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Revista ComSertes
Apoderamento imagtico do Nordeste do Brasil: Esteretipo e Discurso nas Artes
Nycolas Santos Alburqueque 1
Resumo
Este trabalho investiga a construo imagtica do Nordeste do Brasil atravs do cinema. Para
tanto, fiz uma pesquisa sobre como se processaram tais imagens, como foi elaborado esse
repertrio de famintos, cangaceiros, coronis, jagunos, machistas, valentes, brutos,
ignorantes, beatos, serviais, inocentes e simplrios. Verifiquei quais so as relaes de poder
envolvidas nesse discurso do Nordeste atrasado, e quem se beneficia com ele. Como o
nordestino vm sendo simplificado e homogenizado nas relaes sociais, e qual o papel do
governo, sociedade e artes nesse processo. Analiso como foi formulada essa imagem, e quais
agentes histricos envolvidos (Movimento de Arte Moderna e Cinema Novo) e, de que
maneira, foi perpetuada esse representao estereotipada, que ainda hoje utilizada para se
falar do Nordeste.
Palavras-Chave: Nordeste; Esteretipo; Identidade; Arte Moderna e Cinema Novo.
Resumen
Este trabajo investiga la construccin de las imgenes del noreste de Brasil a travs del cine.
Para eso, hice una investigacin sobre cmo se procesan esas imgenes, cmo se elabor este
repertorio de hambrientos, cangaceiros, coroneles, jagunos, macho, valiente, crudo,
ignorantes, fanticos, sirvientes, inocentes y simpln. Comprob cuales las relaciones de
poder que intervienen en este discurso Noreste tarde, y quin se beneficia de ellas. Como la
gente do noreste se han simplificado y se homogeneizado en las relaciones sociales, y el papel
del gobierno, la sociedad y las artes en este proceso. He analizado cmo se tom esta imagen
y los actores histricos (Movimiento de Arte Moderna y el Cinema Novo). Tambin, de que
maneras esta representacin estereotipada se perpetua, y es atual para hablar sobre el noreste.
Palabras clave: Nordeste; Estereotipo; Identidad; Movimiento del Art Moderna y Cinema
Novo.
Abstract This paper investigates the imagery construction about Brazils northeast through cinema. For
that, I did some research on means such images were processed, how this repertoire was
prepare from hungry, bandits, cangaceiros, colonels, gangsters, macho, brave, crude, ignorant,
bigots, servants, innocent and noodlle. I checked what are the power relations involved in this
discourse of a belated northeast, and who benefits from it. In this process, the means how
1 Graduado em Arte e Mdia pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), dedica-se produo de
documentrios, videoarte e cinema experimental. Participou de mais de quarenta festivais e exposies, sendo premiado 12
vezes. Mestre pela Universidade Federal Fluminense UFF, 2012, no programa de Ps-Graduao em Cincia da Arte -
PPGCA. Atualmente professor Dedicao Exclusiva na Universidade Federal do Amap - UNIFAP, no curso de Artes
Visuais.
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Northeast has been simplified and homogenized in social relations and the roles of
government, society and arts. I analyze how this image was elaborated and historical actors
involved (Modern Art Movement and Cinema Novo). More, some ways this image
perpetuates a stereotypical representation, which is still use nowadays when we talk about the
northeast.
Keywords: Northeast; Stereotype; Identity; Modern Art Movement and Cinema Novo.
1. Apresentao
Este trabalho visa entender a construo imagtica sobre o Nordeste e seu povo, a
origem e inveno desta identidade, como a regio ainda vista como arcaica, e quem se
beneficia com isto; quais os processos que levam a domesticao da seca para fins polticos-
econmicos, criandos verdades e mitos sobre a regio, e que todos esses processos causam
uma violncia, fisica e espiritual a regio, produzindo discursos que so difceis de decontruir.
sobre a representao, identidade e imagem do nordeste que o trabalho fundamenta-
se. No quero construir a regio como vtima, e sim entender a construo imagtica da regio
ou a complexidade em criar outros discursos. Entender para quem serve o discurso do
Nordeste atrasado.
No cabe a este trabalho fazer anlises tcnicas dos valores artsticos agregados a cada
filme que fala do nordeste, tanto do Cinema Novo quanto do Cinema Contemporneo.
Pretendo aqui analisar a imagem que vem sendo repetida, uma vez e outra vez, de forma
preconceituosa e estereotipada criando valores e tradies nas artes.
A importncia deste trabalho pleitear e no indicar uma outra representao para o
Nordeste, alm do que se repete em grande parte das produes flmicas. Trata-se de uma
outra imagem que possa servir sua populao de modo a no criar vnculos com o atraso ou
somente o passado. atravs das artes que o pas conhece o Nordeste. por modos
artsticos que o Nordeste comunica-se e expressa-se.
2. Introduo
A investigao do objeto desenvolvida atravs da anlise dos enunciados que
formam o discurso sobre o Nordeste. em cima desses conceitos, enunciados formando
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discursos, que trabalho em diversos elementos que aparecem e reaparecem constantemente no
Cinema Nacional e que fortalecem a imagem de atraso e misria da Regio Nordeste.
A conceituao que Foucault (2009b) faz dos enunciados abre possibilidades de uso
para essa pesquisa porque eles so mais importantes e ilustrativos do que uma obra escolhida
ou pequeno conjunto de obras. Um enunciado tem sempre suas margens povoadas por outros
enunciados. Para Foucault (2009b), no existe enunciado que no reatualize outros
enunciados, de uma forma ou de outra.
Assim, neste trabalho, procuro identificar os enunciados geradores de discursos nos
filmes que falam do Nordeste, a intensidade e a constncia com que eles aparecem em forma
de signos (cactos, cangaceiros, beatos, famintos, etc.). Eles revelam uma prtica, um discurso
sobre o nordeste, um conjunto de foras que formam e esto sendo usados para criar e
alimentar uma imagem do nordeste atrasado e medieval. Ento, os enunciados aqui sero
analisados sob a forma de discursos presentes na histria, na histria do cinema e nas artes.
3. A Arte Moderna Conquista Espaos e Identidade.
No inicio do sculo XX foi uma poca em que se comeou a discutir a questo da
identidade brasileira. Era um acelerado processo de desenvolvimento do nacionalismo. Isso
porque o ps 1a Guerra Mundial foi determinante para que as naes tomassem posturas mais
definidas sobre as identidades nacionais (CHARNEY; SCHWARTZ.2001). As fronteiras
estavam cada vez mais prximas e o mundo estava se ligando cada vez mais rpido. A
questo da identidade era fundamental para entender o seu lugar naquele momento.
Quando, no Brasil, se discute os novos caminhos identitrios da sociedade brasileira
industrial; as artes assumem um importantissimo papel social nessa identificao. A Arte
Moderna vem para possibilitar novas formas de expresso. A arte vai operar como
catalisadora para definio de uma identidade nacional. As obras de arte ecoam em todo o
social produzindo sentido e significados.
Ao contar esta histria, a Arte Moderna desabrocha num momento de embate entre
classes sociais, a luta pelo poder entre a nova classe emergente brasileira, a classe industrial, e
a antiga aristocracia (AGRA, 2004). Uma disputa pela visibilidade. Elas descobrem na arte
uma poderosa arma para conquistar espao, conquistar poder. Dessa luta de classes quem se
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fortalece numericamente a que possui menos voz: o povo. Este acaba por revelar as
distncias produzidas no novo cenrio mundial, onde os abismos ficam mais nitidos.
O embate entre o proletariado e os novos burgueses-industriais vai se definindo cada
vez mais. A burguesia industrial comea lentamente a se colocar mais presente na sociedade e
determinar gosto, comportamento e demanda (CAUQUELIN, 2005)2. ela que com poder
aquisitivo vai compor o panorama para o florescimento da Arte Moderna no pas.
A tentativa era que esse investimento fortalece-se e consolida-se a cidade de So
Paulo como o espao de pertencimento e desenvolvimento da Arte Moderna no pas. A luta
para colocar So Paulo como representante da arte moderna era uma luta de um espao sobre
o outro: de uma So Paulo industrial contra um Rio de Janeiro colonial (ZILIO, 1997).
Era a luta pela hegemonia nacional, na consolidao de um espao que representava o
progresso da nao, onde a modernidade vai encontrar um terreno frtil para o seu
desenvolvimento. A preocupao no era somente a abertura do mercado de arte, era mais a
valorizao de um espao que deveria servir de modelo para o resto do pas. So Paulo
deveria indicar o rumo que uma nao desenvolvida deveria seguir.
A luta dos modernistas era tambem uma luta para transferir o centro cultural e artistico
do pas, da cidade do Rio de Janeiro para a cidade de So Paulo. Mrio de Andrade (apud.
FABRIS, 2006) acreditava que a arte que buscava uma identidade nacional deveria abordar
temas que refletissem a nossa cultura. A arte deveria tratar de temas nacionais e no de temas
alienigenas. Para se extrair o que de mais puro a nao tinha, era necessrio antes de tudo
entender os processo de colonizao e identificar as partes no afetadas por ele, ou seja,
procurar um lugar onde no tivesse sido influenciado pela cultura europeia.
O Movimento de Arte Moderna no Brasil precisava encontrar a sua identidade
nacional; o que definiria nossa populao, o que representaria ser brasileiro, um brasileiro
moderno, mas sem a cara e cores de uma Europa. As grandes metrpoles brasileiras eram
europias demais, devido ao processo de imigrao, percebeu que para encontrar a
nacionalidade intocada, por outras culturas, era necessrio adentrar o interior do pas e
procurar uma identidade que no fora afetada pela modernidade vinda do Atlntico, a
Europa3.
2 CAUQUELIN no fala especificamente do Brasil, mas do processo que culminou na independncia das artes
com relao ao antigo modelo, essa independncia aconteceu aqui no Brasil tambm. 3 Neste perodo o Brasil j estava sob grande imigrao de diversos povos do mundo inteiro, que se
concentravam principalmente em So Paulo, Rio de Janeiro e os estado da Regio Sul.
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nesse sentido que o Movimento Modernista no Brasil vai criar uma imagem do
brasileiro, aquela imagem em que se reconhea o valor da cultura nacional4. Neste cenrio o
Nordeste surge como esse lugar intocado, int(c)acto.
4. Int(c)acto Nordeste
Assim a Arte Moderna acabou servindo construo da imagem desse Nordeste
arcaico, imagem que subjetivada, principalmente, por sua populao. Ela fornece material
para que seja naturalizada a luta de foras e domnios de poder de uns sobre outros. A regio
surge como intocada pela modernidade, pela imigrao e fortalece ainda mais a imagem de
progresso que So Paulo carregava.
Como as grandes metrpoles se assemelhavam muito aos grandes centros europeus, a
necessidade de encontrar a nacionalidade vem da necessidade de diferenciar um espao de
outro. As semelhanas so abandonadas para dar lugar s diferenas, para dar lugar aquilo que
l, na Europa, no se encontrava: O Serto.
Ento, era preciso encontrar um interior que preenchesse todas as lacunas no tocadas
pela modernidade, pelo esprito burgus. a que o Nordeste surge como tema para a Arte
Moderna. Como o interior do Nordeste no estava se tornando europeu como So Paulo, e
mantinha todas as condies para de l sair a verdadeira cultura brasileira, intocada.
O regionalismo que vai surgir da no vai somente diferenciar uma regio da outra,
mas vai colocar as duas regies, Norte e Sul, como antagnicas, como extremamente opostas.
Eleger um smbolo de brasilidade que fosse o contrrio daquilo que era a Europa moderna.
Criar e exagerar caractersticas para marcar melhor o contraste e assim maximizar o efeito de
distanciamento entre uma e outra regio, principalmente Sul x Norte, ou seja Sudeste x
Nordeste.
Toda a cultura tradicional do Nordeste acaba servindo para limitar a representao e as
formas como se v o mundo daquela regio. Com o medo de perder o precioso passado, o
discurso tradicionalista faz com que sempre tenhamos que voltar ao antigo para emergir o
4 Ironia ou no, foi seguindo o exemplo da Semana de Deauville, que Di Cavalcanti, sugere fazer a Semana de
Arte Moderna de 22. Segundo ele a nossa semana, seria uma semana de escndalos literrios e artsticos, de
meter os estribos na barriga da burguesiazinha paulista (apud. FADEL, 2006, p.49). Mas, para Jos Lins do
Rego, o modernismo fez muito barulho e agradou a ricos e esnobes, derrubou dolos para construir outros dolos,
frmulas e preconceitos. Mas, no passou de uma alegoria do mundinho de Paris. (ALBUQERQUE, 2009)
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sentimento de valorizao. A importncia da preservao desse passado pelos sujeitos faz
com que cada um seja um pouco responsvel pelo seu no desaparecimento, muitas vezes
esse passado representado pelo folclore.
O folclore, assim como os populismos polticos, quando reivindica as prticas
tradicionais, constri um universo popular carregado de mensagens massivas que comunicam
diretamente com o povo. E dessa comunicao, surge outro sistema de mensagem: retira-se
do tradicional, ou seja, do passado e recoloca-se como smbolo nacional, de popular
(CANCLINI, 2003). Neste caso, o folclore vira uma arma de adestramento da populao.
Neste cenrio, o cacto passa a ser um signo de brasilidade, do primitivismo, da
aspereza de nossa realidade nacional, ele vai ser simbolo da luta pela sobrevivencia num
abiente inspito e insalubre. O campo primitivo passa ser o lugar perfeito para uma revoluo,
para uma rebelio primitiva.
O nordeste como territrio de revolta criado por intelectuais e artistas da
classe media, as obras partem de um olhar civilizado, uma fala urbano-
industrial, de um Brasil civilizado sobre um Brasil rural, tradicional e
arcaico.(ALBUQUERQUE, 2009, p.219).
A cultura popular passa a ser utilizada por todos os segmentos artsticos para se falar
de nordeste. Ela passa a ser considerada sinnimo de cultura no alienada. apropriada pela
classe mdia burguesa que est insatisfeita com sua pouca participao no mundo da poltica
no pas.
So obras que servem de pretexto para o sujeito do discurso fazer as suas
queixas aos grupos dirigentes, so o meio de ele vincular suas demandas de
poder, de tomar a voz e viso do povo para si; de falar em nome dele, o que
legitima seus discurso e sua vontade de poder. Ao se colocarem na
vanguarda do povo e reivindicarem o atendimento dos interesses populares,
a soluo de seus verdadeiros problemas, esto reivindicando a sua prpria
incluso no pacto de poder dominante e o atendimento de suas demandas.
(ALBUQUERQUE, 2009, p.220 e 221)
o apoderamento dos que no tem voz, dos que so usados pelos detentores da
verdade, seja cientifica, jornalstica, poltica e artstica cujo resultado a prolongao dessa
dominao.
5. Domesticao da Seca
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Sobre o nordestino, so colocadas tantas regularidades discursivas que a fuga desse
padro quase impossvel. So colocadas tantas caractersticas tpicas de regio que sua
identidade fica presa a essas representaes. O Nordeste no possvel sem os coronis, sem
cangaceiros, sem jagunos ou Santos. O Nordeste no existe sem a seca e toda sua
representao. A enunciao deve estar ligada a ela.
A visibilidade e dizibilidade da regio Nordeste, como de qualquer espao,
so compostas tambm de produtos da imaginao, a que se atribu
realidade. Compem-se de fatos que, uma vez vistos, escutados, contados e
lidos, so fixados, repetem-se, impem-se como verdade tomam
consistncia, criam razes. So fatos, personagens, imagens, textos, que se
tornam arqutipos, mitolgicos que parecem boiar para alem ou para aqum
da histria, que, no entanto, possuem uma positividade, ao se encarnarem em
praticas, em instituies, em subjetividades sociais. (Albuquerque, 2009,
p.217).
A seca foi domesticada, o Nordeste foi domesticado, passou por uma seleo e
adaptao dos valores considerados teis, os valores tradicionais, para suprir a necessidade
de outros, com outros valores. O processo de domesticao sofrido pela seca um processo
artificial.
A seca vira um processo social, um produto das relaes dos homens, deixando de ser
uma situao geogrfico-climtica. Institui-se no imaginrio, como representao social. O
Nordeste ser visto sempre com seca, estando no Litoral; no Agreste; no Brejo, sendo
somente serto.
Passam a existir vrias significaes sociais em torno da seca. Para diversos usos, a
seca apoderada pelo discurso regionalista e nela se encontram todas as explicaes para a
situao do sertanejo.
Ela ser o resultado da construo da ao humana socialmente localizada, a seca vira
produo de sentido. Ela vai representar toda uma regio. No ser representada, ela ser
reconstruda, retocada, vo modificar o seu contedo, vo lhe dar outro estatuto, vo
modificar o seu texto.
O discurso regional vai colocar a regio como miservel, composta de pobres
necessitados que tentam, a todo custo ,sobreviver seca. Esta que sempre existiu na regio,
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desde que o mundo mundo, e que continuar existindo, basta ao sertanejo ser forte e valente
para sobreviver a essa adversidade, sobreviver a essa regio.
J o discurso econmico vai dizer que a terra improdutiva, infrtil, pobre, que no
seriam as polticas publicas que resolveriam o problema, pois ele se origina no incio dos
tempos, no momento da criao do Planeta Terra, e sendo a terra estril e o sertanejo filho
dela, tambm ser. com essa pobreza de solo que o homem se assemelha, tornando-se
grosseiro, rude, despreparado para o trabalho, que tem a seu favor somente o instinto de
sobrevivncia, a vontade de lutar pela vida, criando o discurso antropolgico.
Quanto mais for institudo o imaginrio naturalista sobre o Serto, ou seja, sobre o
Nordeste, mais cristalizado ele vai ser, isso significa que existiro menos problemas com os
sujeitos sociais que criaram e reforaram esse imaginrio. Sendo o problema do nordeste uma
questo natural, fica mais fcil justificar a dominao de uma regio sobre outra. Os jogos de
poder acabam por aprisionar o Nordeste todo numa sucesso de clichs que, no somente
disciplinam condutas e corpos, como enrazam preconceitos que de to naturalizados so
subjetivados por toda uma populao, por toda uma nao.
O importante precisar que o termo seca designa um processo social da
realidade brasileira; que esse se inscreve no cotidiano poltico e no na
estrutura fsica da terra; que esse cotidiano poltico povoado pelo
imaginrio institudo e pelas representaes sociais construdas
historicamente dentro do jogo de interesses sociais, econmicos, religiosos e
culturais. Enquanto representao social torna-se meio e contedo de
comunicao entre os sujeitos, fomentando agires sociais. Este nunca
desinteressados. Assim, podemos sugerir uma diferena de conceituao
entre seca e estiagem. A estiagem seria a forma fsico-climatolgica de
expresso do movimento da natureza. E a seca, o conjunto de significaes
sociais construdas pelos diversos estratos sociais de interesse, que no se
apresenta, vale registrar, de forma uniforme. Diferente da realidade fsico-
material, a seca, imagem-smbolo-representao social, nasce com os
interesses que geraram um discurso competente e atualizado que a encastela
e a institucionaliza.(Gomes, 1998, p.93)
Do ponto de vista dessa representao tradicional, a seca tornou-se o signo da falta.
Quanto mais dura for a estiagem, maior o processo de empobrecimento da populao que
acredita ser a estiagem providncia divina e no social. A falta de gua no seria o reflexo da
concentrao de terra, que corresponde concentrao de gua, do crdito e da alocao de
recursos do governo em tempos de calamidade, seria uma consequncia do acaso, da
providncia divina.
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A concentrao fundiria, por si s, no resulta em riqueza, mas o meio atravs do
qual o senhor de terras capta para dentro de suas cercas a construo de audes, aguadas, etc.
A concentrao muito mais do que categoria espacial: corresponde a um processo poltico
no qual uma classe assalta a outra com as bnos do estado e seus aparelhos (Moura, 1988,
p.22).
O Nordeste vem sendo agenciado, vem sendo mostrado atravs de vrios discursos, e
muitos desses discursos surgem no esforo de diferenciar a regio Nordeste das demais
regies do pas. Surgem na vontade de preservar uma dada tradio, em detrimento das
modernidades do sculo XX. Surgem na finalidade de conter os nordestinos em sua prpria
regio, diminuindo assim as imigraes dentro do pas. Surgem na inteno de paralisar a
regio culturalmente impedindo qualquer outra forma de representao, de expresso artstica
que no seja voltada para o tradicional e o regionalismo.
Os discursos surgem com vrios propsitos e direcionamentos, s vezes so discursos
propositivos e outras, na maioria, so discursos repetitivos, so cpias daquilo que entendem
por padro. Sero sempre discursos redutores sobre a regio.
Os movimentos culturais, as artes em geral so as grandes responsveis por
institucionalizar esses discursos, por transform-los em subjetividade, por dar a eles o carter
descompromissado e ldico, so discursos que naturalizam no dia-a-dia, que surgem com um
status de verdade, de realidade.
Essa vontade de verdade, assim como os outros sistemas de excluso, apia-se sobre
um suporte institucional. a instituio que, munida por essa legitimao, vai conduzir e
reconduzir prticas que mantenham a sua dominao, nem que seja ideolgica, sobre os
outros. atravs da disciplina que esses corpos so retrabalhados vrias vezes para fins
concretos, para fins propositivos.
6. A Verdade e o Popular no Cinema Novo
A Arte Moderna no Brasil conseguiu criar uma tradio artistica que influenciou toda
uma nova gerao. E dentre esses novos artistas esto os cinemanovistas. O Cinema Novo
pode ser considerado um herdeiro do Movimento de Arte Moderna (ROCHA, 2003)5, de
todas as expresses artisticas do Modernismo, a que ainda era uma lacuna era o cinema,
5 Ismail Xavier no prefacio do livro de Glauber Rocha
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considerado por alguns como um Modernismo Tardio (XAVIER, 2003), o Cinema Novo
dialogava em algumas das questes mais importantes para a Arte Moderna.
Assim como o Movimento de Arte Moderna queria construir uma imagem, uma
identidade nacional, o Cinema Novo tambem queria quebrar com o modelo vigente, de
produo comercial6. Sua principal critica era para com os filme da Chanchada.
Assim, o Cinema Novo estabelece uma recusa ao padro industrial voltado para a reproduo
das aparncias7 (ROCHA, 2004). No bastaria o melhor cinema poltico tematizar problemas
da vida social, era preciso inventar uma nova maneira de conduzir os dramas, no caindo
numa estrutura reducionista voltada para a reproduo de preconceitos em detrimento do
esclarecimento das questes sociais.
A esttica do Cinema Novo surge conceitualmente junto com a inabilidade de se fazer
um cinema com tcnica. O Brasil, subdesenvolvido, no conseguiria fazer um cinema tcnico.
Ento, se abandonava a tcnica em prol de um contedo, chegando ao ponto que qualquer
caminho na direo da tcnica era visto como cinema comercial8.
A arte cinematogrfica passaria a ser revoluo e o artista assumiria o papel de
salvador. Seria ao mesmo tempo um criador, um intelectual, um poltico e um cientista,
buscando atravs da disciplina controlar as massas ignorantes baseado em seus valores
morais. Eles queriam mostrar a realidade do Brasil para os brasileiros. Assumem a funo de
tirar o nordeste da alienao provocada pela burguesia, e como resultado disso a linguagem de
como se comunicar com o povo apareria9.
Para Paulo Csar Saraceni (VIANY, 1999, p.08) o cinema novo uma questo de
verdade. J Ismail Xavier (ROCHA, 2003), diz que a questo da verdade no cinema est
6 Foram os padres industriais na produo de arte que fizeram com que no ano seguinte criao do MASP em
1947, seja criada a Companhia Cinematogrfica Vera Cruz (onde as chanchadas eram produzidas), por Francisco
Matarazzo Sobrinho, que tinha a proposta de fazer um cinema com padres internacionais, um cinema comercial
que lotasse as salas de exibio. Neste caso, com os padres Hollywoodianos, um padro internacional no qual
reside a grande crtica do Cinema Novo. Para eles, o mercado deveria ser protegido dos estrangeiros. Deveria se
promover uma mudana radical no que a populao estava vendo, reduzindo ou acabando com as chanchadas e
diminuindo a exibio de filmes estrangeiros.
7 Glauber Rocha considera a produo de Chanchada como comercial e alienante, para ele a utilizao de
grandes estdios nas filmagens (seus cenrios e iluminao) e temtica hollywoodiana somente reforada a nossa
situao de colnia, o cinema brasileiro deveria em cima de suas condies (subdesenvolvimento) realizar um
cinema mais prximo da realidade nacional.
8 Para Glauber (ROCHA.2003) Foi a exibio de Aruanda na Bienal de 1961 que deu respostas de como deveria
ser a esttica do Cinema Novo, um cinema artesanal, onda a luz era estourada, a cmera era na mo e deveria se
filmar a realidade na sua forma mais pura, sem incrementos tcnicos, o cinema deveria ser o reflexo da
sociedade. Um pas subdesenvolvido deveria ter um cinema feito de forma subdesenvolvida.
9 O bom cinema descobre a sua linguagem no momento em que descobre o real (ROCHA.2003.p.21).
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longe de se resumir aplicao de uma grade de conhecimento obtida nos livros de
sociologia. O pouco conhecimento que se tinha da regio era obtido atravs de informativos,
quase nunca em loco10
.
Fazendo essa opo pela misria, pelo estado medieval, eles acabam por no afirmar a
vida, mas sim o sacrifcio da vida. O intelectual acaba tendo uma viso sacerdotal da
militncia. Ele cria modos, imagens e verdades, para legitimar a sua luta, o seu sacrifcio.
A repercusso internacional do Cinema Novo deu a ele o estatuto de verdade11
sobre o
Brasil, sobre a identidade nacional e regional. Foi sedimentado uma imagem do nordeste
atrasado, arcaico e medieval. A visibilidade dada as produes fora do pas,
institucionalizaram o nordeste como regio selvagem, satisfazia o olhar estrangeiro
sobre as sociedades subdesenvolvidas.
Portanto, a verdade est diretamente ligada a sistemas de poder, que a produzem e a
suportam. produzida para fortalecer a dominao de um grupo sobre outro. Para Foucault
podemos Por verdade, entender um conjunto de procedimentos regulados para a produo, a
lei, a repartio, a circulao e o funcionamento dos enunciados (FOUCAULT, 2008, p.14).
So esses enunciados que pela regularidade, criam um discurso j subjetivado e
institucionalizado pela populao, o nordeste visto e revisitado de modo a no romper com o
imagtico que o alimenta. Neste caso, refora-se o poder que dele se sustenta.
Para os cinemanovistas a arte no deveria s representar o real, mas explicar a
realidade. Ela deveria ser o reflexo de uma psicologia social. O cinema deveria despertar a
populao para sua real situao e que munidos desse conhecimento a revoluo seria
evidente.
10 Um bom exemplo disso est no filme de Nelson Pereira dos Santos: Mandacaru Vermelho (1961). Quando a
produo resolveu gravar, primeiramente, Vidas Secas (1963) no serto da Bahia, fronteira com Pernambuco,
eles pouco conheciam sobre a regio. Chegando l, esperavam encontrar o serto imagtico que fora construdo
em seu roteiro. Mas, a realidade foi outra: a Cidade de Juazeiro estava verde, era o inverno chuvoso, o serto no
condizia com aquele que queriam mostrar e a soluo foi improvisar outro roteiro e gravar outro filme, foi ai que
veio Mandacaru Vermelho. Somente dois anos depois que Nelson Pereira dos Santos iria conseguir gravar
Vidas Secas.
11 A verdade do Cinema Novo est entrelaada a verdade do Movimento de Arte Moderna. No foi uma
confeco dos cinemanovistas, foi uma herana intelectual que possibilitou a eles construir sua esttica e
trabalhar a realidade dos seus temas (cangao, messianismo, por exemplo) com tratamento diferenciado do que
foi dado pela Arte Moderna.
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Mas o Cinema Novo no se comunica efetivamente com ningum fora de seu circuito
hermeticamente fechado12
, onde a produo elabora equvocos no somente no campo da arte,
mas tambm no social e poltico.
Gera-se mal-entendidos que vo ser repetidos e perpetuados por uma nova gerao,
que tem como norte essa produo respaldada pela crtica internacional. Para o observador
europeu, os processos de criao artstica do mundo subdesenvolvido s o interessam na
medida em que satisfazem sua nostalgia do primitivismo. (ROCHA.2004.p.63)
Essa necessidade de dilogo com as camadas mais populares vem da incapacidade de,
at ento, se comunicar com o povo, para provocar a revoluo que transformaria
radicalmente a sociedade brasileira. Quanto mais se desce na escala social tanto mais
radicais costumam ser as formas que assume a necessidade, uma vez surgida, de um salvador
(GOMES, 1998, p.123). Cabeira aos cinemanovistas carregar essa bandeira at o fim.
Bernardet (2007) acha que poderemos repetir tanto quanto quisermos a palavra
popular que o cinema brasileiro no se tornar mais popular por isso. Falar que o Cinema
Novo foi popular idealismo e mistificao.
justamente essa mistificao que cria e alimenta alegorias sobre um nordeste
fantico, deixando como legado uma enormidade de enunciados prontos, discurso que
renasce em cada um de seus pontos, absolutamente novo e inocente, e que reaparece sem
cessar, em todo frescor, a partir das coisas, dos sentimentos ou dos pensamentos
(FOUCAULT, 2009, p.23).
um discurso que resgata o passado quase perdido. Para isso, faz-se uso de uma
linguagem verborrgica de efeito, marcando bem distintamente quem o homem culto e
quem o homem ignorante (ALBUQUERQUE, 2009). Alm disso, ele toma elementos do
folclore e da cultura popular, principalmente a rural, e os trata com ar de superioridade. Com
seu olhar distante, sinaliza que pertence a um mundo bem diferente daquele que resolveu
tratar13
.
Durval comenta sobre Glauber Rocha - e que pode se estender a outros artistas. O
dilaceramento de um intelectual que admira os rituais de cultura popular, mas abomina sua
12 Intelectuais, artistas, crticos, cineastas e pequeno pblico (burguesia) 13 Esta ser uma caracterstica muito presente na atual produo cinematogrfica brasileira, a voz do povo ser
exercida sempre pela boca da classe media.
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lgica, visto que fascinado por suas imagens, por sua forma, embora queira renegar o seu
contedo (ALBUQUERQUE, 2009, p.315).
O universo popular impregnou o cinema nacional, seus personagens eram, assim como
seus realizadores, alheios ao mercado capitalista, sero os retirantes, os beatos, os coroneis e
os cangaceiros. O nordestino no cinema sempre ser marginal ao sistema capitalista, sempre
estar deslocado da sociedade, a sua resposta a opresso ser a violncia.
7. A Violncia do Nordestino
A violncia passa a ser resposta a todas as personagens nordestinas; os que se
revoltam contra a violncia dos latifundirios viram cangaceiros, os que se revoltam contra a
violncia da igreja viram beatos, as que se revoltam contra a violncia da moral e bons
costumes viram prostitutas, bandidos, andarilhos; os que se revoltam contra a violncia da
disciplina viram os ignorantes. A imagem do nordeste vai ser moldada em cima da violncia,
as personagens sero movidas pela violncia, esse sentimento irracional e selvagem que move
todos os animais.
Para os cinemanovistas apenas uma esttica da violncia poderia integrar um
significado revolucionrio em suas lutas de libertao14
. Os corpos suplicados viram
espetculo. Quando no so os corpos, so suas almas. Quando o domnio sobre o corpo
existe, o suplcio e o espetculo ainda existem. Quando o nordestino retratado, ele ainda o
reflexo desse suplcio, ele sofre em detrimento de um espetculo mais vivo, mais carregado de
realidade.
Esse nordeste rebelde, brbaro, violento visto como lugar de crenas e relaes
primitivas, contrastando com as relaes racionais da sociedade moderna, presentes na cidade
grande. Ento, o nordeste se constitui como uma regio que a revolta do pobre algo para se
temer, quer dizer, temer a perda de privilgios. O serto ser construdo como uma sociedade
que vive em pecado, onde as mazelas so provinientes de relaes sociais medievais, punidas
por Deus ou pelo Estado.
14 Glauber Rocha falando de sua Esttica do Sonho. Apenas uma esttica da violncia poderia integrar um
significado revolucionrio em nossas lutas de libertao. (ROCHA, 2004, p.248). Dizia que nossa pobreza era
compreendida mas nunca sentida pelos observadores coloniais.
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O Cinema Novo no conseguiu provocar uma revoluo na sociedade, no conseguiu
se comunicar com o povo, ele foi popular somente quando se inspirou nos problemas
populares, mas o que fez foi elaborar temtica e forma que expressam a problemtica de um
ponto de vista da classe mdia. So arqutipos deveriam servir de modelo, de conduta e ao,
deveriam ser os balizadores para o comportamento social e poltico do nordestino.
A visibilidade e dizibilidade da regio Nordeste, como de qualquer espao,
so compostas tambm de produtos da imaginao, a que se atribuem
realidade. Compem-se de fatos que, uma vez vistos, escutados, contados e
lidos, so fixados, repetem-se, impem-se como verdade, tomam
consistncia, criam razes. So fatos, personagens, imagens, textos, que se
tornam arqutipos, mitolgicos que parecem boiar para alem ou para aqum
da histria, que, no entanto, possuem uma positividade, ao se encarnarem em
praticas, em instituies, em subjetividades sociais. So imagens,
enunciados, temas e preconceitos necessariamente agenciados pelo autor,
pelo pintor, pelo musico ou pelo cineasta que querem tornar verossmil sua
narrativa ou obra de arte. So regularidades discursivas que se cristalizam
como caractersticas expressivas, tpicas, essenciais da regio [...] O nordeste
no existe sem a seca e esta atributo particular deste espao. O nordeste
no verossmil sem os coronis, sem cangaceiros, sem jagunos ou santos.
O nordeste uma criao imagtico-discursiva cristalizada, formada por
tropos que se tornam obrigatrios que impem ao ver e ao falar dele certos
limites. Mesmo quando as estratgias que orientam os discursos e as obras
de arte so politicamente diferenciadas e at antagnicas, elas lidaro com as
mesmas mitologias, apenas colocando-as em outra economia discursiva [...]
ele j traz em si imagens e enunciados que j foram fruto de varias
estratgias de poder que se cruzam; de varias convenes que so dadas, de
uma ordenao consagrada historicamente. (ALBUQUERQUE, 2009, p.217)
O Cinema Novo no conseguiu a revoluo to sonhada na sociedade, o que ele conseguiu
realizar foi uma revoluo no cinema nacional, nossa histria cinematografica tomou outro
rumo depois do aparecimento dos cinemanovistas, sua obras so padro, esboo para novas
obras, sempre que o nordeste for encenado ele far uso de outras economias discursivas, mas
cair ainda no reducionismo, na estereotipizao.
8. Discursos que causam violncia
Discursos so sries regulares e distintas de acontecimentos. Para Foucault (2009c),
eles so praticas descontnuas que muitas vezes se cruzam, mas tambm se ignoram e se
excluem. Mas, na regularidade que encontramos seu efeito mais danoso, pois essas prticas
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causam violncias, reduzem e simplificam aquilo que por natureza complexo e orgnico,
tem vida prpria.
As prticas discursivas e sua inadvertida repetio causam uma violncia a que so
submetidas s personagens no nordeste para dar veracidade, realidade a representao. Se o
nordeste necessita de violncia para sair da alienao, a violncia dos discursos que
aprisionam o sertanejo no serto, o nordeste no passado e seu povo fome.
Assim, o indivduo uma produo do poder e do saber, que a disciplina e o controle
fabricam. O nordestino acaba sendo o efeito mais importante das relaes de poder, de sua
fabricao, de seu jogo incessante.
O poder nos julga, condena e classifica. Obriga os nordestinos a desempenhar tarefas e
cumprir papis, a viver sob uma certa moral, so condicionados a ser assim, miserveis,
ignorantes, esfomeados, selvagens, fanticos e subdesenvolvidos, so obrigados a viver sob
essa violncia.
Esse discurso permite que as mesmas imagens e enunciados sejam utilizados por
diferentes agentes. A conscincia regional no surge de um nico sujeito ou de um grupo
especifico, e sim de vrios lugares e se encontra e se unifica com as necessidades colocadas
pelo tempo. Assim, nas artes, a conscincia regional utilizada no somente pela Arte
Moderna ou o Cinema Novo, mas tambm no discurso de telenovelas, humorsticos,
telejornais, impressos, programas polticos, msica e teatro. Aqui o que importa seu uso.
Mesmo quando inconsciente, o discurso impossibilita que os sujeitos falem por si s
de sua histria. Ao contrrio, vivem uma histria pronta, j feita pelos outros, pelos antigos. O
passado acaba abafando nosso presente e determinando nosso futuro. O nordestino fica
cercado pelas inmeras estratgias de priso, onde no cabe a ele falar por ele mesmo. Nesse
discurso que as artes fazem sobre o nordeste, vemos uma ttica de estereotipizao. um
discurso assertivo e repetitivo. uma voz arrogante que se d o direito de dizer o que o
outro em poucas palavras, o estereotipo nasce de uma caracterizao grosseira e
indiscriminada do grupo estranho (ALBUQUERQUE, 2009, p.30).
Neste, as diversas possibilidades, as multiplicidades so anuladas em detrimento de
uma falsa semelhana entre todos os sujeitos. Essa identidade nacional ou regional uma
construo. Busca-se dar interpretaes rasteiras e redutoras de um povo, para assim manter
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privilgios e dominios na regio15
. Eles se cristalizam e ganham o status de verdade criando
essa identidade, somos aperfeioados por essa identidade, somos domesticados por essa
identidade. Tudo subjetivado.
Ver a regio muito mais do que organizar um elenco de imagens resumidas,
artificiais, smbolos, arqutipos que dizem respeito origem do povo brasileiro. Essas
imagens educam a viso para descrever e imaginar a regio. Do forma a esse esteretipo,
fortalecem os clichs, do ao corpo cansado ordenamentos e moldam sua vida, limitando seu
devir aprisionando suas outras expresses.
9. O Nordeste, Ainda. (Concluses)
O Nordeste ainda visto na reproduo que o cinema faz da regio. Pouco o olhar foi
transformado sobre o ainda norte-leste violento, miservel, sertanejo. Assistimos os mesmo
padres, esteretipos, clichs e enunciados utilizados para se falar de nordeste desde o
Movimento de Arte Moderna e o Cinema Novo.
O nordeste sempre pensado no aspecto interiorano e do serto, sobretudo de forma
antimoderna. A confeco de outra visibilidade para a regio impossibilitada pelo acmulo
de imagens estereotipadas e a repetio constante de clichs sobre a regio. At para quem
vive no litoral difcil produzir outra imagem que no essa oficializada.
So regras repetidas inmeras vezes com a inteno e vontade de se tornar realidade,
verdade. Alm de perpetuar as diferenas entre as regies no pas, legitima-se a distino do
nordeste como do necessitado de caridade e ajuda governamental.
Mas, se no existem verdades, tambem no existem mentiras. Sim realmente existe
um nordeste miservel que sofre com a estiagem, mas essa verdade sempre elaborada em
cima do extico, que provoca ainda mais distanciamento daqueles que representam para
aqueles que so representados.
A arte se torna um instrumento do discurso, ensina prticas e forma subjetividades.
Munidos desse esprito, muitos cineastas contemporneos acabam por subjetivar os princpios
que caracterizaram o Cinema Novo. A reproduo de clichs para se falar de nordeste so
15 Os privilgios e domnios servem tanto para as oligarquias do nordeste, quanto para a diferenciao
(dominao) de um espao sobre, ou seja, do Sul/Sudeste sobre o Norte/Nordeste.
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resultado de convenes, composies, ajustamentos e repeties. Os realizadores no
conseguem vislumbrar outra realidade, pois est demais subjetivada.
As alegorias criadas sobre esse espao no provocam sentido revolucionrio, pelo
contrrio, eles disciplinam comportamentos e corpos, elas limitam a experincia, concentram
toda uma possibilidade de representao em poucos esteretipos que de to arraigados na
sociedade sempre so arrastados, trazidos tona.
Se existe a abundncia de discursos sobre esse nordeste atrasado, existe tambm a
rarefao dos outros discursos, daqueles que no satisfazem as exigncias da sociedade de
herana burguesa. No se evidencia um interesse pelo nordeste urbano, civilizado, moderno,
essas representaes no conseguem entrar no discurso sobre a regio.
Se o cinema se pretende ainda falar com o povo, este no se comunica, no escuta s
mltiplas personagens cotidianas das diversas cidades nordestinas. O povo constantemente
condicionado a pensar na sua valorizao entrelaada com a valorizao de uma cultura
tradicional. Ele constantemente disciplinado a pensar a sua identidade misturada a uma
outra que pertence ao passado.
Se o cinema de fico no tomou conhecimento da situao sertaneja ps Vidas Secas
e Deus e o Diabo na Terra do Sol (BERNARDET, 2007), porque o Cinema Novo se tornou
a verdade. A voz hegemonica que narra o nordeste reproduz simplesmente a voz dos
vencedores. E essa voz que ainda escutamos no cinema nacional contemporneo. As
personagens ainda existem, a situaco sertaneja ainda a mesma, parece que o serto no foi
tocado pelo tempo.
O cinema nacional contemporneo, filho e descendente direto do Cinema Novo
(XAVIER, 2003), ainda formula seus argumentos sobre a base frgil de um nordeste que
pertence a misria, pr-histria e subdesenvolvimento.
De Aruanda a Vidas Secas, o Cinema Novo narrou, descreveu poetizou,
discursou, analisou, excitou os temas da fome: personagens comendo terra,
personagens comendo razes, personagens roubando para comer,
personagens matando para comer, personagens fugindo para comer,
personagens sujas, feias, descarnadas, morando em casa sujas, feias, escuras;
foi essa galeria de famintos que identificou o Cinema Novo (ROCHA, 2004,
p.65).
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Essa a galeria de famintos que ainda identifica o cinema nacional. como disse
FOUCAULT (2009c) o tempo penetra o corpo e com ele todos os controles minuciosos de
poder.
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