

Esta perspetiva tem o mérito de salientar que para a validade do Direito,

para o dever de obediência ao Direito, não releva apenas o seu conteúdo, mas

também a circunstância de ser emanado de órgãos de um poder legitimamente

constituído.

Mas esta perspetiva não é suficiente. Diz-nos pouco quanto à validade do

Direito não legislado, por exemplo o costume e a jurisprudência. E não pode

deixar de haver limites materiais à validade do Direito, por mais imprecisos e

controversos que possam ser, que têm de ser respeitados pelo poder político.

Por seu turno, fundamentar a vigência da norma apenas na sua

conformidade com normas de escalão superior, como defende o positivismo

normativo, leva-nos até à norma fundamental do sistema, que justifica todas as

normas que dele façam parte.

Para KELSEN esta norma fundamental seria uma norma pressuposta,

segundo a qual as normas devem ser criadas em conformidade com a primeira

Constituição histórica e com as normas constitucionais estabelecidas em

conformidade com ela. A primeira Constituição histórica é aquela cuja validade

não pode ser reconduzida a uma constituição anterior. Em última análise a

vigência desta primeira Constituição histórica é fundamentada na sua

efetividade.

Por esta via, em última instância, a validade do Direito é fundamentada

na ideia de efetividade-coercibilidade, o que se presta à crítica anteriormente

formulada.

Na realidade, o problema da validade do Direito nunca pode ser

inteiramente resolvido por uma lógica normativa. A cadeia de legitimação lógico-

normativa não pode ser interminável.

Tem de haver um fundamento último, assente ele na ordem natural, na

efetividade, na legitimidade do poder, no princípio democrático, na referência a

valores ou numa combinação de algumas destas ideias.

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Tendências atuais

As correntes atuais são menos antagónicas, mais ecléticas.

Podemos começar por assinalar alguns pontos de convergência:

à a ciência jurídica deve concentrar-se no sistema jurídico e não em

leis individualizadas;

à pelo menos para determinados efeitos é proveitoso considerar o

sistema jurídico como um sistema normativo;

à de uma forma ou doutra é possível formular princípios de Direito

positivo que auxiliam a interpretação e a integração de lacunas.

Quanto às correntes positivistas contemporâneas, são de salientar, a par

de fiéis seguidores do positivismo normativo de KELSEN, a escola analítica e

HART.

A escola analítica centra as suas atenções na estrutura do sistema

normativo e na lógica formal do raciocínio jurídico.

Por seu turno, HART critica a visão deformada que baseia o Direito no

conceito de coercibilidade, e salienta o conceito de obligation: nós sentimo-nos

vinculados ao Direito.

O Direito contém um sistema de regras primárias que impõem

vinculações. Este sistema define padrões que permitem valorar condutas. Os

membros de uma sociedade identificam-se com estes padrões de conduta.

Este sistema tem de ser complementado por regras secundárias. Estas

regras secundárias são de três tipos:

àPrimeiro, regras que definem a averiguação conclusiva das regras

primárias (regras de reconhecimento).

àSegundo, regras sobre a introdução, abolição e modificação das regras

primárias (regras de modificação).

àTerceiro, regras sobre a determinação conclusiva da violação das

normas primárias (regras de adjudicação).

Estas regras secundárias criam poderes e competências que são

conferidos tanto às autoridades públicas como a particulares (por exemplo, no

domínio contratual). São também estas regras que dão ao conjunto de regras o

caráter de um sistema.

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46

Llalalal

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47

Resumindo, o direito é muito mais do que um conjunto de normas que

ditam o que se pode ou não fazer. São necessárias normas sobre quem pode

fazer as normas à normas instrumentais.

Outras correntes sublinham a possibilidade de inferir princípios do sistema

de normas, o que, como foi assinalado, constituiu um ponto de convergência

com as modernas escolas jusnaturalistas.

Em todo o caso, pode dizer-se que as modernas correntes positivistas, ao

tentarem dar uma definição formal de Direito, expurgada de qualquer conteúdo

valorativo, não facultam uma perceção global do fenómeno jurídico.

O neojusnaturalismo vai conhecer grande impulso depois da 2.ª Guerra

Mundial. Isto é por vezes atribuído a uma reação à neutralidade valorativa do

formalismo positivista perante as ditaduras nacional-socialista e estalinista. Em

rigor, porém, o positivismo jurídico esteve associado à defesa do Estado de

direito democrático.

Será mais exato afirmar que, o neojusnaturalismo procurou conciliar

aspetos nucleares da Escola do Direito Natural com as conceções democráticas

que vingaram ou se consolidaram no Ocidente depois da 2.ª Guerra Mundial?

Estas escolas contemporâneas de Direito natural são percorridas por dois

principais vetores:

à a importância dos valores para o Direito e a necessidade, para o

apreender, de uma lógica dos valores ou axiologia;

à a ligação entre Direito e moral só é necessária ao nível do sistema

global: uma ordem jurídica pode conter leis particulares que são injustas ou

imorais, mas para ser uma ordem jurídica tem de satisfazer, no seu conjunto,

certas exigências morais (LON FULLER).

O Direito natural é concebido como um círculo muito restrito de princípios,

abandonando-se a pretensão de fundamentar uma ordem jurídica completa.

Para uns as leis injustas ainda são leis se estiverem integradas num

sistema que no seu conjunto não seja imoral. Já um sistema de regras

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manifestamente imoral não é um sistema jurídico. Por exemplo, os sistemas nazi

e estalinista.

Para outros esta perspetiva não é, todavia, suficiente face às leis que

sejam manifestamente injustas, embora se não possa dizer que o sistema seja

no seu conjunto manifestamente imoral. Por exemplo, perante as leis de

segregação racial.

As normas singulares não podem vigorar como jurídicas, quando não

satisfaçam exigências éticas mínimas.

É numa das variantes deste pensamento que se situa OLIVEIRA

ASCENSÃO na sua obra “O Direito. Introdução e Teoria Geral”, para quem se

pode fundamentar a validade objetiva de certas soluções na natureza das coisas.

Estas soluções estariam subtraídas à “subjetividade dos agentes socais” e,

assim, constituiriam um limite à arbitrariedade na definição das regras pelo

poder.

Com isto, não se afasta a divergência na ordem do conhecimento, que

não conseguirá evitar que aquilo que para um autor se apresenta como uma

exigência fundamental não o seja para outro. Mas reflexão humana terá como

ponto de referência um núcleo objetivo.

O Direito natural, enquanto conjunto de princípios impostos pela ordem

natural, integra necessariamente a ordem da sociedade. Representa uma ordem

imanente na sociedade, que corresponde a uma sociedade histórica, às

determinações reais que a caracterizam. Se o Direito natural é verdadeiro

Direito, nem todo o “Direito” vigente seria Direito positivo; não o seria se

contrariar a ordem natural.

Numa obra mais recente, OLIVEIRA ASCENSÃO desloca o acento desta

construção para a pessoa, no seu significado ontológico e, portanto, para a

natureza da pessoa. O Direito tem de ser visto como estando ao serviço da

essência e realização da pessoa. Salienta-se também o bem comum como

expressão do bem de todos. Esta perspetiva orienta a solução de questões

fundamentais da pessoa no ordenamento jurídico.

Esta conceção depara com as objeções atrás opostas à escola do Direito

natural.

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Assinalei as dúvidas que se colocam à existência de um “núcleo

permanente de Direito natural”.

Mesmo a admitir-se a existência de um núcleo constante de normas

jurídicas nas sociedades humanas conhecidas, tal constitui um facto empírico

que não pode constituir o fundamento de vigência destas normas.

E adianta pouco condicionar a validade do Direito, e até da ordem social,

à “essência” e à “estrutura natural”, se não pudermos ter um conhecimento

objetivo destas realidades.

Por certo que o Direito tem de tomar em consideração a realidade e é em

larga medida condicionado por fatores de natureza física, biológica, psicológica,

sociocultural e económica. Poderá falar-se a este respeito de uma “natureza das

coisas”.

Mas enquanto limite suprapositivo à validade da lei este entendimento tem

um alcance bastante limitado, porque o problema coloca-se geralmente quando

há mais de uma solução compatível com a estrutura da realidade.

Neste caso, é necessária uma decisão jurídica, que não encontra uma

fundamentação suficiente no apelo à “natureza” das coisas, da pessoa ou da

sociedade, porque exige sempre valorações.

Uma parte importante das correntes neojusnaturalistas, dá grande relevo

à conceção do Direito como sistema, à sua unidade e coerência. Estas correntes

entendem que o sistema se fundamenta em valores e princípios ético-jurídicos.

Alguns autores pretendem mesmo que estes valores e princípios ético-jurídicos

do sistema limitam o próprio legislador e condicionam a validade das leis

individualmente consideradas.

Para LARENZ não se pode separar inteiramente moral e Direito. Em

ambos se trata do agir “correto”. Os princípios ético-jurídicos são critérios

orientadores da normação jurídica que podem “justificar” decisões jurídicas.

DWORKIN, faz valer que uma separação rígida de Direito e moral nos

impediria de apreender o papel que critérios valorativos extra-jurídicos,

principalmente de índole moral, têm no julgamento de certos casos.

Page 50: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

50

A ordem jurídica é mais rica do que o sistema de regras primárias e

secundárias de HART. A par das regras há outros padrões jurídicos [standards]

que orientam o processo de decisão. Há princípios ético-jurídicos subjacentes

ao sistema que podem levar à modificação ou ab-rogação de uma regra.

Mesmo que o caso não seja inequivocamente resolvido por uma regra, o

juiz não tem a “discricionariedade legislativa” do legislador. Tem de atender a

esses princípios e às conceções morais dominantes na sua sociedade e não

proceder a uma ponderação livre de todo o conjunto de interesses sociais.

Segundo DWORKIN, o juiz tem de indagar os princípios éticos

subjacentes ao sistema, de encontrar a melhor justificação moral possível para

as regras vigentes. A coerência do Direito implica que cada uma das proposições

jurídicas são verdadeiras se estão em conformidade com os princípios ético-

jurídicos subjacentes ao sistema.

O reconhecimento dos Direitos fundamentais também se impõe ao Direito

objetivo como uma exigência moral.

Este pensamento deu um enorme contributo para a Filosofia e a Teoria

do Direito, designadamente quanto ao papel desempenhado pelos princípios

ético-jurídicos e ao reconhecimento dos direitos fundamentais.

Apreciação crítica da conceção de DWORKIN:

A existência de coerência dentro da ordem jurídica não implica a sua

dimensão moral. Por exemplo, o sistema jurídico nazi pode ter sido coerente,

sem ser moral. Para uma ordem jurídica ter uma dimensão moral é necessário

que assente num sistema moral objetivamente correto e racionalmente

defensável.

DWORKIN defende uma teoria moral baseada na dignidade da pessoa

humana e que a verdade dos juízos de valor poderá ser estabelecida pela sua

inserção num sistema de valores a que se chega mediante um processo

interpretativo baseado na coerência e na convicção.

Mas a existência da verdade moral e da moral objetiva é ponto

controverso.

Argumenta-se que a filosofia moral reflete os debates e divergências

culturais tão fielmente que as suas controvérsias são tão irresolúveis como os

Page 51: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

51

próprios debates políticos e morais. Acrescenta-se que os nossos juízos morais

não são coerentes, e que, portanto, não há uma ordem moral.

Argumenta-se ainda que as sociedades são por vezes muito complexas,

comportando diferentes subculturas com grandes divergências nas escalas de

valor, ou exprimindo compromissos entre diferentes conceções de sociedade.

Por esta razão, seria difícil ou mesmo impossível formular um sistema moral que

possa vincular todos os membros da sociedade.

Na escolha entre teoria morais e conceções valorativas há sempre um

elemento ideológico e uma decisão política, que não é uma decisão científica,

ou, pelo menos, não é uma decisão filosófica.

No universo anglo-saxónico este ceticismo moral (ou relativismo) é muito

poderoso.

Em sentido oposto ao relativismo, a ética cognotivista entende que, é

possível conhecer o conteúdo dos valores e que a decisão sobre os valores é

racional.

Contra o relativismo opõe COING que, por detrás da aparente divergência

de valores entre culturas pode haver um consenso mais vasto se abstrairmos de

diferenças extra-éticas, designadamente diferentes conceções da natureza.

Quanto às divergências entre grupos afirma também que há geralmente

um consenso maior sobre os valores básicos da convivência humana e certas

instituições fundamentais do que sobre ideais de vida ou valores objetivos da

cultura.

Com isto, não se eliminam as contradições valorativas entre teorias

morais. Mas estas contradições serão resolúveis mediante uma avaliação do

mérito destas teorias morais segundo critérios objetivos.

Este é o problema mais difícil e profundo da filosofia da moral (ou ética).

O seu estudo cabe principalmente à disciplina de Filosofia do Direito. Limito-me

a algumas breves reflexões pessoais.

Há por definição certos valores e certos padrões morais de conduta

comungados pela grande maioria dos membros de determinada sociedade sem

os quais a convivência seria inconcebível. Já sabemos que a institucionalização

destes valores e regras de conduta opera uma certa objetivação.

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52

Não anda longe o entendimento de autores com RAWLS, para quem uma

sociedade democrática, ao mesmo tempo que admite uma pluralidade de

“doutrinas abrangentes” religiosas, filosóficas e morais, pressupõe uma

“conceção política de justiça” partilhada por todos, uma base pública de

justificação que é geralmente aceite pelos cidadãos em questões políticas

fundamentais.

É certo que a correção ou justiça das conceções dominantes, fundadas

em certa medida em posições ideológicas e convicções políticas, pode ser

discutida e é suscetível de evolução.

Mas será a consciência social dos valores num dado momento histórico,

tendo em conta não só as maiorias circunstanciais, mas também o património

adquirido de valores e princípios fundamentais, o sentido da evolução verificada,

que poderá constituir um limite à validade das leis que manifestamente lhe sejam

contrárias?

A partir daqui não será inútil apreciar quais são estes valores e princípios

e será legítimo entendê-los à luz da ou das melhores teorias morais?

A justificação última do Direito não deve ser procurada na efetividade-

coercibilidade, mas na referência a determinados valores e procedimentos. Esta

referência liga-se, segundo um entendimento democrático, ao reconhecimento

social da pretensão de vigência do Direito.

Por um lado, o consenso relativo sobre os valores a realizar e a aptidão

do conteúdo do Direito para a sua realização perante a consciência dos

membros da sociedade.

Por outro lado, a formação das normas jurídicas segundo procedimentos

geralmente reconhecidos como idóneos para o efeito, designadamente os atos

normativos do poder político legitimado pelo princípio democrático.

Os valores a realizar pelo Direito são, em parte, éticos ou morais, porque

são dignos de serem prosseguidos por si, independentemente dos resultados a

que conduz a sua realização. Mas o Direito também está, e cada vez mais, ao

serviço de outros valores económicos, sociais, políticos, culturais e ecológicos.

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53

Enfim, as pretensões de universalizar conceções do Direito que são

baseadas na tradição e cultura ocidental têm de ser encaradas com alguma

reserva.

Ainda que tendencialmente se caminhe para uma universalização de

certos valores, há que reconhecer a existência de clivagens profundas entre as

diferentes famílias de Direitos.

A supremacia do Direito

A ordem jurídica é uma ordem de paz. O Direito traz consigo a paz e a

paz é um pressuposto para a revelação do Direito. Por toda a parte onde o Direito

se desenvolve, termina a luta violenta e adota-se uma solução pacífica em sua

substituição. Os processos jurisdicionais substituem a autotutela privada.

A existência de uma ordem social regida pelo Direito é, em si, um valor. A

consciência deste valor constitui uma motivação da observância dos deveres

jurídicos, mesmo aí onde as pessoas põem em causa a justiça da regra que

impõe o dever e ainda que não considerem provável a aplicação de uma sanção

em caso da sua violação.

A supremacia do Direito projeta-se tradicionalmente em dois planos: a

primazia do Direito sobre o poder e a igualdade perante a lei.

à a submissão do poder, da força, ao Direito à relações entre Direito e

Estado.

A supremacia do Direito significa, para o particular, a proteção perante

intromissões arbitrárias dos poderes públicos na sua esfera privada mas também

a defesa perante poderes sociais de facto.

à a igualdade perante a lei – cf. arts. 12.º/1 e 13.º/1 CRP.

A regra aplica-se a todas as situações da vida que sejam reconduzíveis à

sua previsão independentemente das pessoas que, por estarem implicadas

nessas situações, se tornem seus destinatários. O que interessa é a previsão da

norma e não quem é o destinatário.

Esta igualdade perante a lei tem decorrências quanto à formulação das

normas, à coerência do sistema e à harmonia de decisões.

Page 54: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

54

A norma deve ser suficientemente precisa e clara para que na sua

aplicação situações iguais sejam tratadas de igual forma.

O sistema não deve conter normas que exprimam valorações

contraditórias entre si, traduzindo-se em diferenças de tratamento injustificadas

Os tribunais devem ter em conta a conveniência de uma jurisprudência

uniforme: só assim as situações iguais serão tratadas de igual forma. Assim, o

art. 8.º/3 CC determina que “Nas decisões a proferir, o julgador terá em

consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter

uma interpretação e aplicação uniformes do Direito”.

Também o recurso à analogia, como primeiro processo de integração das

lacunas da lei – estabelecido no art. 10.º CC – é uma expressão desta igualdade

perante a lei: situações, que não sendo reguladas por uma norma jurídica, sejam

semelhantes às que são reguladas por uma norma legal, ficarão sujeitas a esta

norma.

Principais valores do Direito

Tradicionalmente aponta-se como valores próprios do Direito a justiça e a

segurança. Esta distinção entre justiça e segurança evoca duas perspetivas

diferentes sobre a aptidão do Direito para a realização das suas funções.

Numa perspetiva material esta aptidão depende do conteúdo das

soluções jurídicas, dizendo respeito à justiça.

Numa perspetiva formal, aprecia-se a aptidão do Direito para a realização

da sua função institucionalizadora independentemente do conteúdo das suas

soluções, antes atendendo, designadamente, à previsibilidade das soluções

para os seus destinatários e à certeza sobre a situação jurídica. Esta é a

perspetiva da segurança jurídica.

Vejamos os principais valores da ordem jurídica portuguesa.

Principiemos com os valores materiais que são aqueles que têm que ver

com o conteúdo das soluções jurídicas.

São referidos a justiça, a liberdade, a lealdade e confiança, a

solidariedade, o bem-estar económico, social, cultural e ambiental.

Page 55: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

55

A justiça surge-nos aqui numa terceira aceção: a de um dos valores

materiais do Direito.

Nesta aceção a justiça desdobra-se na proteção da dignidade da pessoa

humana, na igualdade, na responsabilidade, na adequação, no equilíbrio e na

proporcionalidade.

à Dignidade:

A dignidade da pessoa humana é um dos princípios fundamentais

enunciados no art. 1.º CRP e retomado no 13.º/1 CRP. Este princípio postula o

respeito recíproco de todos os seres humanos (DWORKIN), o que implica o

respeito dos seus direitos fundamentais.

à Igualdade:

A igualdade é uma decorrência do princípio da dignidade da pessoa

humana. A igualdade significa tratar igualmente o que é igual e desigualmente o

que é diferente, na medida da sua diferença.

A igualdade está na base de um princípio constitucional, consagrado no

Art. 13.º CRP. Este princípio tem um sentido negativo e um sentido positivo.

Sentido negativo do princípio da igualdade: proibição do arbítrio legislativo

ou de discriminação e privilégio, que se projeta na exigência de fundamento

material bastante ou suficiente para a diferença de tratamento.

A diferenciação deve ser consonante com o sistema constitucional: não

se podem criar situações de desigualdade à margem dos princípios e objetivos

constitucionais considerados no seu conjunto.

E deve ser justificada à luz das concretizações da ideia de Direito, da

consciência jurídica comunitária e da ordem dos valores jurídico-

constitucionalmente protegidos.

Sentido positivo do princípio da igualdade: a igualdade obriga à

diferenciação, ao tratamento desigual de situações desiguais ou

dissemelhantes.

O tratamento igual exige uma igualdade proporcional: tem de se atender

ao grau de igualdade ou semelhança. Não basta uma igualdade meramente

formal: há que obstar ao agravamento das desigualdades existentes e que

Page 56: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

56

atenuar as desigualdades existentes, o que pode exigir a introdução de

desigualdades corretivas.

A igualdade liga-se a diversas expressões da justiça que são designadas

por justiça comutativa, distributiva e redistributiva (as duas primeiras têm as suas

raízes em ARISTÓTELES).

à Justiça:

A justiça comutativa (ou sinalagmática) postula que não haja

desigualdades inaceitáveis nas relações que os homens estabelecem entre si.

A justiça comutativa é tradicionalmente invocada a propósito do Direito

das Obrigações, designadamente quanto ao princípio da interdependência das

prestações contratuais e quanto ao enriquecimento sem causa.

Também é relacionada com a responsabilidade. Aquele que ilícita e

culposamente violar direitos ou interesses juridicamente protegidos doutrem

deve ser obrigado a indemnizar o dano que causar.

Segundo a justiça distributiva, os bens económicos, sociais, culturais e

ambientais devem ser distribuídos por forma a que a cada um seja dado o que

merece. Atende-se ao mérito e às necessidades de cada um.

Para o efeito é necessário distinguir igualdade de oportunidades e

igualdade de resultado. Uma igualdade de resultado, i.e., de bens que são

atribuídos a diferentes pessoas, que correspondesse a uma desigualdade

quanto ao “investimento” fornecido sob o plano do esforço e da dedicação, não

será senão discriminação, desigualdade e injustiça. Deve é assegurar-se que,

tanto quanto possível, todos tenham as mesmas oportunidades.

A justiça distributiva também justifica, por exemplo, que os pobres tenham

mais apoio social que os que o não são.

No entanto, modernamente, tende a autonomizar-se uma justiça

redistributiva muito relacionada com o sentido positivo do princípio da igualdade

e com o valor solidariedade: os bens da sociedade não devem ficar distribuídos

por cidadãos, classes e regiões de modo demasiado assimétrico, justificando-

se, designadamente, medidas fiscais corretivas e incentivos para as zonas mais

pobres – ver arts. 2.º e 9.º CRP.

Também pode acrescentar-se uma justiça contributiva (na linha da “justiça

legal” delineada por S. TOMÁS DE AQUINO), que diz respeito à contribuição

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57

que é devida à comunidade por cada um dos seus membros para a realização

do bem comum.

Aqui vale um princípio de proporcionalidade: a contribuição deve ser

proporcional ao que cada um pode prestar.

Por exemplo, a justiça contributiva determina que aqueles que tenham

rendimentos mais elevados devam pagar mais impostos.

à Responsabilidade:

A responsabilidade também é uma expressão do dever de respeito

recíproco postulado pelo princípio da dignidade da pessoa humana. Exprime-se

em duas máximas.

Primeiro, neminem laedere (não prejudicar ninguém), i.e., cada um deve

atuar por forma a não lesar os direitos e interesses juridicamente protegidos dos

outros.

Segundo, sibi imputet (é imputável a si próprio) – cada um tem de

responder pelos atos que pratica.

A adequação exprime a coerência do meio em relação ao fim, razão, i.e.,

ato conceptual conforme ao que é, e lógica, i.e., o que é cogente para o

pensamento. Os meios utilizados pelo Direito devem ser os racionalmente mais

apropriados à realização dos fins da sociedade e dos seus membros.

à Equilíbrio:

O equilíbrio significa que na ponderação de valores e interesses de igual

valor se deve dar a máxima realização a cada um com o mínimo sacrifício para

os restantes. Assim, numa área jurídica dominada pelos interesses das partes,

como é o caso do Direito dos contratos obrigacionais, a justiça postula que se

procure satisfazer na mesma medida os interesses legítimos de cada uma das

partes.

à Proporcionalidade:

A proporcionalidade exige que os meios não devam ser excessivos

relativamente aos fins a atingir.

Page 58: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

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à Liberdade:

Por força do valor liberdade tem de se respeitar, na medida do possível,

que cada ser humano decida sobra a sua vida (autodeterminação individual). No

plano coletivo, cada sociedade deve poder decidir sobre o seu destino, cada

Estado deve poder decidir sobre os seus fins (autodeterminação coletiva).

A liberdade postula a democracia. A democracia é a forma de governo

que se baseia em instituições políticas democráticas. As instituições políticas são

democráticas quando, simultaneamente, asseguram que os titulares do poder

são eleitos por sufrágio universal com base no princípio da maioria e respeitam

a dignidade da pessoa humana, designada-mente os direitos fundamentais de

todos os seres humanos.

Na formulação de LINCOLN “a democracia é o poder do povo, pelo povo

e para o povo”.

Portanto a democracia não se baseia apenas no princípio da maioria. Se

a maioria decidir abolir o princípio da maioria ou aprovar leis que não respeitem

a dignidade da pessoa humana o Estado democrático transforma-se num Estado

totalitário.

Este valor fundamenta desde logo o direito fundamental à liberdade

enunciado no art. 27.º CRP, segundo o qual ninguém pode ser total ou

parcialmente privado da liberdade a não ser em consequência de sentença

judicial condenatória pela prática de ato punido pela lei com pena de prisão ou

de aplicação judicial de medida de segurança.

Também as liberdades de expressão e informação, a liberdade de

consciência, de religião e de culto, a liberdade de associação, a liberdade de

mercado e a liberdade contratual, entre outras.

A própria titularidade de direitos subjetivos é uma expressão deste valor.

Daí que os regimes totalitários (como se verificou, designadamente, com

o regime nazi) tendam a opor-se ou a desvalorizar o conceito de direito subjetivo.

Segundo uma conceção liberal pode dizer-se que cada um deve ter a

máxima liberdade desde que não colida com a liberdade dos outros.

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à Subsidiariedade:

Este valor tem ainda como corolário o princípio da subsidiariedade que,

neste contexto, postula que só se justifique a regulação pelo Direito daqueles

aspetos da vida social que, pela sua essencialidade ou especificidade, reclamam

uma intervenção de órgãos públicos (ou de instituições privadas dotadas de

poderes de autoridade, como o são os tribunais arbitrais).

Assim, o Direito não deverá regular aspetos da vida social e da vida

privada que não careçam de regulação normativa nem aqueles em que a

regulação pode ser suficientemente assegurada por outras ordens ou complexos

normativos (espaço livre de Direito).

à Lealdade e confiança:

A lealdade e confiança são outros valores do Direito. No tráfico jurídico,

eles exigem um certa consideração dos interesses legítimos e das expectativas

objetivamente fundadas das outras pessoas; por exemplo, a boa fé na

celebração e execução dos contratos.

O valor lealdade está subjacente à imposição de um dever de lealdade a

pessoas que se encontram em certas posições, por exemplo, ao trabalhador

relativamente à entidade patronal.

A proteção da confiança encontra expressão num princípio da confiança

segundo o qual aquele que cria a aparência de uma conduta jurídica ou de uma

posição jurídica deve considerar-se vinculado como se tal conduta ou posição

existisse (alcance controverso na ordem jurídica portuguesa).

A máxima pacta sunt servanda, i.e., de que os acordos livremente

celebrados devem ser cumpridos, encontra o seu fundamento na liberdade, uma

vez que se trata de vínculos contraídos por meio de um ato autónomo, e na

confiança, que impõe a tutela jurídica das expectativas fundadas na promessa

de uma prestação.

Na base da cooperação entre as pessoas em sociedade não podem estar

só interesses. Esta cooperação também assenta no valor solidariedade, que o

Direito até certo ponto realiza, designadamente em ligação com as já referidas

justiças redistributiva e contributiva.

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à Bem-estar económico, social, cultural e ambiental:

Os valores do bem-estar económico, social, cultural e ambiental também

se ligam à justiça distributiva e redistributiva.

Para a realização destes valores o poder político adota políticas

legislativas económicas, sociais, culturais e ambientais, que são prosseguidas

nos mais diversos ramos de Direito.

Passemos agora aos valores formais, isto é, aqueles que não dizem

respeito ao conteúdo das regras, mas a aspetos extrínsecos da aptidão do

Direito para realizar a sua função ordenadora.

A expressão segurança jurídica tem servido para designar o conjunto

destes valores formais.

Já assinalámos que, em si, a ordem e a paz são valores que justificam a

supremacia do Direito nas relações entre os seres humanos.

Outros valores formais são a segurança, agora em aceção mais estrita, a

estabilidade e certeza do Direito objetivo, a previsibilidade das decisões

jurisdicionais e a certeza e continuidade das situações jurídicas.

à Segurança:

A segurança postula a exclusão da arbitrariedade, que os problemas

jurídicos sejam resolvidos com base em regras jurídicas ou, na sua falta, com

base em critérios objetivos.

A segurança exprime-se ainda na contrafacticidade e continuidade do

Direito, que permitem contar com o que está juridicamente estabelecido. Os

seres humanos podem construir a sua vida com a proteção desta ordem.

à Estabilidade:

A estabilidade do Direito exige que as intervenções legislativas sejam

prudentes e bem refletidas.

A modificação do Direito representa normalmente uma perturbação da

ordem existente.

Constantes alterações legislativas na mesma matéria comprometem a

realização da função institucionalizadora do Direito e trazem grandes

Page 61: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

61

desvantagens aos particulares, designadamente no domínio das relações

económicas, porque não lhes permitem fazer planos.

A certeza do Direito objetivo é servida pela formulação de proposições

jurídicas precisas e de fácil interpretação, como já se sublinhou, e também pela

primazia da lei entre as fontes do Direito.

à Previsibilidade:

A previsibilidade das decisões jurisdicionais depende muito da certeza do

Direito objetivo. Aí onde os tribunais tiverem de resolver problemas de

interpretação ou de integrar lacunas as decisões são inevitavelmente menos

previsíveis. Na determinação dos critérios de interpretação e dos processos de

integração também se tem de ter em conta este valor.

à Certeza e continuidade:

A certeza e continuidade das situações jurídicas é servida pela certeza e

estabilidade do Direito objetivo e pela previsibilidade das decisões jurisdicionais

.

As pessoas devem poder conhecer com facilidade quais as situações

jurídicas constituídas e que devem poder contar com a persistência destas

situações quando não existam razões suficientemente ponderosas para a sua

modificação ou extinção.

A continuidade das situações jurídicas, em ligação com a certeza do

Direito objetivo, justifica certas soluções sobre a aplicação da lei no tempo,

designadamente o princípio da continuidade das situações constituídas ao

abrigo da lei antiga.

A certeza das situações jurídicas é ainda servida pelas exigências de

forma de certos negócios jurídicos e pelos procedimentos de publicidade,

designadamente os registos.

Enfim a certeza das situações jurídicas, em ligação com a supremacia do

Direito, justifica o caráter em princípio definitivo das decisões judiciais (o efeito

de caso julgado que será estudado em Direito Processual).

Page 62: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

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Os valores podem entrar em conflito e têm de ser ponderados. Em

particular, os valores formais têm de ser conciliados com os valores materiais.

É necessário conciliar a certeza do Direito objetivo e a previsibilidade das

decisões judiciais com a chamada justiça do caso concreto à solução do caso

por vias não normativas.

A liberdade pode ser vista em conflito com a justiça e com a segurança

jurídica. Por exemplo, o problema da proteção da parte tipicamente mais fraca.

Tende-se a admitir a superioridade da justiça e do bem estar sobre os

valores formais. Mas, em geral, é necessário sopesar os valores materiais e os

valores formais.

Validade e vigência do Direito

Seguindo a terminologia mais usada poderemos distinguir validade formal

e de validade material.

A validade depende de condições formais, designadamente, no caso da

lei, a legitimidade do órgão legislativo e a regularidade do processo legislativo –

geralmente definidas por regras constitucionais.

Mas a coerência do sistema jurídico postula que a validade das normas

depende não só de terem sido criadas com observância das normas sobre

produção jurídica, mas também da conformidade do seu conteúdo com o

conteúdo das regras e princípios de escalão superior.

E a questão da legitimidade do poder não deve ser dissociada da aptidão

do conteúdo do Direito perante a consciência dos sujeitos jurídicos para a

realização dos fins da sociedade.

Pode conceber-se que haja uma larga divergência sobre a justiça de

certas leis. Mas dificilmente se concebe que, no seu conjunto, o Direito criado e

aplicado por um poder legítimo não seja visto com apto para a realização dos

fins da sociedade.

Por conseguinte a validade também depende de condições materiais,

relativas ao conteúdo jurídico da regra, definidas pelo conteúdo de regras e

princípios de hierarquia de superior (designadamente regras e princípios

constitucionais).

Page 63: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

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Poderá haver limites suprapositivos?

É o fulcro da discussão que nós conhecemos. O legislador do CC

determinou expressamente que o dever de obediência à lei não pode ser

afastado com fundamento na injustiça ou na imoralidade da regra legal (Art. 8.º/2

CC).

Quem entende que existem limites suprapositivos à validade da lei

entende que quaisquer declarações da lei a este respeito estão submetidas a

estes mesmos limites.

Na opinião do regente, há limites materiais de validade suprapositivos.

Estes limites resultam, por um lado, para o Direito estadual, paraestadual

e infra estadual, da tutela de um núcleo irredutível de direitos fundamentais dos

seres humanos assegurada pelo Direito Internacional Público.

Por outro lado, há limites que podem decorrer de valores e princípios

estruturantes de uma determinada sociedade estadual, subjacentes ao sistema

jurídico e socialmente reconhecidos. De acordo com anteriormente exposto, este

acervo de valores e princípios adquiridos não deve ser entendido estaticamente,

mas à luz do sentido da evolução verificada na sociedade.

Estes limites podem resultar da moral, quanto aos os setores da moral

que reúnam consenso social. O Direito não pode impor condutas imorais.

Uma particular teoria moral, subscrita por uma pessoa ou por um setor

social, só pode justificar o desrespeito do Direito vigente internamente, no plano

da consciência da pessoa ou pessoas que a subscrevem, já não pode justificar

socialmente essa atitude.

Indo mais longe, parece de admitir que há valores e princípios adquiridos

pela humanidade, à luz da consciência dominante, que constituem limites de

validade suprapositivos mesmo que ainda não tenham dado corpo a proposições

jurídicas de Direito Internacional

Perante uma Constituição como a portuguesa, que adota um sistema de

receção automática do Direito Internacional Público comum (art. 8.º/1),

“constitucionaliza” a Declaração Universal dos Direitos do Homem (art. 16.º/2),

e aspira a ser a sede dos valores básicos da comunidade, os limites atrás

referidos encontram-se, em princípio, “interiorizados” pelo próprio sistema,

Page 64: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

64

tornando-se assim condição jurídico-positiva de constitucionalidade das normas

do sistema.

Mas o problema dos limites suprapositivos pode apesar de tudo colocar-

se em relação ao próprio poder constituinte.

à Outro esclarecimento terminológico - validade e vigência:

Para OLIVEIRA ASCENSÃO a lei ou a ordem que violem a Direito Natural

são mera aparência de Direito fundada na força. No entanto OLIVEIRA

ASCENSÃO exprime esta ideia dizendo que esta lei ou ordem ainda são “Direito”

vigente, mas não Direito positivo.

BAPTISTA MACHADO identifica vigência com validade. É certo que só

vincula o Direito válido. Mas reconduzir-se-á a vigência à validade? A resposta

é negativa. A validade é apenas um dos pressupostos da vigência.

São quatro os pressupostos da vigência:

à A regra tem de existir, isto é, o seu processo de formação tem de estar

concluído;

à A regra tem de ser válida;

à A regra tem de ser eficaz - fontes do Direito: requisitos de eficácia da

lei;

à Tratar-se de Direito positivo em vigor (quarto pressuposto de índole

temporal).

CAP. V - DELIMITAÇÃO DO DIREITO FACE A OUTROS SETORES NORMATIVOS

Nas sociedades ditas primitivas, bem como no Antigo Testamento e no

Corão, é difícil distinguir as regras jurídicas de outras regras sociais,

designadamente as regras religiosas e morais. A ordem normativa da sociedade

surge-nos aí como um conjunto unitário.

Podemos dizer que ocorreu um processo de diferenciação mediante o

qual Direito, normas religiosas e normas morais passam a ser encarados como

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65

corpos normativos distintos que desempenham funções diferentes no sistema

social.

Nas sociedades modernas a ordem normativa da sociedade caracteriza-

se, como atrás assinalei, pela complexidade, porque nela descobrimos

diferentes setores normativos.

Isto coloca o problema da delimitação entre estes setores normativos,

entre Direito, moral, normas religiosas, etc.

Em rigor, parece-me que se não deverá falar só de delimitação face a

outras ordens normativas, uma vez que pode haver regras sociais que não

estejam incluídas em ordens normativas.

Ordem jurídica e normas religiosas

Por vezes parte-se do princípio que todas as religiões são ordens

normativas (OLIVEIRA ASCENSÃO). Mas tal oferece dúvida porque se algumas

religiões assentam num sentido de alteridade (isto é, caráter do que é outro) e

transcendência da divindade (budismo e monoteísmos derivados do Antigo

Testamento), outras caracterizam-se por um processo de identificação baseado

no culto dos antepassados.

Poderá dizer-se que só o primeiro tipo de religiões ordena as condutas

tendo em vista as relações com Deus.

São assinaladas quatro diferenças entre a ordem jurídica e as normas

religiosas (MARCELO REBELO DE SOUSA):

à As normas religiosas são essencialmente internas porquanto regulam

as relações de cada homem com Deus. Por conseguinte as normas religiosas

não têm, em primeira linha, uma função de ordenação social, mas repercutem-

se na ordem social, porque os deveres religiosos também dizem respeito à

conduta em sociedade. As normas religiosas são intrasubjectivas, o Direito

intersubjectivo.

à A religião assenta na fé; as suas normas fundamentam-se na

divindade; o Direito é estranho à ideia de fé.

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à Afirma-se também que a ordem religiosa é uma ordem com sentido de

transcendência. A dimensão social da ordem religiosa é instrumental porque se

destina a preparar a ordem definitiva, que já não é deste mundo. Este sentido de

transcendência é desconhecido do Direito: o Direito procura realizar a justiça nas

relações sociais.

Observe-se, no entanto, que se esta diferença é válida para a religião

cristã, já as coisas se podem apresentar a outra luz perante outras conceções

religiosas.

à As normas religiosas não são assistidas de coercibilidade material e só

vinculam os crentes; o Direito vincula, em princípio, todos os membros da

sociedade em que vigora e a ordem jurídica estadual é caracterizada pela

coercibilidade.

A relevância das normas religiosas na vida social tem variado muito ao

longo do tempo. Qualquer que seja o peso das ordens ou normas religiosas no

conjunto da ordem social, que varia conforma as sociedades, não há dúvida que

historicamente as principais religiões marcaram profundamente a cultura das

sociedades atuais.

Ordem jurídica e moral

O que é a moral?

Encontramos várias perspetivas de filosofia moral.

Perspetiva material: a moral é caracterizada pelo objeto do problema

moral e pelo fim.

De entre os que tomam este ponto de partida podemos distinguir aqueles

que seguem uma conceção subjetivista dos que perfilham uma conceção

objetivista.

Conceção subjetivista: mais estrita, a moral é uma ordem de condutas,

que visa o aperfeiçoamento da pessoa, dirigindo-a para o Bem (é a posição de

OLIVEIRA ASCENSÃO).

Conceção objetivista: a moral diz respeito aos problemas relativos a

aspetos vitais da convivência humana, às condições essenciais da vida em

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sociedade (restrição e controlo do uso da força, distribuição de recursos,

princípios da propriedade, etc.).

Conceção formalista: a moral é caracterizada pela atitude perante

qualquer problema. Segundo esta conceção, a moral é caracterizada pelo juízo

imperativo, generalizável (a situações similares) e superior (a qualquer juízo

conflituante).

Estas perspetivas não são contraditórias entre si, antes se mostra

possível a sua conciliação.

Na primeira perspetiva, que é material, diremos que são proposições

morais as que concernem ao estabelecimento e manutenção de relações sociais

adequadas com respeito a questões essenciais, bem como as que visam o

aperfeiçoamento da pessoa, dirigindo-a para o bem.

Na segunda perspetiva, que é formal, acrescentaremos que esta ordem

de condutas constitui um imperativo de consciência.

A primeira diferença e talvez a principal entre moral e Direito consiste na

relativa interioridade da moral perante a relativa exterioridade do Direito.

KANT, na sequência da tradição anterior, distinguia a moral, interna (ou

intra-individual), pessoal, da ordem social, relativa ao aspeto exterior da conduta,

e, na mesma base, distinguia o Direito da moral.

Ao Direito não interessariam as motivações nem as intenções do ato.

Por seu turno, a moral não se satisfaz com a uma conduta exterior

conforme ao dever: tanto condena o que praticou uma má ação, como o que a

quis e só por circunstâncias exteriores não a chegou a praticar.

A distinção Kantiana não é correta, porque ao Direito não interessa só o

aspeto exterior da conduta.

Por exemplo, João é atingido por um tiro disparado por Luís. Tal pode ter

acontecido porque João se atravessou subitamente à frente de Luís ou porque

este agiu negligentemente ou porque agiu com a intenção de matar.

A valoração jurídica da conduta de Luís em cada uma destas hipóteses é

completamente diferente e, assim, as consequências jurídicas também são

completamente diferentes.

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Significará isto que o Direito não se caracteriza pela exterioridade?

Pode dizer-se que o Direito tem como ponto de partida o lado externo da

existência. O Direito quer estabelecer uma ordem projetada no exterior. A atitude

interior não interessa enquanto não ocorrer uma conduta ilícita.

Por sua vez a moral não é apenas interior.

A moral não se satisfaz a priori com a intenção de fazer o Bem. Exige que

se pratique o Bem.

A violação que se traduz numa ação reprovável é mais grave do que a

mera disposição interior. Moralmente pior do que desejar a morte doutro é

provocá-la intencionalmente.

A conceção kantiana de moral também é extremada no subjetivismo que

a esta atribui. Ver na moral apenas uma ordem orientada ao aperfeiçoamento da

pessoa ignora que os valores geralmente reconhecidos como morais só têm

sentido com referência às relações da pessoa com os outros, às relações

intersubjetivas. O cerne de toda a moral pode mesmo ser visto no princípio do

respeito mútuo.

A moral tem necessariamente uma dimensão social.

A moral positiva é formada pelas regras morais que vigoram numa

sociedade, com base nas convicções morais dos seus membros.

Quando o Art. 280.º/2 CC determina a nulidade do negócio cujo objeto

seja ofensivo dos bons costumes, esta remissão para os bons costumes tem

sido prevalentemente entendido como referindo-se à moral positiva.

Esta objetividade e positividade da Moral deve, porém, ser relativizada.

Há mesmo quem questione a existência, nas sociedades pluralistas

modernas, de uma moral positiva. Haveria uma pluralidade de conceções

morais, nenhuma delas vigorando para toda a sociedade.

Parece certo que um consenso sobre determinados princípios e regras

coexistirá com divergências sobre muitos outros pontos. Mas esta verificação

não leva a negar a existência de princípios e regras de moral positiva. Cabe

antes questionar se estes princípios e regras de moral positiva formam um

sistema, uma ordem normativa.

Ainda que se admita uma moral social, positiva e objetiva, constitui um

princípio democrático o respeito da esfera privada, por que se tem de aceitar que

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69

as pessoas ou grupos de pessoas tenham valores e padrões morais de conduta

diferentes dos valores morais dominantes. Como diz BAPTISTA MACHADO, ao

Direito não cabe diretamente a função de garantir uma certa conceção ética.

Algo de radicalmente diferente se passa com a positividade do Direito.

Este define princípios e regras de conduta que vinculam, em princípio, todos os

membros da sociedade, independentemente das suas opiniões pessoais.

Na medida em que há esta heterovinculação pode dizer-se que o Direito

se caracteriza pela heteronomia, enquanto a moral se caracterizaria pela

autonomia, porquanto a definição do dever moral passa sempre pela adesão de

consciência a uma exigência de conduta.

Na moral há uma subjetividade irredutível. A “objetividade” e “positividade”

da moral não podem ser comparáveis às do Direito.

Por conseguinte a contraposição entre heteronomia e autonomia permite

estabelecer uma segunda diferença entre Direito e moral.

Onde se encontra uma terceira diferença entre moral e Direito da

sociedade estadual é no grau de institucionalização.

Na ordem jurídica estadual têm grande peso elementos

institucionalizados que apresentam um grau de desenvolvimento, formalização

e processualização que não encontra paralelo na moral, em especial as normas

jurídicas, os meios de tutela jurídica e as organizações sociais.

Há uma considerável dose de verdade na afirmação de que a

diferenciação entre Direito e moral se apresenta mais como resultado de

condicionamentos histórico-culturais, que de uma diferença intrínseca entre eles.

Em suma, o Direito distingue-se da moral:

à Pela relativa interioridade da moral perante a relativa exterioridade do

Direito;

à Porque a moral se caracteriza pela autonomia, enquanto o Direito se

caracteriza pela heteronomia;

à Porque o grau de institucionalização do Direito e, em particular, da

ordem jurídica estadual, não encontra paralelo na moral.

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70

As diferenças assinaladas permitem distinguir o Direito da moral, quando

tomados no seu conjunto, mas não resolvem todas as dificuldades de distinção

entre regras jurídicas e regras morais.

Esta distinção só não é problemática quando se trata de setores jurídicos

moralmente neutros ou de regras e princípios morais que, por forma evidente,

não têm relevância jurídica direta.

Em caso de dúvida sobre a relevância jurídica direta de dada regra ou

princípio de conduta social importa atender ao sistema jurídico, à prática dos

órgãos de realização do Direito e, mais em geral, ao entendimento da

comunidade jurídica.

Quando é que as normas morais vinculam juridicamente?

Em princípio, as normas morais só vinculam juridicamente quando a

ordem jurídica para elas remete, e só na medida em que se conformam com os

princípios e valores da ordem jurídica vigente.

O Direito remete, em certos casos, para valorações morais.

Têm sido prevalentemente entendidas neste sentido as remissões feitas

para os “bons costumes” nos arts. 271.º/1, 280.º/2 e 281.º CC com respeito aos

requisitos do objeto e do fim do negócio jurídico.

A remissão do Direito para a moral também pode ser implícita, quando as

normas jurídicas utilizam conceitos éticos fundamentais como o da dignidade da

pessoa humana.

Nestes casos o intérprete tem de atender a valores morais, quer se possa

apoiar em conceções morais dominantes, quer se tenha de orientar por juízos

de valor mutáveis de “setores populacionais em mudança”. A função de

conceitos indeterminados como o de “bons costumes” é, em boa parte,

justamente a de permanecerem abertos à evolução no domínio dos valores

(ENGISCH).

Esta remissão para valorações extra-jurídicas não é incondicional. A

remissão para valorações extra-jurídicas deve considerar-se sujeita aos critérios

de valoração da ordem jurídica, em especial da Constituição.

Inversamente, como já tive ocasião de defender, a moral também contribui

para o estabelecimento de limites materiais à validade do Direito.

Page 71: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

71

Ordem jurídica e regras do trato social

A dita “ordem do trato social” é uma ordenação social destinada a tornar

a convivência em sociedade mais escorreita e agradável.

Por ex: em certas comunidades há uma regra, que não uma obrigação

jurídica, de o noivado não ser quebrado. Quem o fizer vê o seu comportamento

reprovado e pode até ser afastado dos centros de convívio social.

Mas também cumprimentar o vizinho nas escadas; respeitar a fila no

acesso a um transporte público.

Muitas destas regras formam-se no interior de um círculo social. Por

exemplo, há regras próprias de diferentes atividades profissionais.

Na opinião do regente, não se trata de uma ordem normativa, mas de

regras dispersas que em algumas áreas formam conjuntos pouco estruturados

– por exemplo, as regras de cortesia.

Difere da moral e do Direito já que, por definição, não é essencial para a

institucionalização da sociedade.

Distingue-se ainda do Direito das modernas sociedades estaduais pelo

carácter inorganizado da sua génese e pela necessária ausência de

coercibilidade.

O Direito e a Moral são setores normativos necessários à

institucionalização da sociedade, ao passo que as regras de trato social não são

essenciais para a vida em sociedade, embora a tornem mais fácil e agradável.

O desrespeito de um dever moral é uma “má ação”. A ação contrária ao

dever jurídico é uma ação ilícita. A ilicitude exprime uma reprovação intensa.

Quando se trata das regras do trato social fala-se antes de uma ação “feia” ou

“bonita”.

Já pelo caráter inorganizado da sua génese e pela ausência de

coercibilidade, as regras do trato social distinguem-se do Direito estadual, mas

não da moral, nem do Direito entendido no seu conjunto.

Page 72: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

72

CAP. VI – CONCLUSÃO

Complexidade e pluridimensionalidade do Direito

O Direito é “um fenómeno complexo, que se manifesta em distintos planos

do ser, em diferentes contextos” (LARENZ).

O Direito tem várias dimensões.

É também uma realização humana, que integra cada sociedade e

acompanha a sua modificação. Por conseguinte, varia conforme a sociedade em

causa e o tempo histórico. É situado no tempo e no espaço.

Por tudo isto é muito difícil, se não impossível, dar uma definição de

Direito.

Notas do conceito de Direito

Parece mais fecundo procurar caracterizar o Direito por diferentes notas,

nenhuma delas de per si definitiva. Para o efeito não é indiferente se falamos do

Direito nas sociedades organizadas em Estado ou nas sociedades ditas

primitivas, se falamos das ordens jurídicas supraestaduais, da ordem jurídica

estadual ou de Direito autónomo.

Se pensarmos nas ordens jurídicas atuais no seu conjunto podemos dizer

que o Direito se manifesta socialmente com 5 notas típicas:

à Setor da ordem normativa da sociedade (dimensão normativa do

Direito);

à Principal setor da ordem normativa da sociedade uma vez que o seu

modo de ser é exatamente o de valorar e orientar a conduta em sociedade, como

decorre da relativa exterioridade que o distingue das regras religiosas e morais;

à Ordem que regula aspetos da cooperação e do conflito social, a

atribuição de bens e a organização do poder;

Page 73: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

73

à Ordem orientada a valores fundamentais para a conservação e

progresso da sociedade e para a realização dos seres humanos que a compõem

(dimensão axiológica do Direito);

à Ordem que vincula todos os membros da sociedade,

independentemente das suas convicções e opiniões pessoas (heteronomia do

Direito).

Se pensarmos na ordem jurídica estadual poderemos ainda dizer que a

avançada institucionalização da sociedade estadual passa por um elevado grau

de institucionalização da sua ordem jurídica que se exprime, designadamente:

a) na existência de órgãos que têm a seu cargo a produção de normas

jurídicas e de órgãos que têm a função de aplicar o Direito;

b) na formalização e processualização da criação das regras jurídicas e

da sua aplicação;

c) na disponibilidade de meios coercivos ao serviço de um sistema

organizado de sanções.

Estas notas dão-nos uma imagem relativamente fiel do Direito. Ajudam-

nos a classificar um ordem ou complexo normativo como jurídico ou não-jurídico.

Uma vez reconhecido que dado sistema ou complexo normativo é jurídico,

a qualificação de uma regra como jurídica dependerá da sua pertença a um

sistema ou complexo jurídico.

As funções do Direito

Esta institucionalização da ordem jurídica estadual é também

acompanhada de uma funcionalização, no sentido em que o Direito é visto não

só como realidade dada, mas também como instrumento ao serviço de fins

racionais, e, entre eles, o de transformar a própria realidade

Decorre do anteriormente exposto que, em termos muito gerais, o Direito

desempenha necessariamente uma função institucionalizadora e uma função de

resolução de conflitos sociais. O Direito pode ainda desempenhar uma função

transformadora.

Page 74: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

74

TÍTULO II - CARACTERIZAÇÃO DAS CIÊNCIAS QUE ESTUDAM O DIREITO

CAP. I - NOÇÕES GERAIS

Ciências que estudam o Direito e Ciência do Direito

Porquanto o Direito é um fenómeno complexo, que se manifesta em

diferentes planos da realidade e pode ser encarado sob uma pluralidade de

pontos de vista, ele surge-nos como objeto de diferentes ciências.

A Ciência do Direito é apenas uma das ciências que estudam o Direito,

embora seja aquela que nos interessa mais, porque se ocupa do Direito como

um fenómeno normativo.

Outras ciência gerais estudam o Direito na perspetiva que lhes diz

respeito, dando origem a ramos especiais destas ciências: a História, a

Sociologia ou a Filosofia.

Outras ciências que estudam o Direito

Enquanto fenómeno histórico o Direito é objeto da História do Direito;

enquanto fenómeno social é objeto da Sociologia do Direito.

Como manifestação cultural do homem o Direito interessa à Etnologia ou

Antropologia cultural, dando origem a uma Etnologia ou Antropologia jurídica.

Esta ciência tem tendido a limitar-se ao estudo de sociedades tradicionais. No

estrangeiro há algumas obras recentes que também incidem sobre as

sociedades modernas.

As questões últimas sobre o sentido, o fundamento, a validade e o método

do Direito, são objeto da Filosofia do Direito.

Há ainda a considerar o Direito Comparado que face à pluralidade de

ordens jurídicas estaduais procura formular uma teoria para a sua classificação

em grandes famílias e desenvolver métodos frutuosos para a comparação de

Direitos.

Page 75: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

75

Outra coisa são as ciências auxiliares do Direito, por exemplo, a Medicina

Legal. Estas ciências não têm o Direito por objeto, mas podem ser relevantes na

elaboração e aplicação do Direito.

Poderá considerar-se que certas ciências que têm por objeto outros

subsistemas sociais também podem atuar como ciências auxiliares do Direito.

A este respeito cumpre salientar a Ciência Económica, que assume

grande importância para a elaboração e a aplicação de vastas áreas jurídicas,

principalmente as que regulam a produção e a distribuição de bens e serviços.

A chamada Análise Económica do Direito, cultivada designadamente por

COASE, CALABRESI e POSNER, estuda:

à Os efeitos das proposições jurídicas e das instituições jurídicas no

funcionamento da economia;

à As soluções jurídicas que devem ser adotadas por forma a garantir a

utilização mais eficiente dos recursos económicos e a maximização do bem-

estar.

Política legislativa

A política legislativa estuda as formas de melhorar a ordem jurídica

através da legiferação.

Surge aqui a distinção entre a perspetiva do Direito instituído, também

expressa pelas expressões latinas de iure constituto ou de iure condito e a

perspetiva do Direito que deve instituir-se, do melhor Direito, a que

correspondem as expressões latinas de iure constituendo e de iure condendo.

A política legislativa coloca-se no plano do Direito a constituir, de iure

condendo.

Portanto, esta ciência não tem por objeto o Direito vigente, mas a reforma

do Direito.

Mais amplamente poderíamos falar de política jurídica para englobar

também o trabalho de desenvolvimento da ordem jurídica feito pela

jurisprudência e pela doutrina.

Page 76: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

76

A distinção entre a perspetiva do Direito vigente e a do Direito que deve

ser instituído é importante e para ela contribuiu, como atrás assinalei, o

positivismo e, designadamente, a Teoria Pura do Direito.

Mas o positivismo também foi demasiado longe quando levou a excluir

das obras de ciência jurídica toda e qualquer consideração de política jurídica.

Como adiante veremos, a propósito da interpretação e integração, a

Ciência do Direito não é completamente alheia à política jurídica.

Para além disso, é útil que o jurista não deixe de contribuir para a

formação da opinião sobre a adequação das soluções vigentes e as reformas a

realizar.

CAP. II - HISTÓRIA DO DIREITO

Generalidades

O ser humano é um ser histórico. O seu passado é uma parte integrante

do seu ser atual. O seu passado pessoal, o passado da sociedade a que

pertence, o da cultura em que participa. Também quem quiser compreender o

Direito do presente tem de apreender o seu devir histórico e a sua abertura face

ao futuro.

A História do Direito visa reconstituir as ordens jurídicas que vigoraram no

passado. O estudo do Direito dos povos desaparecidos é História do Direito,

como é História do Direito o estudo de épocas jurídicas passadas de povos

atuais.

A História do Direito é o ramo da História que estuda a formação e a

evolução do Direito e do pensamento jurídico.

Conteúdo

Dentro da História do Direito podemos distinguir, designadamente:

à A história das fontes do Direito;

à A história dos institutos jurídicos;

à A história do pensamento jurídico.

Page 77: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

77

Pertence à História do Direito indicar quais os processos pelos quais se

formava o Direito em épocas jurídicas passadas – costume, lei, jurisprudência,

etc.

Cabe seguidamente à História do Direito indicar quais os institutos

jurídicos que vigoraram, procedendo à interpretação das fontes e inserindo as

regras particulares nos conjuntos regulativos que designamos por institutos

jurídicos. Torna-se assim possível caracterizar as ordens jurídicas que vigoraram

no passado em função dos seus principais institutos jurídicos.

Mas a história do Direito também pode alargar-se às formas de

pensamento sobre o Direito e à metodologia jurídica. Nesta medida a própria

ciência do Direito, e talvez uma parte da Filosofia do Direito, constituem objeto

da História do Direito, enquanto história do pensamento jurídico.

A função explicativa da história

Para reconstituir uma ordem jurídica a História do Direito tem de fazer

mais do que descrever essa ordem. Tem de a explicar, esclarecendo os fatores

que a influenciaram e enquadrando-a na sociedade em que se integrava.

A História do Direito não é, portanto, um ramo divorciado da história geral

de uma sociedade; é antes o ramo dessa história geral que se destina à

reconstituição de uma ordem jurídica.

O facto de haver uma autonomia relativa na evolução da ordem jurídica

relativamente às vicissitudes económico-sociais, devido ao peso dos fatores

culturais, não autoriza em caso algum o estudo do Direito fora do seu contexto

social.

Page 78: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

78

Método

Em primeiro lugar é necessária uma pesquisa criteriosa das fontes do

Direito em sentido instrumental, i.e., os documentos que contêm os preceitos –

por exemplo, os volumes das Ordenações do Reino, os exemplares do jornal

oficial.

Sobre as fontes recolhidas deve realizar-se uma crítica histórica.

Esta crítica é externa quando se averigua se o documento é autêntico,

genuíno, e se deteta, nas cópias ulteriores, interpolações (i.e., aditamentos

posteriores).

A crítica é interna quando se apura o sentido do texto, através da

hermenêutica. Mesmo depois de captado o sentido do texto o historiador tem de

defrontar o problema da credibilidade da declaração: a declaração pode ser falsa

ou resultar de erro sobre os factos.

Muitas vezes será preciso trabalhar sobre hipóteses sem apoio

documental.

Estas hipóteses serão formuladas por dedução ou inferidas dos dados

apurados para situações análogas.

As conclusões assim obtidas serão provisórias, ficando sujeitas à

confirmação ou infirmação documental.

Importância

A História do Direito tem a importância que a história tem.

No contexto de um curso de Direito é de sublinhar que a História do Direito

tem uma importância grande para a compreensão da ordem jurídica atual.

Primeiro, é útil conhecer os elementos duradouros que persistem do

passado. Há que ser prudente ao afastar soluções consagradas pelo tempo.

Segundo, para compreender a disciplina jurídica em relação a problemas

singulares é por vezes indispensável conhecer a razão histórica.

Terceiro, o conhecimento do atual Direito português será mais profundo

se se conhecer o Direito Romano e o Direito Português antigo.

Page 79: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

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CAP. III - SOCIOLOGIA DO DIREITO

Objeto

A Sociologia do Direito é o ramo da Sociologia que estuda o Direito

enquanto fenómeno social.

O Direito é encarado como um fenómeno social quando estudamos o seu

papel no contexto do sistema social, os pressupostos e consequências sociais

do Direito, as suas instituições sociais, os papéis desempenhados na sociedade

por cada uma das profissões jurídicas e as relações sociais que o Direito

conforma.

Assim, fazemos Sociologia do Direito quando nos questionamos sobre as

condições do surgimento do Direito, bem como sobre as condições da sua

vigência fáctica na sociedade, da sua efetividade.

Método

É MAX WEBER quem emancipa a sociologia do Direito, que deixa de ser

uma ciência auxiliar da “jurisprudência dos interesses”, i.e., da indagação dos

interesses tutelados pelo Direito, para passar a ser um ramo da Sociologia.

Diferentemente de EHRLICH, para MAX WEBER a sociologia não é uma

pura ciência dos factos, é uma “sociologia compreensiva” que vê a conduta

humana como “significativa”.

Como “significativa” e, por conseguinte, “compreensível” designa WEBER

a conduta humana que se dirige para um fim ou se orienta por certas

expectativas. “Sentido” significa o sentido “subjetivo” efetivamente tido em conta

pelo agente no caso particular, ou o sentido médio e aproximativo, que se verifica

numa massa de casos.

Segundo esta conceção, a Sociologia é uma ciência cuja missão é a

pesquisa de nexos causais; o sentido tido em conta pelo agente é considerado

como fator causal. Para o efeito a Sociologia utiliza métodos de pesquisa

empírica, como os inquéritos, a observação e a análise de documentação. Em

parte, a Sociologia pode também recorrer a experiências.

Page 80: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

80

WEBER é criticado por ignorar que a “o agir social dos homens e a índole

das relações sociais reais” estão “também determinados e conformados por

momentos ideais (representações normativas)” e têm de ser compreendidos à

sua luz. A sociologia tem de atender ao conteúdo objetivo de sentido dos

institutos jurídicos e das estruturas sociais juridicamente relevantes.

Por outras palavras, a conduta social não pode ser compreendida apenas

à luz dos fins ou expectativas que os seres humanos pretendem realizar, mas

também à luz da sua conformação com complexos normativos e estruturas

sociais que os seres humanos interiorizaram.

À laia de conclusão provisória, podemos dizer que a Sociologia segue os

seus métodos próprios mas não pode ignorar a normatividade das regras

jurídicas, a sua pretensão de vigência. Tem de atender às representações

normativas que determinam a conduta humana.

E tem de atender também à especificidade do sistema jurídico e à sua

(relativa) autonomia perante outros sistemas de ação no contexto mais geral do

sistema social.

Importância

A Sociologia do Direito é desde logo necessária à compreensão do

Direito, mediante o seu enquadramento no conjunto do sistema social. O estudo

que empreendemos no cap. I da nossa disciplina é essencialmente uma

introdução sociológica ao Direito.

A Sociologia do Direito é também importante ao nível das normas jurídicas

singularmente consideradas. A realidade social em resposta à qual cada norma

jurídica é concebida constitui o pano fundo indispensável para a sua

compreensão. O conhecimento da realidade social atual face à qual a norma

deve operar é também importante não para ajuizar da adequação da norma

vigente, mas também para a própria interpretação da norma, que como veremos,

pode ter em conta a alteração da realidade social subjacente.

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81

CAP. IV - DIREITO COMPARADO

Noção de Direito Comparado

Direito Comparado é a disciplina jurídica que tem por objeto estabelecer

sistematicamente semelhanças e diferenças entre sistemas jurídicos

considerados na sua globalidade (macro comparação) e entre institutos jurídicos

afins ou equivalentes em sistemas jurídicos diferentes (micro comparação).

Não é um ramo de Direito, mas uma disciplina científica, uma área da

Ciência do Direito.

Funções do Direito Comparado

O Direito Comparado desempenha múltiplas funções, ao nível do Direito

nacional, do Direito supraestadual e da cultura jurídica.

à Direito Nacional:

Ao nível do Direito nacional, o Direito Comparado é, em primeiro lugar,

instrumento de política legislativa. A busca das melhores soluções tem hoje

normalmente de passar pelo exame das soluções dadas ao problema de

regulação por diferentes sistemas jurídicos.

Em segundo lugar, o Direito Comparado serve para a interpretação das

regras jurídicas, principalmente quando tenham sido inspiradas por estudos de

Direito estrangeiro, bem como no que toca às normas de conflitos de Direito

Internacional Privado.

Em terceiro lugar, o Direito Comparado serve para a integração de

lacunas, quando não for possível resolver o problema por via analógica.

à Direito Supraestadual:

A nível do Direito supraestadual verificamos, em primeiro lugar, que o

Direito Comparado serve a unificação internacional ou regional. Na preparação

de Convenções internacionais ou regulamentos europeus que uniformizem ou

unifiquem o Direito o Direito Comparado é um instrumento fundamental. O

mesmo se verifica na preparação de instrumentos que se destinam apenas a

Page 82: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

82

harmonizar os ordenamentos nacionais, sem eliminar todas as diferenças entre

os sistemas em presença.

O Direito Comparado também releva na determinação dos limites que

devem ser colocados à unificação internacional ou europeia e à sua conjugação

com o pluralismo jurídico.

Em segundo lugar, a comparação de Direitos é um importante instrumento

de interpretação das normas uniformizadas ou unificadas.

Em terceiro lugar, o recurso ao Direito Comparado é necessário para a

atuação de certas fontes subsidiárias do Direito Internacional e de certas normas

do Direito da União Europeia, quando estas remetem para os “princípios gerais

de Direito reconhecidos pelas nações civilizadas” e para os “princípios gerais

comuns aos Direitos dos Estados-Membros”.

à Cultura Jurídica:

Ao nível da cultura jurídica, o Direito Comparado é um meio de formação

dos juristas em geral.

Por um lado, o conhecimento da unidade e da diversidade dos diferentes

sistemas jurídicos contribui para uma melhor compreensão do Direito na sua

globalidade e do sistema jurídico nacional.

Por outro lado, os grandes temas científicos são frequentemente comuns.

O estudo das construções jurídicas em países de grande elaboração científica

pode contribuir muito para o progresso da Ciência do Direito no nosso país.

Mas é importante sublinhar que este estudo tem de assentar num labor

comparatístico, porque as construções jurídicas são feitas perante determinados

regimes jurídicos.

Método

O método específico do Direito Comparado é o método comparativo que

consiste em apurar semelhanças e diferenças de sistemas ou de institutos

jurídicos afins ou equivalentes de sistemas diversos.

As questões metodológicas gerais do Direito Comparado dizem respeito

à seleção dos sistemas a comparar e ao procedimento comparativo.

Page 83: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

83

Os estudos comparativos podem ser bilaterais ou multilaterais, conforme

abranjam dois ou mais sistemas.

O procedimento comparativo importa um estudo dos Direitos em presença

e a sua comparação. Um mero estudo de Direito estrangeiro, sem

esclarecimento das semelhanças e diferenças com o Direito pátrio, não é um

estudo de Direito Comparado.

No modelo mais tradicional, um estudo de Direito Comparado comporta

uma parte de análise dos sistemas em comparação e uma síntese comparativa.

Metodologia da macro comparação

A macro-comparação consiste, como se assinalou, na comparação de

sistemas jurídicos considerados na sua globalidade. Esta comparação pode ser

um fim em si, mas tem andado geralmente ligada a uma classificação dos

sistemas jurídicos em famílias de Direitos.

Na macro-comparação é necessário elaborar uma grelha comparativa,

i.e., selecionar os elementos que são relevantes para o enquadramento e

caracterização de um sistema jurídico, tais como a evolução histórica, a

estrutura económico-social, a conceção de Direito, os valores fundamentais, as

fontes do Direito e os métodos da sua interpretação e aplicação, os órgãos de

aplicação do Direito e as profissões jurídicas

Estes elementos levam a agrupar a maior parte dos sistemas da Europa

ocidental e continental na família romanogermânica, os sistemas inglês, dos

EUA, Austrália, etc. na família do Common Law, e, dantes, os sistemas da ex-

União Soviética, dos países da Europa da Leste e da China, designadamente,

integravam a família dita socialista.

É ainda possível uma comparação de famílias de Direitos, que poderemos

designar por mega-comparação.

Page 84: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

84

Metodologia da micro-comparação

Na micro-comparação, a delimitação dos sistemas a comparar depende

essencialmente do fim da comparação e de considerações de ordem prática, tais

como o tempo, meios e conhecimentos linguísticos de que o comparatista

dispõe.

No estudo do Direito estrangeiro deve atender-se não só aos textos legais

e doutrinais mas também, tanto quanto possível, à jurisprudência e à vida

jurídica. Com efeito, o comparatista não deve contentar-se com a determinação

do “Direito dos livros” [law in books] , deve averiguar o “Direito em acção” [law in

action].

Também assume especial acuidade o problema da comparabilidade dos

institutos jurídicos.

A este respeito há divergências importantes entre os cultores do Direito

Comparado. A tendência dominante faz apelo à equivalência funcional entre

institutos jurídicos: estes institutos são comparáveis quando desempenham uma

função sócio-económico equivalente.

Mas pode desempenhar um papel importante a identidade do problema

de regulação jurídica subjacente ou dos conceitos científicos em causa.

Também é geralmente necessário elaborar uma grelha comparativa que

seleciona questões suscitadas pelo instituto ou problema de regulação jurídica

em estudo.

CAP. V - FILOSOFIA DO DIREITO

Conteúdo

A Filosofia do Direito liga os problemas suscitados pelo Direito como

manifestação cultural às questões gerais e básicas da filosofia: que podemos

nós saber? que devemos fazer?

Podemos dizer que é o ramo da Filosofia que estuda as questões últimas

sobre o sentido, o fundamento, a validade e o método do Direito.

Quer isto dizer que a Filosofia do Direito também se ocupa da questão da

justiça e da relação entre moral e Direito.

Page 85: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

85

O nosso capítulo dedicado ao Direito e Valores é uma introdução filosófica

ao Direito, ainda que com caráter elementar.

Não me afastarei muito das principais correntes atuais se afirmar que na

Filosofia do Direito devem ser incluídas duas grandes áreas: a epistemologia

jurídica e a ética jurídica.

A primeira área é a epistemologia jurídica: pressupostos do conhecimento

jurídico e valor deste conhecimento.

A epistemologia (como indica a origem etimológica) abrange a

metodologia. Sob a designação de metodologia do Direito é usual estudar-se os

modos de conhecimento do Direito e os modos específicos de pensamento

jurídico. Por método entende-se a racionalização do procedimento a observar no

desenvolvimento da atividade cognitiva.

Para quem siga uma conceção hermenêutica, é a hermenêutica que está

na base da metodologia jurídica. A hermenêutica geral ocupa-se dos

pressupostos e dos modos específicos de compreender aquilo que é dotado de

sentido.

A segunda grande área da Filosofia do Direito é a ética jurídica.

A partir da Filosofia dos Valores (primeira metade do século XX) o núcleo

da disciplina passa a ser a discussão e determinação dos valores do Direito,

muito em particular a justiça, e a crítica da realidade jurídica à luz destes valores.

Para algumas correntes neojusnaturalistas a Filosofia do Direito,

enquanto ética jurídica, teria uma função cognitiva no domínio dos valores – veja-

se o que disse sobre as tendências atuais sobre a relação entre Direito e justiça.

Em minha opinião não é em absoluto de excluir esta possibilidade de

conhecimento relativamente a certos valores em que o Direito se deve basear.

Mas também se deve reconhecer que a moral e o Direito não se podem

basear só num acervo de valores e princípios fundamentais adquiridos à luz do

sentido da evolução verificada na sociedade. Há outros valores que têm de ser

considerados, há a possibilidade de conflitos de valores, o que exige escolhas

Page 86: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

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pelo poder político. Nestas escolhas há uma margem irredutível de decisão

politica.

Em todo o caso, estas questões, mesmo que não encontrem uma resposta

última na filosofia, não deixam de ser objeto de estudo da mesma.

De entre os cultores da Filosofia do Direito de língua portuguesa podemos

salientar autores como CABRAL DE MONCADA, CASTANHEIRA NEVES,

BAPTISTA MACHADO, SOARES MARTÍNEZ, FERNANDO BRONZE, SOUSA

BRITO e JOSÉ LAMEGO.

Significado para a ciência do Direito

Vimos que enquanto epistemologia a Filosofia do Direito se debruça entre

outros aspetos sobre a metodologia do Direito. A metodologia é um terreno

intermédio entre a Filosofia do Direito e a Ciência do Direito.

A lógica jurídica e a teoria de linguagem também interessam à Ciência do

Direito, porquanto auxiliam a interpretação e servem o raciocínio jurídico e a

argumentação jurídica.

Enquanto ética jurídica, a Filosofia do Direito interessa à Ciência do Direito,

desde logo porque as normas e os princípios têm de ser entendidos à luz dos

valores que visam realizar e porque a questão do Direito injusto contende com a

validade e, portanto, com a vigência do Direito.

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87

CAP. VI - CIÊNCIA DO DIREITO

Caracterização

A Ciência do Direito ocupa-se do Direito enquanto fenómeno normativo. A

Ciência do Direito encara o Direito como uma ordem que valora e orienta a

conduta em sociedade, tendo em vista a realização de determinados valores.

Coloca em primeiro plano a sua natureza de dever ser.

A Ciência do Direito é uma ciência normativa, não porque a sua principal

missão seja criar normas, a de ser uma fonte do Direito, mas porque constitui

um sistema de enunciados sobre o Direito vigente. Quer isto dizer que a Ciência

Jurídica se pronuncia sobre a existência, validade e eficácia das normas bem

como sobre o conteúdo de sentido das normas.

A Ciência Jurídica responde-nos à questão de saber se a norma vigora e à

questão do sentido normativo que deve ser atribuído a uma proposição jurídica.

A Ciência do Direito não se ocupa apenas das normas jurídicas

singularmente consideradas. Também tem a missão de cuidar da formação do

sistema normativo e de enquadrar sistematicamente todos os elementos com

que opera.

Já SAVIGNY assinala que a Ciência do Direito está orientada à revelação e

aperfeiçoamento da unidade imanente ao Direito.

A Ciência do Direito tem sempre em vista um ordenamento nacional ou

supraestadual determinado, embora não possa nem deva ignorar os outros

ordenamentos. Claro que a Ciência do Direito também se pode ocupar de

problemas jurídicos gerais que são comuns a vários ordenamentos. E o Direito

Comparado é uma área da Ciência do Direito, como assinalei.

Metodologia

A ciência define-se pelo método, que é, como sabemos, a racionalização do

procedimento a observar no desenvolvimento da atividade cognitiva. A

metodologia de uma ciência engloba os modos de conhecimento e os modos de

pensamento específicos desta ciência.

Page 88: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

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Na minha perspetiva, a resolução de casos concretos segundo critérios

jurídicos constitui uma função do Direito, e não propriamente o método jurídico.

O método tem antes que ver com os modos de obtenção desses critérios de

solução e de realização das outras tarefas que incumbem quer à Ciência Jurídica

Prática quer à Ciência Jurídica Teórica.

Também aqui há grandes divergências, podendo distinguir-se em primeiro

lugar tendências conceptualistas, tendências mais teleológicas e tendências

mais analíticas, próprias do moderno positivismo.

As tendências conceptualistas, como a designação indica, centram os seus

esforços na definição dos conceitos jurídicos e na construção de um sistema

lógico, de uma pirâmide de conceitos construída segundo as regras da lógica

formal. Os conceitos que estão na base da pirâmide são reconduzíveis aos

conceitos mais gerais que ocupam o escalão superior, e assim sucessivamente,

até ao conceito supremo.

No entender de PUTCHA, o topo desta pirâmide de conceitos é ocupado por

um conceito supremo, a partir do qual se pode construir dedutivamente todo o

sistema e extrair novas proposições jurídicas.

A estas tendências contrapuseram as tendências teleológicas que as normas

não podem ser entendidas através de definições de conceitos jurídicos, mas à

luz das finalidades que prosseguem. Um conceito supremo obtido pela

generalização de todos os conceitos jurídicos será um conceito vazio. Dos

conceitos nunca se podem deduzir soluções, porque estas resultam da

consideração dos fins que o Direito pretende realizar.

Por seu turno as tendências mais analíticas, que vêm na linha do positivismo

normativo, centram as suas atenções no estudo da estrutura da regra jurídica e

dos enunciados linguísticos porque se exprime. Já assinalei que ao deixaram de

fora o conteúdo valorativo do Direito estas tendências não permitem apreender

cabalmente o fenómeno jurídico.

Dentro das tendências teleológicas, que remontam a JHERING, poderemos

subdistinguir tendências mais sociológicas, de tendências mais axiológicas.

De entre as tendências mais sociológicas temos designadamente a

jurisprudência dos interesses (mormente HECK). Para esta corrente a norma

tem de ser entendida sempre à luz dos interesses, i.e., das apetências sociais

Page 89: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

89

que visa satisfazer, e as lacunas têm de ser resolvidas, na falta de regra aplicável

por analogia, mediante uma valoração pelo intérprete dos interesses em jogo.

No espaço anglo-saxónico, a jurisprudência sociológica ou sociological

jurisprudence também se baseia numa análise de interesses, mas, ao procurar

elevar o social a categoria de referência fundamental, vem a acentuar a

importância das políticas legislativas de índole económica e social (policies).

À jurisprudência dos interesses veio contrapor a jurisprudência das

valorações que o Direito só tutela os interesses dignos de proteção jurídica e

que, perante os conflitos de interesses, o decisivo são os critérios que permitem

a sua valoração.

Além disso, nem todos os fins do Direito podem ser reconduzidos a

apetências sociais. As normas devem ser entendidas à luz dos valores que

pretendem realizar.

Na integração de lacunas o juiz não deve proceder a uma livre ponderação

dos interesses em jogo, mas respeitar os critérios de valoração da ordem

jurídica.

Esta crítica já só procede parcialmente relativamente à jurisprudência

sociológica, uma vez que a prossecução dos fins de política legislativa

pressupõe uma decisão valorativa do legislador e que ao avaliar os interesses à

luz destes fins se distingue entre o critério de valoração e o objeto de valoração.

Esta tendência tem a virtude de chamar a atenção para os fins sócio-políticos

hoje determinantes em vastos setores do Direito, mas ao encarar o Direito

exclusivamente nesta perspetiva adota uma postura instrumentalista ou

funcionalística do Direito, que ignora ou menospreza outros valores do Direito.

O neojusnaturalismo, ao acentuar a importância dos valores e dos princípios

ético-jurídicos, também contribui para as tendências axiológicas.

Mais recentemente, um importante setor doutrinal, que se filia nas tendências

axiológicas, recebeu a hermenêutica filosófica e aplicou-a ao Direito – é o caso

de ESSER, ARTHUR KAUFMANN e LARENZ. Neste curso também se encarará

a Ciência do Direito na perspetiva da hermenêutica filosófica.

Nesta perspetiva, a Ciência do Direito é uma ciência “compreensiva” que

encara a ordem jurídica como uma ordem com sentido normativo.

Page 90: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

90

Desde logo a Ciência do Direito trata de compreender expressões linguísticas

e o seu sentido jurídico: leis, atos administrativos, decisões dos tribunais,

contratos. Expressões linguísticas são enunciados, conjuntos de palavras

falados ou escritos. No início do nosso curso falámos da importância da

linguagem para o Direito.

A compreensão de expressões linguísticas ocorre, ou de modo irreflexivo,

mediante o acesso imediato ao sentido da expressão, ou então de modo

reflexivo, mediante o interpretar. Pelo menos nesta medida o conhecimento do

Direito pela Ciência Jurídica consiste numa interpretação.

“Interpretar” é uma atividade de mediação por que o intérprete compreende

um texto, que se lhe tinha deparado como problemático.

Mas a Ciência do Direito não tem só de compreender expressões linguísticas.

Já sabemos que a mensagem contida numa norma pode ser comunicada

através de diferentes tipos de sinais, por exemplo, os sinais de trânsito.

A Ciência do Direito também tem de conhecer condutas e atitudes ou

disposições interiores, por exemplo, para estabelecer a existência de um

costume, averiguar da existência de uma prática reiterada, bem como de uma

convicção de vinculatividade.

Ainda aqui podemos falar de interpretação.

Portanto poderá dizer-se que a hermenêutica é a base da metodologia da

Ciência do Direito.

Tradicionalmente apontam-se como características fundamentais do

pensamento jurídico a abstração e a precisão. O processo mental deve

desenrolar-se com nitidez seguindo as regras lógicas. A abstração é essencial

para o exame da relevância: determinar quais os aspetos das situações da vida

que são juridicamente relevantes e quais os que são irrelevantes.

Muitas vezes confunde-se rigor do raciocínio com o rigor da fórmula. Torce-

se a realidade para a encerrar numa categoria esquemática. A vida é sempre

mais rica e fluida que os esquemas em que a pretendem encerrar. A aspiração

ao rigor não deve levar, no Direito, a um esquematismo que desvirtue a

realidade.

A metodologia jurídica também tem de levar em conta que a toda a ordem

jurídica subjazem valorações e que, por conseguinte, a Ciência do Direito é,

Page 91: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

91

tanto no domínio prático como no teórico, um pensamento em vasta medida

orientado a valores.

A criação da norma requer uma valoração. A norma tem de ser interpretada

à luz dos valores que visa realizar. A recondução das situações da vida à

previsão da norma exige, frequentemente, uma valoração. A integração de

lacunas exige sempre uma valoração.

Em suma, as características fundamentais do pensamento jurídico são a meu

ver:

à A racionalidade;

à O caráter interpretativo;

à A orientação a valores.

Teoria geral do Direito, Ciência Jurídica Prática e Dogmática “Teoria do Direito” é expressão utilizada em aceções diversas. Por Teoria

Geral do Direito podemos entender, dando continuidade ao significado

tradicional da expressão, a doutrina sobre a estrutura do sistema normativo e,

em especial, sobre a estrutura da regra jurídica, sobre as fontes do Direito, sobre

certos conceitos fundamentais que são comuns aos diferentes ramos de Direito

e sobre os modos de pensamento jurídico.

Embora o estudo dos métodos transcenda a própria Ciência do Direito (para

pertencer também ao domínio da Filosofia do Direito) é em geral incluído nesta

Teoria geral.

A Teoria Geral do Direito contrapõe-se às “teorias especiais” de cada ramo

do Direito, que geralmente se divide em parte geral e parte especial. Por

exemplo, a Teoria Geral do Direito Civil.

A Teoria Geral do Direito pode ser reconduzida, em parte, à Ciência Jurídica

Prática (designadamente quando se ocupa das fontes do Direito e da

metodologia da interpretação, integração e aplicação do Direito), e noutra parte,

à Dogmática, ou Ciência Jurídica Teórica (designadamente quando se ocupa de

conceitos fundamentais, da estrutura das regras e da sistemática jurídica).

Page 92: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

92

A doutrina sobre a determinação, interpretação, integração e aplicação do

Direito, juntamente com a teoria da legislação, pode ser incluída numa Ciência

Jurídica Prática.

Pertence ainda à Ciência do Direito a crítica da jurisprudência. A ciência

jurídica é o juiz do juiz (RHEINSTEIN).

Esta Ciência Jurídica Prática contrapõe-se à Ciência Jurídica Teórica, ou

dogmática.

A Dogmática seria a parte da Ciência do Direito que não está referida à

prática. A jurisprudência dos conceitos encarava a dogmática como um sistema

conceptual fechado – baseado em axiomas estáveis ou dogmas – que permitiria

responder às novas questões que fossem surgindo por via de operações lógicas,

designadamente por dedução.

Por minha parte entendo que a Ciência do Direito tem de construir conceitos

que correspondam o melhor possível a realidades relevantes, com que se possa

operar, e que sejam, neste sentido “funcionais”. Muitas vezes deverão refletir

valorações jurídicas.

E a Dogmática tem de se preocupar não só com a formação de um sistema

científico de conceitos, como também com o aperfeiçoamento e

desenvolvimento do sistema normativo, através da indagação dos princípios

jurídicos retores e dos nexos intrassistemáticos que dão unidade à ordem

jurídica.

Por estas razões a Dogmática também não pode ser alheia ao conteúdo

valorativo do Direito.

É discutível se o termo “Dogmática” é ainda apropriado para designar a parte

teórica da Ciência do Direito. Ela compreende um conjunto de conhecimentos,

inter-relacionados, sobre o Direito vigente, que podem facilitar a sua apreensão

e a comunicação entre os juristas.

Inclui, além dos conceitos científicos, a teoria da estrutura da norma e a

sistemática.

Page 93: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

93

Ciência Jurídica e desenvolvimento e aperfeiçoamento do Direito

Embora a Ciência do Direito esteja vinculada ao quadro definido por

determinada ordem jurídica, ela é capaz de adotar uma postura crítica frente às

normas, às decisões judiciais e, em geral, às soluções jurídicas que aí surgem.

Os critérios para tal crítica são dados pelo próprio Direito positivo, pelos

valores e princípios gerais que enformam este Direito, com especial relevo para

as normas e princípios constitucionais.

Isto não obsta a que a crítica do Direito positivo possa ser feita com base em

valores e princípios supra-positivos, mas parece que então nos colocamos numa

perspetiva de Filosofia do Direito e não de Ciência do Direito.

Como quer que seja esta crítica da lei pode sempre desembocar em

propostas concretas de reforma legislativa, pelo que, como diz LARENZ, a

Ciência do Direito “se insinua no campo da política jurídica”.

A política jurídica também não é alheia à missão do jurista no sentido em que

o intérprete tem de compreender e respeitar, em princípio, as opções políticas

feitas pelo legislador.

Mas é no plano da integração de lacunas que a política jurídica assume maior

relevância para a Ciência do Direito. Quando, por não ser possível o recurso à

analogia nem a princípios jurídicos, for necessário formular o critério de decisão

do caso, o aplicador tem de se colocar na posição do legislador.

Segundo a opinião que dominou no Séc. XX, a Ciência do Direito não traz

nada de novo à ordem jurídica, não contribui para o seu aperfeiçoamento e

desenvolvimento, não tem uma função cognitiva. Será assim?

A resposta a esta questão não é pré-determinada pela posição que se tome

sobre o problema do conhecimento dos valores em geral, porque se parte agora

de um sistema de valores dado, o de uma ordem jurídica. Neste contexto parece

de entender que os enunciados da Ciência do Direito são até certo ponto

demonstráveis.

A Ciência do Direito visa sempre, em última análise, chegar à solução válida.

Mesmo que seja apenas válida face ao sistema, i.e., perante as regras, os

princípios e os valores do sistema.

A busca da solução válida pode levar o jurista a afastar-se da solução mais

corrente ou que até aí tem sido dada a um problema de regulação jurídica.

Page 94: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

94

Portanto, ao resolver problemas de interpretação e ao integrar lacunas a

Ciência Jurídica avança soluções que contribuem para o desenvolvimento e

aperfeiçoamento do Direito vigente no quadro do sistema.

Em certas circunstâncias especiais este desenvolvimento e aperfeiçoamento

pode ir mesmo além do sistema, embora neste caso a solução tenha porventura

menos força, por não ser verificável à luz do sistema.

Enfim, a Ciência do Direito não se limita a analisar se esta ou aquela solução

são válidas, tem permanentemente de preocupar-se com a revelação de

princípios jurídicos retores e também com aspetos estruturais, relativos à

estrutura das regras jurídicas e do sistema.

A formação jurídica

A formação jurídica diverge bastante de país para país.

Nos países latinos a universidade dá a formação geral. A formação

profissional é obtida fora dela, dependendo da carreira jurídica a que se destina.

Assim, entre nós, para o acesso à advocacia existe o estágio de advocacia e

para o acesso à magistratura o Centro de Estudos Judiciários.

Na Alemanha, a universidade ministra os cursos de Direito, mas os dois

exames fundamentais – “os exames de Estado” – são realizados por uma

entidade autónoma. O acesso a todas as profissões jurídicas depende de um

estágio que decorre junto de tribunais, serviços de administração pública e

escritórios de advocacia. Termina com o segundo “exame de Estado”.

Na Inglaterra, o curso de Direito versa atualmente sobre matérias obrigatórias

dos exames a que os candidatos à advocacia (solicitors e barristers) têm de se

submeter.

Mas o curso de Direito não constitui requisito absolutamente indispensável

para o exercício de uma profissão jurídica. O acesso às profissões jurídicas é

permitido a quem tenha outros diplomas universitários, sendo no entanto exigido

a realização de um exame (Common Professional Examination) precedido

obrigatoriamente da frequência de um curso de um ano ministrado por uma

Universidade ou Instituto Politécnico.

Page 95: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

95

Já nos EUA o curso de Direito é necessário para o acesso às profissões

jurídicas e até à pouco tempo era baseado quase exclusivamente na análise de

casos reais decididos pelos tribunais [case method].

Atualmente verifica-se uma diversificação dos métodos de ensino, que

também inclui uma aproximação aos métodos usados nas universidades dos

países da família romano-germânica.

O acesso à profissão depende de aprovação em exame promovido por uma

associação profissional.

Como deve ser o ensino do Direito?

O Direito também é ensinado noutros cursos, a título complementar, com uma

função informativa. Por exemplo, nos cursos de gestão.

É corrente afirmar que o curso de Direito deve ter uma função formativa. Quer

isto dizer que o ensino universitário deve proporcionar aos alunos a aquisição

dos esquemas de raciocínio e dos quadros mentais próprios de uma ciência. A

sua primeira missão é a de proporcionar uma sólida formação científica e não a

de preparar para o exercício de uma determinada profissão. Deve ser formativo

e não profissionalizante.

Ao mesmo tempo, porém, o ensino deve responder a necessidades da vida.

O ensino do Direito nunca deve perder de vista a resolução de problemas

concretos de regulação jurídica. Há uma tensão dialética entre as exigências de

sistematização e de construção dogmática e a resolução de problemas

concretos.

Em última instância cabe afirmar um primado da praxis: a Ciência Jurídica

no seu conjunto deve estar ao serviço da resolução de problemas práticos.

Por isso, o ensino universitário também deve proporcionar a formação técnica

de base exigida pela atividade profissional. No que toca ao ensino do Direito,

esta formação técnica diz respeito ao estudo do Direito positivo e à Ciência

Jurídica Prática e não a exigências específicas de uma determinada profissão

jurídica.

O curso de Direito inclui necessariamente o estudo das principais matérias

do Direito positivo e da metodologia da Ciência Jurídica Prática.

O Curso de Direito deve sobretudo preparar o aluno para saber pensar o

Direito, capacitando-o para resolver os problemas jurídicos.

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96

Perante a crescente complexidade e vastidão do Direito vigente o curso de

Direito não pode ter a pretensão de cobrir todo o Direito vigente.

O ensino tem de ser crítico: o jurista tem de ser um agente de mudança e

sobreviver nela. Se o ensino do Direito se resumisse a um ensino de leis, quando

estas mudassem pouco se saberia. Sendo um ensino formativo o jurista terá a

base na qual poderá enquadrar todas as alterações legislativas que surgirem.

O curso de Direito deve dar a formação básica sobre a qual assentará a

formação profissional específica de cada profissão jurídica.

O curso de Direito tem de ter um nível científico elevado para que os juristas

fiquem habilitados a encontrar soluções cuja validade pode ser demonstrada

segundo critérios científicos.

O papel dos juristas

Os juristas desempenham papéis sociais muito diferenciados: como

profissionais independentes, como quadros de empresas, como funcionários

públicos, como titulares de órgãos públicos.

Exercem atividade profissional independente os advogados, os

jurisconsultos, os solicitadores e os notários (que são, simultaneamente, oficiais

públicos).

São titulares de órgãos públicos os magistrados e os conservadores de

registo.

Há muitos outros juristas que são funcionários públicos.

Os juristas que trabalham em empresas são designados juristas de empresa.

Page 97: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

97

PARTE II - TEORIA GERAL DO DIREITO

TÍTULO I - A SOLUÇÃO DO CASO POR VIAS NÃO NORMATIVAS

Modalidades

Um caso, isto é, uma situação vida carecida de regulação jurídica, pode ser

resolvido ou por recurso a critérios jurídicos ou independentemente destes

critérios.

Os atos de autoridade, que sejam praticados sem fundamento no Direito

objetivo, resolvem casos sem obediência a critérios jurídicos.

Assim, em certos sistemas autoritários as decisões de chefes políticos são

mais importantes do que as regras jurídicas ou as decisões dos tribunais.

Estes atos de autoridade sem fundamento jurídico não são compatíveis com

o Estado de Direito, pois, como vimos, este postula a sujeição do poder ao

Direito, e, designadamente, o enquadramento jurídico do exercício do poder.

Mesmo em sistemas como o nosso podem verificar-se, ainda que

anomalamente, atos de autoridade sem fundamento legal. É o que se verifica

com atos administrativos sob forma de lei, por exemplo, uma lei que cria

diretamente para uma pessoa uma situação individual à generalidade das

regras jurídicas.

Entre as soluções que obedecem a critérios jurídicos, podemos distinguir as

soluções normativas e as soluções não normativas, conforme os critérios

jurídicos relevantes são ou não normas.

Soluções individualizadoras

No Direito há um conflito permanente entre a tendência generalizadora e a

tendência individualizadora, entre a justiça igualitária e a justiça do caso

concreto.

A solução generalizadora é por excelência a solução normativa: a norma

jurídica é uma regra geral, porque no momento da sua criação se verifica uma

Page 98: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

98

indeterminabilidade dos seus destinatários e, em princípio, é abstrata, porque no

momento da sua criação se verifica uma indeterminabilidade das situações a que

virá a ser aplicada.

A solução normativa serve a supremacia do Direito, a igualdade, a certeza

jurídica sobre o Direito objetivo e a previsibilidade das decisões judiciais.

A igualdade servida pela solução normativa é formal, exprimindo-se na

igualdade perante a lei a que atrás fiz referência.

Mas a igualdade formal não atende à infinita diversidade dos casos da vida.

A justiça igualitária tem de certo modo os olhos vendados, porque despreza

todos os elementos de uma situação da vida que não constituam pressupostos

de aplicação da norma.

Uma tendência moderna insiste na justiça do caso concreto, na consideração

de todas as circunstâncias do caso. Esta tendência tem vindo a obter um

acolhimento parcial, quer através da admissibilidade de soluções

individualizadoras, quer dos novos entendimentos relativos à interpretação e

aplicação das regras jurídicas.

A solução individualizadora pode dispensar os critérios normativos: é o que

se verifica com a decisão proferida exclusivamente segundo a equidade.

Mas também pode traduzir-se numa mera flexibilização de soluções

normativas, numa solução de compromisso. Vejamos três casos em que se

verifica este compromisso.

O primeiro caso é o recurso a recurso a conceitos indeterminados e a

cláusulas gerais. Por exemplo, quando o art. 762.º/2 CC estabelece que no

cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente,

as partes devem proceder de boa fé. Temos aqui a cláusula geral de boa fé, em

cuja atuação se pode ter em conta as circunstâncias do caso concreto.

O segundo caso é a atribuição por lei a um órgão administrativo ou judicial

de um poder de determinação de consequências jurídicas cujo exercício não

está submetido inteiramente a regras.

Por exemplo, o poder discricionário que é atribuído por lei a um órgão

administrativo. Geralmente a lei não atribui poderes inteiramente discricionários,

mas sim margens de discricionariedade. A discricionariedade é a possibilidade

de o órgão determinar no caso concreto qual a decisão que melhor corresponde

Page 99: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

99

ao fim da norma que concede o poder e mais em geral aos interesses coletivos

cuja prossecução lhe é confiada.

O terceiro caso é o de certas hipóteses de equidade complementar, a que

farei referência mais adiante.

A equidade como critério exclusivo de solução

Na atualidade a equidade tem duas aceções.

Numa aceção de sabor aristotélico trata-se de corrigir as injustiças

ocasionadas pela natureza rígida das regras jurídicas abstratas mediante uma

consideração das particularidades do caso concreto. Trata-se de uma equidade

em sentido fraco que releva, indubitavelmente, quando a equidade é chamada a

desempenhar o papel de critério complementar de decisão.

Já a equidade em sentido forte é um modo de solução que prescinde do

Direito estrito, i.e., das regras aplicáveis ao caso, baseando-se na chamada

justiça do caso concreto.

O CC não define equidade, mas refere-a frequentemente. As referências

mais importantes constam dos arts. 4.º, 400.º/1, 437.º/1, 494.º, 496.º/3, 566.º/3

e 1407.º/2.

Também na Constituição as “razões de equidade” são referidas como um dos

fundamentos que podem justificar uma limitação à eficácia retroativa da

declaração de inconstitucionalidade ou ilegalidade de uma norma (art. 282.º/4).

Enquanto as als. b e c do art. 4.º CC permitem uma decisão exclusivamente

segundo a equidade, nos outros casos a decisão baseia-se, em princípio, no

Direito estrito, mas a equidade intervém como critério complementar.

A primeira questão que se coloca é de saber quando é que o órgão de

aplicação do Direito pode decidir segundo a equidade.

O art. 4.º CC estabelece que os tribunais só podem resolver segundo a

equidade quando haja disposição legal que o permita e quando haja acordo nas

partes nesse sentido.

Acontece que nos casos em que a lei remete para a equidade esta intervém,

geralmente, apenas como critério complementar de decisão.

Page 100: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

100

A equidade constitui um critério exclusivo de solução quando as partes o

convencionem. O fundamento do julgamento segundo a equidade é a autonomia

da vontade. É uma manifestação do princípio da autonomia privada.

O acordo pode respeitar a um caso concreto que diga respeito a uma relação

disponível (art. 4.º/b) ou pode ter sido previamente estabelecido pelas partes,

para os litígios eventuais emergentes de uma dada relação, desde que obedeça

aos requisitos estabelecidos para a cláusula compromissória (art. 4.º/c CC).

São indisponíveis os direitos que as partes não podem constituir nem

extinguir por ato de vontade e os que não são renunciáveis. Por exemplo, os

direitos familiares pessoais, os direitos de personalidade e o direito de alimentos.

Em caso de indisponibilidade meramente relativa, como é o dos direitos de

personalidade, são disponíveis as questões que digam respeito a limitações

voluntárias admissíveis e a explorações económicas permitidas.

Em regra, os direitos patrimoniais (i.e., relativos a bens avaliáveis em

dinheiro) são disponíveis e os direitos pessoais são indisponíveis. Mas há

exceções (por exemplo, o direito de alimentos é patrimonial mas indisponível).

Quando o acordo tenha por objeto litígios eventuais tem de obedecer aos

requisitos estabelecidos para a cláusula compromissória. Esses requisitos

encontram-se estabelecidos na L n.º 63/2011, de 14/12 (LAV). Decorre dos arts.

1.º e 2.º desta lei que o acordo pode dizer respeito a quaisquer litígios de

natureza disponível ou patrimonial, tem de ser escrito e deve especificar a

relação jurídica a que os litígios respeitam.

Segundo o melhor entendimento, o art. 4.º/c refere-se aos casos em que as

partes tenham estipulado um julgamento de equidade pelos tribunais estaduais.

O s casos em que tenham celebrado uma convenção de arbitragem são

regulados pela LAV.

A questão seguinte é a de saber se a equidade é uma fonte do Direito.

O art. 4.º está inserido no Cap. I do Tít. I do Livro I do CC – “Fontes do Direito”.

Na sistemática do CC (arts. 1.º a 4.º) e segundo alguns autores a equidade

seria uma fonte “mediata” de Direito.

Mas esta inserção sistemática não corresponde à arrumação científica.

Fontes do Direito objetivo são os modos de criação de normas e princípios de

conduta. A decisão de equidade não só não constitui precedente vinculativo –

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101

como não o constituem, em geral, as decisões jurisdicionais nos sistemas da

família romanogermânica – como também não é orientada à obtenção de uma

solução suscetível de generalização, à formulação de uma regra que possa ser

aplicada em casos semelhantes que sejam futuramente julgados.

A equidade é um critério jurídico de solução de casos.

À resolução dos casos segundo a equidade contrapõe-se a resolução dos

casos segundo o Direito estrito. “Direito estrito” são as regras aplicáveis ao caso.

Estas regras não têm de ser respeitadas quando o tribunal estiver autorizado a

decidir segundo a equidade.

Para a regra jurídica só relevam as circunstâncias inscritas na sua previsão

legal como pressupostos de aplicabilidade. Outras circunstâncias, não previstas,

são irrelevantes. A equidade, pelo contrário permite tomar em consideração

todas as circunstâncias do caso que sejam socialmente relevantes à luz da

justiça. Mas à luz de que critério ou critérios devem estas circunstâncias ser

apreciadas?

Chegamos assim à terceira questão: a de determinar o sentido da decisão

segundo a equidade.

Não se encontra claramente estabelecido entre nós qual o sentido do

julgamento de equidade como critério exclusivo de solução. A opinião dominante

parece entender a equidade, neste contexto, em aceção forte. Nesta aceção a

equidade é um modo de solução de casos independente do Direito estrito.

Mas não é uma decisão arbitrária ou alheia às conceções jurídicas gerais.

Será mais exato ver aqui um modelo extrassistemático de decisão: o tribunal

pode apreciar com considerável margem de liberdade todos os argumentos

jurídicos e extrajurídicos que tenham um mínimo de relevância social objetiva, e

fundamentar racionalmente a decisão com base nestes argumentos e na

ponderação das consequências sociais da decisão.

Por contraposição a este modelo extrassistemático de decisão, a decisão

segundo o Direito estrito obedece a um modelo intrassistemático ou normativo:

os argumentos relevantes estão previamente delimitados, dispostos segundo

uma ordem e com um peso relativo predeterminado pelas fontes do Direito, e o

raciocínio observa o método da Ciência do Direito.

Haverá alguns limites colocados pelo Direito positivo à decisão de equidade?

Page 102: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

102

Há referências ao Direito positivo que são necessárias para estabelecer o

caráter jurídico da pretensão e a disponibilidade ou patrimonialidade dos direitos

em causa.

Além disso parece que a decisão terá sempre de respeitar os princípios

gerais de Direito e de atender aos valores fundamentais da ordem jurídica.

A equidade complementar

Enquanto critério complementar de decisão, a equidade não se substitui ao

Direito estrito, surge antes como um critério jurídico que complementa a

aplicação de regras.

Na maioria dos casos em que uma disposição legal permite o recurso à

equidade trata-se de determinar aspetos quantitativos de certas prestações.

Por exemplo, o art. 494.º CC determina que quando a responsabilidade se

fundar na mera culpa a indemnização poderá ser fixada, equitativamente, em

montante inferior ao que corresponderia aos danos. Repare-se que aqui há uma

decisão em matéria de responsabilidade civil por factos ilícitos, que aplica as

normas que constam dos arts. 483.º e segs. CC.

Noutros casos, a equidade extravasa do âmbito da determinação

quantitativa.

Por exemplo, no art. 437.º/1 CC atribui-se à parte lesada pela alteração

anormal das circunstâncias em que as partes funda-ram a decisão de contratar

o direito à modificação do contrato, segundo juízos de equidade. A lei estabelece

expressamente que na apreciação deste ponto o órgão de aplicação tem de

respeitar determinados critérios jurídicos: a parte lesada só tem direito à

modificação do contrato se a exigência das obrigações por ela assumidas afeta

gravemente os princípios da boa fé e não está coberta pelos riscos próprios do

contrato.

Em todos estes casos não há uma pura do justiça do caso concreto, mas

antes uma maior liberdade do julgador na determinação das circunstâncias

relevantes e do peso relativo dos diferentes critérios valorativos a ter em conta.

Pese embora a importância que a equidade como critério exclusivo e

complementar de solução assume no Direito português, a regra, porém, é a

solução normativa. E justifica-se que assim seja. Só a norma constitui um critério

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103

de conduta por que os membros da sociedade se podem orientar; só a norma

proporciona uma certa previsibilidade das decisões judiciais; só a norma garante

a igualdade perante a lei e esta é uma das condições da solução justa. Um

Direito baseado em soluções individualizadoras fica inteiramente dependente da

decisão judicial. A falta de previsibilidade da solução contribui para o acréscimo

da litigiosidade e do recurso aos tribunais. Ora, o Direito tem de ser uma ordem

normativa da sociedade e não o produto de decisões judiciais imprevisíveis.

Nas palavras de OLIVEIRA ASCENSÃO, o “templo do Direito não é o Palácio

da Justiça mas a praça pública onde todos os cidadãos pacificamente convivem”.

TÍTULO II - FONTES DO DIREITO

CAP. I - CONCEITO DE FONTES DO DIREITO E SUA CLASSIFICAÇÃO

Preliminares

Noutros pontos do programa, a nossa atenção centrou-se no estudo dos

elementos da ordem jurídica, da sua estrutura. Encarámos o Direito, então, numa

perspetiva estática, para apreendermos os seus elementos mais estáveis e,

assim, melhor o compreendermos. Trata-se agora de examinar a sua dinâmica,

o modo como são incluídos novos elementos na ordem jurídica, o modo como

são excluídos outros elementos.

Tradicionalmente, fala-se, a este respeito, de “fontes do Direito”.

Todos conhecem o sentido próprio da palavra “fonte”: uma nascente, um

lugar onde brota água. Na linguagem comum, a palavra “fonte” é aplicada, agora

em sentido figurado, a causa, origem e texto originário de uma obra.

“Fonte do Direito” é uma imagem, evocativa de tudo o que se refere à criação

do Direito, às circunstâncias que a envolvem e aos instrumentos nela utilizados.

É uma imagem rica, abrangente, mas que, por isto mesmo, suscita dificuldades

quando se procura dar precisão científica ao conceito de fontes do Direito.

Será partindo deste ponto de vista muito geral, que procurarei, gradualmente,

apurar o conceito de “fontes do Direito” mais relevante para a nossa disciplina.

Tradicionalmente, quando se fala de fonte do Direito, tem-se apenas em

mente a criação das regras jurídicas, portanto, só se abarca o problema das

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104

“fontes” de um dos elementos da ordem jurídica.Assim, quando o Código Civil,

se refere às “Fontes do direito”, no cap. I, do tít. I, do livro I, é das fontes das

regras jurídicas que se trata.

Aceções

Assinalou-se que a palavra “fonte” pode ser utilizada para significar causa.

Por vezes emprega-se a expressão “fonte do Direito” em sentido sociológico,

para designar o circunstancialismo social que está na base da formulação de

uma dada regra ou complexo normativo.

Outras palavras e expressões encontram aqui mais feliz aplicação: “motivos

sociais”, “antecedentes”, “occasio legis”.

São fontes do Direito em sentido instrumental os documentos que contêm

regras jurídicas. Por exemplo, os exemplares do Diário da República; as

compilações de costumes; as coletâneas de jurisprudência, se esta for fonte do

Direito, etc.

São fontes em sentido histórico todos os elementos que ao longo dos tempos

contribuíram para a formação do Direito positivo atualmente em vigor.

O Direito português é uma das fontes históricas do Direito brasileiro, o Direito

romano é uma das fontes históricas de ambos.

São fontes em sentido orgânico os órgãos que desempenham ou participam

da função legislativa. Por exemplo, a Assembleia da República e o Governo.

O sentido orgânico interessa especialmente ao Direito Público.

Para a Ciência do Direito em geral a aceção mais importante é a técnico-

jurídica: segundo uma expressão muito divulgada “os modos de formação e

revelação das regras jurídicas”.

Esta expressão também não passa sem crítica. Para uma parte da doutrina,

a palavra “formação” é equívoca, sendo preferível falar apenas de “modos de

revelação” por que o Direito se manifesta na vida social e cultural.

Todavia, parece que o “modo de revelação”, enquanto manifestação exterior

do Direito, terá de se incluir no modo ou processo de criação: não há lei sem

haver ou ter havido um texto, não há costume sem uma prática reiterada.

Page 105: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

105

Quando se pergunta como nascem as regras no quadro de uma ordem

jurídica, sem querer vincular a resposta a prévias opções filosóficas, parece mais

natural falar, primeiramente, dos “modos de formação” ou “criação” do Direito.

O modo de criação de uma regra é o facto ou processo que a gera. Verificado

o facto, ou realizado o processo, a regra existe.

Classificação - Referência às fontes supraestaduais (internacionais e

europeias)

Uma primeira classificação distingue as fontes intencionais ou voluntárias das

fontes não intencionais ou involuntárias.

A fonte é intencional quando o processo de formação é dominado por um ato

jurídico. É o caso da criação do Direito por ato legislativo. Também a

jurisprudência e a ciência do Direito, na medida em que sejam fontes do Direito,

pertencem a esta categoria.

Fonte não intencional é o costume. A formação do costume não é dominada

por um ato jurídico.

Com referência aos arts. 1.º a 3.º do CC, podemos distinguir entre fontes

imediatas e fontes mediatas. São fontes imediatas as que têm força vinculante

própria e mediatas as que adquirem força vinculante por remissão de outras

fontes.

Na visão do legislador do CC, só as leis e as normas corporativas seriam

fontes imediatas do Direito. Os assentos, os usos e a equidade só teriam força

vinculante nos casos em que a lei para eles remete. Como já foi assinalado, a

equidade não é uma fonte do Direito. Adiante ajuizaremos melhor do alcance

destes preceitos do CC.

Se as fontes imediatas têm uma força vinculante própria, essa força não pode

resultar do art. 1.º/1 CC. Este preceito deve ser entendido como uma proposição

descritiva, que se limita a reconhecer as leis e as normas corporativas como

fontes do Direito (TEIXEIRA DE SOUSA).

Enfim, tomando como ponto de referência a ordem jurídica estadual,

podemos ainda classificar as fontes em estaduais, supraestaduais,

infraestaduais e paraestaduais.

Page 106: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

106

Fontes supraestaduais são os processos de criação de normas específicos

da comunidade internacional e de outras comunidades supraestaduais. São

fontes supraestaduais da ordem jurídica portuguesa as fontes do Direito

Internacional Público recebidas na ordem interna e as fontes do Direito da União

Europeia.

O alcance das fontes estaduais corresponde ao âmbito duma ordem jurídica

estadual. Por exemplo, a lei da Assembleia da República de aplicação geral.

As fontes infraestaduais têm alcance limitado a um certo setor da sociedade

estadual. Este setor pode ser definido numa base territorial ou numa base

pessoal. Por exemplo os atos normativos das assembleias regionais dos Açores

e da Madeira.

As fontes paraestaduais são as que, embora transcendendo o âmbito de uma

ordem jurídica estadual, não constituem processos de criação de normas

específicos da comunidade internacional ou de comunidades supraestaduais.

Tem de ser entendido em ligação com as sociedades paraestaduais.

O estudo das fontes do Direito realizado na nossa disciplina incide

essencialmente sobre as fontes estaduais e infraestaduais.

O estudo das fontes supraestaduais é realizado nas disciplinas de Direito

Internacional Público e de Direito União Europeia. Todavia, uma vez que a nossa

disciplina precede estas disciplinas e que os alunos têm de lidar com as fontes

supraestaduais deste o 1.º ano do Curso justifica-se uma breve referência a

estas fontes.

As principais fontes de Direito Internacional Público são o costume

internacional, o tratado internacional, a decisão de organização internacional e a

jurisprudência internacional.

Numa primeira aproximação, podemos definir costume internacional como

uma prática reiterada dos Estados, das organizações internacionais ou dos seus

órgãos que é acompanhada de convicção de vinculatividade.

Por seu turno, o tratado internacional pode ser definido como acordo de

vontades celebrado por sujeitos de Direito Internacional, regido pelo Direito

Internacional e que produz efeitos jurídico-internacionais.

Page 107: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

107

As fontes do Direito Europeu podem dividir-se entre fontes de Direito Europeu

originário e fontes de Direito Europeu derivado.

As atuais fontes de Direito Europeu originário são o Tratado da União

Europeia, o Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia e o Tratado que

fundou a Comunidade Europeia da Energia Atómica, bem como a Carta dos

Direitos Fundamentais da União Europeia “que tem os mesmo valor jurídico que

os Tratados” nos termos do art. 6.º/1 do Tratado da União Europeia e os

Protocolos e Anexos dos Tratados que fazem deles parte integrante (art. 51.º do

Tratado da União Europeia).

Também são consideradas fontes de Direito originário da União Europeia os

princípios gerais de Direito.

São fontes de Direito derivado da União Europeia, numa primeira

aproximação, os atos normativos emanados dos órgãos da União Europeia e

que se fundamentam nos Tratados instituintes. Estes atos estão enumerados no

art. 288.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.

Primeiro, os regulamentos, que são atos normativos com caráter geral,

obrigatórios para os seus destinatários em todos os seus elementos e que

gozam de aplicabilidade direta na ordem interna dos Estados-Membros.

Segundo, as diretivas, que são atos normativos que vinculam os Estados-

Membros destinatários quanto aos resultados a alcançar, mas deixam aos

Estados-Membros a liberdade de escolha quanto à forma e quanto aos meios de

alcançar o resultado previsto na ordem interna.

A diretivas carecem de transposição para a ordem jurídica dos Estados-

Membros através de legislação de fonte interna, embora possam produzir certos

efeitos diretos quando não sejam transpostas no prazo estabelecido.

Terceiro, as decisões, que podem ter caráter individual, constituindo neste

caso um ato administrativo, ou caráter geral, hipótese em que se trata de um ato

normativo. A decisão é obrigatória em todos os seus elementos.

Page 108: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

108

Significado dos preceitos legais sobre fontes do Direito

Na visão do legislador de 1966, apenas as leis e as normas corporativas são

fontes imediatas de Direito, com força vinculante própria (arts. 1.º a 4º CC). A

existência de costume é ignorada, o art. 3º só aos usos se refere, como possível

fonte mediata do Direito.

Nestes preceitos o legislador de 1966 exprime uma conceção de Direito de

pendor positivista legalista – que o encara como um conjunto de regras

emanadas do Estado – com concessões a uma visão institucionalista no quadro

do sistema corporativo. Abolido o sistema corporativo e as suas fontes próprias,

fica-nos a exclusividade dos atos normativos estaduais como fonte imediata do

Direito.

Segundo o entendimento que prevalece na doutrina atual, o problema das

fontes do Direito não pode ser resolvido apenas com base nestes preceitos.

Para compreender o problema das fontes será necessário atender aos seus

diversos aspetos.

Por um lado, é um problema de conhecimento científico, que pode e deve ser

livremente apreciado pela Ciência do Direito, no capítulo dedicado à teoria das

fontes. Trata-se de estudar quais os modos por que são criadas as regras

jurídicas que ordenam a vida social.

A teoria das fontes não pode condicionar as suas hipóteses de trabalho, nem

as suas conclusões, a quaisquer conceções apriorísticas sobre quais devem ser

as fontes do Direito, ainda que estas conceções sejam consagradas pelo

legislador.

Não é esta, porém, a única perspetiva relevante. A ordem jurídica moderna

não pode deixar de regular os processos da sua própria modificação. A produção

jurídica de normas também é objeto de regras. O problema das fontes do Direito

comporta um aspeto de regulação jurídico-positiva: não está só em causa o

modo por que se formam regras jurídicas, mas também a quem deve ser reconhecido o poder de criar regras jurídicas e o modo por que elas se devem

formar.

Page 109: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

109

Preceitos como os que constam dos primeiros artigos do CC são normas

sobre fontes, sobre a produção jurídica, ou normas de reconhecimento.

Mas a resposta dada ao problema das fontes do Direito pelos preceitos do

Código Civil não é conclusiva, porque o problema tem uma dimensão

constitucional.

Apesar da primazia reconhecida às normas contidas na Constituição (formal),

creio que também não pode resolver-se apenas com base nas normas da lei

fundamental, não só pela sua insuficiência, mas porque o problema se coloca

igualmente em relação às fontes do próprio Direito Constitucional.

É um ponto muito complexo, que não é possível aprofundar aqui, mas sobre

o qual é inevitável uma tomada de posição.

Parece de partir do princípio que, nas sociedades modernas, integra a

consciência jurídica geral e, em especial, a da comunidade jurídica, uma

determinada conceção normativa sobre quais os processos idóneos para

gerarem regras jurídicas.

Encontra-se aqui a “regra de reconhecimento” última em que assentam todas

as outras regras sobre a produção jurídica.

Esta “regra de reconhecimento” não se identifica necessariamente com as

regras legais sobre fontes do Direito. Isto não significa que as regras legais sobre

fontes do Direito não tenham qualquer valor. Estas normas definem a posição

do poder político com respeito aos modos de criação de regras jurídicas.

Sendo a Constituição o estatuto da comunidade e do poder político (JORGE

MIRANDA), a definição desta posição há-de procurar-se, em primeiro lugar, no

texto constitucional.

O texto constitucional não dispõe expressamente sobre o ponto, mas contém

algumas indicações relevantes.

Com efeito, o texto constitucional estabelece que "a validade das leis e

demais actos do Estado (...) depende da sua conformidade com a Constituição"

(art. 3.º/3), que na “administração da justiça “incumbe aos tribunais assegurar a

defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos” (art.

202.º/2) e que os “tribunais (…) apenas estão sujeitos à lei” (art. 203.º).

Estes preceitos não mencionam qualquer outra fonte do Direito que não seja

a lei. O preceito referido em último lugar é especialmente significativo, porque os

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110

trabalhos preparatórios dão conta de que uma proposta de aditamento no

sentido de colocar o “Direito” a par da “lei” foi rejeitada.

Isto pode ser interpretado no sentido de se eleger a lei como única fonte do

Direito. Não creio, porém, que seja este o melhor entendimento.

Primeiro, porque alguns preceitos da Constituição reconhecem a existência

de outras fontes do Direito. Assim, o art. 8.º/1 da Constituição ao referir “as

normas e os princípios de direito internacional geral ou comum” engloba, entre

as fontes deste Direito, o costume de Direito Internacional. A Constituição admite

ainda que certas decisões do Tribunal Constitucional tenham força obrigatória

geral, como se verá oportunamente.

Segundo, porque as preocupações manifestadas nos trabalhos preparatórios

são satisfeitas pela primazia da lei relativamente a outras fontes do Direito, não

exigindo já a exclusividade da lei como fonte do Direito.

Assim, afora o Direito Internacional consuetudinário, o texto constitucional

não reconhece o costume como fonte do Direito, mas também não veda o seu

reconhecimento, sem prejuízo da primazia da lei. Parece razoavelmente seguro

que não se pode aplicar costume que restrinja direitos, liberdades e garantias

(art. 18.º).

O texto constitucional também não reconhece genericamente a

jurisprudência ou a ciência do Direito como fontes do Direito. Relativamente à

jurisprudência o disposto no já citado art. 203.º CRP bem como no art. 112.º/5

CRP parece opor-se a um sistema de precedente vinculativo. Este último

preceito não permite que a lei confira a atos, que não sejam os atos legislativos

referidos no art. 112.º/1, o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar,

modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos à declaração de

inconstitucionalidade dos assentos.

Mas também não fica inteiramente excluído que a jurisprudência e a ciência

do Direito possam desempenhar algum papel como fontes do Direito. Já se

assinalou que a Constituição admite que certas decisões do Tribunal

Constitucional tenham força obrigatória geral.

Page 111: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

111

Em suma, a Constituição impõe a primazia da lei com fonte interna do Direito,

mas com exceção de certas decisões do Tribunal Constitucional, nada determina

sobre as outras fontes internas do Direito.

Isto coloca o intérprete numa posição delicada, pois da primazia da lei como

fonte interna do Direito, tal como ela decorre da Constituição, não resulta que a

relevância do Direito consuetudinário interno e de outras eventuais fontes do

direito dependa da legislação ordinária.

Não se pretendendo formular quaisquer conclusões definitivas a este

respeito, direi apenas que na falta de indicações por parte do legislador

constitucional ou de normas hierarquicamente superiores (designadamente as

contidas em Convenções internacionais), as normas da legislação ordinária

sobre fontes do Direito e, entre elas, as que constam dos primeiros artigos do

Código Civil, devem constituir o ponto de partida (ver o art. 8.º CC e os arts. 3.º/1

e 4.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais – Lei nº 21/85, de 30/7).

Mas este ponto de partida pode ser corrigido, caso se demonstre que a

conceção normativa da comunidade jurídica sobre as fontes do Direito vigente

diverge das normas ordinárias sobre a produção jurídica.

CAP. II - A LEI

A lei: noção

Lei lato sensu é toda a regra geral emanada do poder político, seja ele um

poder central, regional ou local.

O art. 1.º/2 CC adota uma noção de lei que se aproxima desta, mas que dela

se distingue por limitar as leis às regras provindas de órgãos estaduais. Ora, já

sabemos que nem todo o poder político é estadual.

Quanto à definição de “lei”, enquanto modo de criação de regras jurídicas,

cumpre ainda fazer uma observação: o que normalmente se define como “lei” é

a regra ou complexo de regras formado de certo modo e não o modo de criação

em si, que é um processo (por exemplo, o processo legislativo).

Num Estado de Direito, certos vícios mais graves na criação e, segundo uma

parte da doutrina, no conteúdo de uma lei podem levar a considerá-la como

inexistente.

Page 112: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

112

Principais vícios que geram a inexistência:

à falta de votação de uma pretensa lei na Assembleia da República;

à falta de promulgação ou assinatura pelo Presidente da República de atos

da Assembleia da República ou do Governo (art. 137.º CRP);

à falta de referenda do Governo de atos do Presidente da República (art.

140.º CRP);

à usurpação da função legislativa por um órgão que não a pode exercer;

à segundo alguns autores, a violação do conteúdo essencial de direitos

fundamentais.

Em suma, este modo de criação jurídica caracteriza-se pelos seguintes

elementos:

à um ato normativo de um órgão do poder político, i.e., uma declaração de

vontade tendo por objeto a criação de regras gerais e que obedece a uma

das formas legalmente estabelecidas; o mais importante é o ato legislativo

praticado no exercício da função legislativa;

à a competência do órgão que pratica o ato;

à a formalização do ato num texto escrito.

Leis materiais e formais

O conceito de lei em sentido material divide a doutrina.

Uns adotam uma aceção ampla que corresponde ou se aproxima do conceito

de lei que acabei de expor: todo o ato normativo do poder político.

Este ato normativo pode ser legislativo, isto é, praticado no exercício da

função legislativa, ou regulamentar, isto é, praticado no exercício da função

administrativa.

Para outros a lei em sentido material é apenas a criada no exercício da função

legislativa. Nesta aceção só são leis em sentido material as que além de serem

formalmente leis são dotadas de generalidade.

Não há uniformidade no emprego da expressão lei em sentido formal.

Lei formal em sentido amplo é a que adota a forma de um ato legislativo. São

as leis constitucionais, as leis da AR, os DL do Governo e os decretos legislativos

regionais emanados das Assembleias das regiões autónomas.

Page 113: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

113

Não são lei, neste sentido, os diplomas que se revestem de forma

regulamentar, designadamente os decretos regulamentares, certas resoluções

do Conselho de Ministros, as portarias e os despachos normativos.

O ato normativo regulamentar caracteriza-se pelo seu caráter subordinado.

Podem editar regulamentos, designadamente, a Assembleia da República, o

Governo, bem como cada um dos seus membros, os órgãos das regiões

autónomas e as autarquias.

Num sentido formal mais restrito, “lei” é só o diploma normativo emanado da

AR. Ver art. 166.º CRP.

Admito a hipótese de haver leis em sentido formal que não são leis em

sentido material – atos praticados em forma legislativa que não contêm regras

gerais, ou, inversamente, atos normativos que não obedecem a uma forma

legalmente estabelecida. Resta saber quais as consequências de tais vícios, o

que terá de resolver-se, em princípio, com base no regime aplicável em função

do conteúdo do ato praticado.

Lei constitucional

A lei constitucional contrapõe-se à lei ordinária (cp. n.ºs 1, 2 e 3 do art. 166.º

CRP). A lei constitucional resulta do exercício de um poder superior de

autoconformação do Estado, o poder constituinte.

Assim, a atual constituição baseia-se na lei constitucional aprovada pela

Assembleia Constituinte em 1976 e pelas leis constitucionais que reviram a

constituição, em 1982, 1989, 1992, 1997, 2001, 2004 e 2005.

A lei ordinária tem de ser conforme com a lei constitucional sob pena de

inexistência ou invalidade (art. 277.º/1 CRP).

Atos normativos autónomos

Pensamos agora, dentro do Direito infraestadual, nas normas escritas

geradas por centros jurígenos independentes do poder político, estadual ou

infraestadual e, neste sentido, autónomos.

Page 114: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

114

Estes casos não são normalmente apresentados por forma unitária e

sistemática. Limitar-me-ei, pois, sem pretensão de exaustividade, a assinalar

duas das manifestações deste fenómeno: as regras emanadas de organizações

sociais e as regras geradas pela autonomia coletiva no Direito do Trabalho.

Noutro momento do nosso curso vimos que todas as organizações sociais

têm um estatuto regulador – expresso ou implícito – e são portadoras de um

certo sentido normativo.

Frequentemente estas organizações adotam, com base nos seus estatutos,

regras que regulam aspetos internos do seu funcionamento e as relações entre

os seus membros dentro do âmbito do seu objeto.

O Estado pode assumir diferentes atitudes perante este fenómeno. Em

primeiro lugar, pode reconhecer ou não reconhecer como jurídicas as regras

assim produzidas.

Afirma-se haver uma tendência para uma “administrativização” de certos

entes. Todavia, mesmo nos casos em que o Estado define e regula o estatuto

destas instituições, por exemplo, de uma associação profissional, elas continuam

a produzir, com considerável autonomia, as suas regras internas. E o

reconhecimento legal destas regras não lhes altera, por si, o seu caráter

autónomo.

Com a abolição do sistema corporativo o disposto na 2.ª parte do n.º 2 do art.

1.º CC caducou, uma vez que as instituições que prosseguem fins “morais,

culturais, económicos ou profissionais” deixaram de ser organismos

corporativos.

Em todo o caso, o referido preceito espelha o reconhecimento, tributário da

visão institucionalista, de que muitas organizações sociais produzem regras

jurídicas autónomas. Daí que não seja indefensável que o disposto no preceito

encontra ainda aplicação fora do contexto do sistema corporativo.

Esta fonte autónoma de juridicidade não pode estar ao mesmo nível que a

lei. O espaço que lhe é próprio é o que corresponde ao permitido ou tolerado

pela lei (ver também, relativamente às normas corporativas, o art. 1.º/3 CC).

Estas instituições exprimem grupos organizados com os seus fins específicos

existentes dentro de uma sociedade estadual. O Estado, se respeita na medida

do possível a sua autonomia, também pode exercer o necessário controlo.

Page 115: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

115

São fontes intencionais, mas, segundo me parece, diferentes da lei, porque

o ato normativo não é praticado por um órgão do poder político. É, em todo o

caso, um ponto controverso, que depende da noção de lei que se adote.

Quanto à fonte negocial a questão é complexa e extravasa do âmbito da

nossa disciplina.

A doutrina que nega a possibilidade de um negócio jurídico gerar regras

gerais carece de ser reexaminada. Com efeito, casos há em que a autonomia

privada, através de um acordo de vontades, é fonte de normas jurídicas.

Pense-se, designadamente, na convenção coletiva de trabalho – acordo de

vontades coletivas gerador de efeitos normativos e que constitui uma das

principais fontes de normas do Direito do Trabalho (arts. 1.º e 476.º e segs. C.

Trabalho).

Atos normativos do poder infraestadual

Os órgãos das regiões autónomas da Madeira e dos Açores bem como os

órgãos das autarquias locais têm competência para praticar atos normativos.

As regiões autónomas – como já assinalei – têm poder legislativo – ao passo

que as autarquias locais têm apenas competência regulamentar. Este poder

regulamentar encontra-se previsto no art. 241.º CRP.

Os atos regulamentares das autarquias locais são leis em sentido material

para quem as entenda na aceção ampla atrás adotada, embora não caibam no

conceito de lei adotado no n.º 2 do art. 1.º CC, visto que os órgãos autárquicos

não são órgãos estaduais.

Sentido das referências à “lei”

Recapitulemos os significados da palavra “lei” atrás referidos:

à lei em sentido material amplo: ato normativo emanado do poder político;

à lei em sentido material restrito: ato normativo praticado no exercício da

função legislativa;

à lei em sentido formal amplo: a que adota a forma de um ato legislativo;

à lei em sentido formal restrito: lei da Assembleia da República.

Page 116: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

116

A par dos significados atrás referidos, a palavra “lei” é por vezes utilizada pelo

legislador e pelos juristas noutras aceções.

Com alguma frequência utiliza-se a palavra lei no sentido de ordem jurídica.

Por exemplo, nos arts. 15.º e segs. do Cap. III do Tít. I do Liv. I CC – “Direito dos

Estrangeiros e conflitos de leis” – “Lei” significa geralmente o mesmo que ordem

jurídica. Inclui a lei em sentido material, o costume e outras fontes do Direito.

Só excecionalmente nos é oferecida uma definição do conceito de lei

relevante em determinado contexto – ver, por exemplo, o n.º 2 do art. 674.º do

Código de Processo Civil sobre os fundamentos do recurso de revista.

Afora estes casos excecionais, a utilização da palavra “lei” em cada preceito

legal pode colocar um problema de interpretação, a necessidade de fixar, entre

os vários sentidos possíveis da palavra, o que releva para a regra jurídica em

presença.

Por exemplo, quando o n.º 2 do art. 18.º CRP estabelece que a “lei só pode

restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos

na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para

salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”, qual

é o conceito de lei relevante?

A resposta está na Constituição: o n.º 1 do art. 165.º sujeita os direitos

liberdades e garantias a reserva relativa de competência legislativa da AR (b).

Portanto, o Governo também pode legislar nesta matéria, contanto que a AR o

autorize a fazê-lo. Por seu turno, o n.º 3 do art. 18.º determina que as leis

restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir caráter geral e

abstrato.

Em suma, o conceito de lei relevante para o nº 2 do art. 18.º é o de lei em

sentido formal amplo e, simultaneamente, em sentido material.

Noutros casos a definição do conceito de lei relevante decorre, com

segurança, de jurisprudência e doutrina uniformes: por exemplo, não oferece

dúvida que a “lei penal” referida no art. 1.º do Código Penal é a lei em sentido

formal.

Page 117: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

117

A Constituição distingue por vezes a lei formal de outros atos normativos –

por exemplo, nos arts. 3.º/3 e 241.º Mas na Constituição a palavra “lei” também

é utilizada em sentido material amplo – por exemplo, nos arts. 13.º/1 e 203.º. Por

forma geral, pode dizer-se que as modernas constituições tendem a sujeitar os

aspetos fundamentais da ordem jurídica à lei formal.

É difícil ir mais longe no estabelecimento de critérios específi-cos que

auxiliem o intérprete na determinação do sentido da referência à lei o

conceito relevante tem de ser fixado com base nos elementos e critérios gerais

de interpretação.

Vícios do ato legislativo

Já anteriormente se abriu uma distinção entre existência da lei e validade da

lei.

A lei inexistente não vincula os órgãos públicos nem os particulares, as

decisões judiciais tomadas com base numa lei inexistente também não vinculam

e a inexistência não carece de ser declarada por nenhum órgão estadual.

Outras violações geram a invalidade da lei (em sentido estrito), mas não

prejudicam a sua existência. Geralmente, a invalidade decorre de

inconstitucionalidade ou ilegalidade.

A invalidade da lei decorre de inconstitucionalidade quando a lei viola a

constituição sem que esta violação determine a inexistência. A invalidade

também pode decorrer de ilegalidade, quando uma lei viola outra lei ordinária

hierarquicamente superior (ver arts. 280.º a 282.º CRP).

No Direito português há fundamentalmente dois tipos de invalidade dos

negócios jurídicos: a nulidade e a anulabilidade. Estes tipos de invalidade serão

estudados na Teoria Geral do Direito Civil. O regime da inconstitucionalidade das

leis está dentro do âmbito da disciplina de Direito Constitucional. Aqui vou limitar-

me a um brevíssimo apontamento sobre o regime destes tipos de invalidade.

A nulidade atinge o negócio em si, que não produz desde o início efeitos. A

nulidade é invocável a todo o tempo, por qualquer interessado e pode ser

Page 118: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

118

declarada oficiosamente pelo tribunal (art. 286.º CC). Todavia, a declaração de

nulidade não atinge as decisões judiciais transitadas em julgado.

O regime da anulabilidade é bastante diferente. A anulabilidade não traduz

uma falha estrutural do negócio e, por isso, só pode ser invocada pelas pessoas

em cujo interesse a lei estabelece, em determinado prazo (art. 287.º CC).

O negócio anulável pode ser confirmado (art. 288.º CC).

O ato anulável produz efeitos (como se fosse válido) até à anulação. Se a

anulabilidade for arguida esses efeitos serão retroativamente destruídos (art.

289.º/1 CC); mas se não o forem tornam-se definitivos.

A invalidade das leis inconstitucionais é uma nulidade atípica (MARCELO

REBELO DE SOUSA) ou sui generis (JORGE MIRANDA). A lei inconstitucional

– afora os casos de inexistência – é nula.

Com efeito, pode ser objeto de uma declaração de inconstitucionalidade pelo

Tribunal Constitucional que produz efeitos desde a sua entrada em vigor (art.

282.º/1 CRP), respeitando só os casos julgados (art. 282.º/3 CRP). E qualquer

pessoa pode, num processo, invocar a inconstitucionalidade da lei.

Mas é uma nulidade atípica ou sui generis. Por um lado, só algumas

entidades públicas podem requerer a declaração de inconstitucionalidade com

força obrigatória geral (art. 281.º/2 CRP). Por outro lado, a declaração de

inconstitucionalidade pode salvar alguns efeitos da lei inconstitucional, além dos

casos julgados, quando a segurança jurídica, razões de equidade ou interesse

público de excecional relevo o exigirem (art. 282.º/4 CRP).

O mesmo regime se aplica à invalidade das leis ilegais, nos casos em que o

Tribunal Constitucional tem competência para fiscalizar esta ilegalidade.

Deveremos ainda distinguir invalidade de ineficácia (em sentido estrito). A lei

pode ser existente e válida, mas não produzir efeitos jurídicos.

A ineficácia pode ser originária ou superveniente.

É originária se a lei não chegou ainda a produzir efeitos.

Assim, decorre do n.º 2 do art. 119.º CRP que a falta de publicidade de

qualquer ato normativo dos órgãos de soberania, das regiões autónomas e do

poder local implica a sua ineficácia.

Uma lei pode inicialmente produzir efeitos, mas vir a tornar-se ineficaz. Fala-

se então de ineficácia superveniente. Examinaremos esta hipótese a propósito

da suspensão, cessação e termo da vigência.

Page 119: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

119

Publicação A regra jurídica destina-se, em princípio, a estabelecer um critério de conduta.

Só pode ser norma de conduta se for do conhecimento dos seus destinatários.

Por esta razão se compreende que a publicação condicione a entrada em vigor

da lei.

Do n.º 2 do art. 119.º CRP decorre que os atos normativos referidos no n.º 1

têm de ser publicados no jornal oficial sob pena de ineficácia. Por conseguinte,

a observância de qualquer outro modo de publicação, por exemplo através da

imprensa ou dos meios de radiodifusão, é irrelevante para a eficácia da lei.

O jornal oficial é o Diário da República.

Creio que se deve considerar o n.º 1 do art. 5.º CC revogado tacitamente,

uma vez que a matéria é hoje regulada pelo art. 119.º CRP e pela L n.º 74/98,

de 29/7 (alterada pelas Ls n.ºs 2/2005, de 24/1, 26/2006, de 30/6, e 42/2007, de

24/8), que regula a publicação, identificação e formulário dos diplomas.

Nos termos do n.º 3 do art. 119.º CRP a lei determina as formas de

publicidade dos atos que a Constituição não sujeita a publicação no jornal oficial

e as consequências da falta de publicidade.

Da conjugação do art. 119.º CRP com a Lei n.º 74/98 decorre que estão

sujeitos a publicação no Diário da República os atos legislativos, os atos

regulamentares da AR e das Assembleias Regionais, os atos regulamentares do

Governo e dos seus membros e os decretos regulamentares regionais dos

Governos das Regiões Autónomas

Embora a fórmula do n.º 2 do art. 119.º CRP possa não abranger todas as

leis em sentido material amplo, deve entender-se que a publicação é um

requisito de eficácia de todas as leis. Se a lei não estabelece a forma de

publicação terá de lhe ser dada a publicidade que permita o conhecimento pelos

seus destinatários: seja a notificação dos interessados, seja a afixação na sede,

seja qualquer outra forma.

A eficácia na ordem interna das normas de Convenções internacionais que

vinculam internacionalmente o Estado português depende de publicação no

Diário da República (arts. 8.º/2 e 119.º/1/b CRP).

Page 120: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

120

Já não estão sujeitas a publicação no Diário da República as normas

emanadas de organizações internacionais de que Portugal seja parte ao abrigo

dos respetivos tratados institutivos (art. 8.º/3 CRP).

Os atos normativos dos órgãos da União Europeia são publicados no Jornal

Oficial da União Europeia (ver também art. 8.º/4 CRP).

Retificações

Em consequência de falhas técnicas na reprodução do texto do ato

normativo, o texto publicado apresenta por vezes divergências com o texto

original.

Torna-se então necessário proceder a retificações, que se destinam a

restabelecer a conformidade do texto publicado com o texto original.

As retificações também podem servir para corrigir lapsos gramaticais,

ortográficos, de cálculo ou de natureza análoga (art. 5.º/1 da L n.º 74/98).

Decorre do art. 5.º da L. n.º 74/98 que as rectificações são feitas mediante

declaração do órgão que aprovou o texto original e têm de ser publicadas na

série do Diário de República em que tiver sido publicado o texto a rectificar.

As declarações de retificação devem ser publicadas até 60 dias após a

publicação do texto retificando, sob pena de nulidade do ato de retificação (art.

5.º/2 e /3).

O n.º 4 do art. 5.º determina que os efeitos das declarações de retificação

são reportados à data da entrada em vigor do texto retificado. Por conseguinte,

a declaração de retificação tem eficácia retroativa.

Mas esta eficácia retroativa atingirá todos os efeitos resultantes do texto

inicialmente publicado?

OLIVEIRA ASCENSÃO defende que se devem considerar ressalvados os

efeitos produzidos pelo texto incorretamente publicado. Esta posição parece

compatível com o disposto na L n.º 74/98: a atribuição de eficácia retroativa não

obsta à ressalva dos efeitos já produzidos (cf. art. 12.º/1 CC).

Se o texto for retificado antes da entrada em vigor da lei deve entender-se

que o prazo de vacatio legis – veremos no número seguinte o que isto significa

– começará a contar da publicação da retificação.

Page 121: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

121

Entrada em vigor

A entrada em vigor da lei é o culminar de um processo que, como temos vindo

a observar, passa pela verificação de certos pressupostos de existência da lei (a

sua criação), e ainda pela satisfação de certos requisitos de validade e eficácia,

dos quais referi, em último lugar, a publicação.

A respeito da entrada em vigor da lei é usual tratar-se do problema da

determinação do momento a partir do qual o ato normativo produz os seus

efeitos.

O problema da “localização” temporal não se limita à determinação do

começo e da cessação da vigência da lei, engloba também outros problemas,

designadamente o da delimitação do domínio recíproco de aplicação da lei nova

e da lei antiga, que estudaremos ulteriormente no capítulo dedicado à aplicação

da lei no tempo.

A respeito do começo da vigência da lei dispõe o n.º 2 do art. 5.º CC:

“Entre a publicação e a vigência da lei decorrerá o tempo que a própria lei

fixar ou, na falta de fixação, o que for determinado em legislação especial.”

O intervalo que decorre entre a publicação e a entrada em vigor de uma lei

designa-se vacatio legis.

Por conseguinte, podemos desde já formular esta regra: a lei publicada

começa a vigorar na data que ela própria fixar.

A data fixada por uma lei sobre a sua entrada em vigor não pode ser anterior

à data da publicação, uma vez que a eficácia da lei depende da sua publicação

(art. 119.º/2 CRP; ver também art. 5.º/1 CC).

Poderá a lei fixar a sua entrada em vigor na data da publicação?

Esta possibilidade era geralmente admitida antes da entrada em vigor da L

n.º 74/98. O n.º 1 do art. 2.º desta Lei veio estabelecer que a lei não pode entrar

em vigor no dia da publicação. Mas esta determinação só tem de ser observada

pelas leis de valor hierarquicamente inferior. Ora, a menos que se entenda que

a L n.º 74/98 é uma lei com valor reforçado, o que oferece muitas dúvidas, ou

que tem caráter materialmente constitucional, tal lei tem o mesmo valor que as

outras leis da Assembleia da República, que os Decretos-Leis do Governo ou

que os Decretos Legislativos Regionais.

Page 122: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

122

A lei também pode subordinar a sua entrada em vigor à verificação de um

evento futuro, por exemplo, a publicação de um diploma regulamentar

Na falta de disposição da lei sobre o momento da sua entrada em vigor, esta

verifica-se no quinto dia após a sua publicação (art. 2.º/2 da L n.º 74/98, alterada

pela L n.º 26/2006, de 30/6).

Este prazo conta-se a partir do dia imediato ao da sua disponibilização no

sítio da internet gerido pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda (n.º 4 do art. 2.º).

Por exemplo, a lei X disponibilizada no dia 10 entra em vigor no dia 15, na falta

de disposição em sentido diferente contida na própria lei.

Por força do art. 296.º CC, na contagem de prazos de vacatio fixados em

dias, semanas, meses ou anos deve atender-se ao disposto no art. 279.º CC.

Assim, os prazos fixados em dias contam-se a partir do dia seguinte à

publicação diploma (art. 279.º/b).

Os prazos fixados em semanas, meses ou anos, a contar de certa data,

terminam às 24 horas do dia que corresponda, dentro da última semana, mês ou

ano a essa data (art. 279.º/c/1.ª parte).

Por exemplo, a Nova Lei da Arbitragem Voluntária (L n.º 63/2011), entrou em

vigor três meses após a data da sua publicação. Uma vez que o diploma foi

publicado em 14 de Dezembro de 2011, deve entender-se que entrou em vigor

em 15 de Março de 2012.

Caso o prazo tenha sido fixado em meses a contar de certa data e não exista

no último mês dia correspondente, o prazo finda no último dia desse mês (art.

279.º/c/2.ª parte CC). Por exemplo, se a lei foi publicada em 31/3 e fixou a sua

entrada em vigor um mês depois da publicação, o prazo finda às 24 horas do dia

30/4 e a lei entra em vigor no dia 1/5.

Ao editar as leis, o legislador deve ponderar, perante o seu conteúdo e face

ao circunstancialismo social existente, se os prazos normais de vacatio legis são

adequados, se é necessário que a lei entre em vigor logo que seja publicada, ou

se, pelo contrário, é conveniente estabelecer um intervalo mais longo.

Assim, por exemplo, quando se trate de leis extensas e complexas, como é

normalmente o caso dos códigos, justifica-se um período dilatado de vacatio.

Quando estejam presentes considerações de urgência pode justificar-se uma

redução ou supressão da vacatio.

Page 123: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

123

Suspensão, cessação ou termo da vigência

A respeito da entrada em vigor da lei é usual tratar apenas do problema da

determinação do momento a partir do qual o ato normativo produz os seus

efeitos, limitando o quadro de análise ao plano da eficácia. No que se refere à

cessação da vigência da lei, quer-me parecer que não está em causa, em rigor,

um problema de “ineficácia superveniente”.

Abstraindo da cessação de vigência por declaração de inconstitucionalidade

ou ilegalidade com força obrigatória geral (art. 281.º/1 e 3 CRP e art. 76.º C.

Proc. Trib. Adm.), há a considerar, principalmente, os problemas da suspensão

e da cessação da vigência da lei por revogação ou caducidade.

Em ligação com este ponto, cabe indagar das consequências do costume

contra legem e do desuso sobre a vigência da lei.

Na suspensão da vigência encontramos um caso de ineficácia superveniente

da lei. Uma lei pode inicialmente produzir efeitos, mas vir a tornar-se ineficaz.

Fala-se então de ineficácia superveniente. A lei continua a existir e a ser válida,

mas deixa de produzir efeitos durante certo período de tempo. A opção pela

suspensão de vigência justifica-se quando se entenda que só transitoriamente a

lei deve deixar de produzir efeitos.

A suspensão pode ser expressa – resultando de uma lei suspensiva – ou

tácita, por exemplo, a lei que expressamente revoga um regulamento pode

implicar a suspensão tácita da lei regulamentada.

Expirado o prazo de suspensão fixado pela lei suspensiva, revogada esta lei,

ou eliminado o condicionamento que desencadeara a suspensão tácita, a lei

suspensa retoma a sua vigência.

Diferentemente se passam as coisas no caso da cessação de vigência. A

meu ver a cessação de vigência não é um caso de ineficácia da lei.

Assim, por um lado, apesar da revogação, a lei antiga pode continuar a

produzir efeitos, na medida em que o Direito Transitório da lei nova ou regras

gerais de Direito Intertemporal lhe concedam um domínio de aplicação,

designadamente com respeito aos efeitos ligados a situações anteriormente

constituídas.

Por outro lado, a revogação exclui a lei revogada da ordem jurídica atual. Não

se trata apenas de uma cessação de efeitos. Os efeitos que a lei antiga produz

Page 124: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

124

por força do Direito Intertemporal não implicam que a lei antiga faça parte da

ordem jurídica atual: a lei antiga é aplicada, como elemento da ordem jurídica

anterior, por força de uma remissão do Direito Intertemporal.

É por esta razão que a revogação da lei revogatória não permite presumir o

renascimento da lei que esta revogara (art. 7.º/4 CC). Por outras palavras, na

falta de disposição em contrário, a revogação da lei revogatória não tem efeito

repristinatório.

O efeito repristinatório é, em todo o caso, possível. Consiste este efeito numa

reintegração da lei antiga na ordem jurídica vigente por força da lei nova.

Deve também observar-se que a declaração de inconstitucionalidade ou de

ilegalidade com força obrigatória geral da lei revogatória determina a

repristinação das normas que tenha revogado (art. 282.º/1 CRP e art. 76.º/1 C.

Proc. Trib. Adm.).

A revogação é a forma normal de cessação de vigência da lei. A revogação

é geralmente definida como a cessação de vigência da lei por efeito de um ato

normativo posterior de hierarquia igual ou superior à lei revogada.

As modalidades de revogação serão estudadas no parágrafo seguinte.

No caso da caducidade, a cessação da vigência da lei é determinada por

mero efeito da superveniência de um facto.

A própria lei pode prever um facto que desencadeie a cessação da sua

vigência (art. 7.º/1 CC). O mais característico é fixação de um prazo de vigência.

Não obstante, pode a vigência ficar dependente de outros factos previstos na

própria lei ou que constituem seus pressupostos de aplicação.

Por exemplo, a lei que regula a reinserção social dos militares que

combateram em determinada guerra, caduca quando todos os combatentes

nessa guerra estiverem reinseridos ou, o mais tardar, quando falecer o último

desses combatentes.

Continua a ser discutido se o costume contra legem atinge a vigência

(normativa) da lei ou não tem outro significado que o de limite indesejável à sua

efetividade. Tomarei posição quando chegar o momento de me ocupar da

relação entre costume e lei.

Enfim, no que concerne ao simples desuso, já se aceita mais facilmente que

não prejudica a vigência da lei, embora limite a sua efetividade social.

Page 125: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

125

O desuso representa uma mera desconformidade entre os padrões sociais

de conduta e o critério de conduta contido na regra jurídica.

Modalidades de revogação

São três as modalidades de revogação: expressa, tácita e global (cf. art. 7.º/2

CC).

A revogação é expressa quando consta de declaração feita na lei revogatória.

Por exemplo, o DL n.º 496/77, de 25/11, que reformou o Código Civil, revogou

expressamente vários preceitos deste código.

Nos outros casos de revogação – tácita e global – o legislador não indica

quais as regras revogadas.

A revogação tácita resulta da incompatibilidade entre as regras da lei nova e

as da lei antiga.

Quando a nova lei regula globalmente a matéria a que se aplicava a lei

anterior, é legítimo presumir a revogação desta lei, não havendo a necessidade

de demonstrar a incompatibilidade entre elas. Temos então uma revogação

global.

Por exemplo, com a entrada em vigor do Código Civil de 1966 pôde presumir-

se a revogação de toda a legislação civil relativa às matérias que este diploma

abrange. O legislador consagrou expressamente esta revogação global no art.

3.º do DL n.º 47344, de 25/11/66, que aprovou o Código Civil.

A revogação pode ser total ou parcial consoante determina a cessação da

vigência de todo o complexo normativo contido num diploma, ou apenas a de

uma parte.

A revogação pode ainda ser substitutiva ou simples conforme substitui o

regime jurídico da lei revogada ou se limita a operar a revogação. A revogação

tácita é sempre uma revogação substitutiva.

Poderia pensar-se que, para haver revogação, a lei revogada tem estar em

vigor no momento da entrada em vigor da lei revogatória. No entanto, nada obsta

à revogação de uma lei cuja vigência se encontra suspensa.

É mesmo concebível que a revogação possa incidir sobre uma lei que ainda

não entrou em vigor, com o sentido útil de impedir a sua entrada em vigor. Neste

caso, a revogação não atinge a eficácia da lei revogada, mas remove-a da ordem

Page 126: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

126

jurídica. Mas isto implica aceitar que nem sempre a revogação é um caso de

cessação de vigência.

A revogação de uma lei pode desencadear a caducidade de outra lei. Isto

sucede em tês casos:

- quando a revogação de uma lei priva de âmbito de aplicação outra lei, esta

lei caduca;

- com a revogação de uma lei caduca a lei que a regulamentava;

- a revogação da lei que impõe uma obrigação de conduta implica a

caducidade da lei que estabeleça a sanção aplicável à sua violação.

Lei geral não revoga lei especial

Um dos casos em que a revogação global ou tácita pode suscitar dificuldades

ao intérprete tem que ver com a relação que intercede entre lei geral e lei

especial.

Determina o n.º 3 do art. 7.º CC:

“A lei geral não revoga a lei especial, excepto se outra for a intenção

inequívoca do legislador.”

Seguindo um critério estrutural ou formal, a relação de especialidade é

definida pelo alcance da previsão de cada uma das regras em concurso: o

domínio de aplicação da norma especial corresponde a um setor do domínio de

aplicação da norma geral.

Norma especial

Norma geral

Critério estrutural formal

Page 127: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

127

Todas as situações que caem no âmbito da previsão da norma especial

também estão, prima facie, dentro do domínio de aplicação da norma geral. Mas

nem todas as situações abrangidas pela previsão da norma geral estão dentro

do domínio de aplicação da norma especial.

Não é só entre regras jurídicas singulares que surge uma relação de

especialidade. A mesma relação pode interceder entre complexos normativos,

e, designadamente, entre ramos do Direito, por exemplo, entre o Direito Privado

e o Direito Comercial.

Por diversas razões é discutível se este critério é suficiente para a

classificação das normas especiais, sobretudo quando esteja em vista uma

classificação tripartida geral/especial/excecional. No presente contexto

interessam somente as considerações que relevarem para o tema da revogação.

Quando há incompatibilidade entre as regras jurídicas em vigor que estão

nesta relação de especialidade, entende-se que a norma especial prevalece

sobre a norma geral.

A lei atende a circunstâncias particulares que qualificam certas situações

como “especiais”, e estabelece um regime diferente em função desta

“especialidade”.

Na mesma ordem de ideias, a lei geral não revoga a lei especial, porque, em

princípio, a nova lei geral não atende à “especialidade” de que se revestem

certas situações, não existindo uma intenção de abolir o regime especial para

elas estabelecido.

De pé fica, no entanto, a possibilidade de estar subjacente à nova lei geral a

intenção de eliminar os regimes especiais.

São diversas as considerações que podem levar à revogação de regimes

especiais por uma lei geral.

Pode haver uma reapreciação das circunstâncias particulares que

justificavam a “especialidade” e que, segundo a nova valoração, não justificam a

manutenção de regimes especiais.

Page 128: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

128

A especialidade de uma lei pode ser meramente formal, por não ser

justificada pelas circunstâncias particulares do setor a que se aplica. É o que

sucede quando o legislador aproveita uma lei especial para introduzir soluções

que se justificam em todo o domínio de aplicação da lei geral.

Neste caso, se o legislador vem alterar a lei geral, consagrando soluções

contrárias à lei formalmente especial, não há razão para manter em vigor esta

lei.

Enfim, o novo regime geral pode mostrar-se mais adequado a todas as

situações, incluindo as reguladas pela lei especial.

Em suma, o que justifica a não revogação da lei especial por lei geral é a

especialidade substancial, que decorre do estabelecimento de um regime

específico mais adequado a circunstâncias particulares e não uma especialidade

meramente formal.

A fórmula utilizada na lei não é a mais feliz, na parte em que se refere à

“intenção inequívoca do legislador”. Admite-se que, por razões de certeza

jurídica, quem invoque a revogação de lei especial por lei geral tenha de

demonstrar que este é, seguramente, o sentido da lei.

Em caso de dúvida, entender-se-á que não há um sentido revogatório.

Revogação e hierarquia das leis

O programa de Introdução ao Estudo do Direito II dedica um capítulo à

hierarquia das fontes e das regras. A importância que esta matéria tem para a

correta compreensão da cessação da vigência da lei por revogação, justifica que

se faça uma muito breve observação sobre a hierarquia das leis.

Uma lei só pode revogar leis de hierarquia idêntica ou inferior. Por exemplo,

uma lei ordinária não pode revogar uma norma da Constituição.

Page 129: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

129

Page 130: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

130

CAP. III - O COSTUME E OS USOS

Page 131: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

131

Noção

No início do nosso curso assinalei que uma das condições necessárias à

existência de uma sociedade é a estabilização e institucionalização das relações

que se estabelecem dentro de um grupo.

Na origem podemos encontrar regularidades de conduta, práticas sociais

reiteradas, com base nas quais as pessoas criam expectativas em relação ao

comportamento umas das outras; estas expectativas recíprocas e

complementares são muito importantes para a determinação do comportamento

de cada uma delas.

A institucionalização da sociedade requer mais, porém, do que meras

práticas sociais reiteradas, ou usos. Certas relações sociais têm de se basear

na imposição de deveres e no reconhecimento ou atribuição de direitos.

Partindo do que era inicialmente uma mera expectativa de um

comportamento normal vai generalizar-se a convicção geral de que este

comportamento corresponde a uma vinculação jurídica, i.e., de que a ordem

jurídica prescreve essa conduta.

Quando um uso social é acompanhado desta “convicção de obrigatoriedade”,

temos, segundo a noção mais divulgada, um costume.

Parece-me mais exato falar em convicção de vinculatividade, uma vez que o

costume, como a lei, não se limita a impor deveres, também pode atribuir direitos,

regular o estado das pessoas ou estabelecer requisitos de validade de negócios

jurídicos.

Na utilização da palavra “costume” há uma ambiguidade semelhante à que

encontrámos no emprego da palavra “lei”. “Costume” tanto pode servir para

designar um modo de criação de normas jurídicas, como para designar as

normas e complexos normativos assim criados. Neste último sentido, “costume”

é sinónimo de Direito consuetudinário.

A existência do costume depende apenas da verificação dos dois elementos

que acabamos de referir – prática social reiterada e convicção de

vinculatividade?

Page 132: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

132

Defendem alguns autores que o costume só é fonte do Direito se for

reconhecido pelo poder político. Funda-se este entendimento na identificação do

Direito com as emanações do poder político. Não retomarei aqui a crítica desta

conceção à qual farei apenas dois reparos.

Numa perspetiva histórica, a génese do Direito confunde-se com as origens

da espécie humana; no momento em que os povos entram na história já são

conhecidos muitos dos principais institutos do atual Direito privado. Conforme

refere GILISSEN, é hoje geralmente admitido, sob a influência das pesquisas

efetuadas por etnólogos e sociólogos, que parte dos “costumes” dos povos que

ainda não atingiram o estádio da organização estadual têm caráter jurídico.

Por outro lado, como já foi anteriormente assinalado, a observação das

sociedades atuais revela-nos que, em maior ou menor escala, vigoram em todas

elas regras jurídicas que não foram criadas por órgãos do poder político.

Ainda numa perspetiva de cunho juspositivista, entende um setor importante

da doutrina que embora não seja necessário um reconhecimento explícito do

costume pelos órgãos públicos, basta, para este efeito, que o costume seja

efetivamente imposto pelos órgãos de aplicação do Direito.

Também não posso concordar com este pressuposto nos termos em que ele

é formulado. Em princípio, é a aplicação do costume na decisão jurisdicional que

pressupõe a sua vigência, e não, ao inverso, a vigência que pressupõe a

aplicação.

Claro que a prática dos órgãos de aplicação do Direito é um elemento

importante a ter em conta na determinação da conceção normativa, que vigora

na comunidade, sobre as fontes do Direito. Mas não é o único elemento, e pode

haver práticas divergentes entre jurisdições de diferente natureza,

designadamente entre tribunais estaduais e tribunais arbitrais.

A par dos usos que exteriorizam uma regra jurídica, outros há que

correspondem a regras morais, religiosas ou do trato social. Será a convicção

de vinculatividade que imprime à regra consuetudinária o seu caráter jurídico?

Ou haverá que atender também à “natureza da matéria”, aos “interesses em

jogo”, ao conteúdo do uso?

Page 133: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

133

A convicção de vinculatividade pressuposta pelo costume não pode deixar de

ser qualificada pelo conjunto das notas distintivas do Direito. Não basta a

convicção de se estar obrigado, é necessária uma convicção de se estar

obrigado ou vinculado juridicamente.

Se um dado uso social, pelo seu conteúdo, pelo sentido de que é portador,

e, porventura, também por circunstâncias extrínsecas, é geralmente

“reconhecido” como Direito, e, por conseguinte, observado com convicção da

sua vinculatividade jurídica, impõe-se, no mínimo, presumir a existência de

Direito consuetudinário.

Não obstante, a validade (material) de toda a regra jurídica é definida pela

compatibilidade do seu conteúdo com as normas e princípios de fontes

hierarquicamente superiores, designadamente de normas e princípios

constitucionais.

Por conseguinte, parece-me que para se afirmar a vigência de uma regra

consuetudinária não basta a efetividade social nem a convicção de

vinculatividade jurídica. Será necessário que a norma, em função do seu

conteúdo, participe validamente do sistema jurídico.

Segundo MENEZES CORDEIRO, o “costume deve ser reconhecível como

Direito, para a sociedade considerada. Nessa medida, ele terá de ser

reconduzível a uma harmonia de conjunto, integrando princípios gerais. A prática

que se exprima num mero exercício da força, num puro arbítrio aleatório ou numa

manifestação chocante para a comunidade não é Direito nem, logo, costume

jurídico”.

Isto leva o autor a colocar como terceiro requisito do costume, a sua

“racionalidade, no sentido de compatibilidade com o Direito no seu todo”.

Em minha opinião, não temos aqui um pressuposto adicional da existência

do costume jurídico, mas um requisito da sua validade.

Page 134: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

134

Modalidades

O estudo das diferentes modalidades de costume tem grande interesse

porque nos revela que, sob a mesma designação comum, se acolhem realidades

de estrutura, sentido e alcance muito variados.

Podemos distinguir, em primeiro lugar, o costume internacional, que é fonte

do Direito Internacional, do costume interno, que vigora no âmbito de uma ordem

jurídica estadual. A relevância do costume como fonte do Direito Internacional é

comummente aceite.

Além do costume internacional e do costume interno importa referir o costume

transnacional. O costume transnacional é aquele que embora extravasando do

âmbito de uma ordem jurídica estadual não é fonte de Direito Internacional. É o

que se verifica com o costume comercial internacional.

O costume interno deixa-se subdividir em geral, local e particular. Costume

geral será aquele cujo âmbito de aplicação corresponder ao de uma ordem

jurídica estadual. O costume local vigora apenas numa parte do território do

Estado. É particular o costume que é aplicável a certos grupos de pessoas, ou

que vigora dentro de certos setores da vida social, por exemplo, em certos ramos

da atividade económica.

O costume pode ser fonte de Direito Privado ou de Direito Público, o que

permite classificá-lo em conformidade. A valia prática do costume como fonte do

Direito Público, designadamente de Direito Administrativo, é sublinhada por

muitos autores.

Enfim, podemos distinguir o costume tradicional, ou costume em sentido

estrito, do costume jurisprudencial.

O costume tradicional, característico dos Direitos arcaicos ou tradicionais,

forma-se espontaneamente, como expressão direta das estruturas sociais.

Nasce e desenvolve-se em íntima correlação com as representações morais e

religiosas; a convicção de vinculatividade do costume assenta, em larga medida,

nestas representações e, em geral, na força da tradição.

Já o costume jurisprudencial é a prática judicial constante que se integrou na

“consciência jurídica geral”. Neste caso, o processo de criação da norma integra

Page 135: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

135

elementos intencionais, designadamente as decisões judiciais, bem como o

reconhecimento por parte dos órgãos jurisdicionais.

Uma parte da doutrina, que nega à jurisprudência o caráter de fonte do Direito

em sentido técnico-jurídico, aceita que as regras desenvolvidas nas decisões

dos tribunais podem ser positivadas pelo costume jurisprudencial. A fonte destas

regras é o costume e não a jurisprudência.

Segundo OLIVEIRA ASCENSÃO, o costume jurisprudencial também se

funda num uso, mas com a particularidade de este uso não ser uma prática

constante dos interessados, mas dos órgãos jurisdicionais. A conduta dos

interessados diretos será irrelevante, embora a convicção de obrigatoriedade já

tenha de ser partilhada por estes interessados.

Significado prático

Em traços gerais, poderá dizer-se que a valia prática do costume é

inversamente proporcional em relação à importância da lei.

Afirma-se que nos Direitos considerados menos desenvolvidos domina o

costume e que nos mais desenvolvidos é a lei a fonte dominante. O Direito

consuetudinário tende a recuar à medida que a lei avança. Dada a sua

generalidade, estas considerações nem sempre dão conta, porém, da

diversidade das condições locais, das diferentes conceções de sociedade e das

diferentes conceções do Direito que lhes estão associadas.

Enquanto o Direito consuetudinário (tradicional) é composto por normas que

existem na consciência coletiva, e que se manifestam no comportamento geral,

a lei é integrada por normas emanadas dos órgãos a que a Constituição atribui

tal missão. O Direito que prossiga um fim inovador, um fim transformador,

subordinado à condução política do país, é fundamentalmente lei.

O costume também acompanha a evolução da sociedade, mas, por definição,

não pode “antecipar-se” à realidade e constituir um fator de transformação social.

Em contrapartida, o Direito consuetudinário molda-se à realidade social, em

contraste com os frequentes desfasamentos da legislação “transformadora”.

Assinalei anteriormente que nas modernas sociedades estaduais a lei tende

a ter primazia entre as fontes do Direito.

Page 136: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

136

Ao poder político é confiada a missão de realizar determinados fins da

sociedade, fins estes que se acham hoje consagrados constitucionalmente.

Neste contexto, a lei é encarada como a expressão da vontade coletiva exercida

principalmente através dos órgãos do poder político legitimamente constituído a

quem seja confiada a função legislativa.

Por conseguinte, nas modernas sociedades estaduais os órgãos do poder

político tendem a desempenhar o principal papel na produção de normas

jurídicas. Pensamos nas assembleias legislativas, mas também,

designadamente, nas competências legislativas dos governos. A lei é o meio de

ação essencial do poder sobre a vida social. Relativamente a certas matérias, a

regulação jurídica só pode ser feita por meio de lei formal (reserva de lei).

A garantia dos direitos do cidadão perante o Estado também aponta, em

diversos domínios, para a prevalência da lei. Pensemos, designadamente, no

regime dos direitos fundamentais, no princípio da legalidade dos atos da

administração e no princípio da tipicidade em Direito Penal.

Acrescente-se que o formalismo de que normalmente se reveste o processo

legislativo, e a circunstância de as leis serem publicadas, conferem à norma legal

um grau de certeza jurídica, precisão e cognoscibilidade dificilmente comparável

ao das regras geradas pelo costume.

Daqui não decorre necessariamente, porém, uma primazia da lei em relação

ao costume.

Na mesma ordem de ideias, a circunstância de o costume assumir, em dada

sociedade, uma grande valia prática, também não é conclusiva quanto à sua

posição na hierarquia das fontes. Pode a lei deixar ao costume a missão de

regular setores amplos da vida social, embora nos aspetos regulados pela lei

esta prevaleça sempre.

Pode dizer-se que o costume está numa posição de vantagem porque a

efetividade social da regra costumeira está automaticamente assegurada.

Com este aspeto se liga a legitimação democrática do costume: o costume

assenta na prática e nas convicções dos membros da sociedade ou do círculo

social em que vigora.

Mas daqui também não decorre necessariamente que o costume ocupe

posição de supremacia na hierarquia das fontes.

Page 137: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

137

O que poderá porventura defender-se é que há uma primazia teórica do

costume e uma primazia prática da lei. Com efeito, se entendermos que a

determinação das fontes do Direito e da sua hierarquia depende, em última

instância, da conceção normativa que integra a consciência da comunidade

jurídica, estamos, no essencial, a admitir que a regra de reconhecimento última

tem natureza consuetudinária. Mas se, desta conceção resulta, como me parece,

que a lei (criada no exercício da função legislativa) tem primazia sobre o costume

infraconstitucional, estamos a admitir a primazia prática da lei.

Não deve confundir-se a primazia da lei com a irrelevância do costume.

Mesmo nos países onde o Direito está há muito codificado e onde o costume

tem escassa importância, a maioria dos autores reconhece hoje que o costume

é uma fonte do Direito.

Relações entre costume e lei

Verificámos anteriormente que sob a designação de “costume” se ocultam

modos de criação jurídica com um alcance e sentido bastante diverso.

Também sabemos já que em sentido material amplo o conceito de lei abrange

desde as regras emanadas de um poder constituinte, às formuladas no exercício

de uma competência regulamentar, passando, naturalmente, pela normal

atividade legislativa.

É indispensável ter presente esta diversidade dos “costumes” e das “leis”

quando se examina as suas relações. Desde já, note-se, a análise que se segue

limita-se ao costume como fonte estadual ou infraestadual.

Do ponto de vista das suas relações com a lei, fala-se em costume:

à secundum legem, quando uma prática social é observada como costume,

apesar de se conformar com o disposto na lei;

à praeter legem, quando o costume vai além da lei, regulando matéria não

disciplinada legalmente; à contra legem, quando o costume contraria o disposto na lei.

Tradicionalmente, procura-se definir a relevância do costume, em cada um

destes casos, com recurso ao disposto na própria lei. Já assinalei, porém, que

Page 138: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

138

os preceitos legais sobre as fontes do Direito e a sua hierarquia não têm o

alcance que geralmente lhes é atribuído.

Abstraindo do problema do costume constitucional, que é um problema

específico da disciplina de Direito Constitucional, entendo, pelas razões

anteriormente expostas que o costume está necessariamente submetido à lei

constitucional.

A validade da regra consuetudinária também tem de ser controlada, sendo,

designadamente, de exigir, a sua compatibilidade com os direitos fundamentais

consagrados na constituição e com os princípios gerais que enformam o sistema

jurídico.

Esta primazia da constituição implica também que dela deve partir a definição

da hierarquia entre as fontes que lhe estão subordinadas. Trata-se de uma opção

constitucional e não de uma decisão científica. A priori nada obriga a que o

costume esteja acima, ao lado ou abaixo da lei ordinária, e a história dá conta

da verificação de cada uma destas.

Como vimos anteriormente, da omissão de referências, no texto

constitucional, ao costume interno, e, em especial, do art. 203.º CRP que

determina que os tribunais apenas estão sujeitos à lei, e da intenção do

legislador constitucional que lhe está subjacente, infere-se claramente que as

regras válidas criadas no exercício da função legislativa prevalecem

necessariamente sobre o costume contrário.

No mesmo sentido aponta a prática dos tribunais estaduais e de demais

órgãos públicos de aplicação do Direito.

Esta prevalência da lei não significa que a relevância do costume dependa

da lei ordinária. A vigência do costume não depende de ser reconhecido ou,

sequer, tolerado, pela lei. O costume vigora desde que seja válido, i.e., que não

contrarie a lei e seja conforme aos princípios gerais de Direito.

Claro que não é esta a única posição defendida entre nós.

No polo oposto à doutrina tradicional que negava que o costume seja fonte

do Direito português, tornou-se dominante na doutrina o entendimento segundo

o qual a validade do costume não depende da sua conformidade com a lei

(INOCÊNCIO GALVÃO TELLES, CASTRO MENDES, OLIVEIRA ASCENSÃO,

Page 139: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

139

CASTANHEIRA NEVES, MARCELO REBELO DE SOUSA, MENEZES

CORDEIRO e TEIXEIRA DE SOUSA).

Em sentido convergente com a posição por mim adotada de iure constituto

pode referir-se DIAS MARQUES.

Uma posição intermédia é assumida por FREITAS DO AMARAL/AFONSO

PEREIRA, que defendem uma diferenciação de soluções que atenda,

designadamente, à solução mais justa no caso concreto.

Na medida em que a posição dominante na doutrina não prevalece entre os

magistrados e outros juristas, não parece possível afirmar que existe uma prática

e uma convicção da comunidade jurídica divergentes do texto constitucional.

De iure condendo, ocorre que a melhor posição poderá ser uma diferenciação

de soluções, que atenda não só à justiça do caso concreto, mas também à

natureza da matéria e às exigências de certeza e previsibilidade jurídicas que

lhe sejam inerentes.

Ainda aqui, porém, nos encontramos longe de ter resolvido todos os

problemas que o costume contra legem suscita.

Há casos em que o intérprete, ao aplicar a regra legal prevalecente, não pode

ignorar a divergência entre a determinação legal e o padrão social de conduta

definido pelo costume.

Os órgãos públicos ficam colocados numa posição delicada: por um lado têm

de respeitar a lei, por outro não podem ignorar completamente a existência do

costume (por exemplo, na apreciação da culpa e na graduação da pena).

A lei transforma-se, neste caso, num mero critério de decisão.

O costume secundum legem não suscita dificuldades na prática dos órgãos

de aplicação do Direito, mas pode perguntar-se se não desempenha um papel

importante por grande parte das regras jurídicas, e sobretudo as mais

importantes para a convivência social, serem observadas por constituírem

práticas habituais a que generalidade dos membros da sociedade se sente

vinculada e não enquanto leis.

Isto poderia contradizer a primazia prática da lei, anteriormente defendida.

Page 140: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

140

Creio, porém, que nas sociedades modernas com sistemas jurídicos filiados

na família romanogermânica a grande maioria das regras jurídicas é observada

na suposição, por parte dos seus destinatários, de que constituem lei vigente,

mesmo que estes destinatários não saibam identificar a lei em questão.

Quanto ao costume praeter legem, pergunta-se sobre o seu valor para a

integração de lacunas. Por outras palavras, se o costume pode ser uma fonte

subsidiária de Direito.

À face do disposto no art. 10.º CC o costume não teria uma função

integradora.

No entanto, é preciso não esquecer que as regras consuetudinárias válidas

são regras vigentes.

Por conseguinte, se o caso é abrangido por uma regra consuetudinária não

há lacuna.

Como o costume é, geralmente, local ou particular, isto pressupõe que o

Direito costumeiro vigore no local em que as partes residem ou no círculo que

ambas as partes integrem.

A relevância do costume à luz das regras legais

Não é possível realizar no âmbito deste curso uma pesquisa exaustiva dos

casos de relevância do costume à face das regras legais ordinárias. Limito-me,

pois, à análise de alguns preceitos fundamentais nesta matéria.

O CC não reconhece o costume como fonte de Direito. Este diploma afasta

não só a relevância do costume contra legem (arts. 1.º e 7.º/1), como nega uma

função interpretativa ou integradora ao costume praeter legem (cp. arts. 9.º e

10.º).

No entanto, no art. 348.º CC o legislador admitiu que o costume pode, em

certos casos, ser fonte do Direito. Examinemos esta disposição.

Em geral o tribunal tem a obrigação de conhecer o Direito aplicável, não

recaindo sobre as partes o ónus da sua prova. Face às dificuldades que, porém,

pode suscitar a averiguação do Direito consuetudinário, do Direito local e do

Direito estrangeiro, seria concebível que fosse posto a cargo da parte que o

invoca o ónus da sua prova.

Page 141: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

141

Mas não foi este o caminho seguido pelo legislador: embora as partes tenham

um dever de colaboração com o tribunal na determinação do seu conteúdo (art.

348.º/1 CC), o Direito consuetudinário, o Direito local e o Direito estrangeiro são,

como a lei interna, de conhecimento oficioso (art. 348.º/1 e 2).

Sem se se reconhecer, em geral, que o costume é fonte do Direito, admite-

se que o possa ser em certos casos.

Há alusões a “costumes” nos arts. 1400.º e 1401º CC (divisão e

aproveitamento das águas), mas põe-se em dúvida que se trate de verdadeiro

costume.

Na legislação avulsa surgem diversos exemplos de remissão para o costume.

Por exemplo, a Lei dos Baldios (Lei n.º 75/2017, de 17/8), manda atender aos

usos e costumes locais quanto ao uso e fruição e à administração dos baldios,

(designadamente, arts. 3.º/1 e 5, 7.º/2 e 15.º/1).

Naturalmente que o costume poderá valer, à face da lei, como uso, nos casos

em que os usos relevam por força da lei. A remissão legal para os usos é, em

larga medida, uma forma encoberta de permitir a relevância do costume, sem,

porém, reconhecer a sua existência.

Aplicação pelos órgãos públicos

Entendo que os órgãos públicos de aplicação do Direito têm de respeitar os

limites colocados pelas normas sobre a produção jurídica e pelos critérios de

hierarquização das fontes expressamente estabelecidos na Constituição e, em

princípio, na lei ordinária, ou que deles se podem inferir.

Por conseguinte, os tribunais estaduais e outros órgãos públicos devem

decidir os casos que lhes são submetidos segundo a lei e, quando compatível

com a lei, segundo o costume.

Os órgãos públicos devem aplicar o costume praeter legem dentro dos limites

fixados pelos valores fundamentais e princípios gerais do sistema.

Os órgãos públicos não devem aplicar costume ordinário contra legem. Em

todo o caso, a aplicarem lei contrária ao costume, estes órgãos poderão ter em

conta a divergência entre a determinação legal e a regra consuetudinária.

Page 142: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

142

Usos

Os usos são meras práticas sociais reiteradas, regularidades sociais, que não

são acompanhadas de uma convicção de vinculatividade.

Porque a simples normalidade social não é geradora de normatividade, os

usos nunca são fonte imediata do Direito.

Os usos são fonte mediata do Direito quando uma regra legal ou

consuetudinária lhes confere força jurídica.

Do n.º 1 do art. 3.º do CC consta uma disposição genérica neste sentido:

“Os usos que não forem contrários aos princípios da boa fé são juridicamente

atendíveis quando a lei o determine.”

Mesmo nos casos em que a lei remeta para os usos, só serão positivados os

usos que forem conformes com os valores fundamentais e os princípios gerais

da ordem jurídica.

Eis alguns exemplos de remissões feitas por regras do CC para os usos: arts.

763.º/1; 885.º/2; 937.º; 1037.º/1, 1081.º/2; 1163.º e 2326.º.

Como exemplos de remissões para os usos contida noutros diplomas, pode

referir-se:

- o art. 317.º do Código da Propriedade Industrial, que define a concorrência

desleal como “acto de concorrência contrário às normas e usos honestos de

qualquer ramo de actividade económica”;

- o art. 1.º do Código do Trabalho que sujeita o contrato de trabalho aos usos

laborais que não contrariem o princípio da boa fé.

Com esta técnica remissiva a lei confere vigência normativa a práticas sociais

que têm a sua própria dinâmica de desenvolvimento. Não se trata pois de uma

receção do conteúdo dos usos pela lei.

A remissão para os usos pode ter o mais variado alcance: tanto pode

abranger genericamente todo um ramo do Direito, como sucederia no caso de o

Direito Comercial remeter subsidiariamente para os usos do comércio, como

restringir-se a um aspeto parcelar de uma determinada relação típica, passando

por várias hipóteses intermédias.

Page 143: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

143

Contrariamente ao que se verifica noutros sistemas, no sistema português o

Direito Comercial não atribui genericamente aos usos o valor de fonte

subsidiária.

No que concerne às remissões operadas no regime das obrigações

voluntárias, verifica-se, na maior parte dos casos, que os usos são aplicáveis a

título supletivo, cedendo perante diferente estipulação das partes, e a título

subsidiário relativamente à lei.

Mas nada impede o legislador de conferir aos usos o valor de Direito

imperativo e há casos em que a lei lhes atribui valor superior às regras legais

supletivas – cf. art. 885.º/2 (lugar do pagamento do preço da venda).

Além dos casos em que a lei remeta para os usos não haverá outros modos

de relevância jurídica dos usos? Terão os usos uma função interpretativa e

integrativa do negócio jurídico?

Embora o Direito português vigente não se refira expressamente ao valor

interpretativo dos usos, será igualmente necessário tê-los em conta na

determinação do sentido que à declaração pode normalmente ser atribuído no

tráfico negocial (art. 236.º CC e art. 11.º do DL n.º 446/85, de 25/10).

Os usos relevam aqui como elemento de interpretação do negócio jurídico,

apreciado pelo intérprete a par de quaisquer outros elementos que possam

relevar para o efeito, com vista a esclarecer o que é normal e razoável. Esta

apreciação não pressupõe a atribuição de valor normativo aos usos em causa.

Quanto à integração “da declaração negocial”, o Código Civil português não

reconhece expressamente a relevância dos usos (art. 239.º).

Repare-se que só há um problema de integração quando se verificar uma

lacuna do negócio jurídico, i.e., um ponto omisso que não é contemplado pelas

cláusulas do contrato e a que não aplicáveis regras jurídicas ou usos positivados

por remissão legal.

Quando a lei não remete para os usos, estes só podem relevar para a

integração no quadro definido pelo art. 239.º que manda atender à “vontade que

as partes teriam tido se houvessem previsto o ponto omisso”, i.e, à vontade

hipotética, “ou de acordo com os ditames da boa fé, quando outra seja a solução

por eles imposta”.

Page 144: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

144

Perante o disposto neste preceito, a maioria dos autores não atribui aos usos

o papel de um critério autónomo de integração do negócio jurídico, o que não

obsta a que os usos possam ser tidos em conta como elemento para estabelecer

a vontade hipotética e, porventura, no apuramento dos limites que lhes sejam

colocados pela boa fé.

Neste contexto, os usos relevam como meros elementos de facto que o

intérprete aprecia livremente na reconstituição daquilo que seria a vontade

normal e razoável das partes se o ponto omisso lhes tivesse ocorrido. Também

este modo de relevância não envolve a atribuição de valor normativo aos usos.

Creio que os usos podem ainda relevar nos casos em que a lei remete para

padrões sociais de conduta, por exemplo, quando, no art. 487.º CC, manda

atender à diligência de um “bom pai de família” em matéria de responsabilidade

civil.

A JURISPRUDÊNCIA

A visão clássica do papel da jurisprudência

O termo “jurisprudência” é polissémico.

Pode significar, designadamente, para designar a Ciência do Direito (por

exemplo, quando se fala de “jurisprudência dos interesses” trata-se da Ciência

Jurídica baseada numa determinada orientação metodológica), ou as decisões

dos tribunais.

Neste segundo sentido, “jurisprudência” pode significar o conjunto das

decisões dos tribunais, uma orientação seguida numa série significativa de

decisões ou qualquer decisão jurisdicional.

São estas duas últimas aceções as que relevam quando se coloca a questão

de saber se a jurisprudência é fonte do Direito.

Como foi anteriormente assinalado, a função jurisdicional do Estado consiste

na aplicação do Direito por órgãos independentes e colocados numa posição de

imparcialidade (cf. art. 203.º CRP).

Em regra, o ato jurisdicional é concreto: define uma situação jurídica

concreta, não cria uma regra geral e abstrata. O exercício da função jurisdicional

Page 145: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

145

culmina no julgamento: a decisão judicial ou sentença resolve, em regra, um

caso concreto, definindo as situações jurídicas em causa por forma definitiva.

Mas esta regra admite exceções: como adiante veremos, o ato jurisdicional

pode ter caráter normativo e não ter relevância num caso concreto.

A jurisprudência, enquanto atividade de aplicação do Direito em casos

concretos, não poderá ser uma fonte de Direito complementar, subsidiária de

outras fontes? Qual o significado de cada decisão judicial para casos

semelhantes que no futuro sejam apreciados pelo mesmo tribunal ou por outros

tribunais?

A este respeito há dois sistemas básicos: o do Common Law e o da família

romano-germânica.

Na família do Common Law vigora o sistema do precedente: as decisões dos

tribunais superiores constituem precedente relativamente vinculativo, pelo

menos para os tribunais inferiores (doutrina stare decisis).

Pelo contrário, na família romano-germânica, os tribunais não estão

formalmente vinculados a decidir em conformidade com as decisões

anteriormente proferidas em casos semelhantes, mesmo por tribunais

superiores.

Em regra, a decisão só tem importância imediata para o caso concreto a

resolver. No entanto, a solução dada num caso concreto pretende ser válida à

face do sistema jurídico, pretende ser a interpretação correta de dada lei ou a

integração da lacuna com recurso à analogia, à concretização de princípios

jurídicos ou, em último caso, à criação de uma solução compatível com o

sistema.

Por conseguinte, cada decisão encerra em si a afirmação de que casos

semelhantes devem, no futuro, ser resolvidos do mesmo modo. A solução, se

correta for, deve valer para o futuro.

Corresponde à prática judiciária que o mesmo tribunal superior tende para a

continuidade da sua jurisprudência, e que os tribunais inferiores tendem a

respeitar a jurisprudência do tribunal superior.

Page 146: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

146

Enquanto não ocorrerem modificações legislativas ou sociais que alterem o

contexto da solução jurídica, a jurisprudência tende, no seu conjunto, para a

constância e a uniformidade.

O próprio Código Civil obriga o julgador a ter em consideração todos os

casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e

aplicação uniformes do Direito (art. 8.º/3), que constitui uma imposição do

princípio da igualdade.

Esta constância e uniformidade é propiciadora de certeza jurídica e

previsibilidade de soluções. Os juristas confiam nas soluções consolidadas na

jurisprudência e, através deles, a generalidade dos interessados baseiam nestas

soluções a sua conduta. Todos acabam por ver aí um Direito vigente, por vezes

designado “Direito jurisprudencial”, ou mais amplamente, um “Direito dos

juristas”.

Não há, porém, vinculação formal ao precedente. Sempre que um tribunal

tem de resolver um caso, é possível que, ao reexaminar a solução até aí dada,

obtenha a convicção segura que a solução não é correta e que, apesar da

confiança entretanto depositada na jurisprudência firmada, deve proferir uma

decisão de sentido diferente.

Não são raros os casos de uma viragem na jurisprudência, embora, por

vezes, estas viragens constituam uma adaptação à evolução da ordem jurídica

ou do circunstancialismo social envolvente.

A elaboração jurisprudencial do Direito

Desde o século XIX que o papel da jurisprudência tem sido de crescente

importância na maioria dos sistemas da família romanogermânica: na

uniformização da interpretação; na adaptação do Direito legislado,

designadamente de códigos que datam do século XIX ou do início do século XX,

à evolução social; no desenvolvimento de novas soluções para novos problemas

jurídicos.

Muitas das soluções que constam dos códigos civis mais recentes, como é o

caso do português, foram desenvolvidas e afirmadas como Direito vigente pela

jurisprudência e pela doutrina anteriores.

Page 147: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

147

Embora as decisões não vinculem formalmente, poderia pensar-se, em todo

o caso, numa vinculação de facto. Geralmente, porém, não é uma decisão

isolada que vincula a solução de casos futuros, mas um desenvolvimento

jurisprudencial, que, caso a caso, vai paulatinamente esboçando uma regra

geral.

Face à efetividade que as regras formadas pela jurisprudência uniforme e

constante alcançam, coloca-se a questão da sua vigência; por outras palavras,

se a jurisprudência é fonte do Direito.

Esta questão recebe três respostas.

Aqueles que se mantêm fiéis ao dogma da exclusividade da lei respondem

liminarmente pela negativa. A jurisprudência seria só uma fonte de conhecimento

jurídico que revelaria o sentido do Direito vigente. A jurisprudência poderá ser,

quando muito, fonte (mediata) de Direito, nos casos em que a lei o declare, como

dispunha o art. 2.º CC. Observe-se que, com a evolução entretanto verificada,

só a Constituição pode atribuir tal valor a atos jurisdicionais.

Entendem outros que uma jurisprudência criativa, uniforme e constante é

necessariamente fonte do Direito. Com este entendimento converge a posição

de MARCELO REBELO DE SOUSA.

Enfim, sustenta uma terceira corrente que, além dos casos em que a

Constituição atribua força obrigatória geral a decisões judiciais, as regras

desenvolvidas pela jurisprudência só se positivam, só ganham validade

normativa, quando integrem um costume jurisprudencial, nos termos atrás

apresentados.

Para esta terceira doutrina, não basta uma jurisprudência uniforme e

constante, é preciso que ela gere uma convicção geral, por parte dos

interessados, de que a solução aplicada pelos tribunais é juridicamente

vinculante.

Diferentemente, a segunda posição levará a admitir, como jurídicas, soluções

que sendo de facto respeitadas pelos tribunais, não são reconhecidas

socialmente, e que, por esta razão, não constituem verdadeiros critérios de

conduta, mas tão-somente critérios de decisão.

Page 148: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

148

Sem aprofundarmos o ponto, assentemos em que as soluções desenvolvidas

pela jurisprudência poderão converter-se em regras jurídicas, não só nos casos

em que a Constituição o admita, como também, pelo menos, quando se forme

um costume jurisprudencial.

A uniformização da jurisprudência

A uniformidade das diferentes decisões jurisdicionais que recaem sobre

casos semelhantes é importante para a certeza jurídica e previsibilidade das

decisões jurisdicionais, para a realização do princípio da igualdade, para o

desenvolvimento do Direito e para facilitar a administração da justiça. É pois

normal que se instituam processos de uniformização da jurisprudência.

Antes da declaração de inconstitucionalidade dos assentos havia dois

processos de uniformização da jurisprudência.

O primeiro era o julgamento do recurso de revista ou agravo com intervenção

de todos os juízos da secção ou em reunião conjunta de secções do STJ. Esta

possibilidade encontrava-se prevista nos arts. 728.º/3 e 762.º/3 CPC.

A decisão proferida sobre este recurso não criava por si uma regra geral

vinculativa, embora tenha havido uma decisão do STJ em que este se

considerou vinculado por um acórdão proferido nessas condições.

O segundo processo de uniformização correspondia ao instituto do assento,

desde logo previsto no art. 2.º CC. O assento resultava de uma decisão com

força obrigatória geral, i.e., que criava uma regra geral vinculativa. Esta decisão

era proferida com base num recurso extraordinário dirigido ao Tribunal pleno,

que reunia simultaneamente todas as secções do STJ, para uniformização da

jurisprudência nos termos dos arts. 763.º e segs. CPC então vigentes.

Também em Processo Penal e no Processo Administrativo há um recurso

extraordinário para uniformização da jurisprudência que adiante examinaremos.

Constituiu ponto controverso se os assentos eram regras de fonte legal ou

jurisprudencial.

Page 149: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

149

Segundo o entendimento dominante, defendido designadamente por

MARCELO CAETANO, OLIVEIRA ASCENSÃO, JORGE MIRANDA, AFONSO

QUEIRÓ, MARCELO REBELO DE SOUSA e BARBOSA DE MELO o assento

teria natureza jurisprudencial. Em sentido próximo se pronunciou também

ANTUNES VARELA.

A favor da tese contrária militou CASTANHEIRA NEVES, argumentando com

base nos atributos do assento enquanto ato normativo. Também MENEZES

CORDEIRO se pronunciou, num primeiro momento, neste sentido.

Parece de preferir o entendimento dominante: embora o assento fosse um

ato normativo de um órgão do poder político, era um ato jurisdicional, e não uma

lei, porque resultava de uma interpretação, integração ou desenvolvimento do

Direito estritamente subordinado ao sistema jurídico, por parte de um órgão

imparcial.

Outro ponto controverso foi o da constitucionalidade do assento.

O STJ decidiu reiteradamente no sentido da constitucionalidade. Era também

esta a posição da doutrina dominante.

Em sentido contrário, CASTANHEIRA NEVES veio defender a

inconstitucionalidade, e esta tese veio a fazer vencimento no Ac. n.º 810/93, do

TC, secundado pelos Acs. N.ºs 407/94, 410/94 e 743/96.

Segundo o entendimento do TC, sendo função dos assentos interpretar ou

integrar autenticamente as leis (i.e., fazer interpretação ou integração vinculativa

para todos), a norma que lhes atribui força obrigatória geral viola o art. 115.º/5

CRP, aditado pela revisão de 1982, na redação anterior à revisão de 1997, que

corresponde ao atual art. 112.º/5:

“Nenhuma lei pode criar outras categorias de actos legislativos ou conferir a

actos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar,

modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos.”

Este preceito proíbe não só a criação de outras categorias de atos

legislativos mas também que a lei confira a atos de outra natureza uma função

de interpretação ou integração autêntica. Só os atos legislativos tipificados no

n.º 1 do artigo podem realizar esta função.

Page 150: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

150

O acórdão também afirma que a impossibilidade de modificar o assento

impede a evolução da jurisprudência e contraria manifestamente o sentido mais

autêntico da função jurisdicional.

Do acórdão não decorre que o instituto do assento seja, no seu conjunto,

inconstitucional. O assento será constitucional se não tiver força vinculativa geral

e estiver sujeito, em princípio, à contradita das partes e à modificabilidade pelo

tribunal que o proferiu.

Decorre de outra passagem do acórdão, que não é pacífica, conforme resulta

de uma declaração de voto, que o assento poderia continuar a vincular os

tribunais hierarquicamente subordinados . A uniformização da jurisprudência por

decisão vinculativa não viola a independência dos tribunais.

O ac. n.º 743/96, do TC, declarou a inconstitucionalidade com força

obrigatória geral do art. 2.º CC, na parte em que atribui aos tribunais competência

para fixar doutrina com força obrigatória geral.

Entretanto o art. 2.º CC fora revogado pelo art. 4.º/2 do DL n.º 329-A/95, de

12/12, que reformou o Código de Processo Civil. Mas esta revogação só

produziu efeitos em 1/1/97, por força do DL n.º 180/96. O DL nº 329-A/95 não se

limitou, porém, a conformar o regime do assento com a jurisprudência

constitucional. A reforma do Código de Processo Civil aboliu os assentos, por

considerar desnecessária a instituição de mecanismos processuais que

facultassem a revisão do decidido e que a normal autoridade e força persuasiva

da decisão do STJ, obtida no julgamento ampliado de revista, será suficiente

para assegurar satisfatoriamente a uniformidade da jurisprudência.

Pode duvidar-se da bondade desta solução, porque o assento, ainda que

limitado a uma eficácia interna e sujeito a modificação, propiciaria maior certeza

jurídica e previsibilidade de soluções que um julgamento ampliado que, segundo

parece, não vincula os tribunais inferiores na decisão de casos futuros.

Qual o valor dos assentos proferidos antes da entrada em vigor do DL n.º

329-A/95?

O art. 17.º/2 deste diploma veio estabelecer que os assentos já proferidos

têm o valor dos acórdãos proferidos em julgamento ampliado. Portanto, os

assentos já proferidos perdem retroativamente a sua força obrigatória geral,

deixando de ser fontes do Direito.

Page 151: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

151

Mas este preceito gerou controvérsia na doutrina, da qual referirei três

posições.

MENEZES CORDEIRO entende que este preceito está ferido de

inconstitucionalidade orgânica porque implica a revogação de assentos que

dizem respeito a matéria de competência exclusiva da Assembleia da República

e de inconstitucionalidade material por não ressalvar os direitos adquiridos.

Em sentido contrário se pronunciou TEIXEIRA DE SOUSA, por entender que

a competência para legislar sobre os assentos não depende da competência

para legislar sobre a matéria regulada pelo assento e que o art. 17.º/2 não

prejudica os efeitos já produzidos pelos assentos. Quanto aos assentos

proferidos na vigência do art. 115.º/5 CRP (que corresponde ao atual art.

112.º/5), verifica-se, porém, que por força da declaração de inconstitucionalidade

só fica ressalvado o efeito de caso julgado.

Uma terceira posição, defendida por OLIVEIRA ASCENSÃO, vai no sentido

de o art. 17.º/2 do DL nº 329-A/95 só poder aplicar-se aos assentos proferidos a

partir da entrada em vigor do art. 115.º/5 CRP, “pois foi a inconstitucionalidade

dos assentos a sua causa próxima”. O art. 17.º/2 não atingiria as situações já

constituídas ao abrigo destes assentos, e, da passagem do Acórdão n.º 743/96,

em que se considera que o pedido mantém utilidade, por a norma do art. 2.º CC

ainda se encontrar em vigor, infere que o TC não teria querido, com a declaração

de inconstitucionalidade, atingir as situações já constituídas.

Embora com algumas dúvidas, inclino-me mais para o entendimento

defendido por TEIXEIRA DE SOUSA. Também o Tribunal Constitucional já se

pronunciou a favor da constitucionalidade do preceito.

Portanto, os assentos proferidos antes da entrada em vigor do DL n.º 329-

A/95 perderam a sua força obrigatória geral, havendo que distinguir conforme

foram proferidos antes ou depois da entrada em vigor do então art. 115.º/5 CRP.

Os efeitos já produzidos dos assentos proferidos antes não são prejudicados.

Dos efeitos produzidos por assentos proferidos depois só não são prejudicados

os que constituam caso julgado.

Page 152: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

152

Desde 1996 até à entrada em vigor do DL n.º 303/2007, de 24/8, passou a

existir um único processo de uniformização da jurisprudência civil: o julgamento

ampliado de revista ou de agravo, nos termos dos arts. 732.º-A, 732.º-B e 763.º/2

CPC.

No CPC de 2013 a sede legal do julgamento ampliado de revista passou a

ser os arts. 686.º e 687.º e do recurso extraordinário para uniformização de

jurisprudência os arts. 688.º e segs.

A partir da entrada em vigor deste diploma o julgamento ampliado de revista

(arts. 732.º-A e 732.º-B CPC) passou a coexistir com o recurso extraordinário

para uniformização de jurisprudência previsto nos arts. 763.º e segs. CPC.

O julgamento ampliado de revista é feito com a intervenção do plenário das

secções cíveis do Supremo Tribunal de Justiça.

O Presidente do Supremo Tribunal de Justiça determina, até à prolação do

acórdão (i.e., ao proferimento do acórdão), que o julgamento do recurso se faça

com intervenção do pleno das secções cíveis, quando tal se revele necessário

ou conveniente para assegurar a uniformidade da jurisprudência (art. 686.º/1).

Pode ser requerido por qualquer das partes e deve ser proposto pelo relator,

por qualquer dos adjuntos, pelos presidentes das secções cíveis ou pelo

Ministério Público. (art. 686.º/2). O relator, ou qualquer dos adjuntos, propõe

obrigatoriamente o julgamento ampliado de revista quando verifique a

possibilidade de vencimento de solução jurídica que esteja em oposição com

jurisprudência uniformizada, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma

questão fundamental de Direito (art. 686.º/3).

O Tribunal Constitucional já decidiu pela não inconstitucionalidade da norma

do art. 732.º-A (atual art. 686.º) quando interpretada no sentido de que o

requerimento das partes apenas pode ser apresentado até à prolação do

acórdão que julga a revista (acs. n.ºs 261/02 e 383/09).

Enquanto o assento pressupunha uma contradição entre dois acórdãos, o

julgamento ampliado de revista visa prevenir um eventual conflito jurisprudencial.

O acórdão proferido em julgamento ampliado não vincula o STJ a decidir no

mesmo sentido em casos futuros (cf. art. 687.º/2 CPC). Já é controverso se este

acórdão vincula formalmente os tribunais inferiores. O STJ tem entendido que

sim. Ao passo que o Tribunal Constitucional entendeu, no ac. n.º 575/98, que o

acórdão proferido em julgamento ampliado só é obrigatório no processo a que

Page 153: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

153

diz respeito. Fora do respetivo processo tem a força persuasiva que lhe advém

de ser uma decisão do STJ com a intervenção do plenário das secções cíveis.

É um mero precedente judicial qualificado.

Com efeito, a lei não fundamenta a vinculatividade do acórdão proferido em

julgamento ampliado para os tribunais inferiores. Sucede, porém, que a decisão

proferida por tribunais inferiores contra jurisprudência uniformizada pelo STJ

admite sempre recurso (art. 629.º/2/c CPC).

Se isto não implica que o acórdão proferido em julgamento ampliado vincule

formalmente os tribunais inferiores na decisão de casos futuros, significa, pelo

menos, que há um controlo efetivo da conformidade das decisões dos tribunais

inferiores com a jurisprudência uniformizada.

É controverso se estes acórdãos são fontes do Direito, uma vez que não têm

força obrigatória geral, mas apenas um esquema de controlo da conformidade

das decisões dos tribunais inferiores por via de recurso. Em sentido afirmativo

se pronuncia MENEZES CORDEIRO.

Nos termos do art. 687.º/5 CPC e do art. 3.º/2/i) da Lei n.º 74/98 o acórdão é

publicado na 1.ª série do DR. Se estes acórdãos não são fontes do Direito é

estranho este regime de publicação, como observa OLIVEIRA ASCENSÃO.

O DL n.º 303/2007 veio introduzir um recurso extraordinário para

uniformização de jurisprudência, hoje regulado nos arts. 688.º e segs. CPC, que

permite às partes suscitar um conflito de jurisprudência perante o Supremo

Tribunal de Justiça, como vista a uniformização da jurisprudência, quando o

presidente do Supremo tenha omitido a determinação do julgamento ampliado

de revista.

As partes podem interpor recurso para o pleno das secções cíveis do

Supremo Tribunal de Justiça quando o Supremo proferir acórdão que esteja em

contradição com outro anteriormente proferido pelo mesmo tribunal, no domínio

da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de Direito (art.

688.º/1).

Este recurso é extraordinário porque pressupõe o trânsito em julgado do

acórdão recorrido (art. 688.º/2) e é interposto no prazo de 30 dias a contar do

trânsito em julgado do acórdão recorrido (art. 689.º/1).

O recurso também deve ser interposto pelo Ministério Público, mesmo

quando não seja parte na causa, mas, neste caso, não tem qualquer influência

Page 154: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

154

na decisão desta, destinando-se unicamente à emissão de acórdão de

uniformização sobre o conflito de jurisprudência (art. 691.º).

O recurso não é admitido se a orientação perfilhada no acórdão recorrido

estiver de acordo com jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de

Justiça (art. 688.º/3).

Enquanto o recurso ampliado de revista é um recurso ordinário interposto da

decisão de um Tribunal de Relação ou de uma sentença do tribunal de 1.ª

instância de que se tenha interposto recurso per saltum (art. 678.º CPC) que visa

prevenir o eventual conflito jurisprudencial, o recurso extraordinário para a

uniformização de jurisprudência é interposto de um acórdão do Supremo

Tribunal de Justiça e visa resolver um conflito jurisprudencial, visto que

pressupõe necessariamente uma contradição entre este acórdão e outro

acórdão do mesmo tribunal.

Quanto à vinculação dos tribunais inferiores pela decisão proferida neste

recurso para a uniformização da jurisprudência, bem como à sua publicação,

aplicam-se as considerações tecidas a respeito dos acórdãos proferidos em

julgamento ampliado de revista.

Nos arts. 437.º e segs. do C. Proc. Penal encontra-se também consagrado

um processo de uniformização.

Prevê-se aqui que quando no domínio da mesma legislação o STJ proferir

dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de Direito, assentam em

soluções opostas, cabe recurso para o pleno das secções criminais, do acórdão

proferido em último lugar (art. 437.º/1).

É também admissível o recurso quando um Tribunal de Relação proferir

acórdão que esteja em oposição a outro acórdão da Relação, ou do STJ, se dele

não for admissível recurso ordinário, salvo se a orientação perfilhada naquele

acórdão estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo STJ

(art. 437.º/2).

O recurso pode ser interposto pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes

civis e é obrigatório para o Ministério Público (art. 437.º/5).

Trata-se aqui de um recurso extraordinário que é interposto no prazo de 30

dias a contar da data do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar

(art. 438º/1 C. Proc. Penal).

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155

O acórdão é publicado na 1.ª série do DR (art. 444.º/1 e art. 3.º/2/i da L n.º

74/98).

Até à reforma de 1998 a decisão proferida neste recurso constituía

jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais, o que parecia configurar um

assento com eficácia “meramente interna”, i.e., que só vincula na hierarquia dos

tribunais comuns e é modificável. Mas com a reforma operada em 1998, esta

decisão deixou de constituir jurisprudência obrigatória, embora os tribunais

judiciais devam fundamentar as divergências relativamente à jurisprudência

firmada naquela decisão (art. 445.º/3).

Além disso, é admissível recurso direto para o STJ de qualquer decisão

proferida contra jurisprudência por ele fixada, a interpor no prazo de 30 dias a

contar do trânsito em julgado da decisão recorrida (art. 446.º/1).

Numa variante deste processo de uniformização, o Procurador-Geral da

República pode determinar que seja interposto recurso para fixação da

jurisprudência de decisão transitada em julgado há mais de 30 dias (art. 447.º/1).

Neste caso a decisão não tem eficácia no processo em que o recurso tiver sido

interposto (art. 447.º/3).

O Código de Processo nos Tribunais Administrativos também prevê dois

processos de uniformização da jurisprudência.

O primeiro é o julgamento ampliado do recurso, que é julgado com

intervenção de todos os juízes que integram a secção do Supremo Tribunal

Administrativo ou do Tribunal Central Administrativo (art. 148.º C. Proc. Trib.

Adm.). Este processo tem natureza preventiva, visando prevenir um conflito

jurisprudência.

O segundo é o recurso de uniformização de jurisprudência quando sobre a

mesma questão fundamental de direito exista contradição entre acórdão do

Tribunal Central Administrativo e acórdão anteriormente proferido pelo mesmo

tribunal ou pelo Supremo Tribunal Administrativo ou entre dois acórdãos do

Supremo Tribunal Administrativo (art. 152.º/1).

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156

Decisões com força obrigatória geral

Com a supressão dos assentos não foram eliminados todos os atos

jurisdicionais com força obrigatória geral. O Tribunal Constitucional pode

declarar a inconstitucionalidade ou a ilegalidade de normas com força obrigatória

geral nos termos do art. 281.º CRP.

Esta declaração tem lugar na fiscalização sucessiva abstrata da

constitucionalidade e da legalidade, i.e., a fiscalização que é posterior à entrada

em vigor da lei e independentemente da aplicação dessa lei a qualquer caso

concreto.

A declaração pode ter por objeto (art. 281.º/1):

à a inconstitucionalidade de quaisquer normas;

à a ilegalidade de quaisquer normas constantes de acto legislativo

com fundamento em violação de lei com valor reforçado;

à a ilegalidade de quaisquer normas constantes de diploma regional,

com fundamento em violação do estatuto da região autónoma;

à a ilegalidade de quaisquer normas constantes de diploma emanado

dos órgãos de soberania com fundamento em violação dos direitos de

uma região consagrados no seu estatuto.

Nos termos do art. 281.º/3, o TC também aprecia e declara, com força

obrigatória geral, a inconstitucionalidade ou a ilegalidade de qualquer norma,

desde que tenha sido por ele julgada inconstitucional ou ilegal em três casos

concretos.

Estas decisões são publicadas na 1.ª série do Diário da República (art.

119.º/1/g CRP e art. 3º/2/h da Lei nº 74/98).

Estas decisões têm força obrigatória geral, porque vinculam tanto os

particulares como os órgãos do poder político, incluindo os tribunais (ver art. 282º

CRP).

Estas decisões são indiscutivelmente fonte do Direito.

Esta fonte do Direito é jurisprudencial. O Tribunal Constitucional exerce uma

função jurisdicional quando declara a inconstitucionalidade ou a ilegalidade,

porque esta decisão se fundamenta na aplicação da Constituição ou da lei.

Page 157: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

157

Temos aqui um ato jurisdicional normativo sem relação com um caso

concreto.

Assim se explica que o TC não possa revogar o seu acórdão e substituí-lo

por outro em sentido diferente. Tratando-se do exercício de uma função

jurisprudencial, a aplicação do Direito esgota-se com a declaração com força

obrigatória geral. O acórdão deve ter a estabilidade própria das decisões

jurisprudenciais.

Outra hipótese de decisão com força obrigatória geral, que não examinarei

aqui, é a da declaração de ilegalidade de uma norma regulamentar pelos

tribunais administrativos (arts. 72.º e segs. do Código de Processo nos Tribunais

Administrativos). Estas decisões são publicadas na 1.ª série do Dário da

República (art. 119º/1/g 2.ª parte CRP e art. 3.º/2/i e r da L n.º 74/98, alterada

pela L n.º 26/2006, de 30/6).

Nestes casos a jurisprudência é uma fonte mediata do Direito com relevância

negativa: determina a invalidade da norma declarada inconstitucional ou ilegal.

A CIÊNCIA DO DIREITO

A ciência jurídica como fonte de conhecimento jurídico

Não só os titulares de órgãos de aplicação do Direito, mas também as

pessoas que exercem outras profissões jurídicas, têm de interpretar o Direito

vigente, integrar as suas lacunas e realizar outras tarefas que vão além de uma

aplicação mecânica de regras jurídicas predefinidas, realizando uma atividade

criativa.

Pensamos nos docentes de Direito, nos advogados e noutros juristas. Estas

profissões jurídicas não ocupam uma posição semelhante à do juiz, que exerce

a função jurisdicional, mas a sua atividade pode ter grande influência no

desenvolvimento da ordem jurídica.

Tradicionalmente, chama-se a atenção para a importância assumida pelas

opiniões ou pareceres formulados pelos autores, a sua doutrina. Estas opiniões

e pareceres constam dos mais variados estudos jurídicos, por exemplo, tratados,

manuais, monografias, códigos anotados, pareceres junto aos processos, etc.

Page 158: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Introdução

158

A doutrina foi um importante modo de criação de regras no Direito Romano e

durante a sua receção na Europa.

A criação de regras jurídicas pela doutrina resultou então da autoridade do

parecer dado por certo jurisconsulto ou do valor reconhecido às soluções

defendidas pelo conjunto dos autores.

No primeiro caso está a resposta dada pelos jurisconsultos romanos

investidos do ius publice respondendi, a que era reconhecida por si força

vinculativa.

Para o segundo, cita-se a importância que foi concedida à communis opinio

doctorum, a opinião comum dos doutores, no Direito europeu, na época

medieval.

A partir de finais do séc. XIX, o juspositivismo veio estabelecer uma diferença

clara entre o Direito positivo e as soluções ou construções doutrinais, negando

à ciência do Direito o estatuto de fonte do Direito.

No entanto, a importância da doutrina na evolução do Direito continuou a ser

notória. Refira-se, a título de exemplo, que muitas das soluções que hoje

constam do CC de 1966 foram avançadas por professores de Direito, e

impuseram-se como Direito vigente, embora representassem desenvolvimentos

não contidos no Código de Seabra.

Que dizer sobre a atual importância da Ciência Jurídica para a criação do

Direito?

A Ciência Jurídica influencia a atividade legislativa, a jurisprudência e o tráfico

negocial. O que coloca de novo a questão de saber se, na atualidade, este

trabalho criativo de desenvolvimento do Direito vigente representa um modo de

criação de regras jurídicas.

Parece que a resposta deve ser negativa. Os contributos da Ciência do

Direito não constituem, de per si, novas regras jurídicas. Os tribunais não estão

vinculados a decidir em conformidade com a doutrina mesmo quando esta no

seu conjunto defenda determinada solução (neste caso é usual dizer-se que a

doutrina é pacífica).

Para que as soluções propostas pelos autores se positivem necessário é que

o legislador as acolha ou que a sociedade as reconheça como vinculativas.

Normalmente, este reconhecimento passa pela adesão da jurisprudência e pela

eventual formação de um costume jurisprudencial.

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Em suma, a ciência do Direito não é fonte do Direito em sentido técnico-

jurídico; é uma fonte de conhecimento jurídico, que colabora na criação e

desenvolvimento do Direito por via da sua influência sobre as fontes de produção

jurídica.