etnomusicologia

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  Revista ComSertões Apoderame nto imagético do Nordeste do Brasil: Estereótipo e Discurso nas Artes  Nycolas Santos Alburqueque  1  Resumo Este trabalho investiga a construção imagética do Nordeste do Brasil através do cinema. Para tanto, fiz uma pesquisa sobre como se processaram tais imagens, como foi elaborado esse repertório de famintos, cangaceiros, coronéis, jagunços, machistas, valentes, brutos, ignorantes, beatos, serviçais, inocente s e simplórios. Verifiquei quais são as relações de poder envolvidas nesse discurso do Nordeste atrasado, e quem se beneficia com ele. Como o nordestino vêm sendo simplificado e homogenizado nas relações sociais, e qual o papel do governo, sociedade e artes nesse processo. Analiso como foi formulada essa imagem, e quais agentes históricos envolvidos (Movimento de Arte Moderna e Cinema Novo) e, de que maneira, foi perpetuada esse representação estereotipada, que ainda hoje é utilizada para se falar do Nordeste. Palavras-Chave : Nordeste; Estereótipo; Identidade; Arte Moderna e Cinema Novo. Resumen Este trabajo investiga la construcción de las imágenes del noreste de Brasil a través del cine. Para eso, hice una investigación sobre cómo se procesan esas imágenes, cómo se elaboró este repertorio de hambrientos, cangaceiros, coroneles, jagunços, macho, valiente, crudo, ignorantes, fanáticos, sirvientes, inocentes y simplón. Comprobé cuales las relaciones de  poder que intervienen en este discurso Noreste tarde, y quién se beneficia de ellas. Como la gente do noreste se han simplificado y se hom ogeneizado en las relaciones sociales, y el papel del gobierno, la sociedad y las artes en este proceso. He analizado cómo se tomó esta imagen y los actores históricos (Movimiento de Arte Moderna y el Cinema Novo). También, de que maneras esta representación estereotipada se perpetua, y es atual para hablar sobre el noreste. Palabras clave: Nordeste; Estereotipo; Identidad; Movimiento del Art Moderna y Cinema  Novo. Abstract  This paper investigates the imagery construction about Brazil´s northeast through cinema. For that, I did some research on means such images were processed, how this repertoire was  prepare from hungry , bandits, cangaceiros, colonels, gangs ters, macho, brave, crude , ignorant,  bigots, servants, innoce nt and noodlle. I checked what are the power relations involved in this discourse of a belated northeast, and who benefits from it. In this process, the means how 1  Graduado em Arte e Mídia pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), dedica-se à produção de documentários, videoarte e cinema experimental. Participou de mais de quarenta festivais e exposições, sendo premiado 12 vezes. Mestre pela Universidade Federal Fluminense    UFF, 2012, no programa de Pós-Graduação em Ciência da Arte - PPGCA. Atualmente é professor Dedicação Exclusiva na Universidade Federal do Amapá - UNIFAP, no curso de Artes Visuais.

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  • Revista ComSertes

    Apoderamento imagtico do Nordeste do Brasil: Esteretipo e Discurso nas Artes

    Nycolas Santos Alburqueque 1

    Resumo

    Este trabalho investiga a construo imagtica do Nordeste do Brasil atravs do cinema. Para

    tanto, fiz uma pesquisa sobre como se processaram tais imagens, como foi elaborado esse

    repertrio de famintos, cangaceiros, coronis, jagunos, machistas, valentes, brutos,

    ignorantes, beatos, serviais, inocentes e simplrios. Verifiquei quais so as relaes de poder

    envolvidas nesse discurso do Nordeste atrasado, e quem se beneficia com ele. Como o

    nordestino vm sendo simplificado e homogenizado nas relaes sociais, e qual o papel do

    governo, sociedade e artes nesse processo. Analiso como foi formulada essa imagem, e quais

    agentes histricos envolvidos (Movimento de Arte Moderna e Cinema Novo) e, de que

    maneira, foi perpetuada esse representao estereotipada, que ainda hoje utilizada para se

    falar do Nordeste.

    Palavras-Chave: Nordeste; Esteretipo; Identidade; Arte Moderna e Cinema Novo.

    Resumen

    Este trabajo investiga la construccin de las imgenes del noreste de Brasil a travs del cine.

    Para eso, hice una investigacin sobre cmo se procesan esas imgenes, cmo se elabor este

    repertorio de hambrientos, cangaceiros, coroneles, jagunos, macho, valiente, crudo,

    ignorantes, fanticos, sirvientes, inocentes y simpln. Comprob cuales las relaciones de

    poder que intervienen en este discurso Noreste tarde, y quin se beneficia de ellas. Como la

    gente do noreste se han simplificado y se homogeneizado en las relaciones sociales, y el papel

    del gobierno, la sociedad y las artes en este proceso. He analizado cmo se tom esta imagen

    y los actores histricos (Movimiento de Arte Moderna y el Cinema Novo). Tambin, de que

    maneras esta representacin estereotipada se perpetua, y es atual para hablar sobre el noreste.

    Palabras clave: Nordeste; Estereotipo; Identidad; Movimiento del Art Moderna y Cinema

    Novo.

    Abstract This paper investigates the imagery construction about Brazils northeast through cinema. For

    that, I did some research on means such images were processed, how this repertoire was

    prepare from hungry, bandits, cangaceiros, colonels, gangsters, macho, brave, crude, ignorant,

    bigots, servants, innocent and noodlle. I checked what are the power relations involved in this

    discourse of a belated northeast, and who benefits from it. In this process, the means how

    1 Graduado em Arte e Mdia pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), dedica-se produo de

    documentrios, videoarte e cinema experimental. Participou de mais de quarenta festivais e exposies, sendo premiado 12

    vezes. Mestre pela Universidade Federal Fluminense UFF, 2012, no programa de Ps-Graduao em Cincia da Arte -

    PPGCA. Atualmente professor Dedicao Exclusiva na Universidade Federal do Amap - UNIFAP, no curso de Artes

    Visuais.

  • Revista ComSertes

    Northeast has been simplified and homogenized in social relations and the roles of

    government, society and arts. I analyze how this image was elaborated and historical actors

    involved (Modern Art Movement and Cinema Novo). More, some ways this image

    perpetuates a stereotypical representation, which is still use nowadays when we talk about the

    northeast.

    Keywords: Northeast; Stereotype; Identity; Modern Art Movement and Cinema Novo.

    1. Apresentao

    Este trabalho visa entender a construo imagtica sobre o Nordeste e seu povo, a

    origem e inveno desta identidade, como a regio ainda vista como arcaica, e quem se

    beneficia com isto; quais os processos que levam a domesticao da seca para fins polticos-

    econmicos, criandos verdades e mitos sobre a regio, e que todos esses processos causam

    uma violncia, fisica e espiritual a regio, produzindo discursos que so difceis de decontruir.

    sobre a representao, identidade e imagem do nordeste que o trabalho fundamenta-

    se. No quero construir a regio como vtima, e sim entender a construo imagtica da regio

    ou a complexidade em criar outros discursos. Entender para quem serve o discurso do

    Nordeste atrasado.

    No cabe a este trabalho fazer anlises tcnicas dos valores artsticos agregados a cada

    filme que fala do nordeste, tanto do Cinema Novo quanto do Cinema Contemporneo.

    Pretendo aqui analisar a imagem que vem sendo repetida, uma vez e outra vez, de forma

    preconceituosa e estereotipada criando valores e tradies nas artes.

    A importncia deste trabalho pleitear e no indicar uma outra representao para o

    Nordeste, alm do que se repete em grande parte das produes flmicas. Trata-se de uma

    outra imagem que possa servir sua populao de modo a no criar vnculos com o atraso ou

    somente o passado. atravs das artes que o pas conhece o Nordeste. por modos

    artsticos que o Nordeste comunica-se e expressa-se.

    2. Introduo

    A investigao do objeto desenvolvida atravs da anlise dos enunciados que

    formam o discurso sobre o Nordeste. em cima desses conceitos, enunciados formando

  • Revista ComSertes

    discursos, que trabalho em diversos elementos que aparecem e reaparecem constantemente no

    Cinema Nacional e que fortalecem a imagem de atraso e misria da Regio Nordeste.

    A conceituao que Foucault (2009b) faz dos enunciados abre possibilidades de uso

    para essa pesquisa porque eles so mais importantes e ilustrativos do que uma obra escolhida

    ou pequeno conjunto de obras. Um enunciado tem sempre suas margens povoadas por outros

    enunciados. Para Foucault (2009b), no existe enunciado que no reatualize outros

    enunciados, de uma forma ou de outra.

    Assim, neste trabalho, procuro identificar os enunciados geradores de discursos nos

    filmes que falam do Nordeste, a intensidade e a constncia com que eles aparecem em forma

    de signos (cactos, cangaceiros, beatos, famintos, etc.). Eles revelam uma prtica, um discurso

    sobre o nordeste, um conjunto de foras que formam e esto sendo usados para criar e

    alimentar uma imagem do nordeste atrasado e medieval. Ento, os enunciados aqui sero

    analisados sob a forma de discursos presentes na histria, na histria do cinema e nas artes.

    3. A Arte Moderna Conquista Espaos e Identidade.

    No inicio do sculo XX foi uma poca em que se comeou a discutir a questo da

    identidade brasileira. Era um acelerado processo de desenvolvimento do nacionalismo. Isso

    porque o ps 1a Guerra Mundial foi determinante para que as naes tomassem posturas mais

    definidas sobre as identidades nacionais (CHARNEY; SCHWARTZ.2001). As fronteiras

    estavam cada vez mais prximas e o mundo estava se ligando cada vez mais rpido. A

    questo da identidade era fundamental para entender o seu lugar naquele momento.

    Quando, no Brasil, se discute os novos caminhos identitrios da sociedade brasileira

    industrial; as artes assumem um importantissimo papel social nessa identificao. A Arte

    Moderna vem para possibilitar novas formas de expresso. A arte vai operar como

    catalisadora para definio de uma identidade nacional. As obras de arte ecoam em todo o

    social produzindo sentido e significados.

    Ao contar esta histria, a Arte Moderna desabrocha num momento de embate entre

    classes sociais, a luta pelo poder entre a nova classe emergente brasileira, a classe industrial, e

    a antiga aristocracia (AGRA, 2004). Uma disputa pela visibilidade. Elas descobrem na arte

    uma poderosa arma para conquistar espao, conquistar poder. Dessa luta de classes quem se

  • Revista ComSertes

    fortalece numericamente a que possui menos voz: o povo. Este acaba por revelar as

    distncias produzidas no novo cenrio mundial, onde os abismos ficam mais nitidos.

    O embate entre o proletariado e os novos burgueses-industriais vai se definindo cada

    vez mais. A burguesia industrial comea lentamente a se colocar mais presente na sociedade e

    determinar gosto, comportamento e demanda (CAUQUELIN, 2005)2. ela que com poder

    aquisitivo vai compor o panorama para o florescimento da Arte Moderna no pas.

    A tentativa era que esse investimento fortalece-se e consolida-se a cidade de So

    Paulo como o espao de pertencimento e desenvolvimento da Arte Moderna no pas. A luta

    para colocar So Paulo como representante da arte moderna era uma luta de um espao sobre

    o outro: de uma So Paulo industrial contra um Rio de Janeiro colonial (ZILIO, 1997).

    Era a luta pela hegemonia nacional, na consolidao de um espao que representava o

    progresso da nao, onde a modernidade vai encontrar um terreno frtil para o seu

    desenvolvimento. A preocupao no era somente a abertura do mercado de arte, era mais a

    valorizao de um espao que deveria servir de modelo para o resto do pas. So Paulo

    deveria indicar o rumo que uma nao desenvolvida deveria seguir.

    A luta dos modernistas era tambem uma luta para transferir o centro cultural e artistico

    do pas, da cidade do Rio de Janeiro para a cidade de So Paulo. Mrio de Andrade (apud.

    FABRIS, 2006) acreditava que a arte que buscava uma identidade nacional deveria abordar

    temas que refletissem a nossa cultura. A arte deveria tratar de temas nacionais e no de temas

    alienigenas. Para se extrair o que de mais puro a nao tinha, era necessrio antes de tudo

    entender os processo de colonizao e identificar as partes no afetadas por ele, ou seja,

    procurar um lugar onde no tivesse sido influenciado pela cultura europeia.

    O Movimento de Arte Moderna no Brasil precisava encontrar a sua identidade

    nacional; o que definiria nossa populao, o que representaria ser brasileiro, um brasileiro

    moderno, mas sem a cara e cores de uma Europa. As grandes metrpoles brasileiras eram

    europias demais, devido ao processo de imigrao, percebeu que para encontrar a

    nacionalidade intocada, por outras culturas, era necessrio adentrar o interior do pas e

    procurar uma identidade que no fora afetada pela modernidade vinda do Atlntico, a

    Europa3.

    2 CAUQUELIN no fala especificamente do Brasil, mas do processo que culminou na independncia das artes

    com relao ao antigo modelo, essa independncia aconteceu aqui no Brasil tambm. 3 Neste perodo o Brasil j estava sob grande imigrao de diversos povos do mundo inteiro, que se

    concentravam principalmente em So Paulo, Rio de Janeiro e os estado da Regio Sul.

  • Revista ComSertes

    nesse sentido que o Movimento Modernista no Brasil vai criar uma imagem do

    brasileiro, aquela imagem em que se reconhea o valor da cultura nacional4. Neste cenrio o

    Nordeste surge como esse lugar intocado, int(c)acto.

    4. Int(c)acto Nordeste

    Assim a Arte Moderna acabou servindo construo da imagem desse Nordeste

    arcaico, imagem que subjetivada, principalmente, por sua populao. Ela fornece material

    para que seja naturalizada a luta de foras e domnios de poder de uns sobre outros. A regio

    surge como intocada pela modernidade, pela imigrao e fortalece ainda mais a imagem de

    progresso que So Paulo carregava.

    Como as grandes metrpoles se assemelhavam muito aos grandes centros europeus, a

    necessidade de encontrar a nacionalidade vem da necessidade de diferenciar um espao de

    outro. As semelhanas so abandonadas para dar lugar s diferenas, para dar lugar aquilo que

    l, na Europa, no se encontrava: O Serto.

    Ento, era preciso encontrar um interior que preenchesse todas as lacunas no tocadas

    pela modernidade, pelo esprito burgus. a que o Nordeste surge como tema para a Arte

    Moderna. Como o interior do Nordeste no estava se tornando europeu como So Paulo, e

    mantinha todas as condies para de l sair a verdadeira cultura brasileira, intocada.

    O regionalismo que vai surgir da no vai somente diferenciar uma regio da outra,

    mas vai colocar as duas regies, Norte e Sul, como antagnicas, como extremamente opostas.

    Eleger um smbolo de brasilidade que fosse o contrrio daquilo que era a Europa moderna.

    Criar e exagerar caractersticas para marcar melhor o contraste e assim maximizar o efeito de

    distanciamento entre uma e outra regio, principalmente Sul x Norte, ou seja Sudeste x

    Nordeste.

    Toda a cultura tradicional do Nordeste acaba servindo para limitar a representao e as

    formas como se v o mundo daquela regio. Com o medo de perder o precioso passado, o

    discurso tradicionalista faz com que sempre tenhamos que voltar ao antigo para emergir o

    4 Ironia ou no, foi seguindo o exemplo da Semana de Deauville, que Di Cavalcanti, sugere fazer a Semana de

    Arte Moderna de 22. Segundo ele a nossa semana, seria uma semana de escndalos literrios e artsticos, de

    meter os estribos na barriga da burguesiazinha paulista (apud. FADEL, 2006, p.49). Mas, para Jos Lins do

    Rego, o modernismo fez muito barulho e agradou a ricos e esnobes, derrubou dolos para construir outros dolos,

    frmulas e preconceitos. Mas, no passou de uma alegoria do mundinho de Paris. (ALBUQERQUE, 2009)

  • Revista ComSertes

    sentimento de valorizao. A importncia da preservao desse passado pelos sujeitos faz

    com que cada um seja um pouco responsvel pelo seu no desaparecimento, muitas vezes

    esse passado representado pelo folclore.

    O folclore, assim como os populismos polticos, quando reivindica as prticas

    tradicionais, constri um universo popular carregado de mensagens massivas que comunicam

    diretamente com o povo. E dessa comunicao, surge outro sistema de mensagem: retira-se

    do tradicional, ou seja, do passado e recoloca-se como smbolo nacional, de popular

    (CANCLINI, 2003). Neste caso, o folclore vira uma arma de adestramento da populao.

    Neste cenrio, o cacto passa a ser um signo de brasilidade, do primitivismo, da

    aspereza de nossa realidade nacional, ele vai ser simbolo da luta pela sobrevivencia num

    abiente inspito e insalubre. O campo primitivo passa ser o lugar perfeito para uma revoluo,

    para uma rebelio primitiva.

    O nordeste como territrio de revolta criado por intelectuais e artistas da

    classe media, as obras partem de um olhar civilizado, uma fala urbano-

    industrial, de um Brasil civilizado sobre um Brasil rural, tradicional e

    arcaico.(ALBUQUERQUE, 2009, p.219).

    A cultura popular passa a ser utilizada por todos os segmentos artsticos para se falar

    de nordeste. Ela passa a ser considerada sinnimo de cultura no alienada. apropriada pela

    classe mdia burguesa que est insatisfeita com sua pouca participao no mundo da poltica

    no pas.

    So obras que servem de pretexto para o sujeito do discurso fazer as suas

    queixas aos grupos dirigentes, so o meio de ele vincular suas demandas de

    poder, de tomar a voz e viso do povo para si; de falar em nome dele, o que

    legitima seus discurso e sua vontade de poder. Ao se colocarem na

    vanguarda do povo e reivindicarem o atendimento dos interesses populares,

    a soluo de seus verdadeiros problemas, esto reivindicando a sua prpria

    incluso no pacto de poder dominante e o atendimento de suas demandas.

    (ALBUQUERQUE, 2009, p.220 e 221)

    o apoderamento dos que no tem voz, dos que so usados pelos detentores da

    verdade, seja cientifica, jornalstica, poltica e artstica cujo resultado a prolongao dessa

    dominao.

    5. Domesticao da Seca

  • Revista ComSertes

    Sobre o nordestino, so colocadas tantas regularidades discursivas que a fuga desse

    padro quase impossvel. So colocadas tantas caractersticas tpicas de regio que sua

    identidade fica presa a essas representaes. O Nordeste no possvel sem os coronis, sem

    cangaceiros, sem jagunos ou Santos. O Nordeste no existe sem a seca e toda sua

    representao. A enunciao deve estar ligada a ela.

    A visibilidade e dizibilidade da regio Nordeste, como de qualquer espao,

    so compostas tambm de produtos da imaginao, a que se atribu

    realidade. Compem-se de fatos que, uma vez vistos, escutados, contados e

    lidos, so fixados, repetem-se, impem-se como verdade tomam

    consistncia, criam razes. So fatos, personagens, imagens, textos, que se

    tornam arqutipos, mitolgicos que parecem boiar para alem ou para aqum

    da histria, que, no entanto, possuem uma positividade, ao se encarnarem em

    praticas, em instituies, em subjetividades sociais. (Albuquerque, 2009,

    p.217).

    A seca foi domesticada, o Nordeste foi domesticado, passou por uma seleo e

    adaptao dos valores considerados teis, os valores tradicionais, para suprir a necessidade

    de outros, com outros valores. O processo de domesticao sofrido pela seca um processo

    artificial.

    A seca vira um processo social, um produto das relaes dos homens, deixando de ser

    uma situao geogrfico-climtica. Institui-se no imaginrio, como representao social. O

    Nordeste ser visto sempre com seca, estando no Litoral; no Agreste; no Brejo, sendo

    somente serto.

    Passam a existir vrias significaes sociais em torno da seca. Para diversos usos, a

    seca apoderada pelo discurso regionalista e nela se encontram todas as explicaes para a

    situao do sertanejo.

    Ela ser o resultado da construo da ao humana socialmente localizada, a seca vira

    produo de sentido. Ela vai representar toda uma regio. No ser representada, ela ser

    reconstruda, retocada, vo modificar o seu contedo, vo lhe dar outro estatuto, vo

    modificar o seu texto.

    O discurso regional vai colocar a regio como miservel, composta de pobres

    necessitados que tentam, a todo custo ,sobreviver seca. Esta que sempre existiu na regio,

  • Revista ComSertes

    desde que o mundo mundo, e que continuar existindo, basta ao sertanejo ser forte e valente

    para sobreviver a essa adversidade, sobreviver a essa regio.

    J o discurso econmico vai dizer que a terra improdutiva, infrtil, pobre, que no

    seriam as polticas publicas que resolveriam o problema, pois ele se origina no incio dos

    tempos, no momento da criao do Planeta Terra, e sendo a terra estril e o sertanejo filho

    dela, tambm ser. com essa pobreza de solo que o homem se assemelha, tornando-se

    grosseiro, rude, despreparado para o trabalho, que tem a seu favor somente o instinto de

    sobrevivncia, a vontade de lutar pela vida, criando o discurso antropolgico.

    Quanto mais for institudo o imaginrio naturalista sobre o Serto, ou seja, sobre o

    Nordeste, mais cristalizado ele vai ser, isso significa que existiro menos problemas com os

    sujeitos sociais que criaram e reforaram esse imaginrio. Sendo o problema do nordeste uma

    questo natural, fica mais fcil justificar a dominao de uma regio sobre outra. Os jogos de

    poder acabam por aprisionar o Nordeste todo numa sucesso de clichs que, no somente

    disciplinam condutas e corpos, como enrazam preconceitos que de to naturalizados so

    subjetivados por toda uma populao, por toda uma nao.

    O importante precisar que o termo seca designa um processo social da

    realidade brasileira; que esse se inscreve no cotidiano poltico e no na

    estrutura fsica da terra; que esse cotidiano poltico povoado pelo

    imaginrio institudo e pelas representaes sociais construdas

    historicamente dentro do jogo de interesses sociais, econmicos, religiosos e

    culturais. Enquanto representao social torna-se meio e contedo de

    comunicao entre os sujeitos, fomentando agires sociais. Este nunca

    desinteressados. Assim, podemos sugerir uma diferena de conceituao

    entre seca e estiagem. A estiagem seria a forma fsico-climatolgica de

    expresso do movimento da natureza. E a seca, o conjunto de significaes

    sociais construdas pelos diversos estratos sociais de interesse, que no se

    apresenta, vale registrar, de forma uniforme. Diferente da realidade fsico-

    material, a seca, imagem-smbolo-representao social, nasce com os

    interesses que geraram um discurso competente e atualizado que a encastela

    e a institucionaliza.(Gomes, 1998, p.93)

    Do ponto de vista dessa representao tradicional, a seca tornou-se o signo da falta.

    Quanto mais dura for a estiagem, maior o processo de empobrecimento da populao que

    acredita ser a estiagem providncia divina e no social. A falta de gua no seria o reflexo da

    concentrao de terra, que corresponde concentrao de gua, do crdito e da alocao de

    recursos do governo em tempos de calamidade, seria uma consequncia do acaso, da

    providncia divina.

  • Revista ComSertes

    A concentrao fundiria, por si s, no resulta em riqueza, mas o meio atravs do

    qual o senhor de terras capta para dentro de suas cercas a construo de audes, aguadas, etc.

    A concentrao muito mais do que categoria espacial: corresponde a um processo poltico

    no qual uma classe assalta a outra com as bnos do estado e seus aparelhos (Moura, 1988,

    p.22).

    O Nordeste vem sendo agenciado, vem sendo mostrado atravs de vrios discursos, e

    muitos desses discursos surgem no esforo de diferenciar a regio Nordeste das demais

    regies do pas. Surgem na vontade de preservar uma dada tradio, em detrimento das

    modernidades do sculo XX. Surgem na finalidade de conter os nordestinos em sua prpria

    regio, diminuindo assim as imigraes dentro do pas. Surgem na inteno de paralisar a

    regio culturalmente impedindo qualquer outra forma de representao, de expresso artstica

    que no seja voltada para o tradicional e o regionalismo.

    Os discursos surgem com vrios propsitos e direcionamentos, s vezes so discursos

    propositivos e outras, na maioria, so discursos repetitivos, so cpias daquilo que entendem

    por padro. Sero sempre discursos redutores sobre a regio.

    Os movimentos culturais, as artes em geral so as grandes responsveis por

    institucionalizar esses discursos, por transform-los em subjetividade, por dar a eles o carter

    descompromissado e ldico, so discursos que naturalizam no dia-a-dia, que surgem com um

    status de verdade, de realidade.

    Essa vontade de verdade, assim como os outros sistemas de excluso, apia-se sobre

    um suporte institucional. a instituio que, munida por essa legitimao, vai conduzir e

    reconduzir prticas que mantenham a sua dominao, nem que seja ideolgica, sobre os

    outros. atravs da disciplina que esses corpos so retrabalhados vrias vezes para fins

    concretos, para fins propositivos.

    6. A Verdade e o Popular no Cinema Novo

    A Arte Moderna no Brasil conseguiu criar uma tradio artistica que influenciou toda

    uma nova gerao. E dentre esses novos artistas esto os cinemanovistas. O Cinema Novo

    pode ser considerado um herdeiro do Movimento de Arte Moderna (ROCHA, 2003)5, de

    todas as expresses artisticas do Modernismo, a que ainda era uma lacuna era o cinema,

    5 Ismail Xavier no prefacio do livro de Glauber Rocha

  • Revista ComSertes

    considerado por alguns como um Modernismo Tardio (XAVIER, 2003), o Cinema Novo

    dialogava em algumas das questes mais importantes para a Arte Moderna.

    Assim como o Movimento de Arte Moderna queria construir uma imagem, uma

    identidade nacional, o Cinema Novo tambem queria quebrar com o modelo vigente, de

    produo comercial6. Sua principal critica era para com os filme da Chanchada.

    Assim, o Cinema Novo estabelece uma recusa ao padro industrial voltado para a reproduo

    das aparncias7 (ROCHA, 2004). No bastaria o melhor cinema poltico tematizar problemas

    da vida social, era preciso inventar uma nova maneira de conduzir os dramas, no caindo

    numa estrutura reducionista voltada para a reproduo de preconceitos em detrimento do

    esclarecimento das questes sociais.

    A esttica do Cinema Novo surge conceitualmente junto com a inabilidade de se fazer

    um cinema com tcnica. O Brasil, subdesenvolvido, no conseguiria fazer um cinema tcnico.

    Ento, se abandonava a tcnica em prol de um contedo, chegando ao ponto que qualquer

    caminho na direo da tcnica era visto como cinema comercial8.

    A arte cinematogrfica passaria a ser revoluo e o artista assumiria o papel de

    salvador. Seria ao mesmo tempo um criador, um intelectual, um poltico e um cientista,

    buscando atravs da disciplina controlar as massas ignorantes baseado em seus valores

    morais. Eles queriam mostrar a realidade do Brasil para os brasileiros. Assumem a funo de

    tirar o nordeste da alienao provocada pela burguesia, e como resultado disso a linguagem de

    como se comunicar com o povo apareria9.

    Para Paulo Csar Saraceni (VIANY, 1999, p.08) o cinema novo uma questo de

    verdade. J Ismail Xavier (ROCHA, 2003), diz que a questo da verdade no cinema est

    6 Foram os padres industriais na produo de arte que fizeram com que no ano seguinte criao do MASP em

    1947, seja criada a Companhia Cinematogrfica Vera Cruz (onde as chanchadas eram produzidas), por Francisco

    Matarazzo Sobrinho, que tinha a proposta de fazer um cinema com padres internacionais, um cinema comercial

    que lotasse as salas de exibio. Neste caso, com os padres Hollywoodianos, um padro internacional no qual

    reside a grande crtica do Cinema Novo. Para eles, o mercado deveria ser protegido dos estrangeiros. Deveria se

    promover uma mudana radical no que a populao estava vendo, reduzindo ou acabando com as chanchadas e

    diminuindo a exibio de filmes estrangeiros.

    7 Glauber Rocha considera a produo de Chanchada como comercial e alienante, para ele a utilizao de

    grandes estdios nas filmagens (seus cenrios e iluminao) e temtica hollywoodiana somente reforada a nossa

    situao de colnia, o cinema brasileiro deveria em cima de suas condies (subdesenvolvimento) realizar um

    cinema mais prximo da realidade nacional.

    8 Para Glauber (ROCHA.2003) Foi a exibio de Aruanda na Bienal de 1961 que deu respostas de como deveria

    ser a esttica do Cinema Novo, um cinema artesanal, onda a luz era estourada, a cmera era na mo e deveria se

    filmar a realidade na sua forma mais pura, sem incrementos tcnicos, o cinema deveria ser o reflexo da

    sociedade. Um pas subdesenvolvido deveria ter um cinema feito de forma subdesenvolvida.

    9 O bom cinema descobre a sua linguagem no momento em que descobre o real (ROCHA.2003.p.21).

  • Revista ComSertes

    longe de se resumir aplicao de uma grade de conhecimento obtida nos livros de

    sociologia. O pouco conhecimento que se tinha da regio era obtido atravs de informativos,

    quase nunca em loco10

    .

    Fazendo essa opo pela misria, pelo estado medieval, eles acabam por no afirmar a

    vida, mas sim o sacrifcio da vida. O intelectual acaba tendo uma viso sacerdotal da

    militncia. Ele cria modos, imagens e verdades, para legitimar a sua luta, o seu sacrifcio.

    A repercusso internacional do Cinema Novo deu a ele o estatuto de verdade11

    sobre o

    Brasil, sobre a identidade nacional e regional. Foi sedimentado uma imagem do nordeste

    atrasado, arcaico e medieval. A visibilidade dada as produes fora do pas,

    institucionalizaram o nordeste como regio selvagem, satisfazia o olhar estrangeiro

    sobre as sociedades subdesenvolvidas.

    Portanto, a verdade est diretamente ligada a sistemas de poder, que a produzem e a

    suportam. produzida para fortalecer a dominao de um grupo sobre outro. Para Foucault

    podemos Por verdade, entender um conjunto de procedimentos regulados para a produo, a

    lei, a repartio, a circulao e o funcionamento dos enunciados (FOUCAULT, 2008, p.14).

    So esses enunciados que pela regularidade, criam um discurso j subjetivado e

    institucionalizado pela populao, o nordeste visto e revisitado de modo a no romper com o

    imagtico que o alimenta. Neste caso, refora-se o poder que dele se sustenta.

    Para os cinemanovistas a arte no deveria s representar o real, mas explicar a

    realidade. Ela deveria ser o reflexo de uma psicologia social. O cinema deveria despertar a

    populao para sua real situao e que munidos desse conhecimento a revoluo seria

    evidente.

    10 Um bom exemplo disso est no filme de Nelson Pereira dos Santos: Mandacaru Vermelho (1961). Quando a

    produo resolveu gravar, primeiramente, Vidas Secas (1963) no serto da Bahia, fronteira com Pernambuco,

    eles pouco conheciam sobre a regio. Chegando l, esperavam encontrar o serto imagtico que fora construdo

    em seu roteiro. Mas, a realidade foi outra: a Cidade de Juazeiro estava verde, era o inverno chuvoso, o serto no

    condizia com aquele que queriam mostrar e a soluo foi improvisar outro roteiro e gravar outro filme, foi ai que

    veio Mandacaru Vermelho. Somente dois anos depois que Nelson Pereira dos Santos iria conseguir gravar

    Vidas Secas.

    11 A verdade do Cinema Novo est entrelaada a verdade do Movimento de Arte Moderna. No foi uma

    confeco dos cinemanovistas, foi uma herana intelectual que possibilitou a eles construir sua esttica e

    trabalhar a realidade dos seus temas (cangao, messianismo, por exemplo) com tratamento diferenciado do que

    foi dado pela Arte Moderna.

  • Revista ComSertes

    Mas o Cinema Novo no se comunica efetivamente com ningum fora de seu circuito

    hermeticamente fechado12

    , onde a produo elabora equvocos no somente no campo da arte,

    mas tambm no social e poltico.

    Gera-se mal-entendidos que vo ser repetidos e perpetuados por uma nova gerao,

    que tem como norte essa produo respaldada pela crtica internacional. Para o observador

    europeu, os processos de criao artstica do mundo subdesenvolvido s o interessam na

    medida em que satisfazem sua nostalgia do primitivismo. (ROCHA.2004.p.63)

    Essa necessidade de dilogo com as camadas mais populares vem da incapacidade de,

    at ento, se comunicar com o povo, para provocar a revoluo que transformaria

    radicalmente a sociedade brasileira. Quanto mais se desce na escala social tanto mais

    radicais costumam ser as formas que assume a necessidade, uma vez surgida, de um salvador

    (GOMES, 1998, p.123). Cabeira aos cinemanovistas carregar essa bandeira at o fim.

    Bernardet (2007) acha que poderemos repetir tanto quanto quisermos a palavra

    popular que o cinema brasileiro no se tornar mais popular por isso. Falar que o Cinema

    Novo foi popular idealismo e mistificao.

    justamente essa mistificao que cria e alimenta alegorias sobre um nordeste

    fantico, deixando como legado uma enormidade de enunciados prontos, discurso que

    renasce em cada um de seus pontos, absolutamente novo e inocente, e que reaparece sem

    cessar, em todo frescor, a partir das coisas, dos sentimentos ou dos pensamentos

    (FOUCAULT, 2009, p.23).

    um discurso que resgata o passado quase perdido. Para isso, faz-se uso de uma

    linguagem verborrgica de efeito, marcando bem distintamente quem o homem culto e

    quem o homem ignorante (ALBUQUERQUE, 2009). Alm disso, ele toma elementos do

    folclore e da cultura popular, principalmente a rural, e os trata com ar de superioridade. Com

    seu olhar distante, sinaliza que pertence a um mundo bem diferente daquele que resolveu

    tratar13

    .

    Durval comenta sobre Glauber Rocha - e que pode se estender a outros artistas. O

    dilaceramento de um intelectual que admira os rituais de cultura popular, mas abomina sua

    12 Intelectuais, artistas, crticos, cineastas e pequeno pblico (burguesia) 13 Esta ser uma caracterstica muito presente na atual produo cinematogrfica brasileira, a voz do povo ser

    exercida sempre pela boca da classe media.

  • Revista ComSertes

    lgica, visto que fascinado por suas imagens, por sua forma, embora queira renegar o seu

    contedo (ALBUQUERQUE, 2009, p.315).

    O universo popular impregnou o cinema nacional, seus personagens eram, assim como

    seus realizadores, alheios ao mercado capitalista, sero os retirantes, os beatos, os coroneis e

    os cangaceiros. O nordestino no cinema sempre ser marginal ao sistema capitalista, sempre

    estar deslocado da sociedade, a sua resposta a opresso ser a violncia.

    7. A Violncia do Nordestino

    A violncia passa a ser resposta a todas as personagens nordestinas; os que se

    revoltam contra a violncia dos latifundirios viram cangaceiros, os que se revoltam contra a

    violncia da igreja viram beatos, as que se revoltam contra a violncia da moral e bons

    costumes viram prostitutas, bandidos, andarilhos; os que se revoltam contra a violncia da

    disciplina viram os ignorantes. A imagem do nordeste vai ser moldada em cima da violncia,

    as personagens sero movidas pela violncia, esse sentimento irracional e selvagem que move

    todos os animais.

    Para os cinemanovistas apenas uma esttica da violncia poderia integrar um

    significado revolucionrio em suas lutas de libertao14

    . Os corpos suplicados viram

    espetculo. Quando no so os corpos, so suas almas. Quando o domnio sobre o corpo

    existe, o suplcio e o espetculo ainda existem. Quando o nordestino retratado, ele ainda o

    reflexo desse suplcio, ele sofre em detrimento de um espetculo mais vivo, mais carregado de

    realidade.

    Esse nordeste rebelde, brbaro, violento visto como lugar de crenas e relaes

    primitivas, contrastando com as relaes racionais da sociedade moderna, presentes na cidade

    grande. Ento, o nordeste se constitui como uma regio que a revolta do pobre algo para se

    temer, quer dizer, temer a perda de privilgios. O serto ser construdo como uma sociedade

    que vive em pecado, onde as mazelas so provinientes de relaes sociais medievais, punidas

    por Deus ou pelo Estado.

    14 Glauber Rocha falando de sua Esttica do Sonho. Apenas uma esttica da violncia poderia integrar um

    significado revolucionrio em nossas lutas de libertao. (ROCHA, 2004, p.248). Dizia que nossa pobreza era

    compreendida mas nunca sentida pelos observadores coloniais.

  • Revista ComSertes

    O Cinema Novo no conseguiu provocar uma revoluo na sociedade, no conseguiu

    se comunicar com o povo, ele foi popular somente quando se inspirou nos problemas

    populares, mas o que fez foi elaborar temtica e forma que expressam a problemtica de um

    ponto de vista da classe mdia. So arqutipos deveriam servir de modelo, de conduta e ao,

    deveriam ser os balizadores para o comportamento social e poltico do nordestino.

    A visibilidade e dizibilidade da regio Nordeste, como de qualquer espao,

    so compostas tambm de produtos da imaginao, a que se atribuem

    realidade. Compem-se de fatos que, uma vez vistos, escutados, contados e

    lidos, so fixados, repetem-se, impem-se como verdade, tomam

    consistncia, criam razes. So fatos, personagens, imagens, textos, que se

    tornam arqutipos, mitolgicos que parecem boiar para alem ou para aqum

    da histria, que, no entanto, possuem uma positividade, ao se encarnarem em

    praticas, em instituies, em subjetividades sociais. So imagens,

    enunciados, temas e preconceitos necessariamente agenciados pelo autor,

    pelo pintor, pelo musico ou pelo cineasta que querem tornar verossmil sua

    narrativa ou obra de arte. So regularidades discursivas que se cristalizam

    como caractersticas expressivas, tpicas, essenciais da regio [...] O nordeste

    no existe sem a seca e esta atributo particular deste espao. O nordeste

    no verossmil sem os coronis, sem cangaceiros, sem jagunos ou santos.

    O nordeste uma criao imagtico-discursiva cristalizada, formada por

    tropos que se tornam obrigatrios que impem ao ver e ao falar dele certos

    limites. Mesmo quando as estratgias que orientam os discursos e as obras

    de arte so politicamente diferenciadas e at antagnicas, elas lidaro com as

    mesmas mitologias, apenas colocando-as em outra economia discursiva [...]

    ele j traz em si imagens e enunciados que j foram fruto de varias

    estratgias de poder que se cruzam; de varias convenes que so dadas, de

    uma ordenao consagrada historicamente. (ALBUQUERQUE, 2009, p.217)

    O Cinema Novo no conseguiu a revoluo to sonhada na sociedade, o que ele conseguiu

    realizar foi uma revoluo no cinema nacional, nossa histria cinematografica tomou outro

    rumo depois do aparecimento dos cinemanovistas, sua obras so padro, esboo para novas

    obras, sempre que o nordeste for encenado ele far uso de outras economias discursivas, mas

    cair ainda no reducionismo, na estereotipizao.

    8. Discursos que causam violncia

    Discursos so sries regulares e distintas de acontecimentos. Para Foucault (2009c),

    eles so praticas descontnuas que muitas vezes se cruzam, mas tambm se ignoram e se

    excluem. Mas, na regularidade que encontramos seu efeito mais danoso, pois essas prticas

  • Revista ComSertes

    causam violncias, reduzem e simplificam aquilo que por natureza complexo e orgnico,

    tem vida prpria.

    As prticas discursivas e sua inadvertida repetio causam uma violncia a que so

    submetidas s personagens no nordeste para dar veracidade, realidade a representao. Se o

    nordeste necessita de violncia para sair da alienao, a violncia dos discursos que

    aprisionam o sertanejo no serto, o nordeste no passado e seu povo fome.

    Assim, o indivduo uma produo do poder e do saber, que a disciplina e o controle

    fabricam. O nordestino acaba sendo o efeito mais importante das relaes de poder, de sua

    fabricao, de seu jogo incessante.

    O poder nos julga, condena e classifica. Obriga os nordestinos a desempenhar tarefas e

    cumprir papis, a viver sob uma certa moral, so condicionados a ser assim, miserveis,

    ignorantes, esfomeados, selvagens, fanticos e subdesenvolvidos, so obrigados a viver sob

    essa violncia.

    Esse discurso permite que as mesmas imagens e enunciados sejam utilizados por

    diferentes agentes. A conscincia regional no surge de um nico sujeito ou de um grupo

    especifico, e sim de vrios lugares e se encontra e se unifica com as necessidades colocadas

    pelo tempo. Assim, nas artes, a conscincia regional utilizada no somente pela Arte

    Moderna ou o Cinema Novo, mas tambm no discurso de telenovelas, humorsticos,

    telejornais, impressos, programas polticos, msica e teatro. Aqui o que importa seu uso.

    Mesmo quando inconsciente, o discurso impossibilita que os sujeitos falem por si s

    de sua histria. Ao contrrio, vivem uma histria pronta, j feita pelos outros, pelos antigos. O

    passado acaba abafando nosso presente e determinando nosso futuro. O nordestino fica

    cercado pelas inmeras estratgias de priso, onde no cabe a ele falar por ele mesmo. Nesse

    discurso que as artes fazem sobre o nordeste, vemos uma ttica de estereotipizao. um

    discurso assertivo e repetitivo. uma voz arrogante que se d o direito de dizer o que o

    outro em poucas palavras, o estereotipo nasce de uma caracterizao grosseira e

    indiscriminada do grupo estranho (ALBUQUERQUE, 2009, p.30).

    Neste, as diversas possibilidades, as multiplicidades so anuladas em detrimento de

    uma falsa semelhana entre todos os sujeitos. Essa identidade nacional ou regional uma

    construo. Busca-se dar interpretaes rasteiras e redutoras de um povo, para assim manter

  • Revista ComSertes

    privilgios e dominios na regio15

    . Eles se cristalizam e ganham o status de verdade criando

    essa identidade, somos aperfeioados por essa identidade, somos domesticados por essa

    identidade. Tudo subjetivado.

    Ver a regio muito mais do que organizar um elenco de imagens resumidas,

    artificiais, smbolos, arqutipos que dizem respeito origem do povo brasileiro. Essas

    imagens educam a viso para descrever e imaginar a regio. Do forma a esse esteretipo,

    fortalecem os clichs, do ao corpo cansado ordenamentos e moldam sua vida, limitando seu

    devir aprisionando suas outras expresses.

    9. O Nordeste, Ainda. (Concluses)

    O Nordeste ainda visto na reproduo que o cinema faz da regio. Pouco o olhar foi

    transformado sobre o ainda norte-leste violento, miservel, sertanejo. Assistimos os mesmo

    padres, esteretipos, clichs e enunciados utilizados para se falar de nordeste desde o

    Movimento de Arte Moderna e o Cinema Novo.

    O nordeste sempre pensado no aspecto interiorano e do serto, sobretudo de forma

    antimoderna. A confeco de outra visibilidade para a regio impossibilitada pelo acmulo

    de imagens estereotipadas e a repetio constante de clichs sobre a regio. At para quem

    vive no litoral difcil produzir outra imagem que no essa oficializada.

    So regras repetidas inmeras vezes com a inteno e vontade de se tornar realidade,

    verdade. Alm de perpetuar as diferenas entre as regies no pas, legitima-se a distino do

    nordeste como do necessitado de caridade e ajuda governamental.

    Mas, se no existem verdades, tambem no existem mentiras. Sim realmente existe

    um nordeste miservel que sofre com a estiagem, mas essa verdade sempre elaborada em

    cima do extico, que provoca ainda mais distanciamento daqueles que representam para

    aqueles que so representados.

    A arte se torna um instrumento do discurso, ensina prticas e forma subjetividades.

    Munidos desse esprito, muitos cineastas contemporneos acabam por subjetivar os princpios

    que caracterizaram o Cinema Novo. A reproduo de clichs para se falar de nordeste so

    15 Os privilgios e domnios servem tanto para as oligarquias do nordeste, quanto para a diferenciao

    (dominao) de um espao sobre, ou seja, do Sul/Sudeste sobre o Norte/Nordeste.

  • Revista ComSertes

    resultado de convenes, composies, ajustamentos e repeties. Os realizadores no

    conseguem vislumbrar outra realidade, pois est demais subjetivada.

    As alegorias criadas sobre esse espao no provocam sentido revolucionrio, pelo

    contrrio, eles disciplinam comportamentos e corpos, elas limitam a experincia, concentram

    toda uma possibilidade de representao em poucos esteretipos que de to arraigados na

    sociedade sempre so arrastados, trazidos tona.

    Se existe a abundncia de discursos sobre esse nordeste atrasado, existe tambm a

    rarefao dos outros discursos, daqueles que no satisfazem as exigncias da sociedade de

    herana burguesa. No se evidencia um interesse pelo nordeste urbano, civilizado, moderno,

    essas representaes no conseguem entrar no discurso sobre a regio.

    Se o cinema se pretende ainda falar com o povo, este no se comunica, no escuta s

    mltiplas personagens cotidianas das diversas cidades nordestinas. O povo constantemente

    condicionado a pensar na sua valorizao entrelaada com a valorizao de uma cultura

    tradicional. Ele constantemente disciplinado a pensar a sua identidade misturada a uma

    outra que pertence ao passado.

    Se o cinema de fico no tomou conhecimento da situao sertaneja ps Vidas Secas

    e Deus e o Diabo na Terra do Sol (BERNARDET, 2007), porque o Cinema Novo se tornou

    a verdade. A voz hegemonica que narra o nordeste reproduz simplesmente a voz dos

    vencedores. E essa voz que ainda escutamos no cinema nacional contemporneo. As

    personagens ainda existem, a situaco sertaneja ainda a mesma, parece que o serto no foi

    tocado pelo tempo.

    O cinema nacional contemporneo, filho e descendente direto do Cinema Novo

    (XAVIER, 2003), ainda formula seus argumentos sobre a base frgil de um nordeste que

    pertence a misria, pr-histria e subdesenvolvimento.

    De Aruanda a Vidas Secas, o Cinema Novo narrou, descreveu poetizou,

    discursou, analisou, excitou os temas da fome: personagens comendo terra,

    personagens comendo razes, personagens roubando para comer,

    personagens matando para comer, personagens fugindo para comer,

    personagens sujas, feias, descarnadas, morando em casa sujas, feias, escuras;

    foi essa galeria de famintos que identificou o Cinema Novo (ROCHA, 2004,

    p.65).

  • Revista ComSertes

    Essa a galeria de famintos que ainda identifica o cinema nacional. como disse

    FOUCAULT (2009c) o tempo penetra o corpo e com ele todos os controles minuciosos de

    poder.

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