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1 Paulo Sérgio Muglia EU A História De Um Serial Killer Tupiniquim Para: Andréa, Francisco, Thiago, Ana Paula, Pedro, Tatiane E Regina Laginestra

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Paulo Sérgio Muglia

EU A História De Um

Serial Killer

Tupiniquim

Para:

Andréa, Francisco,

Thiago, Ana Paula,

Pedro, Tatiane

E Regina Laginestra

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Paulo Sérgio Alves Muglia nasceu em Muriaé,

Minas Gerais, onde viveu sua infância e juventude e para onde

voltou a fixar residência, após alguns anos de estudo e trabalho

em Belo Horizonte e Rio de Janeiro.

Descobriu sua veia artística aos 15 anos, quando tirou o

primeiro lugar num Concurso de Crônicas da Faculdade Santa

Marcelina e venceu um concurso de caricaturas no Colégio São

Paulo em Muriaé.

Sua produção literária aumentou no Rio, quando

surgiram poemas, crônicas e músicas inspiradas nas conversas

dos amigos e nas rodas de bar. Integrou-se a um grupo de teatro

independente e participou de um Festival de Teatro na Aliança

Francesa.

O casamento e a chegada do primeiro filho o levaram a

mudar a rota de seus planos voltando a residir em Muriaé.

Passou então a conciliar o trabalho no comércio com a

criação de textos para propaganda, poesias e músicas. Ganhou

um Concurso Nacional de Poesias e participou do Festival da

Canção de Muriaé. Uma peça de teatro infantil lhe rendeu em

1996 o Troféu Revelação do 1º Festival de Teatro de Muriaé,

onde também atuou como diretor.

Em 1998 tirou o 1º e o 2º lugares de um concurso de

poesias em sua cidade.

Em 2006, incentivado pelos familiares, decidiu

aventurar-se pela literatura. Logo tinha pronto seu primeiro livro

de ficção policial “EU – A História De Um Serial-Killer

Tupiniquim”, que traz um conto de suspense intrigante como

vocês poderão ler nas páginas a seguir.

Seu segundo livro já está no forno. Mais uma obra de

ficção, fruto de uma pesquisa cuidadosa sobre o período que

antecede a ditadura militar brasileira, onde traça uma linha

imaginária unindo a realidade dos fatos com a possibilidade de

um desfecho diferente da história, para o leitor dar asas à

imaginação e se questionar: “E SE...” (João Goulart Tivesse

Resistido Ao Golpe Militar De 1064?). Que é também o título do

seu segundo livro.

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1ª Parte (escrito entre abril, maio e junho de 2006)

Capítulo 1

Era uma manhã de quarta-feira sem sol do mês de abril

com nuvens encobrindo o céu. Rafaela saiu de casa no Jardim

Botânico, zona sul da cidade do Rio de Janeiro às seis e quarenta

da manhã e abriu o portão da garagem para que seu pai, Roberto,

pudesse retirar o carro para leva-la na escola. Vestia uma saia

azul escuro pregueada, camisa de pano branco com o emblema

do colégio no bolso do lado esquerdo. A mesma rotineira manhã

de todos os dias.

A mãe gritou da janela:

- Pegou o lanche?

Um aceno de cabeça como resposta.

- Lembra de falar com a sua professora sobre aquela sua

dúvida em matemática.

Rafaela já nem escutava mais devido ao barulho do

motor do carro descendo a rampa da garagem. A casa fora

herança de sua avó materna que conhecera apenas pela própria

casa. Em cada canto havia uma história que Arlete, sua mãe,

contava sobre a matriarca:

- Sua avó adorava tomar chá nessa cadeira de balanço

virada para a janela; sua avó não se cansava de arrumar a estante

de livros do seu avô; sua avó...

A Rua Nascimento Bitencourt, como todas no Jardim

Botânico, era arborizada, mas onde estava Rafaela era um local

descoberto. A rua ainda não acordara. Estava quase deserta. A

não ser por alguns porteiros que varriam as folhas acumuladas

durante a noite nas calçadas. Ninguém percebeu quando um

ponto de luz vermelha marcou o cabelo da menina onde uma fita

prendia seus cachos encaracolados. O que se ouviu foi apenas

um assobio. A bala desferida atravessou os fios de cabelo,

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perfurou o cérebro da menina, indo vazar entre seus olhos. Um

filete de sangue acompanhou a trajetória do projétil até este bater

na porta do carona do Vectra de seu pai que se alarmou:

- Rafaela!

A menina caiu. Primeiro de joelhos e depois bateu de

cara no portão, rolando em seguida para a calçada. O sangue

escorria pelo meio de seus olhos onde o crânio fora perfurado.

Quando seu pai conseguiu descer do carro e pode amparar sua

cabeça em seus braços, ela já estava morta.

As poucas pessoas que estavam na rua àquela hora

correram em sua direção. Dona Arlete desmaiou da janela.

- Chamem uma ambulância! – alguém gritou.

- Chama o guarda Lourenço que ele já deve estar de

serviço na Avenida Jardim Botânico!

Olhavam para o alto na esperança de verem alguma coisa

que pudesse explicar o ocorrido.

- Bala perdida?

O Jardim Botânico tem o privilégio de não ser rodeado

por favelas.

O guarda Lourenço chegou:

- Afastem da vítima!

Chegou também um médico residente, doutor Rafael,

interrompido em seu café da manhã chamado por morar num

prédio vizinho.

Não havia mais nada a fazer. Rafaela, que não chegara a

completar seus doze anos, estava morta com um tiro desferido,

não se sabe bem de onde, que atravessou seus miolos, saindo de

sua testa e atingindo a porta do Vectra do senhor Roberto.

Em breve chegaram os repórteres de uma emissora de

televisão com sede ali perto, uma ambulância, uma viatura. A

área foi isolada. Dona Arlete recebeu assistência médica e aos

poucos foi retomando a consciência. O senhor Roberto ficou

encostado junto ao portão da garagem com as mãos e parte das

roupas cobertas de sangue olhando para lugar nenhum.

O homem em cima do telhado deu por cumprida sua

missão. Sentou-se, recostando-se e ocultando-se na mureta do

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terraço. Com calma e precisão desmontou o rifle AK-47, retirou

a mira laser e foi guardando cada uma de suas peças

cuidadosamente encaixadas em seus devidos lugares numa

maleta. Por cima colocou um notebook. Assim a valise ficava

aparentando apenas o computador.

Retirou suas luvas e o gorro que usava e guardou-os no

bolso de sua jaqueta preta. Guardou também a cápsula da bala

disparada. Levantou-se, pegou o capacete e pôs-se a caminho da

escada do prédio. Tinha por volta de um metro e setenta. Era

magro, sério, os olhos fundos. Não devia ter mais que vinte anos.

Usava uma camisa de malha azul clara, por baixo da jaqueta, que

realçava seu tronco musculoso. Cabelo curto, quase raspado.

Barba e bigode bem feitos. Uma pela quase mulata. Desceu os

cinco lances de escada em passos rápidos e saiu pela porta que

dava acesso à Rua Nascimento Bitencourt. Dirigiu-se para a

Avenida Jardim Botânico, dobrou a esquerda e passou pelo

tumulto que se formava na outra esquina sem chamar a atenção.

Mais à frente, retirou as luvas do bolso e as recolocou em

suas mãos. Pegou também diversas cartas seladas e as depositou

numa caixa de correio. Colocou o capacete, destravou sua moto

Honda CG 125 vermelha, ano 97, placa com as letras OWA

3860. Um olhar mais atento verificaria que a letra “O” da placa

estava adulterada por um pedaço de fita isolante que

transformara o “C” em “O”. Prendeu o notebook com um

elástico e duas garras. Deu a partida elétrica e arrancou virando

no sentido contrário ao engarrafamento que se formava.

Capítulo 2

O episódio foi manchete em todas as redes de televisão.

Algumas em edição extraordinária. E depois no noticiário

regional, primeira e segunda edições e no jornal da noite.

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A 12ª Delegacia de Polícia de Copacabana nunca fora tão

movimentada. A Rua Hilário Gouveia quase esquina com Barata

Ribeiro havia ficado pequena para tanta gente. Uma multidão de

repórteres e curiosos se comprimia ao redor da porta da

delegacia. O delegado Gonçalves chegou numa viatura e foi logo

cercado. As perguntas vinham de todos os lados e o delegado

parecia um papagaio repetindo insistentemente:

- Daremos uma entrevista coletiva amanhã às 14 horas.

Daremos uma entrevista coletiva...

A sala da delegacia era bem quente com aquele único

ventilador rodando preguiçoso num dos cantos, mas pareceu

estar refrescante quando Gonçalves afinal conseguiu entrar.

- Ferreira! Vê se tira esse monte de urubus aí da porta.

Entrou em sua sala acompanhado do Detetive Amaro.

- Porra! O defunto da menina ainda nem chegou ao

cemitério e a imprensa quer que a gente já tenha a foto do

assassino. E aí? Já deu pra apurar alguma coisa?

- Pelos testemunhos e pela posição em que a bala atingiu

a garota, a única certeza que temos é que o tiro veio de cima.

Provavelmente de um dos terraços ali perto. A arma usada

parece ter sido um rifle AK-47 calibre 7,62 mm pela cápsula que

foi recolhida. Pela precisão do disparo trata-se de alguém com

muito treinamento. Deve ter usado uma mira laser de longa

distância.

- Mandaram investigar nos prédios vizinhos para

certificarem de que ninguém viu nada suspeito? – sem muita

convicção procurou café na garrafa térmica e constatou que esta

estava vazia.

- O Fonseca está com um pelotão na área providenciando

isso.

- Fizeram a checagem do... – senta-se e procura algo

entre os papéis desarrumados sobre a mesa.

- Senhor Roberto de Almeida Carvalho! É um

empresário bem sucedido do setor de seguros. – Amaro recorreu

às anotações que trazia consigo. Parecia já saber as perguntas

que lhe seriam feita. – Casou-se com Arlete Magdala Carvalho

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há dezessete anos. Herdaram a casa e um bom dinheiro guardado

numa Caderneta de Poupança na Caixa Econômica Federal,

agência Jardim Botânico, pela dona Antonieta Oliveira Magdala.

Uma aristocrata europeia vinda viúva para o Brasil quando a

filha ainda tinha dois anos. Não foi um golpe do baú. Roberto já

tinha a Companhia de Seguros antes de se conhecerem.

Tratavam a filha com atenção de filha única. A mãe

acompanhava sua educação com muito rigor no Colégio Santa

Marcelina.

Gonçalves levantou-se e começou a circular pela sala

fazendo conjecturas. Era algo que o ajudava a pensar.

- Inimigos? Agiotas? Traficantes?

- Tivemos muito pouco tempo para levantarmos todas as

informações, mas aparentemente é uma família muito bem

comportada. Vão à igreja todos os domingos; o Roberto emprega

o cunhado que está em situação financeira pior; visita os pais em

Petrópolis com frequência. Arlete se dá muito bem com os

sogros.

- Algum indício de relação sexual recente da vítima?

- A garota era virgem. Há pouco havia iniciado seu

período menstrual. Estamos ignorando, por enquanto, qualquer

suspeita de pedofilia. Um assassinato neste caso seria apena para

apagar pistas, o que achamos improvável pela conduta sexual da

garota.

Amaro era o homem de confiança do delegado. Sempre

que aparecia um caso mais complicado era passado para ele.

Trabalhavam juntos há mais de nove anos. Gonçalves caminhou

até a janela e entreabriu a veneziana com a mão direita. O

Ferreira estava ainda afastando os repórteres e curiosos. Com a

mão esquerda acariciou seu bigode de um lado para o outro.

- Marquei uma entrevista coletiva com a imprensa para

amanhã às 14 horas.

- Acha muito cedo. Ainda não teremos quase nada para

acrescentar ao caso.

- Precisamos fazer alguma coisa. Tomar uma atitude. O

Secretário de Segurança do Estado já me telefonou solicitando

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providências. É ano eleitoral Amaro! Sabe quantos votos se pode

perder com um episódio desses?

A Lapa já foi um bairro boêmio muito famoso no Rio de

Janeiro. Com belas prostitutas, compositores de sucesso, vedetes

de teatro, como frequentadores de suas mesas de bar. Hoje não é

mais nem sombra do seu passado de glória. Mas ainda é reduto

de travestis e putas disputando clientes, alcoólatras inveterados

tomando sempre a saideira. E continua sendo uma parte do

passado do Rio emoldurado por seus arcos suportando o peso

dos trilhos do bonde de Santa Tereza.

Não havia nenhum nome estampado que identificasse o

bar. Só uma placa: ABERTO 24 HORAS. Algumas mesas e

cadeiras na calçada da Rua Theotônio Regadas. Ao lado, um

estreito corredor que dava passagem para uma moto CG 125 sem

que seu passageiro precisasse descer. Ao fundo um cômodo

espaçoso, com porta de aço, onde o morador guardava seu

veículo. Peças, pedaços de computadores estavam espalhados,

mas de maneira ordenada. Havia uma cama, uma geladeira, um

fogão de duas bocas, um banheiro com chuveiro e o aluguel era

barato. Precisava de mais alguma coisa?

Rogério alugara o local há cerca de quatro meses. Antes

funcionava um salão de sinucas, mas estava dando muito

transtorno para o proprietário. O jovem chegou com aquela cara

de militar boa praça, viu a placa de ALUGA-SE. Pagou três

meses de aluguel adiantado como garantia. E não precisou nem

de documento. O dono do bar, seu Antônio, dera a ele um recibo

do adiantamento e todo mês procedia assim: recibo pra lá e

dinheiro pra cá. E o português não aceitava cheques.

O inquilino mal acabara de estacionar a moto naquela

quarta-feira quando recebeu um chamado pelo celular.

- Alô!? (...) Sim senhora, estou lembrado. (...) Olha,

como eu disse pra senhora naquele dia, esse problema deve ser

que o HD do seu computador não está mais conseguindo

armazenar esses programas novos. (...) É, podemos tentar trocar

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o HD por outro maior, mas teremos que ver o problema mais de

perto. Qual é mesmo o endereço? (...) Leme. Ok! Hoje ainda eu

passo por aí para dar uma olhada. (...) Não tem o que agradecer.

Esse é o meu trabalho.

Rogério sabia que os computadores não foram feitos para

serem adaptados ou turbinados para suportarem os novos

programas que surgiam a cada dia consumindo mais e mais

memória das máquinas. Era assim que ganhava seu sustento.

Enrolava os clientes, que acabavam trocando seus computadores

por modelos mais modernos, ganhava comissão das lojas e com

os aparelhos velhos conseguidos baratos na base de troca, vendia

para empresas que necessitavam de softwares menores.

Rogério viera do interior do estado para fazer carreira no

exército. Era filho temporão de Inácio e Olinda. Aos vinte e

cinco anos de casados, seus pais, evangélicos de carteirinha,

acreditavam que não era da vontade de Deus que viessem a ter

filhos. Ambos já haviam passado por tratamentos médicos sem

terem alcançado vitória. Foi quando Dona Olinda aos 43 anos,

na idade de ser avó, como dizia, engravidou.

Uma mulherzinha miúda, de pouca conversa. Cozinheira

de mão cheia e que nunca deixava a casa desarrumada. Um

homenzarrão com um metro e sessenta e cinco de altura e 112

quilos, andando com certa dificuldade, ficando a maior parte do

tempo sentado num sofá na porta de sua quitanda que funcionava

ao lado de sua casa. Era como Rogério se recordava dos pais.

Faleceram num acidente de carro, há um ano, enquanto

ele servia no Exército. Estavam a caminho do Rio para visitá-lo

no quartel. Seu Inácio teve um princípio de enfarto ao volante,

perdendo a direção, e o carro caiu numa ribanceira. Morreram no

local. Deixaram a casa em Sapucaia como herança. O carro, um

Gol 1000 ano 87, não tinha seguro e teve de ser vendido a um

ferro velho.

Os outros familiares moravam distantes.

Rogério decidiu vender a casa, encerrar a carreira no

exército e começou a trabalhar com manutenção de

computadores, que tinha aprendido num curso nas horas de

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folga. Dos pais, que o levavam toda semana a uma igreja

evangélica, herdou o temor de Deus. Do exército, herdou o amor

pelo tiro e algumas medalhas de condecoração. Antes de dar

baixa, conseguiu de um colega um rifle AK-47 e alguma

munição que haviam sido apreendidos em batidas nas favelas no

período da ECO-92 e que sequer tinham registro de sua entrada

no arsenal da corporação. Apaixonou-se pela sua arma como

uma criança por um brinquedo. Não achava pecado, só usava o

instrumento para treinar tiro ao alvo. Não foi roubo, dizia ele,

afinal a arma não pertencia a ninguém.

Da janela da sala de Dona Aparecida, onde verificava o

computador, podia ver quase toda a praia do Leme. Eram 16

horas e 30 minutos, e as pessoas ainda insistiam em se bronzear

no sol carioca. Ficava imaginando:

- Onde aquelas pessoas arrumavam tanto tempo livre

para não fazerem nada?

Alguns, pela pele avermelhada, eram notadamente

turistas. Ainda que usassem bronzeadores, filtros solares, não

conseguiam perder essa característica. Algumas mulheres de

pele bronzeada e corpo escultural usando um insignificante fio

dental eram garotas de programa acompanhando os

avermelhados, provavelmente contratadas pelos hotéis aonde se

hospedavam. Mas, e os outros 50%?

- Vai dar para trocar a tal peça de que você me falou?

Dona Aparecida entrara de surpresa na sala, num

momento em que ele estava totalmente distraído. Voltou à

realidade.

- Dona Aparecida, é como eu havia lhe explicado. O seu

neto gosta de vir aqui para navegar pela internet, baixar

joguinhos. Isso tudo ocupa muita memória do computador.

Trocar o HD não vai resolver o problema. Os americanos já

fazem isso pensando em vender novos aparelhos, ao invés de

aperfeiçoá-los. Se a senhora quiser, posso fazer o orçamento de

um computador mais moderno. Eu sou representante de uma

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firma de equipamentos eletrônicos aqui no Rio, com Nota Fiscal,

garantia, já vem com o Windows XP instalado. Eu levo o

computador da senhora e salvo todos os programas, documentos

e joguinhos que já estão instalados.

- Que coisa mais danada, Rogério! Então, espero você

me ligar passando o preço de um modelo mais novo, a condição

de pagamento e a gente vê se dá pra fechar negócio. Olha que eu

nem sei usar essa coisa...

- Mas eu tenho certeza que seu neto vai ficar muito feliz

ao receber esse presente da senhora.

Capítulo 3

Gonçalves nem almoçou naquela quinta-feira. Em dias

assim, preferia entrar e sair pelos fundos da delegacia e fazer um

lanche na Rua Barata Ribeiro. Desde o dia anterior mantivera

contato com outros delegados da cidade, tentando obter

informações. A Delegacia de Homicídios também estava

envolvida no caso.

- (...) qualquer coisa você me liga!

A autópsia não tinha ajudado em muita coisa. Pela

inclinação do tiro, ele poderia ter sido disparado de qualquer um

dos quatro prédios entre cinco e seis andares que ficavam do

outro lado da rua. Os moradores desses prédios foram

interrogados e nada puderam acrescentar.

Ninguém vira nada. Era muito cedo. As pessoas ainda

estavam acordando.

O secretário de segurança não parava de ligar, cobrando

uma resposta...

Ao voltar do lanche, Gonçalves viu de longe os

repórteres se acotovelando na porta da delegacia. O carteiro teve

de se espremer um pouco para conseguir entregar a

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correspondência nas mãos do escrivão Santos por uma fresta da

porta.

As mesmas cartas de sempre: da Corregedoria, do

gabinete do prefeito, do... Indefinido. Sem remetente. Resolveu

começar a abrir os envelopes por este.

14 horas.

O Delegado Gonçalves deixara de fumar há cerca de três

meses. Em momentos como este, ficava sem saber aonde colocar

as mãos. Estava nervoso com aquela gente toda ali dentro de seu

escritório com os microfones, as câmeras, as luzes. Sentia a

ausência do companheiro entre os dedos.

Começou seu pronunciamento devagar:

- A menina Rafaela Magdala Carvalho de doze anos foi

morta com um tiro de fuzil AK – 47 às 6 horas e 42 minutos de

ontem na porta de sua casa na Rua Nascimento Bitencourt, no

bairro do Jardim Botânico. O tiro foi disparado provavelmente

do alto de um dos prédios do outro lado da rua. Os pais são

pessoas idôneas, sem inimigos, sem nada que os relacione com o

crime organizado. Os motivos que levaram a este assassinato

estão sendo investigados e nenhuma hipótese está sendo

descartada.

Neste momento, Santos entra na sala e murmura alguma

coisa ao ouvido do Delegado. Alguns celulares dos repórteres

começam a tocar. Gonçalves está desconcertado. Uma repórter

se aproxima:

- Delegado Gonçalves, o que o senhor pode nos dizer

sobre uma suposta carta escrita pelo autor do crime?

Gonçalves fica perdido. Como ela ficou sabendo da

carta? Ele mesmo só fora informado agora.

- Esta entrevista vai ter que ser interrompida. Assim que

soubermos de mais alguma coisa, entraremos em contato.

Levanta-se e sai rapidamente. Há uma grande confusão

de vozes na sala. Todos falam. Ninguém se entende. Celulares

tocando...

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Capítulo 4

O corredor que levava do escritório do Delegado até a

sala do escrivão era curto. Ao entrarem, Santos ainda tentava

explicar ao Gonçalves porque a repórter já sabia da carta que

eles tinham acabado de receber.

- (...) e ele termina dizendo que estaria mandando a

mesma carta para os órgãos da imprensa e do governo.

Gonçalves senta-se diante das folhas de papel A4.

- Alguém pode me arrumar um par de luvas? Esse papel

já deve estar com mais impressões digitais do que os arquivos da

polícia. E o envelope, Souza?

- Na lixeira do seu lado direito.

- Nunca se sabe...

Retira o envelope com cuidado e o põe sobre a mesa. As

luvas chegam. Antes de começar a ler, procura por uma garrafa

de café. Não encontra.

- Alguém poderia providenciar um café? – Souza sai para

a cozinha. – Amaro, me dá um cigarro!

- Você não tinha parado?

- Parei! Depois que terminar esse caso.

Amaro lhe entrega o cigarro aceso. Dá uma grande

baforada. Traz o cinzeiro para perto e inicia a leitura. Atrás dele,

Amaro e Ferreira, posicionaram-se, um de cada lado, para lerem

também.

“Rio de Janeiro, 04 de abril de 2006

Quinta-feira

Prezados senhores,

Quando estiverem recebendo esta carta EU já terei

enviado uma criança para a vida eterna. Deus me deu essa

missão: “Deixai vir a mim os pequeninos, e não os impeçais,

pois dos tais é o Reino de Deus”. O mundo está perdido. Está