fernandonogueiracosta.files.wordpress.com file · web viewo fim da polarização. nem petistas, nem...
TRANSCRIPT
O fim da polarização
Nem petistas, nem tucanos: o pemedebismo no poder.
Marcos Nobre
A partir das eleições de 2006, a disputa pelo título de “melhor governo da história
deste país” foi politicamente decidida a favor de Lula, contra a era FHC. Já o debate
acadêmico, em sentido contrário, parecia se encaminhar para entronizar (para o bem
ou para o mal, dependendo da avaliação) o Plano Real como marco de um novo
período da história brasileira. Foi quando o cientista social André Singer, num artigo
publicado em 2009 na revista Novos Estudos do Cebrap, resolveu comprar a briga e
estabelecer o lulismo como momento inaugural de uma nova era. Segundo suas
análises, o governo Lula construiu um programa político ao longo de dois mandatos,
cuja base social estaria na massa popular desorganizada que conquistou, nesse
período, substanciais melhorias em seu padrão de vida. Lula teria realizado uma
operação política de troca de sua base eleitoral e de apoio entre as eleições de 2002 e
de 2006. Conforme a tese, ele abandonou a base tradicional na classe média em favor
de um “subproletariado”, caracterizado por um profundo e disseminado
conservadorismo. Foi nesses termos que Singer deu corpo e densidade à expressão até
então vaga do “lulismo”, levando a discussão a outro patamar.
Em textos mais recentes, Singer deu a esse suposto conservadorismo de massa
profundidade histórica, em registro local e internacional, por assim dizer. O lado
nacional conecta a nova base social de Lula a uma corrente social subterrânea que o
levaria a Getúlio Vargas e à “herança populista dos anos 1940/1950” e que estaria
ligada, no presente, a um “povo lulista que deseja distribuição de renda sem
radicalização política”, como afirmou em artigo publicado na Folha de S.Paulo.
Já é suficientemente inquietante a aproximação com um paternalismo avesso à
democracia. Tanto mais que Singer nem mesmo distingue entre o Getúlio Vargas da
ditadura do Estado Novo e o presidente eleito da década de 50. Mas a complicação
fica ainda maior quando aproxima o lulismo do New Deal dos Estados Unidos da
década de 30, como fez em ensaio publicado na edição de outubro de piauí. Essa
comparação com um momento passado da história norte-americana pretende, na
verdade, apontar para o futuro – para o Brasil que teria sido inaugurado pela era Lula
1
e que teria como imagem a formação da nova classe média dos Estados Unidos depois
do período do presidente Franklin D. Roosevelt.
A comparação com o New Deal parece deslocada por várias razões. A começar pelo
fato de que, nos Estados Unidos, ele se seguiu a nada menos do que a crise de 1929.
Ao contrário de Obama agora, Roosevelt chegou três anos depois da maior catástrofe
econômica da história do capitalismo em tempos de paz e encontrou o terreno
propício – não obstante a derrota histórica nas eleições legislativas de 1938 – para
alcançar um novo grande acordo social. Sem falar no fato elementar de que o patamar
de desenvolvimento social, econômico e democrático dos Estados Unidos pré-1929
não tem base de comparação com o Brasil de 2002. E, tudo somado, um vaivém entre
o New Deal, Lula e o Estado Novo nem de longe pode ser considerado como uma
operação inofensiva.
Seja como for, está ausente a referência à democracia e a uma cultura política
democrática – tanto no caso dos Estados Unidos como no caso do Brasil. Como se a
presença ou ausência da tradição e da prática democráticas não fosse elemento
estrutural para pensar qualquer aproximação ou comparação entre situações sociais e
históricas distintas. De maneira crua, o que se tem na argumentação de Singer é o
suposto de que aumentar a renda da população pobre tem resultados conservadores.
Um pressuposto, aliás, que não é demonstrado. Surge como um economicismo de
novo tipo. Não apenas por ignorar o papel das instituições e de uma cultura política
democrática – fenômenos “superestruturais”, como se costumava dizer no velho
jargão marxista –, mas por reduzir a política ao reflexo de uma população que compra
e consome.
Com essa redução, desaparece do horizonte também a crítica. Desaparece todo o
universo de obstáculos à efetiva democratização da sociedade que caracteriza a
política do país. Desaparece a imagem de uma sociedade amputada por uma
representação política excludente, como é o caso da brasileira. Supor
conservadorismo sem examinar as condições políticas concretas do desenvolvimento
da democracia naturaliza esse mesmo conservadorismo.
A situação é outra quando se olha tanto o período FHC como o período Lula do ponto
de vista mais amplo do processo de redemocratização iniciado nos anos 80. Dessa
perspectiva, tanto o marco representado pelo Plano Real quanto aquele representado
2
pelo governo Lula se apresentam como momentos de inflexão em uma linha de
desenvolvimento que os precede e, em boa medida, os determina. Ao mesmo tempo, é
apenas essa ampliação do horizonte que permite enxergar a cultura política mais
duradoura que caracteriza a sociedade brasileira, juntamente com sua forma mais
relevante e estrutural de obstrução democrática. A essa cultura política herdada dos
anos 80 dou o nome de “pemedebismo”.
É possível ver o desenvolvimento da política do país desde então como uma
sequência de tentativas de lidar com esse fenômeno fundamental, seja para combatê-
lo, seja para neutralizá-lo, seja para dirigi-lo. De maneiras diferentes, tanto o Plano
Real como o “lulismo” foram tentativas de controlar o pemedebismo de fundo da
política brasileira. Por isso, por mais importantes que pareçam e de fato sejam, são
momentos de inflexão em uma linha de força muito mais duradoura e consistente.
A pemedebização não tem a ver apenas com o crescimento ou a eventual hegemonia
de um partido dentro de um governo. Tem a ver com uma lógica. A título de exemplo,
basta pensar que uma figura como Aécio Neves pode perfeitamente ser pensado nesse
registro. Se tiver a oportunidade e as condições políticas para isso, certamente ele será
um símbolo do pemedebismo, mesmo que nunca se transfira partidariamente para o
PMDB e continue no PSDB.
O pemedebismo significa uma lógica, portanto. Lógica que, sim, se formou e se
consolidoua partir da configuração concreta do PMDB na década de 80, nas
condições específicas em que se deu a redemocratização. Mas que se autonomizou em
relação ao partido, mesmo que este continue ainda hoje a ser o seu fiel depositário na
política brasileira.
Para entender esse movimento, é preciso voltar três décadas e puxar o fio da meada
desde lá. O que é um exercício bem distante de ser óbvio no momento atual, em que a
euforia da irresistível ascensão do país à condição de potência mundial deixa ver com
dificuldade o fato elementar de que períodos de crise não foram a exceção, mas a
regra, no quarto de século que vai de 1978 a 2003.
Com a reforma partidária de 1980, o MDB, já então PMDB, ganhou o importante
problema de saber como não se esvaziar, de como manter dentro da mesma legenda
correntes, tendências e mesmo partidos inteiros que tinham poucas afinidades além da
3
unidade da luta contra a ditadura. Com o pluripartidarismo, parecia que o sentido do
MDB também havia se esgotado.
Ocorre que não só o MDB guardava um capital político de altíssimo valor. Dispersar
forças naquele momento poderia significar também colocar inteiramente nas mãos dos
militares a transição democrática. Pois a antiga Arena tinha se tornado o PDS e
conseguira manter a maior parte de seus quadros. Se a oposição se dispersasse
naquele momento, o Colégio Eleitoral de 1985 poderia eleger um nome civil do PDS
como presidente da República, em lugar de Tancredo Neves.
Para conseguir manter dentro de um mesmo partido correntes e tendências tão
heterogêneas, a nova sigla aperfeiçoou um sistema interno de regras de disputa que já
funcionara durante a década de 70 e que, a partir de 1983, precisava também incluir
figuras de uma nova ordem de grandeza: governadores de estado. Esse sistema pode
ser descrito de maneira simples como um sistema de vetos. (Coisa muito diferente – e
ainda mais complicada – seria a de circunscrever a “base social” desse pemedebismo,
de tão impressionante longevidade e vitalidade na política nacional, uma tarefa que
não cabe aqui).
É um modo de fazer política que franqueia entrada no partido a quem assim o deseje.
Pretende, no limite, engolir e administrar todos os interesses e ideias presentes na
sociedade. Em segundo lugar, garante a quem entrar que, caso consiga se organizar
como grupo de pressão, ganhará o direito de vetar qualquer deliberação ou decisão
que diga respeito a seus interesses. Foi assim que o PMDB se organizou a partir da
década de 80. Como se o partido fosse, em si mesmo, um governo de união nacional.
Foi uma resposta tipicamente conservadora ao brutal descompasso entre uma
democracia sem instituições e a altíssima participação popular nos anos 80,
especialmente visível no período da Constituinte. Em lugar de democratizar
aceleradamente as suas instituições, a política brasileira, liderada pelo PMDB,
construiu um sistema de filtros, obstáculos e vetos que procurava represar e atender
seletivamente à verdadeira enxurrada participativa que se viu naqueles tempos, inédita
na história do país.
O essencial da cultura política inaugurada pelo PMDB na década de 80 é o fato de
que, desde o declínio da ditadura militar, sua identidade deixa de se construir por
oposição a um inimigo, real ou imaginário, e passa a ser construída com base em um
4
discurso inteiramente anódino e abstrato, sem inimigos, cujo sentido mais importante
é garantir o sistema de ingresso universal e de vetos seletivos.
Reafirma-se, então, a visão realista de que a democracia não passa do exercício da
capacidade de bloquear o oponente, não de enfrentá-lo abertamente no espaço
público. Pressupõe que maiorias não se formam positivamente em favor de políticas
determinadas, mas sim porque se mostram capazes de desviar, contornar ou
neutralizar vetos. No mais, é uma cultura política que aceita mecanismos de
participação e deliberação democráticos. Desde que não ameacem seriamente o
sistema de vetos.
Mas essa lógica, digamos, inclusiva do pemedebismo tem seus limites. A política
simplesmente deixa de funcionar quando a polarização desaparece. Quando todos
estão, por assim dizer, incluídos, quando estão aPTos e organizados para vetar, em
algum momento vem a paralisia, uma tendência inscrita no próprio pemedebismo.
Na década de 80, a paralisia política coincidiu com a desorganização econômica.
Produziu uma Constituição que contém muitas e diferentes constituições dentro de si
– o que, por razões que não vêm ao caso aqui, acabou por ser positivo para a sua
consolidação. E culminou com uma inflação inteiramente fora de controle e com a
humilhante derrota de Ulysses Guimarães na eleição presidencial de 1989.
A desorganização econômica tinha nome e sobrenome conhecidos. Chamava-se
inflação, “inflação inercial”. Teve papel central na manutenção do pacto de
desigualdade brasileiro dos anos de nacional-desenvolvimentismo, entre as décadas de
30 e 80. Nos limites rígidos de uma economia fechada e, na maior parte do século
XX, de regimes autoritários e/ou coronelistas, a inflação auxiliou na promoção de
desenvolvimento econômico rápido e intenso sem alterar fundamentalmente os
padrões desiguais de distribuição de renda. Um pacto que pretendia se sustentar na
melhoria geral dos padrões de vida. Não foi por acaso que um dos primeiros atos da
ditadura militar de 1964 tenha sido o de institucionalizar a inflação sob a forma da
“correção monetária”.
Em um determinado momento, entretanto, a inflação deixou de ser o mecanismo mais
eficiente para a manutenção do pacto de desigualdade que caracteriza a história
brasileira, revelando divisões e disputas potencialmente desagregadoras no interior
dos próprios estratos sociais privilegiados. Esse foi não apenas o momento em que a
5
inflação se tornou hiperinflação. A hora histórica coincidiu também com o declínio da
ditadura militar, com a redemocratização e com o esgotamento do modelo chamado
nacional-desenvolvimentista. Foi esse nó social que coube ao pemedebismo não
desatar.
A coincidência histórica de hiperinflação e redemocratização moldou um sistema
político programado para o quanto possível impedir a formação de blocos
hegemônicos capazes de impor perdas definitivas a terceiras partes. E não é difícil
verque a tarefa de superar simultaneamente a hiperinflação e o modelo nacional-
desenvolvimentista sem regressão autoritária não é factível em uma configuração
política como essa.
Para mostrar isso, basta lembrar que, até 1994, governos estaduais tinham no Brasil
relevantes instrumentos para fazer política econômica, independentemente do
chamado governo central. E que os tímidos ensaios de abertura econômica da década
de 80 – como a abertura para o investimento, por exemplo – foram feitos na margem e
por políticas específicas de ministérios e órgãos da área econômica.
Dito de outro modo, a resposta pemedebista canônica é a do adiamento permanente de
soluções definitivas. Normalmente considerada como o período do “ajuste estrutural”
à nova etapa do capitalismo mundial, a década de 80 foi, na verdade, a do adiamento
do ajuste mediante a manutenção da hiperinflação e do fechamento da economia. Não
é de estranhar, portanto, que esse adiamento estrutural leve, mais cedo ou mais tarde,
à paralisia.
O que explica também, do lado oposto, que a década tenha se encerrado com a opção
antipemedebista por excelência, com a eleição de Fernando Collor. A paralisia
pemedebista trouxe seu oposto para o centro da arena política: Collor, com uma única
bala, queria matar a inflação e o nacional-desenvolvimentismo. No fundo, a oscilação
entre os extremos da paralisia pemedebista e do cesarismo alucinado de Collor
colocou as bases para o surgimento da nova versão do pacto de desigualdade
brasileiro representado pelo Plano Real.
A reorganização que veio com o Plano de 1994 não alterou substancialmente a lógica
pemedebista – o que, aliás, não surpreende, se lembrarmos que o próprio FHC se
formou na política partidária dentro do MDB/PMDB. Mas o novo modelo de
gerenciamento político do período FHC deu ao pemedebismo direção e sentido,
6
submetendo essa cultura política a um sistema bipolar que o conteve em limites
administráveis.
Em lugar dos dois extremos – pemedebismo ou Collor – FHC colocou a ponta seca do
compasso em um novo centro político, estabelecendo a partir daí dois polos no
sistema, um liderado pelo PSDB, o outro pelo PT. Além dos aliados históricos de
cada um dos lados, a regra seria construir uma coalizão de “A a Z” sob a liderança do
polo no poder.
Como já deve estar claro a esta altura, controlar a inflação significava ao mesmo
tempo controlar a tendência pemedebista da política brasileira. É nesse sentido que a
aliança PSDB/PFL foi, literalmente, a outra face da moeda, do Real. Controlar a
inflação não dependia apenas de um aprendizado técnico-econômico com os
sucessivos fracassos dos planos anti-inflacionários de 1986 a 1991: Cruzado (I e II),
Bresser, Verão, Collor (1 e 2). Dependia ao mesmo tempo da construção de um bloco
político capaz de superar a crise estrutural de hegemonia da redemocratização que é
chamada aqui de pemedebismo. Ou seja, há um vínculo interno entre a “inflação
inercial” e a “política inercial” que se cristalizou sob a forma de sistema político a
partir da década de 80.
Ao se aliar ao PFL e, posteriormente, a quem mais estivesse disponível, o governo
FHC estabeleceu um campo de forças em que ao PT só restariam duas possibilidades:
permanecer indefinidamente na oposição ou fazer um movimento em direção ao
centro político, com uma nova e mais “flexível” estratégia de alianças.
No caso de um movimento do PT em direção ao centro, a condição propriamente
partidária imposta pelo modelo era uma só: o partido conseguiria vir a governar o país
se, além dos parceiros históricos, viesse a se aliar ao PMDB. O que efetivamente
aconteceu no governo Lula, ainda que somente depois do cataclismo do “mensalão”.
“Mensalão”, aliás, que marca o ponto de chegada e o apogeu da engenharia política
do Plano Real. Foi quando, pela primeira vez em 25 anos, uma crise política não
afetou a economia.
Mas a história ainda não chegou a 2005. Para chegar ao primeiro mandato de Lula é
preciso ainda lembrar de pelo menos mais uma das mudanças estruturais decisivas
introduzidas pelo Plano Real e que marcou o ocaso do poder dos governadores de
estado, tradicionais candidatos a gerentes do condomínio político pemedebista
7
brasileiro. O primeiro movimento de neutralização veio com a própria estabilidade da
moeda, que teve um efeito devastador sobre a dívida pública. Sem o permanente
adiamento representado pela inflação, os governadores se viram em dificuldades
orçamentárias intransponíveis e, do outro lado, encontraram no governo federal um
duro negociador na reestruturação das dívidas estaduais.
O segundo movimento foi concomitante. Retirando do âmbito dos estados
praticamente toda e qualquer possibilidade de praticar política fiscal e monetária – o
que era comum no período inflacionário – o governo federal garantiu o monopólio da
irresponsabilidade fiscal, julgada então necessária para alcançar a estabilização
econômica pretendida. A mesma irresponsabilidade que negou aos estados. Não por
acaso, foi o tempo mais quente da chamada “guerra fiscal”, em que os governadores
lançaram mão dos parcos e únicos recursos que lhes restaram para obter investimentos
em troca de isenções e benefícios tributários e fiscais.
A concentração dos principais instrumentos de política fiscal e monetária nas mãos do
governo federal foi essencial para neutralizar essa que foi uma das principais fontes
de alimentação do pemedebismo na década de 80. E seu episódio inaugural e mais
marcante ocorreu antes mesmo da posse de FHC como presidente: a intervenção no
Banco do Estado de São Paulo, o Banespa, realizada às vésperas da posse do
governador do estado, até então principal líder do PSDB, Mario Covas.
Depois de perder sua segunda eleição presidencial em 1994, Lula tomou a decisão de
fazer mudanças significativas no PT, reorientando radicalmente sua estratégia. Tinha
chegado à conclusão de que o Plano Real havia alterado profundamente a lógica da
política brasileira, a começar pelo fato de ter resolvido o principal problema nacional,
a inflação. Foi nesse momento que começou a ser construída tanto uma maioria
partidária disciplinada como uma nova política de alianças partidárias e eleitorais.
O movimento inaugural nessa direção foi a eleição de José Dirceu para a presidência
do PT. A partir de 1995 – e não sem conflitos com o próprio Lula, diga-se – Dirceu
implementou à risca o plano, isolando ou mesmo expulsando militantes e grupos
políticos inteiros que se opunham à nova orientação, construindo um sólido bloco de
apoio majoritário, e buscando estabelecer pontes com partidos e figuras políticas até
então consideradas como inimigos. O ápice dessa estratégia se deu na eleição de 2002
e seu símbolo é a candidatura a vice-presidente na chapa de Lula do empresário José
8
Alencar, então senador do hoje extinto PL.Lula ganhou a eleição sem o apoio formal
do PMDB. Mas não conseguiu estabilidade para governar até o momento em que
cumpriu o destino que lhe tinha sido reservado pelo arranjo imposto pelo Plano Real.
Não que Lula não tenha tentado fugir a essa camisa de força herdada. Ao contrário,
escolheu inicialmente construir novas alianças apenas com a miríade de pequenos e
médios partidos à disposição e fazer acordos individuais com parlamentares do
PMDB, não com o partido como um todo, ou pelo menos com a porção dele que
pudesse ser atraída para a base do governo.
Nesse momento de seu primeiro mandato, Lula operava ainda como árbitro do PT e
não como presidente da República. O governo estava dividido essencialmente entre
facções do partido que continuavam a se digladiar por espaço como antes. E Lula
continuava a ocupar a posição de “último recurso” que sempre ocupou nas disputas
internas do partido, interferindo diretamente apenas quando o seu próprio prestígio
estava em causa.Essa situação fez com que as figuras de José Dirceu e de Antonio
Palocci se sobressaíssem e passassem como que a canalizar todas as disputas internas
ao governo em duas facções concorrentes. Dirceu apoiado no PT, Palocci como porta-
voz de outras forças partidárias dentro do governo e do mercado financeiro. Por essa
época, as negociações políticas eram extremamente delicadas, já que Lula não
autorizava (nem desautorizava, ao mesmo tempo) ninguém a negociar em seu nome.
Foi essa instabilidade estrutural que o levou a recusar, em 2004, o acordo com o
PMDB construído durante meses por José Dirceu. Entre outras coisas, porque isso
significaria também, nesse contexto, dar poder demais a Dirceu na disputa interna. O
resultado foi o abismo do “mensalão”. E a consequente aliança formal com o PMDB,
em 2005, momento em que Lula finalmente assumiu a Presidência da República e o
papel de articulador político de seu próprio governo.
E, quando parecia que o scriPT traçado em 1994 estava sendo seguido à risca, Lula
deu o troco. Em lugar de apenas se limitar a trazer o PMDB e o estritamente
necessário para a sustentação política do governo, passou a ampliar sistematicamente
o centro político estabelecido a partir do Plano Real e a tornar quase impossível a vida
de um oposicionista. Com taxas de aprovação popular jamais vistas, Lula investiu
contra a lógica da polarização que organizava todo o sistema. Manteve-a apenas nos
limites do necessário para alcançar os efeitos eleitorais pretendidos. Mas, de fato,
roubou o chão do polo liderado pelo PSDB.
9
Lula esteve em condições de ampliar de tal maneira o centro político que a
polarização praticamente desapareceu. Deu à oposição a alternativa de aderir ou de se
encantoar na extrema-direita. Ou seja, não lhe deu alternativa. Ou lhe deu uma
alternativa ainda mais estreita do que aquela que lhe tinha sido imposta por FHC.
Esse movimento solapou de tal maneira as bases do sistema político do Plano Real
que é difícil imaginar como elas poderiam ser hoje recompostas. O acordo selado em
torno do centro político se tornou de tal maneira amplo que toda e qualquer
polarização parece artificial. Artificialismo, entretanto, que tem sua utilidade eleitoral,
sem dúvida. E que explica também por que a eleição de 2010 ficou entre o chocho e o
abstruso, sem nada de realmente relevante entre as duas coisas.
Em uma sociedade que – por muito boas razões, diga-se – não acredita em consensos,
o primordial é tentar garantir não ser atropelado por um dos propalados “consensos”
do momento. Como por toda a América Latina, as eleições da última década
significaram a ascensão de pobres e remediados à condição de representados políticos.
O que talvez seja específico do caso brasileiro é a maneira como ocorre a “inclusão”.
Também no caso da representação do que André Singer chamou de subproletariado,
tento mostrar aqui que é o mesmo mecanismo característico da cultura política
brasileira que se encontra em ação: o de igualar “estar incluído” com “ter poder de
veto”.
Lula representa quem nunca teve verdadeiramente representação, não porque
simbolize um conservadorismo que seria próprio aos excluídos políticos, mas porque
é o fiador de que não haverá retrocesso nesse avanço democrático à brasileira. Ao
contrário da ladainha conservadora, ser representado não é apenas ser objeto de
políticas públicas; é igualmente acreditar que não será atropelado por mais um dos
muitos “consensos” que o país produz de quando em quando.
É por tudo isso que penso que André Singer tem razão em dizer, no ensaio de piauí,
que “durante um tempo longo o norte da sociedade será dado pelo anseio histórico de
reduzir a pobreza e a desigualdade no Brasil”. Como me parece ter razão ao
acrescentar em seguida: “Em que grau e velocidade, a luta de classes dirá.” Ocorre
que a determinação do “grau e velocidade” depende também de análises políticas
concretas, que sejam capazes de mostrar as tendências do sistema. Depende de uma
análise política capaz de vincular esse movimento à própria lógica da democracia
10
brasileira, com os potenciais e os obstáculos ao seu aprofundamento. Do contrário, a
posição do lulismo como pretenso momento inaugural de uma era perde o gume
analítico e seu eventual poder explicativo.
O que tento mostrar aqui é que há uma tendência à paralisia no sistema político
brasileiro cuja lógica chamo de pemedebista, cujas raízes devem ser buscadas na
década de 80, no início da redemocratização brasileira.
Tento mostrar também que essa tendência intrínseca impõe dificuldades estruturais à
produção de polarizações consistentes e duradouras. E que o momento atual é de
enfraquecimento da polarização, um momento em que a paralisia pode suplantar uma
vez mais o sistema bipolar instituído pela lógica política do Plano Real.
No caso da reviravolta política de Lula examinada aqui, por exemplo, o alargamento
do centro político e o enfraquecimento da polarização tiveram por consequência trazer
para o primeiro plano justamente o pemedebismo, até então subordinado e
subterrâneo. E essa novidade é um elemento determinante do “grau e velocidade” em
que poderão se dar ou não as transformações no país.
O marco do novo surto pemedebista pode ser representado pela resistência de José
Sarney na presidência do Senado apesar de uma saraivada de denúncias, em 2009. O
apoio decisivo de Lula à permanência de Sarney na presidência do Senado selou a
aliança com o PMDB para a eleição presidencial de 2010 e, ao mesmo tempo, marcou
a volta do pemedebismo à disputa pela hegemonia da gramática política brasileira. Ao
contrário de casos anteriores, que resultaram em renúncia ou cassação de mandatos, a
permanência de Sarney mostrou que o centro político ganhou tal amplitude e poderio
que pode em grande medida ignorar protestos sistemáticos e generalizados da
sociedade.
Uma contraprova do caráter determinante dessa cultura política de fundo pemedebista
está em que, desde o primeiro mandato, Lula caminhou justamente por onde não
encontrou vetos: nos aumentos reais do salário mínimo, na ampliação dos programas
sociais, nas reformas microeconômicas do crédito. Mas isso estava ainda longe da
política desenvolvimentista do segundo mandato, que induziu a criação de oligopólios
nacionais com pretensões de internacionalização.
Na nova política, os grupos escolhidos pelo governo como vencedores tinham todas
as razões para comemorar, assim como os demais tinham motivo de sobra para se
11
recolherem, evitando possíveis represálias. Além disso, o crescimento econômico
expressivo e praticamente contínuo tornou os reais perdedores apenas residuais. Seja
por que razão for, o fato é que a nova orientação desenvolvimentista não encontrou
resistência social e política relevantes. E, coincidência ou não, esse
desenvolvimentismo movido a subsídios, desonerações e subvenções só deslanchou
com a entrada definitiva do PMDB no governo, depois do “mensalão”.
Tão ou mais importante que isso, a chegada do PMDB ao governo Lula trouxe ainda
um elemento novo ao modelo de liderança bipolar herdado da engenharia política
imposta por FHC. Lula criou onde e como pôde políticas sociais compensatórias. Só
que repartiu de maneira desigual os seus dividendos políticos.
O PT ficou com a formulação, com o controle dos projetos e com o crédito de
paternidade (ou maternidade, como se queira). E o PMDB recebeu a maior parte da
execução das políticas – justamente a parte que contempla o poder local e abastece a
política miúda. O programa Luz para Todos, não por acaso criado por Dilma Rousseff
quando ministra das Minas e Energia, pode ser visto como caso exemplar dessa lógica
lulista de repartição de dividendos políticos.
É justamente essa lógica de repartição de dividendos políticos que está ameaçada de
agora em diante. E não apenas porque a própria repartição terá de ser negociada. O
sucesso do Plano Real e a popularidade de Lula conseguiram ainda contrabalançar,
conter e direcionar em alguma medida o pemedebismo. Mas são eventos passados e
irrepetíveis.
Quanto mais se radicalizou a polarização entre PT e PSDB, tanto mais o
pemedebismo se impôs. Não se trata de dizer sem mais que a polarização é falsa e que
não há diferenças entre os dois polos. Mas, quanto mais o pemedebismo avança, mais
a polarização é amplificada artificialmente, servindo à manutenção de uma lógica
política profunda que não é nem petista nem tucana.
Durante dezesseis anos, o sucesso do Plano Real e os altíssimos índices de aprovação
do governo Lula permitiram manter sob certo controle a tendência do sistema à
pemedebização. Parece que não mais. A possível oposição se encontra hoje
entrincheirada justamente em governos estaduais, o lugar político menos propício
para enfrentar as coalizões de “A a Z” que caracterizam os governos desde FHC.
12
Além disso, um Congresso ainda mais fragmentado serve de caldo de cultura política
ideal para a expansão do pemedebismo.
A ironia e a tragédia da história estão em que o pemedebismo encontrou na
“blindagem” da economia contra “interferências políticas” o elemento que lhe faltava
para voltar a disputar a hegemonia política, para sair de sua posição de relativa
subordinação de mais de quinze anos para um novo protagonismo. Note-se, aliás, que
o fiel depositário do pemedebismo, o partido que lhe deu origem, procurou mesmo se
mostrar fiador dessa “blindagem”, filiando quadros tão importantes e incongruentes
entre si como Henrique Meirelles e Delfim Netto. O resultado regressivo desse
processo é visível a olho nu: uma política que tende a se descolar da sociedade, uma
política que tende a se fechar sobre si mesma. E que, no limite, pode levar à paralisia.
Tornado aliado em sentido enfático nas eleições de 2010, o PMDB vai levar a disputa
entre situação e oposição para dentro do governo. É por isso também que o tamanho
nominal da bancada parlamentar que apoia o governo tem menos importância do que
as matérias específicas em pauta, do que o estado da disputa interna ao governo. Ou
seja, a mais importante disputa política será entre o PMDB e o pemedebismo, de um
lado, e o PT e seus possíveis aliados, de outro.
Não será uma briga bonita de ver. As fábricas de dossiês vão se multiplicar como
nunca. Já durante a eleição de 2010, a ministra-chefe da Casa Civil, Erenice Guerra,
foi a primeira baixa, o prenúncio do que virá. Sua queda dá uma pálida ideia de como
serão os embates futuros.
A primeira das duas batalhas decisivas será uma vez mais a eleição municipal – a
mesma, aliás, que esteve na origem do “mensalão”, é importante lembrar. Depois de
2012, a segunda batalha acontecerá na data limite para parlamentarestrocarem de
partido sem penalidades, na segunda metade de 2013. Enquanto isso, o PMDB fará de
tudo para colocar sob sua órbita de influência o maior número possível de
parlamentares de outros partidos.
A primeira escaramuça – que de maneira alguma será decisiva – acontecerá na eleição
para a presidência da Câmara e do Senado, no início de 2011. Sendo que a figura de
José Sarney é aqui emblemática: o atual presidente do Senado e candidato à
recondução ao cargo foi justamente o presidente no auge do pemedebismo da década
13
de 80. Sabe muito bem o que significa estar nas mãos de um Congresso que funciona
segundo essa lógica.
Não é nem um pouco fácil imaginar o lugar que poderá ter a oposição durante o
governo Dilma. Há quem confie em supostas leis da política e ache que é assim
mesmo, que a oposição vai se reorganizar e acabar aparecendo. Mas não são muitos
esses otimistas científicos.
No momento, resta à oposição formal hibernar. Aliás, tudo indica que também a
disputa pela liderança do PSDB será duríssima. Aécio Neves decidiu ir para o tudo ou
nada contra a pretensão de Serra de presidir o partido. Se perder para o grupo paulista,
Aécio não permanecerá no PSDB senão o tempo suficiente para encontrar um solo
alternativo para suas pretensões presidenciais.
Mas, mesmo quando conseguir se reorganizar, a oposição pode, no máximo, servir de
massa de manobra na disputa entre PT e PMDB. E manter a esperança de que o
pemedebismo afinal vença e venha a produzir a paralisia que lhe é própria. Isso seria
capaz de dar novo fôlego à oposição, talvez em aliança com o próprio PMDB. Mas
também esse não é um cenário alentador para a democracia brasileira. Porque, no
fundo, o jogo político não vai se dar entre situação e oposição, mas entre a crise de
um sistema organizado em polos e a pemedebização.
Uma eventual hegemonia do pemedebismo tenderia a levar a uma situação
semelhante ao estado de paralisia política dos anos 80. Em termos concretos, poderia
comprometer seriamente a Copa do Mundo ou as Olimpíadas, por exemplo, já que as
obras de infraestrutura são as primeiras a serem afetadas por uma crise política
profunda. Marcaria o retorno da concomitância entre crises políticas e abalos na
economia.
Seja como for, se não é possível prever os resultados de uma regressão política dessa
magnitude, é pelo menos possível dizer que, no médio e longo prazo, sua efetiva
ocorrência exigirá uma reorganização de grandes proporções. Porque o sistema
político não sobrevive sem polarização. E a polarização dos últimos quinze anos não
tem mais densidade suficiente para organizar e estruturar o sistema.
Um sistema em estado de não polarização é o elemento do pemedebismo. E, se um
cenário regressivo não se deixa ver hoje em toda a sua possível amplitude e
gravidade, pelo menos suas marcas mais gerais são bem visíveis: um tempo de
14
bonança, desigualdade e pequena política. Ou até que uma nova polarização se
produza para superar uma vez mais a paralisia pemedebista.
15