eu - perse.com.br file5 1ª parte (escrito entre abril, maio e junho de 2006) capítulo 1 era uma...
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Paulo Sérgio Muglia
EU A História De Um
Serial Killer
Tupiniquim
Para:
Andréa, Francisco,
Thiago, Ana Paula,
Pedro, Tatiane
E Regina Laginestra
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Paulo Sérgio Alves Muglia nasceu em Muriaé,
Minas Gerais, onde viveu sua infância e juventude e para onde
voltou a fixar residência, após alguns anos de estudo e trabalho
em Belo Horizonte e Rio de Janeiro.
Descobriu sua veia artística aos 15 anos, quando tirou o
primeiro lugar num Concurso de Crônicas da Faculdade Santa
Marcelina e venceu um concurso de caricaturas no Colégio São
Paulo em Muriaé.
Sua produção literária aumentou no Rio, quando
surgiram poemas, crônicas e músicas inspiradas nas conversas
dos amigos e nas rodas de bar. Integrou-se a um grupo de teatro
independente e participou de um Festival de Teatro na Aliança
Francesa.
O casamento e a chegada do primeiro filho o levaram a
mudar a rota de seus planos voltando a residir em Muriaé.
Passou então a conciliar o trabalho no comércio com a
criação de textos para propaganda, poesias e músicas. Ganhou
um Concurso Nacional de Poesias e participou do Festival da
Canção de Muriaé. Uma peça de teatro infantil lhe rendeu em
1996 o Troféu Revelação do 1º Festival de Teatro de Muriaé,
onde também atuou como diretor.
Em 1998 tirou o 1º e o 2º lugares de um concurso de
poesias em sua cidade.
Em 2006, incentivado pelos familiares, decidiu
aventurar-se pela literatura. Logo tinha pronto seu primeiro livro
de ficção policial “EU – A História De Um Serial-Killer
Tupiniquim”, que traz um conto de suspense intrigante como
vocês poderão ler nas páginas a seguir.
Seu segundo livro já está no forno. Mais uma obra de
ficção, fruto de uma pesquisa cuidadosa sobre o período que
antecede a ditadura militar brasileira, onde traça uma linha
imaginária unindo a realidade dos fatos com a possibilidade de
um desfecho diferente da história, para o leitor dar asas à
imaginação e se questionar: “E SE...” (João Goulart Tivesse
Resistido Ao Golpe Militar De 1064?). Que é também o título do
seu segundo livro.
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1ª Parte (escrito entre abril, maio e junho de 2006)
Capítulo 1
Era uma manhã de quarta-feira sem sol do mês de abril
com nuvens encobrindo o céu. Rafaela saiu de casa no Jardim
Botânico, zona sul da cidade do Rio de Janeiro às seis e quarenta
da manhã e abriu o portão da garagem para que seu pai, Roberto,
pudesse retirar o carro para leva-la na escola. Vestia uma saia
azul escuro pregueada, camisa de pano branco com o emblema
do colégio no bolso do lado esquerdo. A mesma rotineira manhã
de todos os dias.
A mãe gritou da janela:
- Pegou o lanche?
Um aceno de cabeça como resposta.
- Lembra de falar com a sua professora sobre aquela sua
dúvida em matemática.
Rafaela já nem escutava mais devido ao barulho do
motor do carro descendo a rampa da garagem. A casa fora
herança de sua avó materna que conhecera apenas pela própria
casa. Em cada canto havia uma história que Arlete, sua mãe,
contava sobre a matriarca:
- Sua avó adorava tomar chá nessa cadeira de balanço
virada para a janela; sua avó não se cansava de arrumar a estante
de livros do seu avô; sua avó...
A Rua Nascimento Bitencourt, como todas no Jardim
Botânico, era arborizada, mas onde estava Rafaela era um local
descoberto. A rua ainda não acordara. Estava quase deserta. A
não ser por alguns porteiros que varriam as folhas acumuladas
durante a noite nas calçadas. Ninguém percebeu quando um
ponto de luz vermelha marcou o cabelo da menina onde uma fita
prendia seus cachos encaracolados. O que se ouviu foi apenas
um assobio. A bala desferida atravessou os fios de cabelo,
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perfurou o cérebro da menina, indo vazar entre seus olhos. Um
filete de sangue acompanhou a trajetória do projétil até este bater
na porta do carona do Vectra de seu pai que se alarmou:
- Rafaela!
A menina caiu. Primeiro de joelhos e depois bateu de
cara no portão, rolando em seguida para a calçada. O sangue
escorria pelo meio de seus olhos onde o crânio fora perfurado.
Quando seu pai conseguiu descer do carro e pode amparar sua
cabeça em seus braços, ela já estava morta.
As poucas pessoas que estavam na rua àquela hora
correram em sua direção. Dona Arlete desmaiou da janela.
- Chamem uma ambulância! – alguém gritou.
- Chama o guarda Lourenço que ele já deve estar de
serviço na Avenida Jardim Botânico!
Olhavam para o alto na esperança de verem alguma coisa
que pudesse explicar o ocorrido.
- Bala perdida?
O Jardim Botânico tem o privilégio de não ser rodeado
por favelas.
O guarda Lourenço chegou:
- Afastem da vítima!
Chegou também um médico residente, doutor Rafael,
interrompido em seu café da manhã chamado por morar num
prédio vizinho.
Não havia mais nada a fazer. Rafaela, que não chegara a
completar seus doze anos, estava morta com um tiro desferido,
não se sabe bem de onde, que atravessou seus miolos, saindo de
sua testa e atingindo a porta do Vectra do senhor Roberto.
Em breve chegaram os repórteres de uma emissora de
televisão com sede ali perto, uma ambulância, uma viatura. A
área foi isolada. Dona Arlete recebeu assistência médica e aos
poucos foi retomando a consciência. O senhor Roberto ficou
encostado junto ao portão da garagem com as mãos e parte das
roupas cobertas de sangue olhando para lugar nenhum.
O homem em cima do telhado deu por cumprida sua
missão. Sentou-se, recostando-se e ocultando-se na mureta do
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terraço. Com calma e precisão desmontou o rifle AK-47, retirou
a mira laser e foi guardando cada uma de suas peças
cuidadosamente encaixadas em seus devidos lugares numa
maleta. Por cima colocou um notebook. Assim a valise ficava
aparentando apenas o computador.
Retirou suas luvas e o gorro que usava e guardou-os no
bolso de sua jaqueta preta. Guardou também a cápsula da bala
disparada. Levantou-se, pegou o capacete e pôs-se a caminho da
escada do prédio. Tinha por volta de um metro e setenta. Era
magro, sério, os olhos fundos. Não devia ter mais que vinte anos.
Usava uma camisa de malha azul clara, por baixo da jaqueta, que
realçava seu tronco musculoso. Cabelo curto, quase raspado.
Barba e bigode bem feitos. Uma pela quase mulata. Desceu os
cinco lances de escada em passos rápidos e saiu pela porta que
dava acesso à Rua Nascimento Bitencourt. Dirigiu-se para a
Avenida Jardim Botânico, dobrou a esquerda e passou pelo
tumulto que se formava na outra esquina sem chamar a atenção.
Mais à frente, retirou as luvas do bolso e as recolocou em
suas mãos. Pegou também diversas cartas seladas e as depositou
numa caixa de correio. Colocou o capacete, destravou sua moto
Honda CG 125 vermelha, ano 97, placa com as letras OWA
3860. Um olhar mais atento verificaria que a letra “O” da placa
estava adulterada por um pedaço de fita isolante que
transformara o “C” em “O”. Prendeu o notebook com um
elástico e duas garras. Deu a partida elétrica e arrancou virando
no sentido contrário ao engarrafamento que se formava.
Capítulo 2
O episódio foi manchete em todas as redes de televisão.
Algumas em edição extraordinária. E depois no noticiário
regional, primeira e segunda edições e no jornal da noite.
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A 12ª Delegacia de Polícia de Copacabana nunca fora tão
movimentada. A Rua Hilário Gouveia quase esquina com Barata
Ribeiro havia ficado pequena para tanta gente. Uma multidão de
repórteres e curiosos se comprimia ao redor da porta da
delegacia. O delegado Gonçalves chegou numa viatura e foi logo
cercado. As perguntas vinham de todos os lados e o delegado
parecia um papagaio repetindo insistentemente:
- Daremos uma entrevista coletiva amanhã às 14 horas.
Daremos uma entrevista coletiva...
A sala da delegacia era bem quente com aquele único
ventilador rodando preguiçoso num dos cantos, mas pareceu
estar refrescante quando Gonçalves afinal conseguiu entrar.
- Ferreira! Vê se tira esse monte de urubus aí da porta.
Entrou em sua sala acompanhado do Detetive Amaro.
- Porra! O defunto da menina ainda nem chegou ao
cemitério e a imprensa quer que a gente já tenha a foto do
assassino. E aí? Já deu pra apurar alguma coisa?
- Pelos testemunhos e pela posição em que a bala atingiu
a garota, a única certeza que temos é que o tiro veio de cima.
Provavelmente de um dos terraços ali perto. A arma usada
parece ter sido um rifle AK-47 calibre 7,62 mm pela cápsula que
foi recolhida. Pela precisão do disparo trata-se de alguém com
muito treinamento. Deve ter usado uma mira laser de longa
distância.
- Mandaram investigar nos prédios vizinhos para
certificarem de que ninguém viu nada suspeito? – sem muita
convicção procurou café na garrafa térmica e constatou que esta
estava vazia.
- O Fonseca está com um pelotão na área providenciando
isso.
- Fizeram a checagem do... – senta-se e procura algo
entre os papéis desarrumados sobre a mesa.
- Senhor Roberto de Almeida Carvalho! É um
empresário bem sucedido do setor de seguros. – Amaro recorreu
às anotações que trazia consigo. Parecia já saber as perguntas
que lhe seriam feita. – Casou-se com Arlete Magdala Carvalho
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há dezessete anos. Herdaram a casa e um bom dinheiro guardado
numa Caderneta de Poupança na Caixa Econômica Federal,
agência Jardim Botânico, pela dona Antonieta Oliveira Magdala.
Uma aristocrata europeia vinda viúva para o Brasil quando a
filha ainda tinha dois anos. Não foi um golpe do baú. Roberto já
tinha a Companhia de Seguros antes de se conhecerem.
Tratavam a filha com atenção de filha única. A mãe
acompanhava sua educação com muito rigor no Colégio Santa
Marcelina.
Gonçalves levantou-se e começou a circular pela sala
fazendo conjecturas. Era algo que o ajudava a pensar.
- Inimigos? Agiotas? Traficantes?
- Tivemos muito pouco tempo para levantarmos todas as
informações, mas aparentemente é uma família muito bem
comportada. Vão à igreja todos os domingos; o Roberto emprega
o cunhado que está em situação financeira pior; visita os pais em
Petrópolis com frequência. Arlete se dá muito bem com os
sogros.
- Algum indício de relação sexual recente da vítima?
- A garota era virgem. Há pouco havia iniciado seu
período menstrual. Estamos ignorando, por enquanto, qualquer
suspeita de pedofilia. Um assassinato neste caso seria apena para
apagar pistas, o que achamos improvável pela conduta sexual da
garota.
Amaro era o homem de confiança do delegado. Sempre
que aparecia um caso mais complicado era passado para ele.
Trabalhavam juntos há mais de nove anos. Gonçalves caminhou
até a janela e entreabriu a veneziana com a mão direita. O
Ferreira estava ainda afastando os repórteres e curiosos. Com a
mão esquerda acariciou seu bigode de um lado para o outro.
- Marquei uma entrevista coletiva com a imprensa para
amanhã às 14 horas.
- Acha muito cedo. Ainda não teremos quase nada para
acrescentar ao caso.
- Precisamos fazer alguma coisa. Tomar uma atitude. O
Secretário de Segurança do Estado já me telefonou solicitando
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providências. É ano eleitoral Amaro! Sabe quantos votos se pode
perder com um episódio desses?
A Lapa já foi um bairro boêmio muito famoso no Rio de
Janeiro. Com belas prostitutas, compositores de sucesso, vedetes
de teatro, como frequentadores de suas mesas de bar. Hoje não é
mais nem sombra do seu passado de glória. Mas ainda é reduto
de travestis e putas disputando clientes, alcoólatras inveterados
tomando sempre a saideira. E continua sendo uma parte do
passado do Rio emoldurado por seus arcos suportando o peso
dos trilhos do bonde de Santa Tereza.
Não havia nenhum nome estampado que identificasse o
bar. Só uma placa: ABERTO 24 HORAS. Algumas mesas e
cadeiras na calçada da Rua Theotônio Regadas. Ao lado, um
estreito corredor que dava passagem para uma moto CG 125 sem
que seu passageiro precisasse descer. Ao fundo um cômodo
espaçoso, com porta de aço, onde o morador guardava seu
veículo. Peças, pedaços de computadores estavam espalhados,
mas de maneira ordenada. Havia uma cama, uma geladeira, um
fogão de duas bocas, um banheiro com chuveiro e o aluguel era
barato. Precisava de mais alguma coisa?
Rogério alugara o local há cerca de quatro meses. Antes
funcionava um salão de sinucas, mas estava dando muito
transtorno para o proprietário. O jovem chegou com aquela cara
de militar boa praça, viu a placa de ALUGA-SE. Pagou três
meses de aluguel adiantado como garantia. E não precisou nem
de documento. O dono do bar, seu Antônio, dera a ele um recibo
do adiantamento e todo mês procedia assim: recibo pra lá e
dinheiro pra cá. E o português não aceitava cheques.
O inquilino mal acabara de estacionar a moto naquela
quarta-feira quando recebeu um chamado pelo celular.
- Alô!? (...) Sim senhora, estou lembrado. (...) Olha,
como eu disse pra senhora naquele dia, esse problema deve ser
que o HD do seu computador não está mais conseguindo
armazenar esses programas novos. (...) É, podemos tentar trocar
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o HD por outro maior, mas teremos que ver o problema mais de
perto. Qual é mesmo o endereço? (...) Leme. Ok! Hoje ainda eu
passo por aí para dar uma olhada. (...) Não tem o que agradecer.
Esse é o meu trabalho.
Rogério sabia que os computadores não foram feitos para
serem adaptados ou turbinados para suportarem os novos
programas que surgiam a cada dia consumindo mais e mais
memória das máquinas. Era assim que ganhava seu sustento.
Enrolava os clientes, que acabavam trocando seus computadores
por modelos mais modernos, ganhava comissão das lojas e com
os aparelhos velhos conseguidos baratos na base de troca, vendia
para empresas que necessitavam de softwares menores.
Rogério viera do interior do estado para fazer carreira no
exército. Era filho temporão de Inácio e Olinda. Aos vinte e
cinco anos de casados, seus pais, evangélicos de carteirinha,
acreditavam que não era da vontade de Deus que viessem a ter
filhos. Ambos já haviam passado por tratamentos médicos sem
terem alcançado vitória. Foi quando Dona Olinda aos 43 anos,
na idade de ser avó, como dizia, engravidou.
Uma mulherzinha miúda, de pouca conversa. Cozinheira
de mão cheia e que nunca deixava a casa desarrumada. Um
homenzarrão com um metro e sessenta e cinco de altura e 112
quilos, andando com certa dificuldade, ficando a maior parte do
tempo sentado num sofá na porta de sua quitanda que funcionava
ao lado de sua casa. Era como Rogério se recordava dos pais.
Faleceram num acidente de carro, há um ano, enquanto
ele servia no Exército. Estavam a caminho do Rio para visitá-lo
no quartel. Seu Inácio teve um princípio de enfarto ao volante,
perdendo a direção, e o carro caiu numa ribanceira. Morreram no
local. Deixaram a casa em Sapucaia como herança. O carro, um
Gol 1000 ano 87, não tinha seguro e teve de ser vendido a um
ferro velho.
Os outros familiares moravam distantes.
Rogério decidiu vender a casa, encerrar a carreira no
exército e começou a trabalhar com manutenção de
computadores, que tinha aprendido num curso nas horas de
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folga. Dos pais, que o levavam toda semana a uma igreja
evangélica, herdou o temor de Deus. Do exército, herdou o amor
pelo tiro e algumas medalhas de condecoração. Antes de dar
baixa, conseguiu de um colega um rifle AK-47 e alguma
munição que haviam sido apreendidos em batidas nas favelas no
período da ECO-92 e que sequer tinham registro de sua entrada
no arsenal da corporação. Apaixonou-se pela sua arma como
uma criança por um brinquedo. Não achava pecado, só usava o
instrumento para treinar tiro ao alvo. Não foi roubo, dizia ele,
afinal a arma não pertencia a ninguém.
Da janela da sala de Dona Aparecida, onde verificava o
computador, podia ver quase toda a praia do Leme. Eram 16
horas e 30 minutos, e as pessoas ainda insistiam em se bronzear
no sol carioca. Ficava imaginando:
- Onde aquelas pessoas arrumavam tanto tempo livre
para não fazerem nada?
Alguns, pela pele avermelhada, eram notadamente
turistas. Ainda que usassem bronzeadores, filtros solares, não
conseguiam perder essa característica. Algumas mulheres de
pele bronzeada e corpo escultural usando um insignificante fio
dental eram garotas de programa acompanhando os
avermelhados, provavelmente contratadas pelos hotéis aonde se
hospedavam. Mas, e os outros 50%?
- Vai dar para trocar a tal peça de que você me falou?
Dona Aparecida entrara de surpresa na sala, num
momento em que ele estava totalmente distraído. Voltou à
realidade.
- Dona Aparecida, é como eu havia lhe explicado. O seu
neto gosta de vir aqui para navegar pela internet, baixar
joguinhos. Isso tudo ocupa muita memória do computador.
Trocar o HD não vai resolver o problema. Os americanos já
fazem isso pensando em vender novos aparelhos, ao invés de
aperfeiçoá-los. Se a senhora quiser, posso fazer o orçamento de
um computador mais moderno. Eu sou representante de uma
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firma de equipamentos eletrônicos aqui no Rio, com Nota Fiscal,
garantia, já vem com o Windows XP instalado. Eu levo o
computador da senhora e salvo todos os programas, documentos
e joguinhos que já estão instalados.
- Que coisa mais danada, Rogério! Então, espero você
me ligar passando o preço de um modelo mais novo, a condição
de pagamento e a gente vê se dá pra fechar negócio. Olha que eu
nem sei usar essa coisa...
- Mas eu tenho certeza que seu neto vai ficar muito feliz
ao receber esse presente da senhora.
Capítulo 3
Gonçalves nem almoçou naquela quinta-feira. Em dias
assim, preferia entrar e sair pelos fundos da delegacia e fazer um
lanche na Rua Barata Ribeiro. Desde o dia anterior mantivera
contato com outros delegados da cidade, tentando obter
informações. A Delegacia de Homicídios também estava
envolvida no caso.
- (...) qualquer coisa você me liga!
A autópsia não tinha ajudado em muita coisa. Pela
inclinação do tiro, ele poderia ter sido disparado de qualquer um
dos quatro prédios entre cinco e seis andares que ficavam do
outro lado da rua. Os moradores desses prédios foram
interrogados e nada puderam acrescentar.
Ninguém vira nada. Era muito cedo. As pessoas ainda
estavam acordando.
O secretário de segurança não parava de ligar, cobrando
uma resposta...
Ao voltar do lanche, Gonçalves viu de longe os
repórteres se acotovelando na porta da delegacia. O carteiro teve
de se espremer um pouco para conseguir entregar a
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correspondência nas mãos do escrivão Santos por uma fresta da
porta.
As mesmas cartas de sempre: da Corregedoria, do
gabinete do prefeito, do... Indefinido. Sem remetente. Resolveu
começar a abrir os envelopes por este.
14 horas.
O Delegado Gonçalves deixara de fumar há cerca de três
meses. Em momentos como este, ficava sem saber aonde colocar
as mãos. Estava nervoso com aquela gente toda ali dentro de seu
escritório com os microfones, as câmeras, as luzes. Sentia a
ausência do companheiro entre os dedos.
Começou seu pronunciamento devagar:
- A menina Rafaela Magdala Carvalho de doze anos foi
morta com um tiro de fuzil AK – 47 às 6 horas e 42 minutos de
ontem na porta de sua casa na Rua Nascimento Bitencourt, no
bairro do Jardim Botânico. O tiro foi disparado provavelmente
do alto de um dos prédios do outro lado da rua. Os pais são
pessoas idôneas, sem inimigos, sem nada que os relacione com o
crime organizado. Os motivos que levaram a este assassinato
estão sendo investigados e nenhuma hipótese está sendo
descartada.
Neste momento, Santos entra na sala e murmura alguma
coisa ao ouvido do Delegado. Alguns celulares dos repórteres
começam a tocar. Gonçalves está desconcertado. Uma repórter
se aproxima:
- Delegado Gonçalves, o que o senhor pode nos dizer
sobre uma suposta carta escrita pelo autor do crime?
Gonçalves fica perdido. Como ela ficou sabendo da
carta? Ele mesmo só fora informado agora.
- Esta entrevista vai ter que ser interrompida. Assim que
soubermos de mais alguma coisa, entraremos em contato.
Levanta-se e sai rapidamente. Há uma grande confusão
de vozes na sala. Todos falam. Ninguém se entende. Celulares
tocando...
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Capítulo 4
O corredor que levava do escritório do Delegado até a
sala do escrivão era curto. Ao entrarem, Santos ainda tentava
explicar ao Gonçalves porque a repórter já sabia da carta que
eles tinham acabado de receber.
- (...) e ele termina dizendo que estaria mandando a
mesma carta para os órgãos da imprensa e do governo.
Gonçalves senta-se diante das folhas de papel A4.
- Alguém pode me arrumar um par de luvas? Esse papel
já deve estar com mais impressões digitais do que os arquivos da
polícia. E o envelope, Souza?
- Na lixeira do seu lado direito.
- Nunca se sabe...
Retira o envelope com cuidado e o põe sobre a mesa. As
luvas chegam. Antes de começar a ler, procura por uma garrafa
de café. Não encontra.
- Alguém poderia providenciar um café? – Souza sai para
a cozinha. – Amaro, me dá um cigarro!
- Você não tinha parado?
- Parei! Depois que terminar esse caso.
Amaro lhe entrega o cigarro aceso. Dá uma grande
baforada. Traz o cinzeiro para perto e inicia a leitura. Atrás dele,
Amaro e Ferreira, posicionaram-se, um de cada lado, para lerem
também.
“Rio de Janeiro, 04 de abril de 2006
Quinta-feira
Prezados senhores,
Quando estiverem recebendo esta carta EU já terei
enviado uma criança para a vida eterna. Deus me deu essa
missão: “Deixai vir a mim os pequeninos, e não os impeçais,
pois dos tais é o Reino de Deus”. O mundo está perdido. Está