esta é uma obra de ficção. nomes, personagens, fatos e · 2017-12-18 · esta é uma obra de...
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Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, fatos e
lugares são frutos da imaginação do autor e usados de modo
fictício. Qualquer semelhança com fatos reais ou qualquer
pessoa, viva ou morta, é mera coincidência.
Créditos de Tradução:
Fallen Series Staff
(@FallenSeries, @calebhenrique)
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P R Ó L O G O
C A I N D O
Primeiro, houve silêncio —
No espaço entre o Céu e a Queda, na profundidade da
distância desconhecida, houve um momento em que o zumbido
glorioso do Céu desapareceu e foi substituído por um silêncio tão
profundo que a alma de Daniel se esforçou para fazer qualquer
ruído.
Depois, veio o sentimento real de cair — o tipo de queda
da qual nem mesmo suas asas poderiam salvá-lo, como se o
Trono houvesse amarrado luas nelas. Elas mal batiam, e quando o
faziam não causavam impacto algum sobre a trajetória de sua
queda.
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Para onde ele estava indo? Não havia nada em frente a ele
e nada atrás. Nada acima e nada abaixo. Só a profunda escuridão,
e o contorno borrado do que restava da alma de Daniel.
Na ausência completa de qualquer ruído, sua mente
assumiu: Ele encheu a cabeça com outra coisa, algo inevitável: as
palavras da assombrosa maldição de Luce.
Ela morrerá... Ela nunca passará da adolescência...
Morrerá novamente, novamente e novamente, exatamente no
momento em que se lembrar da escolha dele.
Dessa forma, vocês jamais estarão realmente juntos.
Este havia sido o castigo de Lúcifer, sua adição à sentença
do Trono que aconteceu no Prado celeste. Agora a morte vinha
junto com seu amor.
Daniel poderia pará-la? Poderia sequer reconhecê-la?
Quanto um anjo sabe a respeito da morte? Daniel havia
testemunhado que ela vem em paz a algumas das novas raças
mortais, chamada humanos, mas a morte não era a preocupação
dos anjos.
Morte e adolescência: as duas certezas absolutas na
maldição de Lúcifer. Isso não significava nada para Daniel. Tudo
o que sabia era que ser separado de Lucinda não era um castigo
que pudesse suportar. Eles tinham de ficar juntos.
— Lucinda! — Ele gritou.
Sua alma tinha se aquecido só de pensar nela. Mas havia
apenas a dor da ausência.
Ele deveria ter sido capaz de perceber seus irmãos ao seu
redor — Todos os que tinham escolhido mal; ou muito tarde; e os
que não escolheram nenhum dos lados e foram expulsos por sua
indecisão. Sabia que não estava realmente só. Mais de cem
milhões deles haviam caído quando o chão sob eles se abriu e os
lançou para o vazio.
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Mas ele não podia ver, ou sentir qualquer outra pessoa.
Antes deste momento, ele nunca tinha estado sozinho. Ele sentiu
como se ele fosse o último dos anjos em todos os mundos.
Não pense assim. Você vai se perder.
Tentou se segurar... Lucinda, a chamada, Lucinda, a
escolha... mas enquanto caia, tudo ficava mais difícil de lembrar.
Como por exemplo, quais foram as últimas palavras que
ouviu do Trono?
Os portões do céu...
Os portões do céu estão...
Ele não conseguia lembrar o que vinha depois, lembrava
vagamente de como a luz piscou e o mais severo frio varreu o
Prado, e as árvores do Pomar caíram umas sobre as outras,
causando ondas de perturbação tão furiosas que puderam ser
sentidas em todos os cosmos. Tsunamis de nuvens negras tão
fortes que cegou todos os anjos e esmagou sua glória. Tinha
acontecido algo mais, antes da destruição do Prado, algo como...
Uma visita do futuro...
Um valente anjo brilhante tinha aparecido durante a
chamada — dizendo ser Daniel vindo do futuro.
Havia uma tristeza em seus olhos, que parecia tão antiga.
Aquele anjo — esta... versão da alma de Daniel — havia
realmente sofrido?
Pela Lucinda?
Daniel fervia de raiva. Ele encontraria Lúcifer, o anjo que
viveu na morte de todas as ideias. Daniel não temia o traidor que
outrora foi a Estrela da Manhã. Onde, ou quando quer que
chegasse ao fim desse esquecimento, Daniel teria sua vingança.
Mas primeiro ele encontraria Lucinda, pois sem ela nada
importava. Sem seu amor, nada era possível.
Aquele amor era tão verdadeiro que tornou inconcebível a
escolha entre Lúcifer ou Trono. O único lado que ele sempre
escolheria seria o dela. Agora Daniel pagaria por essa escolha,
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mas ele ainda não entendia a forma que essa punição tomaria. Só
sabia que ela sairia do lugar ao qual pertencia: ao seu lado.
A dor da separação de sua alma gêmea percorria Daniel, de
repente, afiada e brutal. Ele gemia sem palavras, sua mente
nublou, e de repente, assustadoramente, ele não conseguiu
lembrar-se do porquê.
Ele caia para frente e para baixo em meio à densa escuridão.
Ele já não podia ver, sentir ou lembrar-se de como tinha
terminado aqui, nada, vagando pelo nada — para onde? Por
quanto tempo?
Sua memória falhou e desvaneceu. Era mais e mais difícil
de lembrar as palavras ditas pelo anjo no Prado, que parecia tão...
Que tinha aquele anjo que parecia tão semelhante? E o que
ele havia dito que era tão importante?
Daniel não sabia, não sabia mais nada.
Só que estava caindo no vazio.
Ele estava cheio de desejo de encontrar alguma coisa...
Alguém.
Um desejo de se sentir inteiro novamente.
Mas só havia escuridão dentro da escuridão.
O silêncio abafando seus pensamentos —
Um nada que era tudo.
Daniel caiu.
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U M
O LIVRO DOS OBSERVADORES
— Bom dia.
Uma mão quente acariciou a bochecha de Luce e colocou
uma mecha de cabelo atrás de sua orelha.
Rolando para o lado, ela bocejou e abriu os olhos.
Havia dormido profundamente, sonhando com Daniel.
— Oh, — ela ofegou, sentindo sua bochecha. Ali estava ele.
Ele estava sentado ao lado dela. Usava um suéter preto e
tinha amarrado ao pescoço o mesmo cachecol vermelho que usava
quando ela o viu pela primeira vez na Sword & Cross. Ele parecia
melhor que qualquer sonho.
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Seu peso fez a beirada da cama afundar um pouco, e Luce
emaranhou suas pernas para se aconchegar mais perto dele.
— Você não é um sonho — disse ela.
Seus olhos estavam mais turvos que de costume, mas eles
ainda tinham o brilho intenso de violeta enquanto olhava para seu
rosto. Estudando suas feições como se não fosse vê-la outra vez.
Ele se inclinou e apertou seus lábios contra os dela.
Luce o abraçou, enrolando seus braços ao redor de sua nuca,
feliz ao beijá-lo de volta. Ela não se importava com o fato de que
precisava escovar os dentes e que seu cabelo deveria estar um
caos. Ela não se importava com nada além de seu beijo. Eles
estavam juntos agora e nenhum deles conseguia deixar de sorrir.
Então tudo voltou correndo:
Garras que pareciam navalhas e olhos vermelhos sombrios.
O sufocante cheiro de morte e podridão. Escuridão por todos os
lados, tão completa em sua condenação que fazia a luz, o amor e
tudo o que há de bom nesse mundo sentirem-se cansados,
quebrados e mortos.
Esse Lúcifer que tinha sido alguém para ela — Bill, a
teimosa gárgula de pedra que ela pensou ser um amigo — era
impossível. Ela o deixou se aproximar, e agora, porque ela não
havia feito precisamente o que ele desejava — Escolher não matar
sua alma no antigo Egito — ele decidiu limpar a lousa.
Voltar ao tempo e apagar tudo, desde a Queda.
Cada vida, cada amor, cada momento que cada alma mortal
ou angelical tenha experimentado seria destruído e descartado por
um capricho irresponsável de Lúcifer. Como se o mundo fosse
um jogo de tabuleiro e ele uma criança mimada que chora e quer
desistir assim que começa a perder. Mas o que ele queria ganhar
com isso? Luce não fazia a menor ideia.
Sua pele estava quente lembrando sua ira. Ele queria que
ela visse, que tremesse em suas mãos quando ele a levou de volta
ao tempo da Queda.
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Então, deixando-a de lado, ele lançou um Anunciador
como uma rede para capturar os anjos que caiam do céu.
Assim que Daniel a pegou em meio à escuridão daquele
lugar não estrelado, Lúcifer desapareceu, como se nunca tivesse
existido, e todo o ciclo começaria novamente.
Foi uma jogada drástica. Daniel explicou que para guiar os
anjos para o futuro, Lúcifer teria que confrontar se unir ao seu eu
passado e renunciar seu poder. Até que os anjos caíssem, ele seria
incapaz de fazer qualquer coisa.
Assim como o resto deles, ele cairia em um isolamento
impotente, com seus irmãos, mas separado, juntos e sós.
E uma vez que caíssem na Terra, haveria um salto no
tempo e tudo começaria de novo. Como se os sete mil anos entre
aquela época e agora nunca houvessem acontecido.
Luce, finalmente, começou a entender sua maldição.
O mundo inteiro estava em perigo — a menos que Luce,
sete anjos e dois Nephilim pudessem detê-lo. Tinham apenas nove
dias e nenhuma ideia de por onde começar.
Luce estava tão cansada na noite anterior que não se
lembrava de ter deitado na cama e se enrolado até os ombros com
esse cobertor azul. Havia teias de aranhas nas vigas da pequena
cabana, e uma mesa cheia de xícaras de chocolate quente que
Gabbe havia preparado para todos na noite anterior. Mas tudo
parecia um sonho para Luce. Seu voo no Anunciador até esta
pequena ilha Tybee, uma zona segura para os anjos, havia sido
borrada por uma exaustão ofuscante.
Ela tinha adormecido, enquanto os outros ainda estavam
conversando, deixando a voz calma de Daniel entrar em seus
sonhos. Agora, a cabana estava silenciosa, e, na janela atrás da
silhueta de Daniel o céu estava no cinza de um quase amanhecer.
Ela estendeu a mão para tocar sua bochecha. Ele virou a
cabeça e beijou o interior da palma da mão dela. Luce apertou os
olhos para impedir o choro. Por que, afinal de contas, depois de
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tudo que eles tinham passado, Luce e Daniel tinham que vencer o
Diabo para poder ser livres para amar?
— Daniel. — a voz de Roland chamou na porta da cabana.
Tinha as mãos dentro dos bolsos de seu casaco de lã e usava um
gorro de lã cinza que contornava seu penteado rastafári. Deu um
sorriso cansado para Luce. — Está na hora.
— Hora de quê? — Luce apoiou-se nos cotovelos. —
Estamos indo embora? Já? E os meus pais? Eles provavelmente
estão em pânico.
— Pensei em te levar para casa agora, — Daniel disse, —
para dizer adeus.
— Mas como vou explicar o meu desaparecimento após o
jantar de Ação de Graças?
Ela se lembrou das palavras de Daniel na noite passada:
Embora parecesse que eles passaram uma eternidade dentro dos
Anunciadores, no tempo real se passaram apenas algumas horas.
Ainda assim, para Harry e Doreen algumas horas com sua
filha desaparecida era uma eternidade.
Daniel e Roland trocaram um olhar.
— Eu cuidei disso, — disse Roland, entregando a Daniel o
molho de chaves do carro.
— Como cuidou disso? — Luce perguntou — Uma vez
meu pai chamou a polícia porque eu estava meia hora atrasada
após a escola.
— Não se preocupe criança, — disse Roland. — Nós te
daremos cobertura. Você só precisa trocar de roupa. — Ele
apontou para uma mochila pendurada na cadeira de balanço perto
da porta. — Gabbe trouxe suas coisas.
— Hum, obrigada. — ela disse confusa. Onde estava
Gabbe? Onde estavam os outros? A cabana pareceu acolhedora na
noite anterior, com o brilho de asas de anjos e cheiro de chocolate
quente e canela. A lembrança daquele aconchego, junto com a
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promessa de dizer adeus a seus pais sem saber para onde ia, fez
esta manhã parecer vazia.
O piso de madeira era áspero contra seus pés descalços.
Olhando para baixo, ela percebeu que ainda usava o estreito
vestido branco do Egito, a última vida que visitou através dos
Anunciadores. Bill tinha a feito usar.
Não, Bill não. Lúcifer. Ele deu um sorriso de aprovação
quando ela guardou a seta estelar em sua cintura, contemplando o
conselho que havia dado a ela sobre como matar sua alma.
Nunca, nunca, nunca. Luce tinha muito para viver.
Dentro da antiga mochila verde que ela usou no
acampamento de verão, Luce encontrou seu par de pijamas
favorito — um drapeado com listras vermelhas e brancas, com
pantufas brancas combinando. — Mas, é de manhã, — disse ela.
— Porque preciso de pijamas?
Mais uma vez Daniel e Roland trocaram um olhar, e desta
vez, Luce poderia jurar que eles estavam tentando não rir.
— Só confie em nós. — disse Roland.
Depois de se vestir. Luce seguiu Daniel para fora da
cabana, deixando que seus ombros largos a protegessem do vento
forte enquanto caminhavam pelo caminho de pedras na água.
A pequena ilha Tybee ficava a cerca de uma milha da costa
de Savannah. Após esse trecho de mar, Roland tinha prometido
que haveria um carro esperando.
As asas de Daniel estavam escondidas, mas ele deve ter
sentido seu olhar no lugar onde elas deveriam estar. — Quando
tudo estiver em ordem, voaremos para onde quer que seja até
parar Lúcifer. Mas por enquanto, é melhor ficar longe do céu.
— Tudo bem. — disse Luce.
— Corrida até o outro lado?
Sua respiração congelou o ar. — Sabe que eu te vencerei.
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— Verdade. Ele passou o braço em volta de sua cintura,
aquecendo-a. — Talvez seja melhor pegar o barco, então. E
proteger meu famoso orgulho.
Ela observou-o desamarrar um pequeno barco a remo do
pequeno porto. A luz suave sobre a água à fez lembrar-se de
quando apostaram uma corrida no lago secreto da Sword & Cross.
A pele dele havia brilhado quando emergiu na grande rocha para
retomar o fôlego, e então descansaram, deixando o calor do dia
secar seus corpos. Ela conhecia pouco de Daniel, — não sabia que
ele era um anjo — mas já estava perigosamente apaixonada por
ele.
— Nós costumávamos nadar juntos na minha vida do Taiti,
não era? Ela perguntou surpresa por lembrar-se de outra vez em
que viu o cabelo de Daniel brilhando com a água.
Daniel a olhou e ela compreendeu o quanto significava
para ele ser finalmente capaz de compartilhar algumas das
memórias de seu passado. Ele pareceu tão comovido que Luce
pensou que ele poderia chorar.
Em vez disso ele beijou a testa dela carinhosamente e disse:
— Você me venceu todas às vezes, também, Lulu.
Não falaram muito enquanto Daniel remava. Foi o
suficiente para Luce apenas assistir o modo como os músculos
dele se contraíam e flexionavam a cada remada, ouvindo os remos
entrando e saindo da água fria, respirando a salmoura do oceano.
O sol estava nascendo atrás de seus ombros, aquecendo a parte de
trás do seu pescoço, mas quando se aproximaram da encosta, ela
viu algo que lhe enviou um arrepio na espinha.
Um carro. Ela reconheceu o Taurus branco imediatamente.
— O que há de errado? Daniel viu sua postura enrijecer
enquanto o barco tocava a costa. — Ah, isso. — Ele parecia
despreocupado, pulou fora do barco e estendeu uma mão para
Luce. O chão estava coberto e tinha um cheiro forte. Lembrou a
Luce de sua infância.
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— Não é o que você pensa. — disse Daniel — Quando
Sofia fugiu da Sword & Cross, depois de... — Luce estremeceu,
esperando que ele não dissesse ‘de ela ter assassinado Penn’ —
descobrirmos quem ela realmente era, os anjos confiscaram seu
carro. — Seu rosto endureceu — Ela nos deve muito mais. —
Luce lembrou do rosto branco de Penn, o sangue abandonando-o.
— Onde Sophia está agora?
Daniel balançou a cabeça — Eu não sei, infelizmente. Mas
provavelmente descobriremos em breve. Tenho a sensação de que
ela arrumará um jeito de tentar estragar nossos planos. — tirou as
chaves do bolso e abriu a porta do passageiro. — Mas isso não é
algo com que você deva se assustar agora.
— Tudo bem. — Luce respondeu olhando para ele
enquanto sentava no estofado cinza do assento.
— Não há algo com o qual deveria estar preocupada agora?
Daniel girou a chave e o carro lentamente ganhou vida. Na
última vez que se sentou nesse assento ela estava preocupada por
estar no carro sozinha com ele. Foi na noite em que se beijaram
pela primeira vez — até onde ela sabia, naquele momento. Ela
estava colocando o cinto de segurança quando sentiu seus dedos
sobre os dela. — Lembre-se, — ele disse, amarrando a fivela de
seu cinto, deixando sua outra mão permanecida sobre a dela. —
você tem um truco.
Ele a beijou suavemente no rosto, em seguida, colocou o
carro para fora da floresta úmida até a estreita estrada de asfalto.
Eles eram os únicos na estrada.
— Daniel? — Luce perguntou novamente. — Com o que
mais eu deveria me preocupar? — Ele olhou para seu pijama. —
Você é boa em fingir que está doente?
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O Taurus branco oscilou no beco atrás da casa de seus pais,
enquanto Luce subia as três árvores de azaléa próximas à janela
de seu quarto. No verão haveria vinhas de tomates rastejando para
fora da terra escura, mas no inverno o pátio parecia triste e estéril,
mal parecia sua casa. Ela não conseguia lembrar-se da última vez
que parou aqui. Havia escapado de três escolas diferentes, mas
nunca da casa de seus pais. Agora estava escalando para entrar, e
nem sabia como abrir sua janela. Luce olhou ao redor, podia ver
seu bairro ainda adormecido, o jornal matinal embalado na beira
do gramado de seus pais. A velha cesta de basquete sem rede na
casa dos Johnson’s, do outro lado da rua. Nada havia mudado
desde que ela partiu. Nada havia mudado, exceto Luce. Se Bill
conseguisse, será que este bairro também desapareceria?
Deu uma última olhada para Daniel, que assistia a tudo do
carro, respirou fundo, e usou seus polegares para subir na base
com pintura azul rachada da janela. Deslizou para direita e subiu.
Havia alguém em seu quarto. Luce parou atordoada, quando as
cortinas de musselina branca separaram-se e os cabelos meio-
loiros, meio-escuros de sua ex-inimiga Molly Zane encheram o
espaço aberto.
— E aí, bolo de carne.
Luce se irritou com o apelido que ela ganhou em seu
primeiro dia na Sword & Cross. Era isso o que Daniel e Roland
queriam dizer quando disseram que tinham tomado conta das
coisas em casa?
— O que você está fazendo aqui, Molly?
— Vamos lá. Não vou morder. — Molly estendeu a mão.
Suas unhas estavam lascadas, verde esmeralda.
Luce segurou firme na mão de Molly, abaixou-se e se
esgueirou, uma perna de cada vez, pela janela.
Seu quarto parecia pequeno e ultrapassado, como uma
cápsula do tempo deixada há muito tempo, por alguma Luce. Lá
estava o cartaz emoldurado da Torre Eiffel na parte de trás de sua
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porta. Ali estava o seu boletim cheio de fitas da equipe de natação
Thunderbolt Elementary. E ali, sob a impressão havaiana verde-e-
amarela do edredom, estava sua melhor amiga, Callie.
Callie saiu debaixo das cobertas, correu ao redor da cama,
e se atirou nos braços de Luce.
— Eles me diziam que você ia ficar bem, mas de qualquer
maneira pareciam mentir com aquele ar de quem diz todos-estamos-
completamente-aterrorizados-mas-não-podemos-explicar-nada-a-
você. Percebe o quão foi assustador? Foi como se você tivesse,
literalmente, sumido da face da terra.
Luce abraçou-a com força. Callie sabia que Luce só havia
desaparecido na noite anterior.
— Ok, vocês duas — grunhiu Molly separando Luce de
Callie — podem fazer suas caras de “AI MEU DEUS!” depois.
Eu não deitei na sua cama com aquela peruca de poliéster barato a
noite inteira fingindo ser a Luce com gripe estomacal para que
vocês pudessem destruir nosso disfarce agora. — Ela revirou os
olhos — Amadoras.
— Espera um pouco. Você fez o quê? — Perguntou Luce.
— Depois que você... desapareceu — Callie disse sem
fôlego — nós sabíamos que nunca poderíamos explicar isso para
seus pais. Quer dizer, eu mal podia imaginar depois de ter visto
com meus próprios olhos. — Então eu disse a eles que você
estava se sentindo adoentada e tinha ido para a cama, Molly
fingiu ser você e...
— Por sorte eu encontrei isto no seu armário, — Molly
girou a peruca preta curta e ondulada em um dedo — resíduos do
Halloween?
— Mulher Maravilha. — Luce estremeceu, lamentando sua
fantasia de Halloween do colegial, não pela primeira vez.
— Bem, funcionou.
Era estranho ver Molly — que tinha escolhido o lado de
Lúcifer uma vez — ajudá-la. Mas nem mesmo Molly, assim como
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Cam e Roland, queria cair de novo. Então, lá estavam eles, uma
equipe.
— Você me acobertou? Eu não sei o que dizer. Obrigada.
— Tanto faz. — Molly sacudiu a cabeça na direção de
Callie, qualquer coisa para desviar a gratidão de Luce. — Ela foi
a verdadeira mente diabólica. Agradeça a ela. — Colocou uma
perna para fora da janela aberta e se virou para dizer — Acham
que podem lidar com isso daqui? Eu tenho uma reunião de cúpula
na Casa do Waffle.
Luce levantou o polegar para Molly e desabou em sua cama.
— Oh, Luce, — Callie sussurrou. — quando você saiu, seu
quintal inteiro ficou coberto de uma poeira cinza. E aquela menina
loira, a Gabbe, moveu a mão uma vez e fez desaparecer.
Então, dissemos que você estava doente e que todo mundo
tinha ido para casa, e começamos a lavar os pratos com os seus
pais. E no começo eu pensei que Molly era uma garota um pouco
terrível, mas ela é realmente legal.
Seus olhos se estreitaram. — Mas afinal, para onde você
foi? O que aconteceu com você? Você me assustou.
— Não sei nem por onde começar. — disse Luce —
Desculpa.
Houve uma batida, seguida pelo rangido familiar da porta
de seu quarto se abrindo.
A mãe de Luce estava no corredor, com os cabelos
embaraçados puxados para trás por um clipe amarelo-banana,
com o rosto livre de maquiagem, era bonita. Ela estava segurando
uma bandeja com dois copos de suco de laranja, dois pratos de
torradas com manteiga, e uma caixa de pastilhas efervescentes. —
Parece que alguém está se sentindo melhor.
Luce esperou até que sua mãe colocasse a bandeja na mesa
de cabeceira, em seguida, colocou os braços em volta da cintura
da mãe e escondeu o rosto em seu roupão de veludo rosa.
Lágrimas caiam de seus olhos. Ela fungou.
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— Minha garotinha, — disse a mãe, tocando a testa e
bochechas de Luce para verificar se havia febre. Ela não usava
aquela voz suave e doce com Luce há anos, e ela se sentiu tão
bem ao ouvi-la.
— Eu te amo, mãe.
— Não me diga que ela está muito doente para a Black
Friday1. — O pai de Luce apareceu na porta, segurando um
regador verde de plástico. Ele estava sorrindo, mas por trás dos
óculos sem armação, seus olhos pareciam preocupados.
— Estou me sentindo melhor — Luce disse — mas...
— Oh, Harry, — a mãe de Luce, disse. — Você sabe que
nós só a tínhamos por um dia. Ela tem que voltar para a escola. —
e virou-se para Luce. — Daniel ligou há pouco tempo, querida.
Ele disse que pode buscá-la e levá-la de volta à escola. Eu disse
que, claro, seu pai e eu ficaríamos felizes, mas...
— Não, — Luce disse rapidamente, lembrando o plano que
Daniel havia detalhado no carro. — Você deve manda-los fazer
suas compras na Black Friday. É uma tradição familiar dos Price.
Ficou acordado que Luce seria levada por Daniel, e seus
pais levariam Callie até o aeroporto. Enquanto as meninas
comeram o pequeno-almoço, os pais Luce sentaram-se na beirada
da cama e falaram sobre o dia de Ação de Graças (“Gabbe poliu
toda a porcelana — que garota angelical”). Em seguida mudaram
o assunto para as ofertas que estavam em busca na Black Friday
("Tudo o que seu pai sempre quer são ferramentas"), Luce
percebeu que ela não tinha dito nada, exceto por simples
expressões de conversação como "Uh-huh" e "Ah, sério?".
1 Black Friday é um termo criado pelo varejo americano para nomear ação de vendas anual, que
acontece na última sexta-feira de novembro, após o feriado de Ação de Graças, onde as lojas
oferecem grandes descontos nos seus produtos.
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Quando seus pais finalmente se levantaram para levar os
pratos para a cozinha, e Callie começou a arrumar as malas, Luce
foi até o banheiro e fechou a porta.
Ela estava sozinha pela primeira vez no que parecia ser um
milhão de anos. Sentou-se no banquinho da penteadeira e se
olhou no espelho.
Era ela mesma, mas diferente. Claro, Lucinda Price estava
olhando diretamente para si. Mas também...
Havia Layla na plenitude de seus lábios, Lulu nas ondas
grossas de cabelo, a intensidade Lu Xin no avelã de seus olhos, a
covinha de Lúcia em sua bochecha, pronta para travessuras. Ela
não estava sozinha. Talvez nunca estivesse sozinha novamente.
Ali, no espelho, estavam cada uma das encarnações de Lucinda
olhando para ela e perguntando, O que será de nós? E da nossa
história, e nosso amor?
Ela tomou um banho e colocou um jeans limpo, suas botas
de montar pretas, e um longo suéter branco. Sentou-se na mala
Callie, enquanto sua amiga esforçava-se para fechá-la. O silêncio
entre elas era brutal.
— Você é minha melhor amiga, Callie, — Luce disse
finalmente. — Eu estou passando por algo que eu não entendo.
Mas não há nada de errado com você. Desculpa, não sei como ser
mais específica, mas eu senti sua falta. Muito.
Havia tensão nos ombros de Callie. — Você costumava me
contar tudo. — Mas o olhar trocado entre elas fez com que ambas
soubessem que isso já não era mais possível.
A porta do carro bateu lá fora.
Através das cortinas abertas Luce assistiu Daniel fazer o
percurso até seus pais. E mesmo que fizesse menos de uma hora
desde que ele a deixou, Luce sentiu suas bochechas corarem com
a visão dele. Ele caminhou lentamente, como se estivesse
flutuando, seu cachecol vermelho voando atrás de si com o vento.
Até mesmo Callie olhou.
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Os pais de Luce estavam juntos na sala de estar. Ela
abraçou cada um deles por um longo tempo — papai primeiro,
então mamãe e por fim Callie, que lhe apertou forte e sussurrou
rapidamente — O que eu vi você fazendo ontem à noite, foi
maravilhoso. Só quero que saiba disso.
Luce sentiu seus olhos arderem novamente. Apertou Callie
e sussurrou obrigada.
Em seguida, caminhou em direção aos braços de Daniel e
ao que quer que seja que o destino tenha preparado para eles.
— Aí estão vocês, pombinhos, fazendo aquilo os pombinhos
costumam fazer — Ariane cantou, balançando a cabeça para fora,
atrás de uma longa estante. Ela estava sentada de pernas cruzadas
em uma cadeira de madeira da biblioteca, fazendo malabarismo
com algumas bolas Hacky Sack2. Estava usando um macacão e
botas de combate, e seu cabelo escuro estava trançado com
minúsculas tranças.
Luce não ficou muito feliz por estar de volta à biblioteca da
Sword & Cross. Ela havia sido reformada desde o incêndio que a
destruiu, mas ainda cheirava como se algo grande e feio tivesse
sido queimado lá. O internato tinha explicado o incêndio como
um acidente, mas alguém tinha sido morto — Todd, um estudante
calado que Luce mal tinha conhecido até a noite de sua morte — e
Luce sabia que havia algo mais sombrio escondido nessa história.
Ela culpava a si mesma.
Agora, depois que ela e Daniel viraram a esquina de uma
estante e dirigiram-se à área de estudos da biblioteca, Luce viu
2Hacky Sack é um esporte no qual você tem que mostrar domínio sobre uma bola de tecido e
fazer muitas embaixadinhas.
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que Ariane não estava sozinha. Todos eles estavam lá: Gabbe,
Roland, Cam, Molly, Annabelle, o anjo de pernas compridas e
cabelo rosa-choque, e até mesmo Miles e Shelby, que acenaram
com entusiasmo e pareciam decididamente diferentes dos outros
anjos, mas ao mesmo tempo diferentes dos adolescentes mortais.
Miles e Shelby estavam aqui — estavam de mãos dadas?
Mas quando ela olhou novamente, suas mãos haviam
desaparecido sob a mesa na qual todos eles estavam sentados.
Miles puxou o boné de beisebol lentamente. Shelby limpou a
garganta e debruçou-se sob um livro.
— Seu livro, — Luce disse a Daniel, assim que viu o livro
de cantos desgastados e cola marrom acumulada na ponta da
lombada. Na capa desbotada leu: Os Guardiões: Mitos na Europa
Medieval, por Daniel Grigori.
Estendeu a mão automaticamente para a capa cinza pálido.
Ela fechou os olhos porque ele a lembrou de Penn, que não
deveria ter morrido, e porque a fotografia colada no interior da
capa do livro foi a primeira coisa que a convenceu de que o que
Daniel havia lhe contado sobre sua história poderia ser possível.
Era uma fotografia de outra vida, em Helston, Inglaterra. E
mesmo que isso não pudesse ser possível, não havia dúvidas
sobre isso: A jovem da fotografia era Lucinda Price.
— Onde vocês encontraram isso? — Luce perguntou.
Sua voz deve ter soado desesperada, porque Shelby disse: —
O que há de tão importante nessa coisa velha e empoeirada, afinal?
— É precioso. É nossa única chave agora. — disse Gabbe.
— Sophia tentou queimá-lo uma vez.
— Sophia? — A mão de Luce disparou em direção a seu
coração. — A Srta. Sophia tentou incendiar a biblioteca? Foi ela?
— Os outros concordaram. — Ela matou Todd! — Luce disse
entorpecida. Portanto, não tinha sido culpa de Luce. Outra vida
tirada por Sophia.
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— E ela quase morreu de choque na noite em que eu mostrei
isso para ela. — disse Roland. — Todos nós ficamos chocados,
especialmente depois que você sobreviveu para falar sobre isso.
— Nós falamos sobre Daniel ter me beijado — lembrou
Luce, corando. — E o fato de eu ter sobrevivido. Foi isso que
surpreendeu a Srta. Sophia?
— Em parte, — disse Roland. — mas há muito mais nesse
livro que Sophia não iria querer que você soubesse a respeito.
— Ela não era uma professora muito boa, era? — Cam disse.
— O que não é que ela não queria que eu soubesse?
Todos os anjos se viraram para olhar para Daniel.
— Na noite passada nós dissemos que nenhum dos anjos
lembra onde pousamos quando caímos. — disse Daniel.
— Sim, sobre isso. Como é possível? — Shelby disse. —
Pensei que esse fosse o tipo de coisa que fica para sempre na
memória.
O rosto de Cam ficou vermelho. — Tente cair por nove dias,
através de múltiplas dimensões e trilhões de quilômetros,
aterrissando de rosto, quebrando suas asas, ficando com um
enorme número de concussões, vagando pelo deserto por décadas
à procura de qualquer indício sobre quem você é, ou onde está; e
depois venha falar comigo sobre memória.
— Ok, vocês tiveram problemas. — Shelby disse em voz
baixa. — Mas eu não perguntei a você.
— Bem, ao menos vocês lembram que havia um deserto
envolvido. — Miles disse diplomaticamente, fazendo Shelby rir.
Daniel voltou-se para Luce. — Escrevi este livro depois de
te perder no Tibete... mas antes de conhecê-la na Prússia. Sei que
você visitou sua vida no Tibete, porque te segui até lá, então
talvez você possa entender como perder você daquela maneira me
fez passar anos pesquisando e estudando para encontrar uma
maneira de quebrar essa maldição.
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Luce olhou para baixo. Aquela morte tinha feito Daniel
correr e se jogar de um penhasco. E ela tinha medo de que isso
acontecesse outra vez.
— Cam está certo, — disse Daniel. — nenhum de nós
lembra onde pousamos. Nós vagamos pelo deserto até que ele já
não fosse mais deserto, vagamos pelas planícies, os vales e os
mares até que eles tornaram a ser deserto. Até que lentamente
encontramos um ao outro e começamos a juntar as peças de nossa
história. Foi aí que lembramos que erámos anjos.
Mas havia relíquias de nossa queda, registros que a
humanidade encontrou e sem entender guardou como tesouros,
presentes que eles acham ter vindo de um deus. Durante muito
tempo as relíquias ficaram enterradas em um templo em
Jerusalém, mas durante as Cruzadas, foram roubadas e espalhadas
por vários lugares. E nenhum de nós faz ideia de onde.
— Quando fiz minha pesquisa, me concentrei na era
medieval, voltando-me para tantos recursos quanto pudesse em
uma espécie de caça ao tesouro teológico pelas relíquias. A
essência geral disso é que esses três artefatos podem ser coletados
e reunidos no Monte Sinai...
— Por que no Monte Sinai? — Shelby perguntou.
— Os canais entre o Trono e a Terra são mais próximos lá —
explicou Gabbe com uma sacudidela de cabelo. — É onde Moisés
recebeu os Dez Mandamentos, e também onde os anjos entram
quando estão entregando mensagens para o Trono.
— Pense nele como um local de mergulho de Deus —
acrescentou Ariane, enviando uma das Sack Hacky tão alto no ar
que bateu numa lâmpada.
— Mas antes que você pergunte, — Cam disse, fazendo
questão de olhar para Shelby — O Monte Sinai não é o lugar
original da queda.
— Isso seria muito fácil — disse Annabelle.
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— Se todas as relíquias estiverem reunidas no Monte Sinai
— disse Daniel — então, em tese, o local da queda será revelado.
— Em tese. — Cam zombou. — Devo ser o único a dizer
que há algumas dúvidas quanto à validade da pesquisa do Daniel...
Daniel apertou sua mandíbula. — Tem alguma ideia melhor?
— Você não acha — Cam levantou a voz — que sua teoria
coloca mais um monte de peso na ideia de que estas relíquias são
algo mais do que um boato? Quem sabe se elas podem fazer o que
supõem que pode?
Luce estudou o grupo de anjos e demônios, seus únicos
aliados nessa busca para salvar a si, Daniel... e o mundo. —
Então, é nesse lugar desconhecido que temos de estar daqui a
nove dias.
— Daqui a menos de nove dias. — disse Daniel. — Daqui a
nove dias será muito tarde. Lúcifer e o exército de anjos expulsos
do céu já terão chegado.
— Mas se não vamos vencer Lúcifer no local da queda —
Luce disse — então o quê?
Daniel balançou a cabeça. — Nós realmente não sabemos.
Nunca contei a ninguém sobre esse livro porque eu não sabia o
como poderia ser útil sem que você estivesse lá para desempenhar
a sua parte.
— Minha parte? — Luce perguntou.
— Que nós realmente não entendemos ainda — Gabbe deu
uma cotovelada em Daniel, interrompendo-o. — O que ele quis
dizer é que tudo será revelado no seu tempo.
Molly bateu na testa. — Sério? “Tudo será revelado”? É isso
o que todos vocês sabem? É isso que está acontecendo?
— Essa é sua importância — Cam disse a Luce. — Você é a
peça de xadrez que está lutando por aqui.
— O quê? — Luce sussurrou.
— Cale a boca —Daniel disse a Cam — então voltou à
atenção para Luce. — Não dê ouvidos a ele.
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Cam bufou, mas ninguém deu atenção. Seu desdém pairou
na sala como um hóspede não convidado. Os anjos e demônios
ficaram em silêncio. Ninguém vazaria qualquer outra coisa sobre
o papel de Luce em parar a Queda.
— Então, todas estas informações sobre esta caça ao tesouro
— disse ela — estão neste livro?
— Mais ou menos — disse Daniel. — Eu só tenho que
passar algum tempo com o texto para saber onde começaremos.
Os outros se afastaram para dar espaço a Daniel na mesa.
Luce sentiu a mão de Miles mão na parte de trás do seu braço.
Eles mal tinham se falado desde que ela voltou do Anunciador.
— Posso falar com você? — Miles perguntou, muito
calmamente. — Luce?
O olhar tenso em seu rosto fez Luce pensar naqueles últimos
momentos no quintal dos pais dela, quando Miles tinha criado seu
reflexo. Eles nunca haviam conversado muito sobre o beijo que
deram fora de seu quarto no dormitório da Shoreline.
Certamente Miles sabia que foi um erro, mas por que Luce
sentia como se tivesse o enganado cada vez que foi amável com
ele?
— Luce. — Era Gabbe, aparecendo ao lado de Miles. — Eu
pensei em avisar — ela olhou para Miles — que se você quiser
visitar Penn em algum momento, esse momento tem de ser agora.
— Boa ideia. — Luce assentiu. — Obrigada. — Ela olhou
para Miles se desculpando, mas ele simplesmente puxou o boné
de beisebol sobre os olhos e virou-se para sussurrar algo à Shelby.
— Aham. — Shelby tossiu indignada. Ela estava atrás de
Daniel, tentando ler o livro por cima de seu ombro. — E quanto a
mim e Miles?
— Vocês voltarão para Shoreline — disse Gabbe, soando
como os professores de Luce na Shoreline, de modo que Luce
nunca tinha notado antes. — Nós precisamos que vocês alertem
Steven e Francesca. Podemos precisar da ajuda deles, e da de
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vocês, também. — Digam a eles — ela respirou profundamente
— digam-lhes o que está acontecendo. Que o final está vindo,
embora não do modo como esperávamos. Conte-lhes tudo. Eles
saberão o que fazer.
— Tudo bem — Shelby disse carrancuda. — Você manda.
— Yodelayhee-hooooo. — Ariane pôs as mãos em concha
em frente à boca. — Se, uh, Luce quiser sair, alguém vai ter que
ajudá-la a atravessar a janela.
Ela bateu com os dedos sobre a mesa, olhando timidamente.
— Fiz uma barricada de livros perto da entrada da biblioteca
para o caso de algum curioso da Sword & Cross se sentir
inclinado a nos interromper.
— Eu ajudo. — Disse Cam descendo a mão até a dobra do
cotovelo de Luce. Ela começou a discutir, mas nenhum dos outros
anjos parecia achar que era uma má ideia. Daniel nem percebeu.
Perto da saída dos fundos, Shelby e Miles sussurraram ao
mesmo tempo um “Tenha cuidado” para Luce, com diferentes
graus de intensidade.
Cam levou-a até a janela, irradiando calor com o seu sorriso.
Deslizou a janela de vidro para cima e, juntos, olharam para o
campus onde se conheceram, onde se aproximaram e onde ele a
tinha enganado para beijá-lo. Nem todas eram más recordações...
Ele pulou a janela antes, pousando suavemente na borda, e
estendeu a mão para a ela.
— Milady.
Seu aperto era forte, e isso a fez se sentir pequena e leve
junto dele enquanto caíam do parapeito, duas histórias em dois
segundos. Suas asas estavam escondidas, mas ele ainda se movia
tão graciosamente, como se estivesse voando. Eles pousaram
suavemente na grama orvalhada.
— Acho que você não quer minha companhia — disse ele.
— No cemitério e, você sabe, no geral.
— Certo. Não, obrigado.
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— Ele olhou para o lado e enfiou a mão no bolso, tirou um
sino de prata minúsculo. Parecia antigo e tinha algo em hebraico
escrito sob ele. Ele entregou a ela. — Só precisa tocar quando
quiser uma mãozinha para voltar.
— Cam, — disse Luce. — qual o meu papel em tudo isso?
Cam estendeu a mão para tocar seu rosto, depois pareceu
pensar melhor. Sua mão pairou no ar. — Daniel está certo. Esse
não é o melhor lugar para lhe dizer.
Ele não esperou ela responder, apenas dobrou os joelhos e
começou a subir. Nem sequer olhou para trás.
Luce olhou para o campus por um momento, deixando a
familiar umidade da Sword & Cross se aderir a sua pele. Ela não
poderia dizer se a escola, com suas grandes e firmes construções
neogóticas e paisagem triste, estava igual ou diferente.
Ela caminhou pelo campus para além dos velhos prédios,
atravessando o gramado, do lado oposto ao deprimente dormitório,
até o portão de ferro forjado do cemitério. Lá, ela fez uma pausa,
sentindo arrepios subirem por seus braços.
O cemitério ainda parecia e cheirava como um ralo no meio
do campus. A poeira da batalha dos anjos havia desaparecido.
Ainda era cedo o suficiente para que a maioria dos alunos
estivesse dormindo e, mesmo assim, nenhum deles era muito
propício a estar rondando o cemitério, a menos que estivessem
pagando detenção. Atravessou o portão e caminhou entre as lápides
inclinadas e os túmulos cobertos de lama.
No canto extremo leste estava o local do descanso final de
Penn. Luce se sentou ao pé do túmulo de sua amiga. Ela não tinha
flores e não sabia nenhuma oração, então ela pôs as mãos na
grama molhada e fria, fechou os olhos, e enviou seu próprio tipo
de mensagem para Penn, preocupando-se com o fato de que ela
talvez nunca pudesse chegar até a amiga.
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Luce voltou para a janela da biblioteca sentindo-se irritada.
Ela não precisava de Cam ou do sino para resgatá-la. Ela poderia
chegar até a borda sozinha.
Foi suficientemente fácil escalar até parte mais baixa do
telhado inclinado, e de lá ela pôde subir alguns níveis, até estar
perto da borda, longa e estreita, da janela da biblioteca que tinha
cerca de dois metros de largura. Enquanto chegava mais perto,
pôde ouvir as vozes de Cam e Daniel discutindo.
— E se um de nós fosse interceptado? — A voz de Cam era
alta e suplicante. — Você sabe que somos mais fortes unidos,
Daniel.
— Se não chegarmos lá a tempo, nossa força não importará.
Seremos apagados.
Ela podia imaginá-los do outro lado da parede: Cam de
punhos cerrados, seus olhos verdes brilhando; Daniel impassível e
imóvel, com os braços cruzados sobre o peito.
— Eu não confio que você não agirá em benefício próprio.
— O tom de Cam era duro.
— Não há o que discutir. — Daniel não mudou seu tom. —
Se dividir é nossa única opção. — Os outros ficaram quietos,
provavelmente pensando a mesma coisa Luce. Ela alcançou a
janela e viu que os dois anjos estavam frente a frente. Cam e
Daniel se comportavam muito bem como irmãos para alguém
ousar entrar entre eles.
As mãos de Luce agarraram o peitoril da janela. Ela sentiu
uma breve intensidade de orgulho, que ela nunca confessaria, por
ter voltado à biblioteca sem ajuda. Provavelmente nenhum dos
anjos sequer notaria. Suspirou e deslizou uma perna para dentro.
Foi quando a janela começou a tremer.
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O vidro da janela sacudiu, e ela inutilmente tentou se
segurar enquanto girava e buscava forças para não cair da borda.
Segurou mais firme, sentindo vibrações dentro dela, como se seu
coração e sua alma estivessem tremendo também.
— Terremoto — ela sussurrou. — Um de seus pés estava
dentro da borda. Com aquele aperto no peito, mas deixando a
janela solta.
— Lucinda!
Daniel correu até a janela. E passou suas mãos ao redor dela.
Cam também estava lá, com uma mão sobre a base dos ombros
Luce e a outra na parte de trás da cabeça. As estantes ondularam e
as luzes da biblioteca piscaram quando os dois anjos a puxaram
pela janela que balançou mais um pouco antes de a armação de
vidro cair se espatifando em milhares de cacos de vidro.
Ela olhou para Daniel em busca de algum sinal. Ele ainda a
segurava pelos pulsos, mas seus olhos viajavam além dela, lá pra
fora. Ele estava observando o céu, que tinha ficado raivoso e
cinzento.
Pior que tudo isso era a prolongada vibração dentro Luce,
que a fazia sentir-se como se tivesse sido eletrocutada. Pareceu
uma eternidade, mas durou apenas cinco, talvez dez segundos até
que Luce, Cam, e Daniel estivessem caídos no chão de madeira
empoeirado da biblioteca.
Em seguida, o tremor parou e o mundo ficou em um silêncio
mortal.
— Mas que diabos! — Ariane levantou-se do chão. — Será
que fomos para a Califórnia sem meu conhecimento? Ninguém
me disse que havia falhas na Geórgia!
Cam puxou um longo caco de vidro de seu antebraço.
Luce ofegou ao ver o sangue vermelho vivo descendo até
seu cotovelo, mas seu rosto não demonstrou nenhum sinal de que
ele estivesse sentindo alguma dor. — Aquilo não foi um
terremoto. Foi uma mudança sísmica no tempo.
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— Uma o quê? — Luce perguntou.
— A primeira de muitas. — Daniel observava além da
janela quebrada, assistindo a uma porção de nuvens brancas
acumuladas no céu, agora azul. — Quanto mais perto Lúcifer
ficar, mais forte elas se tornarão. — Ele olhou para Cam, que
assentiu.
— Tic-tac, pessoal — disse Cam. — o tempo está correndo.
Precisamos voar.