espiritualidade e sentido de vida na velhice tardia · meu marido mauro e meu filho mateus são o...

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião ESPIRITUALIDADE E SENTIDO DE VIDA NA VELHICE TARDIA Anna Cristina Pegoraro de Freitas Belo Horizonte 2010

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião

ESPIRITUALIDADE E SENTIDO DE VIDA

NA VELHICE TARDIA

Anna Cristina Pegoraro de Freitas

Belo Horizonte 2010

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Anna Cristina Pegoraro de Freitas

ESPIRITUALIDADE E SENTIDO DE VIDA

NA VELHICE TARDIA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação Strictu Senso em Ciências da

Religião da Pontifícia Universidade Católica

de Minas Gerais como requisito parcial para

obtenção do título de Mestre em Ciências da

Religião.

Orientadora: Dra. Anete Roese

Belo Horizonte Pontifícia Universidade Católica

2010

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FICHA CATALOGRÁFICA Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Freitas, Anna Cristina Pegoraro de

F862 Espiritualidade e sentido de vida na velhice tardia / Anna Cristina Pegoraro de Freitas. Belo Horizonte, 2010.

203 p. : il.

Orientadora: Anete Roese Programa de Pós-Graduação Strictu Senso em Ciências da Religião Bibliografia.

1. Espiritualidade. 2. Idosos – Aspectos sociais. 3. Idosos aspectos

psicológicos . I. Roese, Anete. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação Strictu Senso em Ciências da Religião. III. Título.

CDU: 362.6

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Anna Cristina Pegoraro de Freitas

ESPIRITUALIDADE E SENTIDO DE VIDA

NA VELHICE TARDIA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação Strictu Senso em Ciências da

Religião da Pontifícia Universidade Católica

de Minas Gerais como requisito parcial para

obtenção do título de Mestre em Ciências da

Religião.

___________________________________________________________________________ Profa. Dra. Anete Roese (orientadora) – PUC Minas

___________________________________________________________________________ Profa. Dra. Beltrina da Purificação da Côrte Pereira – PUC São Paulo

___________________________________________________________________________ Prof. Dr. Amauri Carlos Ferreira – PUC Minas

Belo Horizonte, 18 de junho de 2010.

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Dedico

Ao Mauro e ao Mateus, pela cumplicidade e carinho. Amo vocês.

Aos meus pais, que sei que estão felizes por mim onde estiverem.

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AGRADECIMENTOS

Confesso que estou sem acreditar que cheguei a este momento! Tanto tenho a agradecer que gostaria imensamente de falar muita coisa bonita para cada pessoa que colaborou comigo neste processo de trabalho. Agradeço a todos de coração e com muita emoção! Recebam todos o meu abraço amigo e agradecido por tudo o que recebi de vocês!

Sinto-me uma pessoa agraciada pela vida, por ter tido tanta demonstração de carinho, força e amizade durante este período em que me dediquei ao mestrado.

Meu marido Mauro e meu filho Mateus são o meu alicerce. Sem eles eu não teria jamais conseguido chegar até aqui. Foi muita dedicação, parceria, apoio, amor incondicional, compreensão absoluta, tudo! Eu sou privilegiada por vocês serem a minha família e agradeço a Deus todos os dias por isso. Foram muitas as ausências neste período de construção deste trabalho. O abstract do Mateus, seus desenhos espetaculares das minhas “flores”, seus inúmeros power-points solicitados sempre de última hora, as comidinhas do Mauro feitas com muito carinho e sua paciência com toda a minha falta de tempo, sem o suporte de vocês eu não teria concluído este trabalho. Vocês são maravilhosos! Muito, muito, muito obrigada por tudo!

Cecília Caram, amiga irmã querida, você é um ser especial que Deus colocou no meu caminho! Sua colaboração foi muito mais do que preciosa! Além da indicação da maior parte do grupo maravilhoso de colaboradoras da pesquisa empírica, e uma em especial, seu empenho e interesse em me ver crescer na construção desse trabalho foram muito além do incentivo. Foram longas horas de escuta e força para que eu não desanimasse. Muito obrigada, mesmo, por todo o companheirismo e amizade, apoio e dedicação!

Martinha, querida amiga, obrigada pela sua escuta valiosa, apoio e incentivo também, além da confiança e do carinho! Agradeço também, pela colaboradora maravilhosa que me confiou para somar com brilhantismo à minha pesquisa empírica. Deus sempre a abençoe e a todos os seus! Você é uma luz muito especial na minha vida.

Alda, querida amiga, obrigada pelas suas preces e pela sua amizade! Esta conquista precisa ser compartilhada com você e sua família por tudo o que têm feito por mim e pelos meus queridos Mauro e Mateus. Você é maravilhosa e faz toda a diferença nas nossas vidas! Deus esteja sempre com vocês!

Sônia, querida cunhada, amiga e irmã, obrigada pelas maravilhosas pesquisas – sempre de última hora, e normalização das referências, além do carinho e apoio neste período. Deus te ilumine sempre!

Regina e Túlio queridos, obrigada pelos finais de semana que me proporcionaram estudar, ao som de galinhas, cachorros, vacas, mula e muitos e lindos passarinhos! E uma comidinha muito especial também! Deus esteja sempre com vocês, Rodrigo e Letícia!

Marcelo Diniz, meu querido amigo, muito obrigada por todo o incentivo que sempre me deu e, em especial, por ter sempre acreditado em mim como profissional e por ter compartilhado comigo a carreira docente nesta Universidade. Quando eu vi no computador a proposta do mestrado lá em Arcos, chamei-o na hora com entusiasmo e escrevemos, juntos, o e-mail para o coordenador para saber se era uma proposta interdisciplinar. Deus te ilumine!

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Lívia, querida filha número dois, muito obrigada pelo seu carinho, seu companheirismo e amizade com que compartilhou tantos momentos comigo nesta caminhada! Você é muito especial para mim! Andréa minha querida incentivadora e também companheira de viagem de trabalho, obrigada pelo carinho e força! Muito carinho também pela mãe das minhas lindas sobrinhas Clara e Stella – Karina. Vocês são minha alegria também!

Zanô, Rosélia e Zanja, obrigada pela amizade e pelo incentivo! Vocês estão também no meu coração! Foram muitos os momentos em que me aguentaram, me deram força e carinho! Deus ilumine vocês sempre!

Kátia querida, amiga e incentivadora de todas as horas, obrigada de coração pelo apoio e pela compreensão. Você é minha mais nova irmãzinha! Deus te abençoe sempre!

Fernanda Simplício, olho sempre a linda lembrança que me deu de aniversário, na qual fala que posso te chamar se precisar. E te chamei várias vezes, principalmente quando achava que estava no limite e você sempre me incentivava e me colocava lá em cima! Obrigada por tudo! Você foi minha força em vários momentos!

Agradeço à Professora Anete Roese, minha orientadora, pelas ideias inovadoras na construção do meu texto, pela preocupação com a clareza e a linguagem científica e por ter compartilhado comigo seu conhecimento e sua vivência acadêmicos. Muito obrigada, também, pelo incentivo e pela força na leitura dos meus escritos.

Prof. Dr. Flávio Senra, a forma como me acolheu quando fui conversar sobre a proposta do mestrado em Ciências da Religião foi decisiva na minha escolha em desenvolvê-lo. Obrigada!

Cássia, minha mais nova parceira de trabalho, muito obrigada pela sua dedicação primorosa na correção desta dissertação. Você foi incansável nesta sua árdua, mas sei que também gratificante, tarefa. Você coloca muito amor no que faz e isso faz toda a diferença!

João Henrique, muito obrigada pela sua preciosa colaboração na transcrição das fitas.

Minha querida Marília Maakaroun, com quem tanto aprendi, agradeço de coração pela maravilhosa carta de apresentação que fez para mim, com toda a disponibilidade, quando me inscrevi para a seleção do Mestrado. Você foi a maior incentivadora para que eu estudasse.

Sandrinha querida, minha outra irmã, sua força e incentivo para que eu seguisse em frente, acreditasse em mim e fizesse o Mestrado foram fundamentais para que eu chegasse a esta conquista, mesmo quando eu ainda não tinha a menor condição de fazê-lo. Agradeço demais pela sua generosidade, incentivo e escuta nesses anos todos. Ainda quero vibrar junto com seus filhos pelas suas futuras conquistas.

Maravilhosos colegas e amigos Maria de Lourdes Gouvêa, Juraci e Marcos Roberto, obrigada pelas orientações valiosas na construção do pré-projeto. Foi aí que comecei a me envolver na pesquisa que concluo agora.

Obrigada ao Pe. Batista Libâneo, Leonardo Boff e Paulo Agostinho pelas sugestões de leitura.

Maria Teresa, obrigada por tantos anos de apoio e pela torcida por mim, por Mauro e Mateus. Compartilho este trabalho com você com muita satisfação!

Minhas coordenadoras Jane, Ana Teresa e Raquel, obrigada, pela compreensão nas trocas de horário para facilitar meu estudo.

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Agradeço a todos os meus professores, que me fizeram compreender esta fascinante e desafiante área das ciências da religião. Em especial, agradeço ao Prof. Dr. Amauri Carlos Ferreira e ao Prof. Dr. Willian Castilho, pela paciência com que sempre me ouviram desde a construção do meu projeto.

Colegas de mestrado, obrigada! Vocês foram muito especiais para mim e conviver com vocês foi inesquecível. Agradeço, em especial, ao Wiliam, por ter compartilhado comigo, com companheirismo e humildade, a elaboração do meu projeto.

Carmô e Fran, bibliotecárias da PUC de Arcos, vocês são maravilhosas! Muito obrigada pela força, dedicação e ajuda nas pesquisas.

Agradeço ao Prof. Wanderley Chieppe Felippe e a Prof. Rita Leal pela compreensão e confiança neste período de término de escrita de dissertação.

Prof. Raul de Barros, agradeço-o pelo apoio neste período de dedicação ao mestrado e pelas palavras de incentivo para a conclusão deste trabalho.

Pe. João Marcelino querido, sei que me lê com o coração e me ouve também. Agradeço por tudo e sei que, se pudesse, estaria agora vibrando de alegria com esta dissertação. Deus esteja contigo sempre!

Agora, no final, quero agradecer ao meu grupo de colaboradoras. Vocês têm nomes de flores. Flores que foram escolhidas por vocês. Eu achei que era uma forma de homenageá-las. Vocês são flores do jardim da vida, um jardim muito rico. Contribuem com a beleza desse jardim espalhando sua sabedoria, sua arte, sua essência. São flores que veem enfrentando muitas mudanças de gerações, com ventos nem sempre a seu favor. Ventos contrários que as obrigaram muitas vezes a buscar, no mais profundo de suas raízes e nas essências à sua volta, forças para continuarem de pé, com a beleza e a vivacidade que só a maturidade pode proporcionar. Que o perfume que exalam, possa se espalhar por muito mais jardins do que apenas os que habitam. Obrigada!

Anna Cristina Pegoraro de Freitas

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Desde a idade de seis anos, eu tinha mania de desenhar a forma dos objetos. Por volta dos cinquenta, havia publicado uma infinidade de desenhos, mas tudo o que produzi antes dos sessenta não deve ser levado em conta. Aos setenta e três, compreendi mais ou menos a estrutura da verdadeira natureza, as plantas, as árvores, os pássaros, os peixes e os insetos. Em consequência, aos oitenta, terei feito mais progresso, aos noventa, penetrarei o mistério das coisas; aos cem, terei decididamente chegado a um grau de maravilha, e quando eu tiver cento e dez anos, para mim, seja um ponto, seja uma linha, tudo será vivo.

Katsushika Hokusai (1760-1849)

(ALMEIDA, 2005, p. 108-109)

[...] não há razão para se ter pena de pessoas velhas. Em vez disso, as pessoas jovens deveriam invejá-las. É verdade que os velhos já não têm oportunidades nem possibilidades no futuro. Mas eles têm mais do que isso. Em vez de possibilidades no futuro, eles têm realidades no passado – as potencialidades que efetivaram, os sentidos que realizaram, os valores que viveram – e nada nem ninguém pode remover jamais seu patrimônio do passado.

Viktor Emil Frankl (1905-1997) (FRANKL, 2006b, p.127)

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RESUMO

Esta dissertação teve como objetivo principal compreender como a vivência da

espiritualidade influencia na elaboração do sentido de vida na velhice, utilizando-se, para tal, de

uma pesquisa de abordagem qualitativa. Para embasar a análise, a revisão da literatura abordou os

conceitos de velhice em diferentes momentos da história e a velhice como um estágio do

desenvolvimento humano. Destacam-se no referencial teórico: as ideias de Erik e Joan Erikson

para a compreensão da velhice tardia, com o conceito introduzido por Joan relacionado ao nono

estágio de desenvolvimento – a gerotrancendência; os conceitos de espiritualidade de Boff e; a

compreensão de sentido de vida postulados por Viktor Frankl. Na pesquisa empírica os dados

foram coletados através de História Oral com oito mulheres entre 80 e 100 anos de idade. As

narrativas geraram três temas principais: velhice, espiritualidade e sentido de vida, que foram

desdobrados em categorias. A análise permitiu, em síntese, concluir que a espiritualidade se

mostrou um fator contribuinte fundamental para a elaboração do sentido de vida na velhice tardia.

Sempre, em todas as dificuldades, a espiritualidade está presente como fator indispensável não só

no enfrentamento das mesmas, como também – e principalmente – como colaboradora de sentido

para suas vidas. O grupo pesquisado também demonstrou que se pode viver uma velhice tardia

com qualidade de vida, dependendo do estilo de vida, da prática espiritual e da consciência

temporal, ou seja, é possível manter uma vida com sentido. Esta percepção vai ao encontro da

atual visão idiossincrática da velhice, em que cada um envelhece a sua maneira. Esse grupo

pesquisado mostrou que os estereótipos vinculados ao velho muito velho não se aplicam a ele. No

trabalho, também foram apresentadas novas possibilidades de pesquisas na faixa etária da

amostragem trabalhada, ainda pouco pesquisada em gerontologia, mas que deve ser foco de

estudos em função do envelhecimento populacional mundial e do fenômeno do aumento da

esperança de vida ao nascer. Diante dos poucos estudos desenvolvidos sobre o fator

espiritualidade na elaboração do sentido de vida na velhice tardia, do grande interesse em

pesquisas sobre envelhecimento e, principalmente, por estarmos diante de um envelhecimento

populacional irreversível e incontrolável que está mudando o perfil etário da população brasileira

e mundial, esta pesquisa é uma contribuição relevante aos estudos sobre envelhecimento.

PALAVRAS-CHAVE:

Velhice; Velhice tardia; Envelhecimento; Espiritualidade; Sentido de vida; Religiosidade;

História Oral.

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ABSTRACT

The main objective of this essay was to understand the spiritual influences relating to the

meaning of life in old age using the research of a qualitative approach. To underlie the

analysis, literature’s revision approached the concepts of old age in different moments of

history and old age as a stage of the human development. What are outstanding in the

theoretical referential are: the ideas of Erik and Joan Erikson for the comprehension of late

oldness, like the concept introduced by Joan related to the nineth stage of development – the

gerotranscendence; the concepts by Boff about spirituality and; the comprehension of the

meaning of life postulated by Viktor Frankl. In the empirical research the data was collected

through Oral History with eight women between 80 and 100 years old. The narratives

generated three main themes: old age, spirituality and meaning of life, which were unfolded

in categories. The analysis permitted, in synthesis, to conclude that spirituality happened to be

an important fundamental factor for the elaboration of the meaning of life in the late oldness.

Always, in all difficulties, spirituality is present as an indispensable factor not only in the

facing of such moments, but even – and specially – as a meaning collaborator in their lives.

The researched group also showed that they can live a late oldness with a good life quality,

depending on the life style, practice of spirituality and the temporal consciousness, that is, it is

possible to live a meaningful life. This perception leads to the current indyosincratic vision of

old age, in which one ages in their own way. These researched women showed that

stereotypes linked to the very old elderly are not applied to them. In this work, new

possibilities were introduced to research new possibilities in the age group of the sampling

that was worked with. Because there are so few studies developed about the spiritual factor

in the elaboration of the meaning of life in late oldness, the great interest in researches about

aging and, especially, for watching an irreversible and unstoppable populational aging that is

changing the age profile from Brazil and the rest of the world, this research is a relevant

contribution to the studies about aging.

KEYWORDS:

Old age; Late oldness; Aging; Spirituality; Meaning of life; Religiosity; Oral history.

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LISTA DE QUADROS

QUADRO 1 Crises psicossociais com a inclusão do nono estágio – gerotranscendência - pela pesquisadora.............................................. 31 QUADRO 2 Perfil das colaboradoras........................................................................... 70

QUADRO 3 Trechos das narrativas relacionados à categoria “velhice Percebida/temporalidade”.......................................................... 82 QUADRO 4 Trechos das narrativas relacionados à categoria “Velhice/intergeração/atualização/mudança”......................................... 85 QUADRO 5 Trechos das narrativas relacionados à categoria “Velhice/desenvolvimento de atividades e sentido de ida”................. 86 QUADRO 6 Trechos das narrativas relacionados à categoria “velhice e aceitação/integridade”............................................................................... 88 QUADRO 7 Trechos das narrativas relacionados à categoria “velhice e família”....... 90 QUADRO 8 Trechos das narrativas relacionados à categoria “Velhice e consciência de finitude/morte”............................................ 92 QUADRO 9 Trechos das narrativas relacionados à categoria “velhice e resiliência”.. 93 QUADRO 10 Trechos das narrativas relacionados à categoria “velhice e autoestima”. 95 QUADRO 11 Trechos das narrativas relacionados ao tema “espiritualidade”............. 96 QUADRO 12 Trechos das narrativas relacionados à categoria “espiritualidade e respeito à diversidade”.............................................. 97 QUADRO 13 Trechos das narrativas relacionados à categoria “espiritualidade e consciência de finitude/morte” .................................. 99 QUADRO 14 Trechos das narrativas relacionados à categoria “espiritualidade e velhice”...................................................................... 101 QUADRO 15 Trechos das narrativas relacionados à categoria “espiritualidade e fé/consciência divina/transcendência”....................... 103 QUADRO 16 Trechos das narrativas relacionados ao tema “religião como reguladora moral”.......................................................... 106 QUADRO 17 Trechos das narrativas relacionados à categoria “religião e tradição familiar”.................................................................. 107

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QUADRO 18 Trechos das narrativas relacionados à categoria “religião e fé como recurso de enfrentamento”..................................... 109 QUADRO 19 Trechos das narrativas relacionados à categoria “espiritualidade e eventos não normativos”........................................... 110 QUADRO 20 Trechos das narrativas relacionados à categoria “espiritualidade e práticas religiosas como abertura para o novo e busca de sentido”..... 113 QUADRO 21 Trechos das narrativas relacionados à categoria “sentido de vida e espiritualidade/religiosidade/velhice”...................... 115 QUADRO 22 Trechos das narrativas relacionados à categoria “sentido de vida e projetos”.................................................................... 118

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO..................................................................................................... 15

2 A VELHICE.......................................................................................................... 17

2.1. Velhice: conceito e contextos................................................................................. 17

2.2. Concepção e imagem da velhice na história........................................................... 18

2.3. Velhice em números............................................................................................... 22

2.4. Feminização da velhice.......................................................................................... 24

2.5. Velhice tardia: conceitos e preconceitos................................................................ 26

2.6. O ciclo da vida: a teoria eriksoniana...................................................................... 29

2.6.1. A gerotranscendência............................................................................................ 32

2.7. Velhice e corporeidade.......................................................................................... 34

2.8. Velhice e memória: mitos e verdades.................................................................... 36

2.8.1. Memória e reminiscências..................................................................................... 40

2.9 Velhice e consciência de finitude/morte................................................................ 41

3 ESPIRITUALIDADE E SENTIDO DE VIDA NA VELHICE......................... 44

3.1 Espiritualidade, religião/religiosidade/experiência religiosa.................................. 44

3.1.1 Espiritualidade e velhice........................................................................................ 51

3.1.2 Espiritualidade como recurso de enfrentamento e compreensão da

finitude/morte............................................................................................................... 54

3.2 Sentido de vida....................................................................................................... 56

3.2.1 O ser humano e a busca de sentido......................................................................... 57

3.2.2 Sentido de vida e velhice......................................................................................... 62

3.2.3 Sentido de vida, velhice e morte.............................................................................. 65

4 METODOLOGIA................................................................................................ 67

4.1 Tipo de Pesquisa...................................................................................................... 67

4.2 Critérios para seleção dos participantes da pesquisa............................................. 69

4.3 Caracterização dos participantes da pesquisa........................................................ 69

4.4 Coleta de dados........................................................................................................ 71

4.5 Estratégias de análise e interpretação dos dados .................................................... 73

4.5.1 Análise dos dados: temas e categorias/unidades de sentido.................................... 75

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5 ANÁLISE DOS DADOS...................................................................................... 77

5.1 As Velhices............................................................................................................. 78

5.1.1 Velhice percebida/temporalidade........................................................................... 81

5.1.2 Velhice/intergeração/atualização/mudança............................................................ 83

5.1.3. Velhice /desenvolvimento de atividades e sentido de vida................................... 85

5.1.4. Velhice e aceitação/integridade............................................................................. 87

5.1.5. Velhice e liberdade................................................................................................ 89

5.1.6. Velhice e família.................................................................................................... 90

5.1.7 Velhice e consciência de finitude/morte................................................................ 91

5.1.8. Velhice e resiliência................................................................................................ 93

5.1.9 Velhice e autoestima.............................................................................................. 94

5.2. Espiritualidade....................................................................................................... 96

5.2.1. Espiritualidade e respeito à diversidade humana................................................... 96

5.2.2. Espiritualidade e criatividade/arte......................................................................... 97

5.2.3. Espiritualidade e consciência de finitude/morte................................................... 98

5.2.4. Espiritualidade e velhice....................................................................................... 99

5.2.5. Espiritualidade e fé/consciência divina/transcendência........................................ 102

5.2.6. Espiritualidade e religião....................................................................................... 105

5.2.6.1 Religião como reguladora moral........................................................................... 105

5.2.6.2 Religião e tradição familiar................................................................................... 106

5.2.6.3 Religião e fé como recurso de enfrentamento...................................................... 107

5.2.7. Espiritualidade e eventos não normativos de vida............................................... 110

5.2.8. Espiritualidade e práticas religiosas como abertura para o novo e a busca

de sentido................................................................................................................ 111

5.3 Sentido de vida....................................................................................................... 114

5.3.1 Sentido de vida e espiritualidade/religiosidade/velhice.......................................... 115

5.3.2. Sentido de vida e projetos...................................................................................... 116

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................. 120

REFERÊNCIAS................................................................................................... 130

APÊNDICE: Roteiro de entrevista realizada com os sujeitos da pesquisa............ 138

ANEXO A: Termo de consentimento.................................................................... 140

ANEXO B: Transcrição das narrativas das colaboradoras..................................... 144

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1 INTRODUÇÃO

Meu avô torto, médico, pesquisador competente, de especial sensibilidade

musical, no dia em que completou 84 anos – já deprimido pela morte da esposa, disse-me, ao

cumprimentá-lo: “Espero que você não chegue aos 80!” Isso tem 25 anos. Eu nunca me

esqueci. Ele sentiu o peso do preconceito e da solidão. Vivamente me lembro de suas palavras

a cada comentário maldoso em relação aos velhos que escuto, principalmente aos muito

velhos. O peso do preconceito é grande. E quem tem menos de 80 anos tem a

responsabilidade de tentar ao menos rever os seus valores com relação à velhice. Só assim,

acredito, poderemos colaborar para a mudança de paradigmas sociais, históricos e culturais.

Ainda na família, muitos anos após o fato relatado acima, minha mãe desenvolveu

a Doença de Alzheimer e faleceu há dois anos, aos 79 anos, após dez anos de muito

sofrimento. Acredito ser dispensável falar do meu interesse em compreender a velhice e

tentar não somente estudá-la e pesquisá-la, mas, principalmente, percebê-la e senti-la. Foi o

que tentei fazer por minha mãe inúmeras vezes, quando ela não mais podia: sentia frio por ela,

calor por ela, fome por ela e tudo o mais possível por ela. Penso que apenas quando nos

abrimos para a percepção e para o sentimento do outro é que podemos começar a elaborar

alguma ação transformadora para colaborar em seu benefício.

A velhice, até muito pouco tempo, era tida como algo humilhante e vergonhoso,

um tabu que se tentava não falar, nem comentar. A escritora Simone de Beauvoir (1990, p. 8)

comenta em seu livro “A velhice”, escrito em 1970, que quando dizia que estava

desenvolvendo um “ensaio sobre a velhice, quase sempre as pessoas exclamam: ‘Que ideia!...

Mas você não é velha!... Que tema triste...’” Ela diz em seguida: “Aí está justamente porque

escrevo: para quebrar a conspiração do silêncio”.

O foco deste trabalho é a compreensão de como o fator espiritualidade pode

influenciar na construção de sentido de vida na velhice tardia. Assim, o objetivo geral da

pesquisa ficou definido como:

- compreender como a vivência da espiritualidade influencia na elaboração do sentido de vida

na velhice.

Para atingi-lo foram formulados os seguintes objetivos específicos:

- analisar as concepções sobre envelhecimento, espiritualidade e sentido de vida;

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- compreender a relevância do fator espiritualidade na elaboração do sentido de vida na

velhice;

- apresentar e interpretar a compreensão da vivência espiritual na velhice tardia.

Para alcançar tais objetivos, depois deste primeiro capítulo de Introdução, os dois

próximos capítulos da dissertação são destinados ao desenvolvimento do referencial teórico

escolhido para a melhor compreensão do tema.

Assim, o segundo capítulo desenvolve a compreensão da velhice: conceitos,

imagem na história, dados sobre o envelhecimento populacional, feminização da velhice,

velhice tardia, contribuições de Erik e Joan Erikson à velhice tardia, corporeidade, memória

no velho, reminiscências, consciência de finitude e morte.

O terceiro capítulo versa sobre os conceitos de espiritualidade e sentido de vida.

Sendo espiritualidade um conceito muito amplo e profundamente estudado em ciências da

religião, foi definida uma escolha conceitual, baseada em Leonardo Boff, com a função de

nortear o desenvolvimento do tema. A seguir, foi trabalhada a definição de sentido de vida

com base nas propostas de Viktor Frankl.

O quarto capítulo abrange a metodologia escolhida para o desenvolvimento da

pesquisa empírica. Foi uma pesquisa de abordagem qualitativa que utilizou a História Oral

Temática como método orientador da pesquisa. A proposta inicial dessa pesquisa, desde seu

projeto, foi de trabalhar com pessoas acima de 75 anos. Por acessibilidade definiu-se por um

grupo composto por mulheres entre 80 e 100 anos.

O quinto capítulo apresenta os temas gerados pelas narrativas: velhice,

espiritualidade e sentido de vida, com suas respectivas categorias, permeados pela análise dos

dados obtidos.

Para finalizar a dissertação, as considerações finais são apresentadas no capítulo

sexto.

Desenvolver esse trabalho se constituiu um grande desafio. Espiritualidade e

sentido de vida na velhice tardia trazem em uma só proposta principalmente os conceitos

paralelos das ciências da religião e da psicologia, temas relativamente novos em pesquisas

científicas sobre a velhice. Velhice tardia é um tema que ainda está iniciando sua trajetória

como tema de interesse para estudiosos da área do envelhecimento. Logo, velhice tardia,

sentido de vida e espiritualidade são temas que podem gerar preconceitos, dúvidas e

questionamentos. São instigantes, em minha opinião.

A seguir, será apresentado, então, o primeiro capítulo, que discorre sobre o tema

da velhice.

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2 A VELHICE

Nada deveria ser mais esperado e, no entanto, nada é mais imprevisto que a velhice. [...] Aos 20 anos, aos 40 anos, imaginar-me velha é imaginar-me outra. Há algo amedrontador em toda metamorfose (BEAUVOIR, 1990, p. 11).

O que é envelhecer? Essa é uma pergunta que sempre se apresenta, explícita ou

implicitamente, em congressos, seminários, aulas, filmes, textos e, até mesmo, em bate-papos

informais. Beauvoir (1990, p. 17), em seu livro A velhice, faz e responde esta questão: “[...] o

que é envelhecer? Esta ideia está ligada à ideia de mudança”, comentando o fator dinâmico da

velhice como “o resultado e o prolongamento de um processo”.

Neste capítulo, serão desenvolvidas questões pertinentes ao envelhecer, baseadas

em um levantamento de estudos e pesquisas atuais da área, a fim de facilitar ao leitor uma

melhor compreensão desse período da existência humana.

2.1 Velhice: Conceito e contextos

Conforme a denominação da Organização Mundial de Saúde (OMS), em países

em desenvolvimento, como o Brasil, a velhice corresponde à fase adulta a partir de 60 anos de

idade, e nos países desenvolvidos, a partir de 65 anos (IBGE, 2002).

O estudo do envelhecimento abrange aspectos biopsicossociais, sendo a ciência

gerontológica de caráter multidisciplinar. O Decreto nº 1.948/96 regulamenta a Lei nº

8.842/94, que estabelece a Política Nacional do Idoso e, em seu artigo segundo, considera

como idosa a pessoa a partir de 60 anos de idade (VERAS, 2003). Simões (1994) classifica o

envelhecimento em quatro estágios: meia-idade (45 a 59 anos); idoso (60 a 74 anos); ancião

(75 a 90 anos) e velhice extrema (90 anos em diante).

Farinatti (2008, p. 15), em seu livro Envelhecimento, promoção da saúde e

exercício: bases teóricas e metodológicas, descreve três diferentes classificações etárias para

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a idade adulta: segundo Spirduzo, Francis e McRae1, segundo a Organização Mundial de

Saúde (OMS)2 e segundo as Organizações das Nações Unidas (ONU)3:

Segundo Spirduzo, podemos dividir a idade adulta a partir da meia-idade em: Meia-idade (middle-age adults) – 45 a 64 anos; Idosos jovens (young-old) – 65 a 74 anos; Idosos (old) – 75 a 84 anos; Idosos-idosos (old-old) – 85 a 99 anos e Extremamente idosos (oldest-old) 100 anos ou mais. [...] Segundo a OMS (1995): Idoso (60 a 74 anos); velho (75 a 90 anos) e grandes velhos (mais de 90 anos) [...] A Organização das Nações Unidas, em relatórios como a revisão de 1998 das projeções e estimativas populares mundiais (UNO, 1999), classifica: meia-idade, idoso (old ou elder) maiores de 60 anos; extremamente idoso (oldest-old); muito idoso (very old age). (FARINATTI, 2008, p. 15)

Para Shephard (2003), a idade adulta a partir da meia-idade pode ser dividida em:

Meia-idade – 40 a 65 anos; Velhice – 65 a 75 anos; Velhice avançada – 75 a 85 anos; Velhice

muito avançada – mais de 85 anos.

O dicionário Houaiss (2004, p. 754) conceitua velhice como “período da vida

humana que se segue à maturidade”. No Dicionário Aurélio (FERREIRA, 2009, p. 2043),

velhice é: “1. estado ou condição de velho; 2. idade avançada; 3. antiguidade, vetustez; 4. as

pessoas velhas; 5. rabugice ou disparate próprio de velho”.

Apesar de as classificações etárias facilitarem os limites cronológicos para o

desenvolvimento de pesquisas, elas não devem ser vistas como uma demarcação rígida para o

início da velhice, conforme comenta Alves Júnior (2009). Esse autor também ressalta o

pensamento de Pierre Bourdieu, que sugere que a utilização de um sistema com base em

idades cronológicas para a definição de quando um indivíduo se torna velho é manipulável e

contribui para o aumento das barreiras entre gerações.

Essas considerações nos levaram a uma reflexão sobre o conceito de velhice

historicamente, o que será apresentado a seguir.

2.2 Concepção e imagem da velhice na história

Apesar de termos localizado um número consideravelmente menor de estudos

sobre a velhice do que sobre qualquer outra fase do desenvolvimento humano, o crescente

1 SPIRDUZO, Waneen Wyrick; FRANCIS, Karen L.; MACRAE, Priscilla G. Physical dimensions of aging.

Champaign: Human Kinetics; Hardback, 1995. 2 ORGANISATION Mondiale de la Santé. Rapport sur la santé dans lê monde 1995: réduire lês écarts – rapport

du Directeur Gènéral. Genéve: OMS, 1995. 3 UNITED Nations Population Division. World Population Prospects: The 1998 Revision. Geneve: UNO, 1999.

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interesse sobre o envelhecimento humano pode ter sido gerado em função da atual situação

demográfica mundial. Mas, como poderemos verificar, já despertava interesse desde os

tempos mais remotos.

No ocidente, o primeiro texto relacionado à velhice que se tem notícia não é nada

animador: “No Egito, em 2500 a.C., Ptah-hotep, filósofo e poeta, declara: Como é penoso o

fim de um velho! Ele se enfraquece a cada dia; [...] A velhice é o pior dos infortúnios que

pode afligir um homem” (BEAUVOIR, 1990, p. 114). Na mitologia grega, Beauvoir comenta

que muitos deuses, ao se tornarem velhos, se convertem em cruéis e perversos. Existem

exceções, como Tirésias, que cria uma relação entre “a idade, a cegueira e a luz interior”

(Ibidem, p. 120-121).

No ano 387 a.C., Platão fundou a Academia em Atenas e escreveu obras como A

República, na qual descreveu um diálogo imaginário de Sócrates com Céfalo, personagem

idoso. Aristóteles fundou o Liceu em 336 a.C. e escreveu a Retórica, abordando vários tipos

de caracteres possíveis de se encontrar na platéia, dentre eles, o caráter dos velhos. Cícero, em

44 a.C., escreveu Saber envelhecer, no qual trabalhou questões como o declínio físico, a

memória, os prazeres mundanos e a morte. Ele faleceu no ano seguinte, em 43 a.C.. Sêneca,

que viveu entre 4 a.C. e 65 d.C., desenvolveu pensamentos sobre o processo de

envelhecimento, o tempo, a morte e a sabedoria (ZACHAREWCZ, 2003).

Segundo Beauvoir (1990, p. 115-116), nos Livros Sagrados, a longevidade é

considerada “a suprema recompensa da virtude”. Os próprios mandamentos de Deus

determinam que se deva honrar pai e mãe. Em Provérbios está escrito: “Os cabelos brancos

são uma coroa de honra: é no caminho da justiça que esta coroa é encontrada.” Em Levítico,

“tu te levantarás diante dos cabelos brancos e honrarás a pessoa do velho.”, além de

“abençoada por Deus a velhice exige obediência e respeito.” Apenas no livro de Daniel,

escrito entre 167 e 164 a.C. e chamado A história de Suzana e os dois velhos, encontra-se a

única passagem que associa a velhice ao vício e não à virtude.

Para Arthur Shopenhauer, nascido em 1788 e morto em 1860, apenas o velho é

capaz de ensinar e falar sobre a velhice, pois o longo tempo de vida contribui para uma visão

mais adequada e completa da vida (ZACHAREWCZ, 2003, p. 86).

Segundo Diogo, Neri e Cachioni, (2009, p. 14-15), no início do século XX a obra

Leçons Cliniques sur lês Maladies dês Vieillards et las Maladies Chroniques, de Jean-Marie

Charcot, médico francês, reforçou a crença da velhice como doença (DIOGO; NERI;

CACHIONI, 2009, p. 14). Em 1908, Elie Metchnikoff, cientista russo do Instituto Pasteur em

Paris, afirmou “que a velhice é uma doença infecciosa crônica caracterizada por degeneração

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ou por enfraquecimento de elementos nobres e pela atividade excessiva dos macrófagos”,

micróbios que havia coletado no sistema digestivo e que julgava responsáveis pelo

desequilíbrio celular que daria início “ao envelhecimento precoce e à morte prematura, que

são contrárias à natureza.” Apesar desta crença acerca da velhice, Metchnikoff foi

colaborador da pesquisa, décadas depois, da medicina antienvelhecimento, pois acreditava que

“a nutrição, a higiene e a atividade podem, se não curar, pelo menos aliviar as doenças

relacionadas à velhice.” Em contraposição, o médico Ignatz Leo Nacher e o cientista social G.

Stanley Hall deram grande contribuição à compreensão do processo de envelhecimento: Ambos os autores enfatizaram que a velhice não é, naturalmente, um estado patológico, como se acreditava em medicina, e nem é um retorno à infância, como se acreditava em psicologia, mas um período fisiológico e comportamental normal e distinto do ciclo vital. (DIOGO; NERI; CACHIONI, 2009, p. 15).

Com esta visão, Nacher propôs uma especialidade médica para cuidar dos

problemas associados à velhice e é considerado hoje o “pai da geriatria” (Ibidem, 2009).

Neri (1995) destaca que no livro publicado em 1922 e intitulado Senescence, the

last half of life, Stanley Hall contesta o conceito de velhice da época, critica a crença da

adolescência como reverso da velhice, enfatiza as diferenças individuais entre as pessoas e

considera a sabedoria como um privilégio da velhice. Essa obra não teve maior repercussão

por ter sido escrita numa época na qual a psicologia se interessava pelo desenvolvimento da

criança e do adolescente, mas mesmo assim, ele é considerado hoje um dos criadores da

“psicologia do desenvolvimento” (DIOGO; NERI; CACHIONI, 2009).

Na década de 50, Erik Erikson, psicanalista de origem alemã, deu uma

contribuição valiosa à Psicologia do Desenvolvimento, ao lançar o seu primeiro livro Infância

e Sociedade, considerando desenvolvimento e envelhecimento caminhando paralelamente

durante todo o ciclo vital, no qual perdas e ganhos são processos presentes e “adaptativos”.

Sua visão coincide com os paradigmas atuais da psicologia do desenvolvimento, que levam

em conta o conceito de life-span (extensão da vida), de base sociológica (NERI, 2001a, 2006).

“A essência do modelo reside na análise do impacto da sincronia ou da

assincronia entre o tempo individual, o tempo familiar e o tempo histórico sobre o

desenvolvimento individual” (NERI, 2001a, p. 15). Neste paradigma, a idade cronológica do

indivíduo não é fator determinante do envelhecimento, mas “um indicador dos eventos

biológicos, sociais e psicológicos de natureza normativa (eventos previsíveis) e não normativa

(não previsíveis)” (NERI, 2005, p. 152). O impacto causado por esses eventos é de suma

importância porque interrompem o curso normal da vida e produzem situações muitas vezes

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incertas e desafiadoras, que podem exigir muito dos recursos emocionais e sociais de cada

pessoa (NERI, 2006).

Neri (2006) apresenta a proposta desenvolvida na perspectiva life-span, formulada

por Laura Carstensen4, que é a Teoria da Seletividade Socioemocional. Ela propõe uma

maior compreensão das alterações que ocorrem no comportamento emocional na velhice e da

diminuição das interações sociais neste período da existência. Ela acredita na capacidade

adaptativa dos idosos frente a perdas no contexto social. À medida que a velhice avança, a

consciência da realidade em relação à perspectiva de tempo de vida vai contribuindo para a

criação de diferentes atitudes frente aos relacionamentos afetivos e às metas de vida. Os

projetos de vida de longo prazo passam a ser substituídos pelos de curto prazo e aumenta a

intensidade dos relacionamentos com pessoas mais próximas e significativas no círculo

familiar e social, que possam gerar experiências emocionais mais positivas (NERI, 2006).

“Envelhecer bem depende das chances do indivíduo quanto a usufruir de

condições adequadas de educação, urbanização, habitação, saúde e trabalho durante todo seu

curso de vida.” (NERI, 1995, p. 38).

A visão decadente da velhice reinou até por volta da metade do século passado,

vinculando o envelhecimento somente a perdas e a declínio. Nos países onde o

envelhecimento populacional se tornou pertinente, um novo olhar foi direcionado aos idosos a

fim de construir ações para a promoção de uma velhice melhor (NERI, 2001, p. 7).

Apesar de os estudos terem crescido a partir de meados do século XX, a mudança

de paradigmas com relação à velhice ainda exige tempo e dedicação de pesquisadores do

tema. A escritora Beth Friedan, no início dos anos 80, gerou muita polêmica quando

convidada a proferir a palestra Crescimento na Velhice. Alguns convidados, gerontólogos e

cientistas comportamentais, dentre eles Skinner (o respeitado estudioso e pesquisador do

comportamento) se recusaram a comparecer, como Skinner, alegando ser, o tema, “uma

contradição de termos” (PAPALIA; OLDS, 2000, p. 524). Paradoxalmente, em 1983, aos 79

anos, Skinner escreveu o livro Viva bem a velhice – aprendendo a programar a vida, no qual

sugere a modificação do ambiente em que o idoso vive com o intuito de promover uma

4 Neri apresenta duas referências a partir das quais apresenta a Teoria de Carstensen:

Carstensen, L.L. Motivation for social contact across the life-span: A theory of emotional selectivity. In: Jacobs JE (Org). Development Perspectives on Motivation. Nebraska Symposium on Motivation, 40. Lincoln: University of Nebraska Press, 1993, pp. 200-254 (Traduzido para o português e publicado em Psicologia do Envelhecimento, organizado por A.L.Neri. Campinas: Papirus, 1995, pp. 111-144). Carstensen, L.L. Socioemotional selectivity theory: social activity in life-span context. Annual Review of Gerontology and Geriatrics, 1991; 11:195-217.

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melhor adaptação a essa condição, baseado em suas próprias experiências (ZACHAREWCZ,

2003, p. 89).

Assim, pudemos perceber que o período da velhice era marcado, basicamente, por

uma visão pessimista. Já o conceito de desenvolvimento, associado à infância e à

adolescência, implicava a ideia de ganhos. Por meio dos novos estudos sobre envelhecimento

humano, novas concepções foram se desenhando, e uma das mais impactantes foi a de que

todo o desenvolvimento implica tanto em perdas quanto em ganhos, inclusive na velhice

(NERI, 1995).

O olhar que se tem direcionado à velhice na atualidade considera pertinente

considerar seu caráter idiossincrático, com comenta Peixoto5 (apud GUSMÃO, 2003, p.18),

quanto à existência de “maneiras singulares de envelhecer”, e não “uma velhice”. “Cada

velhice é consequência de uma história de vida que, à medida que o tempo passa, vai

acrescentando processos de desenvolvimento individual e de socialização junto ao grupo em

que se insere, internalizando normas, regras, valores, cultura”.

Como alertam Baltes e Smith (2006, p. 23), “a velhice guarda potenciais que

ainda não foram descobertos e a ciência e as políticas sociais são poderosas fontes de

mudança positiva”.

2.3 Velhice em números

O Brasil está em franco e irreversível envelhecimento populacional. “Um

indicador básico de que os indivíduos de uma população estão envelhecendo é o simples

crescimento do número absoluto de pessoas mais velhas” (BERQUÓ, 2004, p. 15).

O mundo também envelhece. Em 1950 eram 204 milhões de idosos e em 1998

eram 579 milhões. A previsão para 2050 é que chegue a 1.900 milhões de idosos em todo o

mundo (ANDREWS6 apud IBGE, 2002, p.11).

Este fenômeno é consequência do aumento da esperança de vida ao nascer

juntamente com a diminuição do índice geral de fecundidade. A esperança média de vida ao

5 Peixoto, C.E. Histórias de mulheres, de envelhecimento e sexualidade. In: Debert; G.C.; Goldstein, D. M.,

(orgs). Políticas do corpo e o curso da vida. São Paulo: Sumaré, 2000. 6 O IBGE apresenta a seguinte referência para Andrews: ANDREWS, Garry A. Los desafíos del proceso de

envejecimiento en las sociedades de hoy y del futuro. In: Encuentro latinoamericano y caribeño sobre las personas de edad, 1999, Santiago. Anais... Santiago: CELADE, 2000. p. 247-256. (Seminarios y Conferencias - CEPAL, 2).

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nascer era de 72,7 anos de idade em 2007 no Brasil, configurando um aumento de 3,4 anos na

esperança de vida da população em dez anos, de 1997 a 2007. Os dados observados são mais

favoráveis às mulheres, apresentando uma média para o mesmo período de 73,2 para 76,5

anos para o gênero feminino e de 65,5 para 69 anos para o gênero masculino (IBGE, 2008).

Segundo o IBGE, em 1996 havia 16 idosos para cada 100 crianças no Brasil. Em

2008 passou para 24,7 idosos e a previsão é que, em 2050, cheguem a 172,7 idosos para cada

100 crianças. Isso implica uma mudança radical na estrutura etária da população.

O Brasil está entre os principais países emergentes da atualidade, além de China,

Índia, Rússia e África do Sul. Chamados de BRICS, esses países possuíam, em conjunto, um

total de 273 milhões de pessoas acima de 60 anos, o que correspondia a 40,6% da população

idosa do mundo, segundo estimativas das Nações Unidas para o ano de 2005. Dentre os

BRICS, apenas a África do Sul não se encontra entre os dez países do mundo com o maior

número de pessoas idosas na contagem de sua população (IBGE, 2008).

Enquanto o aumento relativo da população brasileira em geral foi de 21,6% entre

1997 e 2007, o de pessoas com mais de 60 anos foi de 47,8% no mesmo período. Ainda maior

foi o crescimento do percentual de pessoas com 80 anos ou mais: 86,1% (IBGE, 2008). As

projeções apontam um aumento de 15 vezes na população centenária mundial, passando de

145 mil em 1999 para 2,2 milhões em 2050 (IBGE, 2002). Diante de uma população cada vez

mais longeva, o número de pessoas com cem anos ou mais no Brasil também cresceu. A

contagem da população, realizada em 5.435 municípios brasileiros em 2007 pelo IBGE,

mostrou que o número de idosos com cem anos ou mais chega a 11.422 pessoas, dos quais

7.950 são mulheres e 3.472 são homens (IBGE, 2000). Esses dados reforçam a pertinência em

se pesquisar o universo dos velhos muito velhos (acima de 80 anos), o que ainda é

precariamente estudado pela ciência, como cita Pavarini (2009).

Paradigmas são alterados frente a essa realidade. O cuidado com a pessoa velha

adquire uma abrangência maior, solicitando ajustes em inúmeros setores da nossa sociedade,

que convive, segundo Neri (1995, p. 37), com uma “ideologia da velhice”, segundo a qual

envelhecer bem só depende do indivíduo: mantendo-se ativo, engajado e útil, apesar das

perdas biológicas, econômicas, sociais e psicológicas, qualquer pessoa pode ter uma velhice

satisfatória. A realidade nos mostra que envelhecer satisfatoriamente não depende só do

indivíduo, mas também de vários outros fatores de ordem social, educacional, econômica,

familiar, de saúde, habitacional e profissional, tanto na velhice quanto durante toda a vida do

indivíduo. A autora conclui comentando sobre o conjunto de recursos que poderiam beneficiar

o alcance de uma velhice ativa:

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[...] O principal, sem dúvida é de ordem econômica, fundamental à promoção de boa saúde física e à educação ao longo do curso de vida. Outro é a adoção de providências reais no sentido de potencializar o desenvolvimento e a adaptação da pessoa humana, educando-a continuamente e realizando as adaptações sociais necessárias à sua melhor qualidade de vida. O terceiro é o estímulo à flexibilidade individual e social em relação às questões da velhice. É também importante para a sociedade lidar com as crenças vigentes em relação à velhice, tanto para saber o que as determina como para identificar suas consequências sobre o bem-estar do idoso. (NERI, 1995, p. 38).

A promulgação da Lei 8.842 em 4 de janeiro de 1994, dispõe sobre a Política

Nacional do Idoso, tendo por objetivo assegurar os direitos sociais dos idosos, criando

condições para promover sua autonomia, integração e participação efetiva na sociedade. O

artigo 3º da lei ressalta o envelhecimento populacional como alvo de interesse de toda a

sociedade e reconhece a importância da consideração das diferenças econômicas, sociais e

regionais existentes no País para o desenvolvimento de políticas direcionadas ao público

idoso (IBGE, 2002). Segundo Debert (1994, p. 23), a transformação da velhice em problema social não é o resultado mecânico do crescimento de pessoas idosas, como tende a sugerir a noção de “envelhecimento demográfico” usada pelos demógrafos e, frequentemente, utilizada pelos cientistas sociais para justificar seu interesse pessoal e o interesse social em pesquisas sobre o tema”, mas, citando Lénoir, “é uma construção social”, que como tal implica compreensão de outras dimensões.

Um novo perfil da velhice está sendo traçado, pois ao verificarmos a questão do

envelhecimento quanto ao gênero, o número de mulheres supera o de homens idosos. Em

publicação do IBGE de 2006, os dados de uma pesquisa desenvolvida pela Pesquisa Nacional

por Amostra de Domicílios (PNAD) demonstram que o número de mulheres corresponde a

52,3% da população urbana brasileira e 47% da população rural (NERI, 2007).

2.4 Feminização da velhice

O crescente número de pessoas idosas no Brasil e no mundo é evidente. A

esperança de vida ao nascer é desigual se considerado o gênero. Os dados demográficos

confirmam um número maior de mulheres do que de homens na fase mais avançada da vida.

O termo feminização da velhice, decorrente dessa realidade, aponta uma velhice onde

prevalecem problemas, transformações e cuidados mais femininos do que masculinos.

O percentual de mulheres idosas no Brasil correspondia a 54% da população de

idosos em 1991, passando a 55,1% em 2000, significando um número de 100 mulheres para

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cada 81,3 homens neste ano. Quanto ao número de anos vividos, as mulheres vivem em média

oito anos a mais que os homens (IBGE, 2002).

Atribuem-se a esse fenômeno uma série de fatores, como por exemplo, o fato de

as mulheres procurarem mais ajuda médica, fumarem e beberem menos, ficarem menos

expostas a situações profissionais de risco e, também, com a melhoria do saber obstétrico,

terem sido reduzidas as taxas de mortalidade materna. Em nossa cultura, na maioria dos

casamentos os homens são mais velhos do que as mulheres, o que colabora para que, na

velhice, o número de viúvas seja maior do que o de viúvos. Outra questão relevante é que o

índice de viúvos que se casam novamente é maior, pois a maioria das mulheres viúvas

permanece sozinha, sem outro casamento (SALGADO, 2002).

As mulheres, na velhice, enfrentam um duplo preconceito: a discriminação pela

idade e por serem mulheres. Elas são consideradas velhas em relação a um homem da mesma

faixa etária. Enquanto em nossa sociedade um homem mais velho pode possuir atributos

atrativos, as mulheres mais velhas são percebidas como decadentes. Citando Sánchez7,

Salgado (2002, p. 12) diz: “sabe-se que em uma sociedade, é melhor ser homem do que

mulher, ser jovem do que ser velho, portanto ser mulher e ser velha é duplamente

desvalorizado”.

Pode ocorrer, também, segundo alguns autores, uma “situação de risco quádruplo

para mulheres na velhice, pois são idosas, pobres, mulheres e pertencentes a uma minoria.”

(VERAS, 2003, p. 8).

Alguns fatores são apontados como positivos, pois estas mulheres longevas

podem desfrutar do convívio com diversas gerações, aproveitando as trocas intergeracionais

em longo prazo, como as relações com netos e bisnetos. A facilidade nas relações

interpessoais, característica do gênero feminino, possibilita a criação de novas relações de

amizade, que podem ser frutíferas no alcance de novas atividades ocupacionais, levando,

muitas vezes, a novos aprendizados e atualização na vida (SALGADO, 2002).

Segundo Beauvoir (1990, p. 598), principalmente para as mulheres, a fase da

velhice significa uma libertação: “submetidas durante toda a vida ao marido, dedicada aos

filhos, podem enfim, preocupar-se consigo mesmas”.

Neri (2007) comenta a importância de se fazer uma análise do processo de

feminização da velhice considerando as particularidades dos dois gêneros, visto que as

7 SÁNCHEZ, C. D. Femenización de la vejez en Puerto Rico. Puerto Rico Health and Sciences Journal, San

Juan, v. 17, n. 1, p. 49-53, 1999.

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mudanças ocorridas na vida das mulheres estão relacionadas às mudanças ocorridas na vida

dos homens. Segundo a autora,

os principais fatores protetores do envelhecimento masculino em comparação com o feminino são os seguintes: 1) os homens são geralmente casados e, dessa forma, têm maior probabilidade de serem cuidados; 2) têm status mais alto do que as mulheres; 3) desfrutam de níveis de renda e de escolaridade geralmente mais altos; 4) são menos rejeitados por causa da perda de beleza e juventude; 5) têm auto imagem mais positiva; 6) têm menos doenças crônicas e incapacidade; 7) são mais satisfeitos com a vida e têm uma percepção de saúde mais positiva (NERI, 2007, p. 61).

As particularidades existentes nos gêneros, determinadas por fatores de ordem

biológicas, psicológicas e socioculturais, necessitam de um reconhecimento social ao longo de

todo o curso de vida para que se construa uma “sociedade boa” (NERI, 2007, p.62).

2.5 Velhice tardia: conceitos e preconceitos

Apesar da demarcação cronológica para o período da velhice, Veras (2003, p.10)

faz um questionamento quanto à falta de precisão para o referido período:

Quando uma pessoa se torna velha? Aos 55, 60, 70 ou 75 anos? Nada flutua mais do que os limites da velhice em termos de complexidade fisiológica, psicológica e social. Uma pessoa é tão velha quanto as suas artérias, quanto ao seu cérebro, quanto ao seu coração, quanto seu moral ou quanto sua situação civil? Ou é a maneira pela qual outras pessoas passam a encarar as características que classificam as pessoas como velhas?

Ele complementa ressaltando a necessidade de se ver a velhice relacionando-a a

questões de ordem não só política e social, mas também ideológicas vinculadas ao termo,

ficando impossível pensar em definições universais e padronizadas para a este período

(VERAS, 2003).

Citados por Baltes e Smith (2006), Bernice Neugarten, em 1974, e Lastett, em

1991, pioneiros na proposta da existência de idades variadas no período da velhice, sugerem

uma distinção para essas idades a fim de facilitar os estudos e as pesquisas na área. Aventam

os termos velhice inicial ou idoso jovem e velhice avançada ou velho-velho correspondendo,

respectivamente, à terceira e quarta idades. Ainda ressaltam que as segmentações apresentam

um caráter variável, sujeito a mudanças, o que nos leva a perceber que as várias idades que

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compõem a velhice apresentam variações qualitativas e sem continuidade. Pesquisar as

diferenças entre estas várias idades é um dos temas de ponta em gerontologia.

Baltes e Smith (2006) acreditam que as variáveis que distinguem as características

dos velhos jovens são significativamente distintas das que caracterizam os velhos-velhos.

Enquanto a velhice inicial é vista positivamente e repleta de possibilidades, a velhice

avançada vem sendo percebida como um período de alta vulnerabilidade, repleto de

limitações que alteram o desempenho funcional do idoso, com perdas maiores do que ganhos,

com fragilidade e com morte emocional. Todas estas questões podem dificultar, inclusive, os

estudos, as pesquisas e o desenvolvimento de políticas sociais específicas para essa faixa

etária. Trata-se de um território desafiante e ainda novo no que concerne a pesquisas

interdisciplinares.

Os autores citados acima sugerem que, em termos de políticas sociais, privilegiar

a velhice em detrimento da criança e do adolescente pode ser uma decisão delicada, pois os

estudos sobre envelhecimento indicam que uma velhice satisfatória pode ser um reflexo de

todo o ciclo vital de um indivíduo. Ainda comentam que a gerontologia e o público idoso

podem ser beneficiados em longo prazo se for levado “em conta o impacto das políticas

gerontológicas sobre as pessoas de outras faixas de idade e sobre a sociedade como um todo”

(BALTES; SMITH, 2006, p. 10).

O mito de Títono, Príncipe de Tróia, é mencionado por Baltes e Smith (2006).

Segundo a lenda, a Deusa Eos (Aurora), tomada por uma grande paixão por Títono, solicitou

a Zeus que o tornasse imortal, o que lhe foi concedido. Porém Títono não foi agraciado com a

juventude eterna atribuída a outros deuses. Apesar de imortal, ele envelheceu e tornou-se cada

vez mais frágil até morrer psicologicamente. Eos então, com muito pesar, colocou-o em um

cômodo distinto, onde vegetou eternamente. Ao comentar o mito, a intenção dos autores foi

destacar que estender o período de vida dos velhos até o limite maior da velhice e tentar

oferecer-lhes saúde podem acarretar consequências mais dolorosas do que satisfatórias à

respeitabilidade humana, principalmente se os investimentos para o aumento da longevidade

continuarem sem que as políticas relacionadas à velhice sejam revistas e adequadas à nova

realidade populacional. Assim sendo, na velhice avançada, as pessoas correriam o risco de

viver e morrer indignamente.

Baltes e seus colaboradores desenvolveram estratégias para auxiliar o

desenvolvimento das capacidades “de reserva” no idoso a fim de proporcionar melhor

adaptação às situações que vão se tornando mais limitantes, possibilitando, assim, aquisição

de ganhos que irão contribuir para uma vida com mais qualidade. Uma dessas estratégias

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sugere o modelo de Otimização Seletiva com Compensação (SOC), que pode ser

compreendido por meio deste exemplo: quando Rubinstein, um pianista de 80 anos, foi

questionado sobre qual a receita para continuar a ser um músico espetacular na sua idade, ele

respondeu que diminuiu o número de peças a serem tocadas (seleção); passou a se exercitar

cada vez mais (otimização) e se utilizou de contrastes no andamento das peças, que sugeriam

uma velocidade maior do que a que realmente fazia (compensação). Essa situação adaptativa

criada por Rubinstein proporcionou-lhe conforto diante dos desafios da idade mais avançada e

a possibilidade do pianista continuar ativo em suas atividades profissionais (BALTES;

SMITH, 2006).

Apesar de haver recursos para o enfrentamento de uma idade mais avançada e

para a possibilidade de investimento em políticas sociais adequadas, Baltes e Smith (Ibidem)

concluem que os velhos-velhos vivem em maiores desvantagens do que os velhos jovens. Eles

concluem que a quarta idade, resultante da crescente longevidade, necessita de maiores

recursos nas áreas científicas, médicas e sociais, além do zelo com relação aos direitos e

responsabilidades do ser humano.

Ferrari (2002) propõe uma reflexão sobre o período mais avançado da velhice

(acima de 80 ou 90 anos), tentando direcionar um olhar mais otimista através da possibilidade

de uma velhice sem incapacidades limitantes, que permita ao velhos mais velhos uma vida

digna de ser vivida. Porém, ela reafirma o caráter idiossincrático dessa fase, fazendo uma

descrição do conceito de qualidade de vida e demonstrando o quanto ele sofre influências de

diversos fatores, que podem resultar de progressos sociais, de seu sistema de valores e de suas

escolhas.

A autora faz referência à pesquisa de Smith et al 8 sobre as fontes de bem-estar na

velhice avançada, que pretende analisar o quanto fatores de ordem subjetiva e objetiva na

velhice poderiam influenciar no bem-estar geral do idoso. Os pesquisadores concluíram que a

avaliação geral das experiências pessoais de vida de cada pessoa constituíam caráter

imprescindível a qualquer pesquisa nesta faixa etária (FERRARI, 2002).

Até aqui, podemos verificar que os conceitos em relação à velhice tardia são

desafiantes. Muitos são os fatores, de diversas ordens, a serem considerados para a avaliação

do indivíduo nesta fase da existência. As perdas ocorrem em vários aspectos, como os

biológicos, sociais, afetivos e econômicos e implicam em vulnerabilidade e aumento da

8 Ferrari (2002) referencia assim esta obra: SMITH Jacqui et al. Fontes de bem estar na velhice avançada. Cap.

17. In: BELTES, D.B; MAYER K. U. - The Berlin Aging Study: Aging from 70 to 100 - Cambridge University Press, 1999.

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fragilidade do velho. Beauvoir (1990, p. 109) comenta que “a imagem da velhice é incerta,

confusa, contraditória” e convém ser avaliada através do aspecto social e individual.

Percebemos cada vez mais a criação de eufemismos para se designar a velhice. É

comum ouvirmos terceira idade, melhor idade, quarta idade ou outras formas de classificá-la.

É como se não pudéssemos admitir que também ficaremos velhos, que já estamos velhos ou

que apenas os outros apresentam uma aparência envelhecida, como comenta Beauvoir (1990),

colaborando para uma visão estigmatizada da velhice na qual os velhos não sejam vistos

como seres humanos semelhantes a nós.

Chamar alguém de velho, em nossa sociedade, passou a ser quase uma injúria a

qual se responderia: sou idoso, não sou velho! Recorro aqui às palavras de Rubem Alves:

Não entendo porque “velho” é politicamente incorreto. “Idoso” é palavra de fila de banco e supermercado; “velho”, ao contrário, pertence ao universo da poesia. Já imaginaram se o Hemingway tivesse dado a seu livro clássico o nome de O idoso e o mar? Já imaginaram um casal de cabelos brancos, o marido chamando a mulher de “minha idosa querida”? (ALVES, 2009, p. 52).

Tudo que é velho, na ordem gramatical de objetivo, pode ser descartado,

inutilizado, desprezado e substituído por um novo. Neri (2001, p. 17) comenta que “em

sociedades como a nossa, a idade é um conceito social e não um conceito biológico ou

psicológico”.

A velhice mais avançada se apresenta como um período de vida que inspira

cuidados, compreensão e respeito. Entre conceitos e preconceitos, o número de pessoas

longevas cresce a cada dia na nossa sociedade e nos leva à reflexão quanto aos diversos

fatores contribuintes para o desenvolvimento de uma ótima velhice.

Como explica Goldfarb (1998, p. 23-24), “[...] a velhice é um constante e sempre

inacabado processo de subjetivação”. Desta forma, “podemos dizer que na maior parte do

tempo não existe um ‘ser velho’, mas um ser envelhecendo”.

2.6 O ciclo da vida: a teoria eriksoniana

Erik Homburger Erikson, psicanalista de origem alemã, mudou-se para os Estados

Unidos aos 31 anos fugindo do nazismo, permanecendo lá até a sua morte, aos 91 anos.

Conviveu com Freud, o pai da psicanálise, quando ainda vivia em Viena. Sua larga

experiência profissional favoreceu o desenvolvimento de uma teoria que incluiu as ações da

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sociedade no desenvolvimento do eu (chamado de ego), considerando este desenvolvimento

ao longo de todo o ciclo vital. Isso contrariou as propostas freudianas, que entendiam as

experiências iniciais da infância como determinantes da personalidade de maneira irreversível

(PAPALIA; OLDS, 2000). Sua teoria abriu portas para o desenvolvimento dos atuais estudos

sobre o envelhecimento humano. Nesta dissertação, enfatizamos seu trabalho, por tratar de

forma especial o período da velhice, principalmente da velhice tardia.

Casou-se com Joan Erikson, companheira, colaboradora em seus trabalhos e mãe de

seus três filhos. Uma das grandes contribuições de Joan Erikson, demonstrada mais abaixo,

foi a releitura de seu livro, O ciclo de vida completo. (ERIKSON, 1998, p. viii). As

experiências da vivência de uma vida tão longa, possibilitou-lhes contribuir de forma tão

especial à compreensão da velhice tardia, pois ela conta, nesta obra, que quando Erik fez 91

anos, eles estavam casados há 64 anos.

Os autores, Erik e Joan Erikson, dividem o desenvolvimento em oito estágios do

nascimento até a morte, apresentado em um diagrama, que Erikson denominou “diagrama

epigenético” de desenvolvimento. Partindo do conceito de epigênese, ele toma emprestado da

embriologia o termo epigenético, que etimologicamente significa “algo que se revela ou se

desdobra sucessivamente, e os estágios mais avançados estão contidos nos anteriores. Esse

desdobramento é governado por fatores ontogenéticos e sociogenéticos que contextualizam a

manifestação e a resolução das crises evolutivas do ciclo de vida” (NERI, 2005, p. 34).

O diagrama epigenético das oito sequências de estágios ou crises psicossociais de

desenvolvimento abrangendo todo o ciclo vital é composto de uma tendência sintônica e uma

distônica, que apresentam como consequência da luta travada entre elas, uma virtude ou força.

Para que se atinja um equilíbrio emocional, a tendência sintônica deve predominar, sem

descartar, também, a necessidade da tendência distônica em menor grau. Esta proposta pode

ser visualizada no QUADRO 1.

Erikson deu atenção especial à identidade, não somente na adolescência, quinto

estágio de sua teoria (identidade x confusão de identidade), mas durante todo o ciclo vital,

definindo-a como a confiança em nossa continuidade interna em meio a mudanças.

Sua experiência pessoal contribuiu para esse pensamento, pois era filho adotivo

de um médico de origem judia e de uma dinamarquesa, jamais tendo contato com seu pai

biológico. Sua identidade profissional também levou tempo para se definir e, ao se mudar

para os Estados Unidos, mais uma vez se viu diante de questões ligadas à sua identidade, pois

teve que se adaptar à condição de imigrante estrangeiro (PAPALIA; OLDS, 2000).

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A questão da identidade, revisada no livro O ciclo de vida completo, enfatiza o

conflito entre “quem achamos que somos vs. quem os outros podem pensar que somos ou

estamos tentando ser. Quem ele ou ela pensa que eu sou?” (ERIKSON, 1998, p. 93). É uma

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pergunta de difícil resposta. Assumimos papéis durante a vida que podem contribuir para o

desenvolvimento de um senso de identidade maduro, no qual temos consciência do que somos

e do que representamos.

Na velhice, esse senso pode se abalar diante de mudanças referentes ao status e

aos papéis que outrora foram vivenciados. A realidade mostra-se incerta: “Por que nomes

você deseja ser chamado em sua velhice? Quem é você aos oitenta e cinco anos e depois,

quando comparado a quem era no meio da vida? O seu papel não é claro, quando comparado

à firmeza da sua posição e propósito anteriores” (ERIKSON, 1998, p. 93).

Erikson e Joan relatam que formularam o último estágio do desenvolvimento

psicossocial (“integridade x desespero”) quando estavam na meia-idade e não tinham

vivenciado e nem imaginado como seria a fase da velhice. O número de idosos cresceu e eles

mesmos se tornaram velhos e, por isso, resolveram rever toda a proposta de desenvolvimento

a partir desse último estágio, lançando o livro O ciclo de vida completo (ERIKSON, 1998, p.

56). Em 1998, o livro ganhou uma nova versão, comentada por Joan Erikson, então com 93

anos. Nela, propõe o que pode ser compreendido como nono estágio de desenvolvimento, que

chamou de gerotranscendência, relacionado ao período da velhice tardia.

2.6.1 A gerotranscendência

A essência da gerotranscendência é o senso de integridade do ego e a sabedoria; um senso de comunhão cósmica com o espírito do Universo; uma redução da perspectiva de tempo e espaço; a consideração da morte como um evento sintônico à vida, ou seja, o desfecho natural de todos os seres vivos, e um senso de self ampliado, pois passa a incluir uma variedade mais ampla de outros, quiçá a própria Humanidade. A construção da gerotranscendência implica um retraimento consentido em que o idoso mantém seu envolvimento vital e se aplica à busca da paz de espírito. Longe de tentar manter-se produtivo e de negar a velhice, o idoso que encontra esse nível de maturidade, busca um novo self, que reconhece os próprios limites, não busca estar à altura das experiências dos outros, mas envolve-se com a busca da perfeição pessoal que parece significativa. O autor faz um importante alerta para a diferença entre esse retraimento consentido, que classifica como algo venturoso, do afastamento provocado por doenças e incapacidade que, a seu ver, implica uma limitação à possibilidade de realizar a gerotranscendência. (NERI, 2007, p. 72).

Joan comenta que ela e Erikson, mesmo tendo começado a reconhecer o status de

anciãos aos 80 anos, somente ao chegarem perto dos 90 anos foi que enfrentaram a realidade

dos desafios da velhice tardia. Nas palavras de Joan: “Aos noventa, nós acordamos num

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território estrangeiro [...] A porta da morte, que sempre soubemos ser esperável, mas que

nunca tinha nos perturbado, agora parecia estar bem próxima” (ERIKSON, 1998, p. viii).

Na definição final de sabedoria, Joan e Erikson afirmam que:

[...] a sabedoria depende da capacidade de ver, olhar e lembrar, assim como de escutar, ouvir e lembrar. A integridade, afirmamos, exige tato, contato e toque. Esta é uma demanda séria aos sentidos dos anciãos. É necessário o tempo de uma vida para se aprender a ter tato e isso exige paciência e habilidade; é muito fácil ficar cansado e desencorajado. Aos noventa anos, o simples fato de ter de localizar os óculos que foram colocados em lugar errado é um desafio. (ERIKSON, 1998, p. 94-95).

A gerotranscendência é um estágio final que leva à maturação e à sabedoria, no

qual “indivíduo gerotranscendente experiencia um novo sentimento de comunhão cósmica

com o espírito do universo, uma redefinição de tempo, espaço, vida e morte, e uma

redefinição do self ” (ERIKSON, 1998, p. 103).

A virtude da primeira fase do desenvolvimento no diagrama epigenético de

Erikson é a esperança e o elemento distônico da última fase é o desespero. Ao analisar o

diagrama a partir da última fase, os autores dizem que a

esperança conota a qualidade mais básica da condição do “eu”, sem a qual a vida não poderia começar ou terminar de forma significativa, e, quando ascendemos para o quadrado vazio no canto superior esquerdo, percebemos que lá precisamos de uma palavra para a última forma possível de esperança, uma forma amadurecida ao longo da vertical ascendente: para isso, certamente, sugere-se a palavra fé (ERIKSON, 1998, p. 56).

Quem teve amor e cuidado no primeiro estágio de desenvolvimento foi

abençoado, segundo ela, pela força da esperança, que é elemento fundamental e de absoluta

importância para o desenvolvimento de qualquer ser humano e indispensável na velhice.

No nono estágio, Joan considera imprescindível tomar como referência a idade do

indivíduo: “nós agora precisamos ver e compreender os estágios finais do ciclo de vida

através dos olhos das pessoas de oitenta e noventa anos” (ERIKSON, 1998, p. 89). O oitavo

estágio sugere uma revisão de como foi toda a vida da pessoa e, caso não aceite a vida que

teve, o desespero está associado à consciência de que o tempo é muito pequeno para refazê-la.

No nono estágio não se tem mais a preocupação com essa retrospectiva, o foco está em viver

o melhor possível cada dia. Ela acredita que os anciãos que chegam ao nono estágio em

harmonia com os elementos distônicos de suas vidas, encontrarão êxito ao transpor o

“caminho que leva a gerotranscendência” (Ibidem, p. 95).

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A morte, no nono estágio é vista como o “presente final” de quem chega a ser

aquilo que doou. Joan transformou a palavra transcendência em transcendança. Essa lhe dá

vida, movimento, somando a ela atividades esquecidas como o brincar, a música, a alegria e a

superação do medo da morte. “A transcendança exige a linguagem das artes; nada fala tão

profunda e significativamente aos nossos corações e almas.” Encerra seu pensamento

refletindo sobre a sua própria velhice, onde apesar das limitações, se sente invadida por

“grandes riquezas que se apresentam e iluminam todas as partes do meu corpo e alcançam a

beleza em todos os lugares. [...] Envelhecer é um grande privilégio” (ERIKSON, 1998, p.

106-107).

2.7 Velhice e corporeidade

Deve ter sido um demônio zombeteiro disfarçado de anjo que inventou que a velhice é a “melhor idade”. Chamar velhice de “melhor idade” só pode ser gozação, ironia, dizer o contrário do que se quer dar a entender (ALVES, 2009, p. 53).

No percurso de compreensão da velhice, o tempo e o corpo são fatores

imprescindíveis. É explícita, entre as pessoas na velhice, a percepção da finitude e do

envelhecimento do corpo. Apesar dessa constatação, percebe-se uma sensação de quase

obrigatoriedade quanto à necessidade de se “maquiar” esse período da existência e, junto com

ele, esse corpo que já não responde mais aos padrões cobrados socialmente.

É através do corpo que estamos no mundo e que nos relacionamos. Não o corpo

científico, mas o corpo social, relacional. Oliveira (2005, p. 150) explica que “o conceito de

corporeidade diz respeito ao corpo existencial ou corpo-vivido, um corpo criador de sentidos

e significados”.

É por meio do corpo que o ser humano está no mundo e que o percebe. É por

intermédio do corpo que se realizam experiências, muitas vezes limitadas por um corpo

envelhecido, que não responde mais como na juventude a algumas solicitações do ser que o

habita, mas que guarda o mesmo vigor interior. Recorro às reflexões de Ecléa Bosi (2007, p.

39) sobre os entrevistados de sua pesquisa, que às vezes se viam diante das limitações de um

corpo deficitário: “Quando a memória amadurece e se extravasa lúcida, é através de um corpo

alquebrado: dedos trêmulos, espinha torta, coração acelerado, dentes falhos, urina solta, a

cegueira, a ânsia, a surdez, as cicatrizes, a íris apagada, as lágrimas incoercíveis”.

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A estranheza quanto à própria imagem surge, em grande parte, entre 50 e 60 anos,

antes da fase da velhice realmente. É como se o fenômeno velhice se instalasse de repente,

sem ser percebido. Necessitamos sempre do outro para nos nomear velhos. Velho é sempre o

outro, que não reconhecemos. A velhice está sempre fora de nós. O espelho negativo não

reconhece a imagem e o positivo diz: “sou eu!” (GOLDFARB, 1998, p. 55). Esta dicotomia

temporal entre o indivíduo percebido interna e externamente experimentada pelos sujeitos

velhos é que compreende a visão estigmatizada da velhice (MERCADANTE, 2003).

Beauvoir (1990, p. 363) concorda com a estranheza que o corpo envelhecido nos

causa, ao dizer que nós necessitamos que alguém nos revele a nossa idade, pois essa

consciência não vem de nós, uma vez que, apesar do envelhecimento ser um processo natural,

não o aceitamos com naturalidade. “Enquanto o sentimento íntimo de juventude permanece

vivo, é a verdade objetiva da idade que parece uma aparência: tem-se a impressão de estar

usando uma máscara emprestada”.

Mercadante (2003, p. 59) ressalta a questão da identidade social do velho como

uma identidade estigmatizada em nossa sociedade, que enfatiza as marcas do tempo gravadas

em um corpo com aparência envelhecida – “pele enrugada, cabelos brancos, andar alquebrado

– e da presença de doenças” como determinantes da visão do velho em nossa sociedade. A

autora completa: O modelo social de velho, as qualidades a ele atribuídas são estigmatizadoras e contrapostas às atribuídas aos jovens. Assim sendo, qualidades como atividade, produtividade, memória, beleza e força são características presentes no corpo de indivíduos jovens e as qualidades opostas a estas presentes no corpo dos idosos. (Ibidem, 2003, p. 57).

É uma visão que tira do velho uma perspectiva positiva de futuro para sua vida.

Este modelo contribui para o desenvolvimento de uma postura classificatória dos próprios

idosos com relação aos outros de mesma faixa etária, enxergando como velhos “os outros” e

não ele mesmo como indivíduo.

Goldfarb (2009, p. 94) encerra um capítulo de seu livro Psicogerontologia -

fundamentos e práticas, perguntando:

[...] de que falamos quando falamos de velhos? Falamos de um sujeito psíquico em constante crescimento e evolução, altamente afetado pela representação de um corpo que deteriora e pela consciência da finitude. Mas estamos falando de um limite e não de uma limitação. Limite que será o do corpo biológico que sofre uma involução, mas não daquele outro, que sabemos capaz de prazer, instrumento de amor e que deverá ser incentivado a sentir e se sensibilizar com a proximidade dos outros e a força dos vínculos. Limite que será o da finitude elaborativa, orientando

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investimentos adequados, promovendo reflexão e não desespero, solidariedade e não solidão. Limite, enfim, que não feche a porta à paixão sempre possível.

2.8 Velhice e memória: mitos e verdades

A memória é a garantia de nossa própria identidade, só podermos dizer ‘eu’ reunindo tudo o que fomos e fizemos a tudo o que somos e fazemos. (MARCEL PROUST apud CAIXETA, 2006, p. 3).

O envelhecimento, assim como o desenvolvimento humano desde a concepção até

a morte, “é um processo de transformação do organismo que se reflete nas suas estruturas

físicas, nas manifestações da cognição, bem como na percepção subjetiva dessas

transformações” (PARENTE, 2006, p. 17).

O fato de esta dissertação apresentar como um dos temas a velhice tardia torna

pertinente abordar o tema memória, que também é assunto de interesse de pesquisas sobre

envelhecimento. Partindo-se do pressuposto que a cognição é uma das áreas que sofre

alterações durante o processo de envelhecer, vejamos, a seguir, como fica esta capacidade nos

velhos muito velhos. Para tal, é necessário, primeiro, conceituar memória fisiologicamente:

[...] a capacidade de armazenamento de todas as formas de conhecimento adquirido por nós em nossas relações com o meio ambiente. É a capacidade de aprender coisas novas, relacioná-las com informações já guardadas e tirar novas conclusões, das quais nos lembraremos depois. (ALVAREZ, 2008, p. 33). Denomina-se memória a aquisição, o armazenamento e a evocação de informações. A aquisição é também denominada de aprendizado. (IZQUIERDO et al, 2006, p. 31).

A atual realidade demográfica do Brasil e do mundo tem contribuído para o

avanço de estudos e pesquisas em gerontologia. A compreensão da memória tem sido alvo de

grande interesse em gerontologia, pois uma cognição preservada é um fator determinante na

qualidade de vida do idoso. São considerados fatores influentes na cognição tanto os de ordem

interna como a genética e o gênero, quanto os de ordem externa como os psicossociais, os

educacionais e os econômicos (RIBEIRO; YASSUDA, 2007).

Um fato relacionado à Primeira Guerra Mundial contribuiu de maneira incisiva

com a clássica visão do caráter negativo e involutivo da velhice. Os oficiais americanos

precisavam ser selecionados para atividades de comando das tropas, porém, as diferenças

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culturais e de educação entre eles era tão gritante que não possibilitou uma seleção com

atividades e critérios homogêneos. Decidiu-se, então, selecioná-los por meio de testes de

inteligência, com base “na aceitação das noções estatísticas de homem médio e distribuição

normal das capacidades”. Homens entre 18 e 60 anos foram submetidos a estes testes, cujos

resultados, revelados em 1921, mostravam que com o avanço da idade, os desempenhos

intelectuais pioravam, ou seja, “a inteligência declinaria com o envelhecimento.” O ápice da

inteligência aconteceria por volta de meados da terceira década de vida, começando então a

decair lentamente, acelerando o processo na velhice mais avançada. Yerkes, o responsável

pela seleção, tentou alertar sobre as possíveis interferências culturais, educacionais e pessoais

dos avaliados, não sendo tais resultados decorrentes apenas de suas idades. Os dados falaram

mais alto que suas considerações. Este fato foi determinante para a formação de um “modelo

deficitário do desenvolvimento mental na vida adulta,” que, segundo Lehr9, foi e ainda é

influente no contexto social, na ciência psicológica e gerontológica (NERI, 1995, p. 18).

Segundo Ribeiro e Yassuda (2007), estudiosos têm atribuído especial atenção ao

estilo de vida adotado pelos indivíduos. Eles sugerem um dado relevante, a interferência do

estilo de vida no bom desempenho da cognição e na prevenção de demências. O estilo de vida

sofre interferência direta do ambiente socioeconômico no qual a pessoa vive. Muitos são os

fatores que colaboram para um estilo de vida saudável e funcional, como por exemplo, a

prática de exercícios físicos e a participação em atividades ocupacionais de ordem social, de

lazer, mental ou religiosa. Esses fatores estimulam a cognição e, consequentemente, podem

levar ao retardamento do envelhecimento cognitivo, colaborando para uma velhice ativa.

Alvarez (2008) comenta que, cada vez mais, os pesquisadores têm destacado a

influência que o próprio julgamento da pessoa sobre a sua memória causa na capacidade dela

de armazenamento de informações. Quem acredita na sua capacidade mnemônica apresenta

mais disponibilidade a novas experiências e, consequentemente, a novos aprendizados. Os

indivíduos com posturas pessimistas em relação à sua própria capacidade de memorização

desenvolvem crenças negativas sobre si próprios que podem ser limitadoras frente à aquisição

de novos conhecimentos. Essa maneira de pensar pode colaborar com o desenvolvimento de:

falta de autoconfiança, falta de persistência, aumento da ansiedade e ênfase nos insucessos. A

crença na flexibilidade da memória e na sua eficácia facilita ao indivíduo empreender

tentativas novas diante de insucessos e ter mais confiança em situações que o desafiam.

9 LEHR, U. (1988). Psicologia de la senectud. Processo y aprendizage del envejecimiento. Barcelona: Helder,

Trad. do original em alemão de 1987.

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Mercadante (2003, p. 66) comenta a questão do estigma em torno da velhice,

principalmente na relação do corpo envelhecido com a mente:

A velhice, no seu sentido estigmatizado, propõe uma avaliação ampliada a partir da aparência do corpo envelhecido – marcas físicas visíveis – para a mente. Há, assim, na concepção estigmatizada de velho, uma correlação explícita entre corpo e mente, entre o declínio físico e, também, consequentemente – pela lógica linear – da deterioração da mente.

A memória não é mais considerada como algo imutável, sendo possível

potencializá-la cada vez mais. O ato de memorizar é considerado flexível, portanto, seu

processo pode ser otimizado a partir de exercícios específicos constantes. Existem fatores que

podem contribuir com as falhas de memória, como a depressão, a pressão alta, a falta de sono,

a ansiedade, o excesso de ingestão de álcool e de drogas ansiolíticas e o estresse (ALVAREZ,

2008).

Izquierdo (2007, p. 50-51) comenta que “o esquecimento real ocorre por falta de

uso, ou por desaparição das células nervosas e/ou de suas sinapses.” Ele nos diz que um

exercício que utiliza todas as regiões cerebrais de domínio da memória é a “simples leitura”.

Ao lermos, ativamos “a memória verbal, visual, imagens e até a memória motora. [...] A

melhor recomendação possível para o exercício da prática da memória é ler, ler e ler”.

Lupien e Wan (2004), da Universidade McGill em Montreal no Canadá,

comentam pesquisas desenvolvidas correlacionando autoestima e memória em pessoas idosas

em um artigo intitulado Envelhecimento bem-sucedido: da célula para o self 10.

Primeiramente, abordam o estigma da velhice e a discriminação social em relação aos idosos,

nos quais a pessoa velha é vista sob um prisma negativo. Frente ao envelhecimento

populacional, acreditam que esta postura está mudando e o termo envelhecimento bem-

sucedido11 já faz parte tanto da literatura popular quanto científica. Os autores sugerem que

envelhecer com sucesso implica em interação social, satisfação com a vida e bem-estar

percebido. Este último fator aliado uma visão positiva do envelhecimento são os elementos

considerados de maior proteção contra os efeitos negativos do envelhecimento no organismo. 10 Self é o centro da psique total e difere do eu, o centro da consciência (MONTEIRO, 2006, p. 27). 11 O termo velhice bem-sucedida apareceu na Gerontologia nos anos 60, associado a uma importante mudança

ideológica ocorrida no campo que consistiu em considerar que a velhice e o envelhecimento não são sinônimos de doença, inatividade e contração geral do desenvolvimento. Desde então a Gerontologia passou a investigar também os aspectos positivos da velhice, o potencial para desenvolvimento que é resguardado pelo processo do envelhecimento e, principalmente, a heterogeneidade, a multidimensionalidade e a multicausalidade associadas a esse processo. Não existe uma definição única para velhice bem-sucedida. É importante lembrar que qualquer definição de sucesso leva em conta um critério de comparação. Adicionalmente, é preciso incluir a ideia da heterogeneidade da velhice, vista como fenômeno não só biológico, mas também construído socialmente (NERI, 2005, p. 211).

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Os níveis socioeconômicos e de escolaridade também colaboram para o melhor

rendimento das funções cognitivas, segundo as observações de Lupien e Wan (2004). Os

efeitos das atitudes e crenças sobre o envelhecimento têm sido observados em várias áreas da

biologia e da sociologia. As pesquisas que os dois avaliaram sobre envelhecimento da área

biológica demonstraram que o que as pessoas velhas pensam sobre velhice tem um impacto

direto na sua própria saúde e longevidade. Também demonstram uma crescente evidência de

que a autoestima pode ter um efeito reversivo quanto à crença de um envelhecimento com

declínio. Concluem que um olhar integral sobre a velhice colabora para ver além da célula, até

chegar a atingir o self.

A avaliação neuropsicológica em idosos enfrenta muitas limitações. Uma delas é a

falta de informações normativas sobre características dessa faixa etária para a utilização de

diversos instrumentos, pois em sua maioria, eles são desenvolvidos para faixas etárias

anteriores à velhice. No Brasil, nem sempre os instrumentos de avaliação são adequados para

a nossa realidade. As particularidades culturais e desigualdades na educação podem simular o

padrão de desempenho normal nas avaliações cognitivas. Segundo Yassuda e Abreu (2006, p.

1259), “a diferença entre indivíduos no desempenho também aumenta com o envelhecimento,

o que dificulta ainda mais a determinação de padrões de normalidade”.

Hess, Hinson e Hodges (2009) relatam uma pesquisa realizada na Carolina do

Norte com 103 adultos, divididos em dois grupos, um de idosos jovens (60-70 anos) e outro

de idosos mais velhos (71-82 anos), para observarem o impacto do conhecimento de

estereótipos relacionados ao envelhecimento no desempenho da memória destes indivíduos.

Foi percebido que os idosos mais velhos tornam-se mais imunes a esses fatores de ameaça do

que os idosos mais jovens. Os achados sugerem que a importância de mecanismos

motivacionais associados a estereótipos negativos ou positivos resultam em crenças que

poderão alterar o desempenho da memória destes indivíduos.

Como podemos observar por meio dos dados já citados sobre a relação entre

memória e envelhecimento, as pesquisas caminham não apenas nos domínios da ciência

médica, neurobiológica e neuropsicológica, mas também nos domínios da subjetividade. E,

apesar de se ter um número expressivo de pesquisas e novas conquistas sobre o assunto,

parece que ainda há um longo percurso a caminhar nesta direção.

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2.8.1 Memória e reminiscências

[...] a lembrança é uma imagem engajada em outras imagens, uma imagem genérica reportada ao passado (HALBWACHS, 1990, p. 73).

O homem é um ser histórico, cultural e biológico, porque possui um corpo e

forma-se por meio de inter-relações sociais. Quando chega ao mundo através do nascimento

depara-se com uma sociedade construída por várias gerações anteriores a ele. Ele progride por

intermédio dessas relações sociais, controlado por meio da fala, desenvolvendo um eu ou

pessoa (self) em consonância com sua autoimagem. Esta ideia de eu comporta os aspectos do

sujeito autônomo que toma direções no mundo e da autoestima que está relacionada a sua

identidade. A constante troca entre o indivíduo e o meio social em que ele está inserido,

alimenta a construção do seu ”eu” (BONIN, 2003).

Bueno (2006), ao conceituar memória, recorre à definição do dicionário Houaiss,

transcrevendo-a como:

[...] faculdade de conservar e lembrar estados de consciência passados e tudo quanto se ache associado aos mesmos. Nota-se uma referência ao tempo passado. A memória é, pois, um fenômeno que se processa no tempo e que se refere à capacidade de guardar e recuperar acontecimentos quando necessário. (BUENO, 2006, p.89).

Esta memória é recheada pelas experiências do ser social, biológico e subjetivo. A

memória pessoal se confunde com a memória coletiva, pensamento de Halbwachs, comentado

muitas vezes por Ecléa Bosi em sua obra Memória e sociedade: lembranças de velhos. Na

introdução, Marilena Chauí comenta: “A função social do velho é lembrar e aconselhar [...]”

(BOSI, 2007, p. 18).

Halbwachs (1990) ressalta que existe uma memória individual, mas que não nos

fechamos em nós mesmos. O que lembramos nos remete a direções diversas, tendo sempre a

lembrança como uma referência em meio a tantas mudanças sociais e vivências históricas

coletivas. Bosi (2007, p. 63) comenta “a coerência do pensamento de Halbwachs: o que rege,

em última instância, a atividade mnêmica é a função social exercida aqui e agora ao sujeito

que lembra”.

Na velhice, as recordações são memórias vivas que permitem um passeio em toda

a construção histórica de uma vida. As reminiscências trazem sentido a uma existência e

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perfumam o presente com o aroma do passado reciclado pelas mudanças que o tempo

promove. O que é uma pessoa sem memória? O ser humano é relacional; ele se desampara no

abandono da memória perdida.

Em uma velhice normal, na qual há desempenho de tarefas de forma

independente, ou em uma velhice considerada ótima, por ter o indivíduo condições funcionais

excelentes, a memória se faz presente, dá suporte e preenche a existência.

Mas e o idoso dementado – aquele para quem o passado e o presente se misturam

ou, em um estado mais avançado de demência, que parece habitando o nada? Nesse caso em

que a memória não se faz presente e a sensação é de abandono, o sentido da existência é

realizado pelo outro. A patologia tira do indivíduo o direito de existir enquanto sujeito e por

períodos, às vezes curtos, às vezes longos demais, pode permitir-lhe a vida, mas lhe retira a

existência. Deixar de lembrar traduz a visão de um ser sem fonte: alguém tem que lembrar

por ele. As palavras de Frankl (2003b, p.65) podem soar como um conforto frente a tal estado:

“[...] Assim, o tempo, a caducidade da vida, em nada poderão afetar o seu sentido e valor.

Ter-sido é também um modo de ser, talvez o mais seguro”.

Recordar pode transformar o presente com as reminiscências do passado e, ao

mesmo tempo, há a possibilidade de, ao lembrar, resignificar momentos importantes. Segundo

Bosi (2007, p. 82), “a conversa evocativa de um velho é sempre uma experiência profunda:

repassada de nostalgia, revolta, resignação pelo desfiguramento das paisagens caras, pela

desaparição de entes amados, é semelhante a uma obra de arte.” E, citando Halbwachs, ela diz

que quase sempre, “lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e

ideias de hoje, as experiências do passado” (Ibidem, p. 55). A historiadora Lucília Neves

ressalta que “a memória é inseparável da vivência da temporalidade, do fluir do tempo e do

entrecruzamento de tempos múltiplos. [...] atualiza o tempo passado, tornando-o tempo vivo e

pleno de significados no presente” (NEVES, 2006, p. 38).

2.9 Velhice e consciência de finitude/morte

O tempo não passa por nós, somos nós que passamos por ele. (NERI, 1996, p. 24)

Assim como para cada um é sempre o outro que fica velho, também é sempre o

outro que morre. A metamorfose do envelhecer e a metamorfose da morte são, ambas,

ameaçadoras. A morte é um acontecimento natural da vida, mas imaginar a própria morte é

um exercício de difícil alcance.

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Torres (1999) ressalta que, segundo autores como Adah Maurer12, mesmo ainda

na infância inicial, em idade muito precoce, a criança descobre a morte. Nas brincadeiras de

esconde-esconde, no dormir e no acordar e ao perguntar de onde vêm os bebês, existe uma

curiosidade não apenas com relação à sexualidade, mas também “religiosa e filosófica sobre a

não existência.” Ela acredita que o conceito de infinito é muito importante, porque permite à

criança a compreensão da ideia de continuidade, de sempre haver um depois. “Não importa

até quanto você conte, você poderá contar mais; não importa o quanto você já viveu, poderá

viver mais e isso é que é imortalidade” (TORRES, 1999, p. 56).

Monteiro (2006b, p. 46) comenta sobre sua infância no interior de Minas, onde a

morte era vista com simplicidade e as crianças que estavam nas ruas paravam suas

brincadeiras para olhar os mortos anunciados pelos sinos das igrejas e voltavam naturalmente

aos seus entretenimentos infantis. A autora não descarta, na percepção infantil da época “um

tremor e um temor” diante do mistério que envolve o morrer, mas o fenômeno era aceito

como parte natural da vida.

Se vivemos atualmente em uma sociedade que nos exige uma compreensão cada

vez maior sobre o envelhecer, principalmente quando se convive com uma constante

valorização do novo e do belo, a compreensão da morte torna-se um tema cada vez mais

distante da realidade geral dos indivíduos em uma sociedade. Elias (2001, p. 80) comenta a

dificuldade dos indivíduos de “idade normal” se imaginarem velhos e, consequentemente,

tratarem de velhos, complicando a sintonia entre a compreensão do envelhecer e do morrer,

quando seu físico conserva, ainda, o vigor da juventude.

Cuidar e relacionar-se de maneira natural com moribundos, o que poderia

proporcionar-lhes um sentimento de pertencimento e de proteção, não tem sido uma tarefa

encarada com naturalidade. É como se a morte fosse “contagiosa e ameaçadora”. O lugar do

cemitério nas cidades passaria a ser um “espaço verde da cidade”, neutralizando as sensações

que o ambiente pode causar nos viventes (Ibidem, p. 37-39).

Bosi faz a seguinte reflexão (2007, p. 88): A civilização burguesa expulsou de si a morte; não se visitam moribundos, a pessoa que vai morrer é apartada, os defuntos já não são contemplados. O leito de morte se transformava em um trono de onde o moribundo ditava seus últimos desejos ante os familiares e vizinhos que entravam pelas portas escancaradas para assistir ao ato solene. Era natural dormir numa cama onde dormiram os avós, onde morreram rodeados pelos seus. Era natural visitar um defunto, acompanhá-lo ao ouvir os sinos plangerem. E guardar o crucifixo onde imprimiu o último beijo. A morte vem sendo progressivamente expulsa da percepção dos vivos.

12 No seu livro, Torres (1999) não apresenta as referências de Adah Maurer.

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Pensar na morte é, também, pensar na nossa relação enquanto pessoa no mundo,

enquanto ser e no fator tempo/temporalidade. As crianças e o adolescente ainda não têm

consciência deste tempo. Nas revisões de vida, aos 40 ou 50 anos, essa consciência do tempo

finito começa a se rascunhar. Ao ouvir comentários de pessoas mais velhas, começamos a ver

o quanto a relação com a temporalidade é pertinente e pode levar a uma relação mais familiar

com a própria finitude.

Beauvoir, ao comentar sobre o período da velhice de Victor Hugo, traz uma

citação dele, escrita em uma carta: “Oh! Eu sei bem que não envelheço, e que, ao contrário,

cresço; e é por isso que sinto que a morte se avizinha. Que prova da alma! Meu corpo declina,

meu pensamento cresce; na minha velhice, há uma eclosão” (BEAUVOIR, 1990, p. 621).

A relação do velho mais velho com a morte se distingue das outras fases da vida,

como podemos perceber nas palavras de Joan Erikson que, aos 93 anos, considerou a morte

“um presente” 13. A sensação é que a morte, na velhice tardia, é uma companheira, não

causando o mesmo impacto que em outros períodos da existência humana.

Como vimos até aqui, pesquisar a velhice exige realmente uma visão

multidisciplinar. Especificamente, a velhice após os 75 ou 80 anos ainda está dando seus

primeiros passos científicos, demandando interesses de várias áreas. Assim, concluímos o

referencial teórico sobre a velhice e iniciaremos, no próximo capítulo, os temas

espiritualidade e sentido de vida.

13 Este trecho está no capítulo 7 do livro O ciclo de vida completo. Este capítulo foi escrito por ela, como um

acréscimo ao livro escrito por Erik, no qual ela faz uma releitura e propõe a gerotranscendência como um nono estágio na proposta inicial de crises psicossociais.

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3 ESPIRITUALIDADE E SENTIDO DE VIDA NA VELHICE

Definir espiritualidade é uma tarefa desafiadora, dada a amplitude do tema. Nessa

dissertação, espiritualidade será compreendida como uma dimensão do humano e será

trabalhada como uma possibilidade de crescimento, de compreensão existencial, de busca de

sentido para a existência e para a transcendência. Boff (2006, p. 13) resgata a definição do

Dalai Lama, de que “espiritualidade é aquilo que produz no ser humano uma mudança

interior”. É a partir desse conceito que este trabalho irá se orientar e se desenvolver.

Este capítulo está dividido em duas partes, que irão discorrer sobre espiritualidade

e sentido de vida, respectivamente. De início, o conceito de espiritualidade será analisado e,

pela sua amplitude, foi feita uma escolha conceitual, a partir da qual será compreendida no

universo do idoso. Por fim, serão apresentadas questões relacionadas ao sentido de vida,

aspecto de fundamental relevância para o desenvolvimento de uma velhice satisfatória.

3.1 Espiritualidade, Religião/Religiosidade/Experiência Religiosa

Fazer uma reflexão sobre o conceito de espírito pode contribuir para uma melhor

compreensão do que é espiritualidade, uma vez que lhe serve de base. O termo espírito tem

origem latina e quer dizer sopro ou respiro. Os termos espírito e alma se aproximam

conceitualmente em latim, uma vez que alma origina-se da palavra sânscrita atman, que

significa respiro. Podemos dizer, metaforicamente, que o conceito de espírito se utiliza do

respiro para se juntar ao princípio vital, que pode ser constatado nos animais por meio da

respiração (ANJOS, 2007, p.155-156).

Ao longo da história da humanidade, o termo espírito foi se tornando cada vez

mais complexo e melhor elaborado, principalmente no que concerne às inúmeras

potencialidades do ser humano. Procurou-se, então, compreender a relação entre espírito e

atividades abstratas, como o ato de pensar, e de que maneira essa relação acontece. Um fato

pertinente é a mudança na ênfase do termo espírito como respiro para sopro. Essa mudança

na conceituação para sopro criativo tem suas raízes na passagem bíblica sobre a criação do ser

humano (em Gênesis 2-7), quando Deus lhe atribui o sopro criativo que lhe permite a vida,

quando ainda modelado em barro (ANJOS, 2007, p. 156).

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Essa compreensão, de maneira geral, enfatiza um lado dinâmico que impulsiona

expressões de vida. Sendo a compreensão uma característica única do ser humano, ela se

torna imprescindível para o entendimento do conceito de espírito. Sendo assim, o sopro que

dá vida a estes seres é superior ao sopro que dá vida aos outros animais. Esta noção de espírito

como sopro induz a uma reflexão sobre os diversos movimentos que compõe o viver em sua

complexidade, enfatizando principalmente a interpretação que cada indivíduo irá lhe atribuir

(ANJOS, 2007, p. 156).

Elkins14 (apud SOMMERHALDER; GOLDSTEIN, 2006, p. 1307) comenta o

conceito de espiritualidade a partir da etimologia da palavra:

Espiritualidade, que deriva do latim spiritus, que significa “sopro”, em referência ao sopro da vida. Envolve também o sentimento de gratidão pela vida, o desenvolvimento de ver o sagrado nos fatos comuns, de remeter a uma questão universal referente ao significado e ao propósito da vida, de ter fé, de amar, de perdoar, de adorar, de transcender o sofrimento e de refletir sobre o significado da vida.

Leo Pessini (2007, p. 188), ao refletir sobre a visão da espiritualidade na

contemporaneidade, cita o pensamento de Solomon15: “a espiritualidade, cheguei a

compreender, é nada menos que o amor bem pensado à vida”.

O conceito de espiritualidade adotado pela Organização Mundial de Saúde (OMS)

é citado por Neri (2005, p. 71):

[...] espiritualidade é o conjunto de todas as emoções e convicções de natureza não material que pressupõem que há mais no viver do que se pode ser percebido ou plenamente compreendido, remetendo o indivíduo a questões como o significado e o sentido da vida, não necessariamente a partir de uma crença ou prática religiosa. Reconhecendo sua importância para a qualidade de vida, a OMS incluiu a espiritualidade no âmbito dos domínios que devem ser levados em conta na avaliação e na promoção de saúde em todas as idades.

Segundo Leonardo Boff (2006, p. 9), “a espiritualidade é uma das fontes

primordiais, embora não seja a única, de inspiração do novo, de esperança alvissareira, de

geração de um sentido pleno e de capacidade de autotranscendência do ser humano”. A

espiritualidade, sob a perspectiva proposta por Boff (Ibidem), pode ser chamada de

espiritualidade da esperança, pois o ser humano, que a desenvolve e a vive realmente, celebra

14 SOMMERHALDER e GOLDSTEIN (2006) referenciam Elkins da seguinte forma: Elkins DN. Spirituality.

Psychology Today, 1999; 32(5): 44-45. 15 SOLOMON RC. Espiritualidade para céticos: paixão, verdade cósmica e racionalidade no século XXI. Rio

de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 18-19

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a alegria nesse encontro com Deus, ao festejar a Sua presença como sentido de tudo. Viver a

espiritualidade é viver o verdadeiro “testemunho da esperança”, do “sim à vida”, que está em

contínuo processo de renovação (BAPTISTA, 2007, p. 133). Outra dimensão da

espiritualidade concebida por Boff é elaborada por meio da vivência da batalha travada contra

o sofrimento, da qual ninguém está liberto e que se traduz na própria “sementeira da

esperança”, relacionando o sacrifício a algo sagrado, libertador (Ibidem, p. 139).

O filósofo e escritor Faustino Teixeira acrescenta que:

A espiritualidade não é algo que ocorre para além da esfera do humano, mas algo que toca em profundidade sua vida e experiência. A espiritualidade traduz a força de uma presença que escapa à percepção do humano, mas ao mesmo tempo provoca no sujeito o exercício de percorrer e captar esse sentido onipresente. Daí se poder falar em experiência espiritual enquanto movimento e busca do sentido radical que habita a realidade (TEIXEIRA, 2005, p. 15).

Monteiro (2006a, p. 15) refere-se ao construto junguiano de espiritualidade como

sendo “a dimensão que corresponde à abertura da consciência ao significado e à totalidade da

vida, possibilitando uma recapitulação qualitativa do seu processo vital”. O ser humano tende

a buscar a espiritualidade e o sentido de vida, pois vivencia o sentimento de desamparo ao

chegar e ao partir deste mundo, necessitando sentir-se apoiado e protegido. Os

questionamentos existenciais o levam a reconhecer a existência de forças além de si mesmo,

que transcendem ao humano e lhe proporcionam confiança. Tais forças podem ser

denominadas Deus, energia, espírito, inconsciente, dentre outras formas. Mas, o fundamental

é que o homem é um ser condenado a buscar sentido, a captar que há algo que lhe transcende

– isto é, a dimensão espiritual, que também recebe outras denominações como:

transcendência, religião, mística, conscientização.

Para o monge Anselm Grün, espiritualidade apresenta duas tendências: a

espiritualidade de cima e a espiritualidade de baixo:

A espiritualidade de baixo significa que Deus não nos fala unicamente através da Bíblia e da Igreja, mas também através de nós mesmos, daquilo que nós pensamos e sentimos, através do nosso corpo, de nossos sonhos, e ainda através de nossas feridas e de nossas supostas fraquezas. [...] Evágrio Pôntico formula esta espiritualidade de baixo na clássica frase: “Se queres chegar ao conhecimento de Deus, trata de antes conheceres-te a ti mesmo.” [...] A espiritualidade de cima começa pelos ideais que nós nos impomos. Parte das metas que o homem deve alcançar [...]. Os ideais que levam a isto são obtidos do estudo da Sagrada Escritura, da doutrina moral da Igreja e da ideia que o homem faz de si mesmo. [...] Não se trata de colocar a espiritualidade de baixo em confronto com a espiritualidade de cima. [...] existe também uma sadia tensão entre estas duas abordagens espirituais. [...] Não podemos passar sem a espiritualidade de cima. Ela possui uma função positiva, porque desperta em nós a vida. Só passa a ser doentia quando os ideais

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perdem a ligação com a nossa realidade. [...] Mas um dia chega o momento em que a espiritualidade de cima tem que unir-se com a espiritualidade de baixo para permanecer viva. Do contrário, a pessoa cai na divisão interior e adoece. (GRÜN; DUFNER, 2004, p. 7-16).

Grün ressalta a tendência da psicologia em aceitar a espiritualidade de baixo, uma

vez que postula que o autoconhecimento é o caminho mais adequado para o ser humano

chegar à sua verdade. Evágrio Pôntico elabora a espiritualidade de baixo a partir da frase: “Se

queres chegar ao conhecimento de Deus, trata de antes conheceres-te a ti mesmo.” A

espiritualidade de baixo exerce a função de nos auxiliar a encontrar saídas para as situações

mais drásticas da vida e reconstruir, a partir daí, o novo. “A espiritualidade de baixo é o

caminho da humildade” (GRÜN; DUFNER, 2004, p. 7-10).

Sommerhalder e Goldstein (2006, p. 1307) afirmam que espiritualidade e

religiosidade são compreensões diferentes: “Enquanto a espiritualidade remete a uma reflexão

sobre, a religiosidade remete a uma relação com. Essa relação pode ser com Deus ou com

uma entidade ou um ser superior diferentemente nomeado”. As autoras comentam a

compreensão atual de espiritualidade enquanto atitudes de atenção e cuidado para consigo

mesmo e com outras pessoas; ser capaz de transcender e de se perceber espiritualizada sem

pertencer a qualquer religião específica ou cultuar qualquer natureza de divindade. Enfim,

compreender espiritualidade como algo que vai além de ideologias, dogmas ou instituições

religiosas, funcionando como “um recurso interno do indivíduo, que pode ser acionado pelo

contato com a natureza, com as artes, com a experiência de doação de si ou com o

engajamento em causas que visam o bem coletivo.” Moberg e Brusek16 (apud

SOMMERHALDER; GOLDSTEIN, 2006, p. 1308) chamam isso de “dimensão horizontal”

da espiritualidade, que se extende às vivências do cotidiano. “A “dimensão vertical” é aquela

que busca alcançar Deus”.

Quanto à definição de religiosidade, as autoras descrevem: A palavra religião vem do latim religare, que significa religar, restabelecer a relação entre Deus e os homens. Portanto, religiosidade refere-se a comportamentos e crenças associados à religião. [...] as religiões possuem um código de ética que rege o comportamento e dita valores morais. Muitas religiões baseiam suas crenças num ser supremo ou num Deus que deve ser reverenciado, e as pessoas devem viver de acordo com os seus ensinamentos. [...] Para Maugans, a religiosidade é uma doutrina e um sistema de culto, compartilhados por um grupo de pessoas, com características comportamentais, sociais, doutrinárias e com valores específicos (SOMMERHALDER; GOLDSTEIN, 2006, p. 1308).

16 Sommerhalder e Goldstein referenciam a obra da seguinte forma: Moberg DO, Brusek PM. Spiritual well-

being: a neglected subject in quality of life research. Social Indicators Research, 1978; 5: 303-323

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Pode-se perceber que há uma concordância entre autores no que diz respeito ao

conceito de religião e espiritualidade. O primeiro, ligado a questões institucionais

estabelecidas e estruturadas; o segundo, relacionado a questões vivenciais, de atitudes e busca

por valores e significados na vida.

Paiva (2005) considera religião e espiritualidade como vocábulos históricos, que

refletem condições políticas, sociais e econômicas e cita Pargament17, para quem

a espiritualidade vem sendo definida em contrasta com a religião de duas maneiras principais: primeiro, por religião entende-se o organizacional, o ritual e o ideológico, e por espiritualidade o pessoal, o afetivo, o experiencial e o thoughtful18; segundo, religião inibe a potencialidade humana, e espiritualidade é busca de sentido, de unidade, de conexão e de transcendência. (PAIVA, 2005, p. 35).

Apesar da distinção entre os conceitos de espiritualidade e religião, Pargament

identifica um ponto comum entre os dois vocábulos: o sagrado. Se na religião existe uma

busca de valores significantes para a vida por meio do sagrado, na espiritualidade há uma

busca do sagrado. Então, “espiritualidade seria a função mais central da religião” (PAIVA,

2005, p. 36).

O sociólogo Émille Durkheim realizou um estudo complexo, no início do século

passado, para chegar a um conceito mais adequado de religião, definindo-a como “um sistema

solidário de crenças seguintes e de práticas relativas a coisas sagradas, isto é, separadas,

proibidas; crenças e práticas que reúnem numa mesma comunidade moral, chamada igreja,

todos os que a ela aderem” (DURKHEIM, 1989, p. 79).

Para Leonardo Boff, devemos fazer uma distinção entre os conceitos de religião e

espiritualidade e, para isso, ele cita as conclusões do Dalai Lama19, que coadunam com seu

pensar: Religião se relaciona com a crença no direito à salvação pregada por qualquer tradição de fé, crença esta que tem como um de seus principais aspectos a aceitação de alguma forma de realidade metafísica ou sobrenatural, incluindo possivelmente uma ideia de paraíso ou nirvana. Associados a isso estão ensinamentos ou dogmas religiosos, rituais, orações e assim por diante. Considero que espiritualidade esteja relacionada com aquelas qualidades do espírito humano – tais como amor e compaixão, paciência e tolerância, capacidade de perdoar, contentamento, noção de responsabilidade, noção de harmonia – que trazem felicidade tanto para a própria pessoa quanto para os outros. Ritual e oração, com as questões de nirvana e

17 PARGAMENT, K.I.. The psychology of religion and spirituality? Yes and no”. The International Journal

for the Psychology of Religion, 9, 1999, pp.3-16 18 Thoughtful significa bem pensado. 19 DALAI-LAMA, XIV (Bstan-®dzin-rgya-mtscho). Uma ética para o novo milênio. Rio de Janeiro: Sextante,

2000.

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salvação, estão diretamente ligados à fé religiosa, mas essas qualidades interiores não precisam ter a mesma ligação. Não existe, portanto, nenhuma razão pela qual um indivíduo não possa desenvolvê-las, até mesmo em alto grau, sem recorrer a qualquer sistema religioso ou metafísico. (BOFF, 2006, p. 15-16).

Essa distinção se torna essencial na atualidade em função do interesse em torno do

tema espiritualidade, de uma postura “secular de ver o mundo e pela redescoberta da

complexidade misteriosa da subjetividade humana.” As religiões oferecem uma visão acerca

de Deus e orientam questões relacionadas à ética, ao comportamento e à existência humana.

Tanto no cristianismo quanto no budismo, a prática espiritual e o comportamento do ser é que

salva, como por exemplo, desenvolver o amor e a compaixão diante do sofrimento do outro.

“Nas palavras do Lama: o objetivo da prática espiritual e, consequentemente, da prática ética

é transformar e aperfeiçoar o estado geral do coração e da mente (kun long 20). É assim que

nos tornamos pessoas melhores” (BOFF, 2006, p. 17-18).

Com o intuito de ampliar o conhecimento destes construtos na atualidade, são

pertinentes as contribuições de Valle (2005), que levanta uma possível confusão entre os

conceitos de espiritualidade, religiosidade e experiência religiosa. Para o autor, religião não

pode ser algo que se tem ou não, que pode ou não ser verdadeira. Citando Amatuzzi21, ele

define religião como “um campo de experiência no qual crescemos ou deixamos de crescer

[...] é o campo das indagações últimas, das indagações pelo sentido, que estão implicitamente

presentes em todas as demais indagações ou movimentos humanos” (VALLE, 2005, p. 88).

O autor considera a questão da fé, em sintonia com o pensamento de Fowler22 que

a considera como “uma preocupação humana universal”, que antes de nos decidirmos por

seguir um caminho religioso, preocupamo-nos em viver de maneira organizada e com o que

possa contribuir para termos uma vida digna. Necessitamos amar e sermos amados, buscamos

valores que também nos valorizem e algo que possamos estimar, respeitar e que sustente o

nosso ser. “Numa palavra, procuramos dar um sentido espiritual para nós mesmos” (VALLE,

2005, p. 89).

Voltando às diferenças entre os conceitos de religiosidade, espiritualidade e

experiência religiosa, Valle (2005) os analisa no viés da psicologia da religião. Os conceitos

20 Traduzimos por “atitude fundamental”. 21 AMATUZZI, Mauro Martins. Desenvolvimento psicológico e desenvolvimento religioso: Uma hipótese

descritiva, In: MASSIMI, Marina; MAHFOUD Miguel (orgs.). Diante do mistério. Psicologia e senso religioso. São Paulo: Loyola, 1999.

22 FOWLER, James W. Estágios da fé. A psicologia do desenvolvimento humano e a busca de sentido. São Leopoldo: Sinodal, 1992, p. 16-17.

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de religião e religiosidade são mais antigos nesta ciência, porém, o conceito de espiritualidade

ainda é novo na psicologia científica. Religiosidade, para ele, se define como

a experiência individualizada do transcendente e dever ser distinta da religião, que é sua matriz instituída. [...] Na religiosidade se dá uma explicitação, uma culminação e uma síntese, só possível porque existe no ser humano uma consciência e um self em condições de dar sentido ao que percebe em si, nos outros e no mundo. [...] A experiência religiosa é também produto de vínculos complexos com outras pessoas, por meio de partilhas que vão se sucedendo ao longo a vida, começando pela identificação com as figuras materna e paterna. Vêm mais tarde aprendizagens e laços que se estabelecem em grupos religiosos com suas tradições rituais, crenças, estilos de vida e distribuição de papéis (VALLE, 2005, p. 93-99).

O autor faz uma consideração importante ao solicitar especial atenção dos

estudiosos da psicologia da religião, para não se referirem apenas ao caráter idiossincrático

destas experiências, o que poderia levar a uma compreensão restrita da mesma.

O pensamento de Dalgalarrondo (2008), baseado nas proposições de Berger,

Durkheim e Weber, coincide com as propostas de Frankl. O ser humano procura na religião

uma busca por sentido, principalmente aquele sentido que lhe sustente nas mais sofridas

experiências. Segundo Berger23, “não é a felicidade que a teodicéia proporciona antes de tudo,

mas significado” (apud DALGALARRONDO, 2008, p. 249).

O Brasil é um país onde a religião católica é dominante. No senso 2000 do IBGE,

73,9% da população brasileira pertenciam a religião católica. Evangélicos de missão eram 5%

e pentecostais 10,6%, somando 15,6% da população. Os pertencentes a outras religiões, como

o espiritismo, umbanda, judaísmo, islamismo etc correspondiam a apenas 3,2%. Os

indivíduos que se disseram “sem religião” representavam 7,4% de pessoas no total da

população (ANTONIAZZI, 2004, p. 15). Apesar do percentual de pessoas na categoria

“outras religiões” ser muito baixo em comparação com o número de católicos e evangélicos,

considero relevante fazer uma reflexão a respeito das tradições espirituais orientais.

Leonardo Boff comenta que somos ocidentais, temos nossas tradições de diversas

ordens, inclusive espirituais e religiosas, porém, isso não impede a troca de experiências e de

ensinamentos advindos de outras culturas de diversas partes do mundo, sem nos tornamos

orientais por isso. A mística das tradições religiosas originárias da América Latina, assim

como do oriente, contém aspectos interessantes a serem conhecidos. Somos todos seres

humanos independente do continente ou do país de origem, portanto, “há potencialidades em

nós que se afinam com as deles, a partir do mesmo substrato biossocioantropológico.

23 BERGER, P. O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. São Paulo: Paulinas, 1985.

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Devemos pensar hermeneuticamente para superar uma visão exteriorista e apenas historicista,

para despertar a dimensão zen de cada um.” Os chineses e japoneses se transformaram em

referência na dimensão zen-humana por já terem-na desenvolvido melhor (BOFF, 1999, p. 140).

Com tal postura podemos caminhar para um desenvolvimento espiritual mais rico,

uma vez que a visão de complemento substitui a de afastamento, a de opostos. Com essa visão

complementar poderemos ser beneficiados na busca individual do caminho espiritual a

percorrer. Podemos aprender a desenvolver a atitude zen, que trata de “captar sempre a

experiência originária, naquilo que digo, falo e faço. Captar o que está por trás. Ao fazê-lo,

desenvolvemos em nós a dimensão zen” (BOFF, 1999, p. 141).

O termo espiritualidade, recente na psicologia da religião, às vezes tem sido

utilizado como substituto do termo religiosidade. É importante distingui-los, pois a

“espiritualidade é algo encarnado no contexto real da vida de cada pessoa e de cada época. Ela

expressa o sentido profundo do que se é e se vive de fato. [...] Paradoxalmente, pessoas muito

‘religiosas’ podem não ter horizontes espiritualmente válidos, ao passo que um ateu pode ser

uma pessoa espiritualmente rica. A razão deste paradoxo talvez esteja no fato de serem muitas

as maneiras pelas quais se chega à ‘experiência de Deus’, que para Lima Vaz, transcende a

‘experiência religiosa’, pois ‘a experiência religiosa’ é uma experiência do sagrado e a

experiência de Deus é uma experiência de sentido” (VALLE, 2005, p. 101-102).

Diante dessa correlação entre espiritualidade e religião, existe uma discussão em

pauta, colocada por Paiva (2005, p. 35), a respeito do nome da disciplina “psicologia da

religião” ser substituído por “psicologia da religião e da espiritualidade”, em função do termo

“espiritualidade”, apesar de recente em psicologia científica, estar despertando interesse de

estudiosos da área, que se colocam contrários às definições encontradas de religião.

3.1.1 Espiritualidade e velhice

Compreender as dimensões da espiritualidade pode nos levar a refletir sobre a

dinâmica do envelhecimento. Espiritualidade, como já explicado, é um conceito bastante

amplo, podendo também ser compreendido como uma reflexão sobre o significado da vida. A

compreensão das dimensões da espiritualidade proporciona uma visão mais abrangente da

dinâmica do envelhecimento.

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Na velhice, não há mais a ilusão do tempo, do tempo infinito na existência que é

percebida. Não é mais possível viver na procrastinação da consciência inevitável da finitude e

dos questionamentos a respeito da existência que a fase final do desenvolvimento humano

implacavelmente impõe. “[...] É que a finitude se põe existencialmente como o fundamento de

toda a inquietação humana. É a fonte de suas mais radicais interrogações. É aí que entra a

convocação antropológica e todo o caráter dramático da experiência religiosa” (OLIVEIRA,

1999, p. 46).

Ao completar 70 anos, Boff escreveu um texto intitulado Oficialmente velho, no

qual comenta o que é a velhice:

[...] A velhice é a última etapa do crescimento humano. Nós nascemos inteiros. Mas nunca estamos prontos. Temos que completar nosso nascimento ao construir a existência, ao abrir caminhos, ao superar dificuldades e ao moldar o nosso destino. Estamos sempre em gênese. Começamos a nascer, vamos nascendo em prestações ao longo da vida até acabar de nascer. Então entramos no silêncio. E morremos. A velhice é a última chance que a vida nos oferece para acabar de crescer, madurar e finalmente terminar de nascer. Neste contexto, é iluminadora a palavra de São Paulo: ”na medida em que definha o homem exterior, nesta mesma medida rejuvenesce o homem interior” (2 Cor 4,16). A velhice é uma exigência do homem interior. Que é o homem interior? É o nosso eu profundo, o nosso modo singular de ser e de agir, a nossa marca registrada, a nossa identidade mais radical. Esta identidade devemos encará-la face a face. (BOFF, 2008, n. p.).

Além do enfrentamento de problemas de ordens social, familiar, educacional,

previdenciário e de saúde pública, há, também, as questões existenciais. O aumento da

expectativa de vida e a promessa cada vez maior de longevidade pela medicina têm levado à

reflexão sobre o desenvolvimento da espiritualidade humana e sua importância na

longevidade.

Goldstein e Neri (2002) realizaram um estudo a fim de analisar a religiosidade

enquanto dimensão objetiva e subjetiva relacionada à satisfação na vida de pessoas adultas e

idosas. Salientam a diferença entre a religiosidade intrínseca, que caracteriza a pessoa

realmente religiosa, que internalizou suas crenças de tal modo que a religião faz parte

integrante de sua vida diária; e a religiosidade extrínseca, que caracteriza pessoa que usa a

religião para servir suas necessidades pessoais de ganho social e autoproteção, refletindo,

assim, um compromisso mais superficial em seus valores religiosos. A percepção do aumento

da religiosidade com o avançar do envelhecimento foi de cerca de 70% dos participantes, que

perceberam, também, que os comportamentos já existentes relacionados à religião na meia-

idade intensificaram-se na velhice.

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As autoras encontraram resultados que demonstraram um índice maior de práticas

religiosas privadas na velhice, isto é, menor presença em igrejas ou templos e maior prática de

orações em casa, principalmente para pedir perdão, implicando em uma solicitação de auxílio

e de proteção em momentos difíceis. Sendo assim, a religiosidade intrínseca foi a mais

praticada. Mas a igreja também é um forte elemento de suporte social, uma vez que a maioria

das pessoas investigadas relataram que a frequentam junto com amigos próximos

(GOLDSTEIN; NERI, 2002).

O envelhecimento pode acarretar fatores desconfortáveis e sentimentos de solidão,

porém, a aceitação das próprias dificuldades e limitações é indispensável para a vivência de

uma velhice mais satisfatória. A busca por maior relação com Deus facilita esta compreensão

e aumenta as “chances de envelhecer bem, com integridade e auto-realização.” Estes achados

são compatíveis com a proposta eriksoniana, que sugere, no estágio da velhice, a aceitação da

vida e de seus desafios, apoiada na esperança e na confiança, que consequentemente facilitam

a diminuição do sentimento de desespero, possível de ocorrer. As autoras enfatizam a

importância dada por Erikson à primeira fase do desenvolvimento de sua teoria, a confiança

e/ou desconfiança enfrentada pela criança diante da sua dependência de quem lhe cuida,

proporcionando o desenvolvimento da esperança, é o princípio da fé religiosa (GOLDSTEIN;

NERI, 2000, p. 120-130).

Investir em pesquisas sobre religiosidade pode ser um fator relevante para a

promoção de uma velhice satisfatória. “Prolongar a vida sem propiciar um significado para a

existência não é a melhor resposta para o desafio de envelhecimento” (Ibidem, p. 132).

Cupertino e Novaes (2004) apresentam propostas pertinentes sobre a relação entre

a espiritualidade e a qualidade de vida na velhice, com citações de vários estudiosos. Dentre

as pesquisas citadas encontram-se indícios conclusivos sobre a espiritualidade como recurso

de enfrentamento, como senso de satisfação e bem estar, como prevenção de processos

depressivos e na superação da patologia e de sua não reincidência, como estratégia de

enfrentamento a eventos estressores e como compreensão da morte e significação para a vida.

Em um estudo desenvolvido com cuidadores foi detectado menos tensão e mais saúde física

entre cuidadores mais espiritualizados, o que leva Cupertino e Novaes a concluírem que a

espiritualidade pode constituir um fator relacionado com melhor saúde física e emocional na

velhice, contribuindo, também, para maior adaptabilidade diante de questões do

envelhecimento.

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3.1.2 Espiritualidade como recurso de enfrentamento e compreensão da finitude/morte

Monteiro (2006b, p. 44) afirma que “somos seres de passagem”, uma vez que

desde o nascer trazemos a “programação da morte”, e destaca uma dúvida constante no ser

humano: a continuidade do ser após o cessar dos batimentos cardíacos e das atividades

cerebrais. Comenta Baggio24, para quem somos “cadáveres prometidos aos vermes e

bactérias, voltaremos ao poço ctônico25 ao qual devolveremos os componentes químicos de

nosso corpo, voltaremos ao solo do tempo eterno para reciclagem. Só assim somos eternos;

após a morte há apenas decomposição de cadáveres.” Mesmo assim somos seguidos pelo

sonho da imortalidade, pois a alma solicita crê na continuidade, na transcendência.

Tanto a morte quanto a vida se apresentam aos seres humanos como um grande

mistério. Muitas são as concepções geradas a partir da incógnita da morte. Jung considera a

existência de uma vida após a morte, porém uma vida psíquica, uma vez que ela acontece fora

das noções que temos de tempo e espaço. Jung viveu uma experiência de quase morte aos 68

anos, que lhe resultou em uma maior aceitação das experiências de vida e do destino, “como

também da possibilidade de transcendência, vendo a vida cada vez mais como um fragmento

da existência.” Ele não tem respostas para a compreensão da reencarnação e do carma26,

elementos comuns a crenças hindus; mas acredita que, após sua morte, as suas atitudes o

acompanharão (MONTEIRO, 2006b, p. 57). Tanto para Jung quanto para outros estudiosos

que acreditam ser a espiritualidade uma dimensão intrínseca do ser humano, a missão de uma

existência se constitui em encontrar o self, o que nos leva para frente, que é maior do que o

eu. Significa viver Deus e o amor (Ibidem, p. 61).

A vida é composta por eventos, por situações que acontecem e vão sendo

alinhavadas para formar uma colcha final de experiências e realizações. A autora Bernice

Neugarten propôs uma teoria denominada modelo de regulação por eventos, que considera o

desenvolvimento humano marcado por eventos de vida. No período infantil e adolescente,

esses eventos são de ordem maturativa interna e mostram o desenvolvimento de uma fase

para a outra. Na idade adulta, essa teoria sugere que os eventos marcantes que ocorrem ou não 24 BAGGIO, M. A. Textos escalares. Belo Horizonte: Editora B., 2003. 25 Na psicologia analítica, refere-se às profundezas da Terra. Jung, ao abordar arquétipos psíquicos, compara a

psique à Terra, dizendo que são essencialmente a porção ctônica da mente - se nos permitem usar esta expressão - aquela porção através da qual a mente está ligada à natureza, ou em que, pelo menos, a sua relação com a natureza e o universo parece ser sumamente compreensível (REDEPSI, 2007, n.p.).

26 Carma: palavra de origem sânscrita – karman – que quer dizer ação. Na filosofia hindu, se refere ao conjunto das ações humanas e suas consequências.

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serão determinantes no desenvolvimento. Os chamados eventos normativos são aqueles

acontecimentos previsíveis no decorrer da vida de uma pessoa, que podem ou não ocorrer, e

os eventos não normativos são os acontecimentos não previsíveis, que podem ser agradáveis

ou trágicos, individuais ou coletivos (PAPALIA; OLDS, 2000, p. 406).

Evidencio os eventos não normativos de vida, aqueles que aparecem na contramão

da natureza. São marcantes, inesperados e exigem esforço no sentido de superação. Alguns

desses eventos podem ser positivos, como ganhar em um jogo ou receber uma herança.

Outros podem ser trágicos, individuais ou coletivos, como a perda de um filho e/ou de entes

queridos, a perda de emprego, o diagnóstico de doença grave, o término de um

relacionamento afetivo importante, uma enchente, um terremoto. São situações que implicam

em perdas, que por sua vez implicam em luto e, por vezes, em sofrimentos incalculáveis.

No caso de doenças graves como o câncer, Teixeira e Lefèvre (2008) relatam que

estudos têm demonstrado como a espiritualidade em idosos pode ser fator auxiliar no

enfrentamento da doença. A fé aumenta a confiança e a esperança, diminuindo a angústia e a

falta de aceitação. Parece existir um aumento da fé em Deus na velhice, com mais leituras

bíblicas e maior participação em cultos religiosos. A fé, no idoso, pode auxiliar na

compreensão das dificuldades e adversidades. Os autores explicam que foi realizada uma

pesquisa27 com 20 idosos com câncer, dez de cada gênero, com idade média de 67 anos em

mulheres e 68 anos nos homens, a fim de compreender se a espiritualidade seria um fator

importante no enfrentamento da doença. Os achados demonstraram a importância da fé nesse

caso, que aumenta a força para lutar e vencer esse grande desafio. A leitura de textos

religiosos foi evidenciada pela influência benéfica na aceitação da doença, na tranquilidade

adquirida, na segurança e no otimismo quanto ao tratamento empregado.

Muitos idosos vivem a velhice com presença de patologias, várias delas

incapacitantes. Aqueles em fase avançada de demência, como a Doença de Alzheimer,

pesquisada pela gerontogeriatria atual por sua incidência no público idoso, podem vivenciar

uma dependência absoluta dos cuidados de outra pessoa. Esses idosos, apesar de acamados e

sem manifestar qualquer tipo de contato com o mundo externo, necessitam de atenção e

cuidados não apenas físicos, mas também de apoio emocional e espiritual. Se o estado de

saúde é gravíssimo, sem chance de cura pela medicina (prognóstico é reservado), existe mais

uma razão para que se dedique o respeito e o conforto que essa pessoa idosa necessita.

Elizabeth Kübler Ross, em seu livro Sobre a morte e o morrer, fala a respeito do desamparo

27 A pesquisa foi qualitativa e descritiva, realizada entre janeiro e março de 2001, no Hospital do Servidor

Público Estadual Francisco Morato de Oliveira/IAMSPE.

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percebido por muitas pessoas em fase final da existência e complementa: “podemos ajudá-los

a morrer, tentando ajudá-los a viver, em vez de deixar que vegetem de forma desumana”

(KÜBLER-ROSS, 2005, p. 25).

O idoso enfrenta situações de perdas inevitáveis da velhice e outras de ordem não

normativa, e o que se tem verificado é a imensa ligação destes indivíduos com algo

transcendente, com Deus.

Boff representou por meio da metáfora a águia e a galinha, a condição humana

transcendente e imanente: “Somos como galinhas, engaiolados numa determinada situação

existencial, profissional, econômica, afetiva. Rastejamos no chão e devemos ser concretos em

nossos projetos de vida. E simultaneamente somos águias, chamados às alturas, voando alto e

enfrentando ventos e tempestades” (BOFF, 2009, p. 37).

3.2 Sentido de vida

Viver nos dias de hoje tem sido um desafio para muitas pessoas. Estamos diante

de uma realidade de mudanças rápidas, na qual os valores têm sido questionados, o futuro se

mostra cada vez mais incerto e o tédio existencial se instala no presente de muitas pessoas,

que não encontram um propósito, um objetivo maior para o preenchimento do vazio de suas

vidas, em meio a tanta desvalorização da própria vida, questões pertinentes à pós-

modernidade (FREIRE; RESENDE, 2001).

A partir da década de 80, cresceu significativamente o interesse de estudiosos

sobre questões de busca de sentido para a vida, uma vez que elas pareciam exercer uma

influência direta na saúde mental, na construção da identidade de crianças e adolescentes, no

enfrentamento de situações de perdas e de luto e, também, na vontade de viver de pessoas

idosas. Há evidências, também, da sua relação com alguns sintomas como “vazio existencial,

ansiedade, depressão, falta de esperança, declínio da capacidade física e consumo de drogas e

álcool” (FREIRE; RESENDE, 2001, p. 76).

Wong compreende a questão da busca de sentido como um fator motivador

primário da natureza do ser humano, porém, a procura por respostas sobre a razão existencial

de cada um ou sobre o porque de sua existência são demandas relacionadas a uma

preocupação individual. Isso caracteriza a não possibilidade de generalização das questões

relacionadas à busca de sentido na vida. Cada ser humano tem uma busca única e, mesmo este

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indivíduo, pode alterá-la de um momento ao outro (WONG apud FREIRE; RESENDE,

2001).

Diante de tais colocações, torna-se desafiante a reflexão sobre a elaboração de

sentido de vida na velhice. Serão comentadas, a seguir, as colaborações de Frankl, um teórico

da intrigante questão do sentido de vida para o ser humano, norteadoras da compreensão desse

tema nessa dissertação.

3.2.1 O ser humano e a busca de sentido

Viktor Emil Frankl (1905-1997), médico, psiquiatra brilhante e doutor em

Filosofia e em Psicologia, deu uma contribuição ímpar à compreensão do ser humano,

demonstrando de maneira peculiar um crédito absoluto na capacidade de transformação do

homem. Dedicou grande parte de sua vida à questão da busca de sentido da humanidade.

Formou-se em medicina aos 25 anos e lecionou Neurologia e Psiquiatria até os 85 anos.

Escreveu 32 livros, traduzidos para 23 idiomas. Interessou-se, desde muito jovem, pela

Psicanálise de Freud e em seguida pela Psicologia Individual de Adler, até formar sua própria

escola (FRANKL, 2003a, p. 66).

Teve uma vida marcada por experiências dolorosas e ao mesmo tempo grandiosas.

Através da sua sensibilidade em relação aos sentimentos humanos, pode transformar a trágica

experiência como prisioneiro em campos de concentração nazistas em uma abordagem

terapêutica recheada de contribuições enriquecedoras, a Logoterapia, que Frankl traduziu

como “terapia através do sentido” (FRANKL, 2003c, p. 13). Nos campos de concentração

onde viveu por quase três anos, ele perdeu sua esposa, sua mãe, seu pai e seu irmão. Seu livro

Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração, que já se encontra na 26ª

edição brasileira, descreve sua trágica e corajosa experiência com o nazismo. Ao questionar

onde a liberdade humana estava dentro de um campo de concentração, descobriu-a na

liberdade espiritual, que ninguém tira e que permite ao ser humano uma escolha de atitude em

meio a tanto sofrimento, como podemos acompanhar em suas palavras:

[...] A experiência da vida no campo de concentração mostrou-nos que a pessoa pode muito bem agir “fora do esquema”. Haveria suficientes exemplos, muitos deles heroicos, que demonstraram ser possível superar a apatia e reprimir a irritação; e continua existindo, portanto, um resquício de liberdade do espírito humano, de atitude livre do eu frente ao meio ambiente, mesmo nessa situação de coação

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aparentemente absoluta, tanto exterior como interior. Quem dos que passaram pelo campo de concentração não saberia falar daquelas figuras humanas que caminhavam pela área de formatura dos prisioneiros, ou de barracão em barracão, dando aqui uma palavra de carinho, entregando ali a última lasca de pão? E mesmo que tenham sido poucos não deixou de constituir prova de que no campo de concentração se pode privar a pessoa de tudo, menos da liberdade última de assumir uma atitude alternativa frente às condições dadas. E havia uma alternativa! A cada dia, a cada hora no campo de concentração, havia milhares de oportunidades de concretizar esta decisão interior, uma decisão da pessoa contra ou a favor da sujeição aos poderes do ambiente que ameaçavam privá-la daquilo que é a sua característica mais intrínseca – sua liberdade – e que a induzem, com a renúncia à liberdade e à dignidade, a virar mero joguete e objeto das condições externas, deixando-se por elas cunhar um prisioneiro “típico” do campo de concentração. (FRANKL, 2006b, p. 66-67).

Frankl gostava muito de citar uma frase de Nietzsche: “Quem tem porque viver

pode suportar qualquer como” (FRANKL, 2006b, p. 8). Seguindo essa reflexão, os

questionamentos existenciais de Frankl enquanto estava no campo de concentração, foram

fatores que colaboraram de forma muito especial para que ele mantivesse a coragem e a

dignidade enquanto preso. Ao falar sobre a esperança de vida, o autor comenta que a

responsabilidade pela vida se dá através da consciência da relevância da existência humana

enquanto ser insubstituível pela unicidade que cada um representa. Quando se sabe o

“porque” da sua existência, da sua missão, pode-se suportar quase todo o como (FRANKL,

2006b, p. 78). Esse “como” promove o sentido. Ele acreditava que viver tem um sentido e

viver um sofrimento também tem o seu significado, que é único, individual e genuíno de

cada ser. Cada um é responsável por suas ações diante do sofrimento e cada um vai viver à

sua maneira as situações que a vida traz. Ninguém pode viver por ninguém. Viver é uma

experiência particularmente pessoal e única, porque implica em escolhas, em atitudes e em

afetos que são construções da subjetividade de cada um.

Na leitura junguiana, o ser humano busca a totalidade de si mesmo/self, sendo

essa a sua “missão e inclui a busca da dimensão espiritual, nosso eu necessita encontrar Deus,

o arquétipo 28 da totalidade. [...] Portanto, o sentido da vida precisa ser encontrado”

(MONTEIRO, 2006a, p. 39-40).

Considero relevante comentar a proposta de Frankl diante do que chama de “reino

dos valores”, no qual a compreensão do sentido de vida se faz presente. Ele aborda os valores

criadores, percebidos no empenho dedicado ao trabalho desenvolvido; e os valores vivenciais,

sentidos ao receber a beleza da natureza e da arte contidas no mundo, que podem ser

percebidos em apenas um momento, mas de infinita grandeza – como diz Frankl (2003b,

28 Arquétipos “são predisposições inatas da psique para representar, pensar e sentir as vivências básicas do

homem, independente da tradição e da cultura, eles são universais e originárias, como os instintos” (MONTEIRO, 2006a, p. 25).

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p.81-83), “embora se trate de um só momento, pela grandeza de um momento já se pode

medir a grandeza de uma vida [...]; e um simples momento pode dar sentido,

retrospectivamente, à vida inteira.” O autor continua mostrando que mesmo uma vida restrita

em criações e vivências pode ser farta de sentido, pois ainda existem os valores de atitude,

aqueles que o ser humano adota diante de situações imutáveis do destino.

As palavras de Frankl podem ser fortes o suficiente para levar o ser humano a uma

reflexão frente às próprias atitudes diante da vida. “O homem tem uma responsabilidade

perante os valores, ainda que se trate apenas de valores de atitude; [...] ser-homem significa

ser-consciente e ser-responsável.” A vida vai alterando o curso destes valores, cobrando-

nos,algumas vezes, realizações relacionadas aos valores de atitude, outras vezes aos criadores

e outras tantas aos vivenciais. Portanto, durante todo o curso de vida, o ser humano irá se

deparar com a obrigação da realização de valores (FRANKL, 2003b, p. 83). Nas palavras de

Frankl (2003b, p. 16): “a existência só poderá ser nossa se for responsável”.

Podemos, então, buscar a compreensão do que Frankl chama de “supra-sentido”,

ou seja, um sentido diante do fim-último. Existe uma preocupação em associar a crença em

um mundo transcendente, a fim de justificar e compreender o sofrimento. Para explicar, ele

compara o homem com o macaco, já que este não pode compreender ou imaginar a existência

de algo além do seu mundo observável e jamais se dá conta de questionamentos existenciais

humanos e reflexivos frente ao mundo de valores e sentidos em que vive a humanidade: “Até

lá não chega, não consegue atingir suas dimensões. Ora, não teremos nós que admitir que

acima do mundo humano, existe por sua vez um outro mundo, inacessível ao homem, e cujo

sentido, cujo supra-sentido seja o único capaz de dar sentido aos seus sofrimentos? A entrada

na dimensão supra-humana, efetivada na fé, funda-se no amor.” Percebe-se aqui a sua relação

com a espiritualidade e com esse “sentido último” que pode ser entendido como um sentido

maior (FRANKL, 2003b, p. 64).

Como compreender, então, a fé em Frankl? “A fé não é uma maneira de pensar da

qual se subtraiu a realidade, mas uma maneira de pensar à qual se acrescentou a

existencialidade do pensador” (FRANKL, 2006a, p. 90). Para o autor, o homem sempre

apresentou um vínculo intencional, mesmo inconscientemente, com Deus. Esse Deus é

denominado “Deus inconsciente” (Ibidem, p. 48).

Diferentemente de Freud, que admitia um inconsciente instintivo, Frankl amplia o

conceito de inconsciente para além esfera instintiva, admitindo-o como inconsciente

espiritual. Ele retifica o termo “psicologia profunda” relacionada à psicanálise, até então

preocupada com o “as profundezas inconscientes” dos instintos humanos, como uma

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“psicologia do id inconsciente”29, para relacioná-la ao “eu inconsciente”. A pessoa como

“centro da existência espiritual” não foi considerada anteriormente pela psicologia profunda.

O termo “pessoa profunda” refere-se à “pessoa espiritual-existencial, à sua profundeza

inconsciente, já que somente ela é uma verdadeira pessoa profunda.” Essa pessoa profunda,

espiritual no seu existir, é “irreflexível , por não ser passível de reflexão e, assim, também

não-analisável. [...] O espiritual-existencial em sua dimensão profunda, é sempre

inconsciente.” Sendo assim, “o espiritual é necessário, por ser essencialmente inconsciente”

(FRANKL, 2006a, p. 23-24).

Frankl admite o inconsciente espiritual, principalmente a religiosidade

inconsciente – o “inconsciente transcendente” – como um inconsciente existente, não

determinante. Ele afirma que não se pode considerar a religiosidade como algo inato, por não

estar relacionada ao biológico. Nascemos em um mundo de imagens religiosas, vinculadas à

cultura, não sendo possível recebê-las por transmissão biológica, como compreendem os

arquétipos de Jung (Ibidem, p. 51).

A religiosidade, para Frankl (2006a, p. 50), tem uma conotação pessoal, não nasce

do inconsciente coletivo, mas sim da própria pessoa, pois só ela pode se decidir por Deus: “a

religiosidade se mantém pelo seu caráter de decisão, e deixa de sê-la quando predomina o

caráter de impulso. A religiosidade ou é existencial, ou não é nada”.

Quando a religiosidade inconsciente é reprimida, ela pode ser causadora de

patogenias e geradoras de neurose. Segundo Lukas (2006, p.136-139), “com a religiosidade

reprimida desaparece a confiança na vida e no seu sentido.” A confiança precisa ser resgatada

para possibilitar a aceitação dos limites e conferir-lhes sentido, desenvolvendo a capacidade

que o ser humano tem de autotranscendência, ou seja, de ultrapassar este limite rumo ao que

acredita e ama. O ser humano necessita aprender a desenvolver a capacidade de “formar-se a

si mesmo sob o aspecto da credibilidade e da valorização do amor”. Isto é

autodistanciamento.

Buscar sentido é um privilégio do ser humano. Somos os únicos animais que

necessitamos disso. Entretanto, os animais possuem instintos que lhe dirigem o

comportamento. “Ao contrário do animal, o homem não tem instintos que lhe dizem o que

tem de fazer; e ao contrário do que acontecia em séculos passados, o homem de hoje já não

29 "O Id é o reservatório de energia do indivíduo. É constituído pelo conjunto dos impulsos instintivos inatos, que

motivam as relações do indivíduo com o mundo. O organismo, desde o momento do nascimento, é uma fonte de energia que se mobiliza em direção ao mundo, buscando a satisfação do que necessita para seu desenvolvimento." (RAPPAPORT; DAVIES; FIORI, 2003, p. 20-21).

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conta com tradições que lhe dizem o que deve fazer; assim, muitas vezes parece já não saber o

que quer” (FRANKL, 2003a, p. 12).

O ser humano está cada vez mais perdido diante de tantas possibilidades que o

mundo atual oferece. A nossa sociedade vem enfrentando mudanças frequentes e rápidas,

estimuladas por novos produtos e aquisições sedutoras e geradas pelo progresso na pós-

modernidade. Nunca se viram tantas pessoas buscando ajuda nos consultórios de profissionais

de saúde mental para a “cura” do vazio existencial, nem tamanho aumento de casos de

suicídio. Não se sabe o que se quer e, mesmo tendo todas as possibilidades de recursos

materiais e sucesso profissional, vive-se em total sentimento de tédio existencial, sem rumo

interior. Frankl denomina esse estado “vácuo existencial” ou “frustração existencial”, que é

uma ausência de sentido (FRANKL, 2003b, p. 26).

Frankl classificou, em logoterapia, um novo tipo de neurose que denominou

“neurose noogênica”. Essa neurose é resultante da falta de sintonia com uma missão especial na

vida e de um sentimento de abandono existencial, como comentado acima (FRANKL, 2003b, p.

27). “O ser humano, com efeito, necessita – dentro de limites bem dosados, naturalmente – de

uma tensão fecunda entre dois pólos: entre aquilo que ele é e aquilo que ele deve ser; necessita da

tensão existencial entre o ser e um sentido que ainda está por realizar” (FRANKL, 2003a, p. 22).

Frankl acredita que a razão maior da espiritualidade é colaborar para o encontro

do propósito e do significado da existência humana. Para Sommerhalder e Goldstein (2006), a

espiritualidade motiva pela busca de sentido para a vida. O pensamento de Frankl vai ao

encontro do pensamento de Antoniazzi (1998, p. 17) que diz que “não é a busca de Deus ou

da verdade que anima essas experiências religiosas: é a satisfação de necessidades pessoais”.

A religião vem tentando responder a vários questionamentos que o envelhecimento traz. A fé

tem sido colocada como responsável pela superação de momentos difíceis enfrentados pelos

idosos. Sommerhalder e Goldstein (2006, p. 1308) remetem a Frankl30, que explica: O homem possui uma dimensão noética ou espiritual, que pode se manifestar através da religião, ou não. Sua premissa é a de que na espiritualidade inconsciente do homem está contida uma religiosidade inconsciente. Isso se dá no sentido de um relacionamento inconsciente com Deus, em uma relação com o transcendente. A religiosidade é uma decisão e não tem caráter inato. Ela é construída no ambiente religioso-cultural em que o ser humano nasce, cresce e se desenvolve, o qual influencia seu conjunto de crenças.

30 Frankl. V. E. A presença ignorada de Deus: psicoterapia e religião. Porto Alegre: Imago, Sinodal, Sulina, 1985.

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3.2.2 Sentido de vida e velhice

Para que a velhice não seja uma irrisória paródia de nossa existência anterior, só há uma solução – é continuar a perseguir fins que dêem sentido à nossa vida: dedicação a indivíduos, a coletividades, a causas, trabalho social ou político, intelectual, criador (BEAUVOIR, 1990, p. 661).

As colocações de Frankl acerca dos valores de atitude remetem aos desafios que,

muitas vezes, uma velhice muito longa traz ao indivíduo idoso. Para Frankl (2006b), o tempo

que o ser humano tem é o presente. É nele que se escolhe o que se quer fazer eterno através do

passado. A existência humana é finita e irreversível. O passado é constituído de riquezas

acumuladas durante toda a existência:

A partir disso se pode ver que não há razão para ter pena de pessoas velhas. Em vez disso, as pessoas jovens deveriam invejá-las. É verdade que os velhos já não têm oportunidades nem possibilidades no futuro. Mas eles têm mais do que isso. Em vez de possibilidades no futuro eles têm realidades no passado – as potencialidades que efetivaram, os sentimentos que realizaram, os valores que viveram – e nada nem ninguém pode remover jamais seu patrimônio do passado (FRANKL, 2006b, p. 127).

Para Frankl, o sentido se revela, sobretudo, por meio da atitude do amor, do

trabalho, da criação e da atitude diante do sofrimento.

O idoso que alimenta seus sonhos e que vive com alegria pode dar um sentido

mais satisfatório à sua existência. Tornar-se um idoso “vivaz” é tornar-se pleno em suas

realizações e em suas atitudes. Moreno31 (apud COSTA, 1998, p. 63), ao se referir ao homem

espontâneo-criador, enfatiza que o homem “encontra seu ponto de partida, não fora, mas

dentro de si mesmo”. O idoso que está aberto ao conhecimento do novo e ao desenvolvimento

de sua criatividade poderá construir uma velhice muito mais satisfatória e com mais sentido.

Atribuir um sentido à vida vivida é um desafio existencial que leva o ser humano

ao cumprimento de um propósito, mesmo em situações muito pouco ou absolutamente nada

confortáveis. A busca por esse sentido atribuído à vida é subjetiva e cada qual irá trilhar um

caminho diferente para encontrá-lo, mesmo quando enfrentam uma mesma situação. “[...] não

é possível dar sentido, mas somente encontrar o sentido” (FRANKL, 2003a, p. 27). O sentido é, pois, uma silhueta que se recorta contra o fundo da realidade. É uma possibilidade que se destaca luminosamente, e é também uma necessidade. É aquilo que é preciso fazer em cada situação concreta; e esta possibilidade de sentido é sempre, como a própria situação, única e irrepetível. (FRANKL, 2003a, p. 28).

31 MORENO, J. L. Psicodrama. São Paulo: Cultrix, 1975.

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Encontrar sentido no sofrimento foi o que ele descreveu em todo o livro Em busca

de sentido. Na miséria maior dos campos de concentração nazistas, o sentido foi encontrado

por algumas pessoas e ele aprendeu a identificar aquelas que, por esta razão, sobreviveriam ao

sofrimento brutal que estavam sendo submetidos e aquelas que sucumbiriam a ele. Encontrar

sentido no sofrimento é, para Frankl (2006b, p. 77), demonstrar ter “a coragem de sofrer”.

Frankl acredita que todo o ser humano tem o que ele chama de “autocompreensão ontológica

pré-reflexiva” que irá orientá-lo para um sentido, através de três vias: ao fazer ou criar algo;

ao experimentar algo ou amar uma pessoa e ao saber transmutar a tragédia pessoal em vitória

quando estiver diante de uma situação imutável do destino (FRANKL, 2006b). Existe no

homem um direcionamento a uma vontade de sentido e o órgão que irá orientá-lo nesta busca

é a consciência, também chamada por Frankl de órgão de sentido, pois ela auxilia o homem

na tarefa constante de busca de sentido diante das situações enfrentadas no cotidiano

(FRANKL, 2003c, p. 31-68). O sentido verdadeiro só pode existir diante da responsabilidade

consigo mesmo. Essa consciência orienta-se para além do que se pode concretamente ser, ela

transcende (FRANKL, 2006 a).

Quando Frankl cita a terceira via para a busca de sentido - estar diante de uma

situação imutável do destino e saber transmutar a tragédia pessoal em vitória – remete a uma

reflexão sobre a situação dos velhos muito velhos. O ser humano na velhice não tem apenas a

consciência da sua finitude, conquistada na maturidade. Ele tem a “consciência da própria

morte.” O tempo segue paralelo à vida de maneiras diferentes e caminha na velhice em

comunhão com as experiências vividas no tempo passado, no presente e no futuro,

redimensionando suas vivências (PY; TREIN, 2006, p. 1355).

O velho muito velho, mais do que ninguém, necessita de exercitar o seu órgão de

sentido, para auxiliá-lo a transcender a si mesmo. Além da consciência da própria morte, ele

enfrenta, no cotidiano, mudanças de diversas ordens que exigem atitudes adaptativas nem

sempre fáceis de aceitar. Assim sendo, o exercício da fé é um grande parceiro. “A fé é

criadora. Como fé pura que brota duma força interior, torna o homem mais forte. Para um

crente assim, não há, em última instância, nada sem sentido” (FRANKL, 2003b, p. 64).

Um envelhecimento para ser considerado ótimo deve apresentar pouca ou

nenhuma perda funcional relativa à idade. Uma dos fatores que mais colaboram para isso é o

investimento em prevenção, mantendo, assim, um alto padrão de saúde física, boa resposta

aos desafios decorrentes do envelhecimento tanto de ordem biológica, quanto psicológica e

social. Sabemos da importância do caráter preventivo no alcance de um envelhecimento

saudável, mas, infelizmente, nem todas as pessoas colocam em prática as orientações

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preventivas, muitas delas por falta de melhores condições econômicas e de assistência de

saúde e social (FREIRE; RESENDE, 2001, p. 89-90).

Outro fator pertinente ao alcance desta condição privilegiada de envelhecimento,

salientada por Wong, é a consideração atribuída às necessidades espirituais e existenciais na

velhice. Para o autor, “ter um sentido e propósito positivo na vida não somente acrescenta

anos à vida de alguém, mas também acrescenta vida aos anos. Sem um claro senso de sentido

e propósito em face do declínio físico, a longevidade pode vir a ser um fardo insuportável”. O

sentido pessoal tem papel importante na promoção da saúde e do bem-estar psicológico.

Atribuir um sentido à vida frente à situação de envelhecimento pode também ser considerada

prevenção (FREIRE; RESENDE, 2001, p. 90-91).

Muitas pessoas que enfrentam o envelhecimento com posturas positivas mesmo

frente a situações mais complicadas (como perdas de pessoas queridas, perdas relacionadas à

saúde física ou limitações próprias da velhice) e continuam ativas criando objetivos e metas a

cumprir, ocupando-se de tarefas interessantes adequadas às suas condições reais, reforçam o

sentido atribuído a suas vidas, colaborando assim, para maior satisfação e aceitação da vida.

Volto a citar Beauvoir: A liberdade e a lucidez não servem para grande coisa, se nenhum objetivo nos solicita mais: elas têm um grande valor se ainda somos habitados por projetos. A maior sorte do velho, muito mais do que gozar de uma boa saúde, é sentir que, para ele, o mundo está ainda povoado de fins. Ativo, útil, escapa ao tédio e à decadência. O tempo que vive permanece o seu, e os comportamentos defensivos ou agressivos que caracterizam habitualmente a última idade não lhe são impostos. Sua velhice é, por assim dizer, passada em silêncio. Isso supõe que, na idade madura, ele se tenha engajado em projetos que desafiam o tempo: na nossa sociedade de exploração, esta possibilidade é recusada à imensa maioria dos homens (BEAUVOIR, 1990, p. 603).

Freire e Resende (2001) listam algumas estratégias sugeridas por Wong para

otimizar o sentido de vida na velhice: revisão de vida; busca de atividades; dedicação a

relacionamentos significativos; otimismo; sonhos a serem vividos; tarefas a serem realizadas;

religiosidade e bem-estar espiritual; trabalho criativo nas artes e em outros domínios da

experiência estética; relacionamento estável com significado; saber-se importante para

alguém; autotranscendência na forma de servir a Deus e ao próximo; prazeres simples como

admirar os pássaros e os campos floridos; rir como criança e com criança; esperança no

futuro; lembrar que amanhã é um novo dia e que sempre há uma luz no fim do túnel. Uma

das mais significativas sugestões de Frankl é o reconhecimento das memórias ricas de um

passado que mantém vivo na memória o significado de uma existência (FRANKL, 2006b).

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3.2.3 Sentido de vida, velhice e morte

Perder a vida é uma ninharia e terei coragem quando for preciso. Mas ver-se dissipar-se o sentido da vida, desaparecer nossa razão de existir, eis o insuportável. (ALBERT CAMUS apud NEGREIROS, 2003).

A sociedade contemporânea evidencia a juventude em detrimento da velhice,

conforme já explanado anteriormente. Entretanto, Frankl (2006b) contempla a velhice de

forma especial, considerando o idoso como guardião de memórias vividas que podem lhe

proporcionar um acervo especial de experiências e resultar em amadurecimento. Para Frankl,

nada do que foi vivido pode ser eliminado e o ter sido é a mais segura forma de ser. O velho

pode se sentir feliz ao pensar na riqueza implícita nas suas memórias, na sua vida vivida

plenamente, não havendo razões para invejar o jovem. “Que importa notar que está ficando

velho?” Invejar o jovem pelo tempo que ele tem pela frente, diz Frankl, “Eu agradeço”, pois

como velho,

em vez de possibilidades, realidades é o que tenho no meu passado, não apenas a realidade do trabalho realizado e do amor vivido, mas também a realidade dos sofrimentos suportados com bravura. Esses sofrimentos são até mesmo as coisas das quais me orgulho mais, embora não sejam coisas que possam causar inveja (FRANKL, 2006b, p. 106-107).

Para Frankl duas coisas que parecem poder tirar o sentido da vida de um ser

humano, são o sofrimento e a morte. Recapitulando, a pessoa que aprende a ter a coragem de

enfrentar o sofrimento e encontrar um sentido nele, caminha em direção à maturidade e à

confiança na vida. O autor considera apenas as potencialidades como os únicos aspectos

transitórios na vida, porém a transitoriedade da existência não lhe rouba o sentido (FRANKL,

2006b).

O homem é um ser-responsável diante da existência. Ele é único, singular, como

as impressões digitais. Como diz Frankl, “caráter de algo único” que junto com

irrepetibilidade de uma situação fazem parte do sentido da vida do ser humano, acrescido,

paralelamente, da finitude, elemento da condição humana. O fato do ser humano ser finito, ou

seja, conviver com a certeza do morrer, não lhe tira o mérito de buscar sentido para sua

existência. Conhecendo os limites da morte, o ser humano pode viver de forma a aproveitar

cada momento da vida com mais intensidade e a aproveitar as oportunidades que lhe são

apresentadas. “A finitude, a temporalidade, não é apenas, por conseguinte, uma nota essencial

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da vida humana; é também constitutiva do seu sentido. O sentido da existência humana funda-

se no seu caráter irreversível” (FRANKL, 2006b, p. 108-109). Cada pessoa tem um tempo de

vida e o seu sentido não pode jamais ser avaliado pelo tempo vivido. “[...] O que carece de

sentido não passa a tê-lo pelo simples fato de se eternizar” (Ibidem, p. 113). Pela ótica natural,

o tempo de vida de cada ser humano está vinculado ao seu destino. O destino, assim como a

morte, também tem um sentido e colabora para dar sentido à vida. No espaço do destino

individual, cada um é insubstituível e um destino não se repete, nem para outro ser, nem para

o próprio ser do destino em tempos diferentes.

A vida humana tem três tempos: o presente, o passado e o futuro. Frankl (2003c,

p. 101-102) comenta que “o presente é a fronteira entre a não realidade do futuro e a realidade

eterna do passado.” O passado é congelado na morte, nada mais se modifica, pois o ser não

possui mais nem a mente, nem o corpo, restando-lhe apenas o eu espiritual, o self. “O morto é

o seu passado.” O ser humano vai construindo sua existência a partir do seu nascimento,

criando a si mesmo. Essa condição de um criar consecutivo faz do homem um ser que se

completa na morte, quando ele finalmente “é”, quando sua existência se torna uma realidade.

Assim como o despertador nos acorda pela manhã, a morte nos acorda para a nossa

realidade.Proponho terminar este capítulo com uma reflexão de Beauvoir (1990, p. 12) sobre

o sentido de vida e a velhice: Paremos de trapacear; o sentido de nossa vida está em questão no futuro que nos espera; não sabemos quem somos, se ignorarmos quem seremos: aquele velho, aquela velha, reconheçamo-nos neles. Isso é necessário, se quisermos assumir em sua totalidade nossa condição humana. Para começar, não aceitaremos mais com indiferença a infelicidade da idade avançada, mas, sentiremos que é algo que nos diz respeito. Somos nós os interessados. Essa infelicidade denuncia contundentemente o sistema de exploração no qual vivemos. O velho incapaz de suprir suas necessidades representa sempre uma carga. [...] Este é o sentido do conto de Grimm [...] Um camponês dá de comer a seu pai separado da família, numa pequena gamela de madeira; [...].

A partir desses temas desenvolvidos até aqui, a seguir, serão apresentados o

processo metodológico que fundamenta a pesquisa empírica e os dados obtidos por

intermédio da pesquisa de campo a fim de compreender se o fator espiritualidade pode

influenciar na construção ou na elaboração do sentido de vida na velhice tardia e, em caso

afirmativo, como isso ocorre.

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4 METODOLOGIA

4.1 Tipo de Pesquisa

A proposta desta dissertação é fazer uma reflexão acerca das contribuições da

espiritualidade na elaboração do sentido de vida de pessoas na velhice tardia e compreender

como isso ocorre. Assim, ela é o resultado da análise de dados advindos do relato

da experiência de vida de pessoas idosas, respeitando a individualidade, a subjetividade e as

conquistas pessoais de vida, considerando cada uma dentro de seu contexto social e cultural

específicos. Por essa razão, escolhemos trabalhar com a pesquisa qualitativa, muito utilizada

pelas ciências humanas e sociais atualmente, principalmente por dar ao pesquisador a

oportunidade da interpretação dos relatos das experiências vivenciadas pelo ser humano. Ela

“[...] localiza o observador no mundo. Consiste em um conjunto de práticas materiais e

interpretativas que dão visibilidade ao mundo” (DENZIN; LINCOLN, 2006, p. 17).

A pesquisa qualitativa trabalha com fenômenos:

O significado de fenômeno vem da expressão grega fainomenon e deriva-se do verbo fainestai que quer dizer mostrar-se a si mesmo. [...] A expressão fenômeno tem o significado de aquilo que se mostra em si mesmo, o manifesto (MARTINS; BICUDO, 2005, p. 21-22).

É um tipo de abordagem caracterizada como interdisciplinar, por permitir o

diálogo entre áreas distintas como Psicologia, Sociologia, Antropologia, Ciências da Religião

e outras. Faz parte da pesquisa qualitativa uma grande variedade de materiais empíricos, dentre

eles a história de vida, de interesse nesta pesquisa (DENZIN; LINCOLN, 2006, p. 17-21). Sendo

assim, o caminho escolhido para desenvolver esta proposta está circunscrito no método de

História Oral, que é um conjunto de procedimentos que se inicia com a elaboração de um projeto e continua com o estabelecimento de um grupo de pessoas a serem entrevistadas. [...] História Oral é um processo sistêmico de uso de entrevistas gravadas, vertidas do oral para o escrito, com o fim de promover o registro e o uso de entrevistas. [...] é um processo de aquisição de entrevistas inscritas no “tempo presente” e deve responder a um sentido de utilidade prática, social e imediata. [...] A mediação eletrônica e, aliás, uma das marcas da história oral como um procedimento novo e renovável. O que deve ficar firmado, porém, é que a história oral não se faz sem a participação humana direta, sem o contato pessoal. (MEIHY; HOLANDA, 2007, p. 15-22).

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A escolha desta metodologia de pesquisa foi feita pelo interesse da construção dos

significados dos temas diretamente a partir da experiência das pessoas individualmente e no

seu contexto coletivo. A busca por literatura específica mostrou a escassez de publicações na

área. Porém, o que mais pesou na escolha deste método foi a possibilidade de dar voz a um

público quase sempre esquecido e estigmatizado: o dos velhos muito velhos.

Por ter proposto uma pesquisa sobre um tema específico, escolhi trabalhar com a

História Oral Temática. Essa modalidade fornece informações sobre uma temática central e

compromete-se com o esclarecimento de maneira bastante objetiva. A hipótese de trabalho

nessa modalidade “é testada com insistência e o recorte do tema deve ficar de tal maneira

explícito que conste das perguntas a serem feitas ao colaborador” (MEIHY; HOLANDA,

2007, p. 39).

A pesquisa de campo foi desenvolvida através de entrevistas semi-estruturadas,

desenvolvidas a partir de um tema central, gravadas em fitas cassete e, posteriormente,

transcritas. Como o único material utilizado na etapa empírica da pesquisa foram as narrativas

dos colaboradores, ela pode ser classificada como história oral pura (MEIHY; HOLANDA,

2007, p. 128-129).

Verificou-se que, no decorrer das entrevistas, muitas perguntas geravam um

passeio bem detalhado sobre a história de vida das colaboradoras, ajudando-as a

contextualizar o conteúdo narrado com o período histórico do acontecido e com a situação

presente. Assim sendo, classifico este trabalho como um trabalho de história oral temática,

com algo de história oral de vida, como cita Meihy (1996, p. 42): Há projetos temáticos que combinam algo de história oral de vida. Nestes casos, o que se busca é o enquadramento de dados objetivos do depoente com as informações colhidas. Esta forma de história oral tem sido muito apreciada, porque mesclando situações vivenciais, a informação ganha mais vivacidade e sugere características do narrador.

Isso foi claramente observado no tom das palavras, nos movimentos das mãos e

do corpo, na expressão das faces – que variavam de acordo com cada emoção trazida à tona

na vivência do agora, resgatada de baús muito bem guardados na memória. Ao recorrer às

reminiscências, o tempo narrado é o presente, por isso a história oral “é sempre uma história

do tempo presente e também conhecida como história viva” (MEIHY, 1996, p. 13). É isso que

faz a vida da memória: essa possibilidade de resgatar do passado emoções transformadas

pelas vivências de uma vida, no aqui e no agora. É uma memória dinâmica, que vai surgindo a

partir do contato e da interação do pesquisador com o colaborador (ALENCAR, 2004, p. 96).

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Pude perceber a construção do vínculo entre o pesquisador e o colaborador. É uma

relação delicada, pois uma entrevista tem sempre um caráter invasivo – não só no que diz

respeito às reminiscências descortinadas, mas também ao espaço físico. Entramos na casa do

nosso colaborador, ouvimos suas histórias, suas emoções mais íntimas, muitas vezes ditas

pela primeira vez a alguém. Compartilhamos de sua intimidade e de seu estilo de vida. Esta

sensação também foi percebida por Portelli (1997, p.21) que comenta que “[...] quando

fazemos uma entrevista, invadimos a privacidade de outra pessoa e tomamos seu tempo”.

É preciso que a relação pesquisador-colaborador seja envolvida por um cuidado

ético. Ferreira e Grossi (2004, p. 50-51) comentam: “A relação que se estabelece entre

entrevistador e entrevistado é mediada por um respeito às diferenças. [...] Na relação

entrevistador e narrador, a mediação ética se expressa numa construção de projetos

autônomos [...]”.

Desenvolve-se, então, a confiança, que permite que a memória libere seus

conteúdos mais sutis, muitas vezes encobertos pelas atividades do dia a dia das pessoas e,

também, pela falta de terem para quem contar. Por meio destas lembranças o passado é

trazido para o presente, com uma possibilidade de leitura lapidada pela experiência adquirida,

possibilitando sua resignificação. É a identidade do sujeito que vai sendo revelada à partir de

cada fato mencionado, de cada lembrança resgatada, em seu tempo e espaços próprios.

Trabalhar com memória permite essa riqueza e justifica a escolha do método.

4.2 Critérios para seleção dos participantes da pesquisa

Para selecionar os participantes da pesquisa, os critérios básicos de inclusão dos

sujeitos colaboradores foram: a) concordarem em participar da pesquisa e assinarem o Termo

de Consentimento Livre e Esclarecido; b) apresentarem idade igual ou superior a 75 anos; c)

não apresentarem patologias que comprometam sua livre expressão oral e lucidez.

4.3 Caracterização dos participantes da pesquisa

Participaram voluntariamente da pesquisa oito mulheres idosas entre 82 e 98 anos.

No QUADRO 2, verifica-se o perfil geral das participantes da pesquisa, composto pelas

variáveis: idade, escolaridade, tipo de escola, estado civil, local de nascimento, número de

filhos, filhos falecidos, netos e bisnetos, com quem reside, religião e prática religiosa.

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QUADRO 2 Perfil das colaboradoras

Codinome das Mulheres

Entrevistadas

Idade Escolaridade Completa

Tipo de escola

Estado civil

Local de Nascimento

Número de filhos

Filhos falecidos

Número de netos

Número de

bisnetos

Com quem mora

Religião Prática religiosa

ESTEFANOTE 90 Normal Particular Católica

Viúva Entre Rios de Minas (MG)

8 0 9 2 1 filho Católica Católica

VIOLETA 98 Normal Particular Católica

Viúva Manhumirim (MG)

5 0 9 6 1 filha Católica Católica

LIS 90 Normal Particular Católica

Viúva Mar de Espanha

(MG)

11 1 20 7 Com empregada

Católica Católica

HORTÊNSIA 84 Normal Particular Católica

Viúva Juiz de Fora (MG)

3 3 3 1 2 netos e 1 bisneta

Católica Católica

ROSA 92 Normal Particular Católica

Viúva Belo Horizonte

(MG)

8 1 16 13 Com empregada

Católica Católica

ORQUÍDEA 82 Clássico Particular Católica

Viúva Bom Despacho

(MG)

8 0 17 1 1 filho Católica Católica

LÓTUS 87 Normal Pública e Particular Católica

Viúva Belo Horizonte

(MG)

6 0 11 3 Com empregada

Católica, budista, hindu

Católica, budista, hindu

MARGARIDA 82 Contabilidade Escola pública

Casada Astolfo Dutra (MG)

4 0 5 0 Marido Espírita Espírita kardecista

Fonte: resultados da pesquisa

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Podemos verificar que todas são mulheres mineiras, seis de cidades do interior de

Minas Gerais e duas da capital, Belo Horizonte. Vale ressaltar que esse sempre foi um estado

relacionado a tradições culturais e religiosas. Dentre as colaboradoras, sete são viúvas e apenas

uma é casada. Nenhuma mora completamente só. Todas tiveram filhos e três perderam filhos.

Sete estudaram em escolas católicas e apenas uma não o fez. Considerei este dado importante,

para saber se na sua formação educacional receberam influência religiosa ou não, para podermos

considerar esse dado na formação do sujeito e em sua escolha religiosa. Seis pertencem à religião

católica e são integrantes do grupo de Renovação Cristã. Uma é da religião espírita kardecista e

uma profere três religiões concomitantemente: católica, budista e hindu.

Trabalhou-se com esta amostra por apresentar mais facilidade de contato e estar

dentro do perfil necessário, sendo assim um tipo de amostra não probabilística, por conveniência.

(ALENCAR, 2004, p. 63).

Inicialmente foi feito um contato com a primeira colaboradora, que por sua vez, fez

contato com outras cinco pessoas, que também aceitaram participar. O grupo foi visitado por

mim, a fim de conhecê-las e explicar pessoalmente o porquê desta pesquisa. Depois, foram

identificadas duas outras pessoas, também cientes do caráter deste trabalho, que interessaram em

colaborar.

Sugeri às colaboradoras que dissessem o nome de uma flor que as caracterizassem. Esse

nome foi usado em substituição aos seus nomes próprios ao longo da apresentação dos dados, a

fim de não identificá-las e para não trabalharmos apenas com números de entrevistas, o que, em

minha opinião, dificulta a memorização. Essa opção foi também para homenageá-las, como já foi

comentado na introdução desta pesquisa.

4.4 Coleta de dados

Os dados desta pesquisa foram obtidos por meio de entrevistas realizadas durante o

segundo semestre de 2009, após a autorização do Comitê de Ética em Pesquisa da PUC Minas,

em julho do mesmo ano.

A entrevista é um recurso metodológico de especial importância na pesquisa

qualitativa, sendo desenvolvida de maneira peculiar, proporcionando um encontro social,

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contendo características próprias, como empatia, intuição e imaginação (MARTINS; BICUDO,

2005). Escolheu-se trabalhar com a entrevista semi-estruturada, aberta, com questões ao mesmo

tempo profundas e subjetivas, permitindo ao entrevistado um contato com seus sentimentos,

valores, atitudes e comportamentos, por meio de um roteiro baseado no tema foco, formado por

questões que permitem flexibilidade, deixando a sequência a cargo “dos discursos dos sujeitos e

da dinâmica que ocorre naturalmente” (ROSA; ARNOLDI, 2006, p. 30-31).

As entrevistas foram realizadas na casa de cada uma das colaboradoras, em dia e

horário previamente agendados. Pela metodologia escolhida, as entrevistas foram gravadas, com

a permissão prévia das participantes da pesquisa. O número de encontros variou de acordo com a

disponibilidade e a necessidade de cada uma das colaboradoras. Foi feito um rapport que

permitiu às colaboradoras um conhecimento acerca do caráter temático da pesquisa, assim como

sua metodologia.

Em um caderno de campo, foram registradas as entrevistas e as observações mais

pertinentes do pesquisador, como instrumento de acompanhamento do andamento da pesquisa:

“O caderno de campo deve ser íntimo e o acesso a ele deve ser exclusivo de quem dirige as

entrevistas” (MEIHY; HOLANDA, 2007, p. 152).

As entrevistas foram primeiramente transcritas, literalmente, preservando todas as

perguntas e todo o conteúdo das respostas. Depois, passou-se para a fase de textualização da

transcrição, a fase 2, segundo Meihy e Holanda (2007, p. 140-143): “Nessa fase foram eliminadas

as perguntas, tirados os erros gramaticais e reparadas as palavras sem peso semântico.” Na fase 3,

o texto chegou a sua versão final, que foi apresentado a cada uma das colaboradoras, a fim de que

avaliassem o conteúdo e autorizassem a sua utilização no corpo da dissertação.

A leitura conjunta do texto com algumas colaboradoras possibilitou-as a ocupação do

lugar de ouvintes da própria história, enriquecendo assim, a compreensão da narrativa. Algumas

preferiram uma leitura solitária, também acolhida. Foram respeitadas as solicitações de cortes de

algumas partes do texto e o resultado final foi autorizado por todas.

O fato de terem acompanhado a construção deste trabalho, deu mais segurança, não

só a elas, mas também a mim, enquanto pesquisadora, pois essa construção compartilhada

contribuiu para o enriquecimento da pesquisa, que pode ser realizada com maior dinamismo.

Também senti uma tranquilidade ética, no que tange ao respeito à individualidade de cada uma

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das colaboradoras, pois as narrativas são fruto da experiência de vida delas, são as histórias delas,

e ninguém mais do que elas tem o direito de acompanhar essa construção.

O passo seguinte foi a elaboração da análise e interpretação dos dados colhidos, em

consonância com os objetivos e a base teórica da pesquisa.

4.5 Estratégias de análise e interpretação dos dados

É um exercício desafiante o de interpretar a história do outro, a vida viva em cada

lembrança. É uma tarefa árdua. Por meio do resgate do que é contado, na confiança explícita de

quem narra e na escuta atenta de quem recebe, está uma vida humana sendo escancarada em cada

palavra e em cada emoção. São várias vidas, várias histórias, várias versões subjetivas de fatos e

situações individuais significativas de vida, que vão, para nós ouvintes interessados, tecendo uma

rede comum na intenção do todo. Assim: “A arte de narrar envolve a coordenação da alma, da

voz, do olhar e das mãos. É como que uma performance em que a palavra, associada à ação,

permite ao homem mostrar quem ele é” (FROCHTENGARTEN, 2005, p. 372).

Acredito que o maior desafio consiste na interpretação, por parte do pesquisador, desse

homem que se mostra para nós como ele é, como disse Frochtengarten (2005). Ferreira e Grossi

(2004, p. 55) ressaltam: “No campo da história oral percebe-se uma ausência de métodos na arte

de interpretar seus documentos. Ao pensarmos nas subjetividades e nessa relação com o outro,

consideramos pertinente buscar elementos constitutivos à fundamentação no campo da

interpretação”.

A fim de facilitar e desenvolver um sentimento de familiarização com as narrativas, após

cada transcrição feita, o material foi checado e várias leituras foram realizadas. Para Martins e

Bicudo (2005), a familiarização é um processo fundamental na pesquisa fenomenológica, pois

possibilita ao pesquisador se colocar no lugar de quem narra, tentando viver a sua experiência.

Esse exercício facilita a indicação de significados existentes na descrição, respondendo, assim, a

diversas indagações do pesquisador.

A construção da análise de dados desta pesquisa também contou com a orientação da

técnica de análise de conteúdo, proposta por Bardin (1977, p. 9): “Enquanto esforço de

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interpretação, a análise de conteúdo oscila entre os dois polos do rigor da objetividade e da

fecundidade da subjetividade”. Quanto ao método:

Um conjunto de técnicas de análise das comunicações visando obter, por procedimentos, sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção (variáveis inferidas) destas mensagens. (BARDIN, 1977, p. 41).

Segundo Bardin (1977), na organização da análise, esta técnica propõe três etapas: 1) a

pré-análise; 2) a exploração do material; 3) o tratamento dos resultados, a inferência e a

interpretação.

Na primeira fase, a pré-análise foi realizada por meio da leitura flutuante, que

consiste na exploração das narrativas, a fim de permitir ao pesquisador a identificação de

concepções acerca dos temas foco da pesquisa (BARDIN, 1977). Os capítulos dois e três desta

dissertação contribuíram para o desenvolvimento adequado desta fase, auxiliando também na

elaboração dos temas e das categorias, alinhavados aos objetivos da pesquisa.

A segunda fase, exploração do material, colabora com a codificação. Segundo

Bardin (Ibidem, p. 103-106), “os dados brutos são transformados sistematicamente e agregados

em unidades, as quais permitem uma descrição exata das características pertinentes do conteúdo."

Esta dissertação irá trabalhar com temas como unidades de registro, pois este permite o exame

“de opiniões, de atitudes, de valores, de crenças, de tendências etc.”.

Na terceira fase, tratamento dos resultados obtidos e interpretação, primeiramente foram

criadas as categorias, a partir dos temas. As categorias de análise constituem um ponto de

especial importância na análise de conteúdo e nessa pesquisa, não foram criadas a priori. Elas

foram desenvolvidas a partir da leitura e exploração das narrativas, portanto, a posteriori. A

liberdade que o método permite na criação e na análise das categorias exigiu da pesquisadora um

esforço árduo, seguido de determinação, perseverança e ousadia para lidar com as entrevistas,

com singular atenção ao caráter científico que este trabalho exige. Maria Laura Franco (2005, p.

58), ao se referir ao processo de criação de categorias, comenta: Não existem “fórmulas mágicas” que possam orientá-lo, nem é aconselhável o estabelecimento de passos apressados ou muito rígidos. Em geral o pesquisador segue seu próprio caminho baseado em seus conhecimentos e guiado por sua competência, sensibilidade e intuição.

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A partir destas orientações metodológicas, escolheu-se trabalhar com temas geradores de

categorias. Então, a categorização dos dados foi realizada a partir de unidades temáticas,

confrontadas com a base teórica desenvolvida nos capítulos iniciais. Chegou-se, então, à

interpretação das narrativas, desenvolvidas a partir das categorias geradas por cada tema e tendo

como base todo o referencial teórico estudado.

4.5.1 Análise dos dados: temas e categorias/unidades de sentido

Os significados atribuídos pelos colaboradores aos temas foco da pesquisa foram

codificados em categorias e analisados através da análise de conteúdo. Os significados

encontrados nas narrativas deram origem a três temas que geraram várias categorias cada, a

saber:

TEMA 1 – VELHICE

Categorias:

a) velhice percebida/temporalidade b) velhice/atualização/intergeração/mudança c) velhice e desenvolvimento de atividades e sentido de vida d) velhice e aceitação/integridade e) velhice e liberdade f) velhice e família g) velhice e consciência de finitude/morte h) velhice e resiliência i) velhice e autoestima

TEMA 2 – ESPIRITUALIDADE

Categorias:

a) espiritualidade e respeito à diversidade humana b) espiritualidade e criatividade/arte c) espiritualidade e consciência de finitude/morte d) espiritualidade e velhice e) espiritualidade e fé/consciência divina/transcendência f) espiritualidade e religião

- religião como regulador moral - religião como tradição familiar - religião e fé como recursos de enfrentamento

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g) espiritualidade e eventos não normativos de vida h) espiritualidade e práticas religiosas como abertura para o novo e busca de sentido TEMA 3 – SENTIDO DE VIDA

Categorias:

a) sentido de vida e espiritualidade/religiosidade/velhice b) sentido de vida e projetos

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5 ANÁLISE DOS DADOS

Neste capítulo são apresentados os dados resultantes da pesquisa empírica realizada.

Primeiramente, faz-se uma análise desses dados, que estão separados em temas e em suas

respectivas categorias, tendo como base o referencial teórico apresentado nos capítulos iniciais

deste trabalho. Em sequência, são apresentados os quadros das referidas categorias, contendo os

trechos das narrativas pertinentes ao tema selecionado.

As categorias do “tema um” abordam questões relacionadas à velhice. Esse é um

período marcado por uma série de eventos normativos e não normativos de vida e, como tal, é

compreendido através de sua característica idiossincrática.

No “tema dois”, as categorias versam sobre a espiritualidade. Nos relatos coletados, o

fator religião, contido na espiritualidade, destacou-se em alguns pontos das narrativas das

entrevistadas. Como pode ser verificado no QUADRO 2, que mostra o perfil geral das

colaboradoras, sete, das oito participantes, estudaram em colégios particulares católicos.

Considerei relevante, então, tecer algumas subcategorias relacionadas ao tema.

As categorias do “tema três” tratam do sentido de vida na velhice e de como esse

sentido pode ser apreciado e desenvolvido mesmo na velhice tardia.

Durante o período de análise dos dados, como pesquisadora, tive um cuidado especial

de tentar ocupar o lugar de quem observa e interpreta, obviamente com base no referencial

teórico mencionado, evitando, ao máximo, interferências pessoais. Essa é uma tarefa delicada,

como comentam Ferreira e Grossi (2004, p. 56): “[...] Então, ficamos com esse desafio:

‘interpretar é confrontar a proposição de mundo do texto com as possibilidades existenciais do

intérprete no seu próprio mundo, é lógico que a interpretação é sempre um processo relativo,

sujeito às vicissitudes do tempo’.”

Como pesquisadora, outra tarefa que exigiu minucioso cuidado foi a seleção e o corte

adequado das falas contidas nas narrativas. O material é riquíssimo e todo ele tem significados

muito pertinentes, que levam a querer mostrar tudo o que foi dito. À medida que as perguntas

eram feitas, as respostas tomavam uma proporção maior, pois não se limitavam apenas no foco da

pergunta, mas traziam elementos com detalhes impressionantes, como se descortinasse o passado

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em reminiscências vivas, que estavam apenas aguardando a oportunidade de serem libertadas por

alguém. Compartilho essa percepção com as palavras de Frochtengarten (2005, p. 374): As lembranças abrem as portas para o que veio antes e depois. Uma recordação chama outra, compondo uma teia de rememorações mais ou menos singular, cuja textura se alinhava pela maneira como cada memorialista recolhe e amarra as imagens pregressas e busca sua significação. [...] Uma vida é vivida quando narrada.

Como as colaboradoras desta pesquisa têm entre 82 e 98 anos, são muitas as histórias

para serem recordadas e ouvidas. A seleção dos trechos das narrativas foi feita com o maior

rigor, para que correspondam à solicitação de cada categoria de maneira adequada. Para Portelli

(1997, p. 16): A memória é um processo individual, que ocorre em um meio social dinâmico, valendo-se de instrumentos socialmente criados e compartilhados. Em vista disso, as recordações podem ser semelhantes, contraditórias ou sobrepostas. Porém, em hipótese alguma, as lembranças de duas pessoas são – assim como as impressões digitais, ou, a bem da verdade, como as vozes – exatamente iguais.

Os trechos selecionados das narrativas aparecerão ao longo desta análise entre aspas

(quando estiverem ao longo do parágrafo) ou recuados, como devem ser grafadas as citações

diretas longas. Outras falas foram agrupadas em quadros comparativos, a fim de que melhor se

percebam e se comparem diferentes depoimentos sobre um mesmo aspecto. Em todos os casos,

os depoimentos foram identificados pelo codinome da colaboradora que o proferiu e foram

mantidas as frases originais, como foram pronunciadas, mesmo com erros ou cacoetes de

linguagem, a fim de não descaracterizar a autenticidade dos relatos. Alguns trechos aparecem

destacados em negrito ou sublinhados propositalmente, com a intenção de evidenciar os

conteúdos considerados mais pertinentes.

5.1 VELHICE

Convido, para iniciar este tema, uma brasileira que faz parte deste universo dos

velhos muito velhos, que atravessou várias gerações na sua longa vida de 96 anos, contada em

verso e prosa, como mulher simples do interior de Goiás e de uma riqueza imensa saboreada nas

suas sábias palavras.

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Cora Coralina, quem é você? Os métodos de ensino eram antiquados e aprendi as letras

em livros superados de que ninguém mais fala.

Preconceitos de classe.

Preconceitos de cor e de família. Preconceitos econômicos.

Férreos preconceitos sociais.

Sou mulher como outra qualquer. Venho do século passado

e trago comigo todas as idades. Nunca os algarismos me

entraram no entendimento. De certo pela pobreza que marcaria

para sempre minha vida. Precisei pouco dos números.

Nasci numa rebaixa de serra

entre serras e morros. “Longe de todos os lugares”.

Numa cidade de onde levaram o ouro e deixaram as pedras.

A escola da vida me experimentou

as deficiências da escola primária que outras o Destino não me deu.

Sendo eu mais doméstica do que intelectual,

não escrevo jamais de forma consciente e raciocinada, e sim

impelida por um impulso incontrolável.

Sendo assim, tenho a consciência de ser autêntica.

Foi assim que cheguei a este livro

sem referências a mencionar. Junto a estas decorreram

a minha infância e adolescência. Nenhum primeiro prêmio. Nenhum segundo lugar.

Aos meus anseios respondiam as escarpas agrestes. E eu fechada dentro da imensa serrania

que se azulava na distância longínqua.

Nem Menção Honrosa.

Nenhuma Láurea.

Nasci para escrever, mas o meio, o tempo, as criaturas e fatores outros contramarcaram minha

vida.

Apenas a autenticidade da minha

poesia arrancada aos pedaços do fundo da minha sensibilidade,

e este anseio: procuro superar todos os dias minha própria personalidade

renovada, despedaçando dentro de mim

tudo que é velho e morto.

Numa ânsia de vida eu abria

o vôo nas asas impossíveis do sonho

Sou mais doceira e cozinheira

do que escritora, sendo a culinária a mais nobre de todas as Artes:

objetiva, concreta, jamais abstrata a que está ligada à vida

e à saúde humana.

Venho do século passado. Pertenço a uma geração ponte, entre a libertação

dos escravos e o trabalhador livre. Entre a monarquia caída e a república que se instalava.

Nunca recebi estímulos familiares para ser literata.

Sempre houve na família, senão uma hostilidade, pelo menos uma reserva

determinada a essa minha tendência inata.

Talvez, por tudo isso e muito mais, sinta dentro de mim, no fundo dos

meus reservatórios secretos, um vago

desejo de analfabetismo.

Sobrevivi, me recompondo aos bocados, à dura compreensão dos rígidos preconceitos do passado.

Luta, a palavra vibrante que levanta os fracos e determina os fortes,

Todo o ranço do passado era

presente A brutalidade, a incompreensão,

a ignorância, o carrancismo Quem sentirá a Vida

destas páginas... Gerações que hão de vir

de gerações que vão nascer. Os castigos corporais

Nas casas. Nas escolas. Nos quartéis. e nas roças. A criança não tinha vez, Os adultos eram sádicos

aplicavam castigos humilhantes.

Cora Coralina (1889-1985)

Tive uma velha mestra que já havia ensinado uma geração

antes da minha.

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Este tema é bastante desafiador, mas também muito prazeroso. Comungo com as

colocações de Erikson (1998) sobre a sabedoria, virtude da oitava fase proposta por ele na sua

teoria sobre o desenvolvimento humano. As pessoas longevas que colaboraram nesta pesquisa

demonstraram uma especial sabedoria.

Trabalhar com a memória de vida é algo muito especial. Mais especial ainda, para

mim, é a permissão que as narrativas dão de caminhar através da história das pessoas e de

compartilhar com elas todo o seu desenvolvimento, as suas mudanças, as suas percepções

comentadas e o seu crescimento pessoal. As pessoas longevas tiveram a oportunidade de

atravessar muitas gerações e, consequentemente, trazem uma riqueza de vida, que não pode ser

mensurada, só pode ser sentida, apreciada.

Trabalhar com entrevistas em História Oral proporcionou um crescimento não só

profissional como também pessoal para o pesquisador. Trabalhar com a memória é fascinante. A

cada entrevista surgiam as perguntas: O que virá hoje? Qual será o conteúdo que se fará revelar?

Muitos foram os autores que comentaram sobre a rica experiência que tiveram com os

colaboradores durante o processo de entrevistas. O mundo interior da pessoa, as questões da

temporalidade, do contexto cultural e social das épocas narradas nos permitem fazer um passeio

através do tempo e do olhar especial de mundo de cada um. Exercitamos o respeito à diversidade

e à individualidade. O fascínio de cada vida é declarado diante de nós e do gravador. Lembrei-me

de Ecléa Bosi nas inúmeras vezes em que ouvi declarações extremamente importantes para o que

eu buscava justamente quando desligava o gravador, antes do início ou após o término das

entrevistas. Disse Ecléa Bosi (2007, p. 39): A memória é um cabedal infinito do qual só registramos um fragmento. Frequentemente, as mais vivas recordações afloravam depois da entrevista, na hora do cafezinho, na escada, no jardim, ou na despedida no portão. Muitas passagens não foram registradas, foram contadas em confiança, como confidências. Continuando a escutar ouviríamos outro tanto e ainda mais. Lembrança puxa lembrança e seria preciso um escutador infinito.

Acredito que a construção deste vínculo de confiança desenvolvido no decorrer dos

encontros facilitou a fluência das muitas declarações. Ficam claras a responsabilidade diante da

história do outro e a necessidade de se estar preparado teoricamente e psicologicamente para

arriscar o mergulho no oceano da memória do outro.

Uma característica surpreendente observada nessas mulheres idosas colaboradoras

dessa pesquisa é a condição cognitiva fantástica que apresentam. A riqueza de detalhes que

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permeia as narrativas é surpreendente. Como estamos trabalhando com uma amostra que transita

na faixa etária de 82 a 98 anos, corremos o risco de sermos questionados a respeito da condição

cognitiva destas pessoas. Conforme já mencionado no capítulo dois, o preconceito e o estigma

criado em torno dos velhos muito velhos pode levar a por em dúvida o caráter de confiabilidade

da pesquisa. Lembremo-nos, entretanto, das observações de autores como Mercadante (2003)

sobre a relação inadequada ainda existente entre memória, corpo e mente e, consequentemente,

declínio físico e deterioração da mente. O respeitado pesquisador Ivan Izquierdo (2007) traz ao

conhecimento dos interessados no assunto, que a memória bem estimulada responde

normalmente às solicitações demandadas, mesmo nas idades mais avançadas. Temos vários

exemplos nesta pesquisa de que este achado de Mercadante é pertinente, com destaque para a

impressionante memória de Violeta, que, aos 98 anos, fala fluentemente três línguas e domina a

informática.

A seguir, apresento cada categoria e os trechos das entrevistas que as corroboram.

5.1.1 Velhice percebida/temporalidade:

Envelheci sem ver (HORTÊNSIA).

É interessante como várias idosas têm a mesma percepção em relação ao tempo e à

velhice. O QUADRO 3 apresenta o que seis delas disseram sobre a naturalidade da passagem do

tempo, sem que elas percebessem. Vale destacar que todas falam do tempo no presente. O

passado não é melancólico ou pesado, nem carregado como um fardo. Ele é parte da sua história

e mesmo os momentos mais difíceis são relatados com uma emoção bonita, de quem conseguiu

compreendê-los e aceitá-los, ou então ressignificá-los, adaptando-os com relação ao presente.

Essas colocações confirmam a teoria eriksoniana, que mostra o quanto é importante para o ser

humano, a aceitação do seu passado, para que a sua velhice possa ser vivida com mais

integridade do que desespero (ERIKSON, 1998). Frankl (2006a) também comunga a aceitação

como um sentido. Mesmo na velhice e diante do sofrimento de uma doença sem possibilidade de

cura, pode-se encontrar a aceitação para a vida vivida e o seu real sentido.

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QUADRO 3 Trechos das narrativas relacionados à categoria “velhice percebida/temporalidade”

COLABORADORA NARRATIVA HORTÊNSIA

Eu envelheci sem ver. Não senti o envelhecimento, não senti. [...] E esse envelhecimento foi indo normalmente. [...] E cada ano tem a sua alegria. [...] Não senti que eu estava envelhecendo. Eu vivia cada dia, eu vivia bem, eu vivia alegre e sempre procurando resolver os problemas que apareciam. [...] Eu não vi, não vi passar.

ROSA Eu entrei na velhice calmamente, nem senti muito, não. E, não sei se houve mesmo uma entrada, foi passando devagarzinho sem que eu percebesse. Porque eu continuei na mesma vida ativa, que continua até hoje. [...] Então, eu acho que eu entrei na velhice sempre pronta, achando que ainda tinha muito que dar para filhos e para os netos. Então, eu continuei da mesma maneira, porque eu sou de um temperamento muito calmo, tranquilo.

VIOLETA [...] Agora, como é que eu vou sentir velhice? A gente sabe que a velhice tem uma porção de coisa, mas dizer que eu estou “velha”... Eu não estou velha não! [...] É natural. A vida muda muito. A vida muda naturalmente. Mas dizer que eu estou velha e desanimada e tudo mais, não! [...] Fica difícil: “velhice”! Não há meio de eu me sentir velha, não. Naturalmente, já tem as dificuldades todas. Eu falei que a velhice vem com um cortejo, assim: dificuldade da perna, coração que não presta, o rim que não... Então! Mas eu não dou confiança para ela!

LÓTUS Envelhecimento, você sabe que eu sinto no corpo ou, às vezes, esse envelhecimento vem no corpo da gente primeiro.

MARGARIDA Eu não sei como é que foi a experiência de envelhecer, porque a gente vai envelhecendo. E é tanto serviço, que quando você vê é tudo caindo. [...] A física, a experiência física. E você vê que está mais velha. É cabelo, é tudo. É o total. Mas, o modo de pensar é o mesmo, de trabalhar, vontade de servir, é tudo a mesma coisa. A gente nem nota que ficou velho, Precisa de um de fora falar: “Espera aí, a senhora!” “Oh, vovó!” - para gente ver que ficou velha. As coisas vão acontecendo e tão rápido, que a gente não toma conhecimento. [...] Assim, a gente não nota. A gente não nota que está velha, não. Precisa de uma pessoa falar com a gente. Os anos passam e a gente não vê.

LIS Eu então me apego a essas... eu não vivo do passado não, eu vivo bem do presente

Também é pertinente a percepção de que a velhice não pode ser conceituada apenas

como um período cronológico, pois cada um vivencia experiências únicas e reage de forma

singular a cada acontecido.

Todas as colaboradoras relataram o reconhecimento de limitações físicas, tratadas

mais a frente, mas, como podemos observar nestes trechos selecionados a seguir, existe uma

consciência de que a velhice é percebida pelo outro. É preciso do outro para demarcar que se está

velho. Alguns estudiosos do envelhecimento colocam claramente esta questão, como Goldfarb

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(1998): “Necessita-se sempre do outro para nos nomear velhos.” A fala de Margarida, no

QUADRO 3, ilustra muito bem esta questão: “A gente nem nota que ficou velho. Precisa de um

de fora falar: “Espera aí, a senhora!”, “Oh, vovó!” - para gente ver que ficou velha.” 5.1.2 Velhice/intergeração/atualização/mudança:

Envelhecer é mudar (ESTEFANOTE).

A abertura para o novo é uma possibilidade de viver a velhice no tempo presente. O

tempo que temos é o tempo presente, não temos outro realmente. Observar as narrativas das

colaboradoras sobre a sua flexibilidade diante da vida faz refletir sobre a nossa própria postura

com relação às nossas atitudes, conceitos e preconceitos. A Psicologia do Desenvolvimento, hoje,

atribui à velhice um período no qual ocorre, paralelamente, tanto o envelhecimento quanto o

desenvolvimento. O paradigma de desenvolvimento ao longo de toda a vida – life-span – que

teve no alemão Paul Baltes32 (apud NERI, 2005) um de seus maiores entusiastas e pesquisadores,

leva a analisar e verificar estas possibilidades. Existem perdas na velhice, sem dúvida, mas

também existem ganhos. Assim sendo, existem possibilidades de abertura para o novo. O ser

humano é um ser flexível, com uma grande capacidade de adaptação a situações diversas.

Quando ele se permite uma abertura para o novo, essa flexibilidade trabalha a seu favor e ele abre

inúmeras alternativas.

A troca intergeracional tem sido fonte de interesse de muitos estudiosos do

envelhecimento humano. Ao acompanharmos trabalhos e projetos sociais com idosos, podemos

observar o quanto é rica a experiência de troca com as gerações mais jovens. Também na família,

com netos e bisnetos, o aprendizado é mútuo. Percebe-se o valor que ela atribui à velhice diante

de gerações mais jovens, como um sentido da própria velhice diante do mundo quando Rosa diz:

“a gente pode aproveitar para passar para os mais novos o que você tem de melhor. [...] quando

32 Neri cita duas referências para Baltes, da seguinte forma:

Baltes, P.B. (1987). Theoretical propositions of the life-span developmental psychology: On the dynamics between growth and decline. Developmental Psychology, 23, 611-696. Baltes, P.B. (1997). On the incomplete architecture of human ontogeny. Selection optimization and compensations as foundations of developmental theory. American Psychologist, 52 (4), 366-380.

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os filhos chegam, a gente poder trocar alguma ideia. Não quero ficar afastada.”. O QUADRO 4

apresenta outros trechos que corroboram essa visão.

Faço aqui uma reflexão quanto ao caráter idiossincrático da velhice. Cada indivíduo é

único, como confirmam várias ciências humanas, como a psicologia, a filosofia, a antropologia e

a sociologia. A ênfase na fala de Rosa, “não quero ficar afastada”, corresponde a esse caráter

idiossincrático. Rosa não quer ficar afastada, ela quer acompanhar as mudanças do mundo, as

notícias do dia, o que está ou não está acontecendo à sua volta. Para Rosa isso é importante

porque a faz se situar na atualidade, propicia-lhe a possibilidade de diálogo e de troca entre as

gerações, é um prazer para ela, já é um hábito adquirido no seu dia-a-dia e é uma conquista dela.

Uma vez aberta para o novo, a troca intergeracional reforça o estar no mundo integralmente, com

o verbo no tempo presente. Podemos observar essa questão nas palavras de Neri (2003, p. 9),

prefaciando a obra Infância e velhice:

O intercâmbio entre gerações beneficia também os idosos, que ganham em possibilidades de manter a funcionalidade, a autoestima e a imagem social. Em conjunto, idosos, jovens e crianças estão quebrando as regras vigentes, aumentando a heterogeneidade das experiências de velhice e mostrando outros potenciais dos idosos.

Os trechos de relatos das narrativas, apresentados no QUADRO 4, comungam dessas

reflexões, como diz Estefanote, “envelhecer é mudar”. Comparo a fala dela, “Eu procuro

constantemente me reciclar”, às colocações de Joan Erikson (1998), quando aborda a necessidade

de se reciclar a velhice, de proporcionar às pessoas velhas o desenvolvimento de ações mais

criativas, a compreensão do mundo e o exercício de cidadania.

Libertar-se de obrigações impostas pela religião escolhida – permitindo-se assistir à

missa pela televisão, um conforto oferecido pela mídia – é uma possibilidade dos dias atuais à

qual é atribuído o valor equivalente ao culto presencial, através da adequação ao novo.

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QUADRO 4 Trechos das narrativas relacionados à categoria “Velhice/intergeração/atualização/mudança”

COLABORADORA NARRATIVA ESTEFANOTE

Envelhecer é mudar. Sobre idosos, achei bem bom. Fiz até um escrito sobre idosos [...] Eu fiz uma narração boa, estudei bem e foi muito bom pra mim. Agora, se a gente não se informa, não lê a respeito de idosos, vivências, essas coisas, fica pior ainda. Eu, então, estudei. Você tem que reciclar para ir fazendo aquilo mudar. Mudança é uma coisa bonita demais! A gente não pode ficar estagnado, você tem que mudar, não é? Eu procuro constantemente me reciclar. Mudança é uma coisa que não é de repente. É lento.

LIS Os anos passaram, eu fui modificando. Eu andei pra frente... [...] os meus primeiros filhos têm ideia de mim, até hoje, de uma pessoa muito rígida, para a qual tudo é pecado. E os últimos, acham que eu sou a criatura mais condescendente do mundo. Em todos esses anos a minha vida mudou muito.

ROSA Eu acho que a gente pode aproveitar a velhice para passar para os mais novos o que você tem de melhor. Parece mentira, mais eu leio dois jornais por dia para saber tudo de política. Leio o Globo, leio o Estado de Minas toda manhã, para que eu possa, na hora do almoço quando os filhos chegam, a gente pode trocar alguma ideia. Não quero ficar afastada.

LÓTUS Então, eu segui em frente, mas sem ficar muito apegada ao que já tinha passado. Criando coisas novas. Uma vida diferente. E foi aí que eu embarquei para Índia em 1977, três meses depois da morte do L. [...] E isso, para mim foi muito importante.

Outra coisa que tem que ser feito é o seguinte: você não pode ter apego. MARGARIDA

Sempre tem um livro que eu estou lendo, estudando. Agora já estou estudando outra versão de mediunidade.

5.1.3. Velhice /desenvolvimento de atividades e sentido de vida:

A gente tem que conservar esse sentido de vida, continuar fazendo o que você quer (ROSA).

Nesta categoria, observamos, em algumas narrativas, o reconhecimento de que muitas

atividades que eram realizadas pelas colaboradoras foram sofrendo alterações e sendo

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paulatinamente diminuídas em função das limitações físicas que uma velhice muito longa pode

trazer. Mesmo assim, as atividades não cessaram, elas foram se adaptando a uma nova realidade.

O paradigma do curso de vida numa perspectiva life-span indica que a capacidade adaptativa

diminui na velhice, estando a plasticidade individual dependente de fatores de ordem histórico-

culturais relativos a um período determinado, que irão refletir no curso de vida destas pessoas

(NERI, 2005). A nossa sociedade considera a aposentadoria como um fator que delimita a

entrada na velhice. As pessoas, a partir de então, não são mais associadas à produtividade e

sofrem com a perda da identidade profissional até então desempenhada. Estes podem ser fatores

geradores de estresse, ansiedade e predisposição a transtornos depressivos (TAVARES; NERI;

CUPERTINO, 2004, p. 98). Os novos paradigmas trazem a visão de que, mesmo aposentados, os

indivíduos podem continuar ativos e produtivos através de atividades que lhe dão prazer e, muitas

vezes, rendimento complementar.

Alguns trechos selecionados das narrativas das colaboradoras que ilustram estas

colocações estão no QUADRO 5. Lis, por exemplo, fala sobre a diminuição de suas atividades

por limitações físicas, mas que, mesmo assim, ela continua realizando tarefas que lhe são

prazerosas: “Quanto às atividades, diminuíram muito. [...] Envelheço serenamente, com minhas

opções [...] Ainda participo da Equipe Igreja em Marcha, escrevendo para o jornal local, em

revezamento com companheiros”. Rosa diz: “Deus me livre ficar uma velha parada!”.

QUADRO 5

Trechos das narrativas relacionados à categoria “Velhice/desenvolvimento de atividades e sentido de vida” COLABORADORA NARRATIVA LIS

Agora, quanto às atividades, diminuíram muito. Eu sempre reclamo do meu sono, eu durmo muito. Eu tenho menos o que fazer, mas eu durmo tanto que acabo não dando conta das coisas que eu tenho que fazer! Mas continuo lendo muito, acompanho bem a vida dos sobrinhos, dos irmãos. E hoje eu vivo assim tranquila. No momento já detesto sair de casa, não gosto de reunião à noite, não gosto de visita, não gosto mais dessas áreas sociais porque eu me sinto muito cansada. Eu estando sentada eu topo qualquer parada, mas: casamento, enfrentar fila de cumprimento, velórios, já não tenho muito pique não. Agora, continuo firme nas minhas reuniões e em tudo quanto é reunião de família. Família muito grande tem sempre um ou outro! Envelheço serenamente, com minhas opções, com minha vida familiar, meu círculo numeroso de amigos, reuniões ligadas a movimentos religiosos – Renovação Cristã do Brasil antiga Ação Católica, Fraternidade Leiga Dominicana. Ainda participo da Equipe Igreja em Marcha, escrevendo para o jornal local, em revezamento com companheiros.

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Minha maior dificuldade vem da artrose, que carrego desde bem jovem. Tenho dificuldade de locomoção, mas ainda rejeito recorrer à cadeira de rodas. Adoro reunir filhos, netos e bisnetos para as refeições. Adoro casa bagunçada!

ROSA Deus me livre de ficar uma velha parada! Eu acho que a gente tem que conservar esse sentido de vida, continuar fazendo o que você quer.

LÓTUS Dificuldade de estômago, por exemplo, não poder comer à noite. Então, não posso ir em uma festa - eu já vou chegando assim, não vou comer nada. [...] eu acho que essa parte física a gente tem que tomar cuidado, principalmente com a alimentação.

5.1.4 Velhice e aceitação/integridade:

Sou feliz com o que eu consegui fazer (ORQUÍDEA).

Volto aos conceitos de Erikson (1998). Para ele, na fase da velhice aceitar a vida que

se teve é um ganho para se viver com integridade. A paz e a tranquilidade são percebidas nas

atitudes de quem consegue chegar aos 80 ou 90 anos e olhar para trás, compreender os pais que

teve, avaliar positivamente a sua vida, mesmo se tiver sido entremeada por situações dolorosas

com exigências de superação muitas vezes inimagináveis. Isso proporciona a vivência de uma

velhice mais positiva e íntegra. Joan Erikson (1998) ressalta que não há uma velhice longa sem

algum desespero. As perdas físicas e afetivas – e muitas vezes econômicas – são significativas.

Viktor Frankl descreve um diálogo improvisado com uma paciente de 80 anos com

câncer e sem possibilidades cirúrgicas, para quem ele tenta dar a “última ajuda” para descoberta

de sentido mesmo no sofrimento. Ao final da conversa, a paciente conclui que sua vida foi um

“monumento” e, durante sua última semana de vida, comportou-se com altivez e fé. Suas últimas

palavras foram “minha vida não foi em vão, o professor disse aos estudantes no auditório.

Portanto minha vida não foi em vão...” (FRANKL, 2006a, p. 74-76). Pelo exemplo de Frankl,

pode-se encontrar aceitação para a vida vivida e atribuir-lhe um sentido em qualquer momento e

situação no presente.

Orquídea diz: [...] “sou feliz com o que eu consegui fazer. Então, eu acho a vida

muito boa.” Margarida complementa o que comentamos acima ao dizer: “tenho alegria de ter

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nascido na família que eu nasci, dos meus pais, dos meus tios.” É a aceitação da sua vida, da sua

família, dos seus pais e do que foi construído ao longo de tantos anos de existência. No

QUADRO 6 são apresentados outros trechos corroborando esse enfoque.

QUADRO 6

Trechos das narrativas relacionados à categoria “velhice e aceitação/integridade” COLABORADORA NARRATIVA HORTÊNSIA

Minha vida valeu a pena porque tudo isso que eu vivi, hoje eu olho pra trás e acho formidável. Eu não condeno nada.

LIS Eu optei muito livremente em não trabalhar fora. Larguei o emprego, fiquei só cuidando de casa e não me arrependo.

ORQUÍDEA Ah, eu agradeço tanto a Deus, assim tudo o que Ele me deu. Sou feliz com o que eu consegui fazer. Então eu acho a vida muito boa.

LÓTUS Oh, você sabe que eu parei um pouco de questionar. Já questionei bastante, agora estou parando de questionar, vivendo aquele momento.

MARGARIDA Então, a gente tem que agradecer muito. É o que eu faço sempre. Toda noite eu tenho que agradecer a Deus o dia que eu tive, a vida que eu levo, os meus filhos, marido e tudo. [...] Tenho alegria de ter nascido na família que eu nasci. Dos meus pais, os tios.

LIS E se eu me analisar com serenidade, eu acho que eu tenho uma velhice muito privilegiada. Porque tenho filhos boníssimos, a pensão que meu marido me deixou é pequena, os filhos complementam, não me privei de nada de coisas materiais. Afeto, ternura, assistência, eles todos me dão muita. Saúde eu tenho muita também. Agora eu só posso dar graças a Deus! E se eu viver até 95, 97 anos, estou feliz! Ninguém precisa ter pena da minha vida, que no dia-a-dia eu sou uma pessoa feliz e tranquila. A experiência do envelhecimento tem sido tranquila, com alguns momentos de apreensão, logo reprimidos. Sou otimista por temperamento e por opção.

ROSA Eu brinco muito: “não me convidem não, porque convidando eu aceito tudo”. Só para estar sempre junto, acompanhando netos e bisnetos. Não achei nada ruim à velhice, não. Eu sei que a gente acha: “ah fica muito feio!” É feia, não é bonita a velhice, não é bonita... Mas eu acho que a gente vivendo, podendo por dentro alguma coisa que você conseguiu durante anos, você aceita muito bem! Seu modo de viver, o seu modo de rezar, suas prioridades. Eu acho que isso é muito bom. Não me apavorou de jeito nenhum.

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5.1.5 Velhice e liberdade:

A gente se sente mais livre para expressar o que a gente quer (ROSA).

Nesta categoria, Rosa foi quem colocou diretamente a satisfação diante da sensação

de liberdade que a idade traz. Considerei de extrema importância a sua fala. Percebi, entremeado

nas narrativas, o reconhecimento de tal sentimento de liberdade. Rosa trouxe abertamente, através

de suas palavras, essa questão: “você só faz o que você quer”. Aqui ela remete a uma reflexão

sistêmica do viver. Se você “tem mais tempo para você” pode fazer escolhas sem “as tantas

obrigações”, ou mesmo cobranças, sejam elas sociais, matrimoniais (ela é viúva), educacionais

ou profissionais.

Rosa diz que “ganha muito com a idade” e pontua o ganho de experiência que só é

percebido por meio da autonomia e liberdade adquirida com a longevidade que alcançou.

Lembro, aqui, da pesquisa feita pela antropóloga Mirian Goldenberg com nove mulheres de mais

de 50 e menos de 60 anos, na qual comenta que a maioria das respostas à questão “O que você

mais inveja em um homem?” foi “liberdade” (GOLDENBERG, 2008, p. 90).

Aos 92 anos, Rosa demonstra como esta “liberdade” parece ter sido conquistada: É uma idade que nos dá mais liberdade de falar, de opinar. A gente se sente mais livre pra expressar o que a gente quer. [...] Você já não tem tantas obrigações, você faz só o que você quer. Então, eu acho que na velhice ela cresce, [...] a gente ganha muito com a idade, viu? Ganha muita experiência! [...] se eu não posso ir à missa num domingo, pra mim não tem a menor importância, eu não ligo pra isso. Eu assisto a missa de tarde pela televisão. E para mim é a mesma coisa. [...] nem fico com remorso de não ter assistido a missa no domingo. Isso pra mim, não acho que vale alguma coisa, não. [...] Eu acho que a gente vive mais, mais intenso. Muito mais intenso, justamente porque você tem mais tempo.

Frankl (2006b, p. 67) fala da liberdade como uma conquista interior, ao que ele

chama de liberdade espiritual, que jamais pode ser tirada de um ser humano e que colabora para

que a vida tenha um sentido, mesmo diante de situações que envolvam privações ou sofrimentos.

Este tipo de liberdade, também conquistada pela experiência e amadurecimento do indivíduo,

pode ser percebida na fala de nossas colaboradoras, mais adiante, na categoria espiritualidade.

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5.1.6 Velhice e família:

Não tem nada melhor do que família no mundo, nada! (VIOLETA).

Algumas colaboradoras entrevistadas contaram que escreveram a história da sua

família para deixar para filhos e netos. Outras, a partir de nossos encontros para esta pesquisa,

manifestaram a vontade de escrever suas histórias, transformando em realidade um desejo antigo.

Orquídea fez um belo livro sobre a história da sua família, que foi mostrado a mim em um de

nossos encontros. Ele contém a árvore genealógica das famílias dela e do marido e, depois, inclui

todos os filhos, netos e bisnetos que compõem o quadro familiar. Ela fez pesquisas em diversas

bibliotecas à procura de fontes importantes da sua história e conta: “Eu fiz uma pesquisa. Eu quis

fazer o livro da família e consegui documento dessas pessoas”. Estefanote também fala: “Eu

tenho tudo isso escrito e gosto de mostrar para o meu povo todo, porque é muito bom a gente ver

esse contexto em que a gente viveu.” Violeta destaca: “Não tem nada melhor do que família no

mundo, nada!”. O QUADRO 7 apresenta os trechos relativos a essa categoria.

QUADRO 7 Trechos das narrativas relacionados à categoria “velhice e família”

COLABORADORA NARRATIVA ESTEFANOTE

Eu tenho tudo isso escrito e gosto de mostrar para o meu povo todo, porque é muito bom a gente ver esse contexto em que a gente viveu. [...] Entender o porque que existe a dificuldade, como transpor aquela dificuldade, o que é melhor para convívio humano, o que é melhor pro convívio social? A começar da família, que às vezes tem problemas sérios [...]. Desde pequena a minha mãe tinha a mania de rezar terço. Então pra nós aquilo ali era sagrado. Cada um tirava uma dezena do terço, e tal. E a gente achava aquilo uma beleza!

LIS Vale à pena continuar, vale a pena celebrar a vida, vale a pena celebrar o convívio com filhos e netos. [...] Tenho até hoje o mesmo entusiasmo de celebrar o Natal!

ORQUÍDEA Eu fiz uma pesquisa. Eu quis fazer o livro da família e consegui documento dessas pessoas. [...] Seria a religião e a família! Sempre a religião em primeiro plano, mas a família quase pegando, quase empatando.

ROSA Nas grandes festas também eu reúno sempre: Natal, Páscoa, tem assim um aniversário! E faço questão de pelo menos uma vez na semana os filhos se reunirem para o almoço de domingo. [...] Eu acho que isso é muito importante na vida de cada um de nós para congregar a família, principalmente, procurar que eles se entendam bem, tudo. [...] Eu acho que a gente tem que procurar e formar, [...] nas netas já estão casando [...] para que elas levem para outras famílias o que elas receberam e que formem a família delas.

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Porque tem valores que não acabam nunca! Que não saem de moda, como dizem: “Ah, a família de amanhã é diferente!”. Mas se tem certos valores, a gente deve conservar.

VIOLETA Agora, o segundo é a família. Não tem nada melhor do que família no mundo, nada! E esse apoio que a gente tem da família, dos filhos, dos netos e tudo, faz a vida da gente a felicidade.

MARGARIDA Já fizemos bodas de ouro e os filhos fizeram uma festa. Os filhos, eu agradeço todo dia a Deus, porque estão todos empregados, estão todos formados e todos de caráter, não é? São três homens e uma mulher. Os netos também, não têm vícios, não fumam, não bebem. Então, isso, na época de hoje, a gente tem que levantar a mão pro alto e agradecer a Deus. Pobres, lutaram, estudaram e praticaram mesmo. [...] Família grande. Um era poeta, outro era escritor, outro era orador. Então, isso tudo me trás satisfação. [...] Meu marido gosta muito de família [...].

Laura Carstensen, ao propor a teoria da seletividade socioemocional, menciona a

importância da interação social para o idoso e para as pessoas mais próximas a ele, que são os

componentes de sua família (NERI, 2006). Os registros de sua história são memórias vivas, que

transcendem uma existência e deixam história.

Néri (2009, p. 106) comenta: “Como em qualquer idade, os velhos precisam das redes

de relações sociais para saber que são amados, cuidados e valorizados. Adicionalmente, garantem

que, em caso de doença e incapacidade, poderão receber apoio instrumental, material e afetivo”.

5.1.7 Velhice e consciência de finitude/morte:

Quando a gente fica mais idosa, a gente tem muita consciência do pouco tempo que a gente tem que viver [...] De maneira que cada dia é uma coisa preciosa, o valor de cada dia e o valor de cada hora (VIOLETA).

Tive o privilégio de perceber nos relatos obtidos nessa pesquisa, como a morte – tema

tão pesado na cultura ocidental – pode ser comentada de maneira tão familiar. É uma

naturalidade, perdoem o pleonasmo, natural. Flui naturalmente dos lábios dessas mulheres que

me transmitiram um encantamento especial. Sabemos que a morte é a nossa única certeza, mas

agimos como se ela nunca fosse chegar até nós. Na velhice, a consciência da finitude é uma

constante e a sensação de intimidade com a morte, na fala das colaboradoras, sugere tal

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naturalidade, conforme pode ser visto no QUADRO 8. Retomo, aqui, a fala de Joan Erikson

(1998) ao se referir à morte como um presente final da existência de velhos muito velhos.

QUADRO 8

Trechos das narrativas relacionados à categoria “Velhice e consciência de finitude/morte” COLABORADORA NARRATIVA LÓTUS

A velhice é assim, como se fosse um vestibular para você chegar em um outro plano, não é não?

ESTEFANOTE Projeto agora é pensar na morte. É. O que eu vou fazer se falar com você que não é? É. Não é no sentido assim de, largar tudo, não! Cada vez entender mais o que é.

VIOLETA: Quando a gente fica mais idosa, a gente tem muita consciência do pouco tempo que a gente tem que viver. [...] De maneira que cada dia é uma coisa preciosa, o valor de cada dia e o valor de cada hora.

MARGARIDA Eu costumo falar com meu marido: A gente tem que preparar pra ficar velha. Porque ninguém quer morrer. Todo mundo quer tomar um remédio aqui, melhorar e tudo.

Quando Elizabeth Kübler-Ross (2005) começou a trabalhar com pacientes terminais,

ela era chamada de o abutre. Percebia o descaso de alguns médicos com os pacientes ditos

terminais, que ficavam no final das enfermarias sem a visita cordial de seus cuidadores e sem o

tão esperado momento da escuta. É uma possibilidade que nos assusta, mas não parece assustar as

pessoas muito velhas. Alguns trechos no QUADRO 8 também ilustram essa visão, por exemplo

quando Lótus diz que “a velhice é assim, como se fosse um vestibular para você chegar em um

outro plano”. Isso remete a uma preparação diante de uma constatação inevitável. As palavras de

Violeta, uma mulher de 98 anos, resumem tudo o que falamos até aqui sobre a consciência da

finitude e a naturalidade percebida nessas pessoas entrevistadas: “quando a gente fica mais idosa,

a gente tem muita consciência do pouco tempo que a gente tem que viver. [...] De maneira que

cada dia é uma coisa preciosa”. Segundo ela, cada hora tem um valor especial, significativo e é

motivo de agradecimento à vida. Sabemos que estamos na mesma condição em relação à morte

do que qualquer pessoa em uma idade mais avançada. Porém, apenas o chegar da velhice tardia

leva a termos essa consciência como companheira no dia a dia, levando-nos a viver intensamente

cada momento da existência.

Mais a frente, a questão da morte será retomada na categoria espiritualidade e morte.

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5.1.8 Velhice e resiliência:

Eu estou pintando hoje em dia com a vassoura (LÓTUS).

O termo resiliência, como explica Neri (2005, p. 178), foi adotado pela psicologia

“para fazer referência à capacidade de o indivíduo adaptar-se de maneira positiva diante de

situações adversas, mantendo seu desenvolvimento normal e recuperando-se dos efeitos

estressores”. As colaboradoras dessa pesquisa mostraram claramente em suas narrativas a

consciência das limitações físicas que uma vida muito longa trás. Nem sempre o caminho da

aceitação foi trilhado com facilidade, muitas vezes exigiu muito delas. Porém, elas foram criando

alternativas para cada uma das novas situações limitantes percebidas, tentando se adequar sem

pesar, compreensivamente.

Se o ouvido já não ouve mais tão bem as palavras do Padre na missa, Rosa encontrou

uma alternativa que lhe deu, inclusive, mais conforto: “o que adianta eu ir à igreja e não entender,

não ouvir direito? Prefiro ver a televisão porque eu ouço, e aí eu assisto diariamente a missa da

televisão.” Lótus, que é artista plástica, reconhece que a dificuldade na visão a impede de fazer

desenhos muito pequenos, como fazia há alguns anos atrás. Ela descobriu que esta limitação, veio

ao encontro a uma necessidade íntima de ampliar e poder se dedicar a esta nova fase da sua arte,

com integridade e satisfação: “sempre a gente tira partido das coisas, dos defeitos, não é? Então,

o defeito da vista: não está dando mais para fazer aqueles quadrinhos pequenininhos, com aqueles

detalhes, [...] então eu estou ampliando. Eu estou pintando hoje em dia com a vassoura. [...]

Quadro grande!”.

O QUADRO 9 apresenta excertos das narrativas que remetem a essa resiliência:

QUADRO 9

Trechos das narrativas relacionados à categoria “velhice e resiliência” COLABORADORA NARRATIVA

ROSA

Eu acho que a gente ainda aprofunda mais o conhecimento, nessa idade mais velha, porque você tem mais tempo pra ler livros espirituais, essas coisas ajudam mais. Agora que não é fácil aceitar, essas deficiências da velhice, não é não. Não é nada fácil, viu? Você depender sempre de alguém, não querem que você fique sozinha. O que adianta eu ir à igreja e não entender, não ouvir direito? Prefiro ver na televisão porque eu ouço, e aí eu assisto diariamente a missa da televisão.

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LÓTUS Se nós estamos vivendo cada momento, até de sofrimento, é porque precisa de ser feito. Isso é um desafio! E é uma forma de você se aperfeiçoar. Eu estou falando agora, não sei se isso vai ser um lema pra mim no futuro, se acontecer alguma coisa assim, muito séria comigo. [...] É descobrir o lado bom das coisas. Tem sempre um lado ótimo! A gente começa a sentir que a vista está piorando, que o ouvido está piorando, já não está escutando tão bem. Mas você sabe de uma coisa? Por exemplo, o ouvido, tem as suas vantagens! Quando todo mundo está ouvindo demais, de noite eu até durmo pro lado onde eu escuto e fico com o ouvido que eu não escuto virado pra cá, eu não escuto nada dos barulhos. Aí eu durmo melhor. Sempre a gente tira partido das coisas, dos defeitos, não é? Então, o defeito da vista: não está dando mais pra eu fazer aqueles quadrinhos pequenininhos, com aqueles detalhes, tudo isso. Então, eu estou ampliando. Eu estou pintando hoje em dia com a vassoura. Pego a vassoura, ponho a tinta ali. Quadro grande! Só não posso fazer muito esforço, porque também devido à idade vai me fazer mal. Então, eu tenho que fazer menos, mas os quadros [...] eles começaram pequenininhos e foram crescendo! Crescendo, porque a vista - não é por causa disso não, mas é por conta de uma necessidade de ampliar. Mas essa necessidade vem coincidir também com a - eu já não posso ficar lendo assim, coisas de letrinhas pequenas.

ESTEFANOTE Nós éramos obrigadas a decorar. Lucrei muito com isso porque hoje em dia não há “decoreba” [...] Então, valeu esse “decoreba” antigo. A memória ativa muito. Então, foi bom. E no grupo nosso, nós somos todas velhas, todas viúvas, cada hora morre uma, porque cada uma tem uma peste – de velhice mesmo, de idade - uma tem reumatismo, a outra tem não sei o que, a outra tem surdez, a outra não enxerga, é tudo assim nesse sentido. Mas a gente vai reciclando toda semana e então, vai levando pra vida de cada uma o que é melhor, para poder viver melhor e transpor a doença. O grupo tem uma atividade paralela que é compatível com a vida da gente. Os pobres são muito necessitados, então, se elas sabem que aquele grupo está precisando, um asilo, por exemplo, todo mundo faz uma roupinha, todo mundo arranja presente. Faz o dia do presente, amigo oculto, então isso tudo está ligado.

5.1.9 Velhice e autoestima:

Estou satisfeita comigo (MARGARIDA).

A pesquisa americana realizada pela Dra. Lupien (2004), mencionada no capítulo

dois, mostra que idosos que mantêm a autoestima são mais propícios ao desenvolvimento de uma

velhice ativa. Chamou-me atenção a ênfase nessa questão em diversos trechos das narrativas,

nem sempre com essa nomenclatura, mas também chamada de astral.

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Quando Hortênsia fala do seu “astral muito alto”, por várias vezes repete que não era

bem interpretada pelos pais, pois o que ela queria demonstrar para eles é que ela valorizava seus

pontos de vista. Ela se sentiu compreendida quando um médico lhe disse que ter esse astral alto

era positivo, trazia-lhe benefícios na velhice. Levar a vida com alegria, bom humor e gostando de

si foram pontos valorizados pelo profissional que cuida de Hortênsia, como ela explica: “a

senhora tem uma vantagem muito grande, seu astral é muito alto!” Outras, como Lis, relatam

abertamente que têm uma autoestima alta, mas que os outros acham que ela é presunçosa e

autoritária por causa disso. Rosa relata não saber se tem autoestima, mas nos conta que gosta

muito de se cuidar. Suas palavras, como podem ser vistas no QUADRO 10 junto com as das

demais colaboradoras, levam-nos a interpretar suas atitudes como as de quem tem uma boa

autoestima, ainda mais vindo de uma senhora de 92 anos, que se recupera de um Acidente

Vascular Encefálico (AVE).

QUADRO 10

Trechos das narrativas relacionados à categoria “velhice e autoestima” COLABORADORA NARRATIVA

ESTEFANOTE

Autoestima é fruto de uma porção de contextos, não é? Como é que você pode gostar de si, se você não sabe o que é a personalidade? [...] esse valor que a pessoa tem, independente do que é o outro. A gente tem um valor por si.

HORTÊNSIA Sempre tive um astral muito alto, isso foi um médico que falou comigo: “a senhora tem uma vantagem muito grande, seu astral é muito alto!” [...] Toda vida eu tive essa astral alto. Então, meu pai e minha mãe não entendiam isso naquela época. [...] Então, eu passava por topetuda, mal criada, tudo o que você podia achar que era ruim.

LIS Minha autoestima é “alta”. Dizem que sou presunçosa e autoritária. Acho que muitas coisas faço melhor do que os outros – presunção, lógico!

ROSA [...] Eu continuo gostando de fazer as coisas que eu fazia. [...] gosto de me vestir bem, gosto de passar uma pinturinha. Não abandonei nada da minha juventude, que eu sempre tive um gênio muito alegre. Gostar de festa, tudo eu gosto até hoje. Essa semana eu já fui duas vezes ao cinema. Por aí você vê! [...] Ainda vou à cozinha, ainda faço as coisas que eu gosto de fazer na cozinha, tudo e não sei se isso é também autoestima, mas eu acho que é, porque é a vida que eu levo. Eu não mudei nada na maneira de pensar e de seguir.

VIOLETA

Deus me deu inteligência, capacidade de trabalho, então, tem que reconhecer! Eu acho que falsa modéstia em não reconhecer o dom de Deus é que é errado. [...] Tenho consciência dos dons que Deus me deu. Me deu capacidade de trabalho, me deu inteligência. Muita!

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LÓTUS Olha, eu estou achando a autoestima muito bom, sabe? Eu acho que procurar a autoestima é bom. Você ficar muito lá na depressão. Eu tenho uma amiga que está na depressão, é horrível, gente!

MARGARIDA Não tenho queixa, não: “ah eu devia fazer isso, eu podia ter feito aquilo”. Eu não tenho, estou satisfeita comigo.

5.2 ESPIRITUALIDADE

A compreensão das dimensões da espiritualidade proporciona uma visão mais

abrangente da dinâmica do envelhecimento. Por meio das narrativas dessa pesquisa, tal

entendimento tomou uma proporção bem ampla, como podemos observar nas duas falas em

destaque no QUADRO 11. Muitas foram as reflexões das idosas nas quais a espiritualidade foi

conceituada como a maneira de se estar no mundo e como orientadora de suas atitudes. Uma

espiritualidade não só transcendente, mas também ética, como o respeito à individualidade e à

condição de ser e estar de cada um.

QUADRO 11

Trechos das narrativas relacionados ao tema “espiritualidade” COLABORADORA NARRATIVA

LIS

[...] sem espiritualidade eu acho que eu não viveria, não. Eu teria um amor exagerado a filhos e netos, um amor que seria ultra-humano. Eu sinto que é a espiritualidade que me põe na medida de respeitar a liberdade dos filhos, de entender o processo que cada um está vivendo. Eu acho que é isso.

ESTEFANOTE É ter um equilíbrio de vida.

5.2.1 Espiritualidade e respeito à diversidade humana:

Essa diversidade é muito bonita (ESTEFANOTE).

A espiritualidade, pela sua amplitude de conceitos, pode ser exercida, em um viés

ético, pelo reconhecimento do outro e de suas diferenças. Pelas reflexões ouvidas na pesquisa,

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exercer a espiritualidade na compreensão da adversidade humana é uma atitude que permite

compartilhar as dificuldades muitas vezes vivenciadas pelo outro. O trecho da narrativa de

Estefanote, no qual ela fala que “essa diversidade é muito bonita”, ilustra bem o reconhecimento

da individualidade como algo especial. Quando Lis nos conta que tem uma colega totalmente

esclerosada, que é tratada com muito carinho para que não se sinta rejeitada, demonstra o

acolhimento e o respeito diante do outro que apresenta dificuldades. O QUADRO 12 apresenta

depoimentos relativos a essa categoria.

QUADRO 12

Trechos das narrativas relacionados à categoria “espiritualidade e respeito à diversidade humana” COLABORADORA NARRATIVA

ESTEFANOTE

A individualidade é uma coisa linda, porque cada um é um! [...] “ah não, tem que ser igual fulano!” Tem quer ser, nada! Essa diversidade é muito bonita. [...] Então, isso aí já é importante para a própria vivência. Para você poder saber, por exemplo, lidar com as pessoas, saber que tanto faz o preto como o branco, como o sem cultura como qualquer um mais. É sempre uma pessoa com valor, que depende da gente dar valor aquilo.

LIS [...] na nossa equipe de base na RC, nós temos uma colega que está totalmente esclerosada. Assiste às reuniões, nós temos muito carinho com ela, mas ela pergunta a mesma coisa 20, 30, 40 vezes e se sente bem no meio, não se sente rejeitada. [...] Tenho uma irmã bem mais velha do que eu, que agora que está começando a esclerosar e ela passa comigo todo domingo.

LÓTUS [...]... tem uma outra que é paralítica, não pode sair da cadeira de roda, uma menina que a I. auxilia, I. minha filha, orienta essa menina, a K. S. Então a gente vê que a menina é alegre, a menina é feliz, porque ela está criando algumas coisas com as próprias mãos. [...] Tem um cego também que a I. conheceu a pouco tempo, diz que é campeão de xadrez. [...] Então, a visão é uma coisa maravilhosa, mas ela dispersa também, muitas vezes. [... Ganhava o xadrez de qualquer um. Sempre ganhou. [...]o importante é a gente sentir que cada situação da vida é um ensinamento para própria pessoa e para os outros que estão ali também. Quanta coisa que a gente aprende com esse pessoal, que não tem a possibilidade, às vezes, de ter todos os sentidos funcionando como nós temos

5.2.2 Espiritualidade e criatividade/arte:

[...] essa essência da arte é também ligada à essência da vida (LÓTUS).

Quanto mais estudamos os conceitos de espiritualidade, mais nos percebemos diante

das inúmeras leituras acerca do tema. Essa amplitude pode ser vista nos estudos da

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espiritualidade ligada à arte e à criatividade. Ser criativo é ser espiritual, nas palavras de muitos

estudiosos do tema, como pudemos observar nas referências de Frankl (2003c) citadas no

capítulo dois.

Lótus é a única colaboradora que aborda esta questão como artista plástica que é e,

aos 87 anos, traz uma bagagem de vida, experiência e sensibilidade na área que lhe permitem

fazer pontuações relevantes sobre o teor desta categoria: Eu escolhia os místicos cristãos que afinavam mais comigo e lia: Jaques Maritain, tudo isso. Depois, coincidentemente, o meu marido também estudava muito os filósofos cristãos. [...] E a irmã dele, L. R., estudava junto comigo e me ajudou, inclusive, a fazer os primeiros estudos desse livro “V.A”, que foi prefaciado por A. A. L. e ele falou que nunca tinha visto assim, no meio dos artistas uma pessoa que abordasse essa afinidade da arte com a religião, da arte com a espiritualidade. Não falou com a religião não, mas com a espiritualidade. [...] porque tudo é um caminho! Você não pode delinear antes, não! A coisa depois de ter acontecido você pode dizer: “Oh, isso foi nessa época e motivou isso.” Também para essa visão mais cósmica, menos dentro de uma Igreja, mais ampla, eu encontrei naquele artista Kandinsky, primeiro pintor abstrato, uma afinidade grande também, que ele escreveu o livro “O Espiritual na Arte”. [...] Naquela época, os russos pré-revolucionários, antes da revolução russa, eram todos ligados também - quase todos os pintores abstratos, formavam um grupo do abstracionismo ligado à espiritualidade. Porque só o fato de liberar da figura já mostrava o caminho da cor, da forma sem figura e tudo, para uma busca da essência. E essa essência da arte é também ligada à essência da vida.

5.2.3 Espiritualidade e consciência de finitude/morte:

A passagem mais importante de toda a sua vida que é a morte (LÓTUS).

Esta categoria trata da compreensão da morte por meio do desenvolvimento da

espiritualidade. No idoso, como já apresentado, a consciência da finitude e a certeza da morte são

mais concretas e mais reais. Nos velhos muito velhos, ela é uma companheira para a qual se faz

uma preparação para conhecer melhor. Nessa categoria, cujos principais excertos das narrativas

encontram-se no QUADRO 13, podemos observar que a crença em algo que transcende pode

trazer um conforto diante do inevitável, mas nem sempre pode trazer uma certeza ou uma

confiança absoluta. Estefanote diz que após a morte “deve ter alguma coisa que persista”. Ela

acha, mas não tem certeza. E admite que “a fé da gente vacila também. Nesse sentido.” Prevalece

o mistério, mesmo acreditando na ressurreição. Lis também revela seu medo diante do

desconhecido e, assim como Margarida, teme o momento da morte, o como ela ocorrerá. Lótus e

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Rosa se posicionaram mais confiantes diante do mistério. Nas palavras de Rosa: “como vou

receber, eu tenho certeza, a morte – também, como uma coisa muito natural. Não tenho pavor,

nem coisa nenhuma”.

QUADRO 13

Trechos das narrativas relacionados à categoria “espiritualidade e consciência de finitude/morte” COLABORADORA NARRATIVA

ESTEFANOTE

[...] a riqueza da pessoa é tão grande que ela não pode acabar igual ao animal. Eu acho que deve ter alguma coisa que persista. Acho. Não posso te garantir. Porque a fé da gente vacila também. Nesse sentido.

LIS Aquele acontecimento tem um sentido, tem um projeto atrás dele, então, eu nunca paro só no desespero - enquanto sentido de morte e ressurreição, isso o que eu acho o principal. Eu tenho medo de morrer, até hoje eu tenho medo. Ainda não venci não! Se bem que nunca tenha duvidado da ressurreição, tenho medo do momento da morte. Mas essa esperança da ressurreição é muito importante pra minha vida.

LÓTUS [...] Então, tem que estar muito atenta de que aquele momento é um momento de preparo para passagem. A passagem mais importante de toda a sua vida que é a morte.

MARGARIDA [...] tudo o que a gente aprende, também, é para o nosso próprio bem, porque depois a gente vai evoluindo, vai e volta. A reencarnação. A gente acredita. [...] Eu tenho assim, aquela confiança: Ah, amanhã está entregue a Deus, o jeito que eu vou morrer. Porque a gente tem medo não é de morrer, é de como vai desencarnar. [...] Eu acho que o conhecimento que a gente tem da doutrina ajuda demais. Porque a gente sabe que não morre, que é uma passagem, depois a gente fica.

ROSA Como vou receber, eu tenho certeza, a morte - também, como uma coisa muito natural. Não tenho pavor, nem coisa nenhuma.

5.2.4 Espiritualidade e velhice:

[...] a gente tem mais tempo para se dedicar a uma espiritualidade sua (ROSA).

Um dos focos dessa pesquisa foi verificar como a espiritualidade pode ser percebida e

vivenciada na velhice. A aceitação das limitações (na maioria das vezes físicas) e o exercício

diário para superá-las podem ser somados a um grande sentimento de compreensão da vida,

acumulado por anos de dedicação às suas crenças. As narrativas sugerem que essa compreensão

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se dá por meio da espiritualidade como uma atitude de resposta às dificuldades de uma velhice

longa. Todos os relatos mostram como a vivência da espiritualidade na vida das colaboradoras

tem um componente fundamental para o entendimento de diversas situações vivenciadas por elas

nessa fase da vida. Destaco alguns trechos da narrativa de Lis, que considerei de grande riqueza:

“Deus me ajude, que na hora que eu perder a esperança eu tenha coragem de procurá-la outra

vez! Eu ponho a espiritualidade em primeiro lugar na minha vida [...] a coisa mais importante da

minha vida é ter essa espiritualidade que me leva à esperança”. Ela valoriza este sentimento e não

deseja perdê-lo. Mas caso aconteça, ela pede forças a Deus para procurá-lo.

Ao se referir à primeira fase do desenvolvimento humano na proposta eriksoniana, que

é confiança versus desconfiança e que tem como virtude a esperança, Joan Erikson (1998) comenta

o quanto é bendito o bebê que foi amado, que foi acolhido e querido por alguém. Esse sentimento

de pertencimento e amor possibilitou a esse ser humano, o desenvolvimento da esperança. Joan

coloca tal esperança como um dos mais importantes sentimentos na velhice: a esperança em algo

maior, que transcende, como a proposta da nona fase de desenvolvimento sugerida por ela, a qual

chamou de gerotranscendência, apresentada no segundo capítulo deste trabalho.

Lis, ao comentar que ela seria “insuportável sem a espiritualidade”, leva à reflexão

sobre a espiritualidade que a sustenta na fragilidade. Em um enfoque complementar, Rosa

ressalta a dedicação a Deus e ao exercício de sua espiritualidade em sua vivência da velhice:

“Agora a gente mais velha, é quando você tem mais tempo a se dedicar a isso. Eu não digo

melhor sobre a espiritualidade, digo viver uma vida mais intensa, nesse ponto, mais pra você [...]

a gente tem mais tempo para se dedicar a uma espiritualidade sua”. Isso vai ao encontro dos

postulados de Goldstein e Neri (2000) e Boff (2008), que afirmam que na velhice se tem mais

tempo para se dedicar à espiritualidade.

Hortênsia também fala: “hoje minha fé é mais presente. [...] hoje eu tenho mais

espiritualidade”. Agora, voltando às palavras de Rosa, ela nos revela que a espiritualidade fica

mais intensa, porém, ela já é vivenciada durante toda uma vida.

Outra questão que destaco são as reflexões de Violeta e Lótus a respeito do exercício

da fé. Elas nos sugerem que há um desligamento quanto ao cumprimento de dogmas e rituais

religiosos, sendo este exercício desenvolvido muito mais por meio das atitudes, de voltar para si e

agradecimentos a Deus. Violeta nos diz que não dá um passo sem agradecer a Deus, e que esta é

“uma fase da vida da gente que a gente fica muito... não é assim muito religiosa, nem nada não”.

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E Hortênsia complementa: “eu não preciso rezar muito, pra que rezar muito? Eu tenho Ele aqui

toda hora.” Lótus revela que a busca agora, é interna: “antes eu buscava muito, através de livro,

através de estudos. Estudava demais. Primeiro os mestres cristãos, depois os mestres orientais.

Depois me liberei dos mestres todos. Eu acho que está tudo dentro da gente.” O QUADRO 14

apresenta excertos das narrativas referentes a essa categoria.

Na pesquisa de Goldstein e Neri (2000) acerca da religiosidade intrínseca e

extrínseca, conforme apontamos no capítulo dois, a preferência dos idosos é pela prática da

religiosidade intrínseca, ou seja, o idoso tem suas crenças tão internalizadas, que já são parte

integrante da sua vivência cotidiana.

QUADRO 14

Trechos das narrativas relacionados à categoria “espiritualidade e velhice” COLABORADORA NARRATIVA

ESTEFANOTE

[...] a gente vai sabendo os porquês dos negativos e dos positivos da vida, das pessoas em volta da gente e da gente mesmo. Porque que a gente atravessa essa surdez. Tudo tem uma explicação de que tudo faz parte da vida. Então, você tem que ter uma espécie de tolerância, paciência e saber que aquilo é uma coisa que tem que ser transposta mesmo. A gente tem que transpor isso pra poder viver mais em paz com a gente mesmo.

LIS Em vez daquele pavor de tudo ser pecado eu comecei a conhecer a vida mais como um processo de amadurecimento do amor. Mas isso levou, vamos dizer, mais de 40 anos. Custou muito até que eu chegasse à compreensão de que ser espiritual não é fugir do mundo: é ver no mundo a vontade de Deus. É ver naquele provisório o definitivo que um dia virá. E então, a gente passa a ser mais condescendente com os erros dos outros, a gente já não é aquele inquisidor que quer ver onde o reino de Deus não está sendo construído. Não. A gente está preocupada em construir [...] Eu cheguei a esse ponto, agora depois dos meus 80 anos. Eu acho que eu não viveria sem espiritualidade, não! Estaria aí queixando minhas pernas que não andam, minhas forças que diminuíram, mas eu sempre tenho esperança de caminhar mais um pouco. Tenho esperança! E que Deus me ajude, que na hora que eu perder a esperança eu tenha coragem de procurá-la outra vez! Eu ponho a espiritualidade em primeiro lugar na minha vida. Eu não saberia viver sem rezar, sem ler bons livros, sem frequentar minhas reuniões. [...] E torno a renovar, sem espiritualidade eu não viveria. Não viveria, porque humanamente falando eu sou frágil, muito frágil! Sentimentos à flor da pele, susceptibilidade... todos os defeitos humanos eu tenho e em grau muito elevado. Eu acho que eu seria insuportável sem a espiritualidade. Acho mesmo! E continuo achando que a coisa mais importante da minha vida é ter essa espiritualidade que me leva a esperança.

HORTÊNSIA Hoje a minha fé é mais presente. E tenho aguentado tudo, isso me ajuda muito! Hoje eu tenho mais espiritualidade. A gente vai penando bem, hoje você se aprofunda mais, porque a vida está chegando ao fim. Pode dizer assim: “ah, mas que isso!”. Eu penso muito: minha vida com a idade que eu estou! [...] Eu não preciso rezar muito, pra quê rezar muito? Eu tenho Ele aqui toda hora.

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ORQUÍDEA [...] Enquanto você está com a casa cheia... Eu tive nove filhos em oito anos e meio. Eu perdi o oitavo. Então a vida foi cheia demais. [...] Se a gente não se agarra em Deus eu acho que a vida fica muito sem sentido. Fica muito difícil. Principalmente num momento desses que a gente fica muito sozinha. Então a gente tem que procurar objetivos. E o objetivo maior é Deus.

ROSA Sempre foi muito presente, mas agora a gente mais velha, é quando você tem mais tempo a se dedicar a isso. Eu não digo melhor sobre a espiritualidade, digo viver uma vida mais intensa, nesse ponto, mais “para você”. Se preparando bem! Acho que a gente mais velha recebe muito melhor quando a gente tem uma formação que você vem trazendo de jovem, não é na hora, depois de velho que você vai falar: “Ah, agora eu vou rezar muito que eu vou morrer.” Nada disso! A coisa vem vindo, crescendo dia-a-dia. [...] Eu acho que a gente vive muito melhor a espiritualidade do que na juventude. [...] é verdade que nessa idade ela cresce mais. [...] Então eu acho que a gente tem mais tempo para dedicar a uma espiritualidade “sua”.

VIOLETA Eu não dou um passo sem agradecer a Deus. Tudo que me acontece eu agradeço a Deus. É até engraçado, por que são umas coisas tão absurdas que eu agradeço! Se tem uma caneta no chão e eu consigo apanhar, eu agradeço a Deus, por eu ter podido agachar. [...] É uma fase da vida da gente que a gente fica muito... não é assim muito religiosa, nem nada não.

LÓTUS Olha, o que eu acho é o seguinte: antes eu buscava muito, através de livros, através de estudos. Estudava demais. Primeiro os mestres cristãos, depois os mestres orientais. Depois eu me liberei dos mestres todos. Eu acho que está tudo dentro da gente. Nós vamos viver cada momento procurando, viver aquele momento em plenitude. Viver bem. Se precisar de rezar eu rezo, se precisar recitar um mantra eu recito um mantra.

5.2.5 Espiritualidade e fé/consciência divina/transcendência:

Divino é o valor que transcende ao que está normalmente sendo visto (ESTEFANOTE).

Muitos relatos comungam a ideia de espiritualidade e fé. Em todas as narrativas,

independente da crença, a presença de Deus foi uma constante: O Deus percebido, o Deus

interno, o Deus que está também em todas as coisas. Uma coisa comum também a todos os

relatos é a crença em algo que transcende. Transcender, no dicionário Houaiss (2004, p.728)

significa: ser superior, exceder, ultrapassar suas limitações, acreditar em algo que está além do

que conhecemos, que podemos mensurar. É o divino, o sagrado, representado por cada um dentro

das crenças e caminhos escolhidos. Estefanote diz que “divino é o valor que transcende ao que

está normalmente sendo visto [...]. Queira ou não, esse que transcende chama Deus [...]. Agora, a

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minha espiritualidade é nesse sentido, de ter um valor transcendente.” Ela admite que mesmo não

crendo em Deus, pode-se ser espiritual e desvincula o exercício da espiritualidade da crença em

Deus: “tem gente que não acredita em Deus, mas é perfeitamente espiritual. Acredita que a gente

não pode ficar só no comer, beber, dormir, só de vida humana nesse sentido vegetativo, não.

Sempre tem um valor transcendente”.

Violeta se refere a um Deus onipresente e Margarida a um Deus justo. Hortênsia

revela sua intimidade com Deus e com Jesus e a sua consciência da presença Dele dentro de si e

novamente fala: “Eu tenho Ele tão bem dentro do meu coração! [...] Não pode ser mais profundo.

[...] Eu tenho que ter uma espiritualidade prática! Pra poder eu agir na hora que precisar”. Na

fala de Lótus, essa consciência da presença de Deus dentro de si, é traduzida por outras palavras,

em consequência da vivência espiritual diversificada que ela desenvolveu durante sua vida: “Os

cristãos chamam de Cristo interno, os hindus chamam de atman, os psicólogos chamam de self.

[...] Eu não sei separar muito bem a vivência espiritual da vivência da vida da gente. [...] Pra

mim o principal foi isso, o que eu já escutei das palavras de Cristo: O reino de Deus está dentro

de vós”. Ela termina sua fala, explicando o que é, para ela, vivência espiritual: “[...] A

espiritualidade contribui assim, nesse sentido de você perceber, por exemplo, que você está

ligado com a natureza toda, com o universo todo. Que você não tem essa separatividade. [...]

você integra tudo. Integra a espiritualidade, integra a coisa material, a vida e tudo isso. Não

separa. Quanto mais separar, menos espiritual está sendo. [...] É a busca do essencial. [...] A

espiritualidade pra mim é isso, não separar a espiritualidade dentro de uma igreja. Ela permeia a

vida toda”.

O QUADRO 15 apresenta esse e outros trechos relacionados à espiritualidade, à fé, à

consciência divina e à transcendência.

QUADRO 15

Trechos das narrativas relacionados à categoria “espiritualidade e fé/consciência divina/transcendência” COLABORADORA NARRATIVA

ESTEFANOTE

Divino é o valor que transcende ao que está normalmente sendo visto, assim, pela gente. [...] Acredita ou não em Deus, esse Ser Superior, tem sempre uma importância na vida da gente como um parâmetro, um farol para iluminar a atividade da gente, a vida da gente em cada pormenor. Então, queira ou não que esse que transcende chama Deus ou não, é um valor a que você tem que atender. [...] Tudo o que a gente vive no mundo, cada setor, cada ambiente, cada vida, cada minuto do dia tem uma explicação. Tem sempre um valor que transcende a essa parte assim, normal de você viver e conversar. Tem sempre uma coisa muito acima.

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ESTEFANOTE Depois com a cultura, com um bocadim de experiência da vida, você vai sentindo

cada vez mais que você tem que abraçar valores que não são às vezes terra a terra, como se alimentar, alimento, vida vegetativa, qualquer coisa assim. Tem sempre um valor acima disso. Isso que eu acho que é espiritualidade. [...] Tem gente que não acredita em Deus, mas é perfeitamente espiritual. Acredita que a gente não pode ficar só no comer, beber, dormir, só vida humana nesse sentido vegetativo não. Sempre tem um valor que transcende. [...] Agora, a minha espiritualidade é nesse sentido, de ter um valor transcendente.

VIOLETA A presença de Deus constante é uma coisa muito importante na vida da gente. Você saber, ter consciência que Ele está aqui. Que depende só do aparelhinho para pegar. Esse aparelhinho somos nós mesmos. [...] A presença de Deus na minha vida é pra tudo. Tudo, tudo, tudo. Assim como o sol nos ilumina, Deus está aqui, neste momento aqui, junto à gente. [...] Agradeço a Deus todo o dia, mais um dia de vida. Agradeço a Deus tudo o que me acontece. Sei que Ele está atrás. [...] Você pode falar que não acredita em Deus. Não faz mal. Ele está ai do mesmo jeito.

MARGARIDA Deus não vai dar fardo superior à pessoa. [...] Então, eu acho isso é muito importante: a gente aceitar as coisas que estão para vim, sem questionar se eu mereço ou não. [...] Eu penso assim, e peço a Deus sempre para me ajudar a continuar pensando assim, que Deus, que Jesus é justo, que nada acontece fora de uma ordem.

HORTÊNSIA O que nós somos sem Deus? [...] Eu tenho Ele tão bem dentro do meu coração![...] Não pode ser mais profundo. [...] Eu tenho que ter uma espiritualidade prática! Pra poder eu agir na hora que precisar.

ROSA

Para mim a espiritualidade é tudo o que te faz um bem enorme [...] Você poder ser solidária com a pessoa, poder dar um conselho, ajudar a quem precisa. [...] eu não tenho nenhum santo assim, grande de devoção, eu já vou direto! Eu quero, já vou pedindo. Eu acho que você tem que alimentar a sua espiritualidade, você não pode deixar isso acabar nunca.

LÓTUS [...] Porque já existe dentro da gente. Nós não temos que sair procurando coisa que vem de fora, não. Já existe desde que a gente nasceu, só que a gente não tendo esse contato não vai percebendo, não é? [...] Eu não sei separar muito bem a vivência espiritual da vivência da vida da gente. Tem que abrir essa consciência pra o que já existe lá dentro. Os cristãos chamam de Cristo interno, os hindus chamam de atman, os psicólogos chamam de self. E lá, uma russa cientista chamada Katarina Ivanova, ela chamou de condensado energético. [...] Condensado energético é uma energia maior que existe dentro da pessoa. [...] Pra mim o principal foi isso, o que eu já escutei das palavras de Cristo: “O reino de Deus está dentro de vós.” Tem hora que eu acho que essa questão da espiritualidade está afinada com o reino de Deus. É não perder! [...] O seu reino de Deus está ligado ao reino de Deus do universo todo. [...] A espiritualidade contribui assim, nesse sentido de você perceber, por exemplo, que você está ligado com a natureza toda, com o universo todo. Que você não tem essa separatividade. Eu acredito a espiritualidade mais sobre esse aspecto. Sobre um aspecto em que você integra tudo. Integra a espiritualidade, integra a coisa material, a vida e tudo isso. Não separa. Quanto mais separar, menos espiritual está sendo. [...] É a busca do essencial. Da essência. [...] A espiritualidade pra mim é isso, não separar a espiritualidade dentro de uma igreja. Ela permeia a vida toda.

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5.2.6 Espiritualidade e religião

Os livros de psicologia da religião comentam a questão da religião no

desenvolvimento do ser humano. O próprio exercício da espiritualidade pode ficar entremeado

por conceitos religiosos. As pessoas que adquirem uma visão mais aberta e flexível podem

apresentar um tipo de comportamento, enquanto outras, com posturas fundamentalistas, terão

outros tipos de atitudes diante da vida. Para melhor organizar a compreensão desta categoria, ela

foi dividida em três subcategorias: a) religião como regulador moral; b) religião e tradição

familiar e; c) religião como recurso de enfrentamento.

5.2.6.1 Religião como reguladora moral:

Fomos conversar com o padre e ele disse que se a gente casasse pensando em evitar filho o casamento seria válido, mas não seria lícito (ORQUÍDEA).

Algumas colaboradoras revelaram a importância da aprovação dos representantes da

sua religião para a escolha de caminhos a seguir (como apresentado no QUADRO 16). As duas

colocações referentes a esta subcategoria, foram feitas por Lis e Orquídea, ambas muito religiosas

e praticantes da crença abraçada. Lis retrata sua dúvida entre o convento e o casamento. Ela diz

que, mesmo sabendo do seu sentimento com relação ao futuro marido, necessitou da aprovação

de uma religiosa para tomar sua decisão, que, por sua vez, orientou-lhe: “Se você tiver que ser

freira nada vai te impedir, e se sua vocação for o casamento, você já achou um rapaz bom. Isso

me trouxe tranquilidade outra vez.” Orquídea, pensou no adiamento da gravidez para poder fazer

um curso superior: “quando o meu marido queria casar, nós fomos conversar com o padre e ele

disse que se a gente casasse pensando em evitar filho o casamento seria válido, mas não seria

lícito. Eu estava preparada pra fazer vestibular, não fiz porque a gente ia se casar no meio do ano.

Então, desisti.” E complementa: “Hoje não aconteceria isso”. Essa afirmativa dela já sugere

mudança de visão sua ao longo do tempo.

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QUADRO 16 Trechos das narrativas relacionados ao tema “religião como reguladora moral”

COLABORADORA NARRATIVA LIS

E mesmo depois quando eu namorava - meu marido foi o único namorado que eu tive - houve uma época que eu tive escrúpulos, e um padre alemão, que nesse tempo era o nosso catequista, ele me dizia: “você tem que terminar o namoro, porque sua vocação é ser freira”. E eu já gostava do J., não queria largá-lo para entrar para o convento. Fiquei num duelo horrível. Se eu vou, brigo, não brigo. E uma irmã, também alemã, conversei com ela e ela falou assim: “Lis, se você gosta dele e ele gosta de você, famílias boas, conhecidas, continua o namoro. Se você tiver que ser freira nada vai te impedir, e se sua vocação for o casamento, você já achou um rapaz bom.

ORQUÍDEA Eu tinha muita vontade de fazer um curso superior, isso eu não consegui. Quando o meu marido queria casar, nós fomos conversar com o padre e ele disse que se a gente casasse pensando em evitar filho o casamento seria válido, mas não seria lícito. Eu estava preparada pra fazer vestibular, não fiz porque a gente ia se casar no meio do ano. Então, desisti. Hoje não aconteceria isso. Os filhos iam esperar um pouquinho. Eu tinha 19 anos e eles iam esperar.

5.2.6.2 Religião e tradição familiar:

Minha mãe ia à missa todo domingo (HORTÊNSIA).

Um dado relevante que está demonstrado no QUADRO 2 (no capítulo quatro, sobre a

metodologia) é o tipo de escola frequentado pelas colaboradoras da pesquisa em relação à sua

prática religiosa. Seis idosas sempre estudaram em escolas tradicionais católicas e praticam a

religião católica. Lótus estudou em escola pública e em escola tradicional católica e sua prática

religiosa é mista. Apenas Margarida sempre estudou em escola pública e sua prática religiosa é

espírita.

Existe também a tradição religiosa familiar. Estefanote diz: “sempre fui católica”.

Orquídea corrobora: “sempre minha família foi católica.” Rosa também fala: “desde pequena, fui

criada num ambiente católico”. Esses depoimentos podem ser visualizados no QUADRO 17

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QUADRO 17 Trechos das narrativas relacionados à categoria “religião e tradição familiar”

COLABORADORA NARRATIVA ESTEFANOTE

Sempre fui católica.

HORTÊNSIA Nunca mudei de religião. Eu fiquei conhecendo a minha religião, porque lá em casa eles eram religiosos. Minha mãe ia à missa todo domingo. Era essa religião de ensinar a gente a rezar. Fiz minha primeira comunhão. [...] Sempre colégio religioso.

LIS Mas eu estudei em um colégio de freiras alemãs e as aulas de religião eram dadas sempre por padres alemães. E assim, eu criei uma mentalidade quase da época da inquisição. Pra mim tudo era pecado, não se podia fazer nada.

ORQUÍDEA Sempre minha família foi católica. [...] Na minha infância eu me lembro que uma vez uma amiga da minha mãe foi falar com ela que estava me encontrando cedinho assentada na porta da igreja esperando a igreja abrir pra eu ir à missa. Criança no interior não tem muito que fazer. [...] acordava cedo levantava e ia pra igreja. Ficava sentada lá na porta esperando abrir.

ROSA Desde pequena, fui criada num ambiente católico.

5.2.6.3 Religião e fé como recurso de enfrentamento:

Nós vivemos e morremos para Deus, não para nossos maridos (LIS).

Nesta subcategoria, abordo a religião como uma estratégia ou como um recurso de

enfrentamento de situações adversas. Nesse sentido, a religião vem como um conforto, um

instrumento facilitador da aceitação. Pude perceber que o que se objetiva é a paz e a compreensão

de que existe algo que transcende e que tem desígnios desconhecidos por todos, restando a

certeza de que foi feito sempre o melhor.

Os depoimentos no QUADRO 18 retratam a religião e a fé como esse recurso de

enfrentamento. Estefanote afirma: “Eu achei que a vontade de Deus era essa mesmo, então, nunca

eu questionei isso.” Lis, ao enfrentar a morte do marido, diz que ouviu de uma companheira:

“Nós vivemos e morremos para Deus, não para nossos maridos”. E completa: “Depois que meu

marido morreu então, eu vi como é importante celebrar a vida. [...] E nessa hora é que eu falo, em

todas essas etapas o que me sustentou muito foi a fé. [...] Eu sei que a fé é dom e eu agradeço a

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Deus ter tido essa força. Agora quanto a ver as mortes em volta, irmãs, irmãos, amigas,

companheiras de trabalho, a gente parece que vai ficando mais encouraçada pra receber essas

notícias.” Rosa afirma que aceita a morte muito bem e que a religião e a espiritualidade a

ajudaram nesse ponto. Mesmo Lótus, que tem uma vivência espiritual mista, demonstrou o

mesmo conforto percebido que as outras colaboradoras católicas: “[...] Seu marido morreu, mas

você está viva! – aquilo me acordou. [...] E ao mesmo tempo, eu tinha lido muito, além dos

místicos orientais, eu tinha lido muito sobre as ideias do Krishnamurti, que fazia esse: Liberta-se

do passado, seja seu próprio mestre. Uma coisa assim, que dá força pra pessoa ir pra frente, sem

ficar muito remoendo aquilo que passou”.

Margarida é espírita e ao comentar sobre a morte da mãe, demonstrou a mesma

sensação de conforto relatada pelas outras colaboradoras de outras religiões: [...] E tem até coisa

dela no jornal, depois que desencarnou, sabe? [...] Então, não deu pra gente ficar triste, assim,

com ela morte não, porque a gente sabe o que aconteceu com ela, como ela está no outro plano.

Então, é assim, é um conforto. Tudo isso ajuda”. Violeta, emocionada ao relatar a perda do

marido, confessou que a sua fé ajuda, mas não resolve a questão da saudade, da falta de alguém

querido para compartilhar o dia-a-dia. Hortênsia, uma mulher de 84 anos, que ao longo da vida

perdeu seus três filhos (dois deles no mesmo ano) e o marido, diz da sua fé: “Eu tenho uma

intimidade tão grande com Jesus. Ele vive comigo! [...] Nas horas mais tristes eu tive Ele

comigo”.

No capítulo dois foi citada a pesquisa realizada por Teixeira e Lefèvre (2008), que

ilustra a relevância da fé e de leituras religiosas no conforto emocional e espiritual diante do

enfrentamento de doenças graves. Aplicam-se estes ensinamentos a outras situações delicadas de

perdas, enfrentadas pelos idosos, como as que foram citadas pelas colaboradoras.

Foi compreendido por meio da análise desta subcategoria que, independente do tipo

de crença abraçada, há uma fé que consola, uma crença em algo maior, que transcende e dá

forças ao mesmo tempo, confortando uma dor nem sempre possível de superar, mas possível de

conviver.

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QUADRO 18 Trechos das narrativas relacionados à categoria “religião e fé como recurso de enfrentamento”

COLABORADORA NARRATIVA ESTEFANOTE

Eu achei que a vontade de Deus era essa mesmo, então, nunca eu questionei isso.

HORTÊNSIA Então, eu senti muito a morte dos meus filhos. No mesmo ano os dois morreram. Ele morreu em janeiro, o outro morreu em setembro. Ah, se não fosse a minha fé! O que seria de mim nessa hora? [...] Graças a Deus, Jesus estava comigo! E aguentei a morte dele. Custei muito, custei muito a me sentir bem. Custei muito. [...] Nunca joguei tudo por água abaixo! [...] Tudo o que me apareceu, sempre com fé, muita fé e espiritualidade, porque eu procurava resolver tudo o que aparecia, porque problemas não faltam na vida da gente, não! Problemas não faltam. Ele vive comigo! [...] Nas horas mais tristes eu tive Ele comigo.

LIS Bom, com 75 eu perdi meu marido, que eu achava que era a razão da minha vida. E já uma companheira muito mais nova do que eu, quando eu dizia que não poderia viver sem meu marido, ela me dizia: “nós vivemos e morremos para Deus, não para nossos maridos”. Então, eu só compreendi isso muito tarde. Depois que meu marido morreu então, eu vi como é importante celebrar a vida. [...] Depois quando ele morreu, foi à mesma sensação de abandono. E foi uma morte que ninguém esperava, nem os próprios médicos e me afetou muito. E nessa hora é que eu falo, em todas essas etapas o que me sustentou muito foi a fé. É nisso que minha filha me chama de orgulhosa, que eu tenho orgulho de ter fé. Não é orgulho, é agradecimento. Eu sei que a fé é dom e eu agradeço a Deus ter tido essa força. Agora quanto haver as mortes em volta, irmãs, irmãos, amigas, companheiras de trabalho, a gente parece que vai ficando mais encouraçada pra receber essas notícias.

ROSA Em 2002, tem sete anos (viuvez). Depois de 60 anos de casado e vivendo bem, isso pra gente é sempre doloroso. Sempre difícil. Como eu aceito a morte muito bem, sempre a religião me ajudou muito e a espiritualidade nesse ponto.

VIOLETA (a viuvez) 1998, há onze anos. A fé ajuda, mas acho que uma perda dessa não há nada que compense. Dizem que o tempo melhora. Melhora nada!

LÓTUS [...] E um dia até, que eu fiquei muito assim, triste, chorando muito e tudo, me disseram: “Olha!” Eu falei: “Mas meu marido morreu, eu estou sozinha! Seu marido morreu, mas você está viva!” Aquilo me acordou. Seu marido morreu, mas você está “viva”! Então, não pode ficar presa ao morto. Eu vou ter que ter uma vida diferente, mas eu quero ter, mas eu estou viva. Senti que a gente está viva a cada dia é muito importante. Que não morreu. Você pode morrer pro passado, é muito importante. Coincidentemente, naquela época eu já estava estudando muitas filosofias orientais, que dão um sentido diferente pra morte. Prolongamento da vida, essa coisa toda. E ao mesmo tempo, eu tinha lido muito, além dos místicos orientais, eu tinha lido muito sobre as ideias do Krishnamurti, que fazia esse: ”liberta-se do passado, seja seu próprio mestre”. Uma coisa assim, que dá força pra pessoa ir pra frente, sem ficar muito remoendo aquilo que passou.

MARGARIDA E eu ia levá-la até para fazer um exame, que ela estava com o coração assim, muito fraquinho, quando eu cheguei, ela já tinha morrido. Eu chamei, mas... morreu assim. Muito suave, tranquilo. A gente sente, mas dá graças a Deus de não ficar na cama, toda vida doente.

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[...] Ela já sabe que desencarnou, que ela vai fazer o tratamento. Não vai pro hospital não, vai pra casa da tia dela, fazer o tratamento e tudo, pra recompor. Mas disse que está tudo bem. Mas falou assim, direitinho, sabe? Tudo o que aconteceu lá no Centro ela falou aqui, com outras pessoas que nem sabiam, porque nós não tínhamos falado nada. E tem até coisa dela no jornal, depois que desencarnou, sabe? Ela falando, assim uma entrevista. Então, não deu pra gente ficar triste, assim, com ela morte não, porque a gente sabe o que aconteceu com ela, como ela está no outro plano. Então é assim, é um conforto. Tudo isso ajuda

5.2.7 Espiritualidade e eventos não normativos de vida: [...] eu senti muito a morte dos meus filhos [...] Ah, se não fosse a minha fé! O que seria de mim nessa hora? (HORTÊNSIA).

Os eventos não normativos de vida são aqueles que ocorrem fora do esperado ou do

curso natural da vida. Esses eventos causam impacto muito grande na vida das pessoas que os

enfrentam (PAPALIA; OLDS, 2000). A perda de filhos é um deles. O natural da vida é que

pessoas mais velhas morram primeiro. Principalmente entre pais e filhos, espera-se, em uma

ordem natural, que os filhos enterrem os pais. Quando a ordem é invertida torna-se um evento de

caráter não normativo. Três colaboradoras dessa pesquisa passaram por essa experiência e as

relataram: Lis perdeu um filho de 21 anos, Rosa perdeu um filho de 47 anos e Hortênsia perdeu

os três filhos que teve. Elas contaram suas experiências e como a fé que cada uma tem deu forças

no enfrentamento de uma dor inenarrável. Hortênsia impressionou-me particularmente pelo

impacto que a sua história me causou, pela maneira com que ela conta essas perdas e pela

coragem como as enfrentou. Alguns relatos estão no QUADRO 19, a seguir.

QUADRO 19

Trechos das narrativas relacionados à categoria “espiritualidade e eventos não normativos” COLABORADORA NARRATIVA

HORTÊNSIA

Perdi minha filha assassinada pelo marido e ela era nova, tinha 30 anos. E meu marido morreu logo depois porque ele teve uma doença que naquela época não era muito comum, mas hoje já é mais conhecida - chama esclerose-lateral-amiotrópica.[...] eu senti muito a morte dos meus filhos. No mesmo ano os dois morreram. Ele morreu em janeiro, o outro morreu em setembro. [...] Eu não tenho mais filho comigo, muito doloroso. Você ver um filho no caixão é uma coisa tão triste! Ainda mais assim, aqueles filhos mais chegados. É muito triste! Eu tenho uma intimidade tão grande com Jesus, tenho Ele tão bem dentro do meu coração! A espiritualidade ajuda muito. O que seria de mim se não fosse a minha fé? Não sei, não sei o que seria, sabe?

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Ah, se não fosse a minha fé! O que seria de mim nessa hora? [...] Graças a Deus, Jesus estava comigo! E aguentei a morte dele. Custei muito, custei muito a me sentir bem. Custei muito. [...] Nunca joguei tudo por água abaixo! [...] Tudo o que me apareceu, sempre com fé, muita fé e espiritualidade, porque eu procurava resolver tudo o que aparecia, porque problemas não faltam na vida da gente, não! Problemas não faltam.

LIS Eu perdi um filho. Ele tinha 21 anos e morreu num acidente de carro em Cabo Frio. [...] E antes dele morrer me contaram os colegas que ele falou: “estou muito feliz, estou muito bem com minha família, estou adorando a faculdade e quando eu chegar em casa vou pedir a mamãe para comungar com ela”. Até aí ele falou sério, depois ele brincou: “será que eu encontro um padre surdo?” No dia em que ele falou isso ele morreu. Aí a irmã G. Me emprestou um livro,[...] chamado: “Os maiores teólogos respondem”. [...] E no assunto que fala sobre a morte, o teólogo fala isso: que para Deus o que vale é o último momento de adesão. [...] Eu aí associei, no dia em que morreu ele falou isso: “estou feliz, estou bem, quero comungar”. Isso que me deu forças sabe? [...] E depois de chorar muito, eu falei assim: “não é possível a irmã G. me empresta um livro pra me consolar e piorou”. Tornei a reler, aprendi mais o sentido da coisa e a gente venceu, minha filha. Tanto eu como meu marido sobrevivemos.

ROSA Quando eu perdi esse meu filho, eu senti, porque na noite, na véspera, ele tinha conversado comigo. Eu nunca esperava! Como ele tinha um problema, porque devido ao desastre que ele teve, ele teve que parar os estudos, parar tudo. Desastre, porque o carro pegou no cerebelo e ele não podia ser operado. [...] quando ele morreu, eu senti demais! Foi uma coisa que eu sinto hoje. Fiquei sozinha, ele morava comigo, não é? [...] Então, ele já morreu com 47 anos. Mas eu recebi muito bem. Peço a Deus sempre, que eu acho que lá, como eu tenho fé, eu acredito que talvez ele ajude mais a gente que a gente.

5.2.8 Espiritualidade e práticas religiosas como abertura para o novo e busca de sentido: Desde 64 eu trabalho numa equipe católica que tem um espaço no jornal. Então até hoje eu escrevo pro jornal (LIS). .

Nas categorias anteriores tratamos da tradição religiosa na família e na educação das

colaboradoras. A tradição é percebida assim como a possibilidade de se abrir para o novo, através

das mudanças ocorridas dentro da própria instituição religiosa. A partir da participação nestes

grupos de estudos religiosos, muitas colaboradoras relataram ganhos e possibilidades de mudança

de paradigmas, que resultaram em uma visão mais atualizada da realidade. Pelos relatos,

observamos que a religião passou a ocupar uma dimensão mais humanizada, menos presa a

rituais e obrigações. O respeito ao próximo e as diferenças, por meio da compreensão do

ecumenismo, também foi outro ponto relevante. Escolho ilustrar este relato com trechos ditos por

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Estefanote: “Eu me sinto muito melhor do que se eu tivesse ficado só naquela religião assim, de

“rezinhas”, de novena, de sacrifício, [...] Eu devo muito à Ação Católica. Aí que a gente vê o que

é religião. [...] E esse ecumenismo também de saber dar valor às outras religiões, faz parte dessa

parte do catolicismo bem compreendido. Eu vejo o budismo, coisa maravilhosa! [...] O

espiritismo tem muita solidariedade, ajuda muito o povo”.

A participação das colaboradoras em grupos de estudos religiosos e os benefícios

encontrados por elas, inclusive com relação à abertura para novos aprendizados que geraram

novas posturas e atitudes de vida, podem ser avaliados na fala de várias delas. Orquídea reitera:

“[...] Depois eu fui participar desse grupo, então essa é uma ajuda muito grande que eu tenho”.

Para Lis “Eu atribuo minha mudança de mentalidade a essa equipe e à Ação Católica. [...] na vida

prática me ajuda e muito! Porque ajuda a ver o âmago do acontecimento. [...] Às vezes eu estou

morrendo de preguiça de uma reunião, quando eu vou, eu adoro, eu falo: ‘não posso perder de

jeito nenhum!’ É o convívio, é a oração, é a meditação! [...] E vou continuar enquanto eu estiver

viva, se Deus quiser!”

Os depoimentos de Estefanote e Lis mostram (vide QUADRO 20), também, que a

participação nesses grupos é fator colaborador do sentido de suas vidas. “Encontrar toda semana

com as amigas, estudar temas de interesse comum, é uma forma de suporte social e de bem-estar,

que vai também delineando um estilo de vida próprio das participantes.”

Lótus comenta sua iniciação religiosa no catolicismo e sua abertura conquistada a

partir do conhecimento de outras religiões orientais. Apesar desse percurso, não se afastou do

catolicismo. Continuou incluindo-o em suas práticas religiosas, permitindo-se realizá-las quando

sentisse disposição para tal, sem nenhum menosprezo a este ou aquele ritual escolhido: “Não sei

se eu sou, ou se eu deixo de ser (católica). Vou à missa o dia que eu quiser. Chego lá e assisto.

Quando tem um casamento ou então, comungo também, porque eu acho que faz bem. É

importante. Eu tive essa iniciação dentro da Igreja Católica, entendeu? Agora, não quer dizer que

eu não posso ter ido à Índia e recebido a iniciação no Budismo. Budismo Tibetano também. Eu

acho que todos levam à mesma coisa. Todos falam a mesma coisa. Só que quando a pessoa está

muito fanática, fundamentalista, ela não enxerga isso. Quando a pessoa já começa a abrir mais e a

perceber que nós todos pertencemos a esse todo, que Deus é um pra todo mundo...” Comenta

também, a união ocidente-oriente, através do trabalho de um monge beneditino que conheceu na

Índia.

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Estas ideias de Lótus coincidem com as de Boff (1999), que entende que a troca entre

as tradições religiosas ocidentais e orientais podem ser um acréscimo no desenvolvimento das

pessoas, pois âmbar contêm em sua mística ensinamentos de valioso significado.

Lis e Margarida, por meio do envolvimento com as religiões abraçadas, tiveram, e

ainda têm, oportunidades de desenvolver atividades ocupacionais que lhes proporcionam prazer e

desenvolvimento pessoal. Margarida, que escreveu um documento histórico do Centro Espírita

que frequenta, nos diz: “Foi bom porque eu aprendi a mexer com computador.” Foi uma

atividade que lhe possibilitou o conhecimento de novas tecnologias e a atualização com

instrumentos da modernidade.

QUADRO 20

Trechos das narrativas relacionados à categoria “espiritualidade e práticas religiosas como abertura para o novo e busca de sentido”

COLABORADORA NARRATIVA LIS

Desde 64 eu trabalho numa equipe católica que tem um espaço no jornal. Então até hoje eu escrevo pro jornal. Com menos frequência, mas ainda escrevo.

MARGARIDA Foi bom porque eu aprendi a mexer com computador, escrevi a historia do Centro, desde quando tudo foi criado. Está guardada no Centro. [...] Fui eu que escrevi. [...] Ficou bom.

ESTEFANOTE [...] E a gente pode comparar e ver o que era que vinha da fonte e o que foi agregado ao contexto social. A gente foi dando valor e vendo o que era a estrutura certa. E com isso eu me sinto muito melhor do que se eu tivesse ficado só naquela religião assim, de “rezinhas”, de novena, de sacrifício, não sei mais o quê. [...] Eu entrei por que eu tinha uma vontade de entender religião no sentido verdadeiro, sem esse negócio de ficar “sacrificinho”, ficar a tomar nota do que não comeu, se comeu bem, aquele negócio todo de colégio. [...] Eu devo muito à Ação Católica. Aí que a gente vê o que é religião. [...] E esse ecumenismo também de saber dar valor as outras religiões, faz parte dessa parte do catolicismo bem compreendido. Eu vejo o budismo, coisa maravilhosa! [...] O espiritismo tem muita solidariedade, ajuda muito o povo.

ORQUÍDEA [...] Depois que eu fui participar desse grupo, então essa é uma ajuda muito grande que eu tenho. E a nossa paróquia também é muito boa sob esse aspecto. Nós temos um padre que é teólogo. Tem um outro que é especializado em sagradas escrituras. Então as missas são assim, muito ricas. Eu acho que é um privilégio.

VIOLETA Eu gosto de estudar. [...] depois que eu entrei pra esse grupo minha vida melhorou demais! Mas melhorou mil por cento!

LIS Depois, quando eu já tinha 17 pra 18 anos - eu já era filha de Maria, trabalhava com o postulado da oração (santa infância) - logo que a Ação Católica começou, ainda no Stella, nós começamos a ter círculos de JEC. E aí, muito lentamente, minha mentalidade foi se modificando. Em vez daquele pavor de tudo ser pecado eu comecei a conhecer a vida mais como um processo de amadurecimento do amor. [...] essa equipe me ajudou muito, muito mesmo. Eu atribuo minha mudança de mentalidade a essa equipe e à Ação Católica. Eu devo muito à Ação Católica. [...] na

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vida prática me ajuda e muito! Porque ajuda a ver o âmago do acontecimento. [...] Às vezes eu estou morrendo de preguiça de uma reunião, quando eu vou, eu adoro, eu falo: “não posso perder de jeito nenhum!” É o convívio, é a oração, é a meditação! [...] E vou continuar enquanto eu estiver viva, se Deus quiser [...] “ele não usava Agnus Dei?” E eu me vi respondendo: “acho que não, mas isso não significa nada. Ele mesmo sem Agnus Dei, ele deve ter se salvado!”. Aí que eu percebi que a minha mentalidade já não estava presa àquela confissão oral. Mas a gente custa a sair disso. A que eu devo? RC, equipe Igreja Marcha. [...] E mesmos os textos que eu fiz são muito modestos, respeitando muito a liturgia habitual. Mas aí a Igreja foi abrindo, foi abrindo. Você não imagina a quantidade de textos que eu tenho: para aniversário de 15 anos, para noivado, pra casamento, para formatura de primário, formatura de faculdade e bodas de prata, bodas de ouro. É uma quantidade!

ORQUÍDEA Desde cedo, quando eu estava no curso primário, eu fui da Cruzada Eucarística. Depois que vim estudar, eu fui benjamina da Ação Católica, fui Pré-JEC, JEC, JIC um pouco tempo e hoje estou na SAC, que é Senhora da Ação Católica. Ação Católica foi interrompida uma época, na época da ditadura, e ela renasceu então, com o nome de Renovação Cristã. É o nome do nosso grupo que eu participo hoje.

LÓTUS Eu comecei com a religião católica, claro, não é?! Agora eu pesquisei na Índia meditação e fui fazendo a coisa ligando a meditação à tradição. Não sei se eu sou, ou se eu deixo de ser (católica). Vou à missa o dia que eu quiser. Chego lá e assisto. Quando tem um casamento ou então, comungo também, porque eu acho que faz bem. É importante. Eu tive essa iniciação dentro da Igreja Católica, entendeu? Agora, não quer dizer que eu não posso ter ido à Índia e recebido a iniciação no Budismo. Budismo Tibetano também. Eu acho que todos levam à mesma coisa. Todos falam a mesma coisa. Só que quando a pessoa está muito fanática, fundamentalista, ela não enxerga isso. Quando a pessoa já começa a abrir mais e a perceber que nós todos pertencemos a esse todo, que Deus é um pra todo mundo... Outros ensinamentos importantes e significativos que eu tive na Índia foi com Bede Griffiths. Eu desejava conhecer esse monge beneditino inglês, que fundou um Ashman. [...] Então, eu achei interessante, como um monge beneditino não só, acreditou na meditação oriental, como também trouxe uma contribuição para o ocidente, para os mosteiros beneditinos, ligados a essa síntese oriente-ocidente.

5.3 SENTIDO DE VIDA

Ter um propósito e atribuir um sentido à existência é fundamental para contribuir

para um envelhecimento ativo. Neri (2001, p. 132), explica que “prolongar a vida sem propiciar

um significado para a existência não é a melhor resposta para o desafio do envelhecimento [...] a

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vida necessita de um significado”. Nesta categoria, podemos verificar quais os fatores que

contribuem para a elaboração deste sentido na vida de nossas colaboradoras.

5.3.1 Sentido de vida e espiritualidade/religiosidade/velhice:

Minha vida ter sentido? Uma grande coisa é minha fé em Deus! (VIOLETA)

Violeta já havia falado sobre importância que a família e a religião têm na sua vida.

Aqui, ela nos mostra que estudar religião é também uma fonte de sentido para a sua vida. Aos 98

anos, ela se envolve em pesquisas na literatura e na internet e em temas relacionados à religião

que pratica. Também participa de grupos de estudos religiosos. Ao desenvolver esta prática, ela

preenche sua vida de atividades e, ao mesmo tempo, estimula sua memória.

Faz-se pertinente na compreensão da relação entre estilo de vida e cognição, ressaltar

que “alguns pesquisadores começaram a considerar a influência única do envolvimento religioso

sobre a cognição” (RIBEIRO; YASSUDA, 2007, p. 200). A religiosidade tem sido vista como

promotora de um envelhecimento satisfatório, pois à medida que o sujeito melhora sua relação com

Deus também melhoram as possibilidades de ele envelhecer com integridade e autorrealização.

Relembro afirmativa de Ivan Izquierdo (2007) acerca da memória, comentadas no capítulo dois.

Segundo ele, a prática da leitura é um dos exercícios mais completos para a estimulação da

memória. O QUADRO 21 apresenta outros depoimentos relacionados a essa categoria.

QUADRO 21 Trechos das narrativas relacionados à categoria “sentido de vida e espiritualidade/religiosidade/velhice”

COLABORADORA NARRATIVA ESTEFANOTE

Muitíssimo importante!

HORTÊNSIA Há muito tempo que eu venho construindo o sentido da minha vida! Quando eu me casei eu fui construindo devagar. [...] O sentido da vida que eu sempre achei foi isso. Segui minha vida, casada, viúva, tudo direitinho, sempre baseada na espiritualidade.

LIS Eu sei que a minha vocação seria no lar, criando filho. Deus me concedeu poder ajudar criar alguns netos, melhor ainda! Isso deu um sentido pra minha vida! Seria a religião e a família! Sempre a religião em primeiro plano, mas a família quase pegando, quase empatando.

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VIOLETA Bom, minha vida ter sentido? Uma grande coisa é minha fé em Deus! Absoluta, completa! Sabendo que Ele está aqui agora entre nós. [...] a fé influencia no sentido da vida completamente! Completamente! Quanta coisa que eu ia fazer ou faria de maneira diferente, sabendo que Deus está presente? E as lutas de casa? [...] Aborrecimento todo mundo tem, isso é bobagem. Agora saber superar... a gente precisa da força!

ROSA Eu acho que (a minha vida) tem muito sentido. Pela maneira que os filhos, os netos e bisnetos procuram à gente, a gente vê que tem um sentido grande. Qualquer eles coisa vem! Pelo menos durante a semana toda eu tenho dois, três aqui.

LÓTUS Eu acho que é importantíssimo, tem que ter um sentido. Porque se você nasceu, todo mundo que nasce tem um sentido qualquer, tem que seguir a vida dele. O que atrapalha é que as pessoas, às vezes, ficam de olho na vida do outro achando que é melhor. E aí cria competição, inveja, ciúme - essas coisas todas, que são os defeitos básicos do ser humano - competição, medo, tudo isso porque não está satisfeito com aquilo que Deus mandou pra ela fazer. Cada um tem, quando chega as circunstâncias da vida já vão promovendo os encontros. Você sente que aquele encontro foi uma forma de você crescer, seja por uma forma de harmonizar com aquela pessoa, ou um desafio pra você aprender. Sempre é um aprendizado. Em toda a situação da vida você está sempre aprendendo.

Eu acho que o sentido de vida da velhice é um prolongamento do que foi o sentido de vida da sua vida toda. Não pode destacar só a velhice.

É importante. Você ter um caminho, ter que seguir aquilo. Ajudar, por exemplo, um hospital. Eu fazia muita visita ao hospital. Agora eu não tenho ido porque depende de andar. Mas eu acho que todo mundo tem que ter um ideal. Um objetivo, tem que ter.

VIOLETA

Eu gosto muito de estudar. E uma das coisas que agente tem que estudar é religião. Eu sou apaixonada por São Paulo. Eu fiz um trabalho da vida toda de São Paulo, eu acho que até eu dei a L. Agora eu estou estudando as epístolas, uma por uma: Romanos todinho, Coríntios a primeira, a segunda, Efésios, Gálatas. Agora estou no computador com os Colossenses. E tem que estudar! Uma amiga me disse que eu sou a criatura mais burra que ela já conheceu, porque eu não paro de estudar. Estou estudando sempre. Sempre, não sabe? A entrada nesse grupo me fez ter consciência disso. Em vez deu encaminhar a minha vida para outras coisas, eu encaminhei mais para o lado do estudo da religião, que eu acho uma coisa maravilhosa.

5.3.2 Sentido de vida e projetos:

Tenho muitos projetos de vida e acho isso muito importante. Não vou esperar a morte com resignação antecipada. Vou continuar a fazer as coisas em que acredito enquanto tiver um mínimo de condição. A vida não é para ser vivida, é para ser celebrada! É o que faço, todos os dias (LIS).

O que é projeto de vida? Percebi certa confusão por parte das colaboradoras com

relação a essa questão. Algumas foram falando sem restrições a respeito de seus projetos. Outras

justificavam a falta deles pela idade avançada e, a seguir, relatavam as inúmeras atividades que

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fazem e que continuarão a fazer enquanto estiverem vivas, além dos planos que têm para o

futuro. Um exemplo é a fala de Margarida: “projetos eu acho que não devo ficar fazendo, não,

porque com oitenta e dois anos... mais alguns anos e eu não dou conta de acabar, de executar o

projeto. [...] falei com meu filho que outro dia ouvindo jornal, vi um curso de computação, e

falei: “esse ano está no projeto eu melhorar”.

Na minha avaliação, projetos foram confundidos com metas em longo prazo.

Objetivos de trabalhos rotineiros, como os trabalhos beneficentes, não entraram nesta categoria

projetos, na concepção de algumas idosas. Nota-se, na fala citada acima, que, apesar de

Margarida dizer que não faz projetos pela idade avançada, ao mesmo tempo nos conta que tem

projetos como continuar a trabalhar para os mais necessitados e fazer um curso de computação.

Se ela relata que está no seu projeto desse ano melhorar, é porque os projetos existem, mas são de

curto prazo. Numa velhice tardia, em função da consciência da finitude ou da presença da morte

como companheira do dia a dia, já comentada anteriormente, os projetos não têm alcance de

longo prazo. Essa fala de Margarida coincide também com postulados da TSS de Laura

Carstensen, que nos dizem que os projetos de vida de longo prazo passam a ser substituídos pelos

de curto prazo (NERI, 2006). O QUADRO 22 ilustra essa categoria com outros trechos.

Esses relatos vêm ao encontro do tema já comentado anteriormente: na velhice, assim

como em qualquer outra fase da vida, os sonhos, as metas e os desejos, continuam. Os projetos

alimentam o viver e sugerem uma adequação à realidade de cada um, recorrendo à plasticidade.

Um exemplo é Violeta, que declara ter um tipo de apostolado que interpreto como meta, que é o

de “espalhar” os textos que julga ter conteúdo enriquecedor. E também, mesmo com 98 anos e

cuidando de uma saúde frágil, não abre mão do seu grupo de estudos e de trabalhos manuais para

os mais necessitados.

Almeida (2005) destaca como essencial a consideração da relação entre indivíduo e

sociedade na compreensão de velhice e projetos de vida. O tempo que é associado ao velho em

nossa sociedade é diferente do que é associado ao jovem e as condições socioeconômicas do

idoso também são fatores que podem interferir na elaboração de suas escolhas. Chegar à velhice

também pode ser, socialmente, entrar em um mundo repleto de perdas, de visão contrária à

gerontologia moderna, que considera a velhice como um estágio no qual perdas e ganhos

caminham paralelamente. Os projetos de vida, segundo Almeida (2005), são construídos

individualmente numa visão de “campo de possibilidades” – histórica e culturalmente inseridos,

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proposta que cita de Velho (1981), na qual a participação ativa da pessoa na sua elaboração é

fator considerado, mesmo nos mais modestos.

QUADRO 22

Trechos das narrativas relacionados à categoria “sentido de vida e projetos” COLABORADORA NARRATIVA

HORTÊNSIA

Eu acho importante ter projetos na vida. Não mais na minha altura de vida. Hoje eu tenho vontade, mas pela idade eu já não posso fazer muita coisa não. Eu tinha uma vontade de ensinar as pessoas! Eu sou limitada em certo ponto por causa do reumatismo que eu tenho.

LIS Tenho muitos projetos de vida e acho isso muito importante. Não vou esperar a morte com resignação antecipada. Vou continuar a fazer as coisas em que acredito enquanto tiver um mínimo de condição. A vida não é para ser vivida, é para ser celebrada! É o que faço, todos os dias.

ORQUÍDEA Sem um objetivo, sem um plano, as coisas ficam muito vazias, não ficam? São muitos objetivos. O objetivo central de tudo é Deus, não é? Então a gente está sempre se perguntando: como eu posso servir? Eu acho que isso é assim, muito básico na vida da gente.

ROSA Eu tenho uma filha que tem uma creche e meu projeto de vida é ajudar essa menina. [...] o projeto de vida é poder ajudar a quem me rodeia. É poder ainda servir a alguém.

VIOLETA [...] estou com 98 quase, não é filha? [...] Na minha idade eu pouco posso fazer, em um tipo de apostolado, por exemplo. Uns podem ir para aqui, para li, para acolá, eu já não saio quase de casa. Muito pouco. Mas eu vou pro computador e tudo o que eu acho de bom, eu tiro xerox e espalho. Eu tenho pastas e pastas com esses artigos bons, que todo mundo sabe que eu gosto e me dá. E o que é bom, eu espalho. O que eu tiro na internet que é interessante, eu espalho também. Então, o meu apostolado consiste mais nisso. Esse grupo de segunda-feira é o de estudo. Eu tenho um outro grupo de quarta-feira, que é trabalho para os pobres.

LÓTUS Olha eu acho, estou sempre tendo projetos, o pior é isso, sabe? Nunca vi tantos! [...] Mas não é projeto pra eu realizar, não, sabe? É ver que podem, outras pessoas mais jovens realizarem aquilo. Isso eu acho fantástico. É incentivar a energia da criatividade que já existe em cada ser humano. É incentivar, não é determinar nada. É dar possibilidade aos outros de criarem também. [...] o projeto de vida é uma coisa assim, é aceitar e caminhar para aquele!

MARGARIDA Fazer projetos eu acho que não devo ficar fazendo, não, porque com oitenta e dois anos... mais alguns anos e eu não dou conta de acabar, de executar o projeto. Mas, por exemplo, estou cheia de peças de pano pra cortar lá pro Centro. [...] mandei pra Brasília segunda-feira uma porção de costurinha, para os pobres de lá também... [...] Não sei, projeto mesmo... Eu não assumo compromisso. [...] Mas, já falei com meu filho que outro dia ouvindo jornal, vi um curso de computação, e falei: “esse ano está no projeto eu melhorar”. Porque eu já mexo com computador e tudo, mas tem uma porção de coisa que tenho que perguntar.

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Discutir sobre velhice e projetos de vida deve incluir a dimensão “da superação da

condição de heteronomia imposta aos muito idosos que vêm suas vidas e necessidades – até

mesmo as mais íntimas – administradas por outros” (ALMEIDA, 2005, p. 109).

Nessa pesquisa pudemos observar que as muito idosas colaboradoras demonstraram

autonomia nas suas escolhas, apesar da participação, muitas vezes, de suporte familiar e social.

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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O envelhecimento é inexorável, mas a velhice é imprevisível. (FALEIROS, 2009, p.63).

Espiritualidade e sentido de vida na velhice tardia foi o tema proposto nesta

dissertação. Na prática, a pesquisa compreendeu um grupo de mulheres entre 82 e 98 anos. A

escolha foi reforçada por termos percebido ainda serem poucas as pesquisas que relacionam os

fatores espiritualidade e sentido de vida a velhos muito velhos, além de também termos

localizado pouco material publicado sobre essa faixa etária emergente da nossa população.

A questão fundamental desta pesquisa – como o fator espiritualidade pode influenciar

na construção de sentido de vida na velhice tardia? – foi discutida, primeiramente, a partir do

referencial teórico apresentado nos primeiros capítulos. Partiu-se do conceito de velhice, para,

então, contextualizar a velhice tardia, seguindo-se dos conceitos escolhidos para a compreensão

de espiritualidade e sentido de vida, temas desenvolvidos nos capítulos segundo e terceiro.

O quarto capítulo apresentou a escolha metodológica – História Oral. As entrevistas

foram desenvolvidas a partir de questões semiestruturadas, relacionadas ao tema proposto por

esta pesquisa, caracterizando um trabalho de História Oral Temática. O passo seguinte,

apresentado no capítulo quinto, foi a análise e interpretação dos dados colhidos nas narrativas, à

luz do referencial teórico.

Foram muitos dias e muitas noites de dedicação a essa pesquisa, com vários

questionamentos em relação à postura ética, à escrita científica, à clareza de ideias, à criatividade,

à organização do trabalho e, principalmente, à delicada e árdua tarefa de analisar e categorizar as

narrativas. Analisar e interpretar em História Oral, como foi comentado no capítulo quatro, são

tarefas desafiadoras. As narrativas são de uma riqueza que certamente poderá ser desdobrada em

outros trabalhos, com foco na velhice tardia. Durante esse processo de análise e de interpretação

do conteúdo das narrativas e da seleção das categorias por elas geradas, foram considerados, a

princípio, os resultados de forma individual, para em seguida comparar aspectos semelhantes e

diferentes entre elas.

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Os achados da pesquisa tornam possível relatar o reconhecimento da importância do

fator espiritualidade nas vidas de todas as colaboradoras. O conjunto dos temas levantados mostra

claramente o quanto o fator espiritualidade foi citado e considerado como relevante para elas.

Espiritualidade e fé foram reconhecidas, de forma unânime, como componentes de especial

importância em suas vidas.

Pudemos verificar o quanto a prática da espiritualidade tem sido fonte de

conhecimento e de produção de mudanças, tanto de paradigmas quanto de atitudes, o que pode

ser confirmado nos relatos das colaboradoras, como nesse, de Lis: “Minha mentalidade foi se

modificando. Em vez daquele pavor de tudo ser pecado, eu comecei a conhecer a vida mais como

um processo de amadurecimento do amor”. Essas palavras coincidem com o postulado de

Pessini, que acredita em uma espiritualidade que inclui a prática do amor.

Um dos fatores relacionados com essa possibilidade de mudança por meio das

práticas espirituais é o reconhecimento da liberdade para a dedicação à vivência, fato já elucidado

por Boff em seu artigo “Oficialmente velho”, escrito quando ele fez 70 anos. Quem chega à

velhice alcança o privilégio de poder se dedicar ao desenvolvimento de atividades muitas vezes

impossíveis de se realizar em tempos anteriores, em função de compromissos profissionais ou

familiares.

O indivíduo idoso encontra, então, uma disponibilidade para a entrega às questões

relativas ao espírito e à sua relação com Deus. O reconhecimento da prática da meditação e/ou da

oração, do envolvimento em trabalhos de cunho social e da intensificação da sua relação com

Deus foram relatados como consequências positivas no bem-estar dessas pessoas. Rosa nos fala

abertamente que percebe que agora “a gente vive muito melhor a espiritualidade do que na

juventude”.

Estas práticas espirituais também possibilitaram o desenho de um estilo de vida para

essas mulheres, além das atividades sociais. Quando Rosa diz que já foi duas vezes ao cinema em

uma mesma semana e que classifica como prioridade a leitura de dois jornais por dia, demonstra

a vivacidade e a alegria de participar da vida em sua plenitude. Ela criou um estilo de vida que

lhe permite se manter atualizada. Estudiosos como Ribeiro e Yassuda evidenciam a relevância de

um estilo de vida saudável como colaborador de uma velhice ativa, pois pode interferir

diretamente no desempenho da cognição e na prevenção de demências.

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A atenção ao estilo de vida do idoso como influente na sua qualidade de vida

relaciona-se, também, às questões de sentido. Um estilo de vida ativo, como o exemplo de Rosa,

colabora para o preenchimento do temido vazio existencial que pode levar à depressão, ao

desenvolvimento de demências e outras patologias. Ainda podemos relacionar esta questão com a

proposta de Frankl, para quem a busca de sentido na vida é única e depende de cada pessoa.

Segundo ele, o indivíduo que tem uma razão para existir suporta as intempéries da vida

positivamente.

Os filhos, os netos e os bisnetos são motivos de alegria e os laços afetivos são

estimulados gerando uma convivência saudável e reforçando o sentimento de pertencimento. De

acordo com a proposta teórica de Laura Carstensen (a teoria da seletividade socioemocional) o

idoso intensifica os relacionamentos com pessoas mais próximas a ele, do seu círculo familiar e

social que poderão garantir experiências emocionais mais positivas. Podemos perceber isso nas

narrativas de todas elas. Algumas falam da relação diária com os netos e os filhos, outras

evidenciam as festas comemorativas e as reuniões de família, outras o convívio social com

familiares e amigos mais próximos, porém todas enfatizam a importância destas pessoas em suas

vidas.

A convivência saudável pode ser verificada também nos grupos de estudos religiosos

e de trabalhos sociais que as colaboradoras da pesquisa frequentam. Esses grupos, além de

servirem de suporte social otimizando as relações sociais, possibilitam o desenvolvimento de

atividades de leitura e de estudo que preenchem o tempo enquanto estimulam a memória. Como

revelou Izquierdo, a falta de uso da memória provoca o esquecimento real e a atividade da leitura

é o melhor exercício para estimulá-la. Violeta comentou que sua amiga lhe considera muito

burra, pois ela sempre está estudando. Seus hábitos diários de leitura coincidem com a proposta

de Izquierdo, pois se trata de uma senhora de 98 anos, com uma atividade intelectual e memória

invejáveis.

As contribuições de Alvarez sobre o desenvolvimento da memória esclarecem as

dificuldades muitas vezes colocadas por Margarida. Ela tem seu tempo recheado de atividades de

trabalho tanto em sua casa quanto na comunidade onde participa. Ela lida sozinha com

computador, vai ao centro da cidade sem companhia de outrem, enfim, é uma pessoa autônoma.

Mesmo diante da queixa de falhas na memória, ela se compara com a filha muito mais nova

dizendo que alguns esquecimentos são mesmo normais para eles, uma vez que até os mais novos

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têm perdas. Margarida também frequenta grupos de estudo do Evangelho, onde são discutidas as

fontes de sua crença religiosa.

Pode-se dizer que participar destes grupos faz parte do estilo de vida conquistado por

cada uma das participantes. Todas as colaboradoras estudam, trocam ideias, fazem pesquisa na

área da religião escolhida, discutem textos complementares, leem literaturas afins, enfim, se

ocupam com o aprofundamento do tema. Estas atividades proporcionam um aumento das

relações interpessoais, da autoconfiança e da autoestima, além de influenciar positivamente na

cognição.

Também como foi apresentado no segundo capítulo, Lupien e Wan relatam que

pesquisas recentes apontam a autoestima como fator desencadeante de uma velhice ativa, pois o

que se pensa sobre a própria velhice causa impacto na própria saúde e na longevidade. Todos os

depoimentos feitos para essa dissertação revelaram que a autoestima é valorizada. A religiosidade

tem sido vista como promotora de um envelhecimento satisfatório, pois, à medida que o sujeito

melhora sua relação com Deus, também melhoram as possibilidades de ele envelhecer com

integridade e autorrealização.

Essa autorrealização está diretamente relacionada ao sentido de vida proposto por

Frankl. A pessoa que se valoriza e que encontra sentido no que faz pode viver uma vida plena,

mesmo diante do sofrimento. A vida de Hortênsia é um exemplo disso. Ela perdeu todos os seus

filhos e o marido, cuidou dos netos e hoje ajuda a cuidar da bisneta. Apesar de todo o sofrimento

enfrentado, ela conseguiu encontrar uma coragem para enfrentar seu sofrimento, vencê-lo e

consegue olhar para trás e ver que sua vida valeu à pena. Ela juntou nessa sua experiência de vida

as propostas teóricas de Frankl e Erikson, que afirmam que aceitar a vida que se teve ao chegar à

velhice tentando compreender os fatos acontecidos no contexto da sua história é o maior fator

contribuinte da integridade.

Outro fator interessante que vem concordar com o fenômeno da feminização da

velhice observado atualmente é que dentre as oito colaboradoras desta pesquisa, sete são viúvas e

jamais se casaram novamente. Como já foi mencionado anteriormente, Beauvoir evidencia a

possibilidade das mulheres na velhice poderem cuidar mais de si após a criação dos filhos e a

submissão aos parceiros.

As possibilidades que uma vida longa trás, como atravessar diversas gerações e

proporcionar o convívio intergeracional, benéfico à qualidade de vida do idoso pelas

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possibilidades de trocas e aprendizado mútuo foi outro fator interessante confirmado pela

pesquisa.

Todos os laços e permanência de vínculos são contribuintes de sentido e têm

significados relevantes na construção de uma vida rica de atividades e ações. As entrevistadas

vivenciaram perdas significativas em suas vidas (cônjuges, filhos e entes queridos), mas

demonstraram sempre buscar sentido para suas vidas, tendo encontrado, na velhice, a

possibilidade do fortalecimento dos vínculos com a espiritualidade e, consequentemente, um

aumento significativo da fé, que resultou em um encontro de sentido no sofrimento.

Três colaboradoras perderam filhos adultos, sendo que uma delas enfrentou a perda

de todos os seus filhos. Ficou claro nos depoimentos dela a dor e o sofrimento de uma imensidão

incalculável, porém, a fé e a crença em Deus foram os baluartes no enfrentamento dessas

situações. Crer em Deus é crer no transcendente, no que está além e acima das circunstâncias

desta vida. Assim como suas vidas podem ter uma continuidade após a travessia da morte, seus

entes queridos também têm a mesma possibilidade. Enfrentar tais situações de perda pode levar a

diversas reflexões sobre a questão existencial. Estas posturas coincidentes com as ideias de

Frankl mostram o quanto a fé pode orientar o sentido nestas situações, colocando-a como

pertencente ao domínio do suprassentido – o sentido maior - que coopera para o encontro do

sentido nestas situações de extrema dor.

O sentido de vida não pode ser receitado para ninguém, segundo Frankl, mas se pode

colaborar para que as pessoas compreendam que pode ser possível encontrá-lo até o momento

último da existência humana. O ser humano pode encontrar o sentido, por intermédio da

criatividade e da prática. Em qualquer momento pode-se mudar de atitude diante de uma situação

que não pode ser alterada, amadurecendo para ela. O amadurecimento percebido nos relatos das

colaboradoras que vivenciaram perdas significativas em suas vidas e as atitudes delas diante

desse sofrimento demonstram claramente o que Frankl descreve em sua teoria.

A constatação da força da fé nesses depoimentos confirma não somente o que é

comentado acima, como também o que Frankl cita sobre os componentes da tríade trágica:

sofrimento, culpa e morte. O sofrimento enfrentado por essas mulheres que perderam seus filhos,

parece transformado em realização, pois, a partir dele, elas desenvolveram uma maior

compreensão do ser humano e da própria vida, fortalecendo sua caminhada. A culpa sentida pode

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ser percebida como uma contribuinte à mudança de atitudes e à morte, uma realidade que se pode

sentir como o viver responsavelmente cada momento vivido e experienciado.

O elemento básico, alimento de todas essas ações e ingrediente indispensável na

construção de uma mudança positiva diante do sofrimento, é a fé, vinculada a uma crença ou a

uma escolha religiosa. Esta fé é uma constante na vida de todas as colaboradoras. Elas

conseguiram encontrar sentido no sofrimento e sobreviver dignamente a ele. Suportaram o

sofrimento de cabeça erguida, reconhecendo, apesar de toda a dor, que a vida que tiveram até

então valeu à pena ser vivida – o que é bem ilustrado pelas palavras de Hortênsia, que reconhece

que sua vida foi muito boa, apesar de ter tido que enfrentar situações de extremo sofrimento.

A maneira de perceber o mundo e a realidade está diretamente ligada à sua visão de

espiritualidade, que por sua vez influencia e “colore” os comportamentos do cotidiano. Ela dá

vida, oferece oportunidades de reflexão e de abertura para novos conhecimentos e valores e,

consequentemente, para atitudes diante da vida. A forma dessa percepção colabora para a

permanência da esperança, sentimento primordial para a confiança em cada dia vivido, pois, por

meio da fé, alimenta-se a possibilidade de uma continuidade (a fé que transcende). Viver não foi

em vão, teve um sentido - ideias que comungam com Erikson e Frankl. Como afirma Hortênsia:

“A espiritualidade ajuda muito. O que seria de mim se não fosse a minha fé? Não sei, não sei o

que seria, sabe?”.

Podemos observar que essas pessoas, em seus relatos, fizeram opções conscientes

para o desenvolvimento de uma velhice ativa, pois o sentido da vida já vinha sendo construído

“há muito tempo”, como revelou Hortênsia. Isso está de acordo com a realidade atual, na qual se

enfatiza o caráter idiossincrático da velhice.

A velhice vai sendo reciclada, comenta Joan Erikson, que acredita no constante

aprendizado como forma de se alcançar uma velhice saudável. Esta “reciclagem” vai colaborando

para que o idoso encontre sentido e continue a se adaptar às situações desafiadoras que uma

velhice muito longa pode acarretar. Um exemplo disso é a dedicação de Lótus, que aos 87 anos

se ocupa diariamente com a atualização de seu blog, buscando estar inserida nas exigências do

novo contexto de comunicação da sociedade midiatizada.

Podemos nos referir agora à questão da resiliência conforme comentamos nos

capítulos anteriores. Quando Lótus fala que agora pinta quadros maiores com a vassoura porque

não consegue mais fazer desenhos pequenos e com linhas muito finas, ela demonstra que

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encontrou uma saída para as limitações que as mudanças corporais ocorridas com o

envelhecimento lhe impuseram, criando uma situação adaptativa, como a proposta por Baltes e

Smith, permitindo-lhe continuar ativa em suas atividades profissionais.

A valorização de cada coisa acontecida e de cada momento vivido trazem para a vida

destas pessoas uma nova cor e uma ligação mais profunda com elas mesmas e com sua

espiritualidade. É como se a espiritualidade fosse como uma chama acesa, viva, dentro de cada

uma. Não temem o enfrentamento de situações novas e desafiadoras. Lis e Margarida temem o

momento da morte, não a morte. A crença no transcendente, no entanto, alivia a angústia com

relação a este evento e promove a confiança na vida. Essas mulheres demonstraram uma crença

tão grande em Deus, que impressiona. A morte é como uma companheira, como diz Joan

Erikson, ao propor a gerotranscendência, um presente.

Elas não se sentem velhas, no sentido gramatical do objetivo. Sentem-se jovens, pois

associam a juventude aos sonhos, aos desejos, aos cuidados com a aparência, ao desenvolvimento

de atividades sociais e pessoais e à vontade de aprender coisas novas e de se atualizar.

Faço aqui um convite à reflexão. A nossa cultura atribui sonhos, desejos, projetos de

vida, cuidados com aparência e novos aprendizados como possibilidades dos jovens. Este é um

paradigma poderoso, fortemente enraizado nas nossas entranhas, mas suplica por mudança

urgentemente. Penso que estas possibilidades descritas acima são de todo ser humano vivo,

independente da idade. Não se é jovem internamente por isso, se é vivo! Portanto, sonhar,

aprender, cuidar-se e desejar são possibilidades do velho e qualquer pensamento contrário

reforçaria o preconceito. Essas mulheres maravilhosas mostraram muito bem que possuem todas

essas possibilidades e vivenciam todas elas, mesmo que algumas vezes não as associem a velhice

e sim, a uma juventude interna.

É interessante, ainda, citar o comentário de duas colaboradoras da pesquisa sobre

tradições religiosas diferentes. Lótus apresenta uma abertura grande para a compreensão e

vivência de três orientações religiosas – catolicismo, budismo e hinduísmo. Ela buscou o

conhecimento dessas tradições e, na sua prática espiritual, incluiu a riqueza nelas encontrada.

Estefanote, apesar de sempre ter buscado o aprofundamento por meio da religião católica,

declara-se compreensiva e respeitosa em relação aos benefícios trazidos por práticas espirituais

diversas. Esses pensamentos coincidem com os preconizados por Boff, que declara que o

comportamento do ser humano é o mais importante, ou seja, suas atitudes diante da vida

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independem da prática religiosa ser de origem cristã ou budista, pois preconizam o amor e a

compaixão para com o próximo.

O grupo trabalhado nesta pesquisa mostra o quanto a espiritualidade é um fator

contribuinte à elaboração do sentido de vida na velhice tardia. Os desafios enfrentados por uma

velhice longa são vários, com perdas de todas as ordens, não somente físicas, mas familiares e

sociais. A fé, a crença em algo que transcende, a crença na vida e o exercício da espiritualidade

em todos os momentos vividos são forças que direcionam e nas quais se encontram sentidos para

continuar sempre, mesmo diante de situações de especial exigência.

Frankl postula que o sentido verdadeiro só pode existir diante da responsabilidade

consigo mesmo e estas oito mulheres nos permitem ver em suas atitudes uma extraordinária

responsabilidade. Elas transcendem diante das limitações e desafios de uma velhice muito longa

com bravura e coragem.

Todas enfrentam ou enfrentaram situações delicadas e até graves de ordem física e

emocional, superadas com determinação e fé, em direção à recuperação que lhes permite

continuar a viver cumprindo seus propósitos. Como diz Estefanote: “[...] cada uma tem uma peste

[...]”. Todas apresentam perda auditiva em diferentes graus. Algumas já enfrentaram AVE e

problemas cardíacos (uma delas já teve cinco enfartes), problemas renais, hipertensão, diabetes,

fibromialgia. Duas sofrem as consequências da artrose – uma nos joelhos e outra nos pés,

inclusive com limitação de marcha importante que a impede de andar sem auxílio de

acompanhante, além de também ser portadora de marca-passo cardíaco. O mais incrível nessas

mulheres é a coragem para enfrentar o sofrimento. Elas encontram situações adaptativas incríveis

como vimos na análise das categorias. Sempre, em todas as dificuldades, a espiritualidade está

presente como fator indispensável não só no enfrentamento das mesmas, como também – e

principalmente – como colaboradora de sentido para suas vidas.

Em síntese, a espiritualidade se mostrou um fator contribuinte fundamental à

elaboração do sentido de vida na velhice tardia. O grupo pesquisado demonstrou que se pode

viver uma velhice tardia com qualidade de vida, dependendo do estilo de vida, da prática

espiritual e da consciência temporal, ou seja, é possível manter uma vida com sentido. Esta

percepção vem ao encontro da atual visão idiossincrática da velhice, em que cada um envelhece a

sua maneira. E esse grupo vem mostrar que os estereótipos vinculados ao velho muito velho não

se aplicam a ele.

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A pesquisa empírica contribuiu para a desconstrução de uma concepção equivocada

sobre as pessoas muito velhas. Pudemos observar que ainda são poucos os estudos e as pesquisas

realizadas com pessoas com mais de 80 anos. Constatamos por meio de dados do IBGE, que a

esperança de vida ao nascer está cada vez avançando mais e o número de idosos com mais de 100

anos, no Brasil, está cada vez mais significativo. Baltes e Smith comentaram a diferença existente

entre as pesquisas realizadas na velhice inicial, quando se acredita ser repleta de possibilidades, e

na velhice avançada, quando se percebe um período de significativa vulnerabilidade, com mais

perdas do que ganho e, até, morte emocional. Os autores compreendem esse período como novo e

desafiante para pesquisas interdisciplinares.

Diante dos poucos estudos desenvolvidos sobre o fator espiritualidade na elaboração

do sentido de vida na velhice tardia, do grande interesse nas pesquisas sobre envelhecimento e,

principalmente, por estarmos diante de um envelhecimento populacional irreversível e

incontrolável que está mudando o perfil etário da população brasileira e mundial, esta pesquisa é

uma contribuição aos estudos sobre envelhecimento.

Para o desenvolvimento de uma velhice ativa e bem sucedida, então, esse trabalho

pode ser um importante referencial de compreensão sobre a experiência da longevidade no Brasil.

Os autores utilizados são fundamentais para o estudo das variáveis aqui propostas, as quais

dependem, tal como o tema principal, de estudos interdisciplinares que contemplem o ponto de

vista da psicologia, das ciências da religião e da teologia. Vimos, também, o quanto a

participação em atividades religiosas contribui para a otimização da memória e dos

relacionamentos interpessoais enquanto que a prática religiosa institucional também adquire um

caráter de suporte social.

Para a população idosa, os resultados desta pesquisa poderão ser um referencial de

análise, do ponto de vista social, para a interpretação dos fatores que contribuem para a

longevidade e para a implementação de políticas para essa idade.

Sugere-se que pesquisas complementares sejam realizadas, na continuidade da

compreensão do tema em foco, pois existem potenciais a serem descobertos na velhice conforme

alertam Baltes e Smith, que consideram os avanços da ciência e melhoria nas políticas sociais

como grandes contribuidores de mudanças positivas.

Sinto-me, depois dessa dissertação, uma pessoa melhor, muito melhor do que quando

comecei a pesquisa. Questionei e venho questionando cada palavra que falo sobre o tema

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envelhecimento. Ouvir as colaboradoras dessa pesquisa, mulheres de 82, 83, 84, 87, 90, 92 e 98

anos, cada uma delas falar, contar, passear pelos anos todos, pelas épocas e fases de suas vidas com

a naturalidade de quem dá uma receita ou faz uma oração, fez com que eu ficasse muito feliz.

Essas mulheres maravilhosas sempre me receberam com alegria, com aconchego,

com água gelada, suco, café, chá e quitutes muitas vezes feitos por elas. E sempre, sempre, um

sorriso, um abraço, uma palavra de carinho e uma preocupação se eu não estava estudando e

trabalhando demais. Agradeço a cada uma delas pelos momentos maravilhosos que passamos

juntas. Hoje tenho mais oito amigas. Amigas conquistadas através da confiança que me

depositaram, permitindo-me trabalhar com as suas lembranças, tecendo a cada dia a minha colcha

de pensamentos e de reflexões. Para mim, essa pesquisa, além de todo caráter científico,

representou isso: um banho de lucidez para limpar o resíduo escuro e feio do preconceito. Se

ainda temos resquícios de estigmas quanto aos velhos muito velhos, que esse trabalho possa

servir, também, como instrumento de limpeza das nossas entranhas e dos nossos pensamentos.

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REFERÊNCIAS

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APÊNDICE

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APÊNDICE A – ROTEIRO PRÁTICO DE ENTREVISTA Identificação Identificação: E (Entrevista nº...) Nome: (uma flor) Sexo: Idade: Grau de instrução: Procedência: Estado civil: Filhos: Netos: Bisnetos: Profissão (atividade ocupacional): Saúde: Prática religiosa: Origem familiar: Com quem mora: Roteiro

• Qual a cidade em que nasceu? Em qual foi criada? • Teve quantos irmãos? Você era qual deles? • Qual a sua origem familiar – sua descendência? • Estudou em colégio de freiras? • A sua religião foi sempre a mesma ou mudou ao longo da vida? • Você tem uma vivência espiritual? Como ela se dá? • Há quanto tempo é viúva? • Como foi enfrentar esta perda? • Como é a experiência do envelhecimento para você? • Você considera que a espiritualidade (ou a fé) tem um papel importante nesta fase da

vida? • Acredita que atribuir um sentido à vida é um fator importante? Por quê? • A vivência da espiritualidade pode influenciar na elaboração do sentido de vida na

velhice? Como? • Na sua percepção, a partir da sua entrada na velhice, o fator espiritualidade sofreu

alguma alteração? • Quais os principais questionamentos ocorridos durante a velhice? • O que você tem a dizer sobre autoestima? • Você tem projetos de vida? Acha isso importante?

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ANEXO A

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Pró-Reitoria de Pesquisa e de Pós-graduação

Comitê de Ética em Pesquisa - CEP

N.º Registro CEP: CAAE –0061.0.213.000‐09  Título do Projeto - Sentido de vida e espiritualidade na velhice tardia Prezado Senhor (a), Este Termo de Consentimento pode conter palavras que você não entenda. Peça ao pesquisador que explique as palavras ou informações não compreendidas completamente. 1 ) Introdução Você está sendo convidado(a) a participar de uma pesquisa que estudará o Sentido de vida e a espiritualidade na velhice tardia. Esse estudo se fará a partir da análise das narrativas de idosos a partir de 75 anos sobre espiritualidade e sentido de vida, por meio da metodologia de História Oral. Você foi selecionado por estar dentro da faixa etária foco desta pesquisa estando, assim, coerente com o perfil do grupo que se pretende investigar. Sua participação não é obrigatória. O objetivo do projeto é investigar como o fator espiritualidade influencia na elaboração do sentido de vida na velhice tardia. 2 ) Procedimentos do Estudo Para participar deste estudo solicito a sua especial colaboração em responder uma entrevista em história oral, gravada sobre o desenvolvimento do fator espiritualidade ao longo de sua história de vida e, principalmente, após os 75 anos. Esta entrevista será transcrita respeitando-se o caráter confidencial dos registros conforme item 8. 3 ) Riscos e desconfortos Esta pesquisa, por utilizar a entrevista como procedimento, oferece risco mínimo à saúde dos participantes. Ocorrendo qualquer desconforto o entrevistado tem o direito de não responder a pergunta ou cancelar a entrevista, caso deseje.

Av. Dom José Gaspar, 500 - Fone: 3319-4517 - Fax: 3319-4517 CEP 30535.610 - Belo Horizonte - Minas Gerais - Brasil

e-mail: [email protected]

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4 ) Benefícios Espera-se que, como resultado deste estudo, você possa contribuir com o fornecimento de dados importantes para a construção de uma Dissertação de Mestrado. Esta dissertação poderá contribuir para ampliar o conhecimento sobre o universo do idoso, proporcionando uma reflexão sobre a construção do sentido de vida na velhice e a avaliação do fator espiritualidade na vida destas pessoas. Para o idoso esta pesquisa poderá trazer subsídios para ampliar as reflexões existenciais e a compreensão da elaboração do sentido de vida nesta fase da vida. 5 ) Tratamento Alternativo

(Não se aplica a esta pesquisa) 6 ) Custos/Reembolso Você não terá nenhum gasto com a sua participação no estudo e também não receberá pagamento pelo mesmo. O pesquisador se deslocará até seu domicílio em dia e horários pré-agendados para realizar a entrevista. 7 ) Responsabilidade Efeitos indesejáveis são possíveis de ocorrer em qualquer estudo de pesquisa, apesar de todos os cuidados possíveis, e podem acontecer sem que a culpa seja sua ou dos pesquisadores. Se você sofrer efeitos indesejáveis como resultado direto da sua participação neste estudo, a necessária assistência profissional será providenciada. 8 ) Caráter Confidencial dos Registros A sua identidade será mantida em sigilo. Os resultados do estudo serão sempre apresentados como o retrato de um grupo e não de uma pessoa. Dessa forma, você não será identificado quando o material de seu registro for utilizado, seja para propósitos de publicação científica ou educativa. As entrevistas serão armazenadas em fitas cassete com identificação do dia, local e entrevistado. As transcrições, integral ou em partes, obedecerão aos mesmos critérios de identificação. Os registros permanecerão em posse do pesquisador por um período de 12 (doze) meses. Ao término deste período os mesmos serão destruídos. Para utilização de sua entrevista na Dissertação, fruto desta pesquisa, seu nome será substituído por um pseudônimo, de forma que não permita a identificação. Seu endereço será mantido em sigilo, não sendo divulgado em hipótese alguma. 9 ) Participação Sua participação neste estudo é muito importante e voluntária. Você tem o direito de não querer participar ou de sair deste estudo a qualquer momento, sem penalidades ou perda de qualquer benefício ou cuidados a que tenha direito nesta instituição. Você também pode ser desligado do estudo a qualquer momento sem o seu consentimento nas seguintes situações: (a) caso você não use ou siga adequadamente as orientações/tratamento em estudo; (b) caso você sofra efeitos

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indesejáveis não esperados; (c) caso o estudo termine. Em caso de você decidir retirar-se do estudo, favor notificar o profissional e/ou pesquisador que esteja atendendo-o. Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, coordenado pela Prof.ª Maria Beatriz Rios Ricci, que poderá ser contatado em caso de questões éticas, pelo telefone 3319-4517 ou email [email protected]. Os pesquisadores responsáveis pelo estudo poderão fornecer qualquer esclarecimento sobre o estudo, assim como tirar dúvidas, bastando contato no seguinte endereço e/ou telefone: Nome do pesquisador: Anna Cristina Pegoraro de Freitas Endereço: Rua Muzambinho, 289/02 – Bairro Cruzeiro – Belo Horizonte/MG. Telefone: (31) 3287-5378 / (31) 8875-4711 e-mail: [email protected] / [email protected] 10 ) Declaração de Consentimento Li, ou alguém leu para mim, as informações contidas neste documento antes de assinar este termo de consentimento. Declaro que toda a linguagem técnica utilizada na descrição deste estudo de pesquisa foi satisfatoriamente explicada e que recebi respostas para todas as minhas dúvidas. Confirmo também que recebi uma cópia deste Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Compreendo que sou livre para me retirar do estudo em qualquer momento, sem perda de benefícios ou qualquer outra penalidade. Dou meu consentimento de livre e espontânea vontade para participar deste estudo. _______________________________________________ Nome do participante (em letra de forma) _______________________________________________ __________________ Assinatura do participante ou representante legal Data

Obrigado pela sua colaboração e por merecer sua confiança.

_______________________________________________ __________________ Nome (em letra de forma) e Assinatura do pesquisador Data

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ANEXO B

TRANSCRIÇÃO DAS NARRATIVAS

DAS COLABORADORAS

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ENTREVISTA 1 - ESTEFANOTE

Identificação: Estefanote Sexo: F Idade: 90 anos Grau de instrução: ensino médio (curso normal) Procedência: Entre Rios de Minas Estado civil: viúva Filhos: 8 Netos: 9 Bisnetos: 2 Profissão (atividade ocupacional): secretária de grupo de estudos religiosos Saúde: Bem controlada (DM e pressão alta) Prática religiosa: católica Origem familiar: francesa (avô materno) Com quem mora: sozinha (empregada diurna e um filho mora na casa abaixo)

Nasci em Entre Rios de Minas. A criação foi lá, mas muito misturada em Juiz de Fora. A gente ia

e passava meses em Juiz de Fora. Minhas tias moravam lá e minha mãe então ia sempre lá,

porque nós morávamos em fazenda, a locomoção muito difícil. Então de vez em quando a gente

ia para passar tempos lá. Nos tempos de chuva, para estar voltando pra cidade era muito difícil,

por lá não tem estrada de ferro (em Entre Rios). Era estrada de terra, era ônibus e era muito difícil

o transporte. Então, a gente passava lá muito tempo. Meu pai levava a gente pra lá, ia embora pra

roça, depois buscava a gente. Meus tios, irmãos do meu pai, trabalhavam lá em Entre Rios com

meu avô. Meu avô era comerciante. Então, eles trabalhavam dois a dois, junto com meu avô. E lá

eles fizeram um pé de meia e iam embora para Juiz de Fora ou Rio e fundavam fábrica. Porque

naqueles tempos o dinheiro valia, muito! Acho que tinham essa ânsia de melhorar e fizeram

muito bem! Lá em Juiz de Fora tiveram fábrica de cobertor, um teve fábrica de meia, o outro

mexia com comércio muito ativo de tecidos. Eles gostavam muito de fazenda também, então eles

tinham o seu sitiozinho, cada um deles. Residiam em Juiz de Fora, mas tinha o sítio perto.

Quando a gente passava meses lá, eles convidavam a gente pra ir para o sitio, porque sabiam que

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a nossa origem era de roça. Então a gente adorava aquilo lá. E eles eram muito bons pra gente, os

tios sabe? Os irmãos do meu pai. Nós éramos seis, quatro mulheres e dois homens. Os dois

homens já morreram. Eu sou a mais velha. Estudei no colégio de freira Sacré-Coeur de Marie,

aqui de Belo Horizonte, interna; e meus irmãos estudaram em Juiz de Fora - externos, porque

meu pai tinha sido estudante do Caraça, desses colégios de padre - detestava essas coisas! Então

ele pôs meus irmãos estudando externos, lá em Juiz de Fora. E ai eles tinham muito contato com

os tios, moravam na casa de uma tia. Era como se fosse uma pensão para eles. O primário da

gente foi feito por minha mãe. Sem programa, sem nada. Assim do jeito que ela sabia foi

ensinando a gente. E deu muito certo, pra mim pelo menos, porque depois eu completei no

colégio Sacré-Coeur e me dei muitíssimo bem lá. Porque eu peguei amor ao estudo. Mamãe

gostava de ensinar a gente verbo, essas coisas todas, sabe? De cada matéria, principalmente

português. Então com isso a gente teve um lastro de conhecimento bom. Até hoje eu sei os

afluentes do Rio Amazonas, as preposições simples: a, ante, até, após, com, contra, de, desde,

em, para, por, perante, sem, sob, sobre, segundo, consoante, conforme, trás. Agora, quer os

afluentes? Os afluentes do Amazonas: do lado direito: Javari, Jutaí, Juruá, Tefé, Guari, Purus,

Madeira, Tapajós, Xingu e Tocantins. Da margem esquerda: Içá ou Putumaio, Japurá ou Caquetá,

Jamundá ou Nhamundá, Negro e Trombetas. O pessoal morre de rir. Minhas netas todas ficam

pedindo pra eu falar feito papagaio. Nós éramos obrigadas a decorar. Lucrei muito com isso

porque, hoje em dia, não há “decoreba”, quer dizer, houve deficiências nesse sentido. Mas a

gente conseguiu uma criatividade assim, maior depois, com outros cursos. Então, valeu esse

“decoreba” antigo. A memória ativa muito. Então foi bom. Sempre fui católica. Não tinha essa

prática assim, tão grande não. Porque nós morávamos em fazenda e a gente ia pra cidade para

missa, às vezes a cavalo, ou então, no carro de boi. E meu pai não era muito ligado a essas coisas

não, porque ele tinha sido muito infeliz com padre, achou os padres muito esquisitos. Ele teve um

irmão que morreu num colégio interno lá em Cachoeira do Campo. Ele nem sabia que o irmão

dele estava doente, quando viu já tinha morrido lá. Minha avó e meu avô foram a cavalo, para

enterrar o menino em Cachoeira do Campo. E papai tinha horror de padre. Porque achou que isso

tudo veio em detrimento para cultura dele. Ele aprendia, ele gostava de estudar! Então, ele disse

que nas missas - era obrigado a assistir aquela missa - levanta e senta e ajoelha, ele fazia tudo

mecanicamente. Porque naqueles tempos os rapazes iam para esses colégios e vestiam batina,

como se fossem padres já. Tem retrato dele, estudante e com batina. Uma “bobajada” danada.

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Mas era o contexto da época e a gente acha que estava tudo muito certo, não é? Agora meu pai

teve horror dessas coisas, porque ele era uma pessoa inteligente e viu que isso aí não era o

máximo para entender a vida. Ele só começou a entender a religião a ponto de gostar, depois

que ele casou com mamãe, porque mamãe era muito cristã, muito católica. Tudo era a vontade de

Deus. Sabe como é que é? A gente rezava terço, é assim: cada um tirava uma dezena. Meu pai

também assistia. E ele, acho que ele dava muito valor a mamãe, porque, não é só por causa da

religião, porque a mamãe tinha uma vivência muito certa. Muito compreensiva e era muito culta,

sabia francês muito bem, porque era filha de francês. E meu avô, acho que ele caprichava nas

conversas lá. Então, ela tinha um lastro de conhecimento grande. Ela foi estudar depois interna no

colégio em Barbacena, das vicentinas. Ela era professora, porque meu avô era pobre, apesar dele

ter um serviço, ele tinha acho que doze filhos, negócio nessa base mais ou menos. Morria muito,

porque naqueles tempos eles não tinham recurso assim, de médico. Então, ele não ficou sempre

em Juiz de Fora não, antes ele peregrinou para várias cidades de Minas. E às vezes, ele tinha

filhos nesses lugares e sem recurso, com certeza, a gente vendo a vida dele a gente sente

direitinho. Uma filharada sem conta. Morria um, daí um ano já tinha outro, com o mesmo nome,

às vezes, é interessante! Eu tenho tudo isso escrito e gosto de mostrar para o meu povo todo,

porque é muito bom a gente ver esse contexto em que a gente viveu. Eu acho que é muito bom

essa vivência. Sou viúva desde 1991. Foi muito ruim, mas a gente foi bem preparado. Câncer é

uma coisa que não tem conserto. E ele teve linfoma. Ele ficou doente uns tempos, sarou uns

tempos com quimioterapia. Um negócio horroroso, porque tinha muita reação. Mas ele era um

homem muito forte, então ele aguentou tudo. E aguentava. Ele achava que tinha que vencer

aquilo tudo. Aí, ficou dois anos assim, já bem melhor. Daí a pouco veio de novo tudo. E aí não

tinha mesmo jeito. Sem que a gente perceba, a vivência da gente transmite o que a gente está

interiormente. Eu achei que a vontade de Deus era essa mesmo, então, nunca eu questionei isso.

Talvez esse lastro de catolicismo da mamãe, que passava na vida da gente: “Não, é Deus que

quer!” Aquele negócio todo e tal, aquilo tudo faz a gente ficar numa estrutura X. Então, não tive

essa coisa. Eu fui ter uma religião direito mesmo, na Ação Católica. Eu já era estudante aqui em

Belo Horizonte, eu tinha acabado já o curso. Ação Católica foi fundada por Pio XI e aqui era

Dom Cabral o Bispo, ele implantou a Ação Católica. É como se fosse uma catequese bem feita.

Como se fosse não, era. Então a gente que fazia parte dela, começou a entender o cristianismo

nas fontes. Tudo isso que seria superficial, nós tivemos na Ação Católica. A coisa na fonte. Então

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você aprende muito, o que é religião no sentido de cristianismo autêntico. Muito bom. Eu devo

muito à Ação Católica. Aí que a gente vê o que é religião. Principalmente a religião católica. E

esse ecumenismo também de saber dar valor às outras religiões, faz parte do catolicismo bem

compreendido. E a gente estudou bíblia também, um pouquinho. Pouca coisa, mas aquilo que dá

para entender o Evangelho, sim. E até hoje eu gosto muito disso, porque eu assino aquele Jornal

de Opinião e ele me dá muito lastro. E a Família Cristã também, uma revista, que ajuda a gente.

Esse intercâmbio com pessoas que estudam as mesmas coisas que a gente. As companheiras da

Ação Católica. E a Ação Católica tinha JEC, JIC, JOC e JUC, conforme o setor. JOC os

operários. Cada um funcionava no seu meio. A Ação Católica teve essa ideia. Frei C., lá da

França, que também deu muita estrutura nesse negócio. E a Itália tinha a Renascista Cristiana, era

uma espécie de Ação Católica. Também muito bom. E nós tínhamos aqui as dirigentes. Tinha

sempre congresso, tinha sempre estudo dessas coisas. Muitas vezes a gente não ia, mas as

companheiras iam e transmitiam para gente.

Eu acho que o núcleo de cristianismo sadio mesmo, assim que foi uma coisa mais presente na

vida da gente, foi por causa da Ação Católica. Porque o resto era assim, por exemplo, lá na minha

terra os padres eram muito boas pessoas, mas não tinham essa visão assim. Eu também não

frequentava muito a igreja, porque meu pai não tinha esse empenho de levar a gente pra lá. Era a

cavalo, não tinha estrada de automóvel ainda. Quando tinha também, ele não ligava, nós também

não. Agora quando eu vim aqui para Belo Horizonte, aí que eu tive a Ação Católica. No colégio

também, a religião era dada de um jeito muito primitivo, muito de novenazinha, de sacrifícios e

não sei mais o quê. Fazia uma estatística, a gente tinha que tomar nota do que tinha feito durante

o mês. Quer dizer, gente muito boa, as freiras. Eu não posso queixar, porque ninguém dá o que

não tem. E as freiras foram muito boas nesse sentido. A gente não pode queixar, porque o

contexto da época faz a gente entender o que é a época, faz a gente dar valor. A gente não pode

ser radical nas coisas. Tudo contribui, você repara como é que é. Tudo. O contato humano faz

uma falta incrível, pra gente poder entender a vida. Em cada nuança, em cada pormenor. Eu acho

que é muito importante. O contato que a gente teve com cristãos autênticos também. E a gente

pode comparar e ver o que vinha da fonte e o que foi agregado ao contexto social. A gente foi

dando valor e vendo o que era a estrutura certa. E com isso eu me sinto muito melhor do que se

eu tivesse ficado só naquela religião assim, de rezinhas, de novena, de sacrifício, não sei mais o

quê. A gente teve uma coisa muito autêntica, muito mesmo. Divino é o valor que transcende ao

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que está normalmente sendo visto, assim, pela gente. Mas tudo tem um porquê. Vem de uma

significação. Que significação é essa? Tem sempre um ambiente em que a gente sente que existe

um valor diferente do que muita gente pensa. Por exemplo, cada pessoa com quem você vive,

convive desde pequena, você tem sempre um sentido de amor, de transcendência, quer dizer: vai

acima do que está ali enxergando, você tem sempre educação no sentido de valorizar o que você

vive. Então isso aí vem desde pequena. Depois com a cultura, com um bocadim de experiência da

vida, você vai sentindo cada vez mais que você tem que abraçar valores que não são às vezes

terra a terra, como se alimentar, alimento, vida vegetativa, qualquer coisa assim. Tem

sempre um valor acima disso. Isso que eu acho que é espiritualidade. Aí cada pessoa humana,

cada pessoa - Por que eles falam pessoa humana? Aliás eu acho esquisito, é uma espécie de

pleonasmo, mas todo mundo fala. A pessoa humana tem valor muito diferente de qualquer outro

ser. Então, isso aí já é importante pra própria vivência. Para você poder saber, por exemplo, lidar

com as pessoas, saber que tanto faz o preto como o branco, como o sem cultura como qualquer

um mais. É sempre uma pessoa com valor, que depende da gente dar valor aquilo. Ter um

convívio sadio, um convívio em que a gente pensa que a pessoa tem um valor a guardar e que nós

temos a obrigação de ajudar a pessoa a ter esse valor e viver esse valor. É a dimensão divina em

tudo o que é humano. Divino aí, no sentido do valor que está acima do que a gente enxerga

comumente na vida. Eu não sei se eu posso me expressar desse jeito. È diferente, não é?

Transcende. Acredite ou não em Deus, esse Ser Superior, tem sempre uma importância na vida

da gente como um parâmetro, um farol para iluminar a atividade da gente, a vida da gente em

cada pormenor. Então, queiram ou não que esse que transcende chama Deus ou não, é um valor a

que você tem que atender. Agora uma pessoa que tem um cristianismo bem fincado, bem

presente, ela vê nesse valor a palavra de Deus, então ela abraça a palavra de Deus pra ver se ela

aterrissa na vida. Então, vem aí o evangelho, pois o evangelho é um valor muito grande, porque

tudo o que tem do humano está no evangelho. Vai descortinando cada palavra e vai vendo que

tudo tem um valor. Não é uma coisa completamente desligada da vida, não. É tudo valorizado.

Tudo o que a gente vive no mundo, cada setor, cada ambiente, cada vida, cada minuto do dia tem

uma explicação. Tem sempre um valor que transcende a essa parte assim, normal de você viver e

conversar. Tem sempre uma coisa muito acima. Queira ou não, que isso aí vem de Deus ou não,

tem sempre um valor, né? Tem gente que não acredita em Deus, mas é perfeitamente

espiritual. Acredita que a gente não pode ficar só no comer, beber, dormir, só vida humana

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nesse sentido vegetativo não. Sempre tem um valor que transcende. E isso faz você ter uma

mentalidade de viver cada minuto do dia, com cada relacionamento com pessoa, como um

valor. Então tem que ter uma explicação. Uma vontade de acertar. E isso aí é muito

importante na vida para você poder pensar como é que a pessoa pode se relacionar de um

modo, assim, normal, de jeito que seja humano e não seja uma coisa bestial nem nada.

Então, acho que isso é importante. Agora a minha espiritualidade é nesse sentido de ter um

valor transcendente. Desde pequena a minha mãe tinha a mania de rezar terço. Então pra nós

aquilo ali era sagrado. Cada um tirava uma dezena do terço, e tal. E a gente achava aquilo uma

beleza, porque depois a mamãe mandava a gente, antes de dormir, cada um fazia uma dezena.

Então, era aquela competição pra quem é que vai rezar primeiro a primeira dezena. Não tem

muita explicação do que é que significava a dezena não. Não tinha não. Mas a gente achava

bonito porque é um valor que às vezes a gente não aterrissa pra ele, mas sabe que ta sendo

valorizada a coisa. E também o modo de tratar os outros. Se bem que meu pai era muito racista,

mas mesmo assim ele não transferia pra gente essa idéia de desprezar o outro, nem nada não.

Tanto que pra ele, preto, por exemplo, quando não suja na entrada, suja na saída. Então com isso,

ele tinha sido comerciante e tinha uma graxa que vendia no comércio, que chamava cirage. Era

uma graxa francesa, preta. Ele nem falava mais em preto, ele falava cirage. Quando ele falava

cirage, a gente sabia é preto. Tem um cirage por aí, quer dizer um preto. E ele não ficava assim,

tão renitente, tão radical em relação a achar que não tenha valor, não. Ele só achava que preto

tinha sempre uma deficiência diferente do branco. Talvez ele não tivesse uma formação assim,

porque ele foi educado em colégio de padre, e os padres muito burros... Então, o negócio era

muito difícil pra ele. Ele tinha uma religião assim de, obrigação, não tinha uma noção de que era

humanidade no sentido de cristão. Era uma coisa de obrigação. Então, diz ele que na hora dele

assistir missa lá no Caraça ele punha a palma da mão com um escrito assim e ia decorando tudo o

que ele tinha que estudar para aquele dia na matéria do curso que ele fazia. E levantava, sentava,

ajoelhava na missa automaticamente, sem saber o significado daquilo. Porque ele queria era

aprender a declinação de latim, esse negócio tudo. Toda a vida ele gostou muito de cultura nesse

sentido, de uma coisa que transcende um pouco ao dia-a-dia. Ele gostava de livro, ele gostava de

literatura, achava que a gente tinha que aprender a escrever muito bem. Tinha que escrever uma

carta muito direita. E quando eu era de colégio interno, elas, as freiras liam as cartas que a gente

mandava, tanto as que eram recebidas como as que mandavam. Aquele negócio tinha que passar

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pelo crivo delas. Quer dizer, era um tipo de cultura daquele tempo. Hoje eu valorizo isso, acho

que é cada um na sua. Antigamente eu achava meio revoltante aquilo. Mas o papai não era bobo

não, mandava a correção de tudo o que a gente tinha escrito errado de português. Então com isso

eu aprendi português, aprendi francês com minha mãe, um bucadinho, tradução. Então isso aí foi

muito bom pra mim, porque essa cultura é uma espécie de janela pro mundo. Então, eu aprendi

muita coisa e fui depois, quando eu entrei para Ação Católica, eu fui vendo que muita coisa boba

que existia, que chamavam religião, tinha outro aspecto. Era uma coisa muito mais vivida, de

vida, muito mais abalizada. Não só teoria, mas uma coisa vivida mesmo. Com isso, na Ação

Católica eu revi e revivi a minha religião. Porque o Concílio, essa parte de igreja, é muito

simpático porque eles veem aquilo desde o tempo antigo - do tempo anterior ao atual - já os

padres conciliares, os padre de igreja, já viram que precisava de mudar o tipo de vida dos

cristãos. Por que estava tudo muito banal, era só novena, era só uma reza, não tinha uma elevação

espiritual muito maior. Depois que eu entrei pra Ação Católica a gente tinha essa valorização de

tudo o que era pequeno na vida. Valorizava muito o convívio humano, a camaradagem. Muito

interessante a vida de um cristão na fonte. Porque é a fonte mesmo que é o certo, vem do

evangelho. No evangelho estão as fontes do cristianismo. Cada palavra ali tem um significado. A

gente então era obrigado, obrigado num certo sentido, de entender aquilo para poder viver. Pra

mim foi uma visão muito boa. Daí vêm outras coisas, porque você começa a vivenciar não só a

religião, mas a vida humana em si e o sentido da religião dentro da vida humana. Vendo o valor

da pessoa, a gente aprendeu a conviver com diversidade de cultura, a diversidade de pontos de

vistas. Essa diversidade foi muito importante para mim. E continua sendo porque eu estou sempre

estudando para ver o que a gente tem que abraçar ou não abraçar, no sentido de cristianismo. Isso

foi ótimo para mim. E no nosso grupo, nós procuramos fazer isso também. Cada um do seu

modo, cada um procura valorizar aquilo que é valor e procura saber o que é valor e o que não é.

Então, isso faz a gente ter uma visão melhor da vida. E faz a gente fica mais feliz. São valores

importantes para mim o amor, a solidariedade, acolhimento, pensar no outro em todas as misérias

e sabendo levantar aquilo, saber o porquê daquilo. O contexto cultural dela. Porque que é. Essa

diversidade é muito bonita da gente atender, porque antigamente era todo mundo igual. Por que

não faz feito igual fulano de tal. Agora depois da modernidade, não. E a igreja abraçou muito a

modernidade. A gente pode ignorar isso, mas a igreja no sentido de fonte mesmo, abraçou muito

essa diversidade. E dá valor a essas coisas, dá valor as pessoas, dá valor a vida, a política em si. O

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que é política? Também aprendi muito isso, que a política não é esse negócio de discurso de

candidato. Política é a vida do dia-a-dia da cidade. “Poli” vem da palavra polis política e da

cidade grega que também chamava Polis. O convívio de cidadão mesmo, como deve ser o dia-a-

dia. Isso que é política! E a política atualmente tem que atender as necessidades do povo daquela

cidade. Transcender aquela cidade mais para diante. Saber o que é valor afinal de contas, o que é

valor pra pessoa humana. A espiritualidade vem contribuindo na velhice, porque a gente vai

sabendo os porquês dos negativos e dos positivos da vida, das pessoas em volta da gente e da

gente mesmo. Porque que a gente atravessa essa surdez. Tudo tem uma explicação de que tudo

faz parte da vida. Então, você tem que ter uma espécie de tolerância, paciência e saber que aquilo

é uma coisa que tem que ser transposta mesmo. A gente tem que transpor isso pra poder viver

mais em paz com a gente mesmo. Eu acho que paz é uma coisa muito interessante, por que você

vê que é esse equilíbrio de saber que tudo tem um por que, que tudo tem um modo de ser e você

tem que abraçar aquilo que é e não ficar procurando coisas diferentes. É tolerar, ter mansidão, ter

paciência. E acho muito importante, eu continuo falando, que uma das coisas que eu mais aprendi

que foi muito bom, é essa diversidade. Isso, eu acho, não nasceu na Igreja, mas a igreja abraçou

isso muito bem. Agora, a Igreja fonte, não é a Igreja qualquer não. O cristianismo autêntico. A

gente pode ver que todo teólogo, que toda pessoa que pensa em religião no sentido verdadeiro,

ela abraça esses valores humanos, que vão dando um teor de vida pra gente, mais importante pra

você poder viver. Porque senão você fica só xingando a vida, achando que a vida não vale nada.

Existe muita dificuldade, existe diversidade de pensamento, de educação pra você pode lidar com

as pessoas, cada um tem uma mentalidade, às vezes. Então, você tem o porquê de saber por que

essa cultura foi assim, que foi daquele jeito. O valor de pai, de mãe, daquela época. Eu acho que

época também é uma coisa muito importante. Quando a gente estuda historia, a gente vai vendo

pelas épocas como é que é essa transição a valores, a desvalores. Cada cultura tem valores, tem

desvalores, tem o porquê que a gente tem que abraçar ou não, pra gente ser mais feliz. O que é

feliz afinal de contas? É ter um equilíbrio de vida! Não é coisa extra de procurar coisa diferente,

mas é abraçar o dia-a-dia de cada um, como deve ser. Isso aí depende da gente estar reciclando,

meditando, refletindo. Isso é muito importante no meu grupo de reflexão que é da ex-Ação

Católica. A gente sempre reflete, tem sempre a motivação. É muito interessante isso. No nosso

caso agora presente, por exemplo, quem entra para esse grupo... a gente entra e nem sabe o

porquê que entrou. Eu entrei por que eu tinha uma vontade de entender religião no sentido

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verdadeiro, sem esse negócio de ficar sacrificinho, ficar a tomar nota do que não comeu, de

comeu bem, aquele negocio todo de colégio. Então, eu tinha muita vontade de entender o que era

o certo, o que era o errado. Com isso eu abracei essa parte que chama Ação Católica, que é a

Igreja olhando para as fontes de vida, de onde que vem essa vida cristã, porque que veio. Então,

eu abracei esse lado. Todo mundo que entrou pra Ação Católica tem outra visão da vida. Porque a

gente sente que a vida não é uma coisa de noveninha: vida cristã não é noveninha, não é negocio

de promessa, não é peregrinação só. Tudo isso tem um valor, mas dentro de um limite. Com isso

eu acho que todo mundo do meu grupo tem a mesma visão. A gente começou a enxergar a vida

de outra maneira. A vida cristã, não é uma coisa separada da vida normal não, é a vida comum de

cada fase da vida da gente. E com isso a gente começa a entender mais de educação, educação de

filho como é que deve ser, dar valor s diversidade de temperamento. Essas coisas são muito

importantes na vida! No nosso grupo todo mundo pensa assim. Foi muito bom ter entrado para

um grupo que faz a gente refletir sobre essas coisas. Porque não adianta ficar uma vez aprendido

por todo não. Você tem que reciclar para ir fazendo aquilo mudar. Mudança é uma coisa bonita

demais! A gente não pode ficar estagnado, você tem que mudar, não é? O grupo me faz muito

bem. E temos que estudar um pouquinho também. É pena que a hierarquia da igreja não é sempre

muito motivada para isso. Não abriram, os Bispos ainda não abriram muito pra isso. Agora a

CNBB, é o máximo de arrumadinho, porque tudo lá é muito certo. Eles têm uma visão certa das

coisas. Tem muita gente que tem credenciais pra ajudar na direção do que está sendo necessário

pra evangelização ficar mais de acordo com a vida humana dentro da sociedade atual. Isso é

importante também, não pode desprezar o que está na sociedade. É aquilo mesmo: abraçar o que

tem de ser. Tem uma palavra de Deus que eu acho bonita que é assim: “meu pai, peço que não os

tireis do mundo, mas que os livreis do mal”. Não tirar do mundo quer dizer, você está dentro do

mundo, naquilo que tem de ser. A vida do cristão está plantada no presente. É realista em relação

a tudo em quanto é dificuldade. É realista. Entender o porquê que existe a dificuldade, como

transpor aquela dificuldade, o que é melhor para convívio humano, o que é melhor pro convívio

social? É isso. A começar da família, que às vezes tem problemas sérios e a gente fica às vezes

sem paciência, porque é muito chato mesmo! A gente fica às vezes com cerimônia de falar e de

viver, então, depende mais da gente mesmo. A gente transfere aquele testemunho da gente

mesmo. Se você está muito chateado e faz daquilo um cavalo de batalha, pior fica em volta.

Porque o ambiente se recente de tudo em quanto é mentalidade que está perto. Então, isso é muito

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bom para gente, um grupo nosso. E no grupo nosso, nós somos todas velhas, todas viúvas, cada

hora morre uma, porque cada uma tem uma peste – de velhice mesmo, de idade - uma tem

reumatismo, a outra tem não sei o que, a outra tem surdez, a outra não enxerga, é tudo assim

nesse sentido. Mas a gente vai reciclando toda semana e então, vai levando pra vida de cada uma

o que é melhor, para poder viver melhor e transpor a doença. O grupo tem uma atividade paralela

que é compatível com a vida da gente. Os pobres são muito necessitados, então, se elas sabem

que aquele grupo está precisando, um asilo, por exemplo, todo mundo faz uma roupinha, todo

mundo arranja presente. Faz o dia do presente, amigo oculto, então isso tudo está ligado. Nós não

estamos ligados à paróquia não, à paróquia de hierarquia não. A gente sabe o que está se

passando na Igreja. E as paróquias em geral sabem o que está se passando na Igreja grande, na

Igreja matriz. É um grupo autônomo. Agora, no meu tempo de juventude, eu vi lá em Juiz de

Fora a juventude estudantil, a juventude universitária, todos eles tinham isso dessa reciclagem.

Entender o que é o cristianismo, muito bom. De acordo com o estado civil da pessoa, estado

social da pessoa. Os operários foram muito beneficiados. Agora eu não sei a quantas andam,

porque as coisas vão mudando e a gente não está sabendo muito bem. Eu sei que na França, na

Itália, pelos boletins que eles mandam pra gente, eles vão até pra Guiné Bissau, pra África, pra

Ásia, esse grupo! Eles vão fazendo muito beneficio e cidadania por lá. Então a gente vê que tem

ligação. Nós é que estamos às vezes mais... porque a velhice vai pesando, vai ficando mais

separada. A própria paróquia para nós fica sendo um pouco distante. Porque, por exemplo,

escutar um padre pra quem é surda é difícil. Então, você tem que está imbuída muito do valor de

uma missa e não deixar de ir de vez em quando. É natural, mas o negócio daquela obrigação de

ficar: “ah se não for à missa peca!” – Isso aí no tempo de criança o pessoal falava. Minhas tias

não podiam fazer um bordado na hora de domingo porque diz que seria pecado. Então era triste,

era muito triste a vida do povo. Essa visão da Igreja hoje é uma beleza. Agora, é claro que o

humano muda um pouco. Em cada lugar existe humanos e esses humanos vão levando um pouco

aquela cultura, aquilo que é próprio deles. Então, não é tudo tão uniforme assim, no sentido de

estar tudo muito bem explicado, tudo bem vivido, não. A gente tem deficiências. As deficiências

humanas continuam, em todo setor. Até isso faz parte das nossas reflexões. A diferença de vida, a

diferença de cultura, a diferença de tipo de vida mesmo, de vida social. Isso tudo nós refletimos

para ver o que pode ser feito para melhorar, o que não pode mais melhorar porque já foi

ultrapassado. E essa modernidade, nós abraçamos muito, mas no sentido certo da modernidade.

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Essa individualidade, por exemplo, esse valor da individualidade. A individualidade é uma coisa

linda, porque cada um é um! Não pode ser diferente, como a gente queria – “ah não, tem que ser

igual fulano!” Tem quer ser, nada! Essa diversidade é muito bonita. Agora, isso às vezes pode

derivar para o individualismo, isso aí já são outros quinhentos. A diversidade é muito boa – a

individualidade, agora o individualismo já é um transtorno daquela individualidade. Nós temos

que estudar sempre... Eu, por exemplo, não leio quase jornal, mas o Jornal de Opinião me dá

subsidio pra eu entender a vida. Está sempre presente naquilo que está acontecendo, por exemplo,

da CNBB. Eu dou muito valor aos bispos, sabe? Eu acho que os bispos podem ter o defeito que

for, mas eles estão querendo sempre o bem e sempre melhorar em relação à modernidade. Não

fica parado no tempo, estagnado, não. O tempo vai mudando. Isso é muito importante na vida. A

própria velhice já tem suas deficiências. É surdez, é falta de visão, é falta de compreensão às

vezes, porque a gente quer tudo muito nivelado, uma porção de faltas, assim, de deficiências que

existe na velhice. Então essa reciclagem que a gente atende a esse lado também, é muito bom, eu

acho que ajuda demais. Porque, se não tiver... A gente tem um valor por si. Então, isso é muito

importante no meu grupo. Muito. A gente sente que uma se apoia na outra. E o meu grupo tem

uma de 98 anos: é a mais lúcida, a mais inteligente, a mais culta. Agora entraram duas novas, são

mais novinhas, noras de algumas nossas. Então, essas aí já veem trazendo uma carga mais, assim,

aberta. Agora que elas vão começar a aprender conosco algumas coisas. Nós vamos aprender

com elas algumas coisas. E elas trazem problemas que a gente resolve e a gente fica achando que

é glória a gente conseguir resolver! É glória mesmo! É o fruto de uma reciclagem desde os

tempos remotos, que vai passando. A mentalidade passa. E o testemunho também, a gente não

pode ser uma coisa peremptória, mandona. Tem que ser uma coisa paulatina, devagar. Tem que

ser tudo muito leve. Mudança é uma coisa que não é de repente. É lento. Tem um dia que usamos

muito fazer uma revisão de vida: escolhe-se um caso que está acontecendo na sociedade que a

gente vive e aí se começa a ver o que a sociedade pensa, o que a gente pode fazer para melhorar

aquilo. Agora estamos estudando os Atos dos Apóstolos, que é uma coisa bem aterrissada. É um

grupo organizado: uma é secretária, a outra é tesoureira, assim. Eu sou a secretária. Gosto de ser e

é a única coisa que eu sei fazer e sei que eu faço melhor que elas. Escrevo carta, e faço

reciclagem das coisas que precisam. Tesoureira eu não sei, coordenar eu não sei. Eu ajudo. Vou

contar um caso interessante: o meu médico é uma pessoa muito dedicada, muito profissional e

muito competente. Aí, um dia ele me perguntou se eu ainda fazia esses livrinhos. Acho que ele

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soube, porque eu nem lembro se eu tinha dado um a ele. Eu falei que não tinha feito não, mas que

naquele ano eu iria fazer. E mandei para ele 10 e escrevi assim: “faça deles o uso que lhe

aprouver”. Achei a palavra aprouver tão feia (risos). Telefonei para a de 98 anos e perguntei:

“como é que eu arrumo?” Ela falou: “Não Estefanote, está certo. Aprouver é o futuro do

subjuntivo do verbo aprazer”. Na mesma hora! A mulher é “crack”! Ela é um caso único no

mundo, por que ela tem tudo. Tudo! Ela digita no computador muito bem. É ela que faz as coisas

todas para nós. Antigamente eu fazia tudo a mão, para lá e para cá. Aliás, eu faço! Envelhecer é

mudar. É mudar pra umas coisas bem ruinzinhas. Outras coisas são boas porque a gente

trás vivências, mas são coisas inesperadas. Falta de energia, uma transformação de mais do que

a gente era e do que a gente vai sendo. É uma transformação muito grande! Só quem passa pode

fazer uma ideia exata do que é que é. Mesmo quando a gente tem assistência pra isso e tudo, é um

desafio! Eu acho. Agora, se a gente não se forma, não lê a respeito de idosos, vivências, essas

coisas, fica pior ainda. Eu então, estudei sobre idosos, achei bem bom. Fiz até um escrito sobre

idosos, porque aquele Banco fez um concurso pra que quisesse, para poder ganhar prêmio. Eu fiz

uma narração boa, estudei bem e foi muito bom pra mim. Mas depois eu descobrir que o

concurso, para dar prêmio, premiaria quem tinha assim, uma vivência pessoal, por exemplo,

fundar um núcleo que tinha velhos, um trabalho com velhos. E o meu caso era só teoria a respeito

de velho. Fiz, estudei muito, aprendi muito, foi muito bom [...] de qualquer maneira. (Dar sentido

à vida é) Muitíssimo importante! Porque se não fica assim, escutando só o que os outros falam.

“Deve ser isso, deve ser aquilo”. Eu acho que faz uma estrutura, o sentido, uma direção. Pode ser

o que for, talvez até uma religião qualquer, que a gente às vezes pode não combinar com ela,

mas, teoricamente, mas que ajuda, ajuda. Eu vejo o budismo, coisa maravilhosa! O próprio

espiritismo, que tem muita coisa boba, mas ele, essa parte de solidariedade com os outros tudo é

muito bom. O espiritismo tem muita solidariedade, ajuda muito o povo. (a vivência da

espiritualidade contribuiu para o sentido de vida na velhice) Eu acho que tudo vai somando. Eu

tive meu pai velho, meu pai morreu com 94 anos. Ele não queixava da vida. Ficou até meio duro,

meu irmão é que vivia com ele, mudava a roupa dele e tudo mais. Eu não tive assim, uma

experiência ruim. Depois que eu entrei mais na velhice maior, eu acho que como eu fico sempre

lendo e sempre querendo entender o cristianismo... Até tive mais compreensão, do que é a

velhice, do que são as fases da vida. E eu acho que faz muita falta essa parte da geriatria também,

eu acho. Eu procuro constantemente me reciclar. Constantemente eu estou vendo a coisa.

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Livros, eu compro que tem a respeito de cristianismo, de Igreja e tudo. Estou sempre dentro

disso. Então, isso aí me faz ficar junto, não tenho dificuldade, não. Acho autoestima muito

importante. E autoestima é fruto de uma porção de contextos, não é? Como é que você pode

gostar de si, se você não sabe o que é a personalidade? O que faz você ser uma pessoa, não ser

animal? A riqueza que é uma pessoa humana? Isso tudo ajuda! Porque quando a gente estava

numa baixa-estima, porque às vezes tem uns dias que a gente fica meio chateado da vida, a gente

fica bem mais pra baixo. Mas de um modo geral eu acho que faz falta esse sentido para vida.

Muito. É, que tudo tem um porquê. Porque a estrutura da pessoa depende do que ela viveu, do

que ela vive, do que ela percebe nos outros. Tudo vai fazendo um somatório. Porque nada é

automático não, foi tudo com esforço de contexto social, de familiar. Família é uma coisa tão

boa, que é boa até pra gente brigar, no sentido positivo. Cada um com sua opinião e aquilo somar

e dar um contexto normal na vida da gente. E brigar, você vê: briga acabou, acabou, pronto.

Depende da educação também, porque se for para estar brigando de um modo errado, é claro que

não pode ser. Porque brigar só por brigar, xingatório, uma coisa baixa, isso não! É uma briga

educada, no sentido de, quando eu falo a palavra brigar, até nem sei se ela está bem nesse

contexto que eu penso, é no sentido de cada um ter liberdade de falar aquilo que sente e ter um

diálogo. É outra coisa que faz falta na vida, é diálogo. Repara para você ver. Hoje em dia

ninguém quer saber de conversar não, quer mandar. Projeto agora é pensar na morte. É. O que

eu vou fazer se falar com você que não é? É. Não é no sentido assim de, largar tudo, não!

Cada vez entender mais o que é. Sabe? Agora, a gente nunca vai saber. Acho que mistério é

mistério. Agora você pode rodear. Pode entender as coisas que fazem o mistério. Quem é que já

voltou lá do outro mundo pra poder falar pra nós como é que é lá? Eu por exemplo tenho fé, mas

tenho questionamentos a respeito de fé nesse sentido. Eu vejo uma canção assim: “o céu, o céu

que é meu lugar!” Não, eu acho que o lugar da gente é na terra. O céu pode ser que exista depois

e tal, vai ter que ser por que eu acho que a riqueza da pessoa é tão grande que ela não pode

acabar igual ao animal. Eu acho que deve ter alguma coisa que persista. Acho. Não posso te

garantir. Porque a fé da gente vacila também. Nesse sentido.

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ENTREVISTA 2 - VIOLETA

Identificação: Violeta Sexo: F Idade: 98 Grau de instrução: Ensino médio (curso normal) Procedência: Manhumirim Estado civil: viúva Filhos: 5 Netos: 9 Bisnetos: 6 Profissão (atividade ocupacional): redatora do grupo de estudos RC Saúde: Frágil – bem controlada (problema cardíaco e renal) Prática religiosa: católica Origem familiar: francesa Com quem mora: uma filha Nasci em uma fazenda, perto do Município de Manhumirim. Nós éramos doze. Ultimamente só

estamos dois vivos, ainda. Eu era exatamente a do meio. Uma turma pra cima e uma turma pra

baixo. Minha família materna é L., francês. Mamãe era neta de francês que vieram pra cá. L.

Agora papai, M. Tem tanto M. aqui nesse Brasil que eu nem sei. Dizem que é de origem

portuguesa, mas eu não sei a fonte exata, não. Da mamãe eu sei. Fui criada na fazenda até oito

anos, nove. Depois fui pro colégio interno. Colégio de freiras, interno. Até me formar. E depois

nunca mais fiquei na fazenda. Fui trabalhar. Aconteceu uma coisa: a família é muito grande,

minhas irmãs, três, foram ser freiras e eu não quis ser freira e ficava sozinha na fazenda. Então,

vim aqui para Belo Horizonte. Trabalhei aqui. Trabalhei aqui na Força e Luz. Depois, apareceu o

concurso Federal, foi que eu fiz o concurso no Rio. No Rio. Fiquei dois anos lá e fiz outro

concurso pra voltar pra Belo Horizonte. Porque não tinha vaga aqui. O primeiro concurso que eu

fiz - eu era pianista - fiz concurso de datilografia, era mais fácil. Aí me nomearam para trabalhar

no Monroe, com F. T. de L., que era Secretário do F. C., naquele tempo. E depois ele foi prefeito

do Rio. Mas depois, me passaram para a Imprensa Oficial. Eu trabalhei dois anos lá na Imprensa

Oficial, mas eu queria voltar para Belo Horizonte. Então, apareceu um outro concurso e eu fiz

também. Fui ao DASP que era o Departamento de Serviço Público, não sei o que, e ele falou

assim: “se você tirar até o décimo lugar, você volta para Belo Horizonte”. Quando eu terminei

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que eu tirei o primeiro lugar, eu cheguei lá e falei com ele: “Olha, tirei o primeiro lugar!” Ele foi

e abriu o mapa na minha frente e falou: “Põe o dedo”. Eu fui e botei o dedo em cima de Belo

Horizonte. Ele me mandou de volta pra cá. Porque eu queria ficar aqui, porque os meus irmãos

todos trabalhavam aqui, tudo aqui. O que eu ia ficar fazendo, viver no Rio de Janeiro? Não dá.

Gosto muito do Rio, mas pra passeio. Para viver lá não. Prefiro Belo Horizonte. Sempre fui

católica. Nasci em família católica, educada em colégio católico. Inclusive, quando eu me casei,

meu marido era de família protestante no Rio. Minha sogra tinha sido católica, educada no

Colégio Imaculada Conceição no Rio, mas era muito disciplinada e muito obediente. A mãe dela

passou para o protestantismo. Ela foi e passou. Foi fazer companhia à mãe. Mas, era o tipo da

protestante engraçada. Ela viveu comigo dezessete anos. Se eu ficava sem empregada, ela

mandava celebrar a missa para eu arranjar uma empregada. Eu acho que ela era protestante por

obediência à mãe. Mas o coração dela continuou católico do mesmo jeito. Mas era muito

disciplinada. Eu gosto de estudar... depois que eu entrei pra esse grupo minha vida melhorou

demais! Mas melhorou mil por cento! Eu gosto muito de estudar. E uma das coisas que agente

tem que estudar é religião. Eu sou apaixonada por São Paulo. Eu fiz um trabalho da vida toda de

São Paulo. Agora eu estou estudando as epístolas, uma por uma: Romanos todinho, Coríntios a

primeira, a segunda, Efésios, Gálatas. Agora estou no computador com os Colossenses. E tem

que estudar! Uma amiga me disse que eu sou a criatura mais burra que ela já conheceu, porque eu

não paro de estudar. Estou estudando sempre. Sempre. Não sabe? A entrada nesse grupo me fez

ter consciência disso. Em vez deu encaminhar a minha vida para outras coisas, eu encaminhei

mais para o lado do estudo da religião, que eu acho uma coisa maravilhosa. Este estudo da vida

de São Paulo acrescentou muito... eu tive muito mais paciência, muito mais compreensão. Tive.

Acho que é isso. Na minha idade eu pouco posso fazer, em um tipo de apostolado, por exemplo.

Uns podem ir pra aqui, pra li, pra acolá, eu já não saio quase de casa. Muito pouco. Mas eu vou

pro computador e tudo o que eu acho de bom, eu tiro Xerox e espalho. Entende? Eu tenho pastas

e pastas com esses artigos bons, que todo mundo sabe que eu gosto e me dá. E o que é bom, eu

espalho. O que eu tiro na internet que é interessante, eu espalho também. Então, o meu

apostolado consiste mais nisso. Esse grupo de segunda-feira é o de estudo. Eu tenho um outro

grupo de quarta-feira, que é trabalho para os pobres. Eu só sei fazer crochê, mas já fiz não sei

quantas mantas, ou então barrinha de pano de prato, essas coisas. Mas todas as vezes que eu

chego lá: “o que você trouxe hoje?” Porque eu levo sempre uma coisa pra espalhar, porque são

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vinte e três. Eu tenho sempre uma coisa pra espalhar. O dia que eu não levo: “você hoje não

trouxe nada?” A presença de Deus constante é uma coisa muito importante na vida da gente.

Você saber, ter consciência que Ele está aqui. Que depende só do aparelhinho para pegar. Esse

aparelhinho somos nós mesmos. Esse é o primeiro fator importante na minha vida. Agora, o

segundo é a família. Não tem nada melhor do que família no mundo, nada! Ainda hoje, meu filho

é cardiologista, eu falei com ele. Eu já tive cinco enfartes, se eu estou viva até hoje é por causa

dele. Ele me dá tanto remédio, me dá tanto apoio! O eletrocardiograma está no meu quarto. Ele

chega aqui, tira pressão, tira eletro, não sei o quê... E esse apoio que a gente tem da família, dos

filhos, dos netos e tudo, faz a vida da gente a felicidade. Cuidado! Essa, meu Deus do céu, é uma

perseguição! Ela fica assim: “Mãe, você está abusando!” Qualquer coisa que eu faço, eu estou

abusando. Hoje, eu já dei gargalhada com ela. Porque essa cachorrinha, quando chegou aqui para

casa, dormia num quarto lá fora. Latia, latia, latia, até que um dia L. me perguntou se podia

deixar dormir dentro de casa. Eu deixei. Então, depois o segundo passo, era se podia dormir no

quarto dela, na caminha no chão. Deixei. Agora ela acorda e a cachorrinha está em cima da cama

dela. “Mãe, você é igualzinha a Lála! Você aos poucos vai dando um passinho e conquistando

mais. Saiu da cama, botou roupa e agora você vai pro computador? Mãe você é igualzinha a

Lála!”. Quando a gente fica mais idosa, a gente tem muita consciência do pouco tempo que a

gente tem que viver. Você tem muita consciência disso. De maneira que cada dia é uma coisa

preciosa. O valor de cada dia e o valor de cada hora. Fiquei viúva em 1998, há onze anos. A fé

ajuda, mas acho que uma perda dessa não há nada que compense. Dizem que o tempo melhora.

Melhora nada! Bom, minha vida ter sentido? Uma grande coisa é minha fé em Deus! Absoluta,

completa! Sabendo que Ele está aqui agora entre nós. Eu vivo fazendo esse apostolado,

demonstrando, que assim como essas forças da natureza, seja telefone, televisão, internet, as

maiores músicas do mundo, estão todas aqui, ao redor de nós. Se essas são coisas criadas, que

dependem de um aparelhinho para você entender, imagine o poder de Deus? Ele está aqui. Se

você quiser negar o sol, pode negar, mas ele está aí do mesmo jeito, não está? Você pode falar

que não acredita em Deus. Não faz mal. Ele está ai do mesmo jeito! Esse sentido da presença de

Deus constante é uma coisa pra mim muito importante. E eu vivo pregando isso. Para mim é isso.

É crer na presença Dele, é acreditar que tudo depende Dele. Tudo! Tudo, tudo. Eu não dou um

passo sem agradecer a Deus. Tudo que me acontece eu agradeço a Deus. É até engraçado, por

que são umas coisas tão absurdas que eu agradeço! Se tem uma caneta no chão e eu consigo

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apanhar, eu agradeço à Deus, por eu ter podido agachar. Qualquer coisa... Qualquer coisa eu

agradeço a Deus. Tudo que eu faço. Ficar mais velha é natural. A vida muda muito. A vida muda

naturalmente. Mas dizer que eu estou velha e desanimada e tudo mais, não! É difícil eu te falar.

Pra começar eu não me sinto velha! Fica difícil: “velhice”! Não há meio de eu me sentir velha,

não. Naturalmente, já tem as dificuldades todas. Eu falei que a velhice vem como um cortejo,

assim: dificuldade da perna, coração que não presta o rim que não... Então! Mas eu não dou

confiança para ela! Ainda outro dia, a L. minha filha disse assim: “Ih, mãe, eu estou ficando uma

velha ranzinza!” Eu falei: “Tem toda razão, porque a nova aqui em casa sou só eu!” Eu sou nova!

Agora, com é que eu vou sentir velhice? A gente sabe que a velhice tem uma porção que coisa,

mas dizer que eu estou “velha”... Eu não estou velha não! A gente tem consciência das coisas. Eu

não vou dizer que eu sou burra, nem isso, nem aquilo. Deus me deu inteligência, capacidade de

trabalho, então, tem que reconhecer! Eu acho que falsa modéstia em não reconhecer o dom de

Deus é que é errado. É como eu te falei, sempre tive consciência de que eu era feliz. Tenho

consciência dos dons que Deus me deu. Me deu capacidade de trabalho, me deu inteligência -

Muita! Então, tenho que agradecer à Deus e pronto. A vivência espiritual hoje, deve ter mudado

né?! É uma fase da vida da gente que a gente fica muito... não é assim muito religiosa, nem nada

não. Mas a fé influencia no sentido da vida completamente! Completamente! Quanta coisa que eu

ia fazer ou faria de maneira diferente, sabendo que Deus está presente? E as lutas de casa?

Aborrecimento... eu podia pensar em dar uma resposta uma coisa qualquer, mas não. Não é uma

atitude cristã fazer isso não. Aborrecimento todo mundo tem, isso é bobagem. Agora saber

superar... a gente precisa da força! Bom, eu acho que antigamente, no meu tempo o projeto de

vida das moças era só casar e ser mãe de família. Mas mudou muito, hoje todas elas querem

profissão, já desde cedinho: “eu vou ser isso, vou ser aquilo, aquilo outro”. E já vai planejando a

vida. Mudou muito. No meu tempo o projeto de vida era só esse. Nasci pra casar, ser mãe de

família, criar dos meus filhos, cuidar do meu marido, cuidar da minha casa. É ou não é? Era isso,

eu estou com 98 quase, não é filha? Mas sou jovem, não vai dizer que sou velha, não! Eu tenho

muita consciência constante da presença de Deus. A presença de Deus na minha vida é pra tudo.

Tudo, tudo, tudo. Assim como o sol nos ilumina, Deus está aqui, neste momento aqui, junto à

gente. Consciência da presença de Deus, isso eu tenho. Constante. Agradeço à Deus todo o dia,

mais um dia de vida. Agradeço à Deus tudo o que me acontece. Sei que Ele está atrás.

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ENTREVISTA 3 - LIS

Identificação: Lis Sexo: F Idade: 90 anos Grau de instrução: ensino médio Procedência: Mar de Espanha - MG Estado civil: viúva Filhos: 11 (um falecido) Netos: 20 Bisnetos: 7 Atividade ocupacional: cronista de jornal, participante de grupo de estudos Saúde: Bem controlada (marca-passo, artrose nos joelhos e pés) Prática religiosa: católica praticante, atividades pastorais Origem familiar: pai italiano e mãe portuguesa Com quem mora: sozinha – com empregada

Nasci e me criei em Mar de Espanha, Minas Gerais, até os 11 anos de idade, quando mudamos

para Juiz de Fora, onde resido até hoje. Éramos 14 irmãos, sou a número 10.

Eu tive pai e mãe extremamente amorosos e que nos ensinaram o sentido da liberdade desde

muito cedo. Não me lembro de nenhuma coação deles. Mas eu estudei em um colégio de freiras

alemãs e as aulas de religião eram dadas sempre por padres alemães. E assim, eu criei uma

mentalidade quase da época da inquisição. Pra mim tudo era pecado, não se podia fazer nada. E

durante muito tempo a minha cerce foi assim, de muita dureza e rejeição do que a vida podia me

dar. Depois, quando eu já tinha 17 pra 18 anos - eu já era filha de Maria, trabalhava com o

postulado da oração (santa infância) - logo que a Ação Católica começou, ainda no Stella nós

começamos a ter círculos de JEC. E aí, muito lentamente, minha mentalidade foi se modificando.

Em vez daquele pavor de tudo ser pecado eu comecei a conhecer a vida mais como um processo

de amadurecimento do amor. Mas isso levou, vamos dizer, mais de 40 anos. Custou muito até

que eu chegasse a compreensão de que ser espiritual não é fugir do mundo: é ver no mundo a

vontade de Deus. É ver naquele provisório o definitivo que um dia virá. E então, a gente passa a

ser mais condescendente com os erros dos outros, a gente já não é aquele inquisidor que quer ver

onde o reino de Deus não está sendo construído. Não. A gente está preocupada em construir e

não em ver onde que ele não está construído. Eu cheguei a esse ponto, agora depois dos meus 80

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anos. Bom, com 75 eu perdi meu marido, que eu achava que era a razão da minha vida. E já uma

companheira muito mais nova do que eu, quando eu dizia que não poderia viver sem meu marido,

ela me dizia: “nós vivemos e morremos para Deus, não para nossos maridos”. Então, eu só

compreendi isso muito tarde. Depois que meu marido morreu então, eu vi como é importante

celebrar a vida. Eu falo como meus filhos e netos, que a gente não deve viver a vida não, a gente

tem que celebrar a vida. Então eu acho que hoje a minha espiritualidade é baseada toda na

celebração do amor, das coisas boas da vida, sempre querendo botar uma pedrinha na construção

do reino. A gente custa a chegar lá. Eu vou te contar um caso que pra mim é muito importante.

Eu tinha um irmão que mexia com espiritismo. Naquele tempo mexer com o espiritismo era

mexer com o diabo. E eu discutia com ele e ele muito mais velho do que eu. Ele já médico e eu

garota de ginásio. E eu discutia com ele, e um dia ele estava com muita raiva e falou assim: “a

sua mentalidade é de irmã de caridade alemã”. Os anos passaram, eu fui modificando. Eu andei

pra frente, ele andou pra trás. Houve um dia também em que eu estava discutindo muito com ele,

conversando sobre nosso ponto de vista e ele falou assim: “Puxa, você até parece a noviça

rebelde!” Isso pra mim foi um elogio. Sair de freira alemã pra noviça rebelde foi uma glória! Já

fui também integralista, dava a vida pelo Integralismo. Meu pai caçoava que o Integralismo podia

ser ruim, mas ele tinha descontado duas letras no integralismo, por que eu e uma outra irmã

casamos com integralistas. Mas meu marido compreendeu muito antes do que eu, largou o

integralismo e eu tinha uma vergonha louca de saber que ele não era mais integralista, até que eu

também caminhei. Não sou esquerdista, nunca fui comunista. A gente sabe que tem as coisas

boas, mas... não sou mais porque eu caminhei no sentido do socialismo cristão, caminhei. Hoje

meus filhos me chamam de comunista o que eu vou fazer? É eu sempre tive paixão pela liturgia.

Sempre. Eu me lembro que eu não entendia nada, mas eu ia muito a missa e numa cidade

pequena - porque eu vivi em Mar de Espanha até 11 anos - era uma coisa assim, fora do esquema

uma pessoa comungar durante a missa. A gente comungava uma vez, duas, por ano. E eu desde

que fiz a primeira comunhão comungava em toda missa que eu ia. Sempre muito escrupulosa,

correndo pro confessionário, saindo do confessionário e até que... O pessoal achava que eu tinha

vocação pra ser freira e eu nunca, nunca me senti com vocação pra freira. Eu sentia que a minha

vocação seria casar e ter filhos. Desde pequena. Me lembro quando eu tinha uns 9 anos, uma

freira chegou perto de mim e falou: “A Lis vai ser uma das nossas”. Eu falei: “eu não, eu quero

casar e ter 16 filhos”. Pequenininha. Mamãe conta que morreu de vergonha. Não cheguei nos 16,

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mas cheguei nos 11. Ficaram faltando 5. E mesmo depois quando eu namorava - meu marido foi

o único namorado que eu tive - houve uma época que eu tive escrúpulos, e um padre alemão, que

nesse tempo era o nosso catequista, ele me dizia: “você tem que terminar o namoro, porque sua

vocação é ser freira”. E eu já gostava do J., não queria largá-lo para entrar para o convento.

Fiquei num duelo horrível. Se eu vou, brigo, não brigo. E uma irmã, também alemã, conversei

com ela e ela falou assim: “Lis, se você gosta dele e ele gosta de você, famílias boas, conhecidas,

continua o namoro. Se você tiver que ser freira nada vai te impedir, e se sua vocação for o

casamento, você já achou um rapaz bom”. Isso me trouxe tranquilidade outra vez. Daí pra adiante

eu não tive mais problema de saber o que eu queria na vida. E ao longo da vida nos momentos

muito alegres, nos momentos muito sérios, ou nos momentos dolorosos eu nunca me arrependi.

Eu sei que a minha vocação seria no lar, criando filho. Deus me concedeu poder ajudar criar

alguns netos, melhor ainda! Isso deu um sentido pra minha vida! Seria a religião e a família!

Sempre a religião em primeiro plano, mas a família quase pegando, quase empatando. E eu

estava falando sobre a liturgia. Toda vida eu me apaixonei pelas cerimônias religiosas. Não

entedia nada, e ia tranquilamente para a igreja, ouvia lá de fora aqueles cantos e me encantava

muito. E quando entrei pra R.C, que naquele tempo chamava Ação Católica, foi um movimento

litúrgico maravilhoso, que revolucionou a vida da Igreja. Vocês que nunca assistiram uma missa

sem entender nada, vocês não podem saber a diferença que fez para nós, que apenas víamos,

podermos participar. Realmente participar. E assim, quando eu tinha meus 19 anos eu me lembro

de ter comprado um missal. Para mim foi uma alegria tão grande ter um missal! E havia

depoimentos assim: uma pessoa que eu conhecia era analfabeta, aprendeu a ler pra poder usar o

missal. Era uma coisa linda, mas só que a gente ainda rezava tudo em latim. E depois lá na Ação

Católica havia um grupo que rezava a véspera todo o domingo. Desse grupo eu nunca participei

porque eu já estava noiva, já estava casada. E nossas reuniões terminavam sempre com as

completas rezadas em latim. E eu fui adquirindo esse gosto. Quando começou essa capacidade da

gente pode modificar, não a liturgia, entenda bem, alguns textos da liturgia, eu logo me meti

nesse ramo. E os primeiros textos que eu fiz são muito modestos, respeitando muito a liturgia

habitual. Mas aí a Igreja foi abrindo, foi abrindo. Você não imagina a quantidade de textos que eu

tenho: para aniversário de 15 anos, para noivado, pra casamento, para formatura de primário,

formatura de faculdade e bodas de prata, bodas de ouro. É uma quantidade! Os filhos querem

colecionar, eu falei: “não adianta, vocês não dão conta”. São caixas, e caixas, e caixas de textos.

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Agora que eu estou falando da liturgia, eu não posso deixar de falar dos beneditinos. Eu conheci

pessoalmente, fiz muitos retiros com D. M. M., que foi introdutor dos beneditinos no Brasil.

Naquele tempo os grupos eram pequenos, então uma vez por ano ele vinha e a gente fazia aqueles

retiros fechados de três dias. Gente, era uma coisa tão bonita! D. M. tinha sempre, o tema central

dele era esse: do aniquilamento total a exaltação total. Só que ele falava aquilo em latim, gravou

mais na gente né? Ex-imanitio ad ex-altatio, já não me lembro direito do termo em latim. E tive

muito convívio com muitos beneditinos. Mas hoje a minha piedade é muito dominicana, também.

Foi no tempo em que eu e uma amiga trabalhamos na missa transmitida pela televisão.

Trabalhamos quase um ano de graça. Era um texto por semana. Eu cuidava dos textos e minha

amiga cuidava de arranjar coral e comentarista e tudo isso. Foi o tempo de maior riqueza

intelectual pra mim. Muito bom. A primeira missa nossa foi em setembro, foi dia da pátria: 7 de

setembro. E a segunda, que era a “exaltação da santa cruz” o L. B. veio celebrar para nós. E a

minha companheira S.V. que era muita amiga do B., perguntou a ele que roteiro que ele queria

que seguíssemos. Então ele falou assim: “exaltar a cruz de Cristo é ajudar o irmão a carregar a

própria cruz”. Bonito né?! Maravilhoso. Então eu fiz o texto dentro disso. E ficamos batalhando.

No dia 1º de maio, nós oferecemos a JOC (Juventude Operária Católica) pra fazer o texto. A JOC

fez, nós levamos pra cúpula da TV aceitar ou rejeitar. Eles fizeram muitas ressalvas. Mudamos

tudo o que eles pediram para mudar e a missa foi aprovada por eles. Na hora em que o

comentarista começou a falar, eles cortaram e só deixaram aparecer as partes em que o padre

rezava. Isso para nós foi um baque horroroso. E aí uma pessoa que trabalhava lá, trabalha até

hoje na Globo, e era nossa amiga, nos avisou que a Globo ia nos dispensar. Nós não tínhamos

contrato nenhum com ela, era tudo no gratuito. Então, antes que eles nos mandassem embora, nós

pedimos exoneração e ficamos muito chocadas porque, tanto o bispo como os padres, nenhum

saiu em nossa defesa. A gente agia em nome da Igreja, não era em nome de N. e S. era a Igreja

que estava ali representada. Nenhum tomou nossa defesa e um sacerdote pegou o lugar,

continuou por algum tempo a missa, algum tempo, depois acabou. De modo que sempre mexendo

com liturgia. Uma amiga me dizia: “sua mentalidade é dominicana, não é beneditina, você gosta

de ação”. Os beneditinos param mais na oração. Agora que eu me empolguei também, hoje eu

sou um misto de beneditina e dominicana. Tanto gosto de rezar, quanto gosto de fazer. É muito

complicado, caminhar de um lado pro outro não é fácil. Eu queria acrescentar como isso influiu

na educação dos filhos. Os meus filhos mais velhos pegaram uma mãe, assim, rígida, que não

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admitia nada. Tudo era pecado. Vou te citar dois fatos. Um é que meu mais velho fez uma coisa

que eu achei que era pecado, levei ele pra confessar. Todos fizeram primeira comunhão com 4

anos, todos os 11 e bem preparadinhos. Antes eu preparava sozinha e os meus faziam comunhão

individual. E meu marido que não era fácil, dizia que eu fazia aquilo para exibir meus filhos, que

eram bonitinhos, loirinhos, bem vestidos. Aí eu convidei a C. e falei: “vamos unir, vamos fazer

um grupo com nossas crianças”. E a C topou. Quando a N. fez primeira comunhão, já fez com

duas filhas da C. Daí pra diante nós trabalhamos em conjunto até que o Concílio Vaticano II

aboliu a comunhão precoce. O Concílio Vaticano pede pra comunhão ser feita depois dos 7 anos.

Então os meus filhos mais velhos foram assim, criados com muita rigidez. O dia que eu levei esse

mais velho pra confessar eu pedi ao padre: “Ah o senhor conversa direitinho com ele que ele tem

só quatro anos”. O padre falou assim: “um menino de 4 anos com pecado mortal? Tá difícil!”.

Esse foi um caso. O outro foi com outro filho, ele estava com seus 6, 7 anos, 8 talvez. Ele

precisou fazer uma cirurgia de urgência, porque havia suspeita de apendicite aguda. Eu bati o pé:

“Ele só opera depois de confessar”. Botei meu marido doido né?! Ele foi às igrejas, estavam

todas fechadas. Aí ele bateu na residência dos padres e falou que era caso de urgência que a

pessoa ia operar e queria confessar antes. Foi um padre atende-lo. Na hora que olhou o M., viu

que era uma criança e falou assim: “o senhor não tem vergonha de me acordar às 10h da noite

para confessar esse menino?”. Isso que eu falo: meu marido coitado sofreu muito com meus

escrúpulos. Porque é isso que eu estou te falando, os meus primeiros filhos têm idéia de mim, até

hoje, de uma pessoa muito rígida, pra qual tudo é pecado. E os últimos, acham que eu sou a

criatura mais condescendente do mundo. Não sei se cai em outro extremo, mas acho que não. Isso

tudo influiu de modo muito negativo nos filhos, porque praticar o culto, não consigo não. Mas o

meu filho mais velho até hoje fala: “a senhora me ensinou que era pecado”. Eu falo: “mudou a

mentalidade da igreja, mudou o sentido de pecado, mudou tanta coisa, não é possível você não

mudar!”. A irmã G. me falou um dia: “você deu um indigestão nesse menino, muita confissão,

muita comunhão, procissão, semana santa. Quando eles desintoxicarem ele voltam!” Mas estão

custando a voltar. A irmã G., me parece, fez 92 anos. Ela vem muito a Belo Horizonte. Ela é

psicóloga. Muito acatada. Ela com 92 anos faz palestra no IBGE Cultural que é o mais afamado

lá em Juiz de Fora. Ela é sócia do São Tomas de Aquino. E faz palestra até hoje e ela vem muito

a Belo Horizonte, porque a família dela mora aqui. Minha vida é tão comprida que tem muita

coisa que eu ainda esqueci de te falar. Desde 64 eu trabalho numa equipe católica que tem um

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espaço no jornal. Então até hoje eu escrevo pro jornal. Com menos frequência, mas ainda

escrevo. E a criação da equipe coincidiu com o andamento do Concilio Vaticano. Então a gente

acompanhava tudo, lia tudo pra poder falar sobre o Concílio nas colunas. Essa coluna durante 19

anos foi diária. Nós éramos 4 ou 5. A gente dividia os dias e como eu já gostava de liturgia, pra

mim caiu o sábado, onde eu fazia os comentários da missa de domingo. E até hoje, geralmente

essas festas, assim, mais importantes, eu gosto de escrever. Mas eu vejo que a minha mentalidade

por mais que eu fuja dela, ele converge muito pro culto a Deus. Tem que dar uma puxada pra

botar o homem junto, não é?! Mas essa equipe me ajudou muito, muito mesmo. Eu atribuo minha

mudança de mentalidade a essa equipe e à Ação Católica. Eu devo muito à Ação Católica.

Quando algum filho fala: “ah está na hora de largar”. Eu falo: “se eu largar a Ação Católica, vou

pegar o pé de vocês e não deixo mais”. “Ah não, então fica na Ação Católica”. Eu acho que na

vida prática me ajuda e muito! Porque ajuda a ver o âmago do acontecimento. Não para naquele

acontecimento. Aquele acontecimento tem um sentido, tem um projeto atrás dele, então, eu nunca

paro só no desespero – caminho até o sentido de morte e ressurreição, isso o que eu acho o

principal. Eu tenho medo de morrer, até hoje eu tenho medo. Ainda não venci não! Se bem que

nunca tenha duvidado da ressurreição, tenho medo do momento da morte. Mas essa esperança da

ressurreição é muito importante pra minha vida. Eu perdi um filho. Ele tinha 21 anos e morreu

num acidente de carro em Cabo Frio. Esse menino foi o filho que deu mais trabalho, porque

justamente fugia do controle da gente. Ele é do tempo que eu era muito rigorosa e a gente achava

que ele estava no caminho errado e lutava e brigava com ele. Ele teve uma vida de muito

sofrimento, muita incompreensão na família, no colégio. Uma vida muito sofrida. Mas, de

repente, ele ajeitou. Ele terminou o ginásio com 14 anos e terminou o cientifico com 21, para

você ver a defasagem. Não havia meios dele sair do 1º ano científico. Depois que ele fez uma

terapia, venceu o primeiro ano, o segundo, o terceiro, o vestibular - tudo normal. E ele foi pra

Cabo Frio comemorar ter passado no vestibular, ele com mais 3 ou 4 colegas. E lá ele chegou na

quarta-feira morreu na quinta-feira santa. E antes dele morrer me contaram os colegas que ele

falou: “estou muito feliz, estou muito bem com minha família, estou adorando a faculdade e

quando eu chegar em casa vou pedir a mamãe para comungar com ela”. Até aí ele falou sério,

depois ele brincou: “será que eu encontro um padre surdo para me confessar?” No dia em que ele

falou isso ele morreu. Aí a irmã G. me emprestou um livro, que eu gostaria de ter, mas nunca

mais eu consegui, chamado: “Os maiores teólogos respondem”. É um livro em que cada teólogo

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dá a sua teoria sobre determinado assunto. E no assunto que fala sobre a morte, o teólogo fala

isso: que para Deus o que vale é o último momento de adesão. Porque vem aí um louco, um

assassino e isso e aquilo, como é que vai se salvar? Então ele falava que a última adesão

consciente a Deus é que Deus leva em conta. Eu aí associei, ele no dia em que morreu ele falou

isso: “estou feliz, estou bem, quero comungar”. Isso que me deu forças sabe? Eu falei: “ele não

confessou, não comungou”. E naquele tempo, não confessar era uma coisa horrorosa. E depois de

chorar muito, eu falei assim: “não é possível a irmã G. me empresta um livro pra me consolar e

piorou”. Tornei a reler, apreendi mais o sentido da coisa e a gente venceu, minha filha. Tanto eu

como meu marido sobrevivemos. A M. ficou marcadíssima por essa morte, muito marcada,

porque as idades eram muito próximas, muito pouca diferença. Marcou a família inteira. J. e eu

não tivemos maturidade de segurar a barra com força e os filhos ficaram muito afetados. Isso é

uma coisa que me pesa muito. E além do mais morreu de acidente. Ele que sempre tinha tantos

problemas com a gente, cujos problemas aparentemente, estavam resolvidos. Uma amiga minha

que não estava em Juiz de Fora, quando me viu chorando muito, a primeira coisa que ela me

perguntou foi isso: “ele não usava Agnus Dei?” E eu me vi respondendo: “acho que não, mas isso

não significa nada. Ele mesmo sem Agnus Dei, se fosse a vontade de Deus, poderia não ter

morrido. Ai que eu percebi que a minha mentalidade já não estava presa aquela confissão oral.

Mas a gente custa a sair disso. A que eu devo? RC, equipe Igreja em Marcha. Não estou citando

os dominicanos, porque quando eu entrei pra fraternidade eu já estava velha, eu já estava com

outra mentalidade. A Ação Católica que hoje é a Renovação Cristã, para mim teve um papel

fundamental, na minha vida. A espiritualidade tem uma contribuição muito grande para o sentido

da vida. Eu não consigo me imaginar sem espiritualidade. Você falou na esperança naquela nossa

conversa, pra mim é a virtude mais bonita! Pode ajuntar todos! São Paulo fala que é o amor. Eu

fico na esperança. Eu sou uma pessoa de muita esperança. Embora, muitas vezes deprimida e

tudo mais, mas eu pelejo para conservar a esperança. Aquela esperança como diz São Paulo,

esperança que não decepciona. Basicamente, a espiritualidade. Lógico que nos filhos, numa dose

talvez até excessiva, o amor! Mas eu acho que não perco de vista a espiritualidade, não sei. Não

sei se eu estou sendo muito presunçosa, porque eu tenho uma filha que fala assim: “a senhora é

muito orgulhosa, tem muito orgulho de ter fé”. Eu falei: “minha filha a fé é um dom gratuito, eu

recebi esse dom, que bom pra mim”. Vale a pena continuar, vale a pena celebrar a vida, vale a

pena celebrar o convívio com filhos e netos. Eu prezo muito esse convívio. Tenho até hoje o

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mesmo entusiasmo de celebrar o Natal! O Natal pra mim fala muito, muito mesmo e eu faço

questão de manter isso e tenho conseguido que os filhos respeitem a minha opção. Eu sei que

muitos não concordam, mas, por exemplo, todo Natal nós fazemos uma celebraçãozinha, uma

oração. Até hoje eles têm se conservado silenciosos. Respeitosos. Eu acho que se eles não

mantivessem esse respeito eu não teria coragem, mas eles respeitam. Eu sei que eles não

concordam. Mas respeitam. Eu acho que eu não viveria sem espiritualidade, não! Estaria aí

queixando minhas pernas que não andam, minhas forças que diminuíram, mas eu sempre tenho

esperança de caminhar mais um pouco. Tenho esperança! E que Deus me ajude, que na hora que

eu perder a esperança eu tenha coragem de procurá-la outra vez! Eu ponho a espiritualidade em

primeiro lugar na minha vida. Eu não saberia viver sem rezar, sem ler bons livros, sem frequentar

minhas reuniões. Às vezes eu estou morrendo de preguiça de uma reunião, quando eu vou, eu

adoro, eu falo: “não posso perder de jeito nenhum!” É o convívio, é a oração, é a meditação! Eu

fiz parte do grupo de oração do F., que é sempre na casa da mãe dele, mas acabei não dando

conta, porque é a noite e à noite eu já sinto muita dificuldade de andar. Então, esse daí eu deixei

de lado, mas o resto eu continuo. E vou continuar enquanto eu estiver viva, se Deus quiser! Por

isso que eu falo: sem espiritualidade eu acho que eu não viveria, não. Eu teria um amor

exagerado a filhos e netos, um amor que seria ultra-humano. Eu sinto que é a espiritualidade que

me põe na medida de respeitar a liberdade dos filhos, de entender o processo que cada um está

vivendo. Eu acho que é isso. Agora, os filhos é que podem julgar melhor do que eu. Em todos

esses anos a minha vida mudou muito. Era tão atribulada que eu dizia ao meu marido: “quando

eu morrer, não precisa por o nome, escreva simplesmente: descanse em paz!” Todo mundo já

sabe que é a Lis que está descansando. Porque havia dias muito trabalhosos. Eu optei muito

livremente em não trabalhar fora. Larguei o emprego, fiquei só cuidando de casa e não me

arrependo. Mas havia dias em que o cansaço era muito grande porque, eu tive sempre só uma

empregada e com tanto filho pequeno o trabalho era muito. Depois os filhos começaram a sair de

casa, foram casando, os netos foram chegando e eu continuei com a vida muito ativa. Os netos

iam pra Juiz de Fora, passavam as férias comigo. Natal todo mundo reunia, Páscoa todo mundo

reunia. E devagarzinho a vida foi se tornando mais tranquila. Dias das mães os filhos já não se

reuniam em Juiz de Fora, porque já tinham os seus próprios filhos. A mesma coisa dia dos pais. E

de repente, quando eu fiquei sozinha com meu marido, quando J. casou e a A. saiu de casa eu me

senti perdida. Nos primeiros tempos eu me senti totalmente perdida. Depois comecei a achar

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encanto em tornar a viver pro meu marido, pra acompanhá-lo, fazer pequenas coisas que eu

deixei de fazer durante tantos anos. Para ser franca, comecei a achar encanto na vida a dois.

Depois quando ele morreu, foi à mesma sensação de abandono. E foi uma morte que ninguém

esperava, nem os próprios médicos e me afetou muito. E nessa hora é que eu falo, em todas essas

etapas o que me sustentou muito foi a fé. É nisso que minha filha me chama de orgulhosa, que eu

tenho orgulho de ter fé. Não é orgulho, é agradecimento. Eu sei que a fé é dom e eu agradeço a

Deus ter tido essa força. Agora, com as mortes em volta, irmãs, irmãos, amigas, companheiras de

trabalho, a gente parece que vai ficando mais encouraçada pra receber essas notícias. Por

exemplo, na nossa equipe de base na RC, nós temos uma colega que está totalmente esclerosada.

Assiste as reuniões, nós temos muito carinho com ela, mas ela pergunta a mesma coisa 20, 30, 40

vezes e se sente bem no meio, não se sente rejeitada. Eu então me apego a essas... eu não vivo do

passado não, eu vivo bem do presente. Agora quanto às atividades, diminuíram muito. Eu sempre

reclamo do meu sono, eu durmo muito. Eu tenho menos o que fazer, mas eu durmo tanto que

acabo não dando conta das coisas que eu tenho que fazer! Mas continuo lendo muito, acompanho

bem a vida dos sobrinhos, dos irmãos. Tenho uma irmã bem mais velha do que eu, que está

começando a esclerosar e ela passa comigo todo domingo. Então domingo pra mim é o dia de

penitência. Não é o dia nem de alegria, nem de louvar ao Senhor. Porque ficamos eu e ela, às

vezes sozinhas o domingo inteiro. E ela exige muita atenção, porque ela já perdeu muito a vista,

não lê, não gosta de televisão e não dorme de dia, então, ela depende de companhia o tempo todo.

Eu achei que seria muito difícil ter acompanhante, mas quando meu marido morreu, eu só tive

duas certezas: a primeira é que eu não queria sair de casa e a segunda é que eu não poderia viver

sozinha numa casa de 3 andares. Aí eu procurei uma antiga empregada minha que tinha

trabalhado 14 anos comigo. Ela no momento estava disponível. Passou a ser minha

acompanhante. Espero que seja até eu morrer. Ela já está velha também, mais de 70 anos, mas

tem uma atividade de moça é muito minha amiga. Então, até essa parte de acompanhante que

costuma ser um problema muito sério... é problema porque eu gosto muito da minha privacidade,

mas dos males o menor. E hoje eu vivo assim tranquila. No momento já detesto sair de casa, não

gosto de reunião à noite, não gosto de visita, não gosto mais dessas áreas sociais porque eu me

sinto muito cansada. Eu estando sentada eu topo qualquer parada, mas: casamento, enfrentar fila

de cumprimento, velórios, já não tenho muito pique não. Agora, continuo firme nas minhas

reuniões e em tudo quanto é reunião de família. Família muito grande tem sempre um ou outro!

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E se eu me analisar com serenidade, eu acho que eu tenho uma velhice muito privilegiada.

Porque tenho filhos boníssimos, a pensão que meu marido me deixou é pequena, os filhos

complementam, não me privei de nada de coisas materiais. Afeto, ternura, assistência, eles todos

me dão muita. Saúde eu tenho muita também. Agora eu só posso dar graças a Deus! E se eu viver

até 95, 97 anos, estou feliz! Ninguém precisa ter pena da minha vida, que no dia-a-dia eu sou uma

pessoa feliz e tranquila. A experiência do envelhecimento tem sido tranquila, com alguns

momentos de apreensão, logo reprimidos. Sou otimista por temperamento e por opção. Meu

marido foi um baluarte no meu progressivo enfraquecimento, no que os meus 10 filhos o

seguiram. Envelheço serenamente, com minhas opções, com minha vida familiar, meu círculo

numeroso de amigos, reuniões ligadas a movimentos religiosos – Renovação Cristã do Brasil

antiga Ação Católica, Fraternidade Leiga Dominicana. Ainda participo da Equipe Igreja em

Marcha, escrevendo para o jornal local, em revezamento com companheiros. Minha maior

dificuldade vem da artrose, que carrego desde bem jovem. Tenho dificuldade de locomoção, mas

ainda rejeito recorrer à cadeira de rodas. Adoro reunir filhos, netos e bisnetos para as refeições.

Adoro casa bagunçada! Minha autoestima é “alta”. Dizem que sou presunçosa e autoritária. Acho

que muitas coisas faço melhor do que os outros – presunção, lógico! Os questionamentos na

velhice são: negar a própria fragilidade, dificuldade de “obedecer” aos filhos e funcionários,

aceitar a ajuda financeira dos filhos, graças aos quais a morte do meu marido não me fez descer

na escala social, dificuldade relativa para aceitar o novo, dificuldade em alterar hábitos

tradicionais familiares que já não motivam os jovens e não abrir mão do meu ponto de vista ou

custar a fazê-lo. Tenho muitos projetos de vida e acho isso muito importante. Não vou esperar a

morte com resignação antecipada. Vou continuar a fazer as coisas em que acredito enquanto tiver

um mínimo de condição. A vida não é para ser vivida, é para ser celebrada! É o que faço, todos

os dias. E torno a reafirmar: sem espiritualidade eu não viveria. Não viveria, porque

humanamente falando eu sou frágil, muito frágil! Sentimentos à flor da pele, susceptibilidade...

todos os defeitos humanos eu tenho e em grau muito elevado. Eu acho que eu seria insuportável

sem a espiritualidade. Acho mesmo! E continuo achando que a coisa mais importante da minha

vida é ter essa espiritualidade que me leva à esperança.

Do ponto de vista dos valores nenhuma alteração na minha espiritualidade na velhice.

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Quanto ao modo de viver estes valores, houve, sim, períodos de prevalência de orações verbais,

outros de muitas meditações, outros de oração, meditação e ação se harmonizavam.

No momento as orações verbais estão bem limitadas pelo cansaço. Medito com mais dificuldade.

As ações acontecem ainda, às vezes a custa de teimosia.

Continuo lendo muito, assimilando novos temas teológicos, porém com menos disposição para o

debate.

Minha espiritualidade mudou? Ou não? Não sei. Mas sei que não poderia viver sem ela.

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ENTREVISTA 4 - HORTÊNSIA

Identificação: Hortênsia Sexo: F Idade: 84 Grau de instrução: Ensino Médio (curso Normal) Procedência: Juiz de Fora Estado civil: viúva Filhos: 3 (todos falecidos) Netos: 3 Bisnetos: 2 Profissão (atividade ocupacional): participação em grupo de estudo religioso Saúde: Bem controlada (artrose nos joelhos) Prática religiosa: católica Origem familiar: Inglesa Com quem mora: 2 netos e uma bisneta

Eu nasci em Juiz de Fora. Eu tive um irmão. E meu irmão era muito meu amigo, sabe?! Eu

gostava muito dele, a gente brigava, mas briga de irmão. Mas ele era muito meu amigo. Por

exemplo, se eu queria ir num lugar e não tinha companhia ele ia comigo, pra encontrar com meu

namorado. Essas coisas assim! Quando ele morreu, senti a falta dele. A família do meu pai é de

Petrópolis, de origem inglesa. Agora, a família da minha mãe, era de Juiz de Fora, família de

fazendeiros. Meu pai era engenheiro de pontes. Naquela época as pontes todas do Brasil eram de

madeira. Depois começaram a fazer pontes de concreto, porque apodrecia tudo, dentro do rio. Ele

era sempre transferido porque, parece mentira, mas tinham muito poucos engenheiros. Então,

outro governo chamava. Foi chamado para ir para São Paulo, mas ele não foi porque a minha mãe

não quis. A minha mãe era meio medrosa. Depois fomos pra Barbacena, voltamos para Juiz de

Fora. Aí eu já estava tomando conhecimento da vida. De Juiz de Fora voltamos para Barbacena

outra vez e de lá de Barbacena nós fomos para Poços de Caldas. Foi maravilhoso! Ficamos lá

muitos anos. Foi muito bom, uma vida maravilhosa. Foi lá que eu comecei a estudar, lá eu me

formei. Tenho amigas até hoje lá em Poços, que formaram comigo, amigas muito amigas. De

modo que depois, meu irmão estava na hora de fazer faculdade e meu pai achou que pra ele vim

sozinho, por exemplo, para Belo Horizonte - não queria que ele fosse pra São Paulo estudar

porque não convinha para um rapaz muito novo - ele estava muito novo. Papai preferiu então vim

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pra Belo Horizonte. E aqui ele foi trabalhar com o que ele queria, aquelas construções.. E ele

ficou aqui até se aposentar. E daqui nós não saímos mais. Me casei aqui e ficamos. Papai e

mamãe morreram aqui. Eu acho que no colégio, eu consegui, assim, uma coisa muito boa, porque

eu estudei com as Dominicanas e elas são muito, não digo pra frente, mas elas são mais liberais

pra tudo. De modo que eu me formei lá e achei que eu estava bem preparada pra estudar outras

coisas que eu estudei. Nunca fui professora, porque experimentei uma vez e não gostei. Eu achei

que eu não tinha paciência pra ser professora. E então fui estudar inglês e fazer um outro curso de

português, que eu achava que era necessário. Um professor muito bom que tinha aqui em Belo

Horizonte, professor Ziller, muito bom esse professor. E ele era até de vários colégios: Estadual e

de outros colégios. Então estudei português com ele, fiz o curso de inglês na Cultura. Aí eu quis

trabalhar e por sorte minha, fui trabalhar na biblioteca. M a r a v i l h o s a! Uma biblioteca

maravilhosa que tinha no quinto andar da Secretaria do Interior. Era uma biblioteca completa.

Tinha coleções que não existiam em lugar nenhum aqui em Belo Horizonte. Coleções

maravilhosas. Aqueles professores todos daqui, da época, iam tirar livros lá, os alunos iam tirar

muito livro lá, porque os livros não tinham aqui, nem pra vender, nem pra comprar, nem nada! Eu

trabalhei lá, depois fiquei noiva e meu noivo não quis que quando eu casasse eu continuasse

trabalhando. Eu fiquei na dúvida, mas acabei cedendo. Foi uma bobagem. Acabei cedendo e

depois me arrependi muito. Mas, tudo o que a gente faz, às vezes a gente não pode voltar atrás.

Então foi isso! Eu estava assim, mais ou menos preparada pro casamento, porque casamento é

uma coisa difícil. Sempre tive um astral muito alto, isso foi um médico que falou comigo: “a

senhora tem uma vantagem muito grande, seu astral é muito alto!”. Então, aí eu me convenci

mais ainda do que era aquilo que eu tinha, que eu não sabia. Perdi minha filha assassinada pelo

marido e ela era nova, tinha 30 anos. E meu marido morreu logo depois porque ele teve uma

doença que naquela época não era muito comum, mas hoje já é mais conhecida - chama

esclerose-lateral-amiotrópica. Ela começa de um lado, aí depois passa pro outro, mas o lado

primeiro é muito triste. É uma doença muito penosa, com muito sofrimento. E a pessoa acaba

muito triste, muito triste. É, ele sofreu bastante. Envelheceu bastante. Mas eu soube, eu tive força,

pra levar até o dia da sua morte. Quando foi na hora da morte, eu peguei ele para mudar de lugar

e encostar e ele falou assim: “não, não!”. Não quis encostar porque não estava respirando mais.

Aí, eu corri, chamei o filho: “vem meu filho, meu filho! Seu pai está morrendo!”. E aí, logo ali, o

deitamos. E meu filho ficou com a cabeça dele no colo. Aquela cena de carinho, tudo o que podia

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acontecer com ele! E ele morreu, tranquilamente! Apesar de um sofrimento muito grande. Não

foi fácil. Ele queixava muita coisa. Era dor na coluna, dor nas pernas! Ela ataca o sistema nervoso

todo, sabe? Então a pessoa já não pega quase mais nada. É uma doença que eu como leiga não

posso explicar muito, mas é mais ou menos isso. Muito penosa. E ele, coitadinho o mais novo,

solteiro, foi o que acolheu os últimos momentos dele, porque o mais velho já era casado, morava

no apartamento dele. Eu tive que telefonar correndo: “seu pai está morrendo!” e ele veio com a

nora. Tive três filhos. A filha morreu assassinada, o mais velho morreu de uma deficiência -

fumava demais! E o mais novo tinha comprado um apartamento lindo ali, perto da Afonso Pena,

morreu lá de um aneurisma. Sozinho. Ele morava sozinho. Esse eu quase não aguentei a morte

dele. Ele era muito chegado comigo. O outro também, era muito amigo, muito alegre, me

agradava muito. Tudo que ele gostava ele trazia, ele passava na Kopenhagen de vez em quando e

trazia aquela caixinha de bombom pra mim. Eu falava: “o meu filho, ta caro!” “oh mamãe, a

senhora gosta tanto!”. Era um carinho! Então eu senti muito a morte dos meus filhos. No mesmo

ano os dois morreram. Ele morreu em janeiro, o outro morreu em setembro. Ah, se não fosse a

minha fé! O que seria de mim nessa hora? Esse segundo, meu neto fala: “eu não sei como é que a

senhora aguentou a morte do S. (filho mais novo), eu achei que a senhora não ia aguentar”. Ele

falou comigo um dia. Graças a Deus, Jesus estava comigo! E aguentei a morte dele. Custei muito,

custei muito a me sentir bem. Custei muito. Eu nunca fui muito exuberante pra falar. Eu sempre

fui muito assim, comigo mesma, sabe? Eu rezo muito assim, tenho Jesus tão dentro de mim, tão

dentro de mim, que parece..., eu até vou falar bobagem. Olha, é uma coisa tão impressionante! Às

vezes eu penso, por exemplo, eu preciso de uma coisa: “ai meu Deus, meu Deus, onde é que eu

pus aquilo, meu Jesus? Onde é? Eu preciso daquilo”. De repente aparece. Não gosto de contar

essas coisas, eu estou contando porque você está me pedindo, mas eu não gosto de contar isso

não. Eu acho, assim que eu tenho uma intimidade tão grande com Jesus! Eu tenho Ele tão bem

dentro do meu coração! Eu sinto Ele tão bem, de maneira que eu considero minha vida, a minha

espiritualidade, essa. Não pode ser mais profundo. Não tem jeito de aprofundar mais. Mesmo que

eu reze muito. E eu não rezo muito. Eu não preciso rezar muito, pra quê rezar muito? Eu tenho

Ele aqui toda hora. Eu rezo o Pai Nosso, rezo a Ave Maria, rezo tudo! À noite na hora que eu

deito, penso Nele como se fosse uma pessoa. Não sei se eu estou explicando certo não. Ele vive

aqui comigo. Ele vive comigo! Não precisa explicar. Nas horas mais tristes eu tive Ele comigo.

Perdi meus dois filhos. Eu não tenho mais filho comigo, só neto. É muito doloroso. Você ver um

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filho no caixão é uma coisa tão triste! Ainda mais assim, aqueles filhos mais chegados. É muito

triste! Eu tenho uma intimidade tão grande com Jesus, tenho Ele tão bem dentro do meu coração!

A espiritualidade ajuda muito. O que seria de mim se não fosse a minha fé? Não sei, não sei o

que seria, sabe? Eu envelheci sem ver. Não senti o envelhecimento, não senti. Eu sabia que os

anos estavam passando, mas graças a Deus eu toda vida tive muita saúde! E esse envelhecimento

foi indo normalmente. Como agora, fui ao médico, “tudo ótimo” e ele brincou comigo: “vamos

chegar aos 100, Hortênsia”? Então, sempre tive muita saúde. Poucas vezes eu fui operada. Tem

essas bobagens, que é natural que apareça! Mas sempre tive muita saúde, de modo que o

envelhecimento não me pesou. Eu o vejo de forma positiva. Eu acho que você não pode ser toda

vida uma jovem. Você não pode toda vida parar na: “ah, agora eu vou parar, nos 50, eu quero ter

50 toda vida!” Não! Vão vivendo! E cada ano tem a sua alegria. Não sei, eu sempre fui muito

alegre e tive sempre um astral muito alto. Sempre foi assim. Então, meu pai e minha mãe não

entendiam isso naquela época. Na minha idade, naquela época a gente andava de cabeça baixa.

Era humildade, tinha que ser humilde. Então eu era topetuda: “ela é topetuda, ela é assim, ela é

assado!” Não era, era meu astral que era alto. Eu estava sempre alegre, sempre rindo. Então, eu

passava por topetuda, mal criada, tudo o que você podia achar que era ruim. Uma vez a minha

mãe falou: “você vai interna!”. Nós morávamos em Barbacena, ai eu falei assim: “não sei por

que! eu não fiz nada!”. Ai ela falou assim: “é você vai interna!”. Eu falei: “está bem”. O que eu ia

falar com ela? Eu tinha medo dela. Aí passou, me pôs semi-interna. Oh, meu santo Deus, oh ano

que eu sofri! O colégio Imaculada Conceição de Barbacena. Aquelas freiras vicentinas, aquele

chapéu grande virado assim. Ai mais que coisa horrorosa! Eu ia cedo pra lá, eu não almoçava.

Uma comida horrível. Eu era enjoada pra comer, não tinha muita vontade. Uma comida horrível.

Um lanchezinho à toa. Quando eu chegava em casa à tarde, morrendo de fome, era sopa. A

minha mãe gostava muito de sopa de legumes. Eu queria feijão, arroz, bife, o que pudesse assim.

Mas para ela, era sopa de legumes. Farta, uma sopa muito farta! Mas não era a comida que eu

queria não. Para ela isso era importante. Então, eu na minha vida... não foi uma vida assim, que

eu gostasse não. A gente passeava muito, meu pai tinha carro, a gente ia para Petrópolis onde

minha avó morava. Ia pra todo lugar. Mas, era essa vida, entende? E eu sempre embaixo, “não

tem humildade, topetuda e não sei mais o que, mal criada!” Mas eu não ligava, eu não ligava.

Falava comigo, oh: entrava aqui, saía ali. Aí que ela ficava... E ela era muito brava comigo. A

minha mãe, ela tinha outro gênio. O gênio dela era muito difícil. Muito ciumenta do meu pai.

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Meu pai era muito bonito e ela era bonita também! Minha mãe era muito morena, cabelo muito

preto. Muito bonita! Pois é, minha vida era essa. E minhas amigas gostavam muito de mim, sabe?

Porque eu sempre tive esse gênio assim, e eu nunca fui de brigar com ninguém. A gente era

alegre! Dentro da fase da vida da gente, a gente era alegre e tudo. Há muito tempo que eu venho

construindo o sentido da minha vida! Quando eu me casei e fui construindo devagar. Por que

você sabe, no casamento, os dois não são iguais. Então, eu tinha esse gênio que eu tenho e meu

marido era um homem mais fechado. Completamente diferente de mim. Vivemos 30 anos, mas

assim, com essas dificuldades de temperamento. Mas que eu sabia ir levando, porque o que eu ia

fazer? Minha vida valeu a pena porque tudo isso que eu vivi, hoje eu olho pra trás e acho

formidável. Eu não condeno nada. Tudo o que eu era, tudo o que eu fiz. Nada que fala assim: “eu

devia ter feito isso, devia ter feito aquilo, minha vida foi errada”. Não foi, a minha vida foi certa.

Dentro do que eu queria, a minha vida foi certa. Então, eu não tenho nada a falar assim: “eu devia

ter corrigido aquilo”. Não, não podia. Se eu não tivesse a espiritualidade, como é que eu ia levar

certas coisas? Ah, Nossa Senhora, ia ser um desastre! Ai quando eu chegasse, por exemplo, para

enfrentar certas coisas eu não ia ter força. E a força que eu tinha, onde é que eu tirava? O sentido

da vida que eu sempre achei foi isso. Segui minha vida, casada, viúva, tudo direitinho, sempre

baseada na espiritualidade. Essa a espiritualidade que eu acho que eu tenho. Se é grande ou

pequena eu não sei, é a que eu tenho. É a minha. Eu não procuro muita profundidade não, porque

a profundidade pra mim não vai adiantar muito, não. Eu tenho que ter uma espiritualidade

prática! Pra poder eu agir na hora que precisar. Vou chegar lá e surge um problema, como têm

surgido vários problemas, eu tenho que pensar: “bom, como é que eu vou agir?”. Tem que agir de

um jeito para não melindrar ninguém, pra sair bem dessa. E tudo dentro da minha espiritualidade.

Como é que eu vou fazer? Eu vou jogar, como se diz, tudo por água abaixo? Nunca joguei tudo

por água abaixo! “Eu não vou dar conta?” Não, vou dar conta sim!. Assim que eu levei. Sempre

acreditei em tudo o que me apareceu. Tudo o que me apareceu, sempre com fé, muita fé e

espiritualidade, porque eu procurava resolver tudo o que aparecia, porque problemas não faltam

na vida da gente, não! A gente, pois não vai pensar: “ah foi aquele!” Cada época tem o seu. Cada

idade tem aquele que aparece. Então o que você faz? Tem que ter força naquela hora. Hoje a

minha fé é mais presente. E tenho aguentado tudo, isso me ajuda muito! Como eu te falei, eu não

senti entrar na velhice. Não senti, sinceramente. Não senti que eu estava envelhecendo. Eu vivia

cada dia, eu vivia bem, eu vivia alegre e sempre procurando resolver os problemas que

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apareciam. Então, isso foi a minha entrada na velhice. Hoje eu tenho mais espiritualidade. A

gente vai penando bem, hoje você se aprofunda mais, porque a vida está chegando ao fim. Pode

dizer assim: “ah, mas que isso!”. Eu penso muito: minha vida com a idade que eu estou! Eu não

fiquei aquela pessoa macambúzia: “eh, eu estou ficando velha, eu estou ficando feia!” Nunca,

nunca! Toda a vida eu fui isso! Tá bom! Eu não parei pra isso ai: “eu estou com 60 anos!”. Eu

não vi quando eu fiz 50, quando eu fiz 60, quando eu fiz 70. Eu estava pensando outro dia:

“gente, eu não lembro de nada de aniversário, que coisa estranha!”. Eu não lembro, passou sem

eu ver. Então foi bom, porque eu não fiquei preocupada com nada. Minha vida, junto com a

família, com meu marido, com meus filhos, tinha aquele ritmo que a gente seguia. Acompanhava

marido, ia trabalhar todo dia, ele trabalhou muito e gostava do trabalho. Era muito entusiasmado

com o que ele fazia. E tudo estava muito bem, dando certo. Então a gente seguia a norma dele. Os

filhos estudando, nada assim, fora do trilho. Mas depois que eu fiquei viúva, comecei a fazer a

minha vida como eu queria. Passeando, os filhos já estavam criados. E então, eu achei que a vida

passou mais depressa. Não vi envelhecer. Quando eu vi eu falei: “uai, mas eu já estou com tantos

anos!” Eu não vi, não vi passar. Gente, eu fiquei viúva com 51 anos, se não me engano. Nova!

Mas tinha levado aquele tipo de vida que eu falei. Acompanhando o esquema do marido e os

filhos nascendo, essa coisa toda. Depois, aí os filhos criados, minha vida mudou completamente.

Outro ritmo sabe? A vida foi muito boa, foi ótima, sabe? Uma vida alegre, uma vida que, tudo o

que você faz fora, que é diferente, é muito agradável. Tudo o que sai da rotina é muito agradável.

Tudo. Ia pro Rio, ia pra São Paulo. Tinha prima em São Paulo ia pra lá, a gente passeava demais,

lá tinha carro. Olha, eu não sou letrada como as outras, que às vezes pega os livros. Eu não pego

não, viu? Leio muito a Bíblia, me aprofundo e eu acho que isso já chega pra mim. Agora, pego

uma revista interessante, pego artigos interessantes que me dão, às vezes. Então, pra mim o

importante que eu acho que é eu continuar do jeito que eu sou, com minha espiritualidade, assim,

mais profunda. Tendo minhas horas de meditação, que eu gosto de fazer de vez em quando e

pronto. Eu acho assim, que eu estou vivendo bem. Não estou precisando de mais nada, não quero

mais nada, estou vivendo bem. Está ótimo, tudo ótimo. Nunca mudei de religião. Eu fiquei

conhecendo a minha religião, porque lá em casa eles eram religiosos. Minha mãe ia à missa todo

domingo. Era essa religião de ensinar a gente a rezar. Fiz minha primeira comunhão. Uma

professora que me preparou - até hoje eu lembro dela - muito bem pra fazer a primeira

comunhão. Eu fiz em Juiz de Fora com 7 anos. Depois em todo lugar eu ia à missa todo dia.

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Barbacena eu fui estudar no colégio das irmãs franciscanas... E depois de lá, fui pra Poços de

Caldas, estudei no colégio das dominicanas. Sempre colégio religioso. Então nunca tive assim,

que me preocupar com religião, ou se estava certo ou estava errado. Pra mim eu estava certa. Que

eu comecei naquela e aquela estava certa. Se alguém falasse que eu estivesse errada, eu não sabia

se eu estava errada, eu nunca me achei errada. Eu sempre procurei me aprofundar. Eu acho

importante ter projetos na vida. Não mais na minha altura de vida. Tudo o que eu tinha que

realizar, que eu pude realizar eu já realizei. Hoje eu tenho vontade, mas pela idade eu já não

posso fazer muita coisa não. Porque eu sou muito limitada, eu tenho reumatismo nos joelhos.

Então eu não posso mais fazer muita coisa, está entendendo? Eu tenho um pouco de limite. Mas

eu queria fazer muita coisa. Eu tinha uma vontade de ensinar as pessoas!

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ENTREVISTA 5 - ROSA

Identificação: Rosa Sexo: F Idade: 92 Grau de instrução: Ensino Médio (curso Normal) Procedência: Belo Horizonte Estado civil: viúva Filhos: 8 Netos: 16 Bisnetos: 13 Profissão (atividade ocupacional): escritora Saúde: Bem controlada (já teve AVE) Prática religiosa: católica Origem familiar: Espanha Com quem mora: sozinha

Nasci e fui criada em Belo Horizonte. Lá em casa ao todo, eu não conheci dois, minha mãe teve

dez filhos. Sendo que dois ela perdeu pequeninos e ficamos oito. Meu pai dizia que ele não tinha

dez filhos, que ele tinha cinco casais, pra não assustar muito as pessoas. Depois eu perdi uma

irmã com dezoito anos. Lá em casa eram “só” esses. Nesses irmãos todos, contando com os dois,

eu sou a quinta, mas como mamãe perdeu dois irmãos pequeninos eu fiquei a primeira mulher.

Então era a terceira. Toda vida eu estudei no Sacré-Coeur. Desde a fundação, quando ele veio pra

Belo Horizonte, foi fundado, eu entrei. Então eu fiquei mais de nove anos lá e lecionei durante 1

ano e pouco lá, também. Depois eu casei, fui pro Rio e já a coisa mudou. Meu marido dizia

assim: “quando eu converso com uma moça eu sei se foi ou não educada no Sacré-Coeur de

Marie”. Foi muito bom o aprendizado de lá e a educação. As minhas filhas estudaram lá também.

Desde pequena, fui criada num ambiente católico, não de muita rezação. Meus pais frequentavam

a igreja e tudo, mas aquela religião antiga. Eu brincava muito com meu pai: “você vai a missa

muito cedo”. Aí ele fala: “é porque é obrigado e eu quero ficar livre”. Então, não era assim “uma

coisa”, apesar de ser um homem sério e ser trabalhador, tudo, nunca foi muito de rezar. Os

homens antigamente não rezavam muito, não. É uma coisa muito difícil definir a espiritualidade,

não é fácil porque você vive, você sente, mas você definir... Pra mim a espiritualidade é tudo o

que te faz um bem enorme, que você sente que você está vivendo bem, que você está ajudando

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alguém, que você está podendo viver em paz. Como eu estou te falando, não é fácil a gente

definir a palavra: “é isso.” Não é isso! É a sua maneira de viver e de receber as coisas. Você

poder ser solidária com a pessoa, poder dar um conselho, ajudar a quem precisa. Essas coisas que

a gente já vai fazendo e cada vez você vai vendo quanto mais você precisa de entrar nisso e de

fazer mais. Sempre mais! Nunca é hora de parar. Eu acho que isso a gente cresce sempre com

essa maneira de viver. Eu acho que é essencial, acho que ninguém vive sem, não. Principalmente

tendo fé. A fé eu acho que é um dom de Deus muito grande. E você tendo fé você sabe viver, e

como você vive num ambiente espiritual, não digo que seja assim demais, mas de muito amor, eu

acho que ainda é mais fácil. Os irmãos são muito amigos, um fala com o outro quando não está

certo. Eu tenho impressão que ajuda muito. E a mãe eu acho que é muito importante nesse ponto,

de pegar desde pequeno. Não falo esse negócio de ficar rezando o terço o dia inteiro, nada disso.

Eu acho que espiritualidade é muito mais do que isso. É muito bom rezar, mas também quando

você tem vontade, quando você quer conversar direto com Deus. Por exemplo, eu não tenho

nenhum santo assim, grande de devoção, eu já vou direto. Eu quero, já vou pedindo. Eu acho que

você tem que alimentar a sua espiritualidade, você não pode deixar isso acabar nunca. Acho que a

gente vai fazendo... Acho que é isso, pra mim é isso! Eu acho que a espiritualidade sempre foi

muito presente, mas agora a gente mais velha, é quando tem mais tempo a se dedicar a isso - eu

não digo melhor sobre a espiritualidade, digo viver uma vida mais intensa, nesse ponto, mais “pra

você”. Se preparando bem! Eu estou preparada a qualquer hora, me chamou eu estou indo. Então

sempre me falam: “como é que você vai?” digo: Eu estou indo, devagar mais estou indo! Porque

não me assusta, nem apavora, nada disso. Acho que a gente mais velha recebe muito melhor

quando a gente tem uma formação que você vem trazendo de jovem, não é na hora, depois de

velho que você vai falar: “Ah, agora eu vou rezar muito que eu vou morrer.” Nada disso! A coisa

vem vindo, crescendo dia-a-dia. Eu entrei na velhice calmamente, nem senti muito, não. E, não

sei se houve mesmo uma entrada, foi passando devagarzinho sem que eu percebesse. Porque eu

continuei na mesma vida ativa, que continua até hoje, o que eu posso fazer eu faço. Então, eu

acho que eu entrei na velhice sempre pronta, achando que ainda tinha muito que dar para filhos e

para os netos. Então, eu continuei da mesma maneira, porque eu sou de um temperamento muito

calmo, tranquilo. Eu acho que isso ajudou muito, não me apavorei com velhice nem nada. Achei

que é uma benção de Deus, que a gente tem que esperar a hora que ele chama. Eu brinco muito

que ele perdeu minha ficha lá em cima, porque com 92 já era para ter chamado! Eu estou vendo

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amigas indo embora e isso me faz muita falta. Mas não me apavorei não, achei que era uma coisa

natural que viria e receberia muito bem. Como vou receber, eu tenho certeza, a morte - também,

como uma coisa muito natural. Não tenho pavor, nem coisa nenhuma. Eu acho que a gente pode

aproveitar a velhice para passar para os mais novos o que você tem de melhor. Parece mentira

mais eu leio dois jornais por dia para saber tudo de política. Leio o Globo, leio o Estado de Minas

toda manhã, para que eu possa, na hora do almoço quando os filhos chegam, a gente pode trocar

alguma ideia. Não quero ficar afastada. Eu brinco muito: “não me convidem não, porque

convidando eu aceito tudo”. Só para estar sempre junto, acompanhando netos e bisnetos. Não

achei nada ruim à velhice, não. Eu sei que a gente acha: “ah fica muito feio!” É feio, não é bonita

a velhice, não é bonita... mas eu acho que a gente vivendo, podendo por dentro alguma coisa que

você conseguiu durante anos, você aceita muito bem! Seu modo de viver, o seu modo de rezar,

suas prioridades. Eu acho que isso é muito bom. Não me apavorou de jeito nenhum. Eu acho que

a gente vive mais intenso. Muito mais intenso, justamente porque você tem mais tempo. Tem

mais tempo pra você. Você já não tem tantas obrigações, você faz só o que você quer. Então eu

acho que na velhice ela cresce, não sei se você pensa assim, eu acho que a gente ganha muito

com a idade, viu? Ganha muita experiência! A paciência - poder ouvir as pessoas que reclamam

às vezes tanto e querem um conselho. Eu acho que a gente vive muito melhor a espiritualidade do

que na juventude. Eu acho que a minha vida tem muito sentido. Pela maneira que os filhos, os

netos e bisnetos procuram à gente, a gente vê que tem um sentido grande. Qualquer coisa eles

vêm! Pelo menos durante a semana toda eu tenho dois, três aqui. Se eu te contar que às vezes tem

oito, dez pessoas para o almoço, você não acredita. É aquele corre-corre! Mas tem sempre, eu

prefiro que sobre do que falte. Então, aquele almoço já fica sempre mais ou menos arranjado para

oito, dez, porque morando fora eles vêm. Então, nessa hora do almoço é uma confraternização.

Nas grandes festas também eu reúno sempre: Natal, Páscoa, tem assim um aniversário! E faço

questão de pelo menos uma vez na semana os filhos se reunirem para o almoço de domingo. Eu

sempre falo isso. Eu acho que não pode deixar de encontrar os irmãos. Porque senão, quando a

gente for embora... quantas famílias cada um vai para um lado e pouco se encontram. Eu acho

que isso é muito importante na vida de cada um de nós para congregar a família, principalmente,

procurar que eles se entendam bem, tudo. Eu, por enquanto, tenho facilidade para isso, porque eu

participo muito da vida deles. Eles falam assim: “mamãe é muito curiosa!” Eu falei: “o que me

importa que me chamem de curiosa, eu quero saber o que você vai fazer e o que você é”. Eu

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pergunto pra cada um: “o que você fez hoje? O que você vai fazer?”. Às vezes eles falam: “ah

mamãe você é curiosa!” B. é um deles que me chama de curiosa. Eu quero saber de tudo, se foi

pro exterior o que você foi fazer, o que você foi falar. Pergunto mesmo, viu? Cada um eu quero

saber. Eles brigam muito mas eu sei que eu fico ao par de tudo, pra mim isso vale muito! Eu

tenho pena de quem não tem família. E não me importo: “ah, mas a sua família é muito grande”.

Não tem importância nenhuma de ser grande, contanto que ela viva em paz, solidária uns com os

outros, está ótimo! Eu acho que a gente tem que procurar e formar, nesses meus netos que já

estão casando - os bisnetos não, são pequeninos, mas as netas já estão casando - eu acho isso

muito importante, para que elas levem para outras famílias o que elas receberam e que formem a

família delas. Porque tem valores que não acabam nunca! Que não saem de moda, como dizem:

“Ah, a família de amanhã é diferente!”. Mas se tem certos valores, a gente deve conservar. Deus

me livre de ficar uma velha parada! Eu acho que a gente tem que conservar esse sentido de vida,

continuar fazendo o que você quer. Por exemplo, se eu não posso ir à missa num domingo, pra

mim não tem a menor importância, eu não ligo pra isso. Eu assisto a missa de tarde pela

televisão. E para mim é a mesma coisa. Eu sinto não poder comungar, mas para mim não tem

importância, eu sei que eu não posso ir sozinha, tem que ir uma companhia. Nesse dia às vezes

não tem companhia. O que adianta eu ir à igreja e não entender, não ouvir direito. Prefiro ver na

televisão porque eu ouço e aí eu assisto diariamente a missa da televisão. Porque em vez de eu

ficar lendo a bíblia eu já vejo a bíblia ali, quando eles leem o evangelho e tudo. Todos eles

respeitam. E isso começou com o meu filho, o caçula, esse que faleceu agora tem poucos meses.

Ele um dia falou: “mamãe você gosta de mim? A senhora olha lá a televisão”. Eu olhei e ele

falou: “então vem ver comigo!” Eu continuei vendo e ele não, mas eu fiquei com esse hábito.

Também se chega uma pessoa, um filho, eu paro imediatamente, não sinto que aquilo me fez mal

nenhum, nem fico com remorso de não ter assistido a missa no domingo. Quando eu perdi esse

meu filho, eu senti porque na noite, na véspera ele tinha conversado comigo. Eu nunca esperava!

Ele tinha um problema, porque devido ao desastre que ele teve, ele teve que parar os estudos,

parar tudo. Desastre, porque o carro pegou no cerebelo e ele não podia ser operado. Ele

conversava e tudo, mas não tinha muita facilidade para continuar os estudos, nem fazer um

trabalho especial. E ele me ajudou muito, porque ele tinha uma pureza! Todo fim de semana, não

tirava um, ele ia pra casa de um irmão. Eles pegavam aqui na sexta-feira e me entregavam na

segunda. E isso estava marcado pro ano inteiro. Então, ele conviveu com todos esses irmãos esse

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tempo. Nunca ele deu uma palavra de queixa: “meu irmão fez isso, meu irmão fez aquilo”, nada.

Todos eles, ele aceitava muito bem e todos o aceitavam. Às vezes deixavam de viajar pra fazer

companhia ao T. Então, eu acho que ele, no modo dele ser, de quieto e tudo, quando ele morreu,

eu senti demais... foi uma coisa que eu sinto hoje. Fiquei sozinha, ele morava comigo. Mas, eu sei

que foi na hora boa. E eu sempre pedi a Deus que o levasse primeiro, porque eu falei: “Deus

ouviu muito depressa meu pedido!”. Mas, ele ficaria aí assim, no ar quando desfizesse a casa,

tendo o cantinho dele, as coisas dele. Então, ele já morreu com 47 anos. Mas eu recebi muito

bem. Peço a Deus sempre, que eu acho que lá, como eu tenho fé, eu acredito que talvez ele ajude

mais a gente. Nem achei que precisava rezar muito, nada disso! Não sei se eu estou certa ou

errada, mas meu modo de pensar é esse. Fiquei viúva em 2002, tem 7 anos. Depois de 60 anos de

casado e vivendo bem, isso pra gente é sempre doloroso. Sempre difícil. Eu acho que é, como eu

aceito a morte muito bem, eu acho que é uma coisa que me ajudou também, sempre a religião me

ajudou muito, a espiritualidade nesse ponto. Hoje, eu acho que o sentido é a mesma coisa. Eu

continuo pensando da mesma maneira. Eu acho que a espiritualidade... é verdade que nessa idade

ela cresce mais, eu acho que a gente tendo mais tempo, você tem mais tempo pra ler melhores

livros - que eu gosto muito de ler e tudo. Eu fujo muito do que não me interessa. Por exemplo,

novela: “ah Rosa, a senhora deve assistir!”. Não, não me interessa, eu não quero. Porque aquilo

não me traz nada de novo. Então eu acho que a gente tem mais tempo pra dedicar pra

espiritualidade “sua”. De fazer coisas que você gosta e que possa vir a beneficiar alguém, ou da

sua família ou fora disso. Minha preocupação muito grande é com o social. Tanto que os meus

filhos, felizmente, estão todos encaminhados nesse sentido. Isso mais devido, espiritual eu não

digo tanto, porque tem dois ou três que são mais do que os outros, mas com o cuidar com o que é

social é muito grande na família. Eu acho que a gente ainda aprofunda mais o conhecimento,

nessa idade mais velha, porque você tem mais tempo pra ler livros espirituais, essas coisas

ajudam mais. Agora que não é fácil aceitar, não é não. Essas deficiências da velhice, não. Não é

nada fácil, viu? Você depender sempre de alguém, não querem que você fique sozinha. Os filhos

rodeiam muito, são muito carinhosos, mas, mesmo assim a gente se sente que está - não digo

sobrando não, mas, que a gente está dando trabalho pra alguém. Autoestima eu não sei se eu

tenho não, viu? Para falar a verdade. Eu continuo gostando de fazer as coisas que eu fazia. Brinco

sempre, não convida pra sair, passear porque eu aceito na hora. Gosto, gosto de me vestir bem,

gosto de passar uma pinturinha. Não abandonei nada da minha juventude, que eu sempre tive um

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gênio muito alegre. Gostar de festa, tudo eu gosto até hoje. Essa semana eu já fui duas vezes ao

cinema. Então, por aí você vê! Não sei se é isso a autoestima. Eu acho que se parar... porque eu

vejo pessoas da minha idade que param...completamente alheios a tudo, não querem mais nada!

Eu tenho uma cunhada que ela não quer mais nada. Ela apronta e quando chega a horinha dela

sair na rua ela volta, não quer mais ir. Quer dizer, ela está caindo em depressão. Por isso que eu

procuro conservar tudo isso. Ainda vou a cozinha, ainda faço as coisas que eu gosto de fazer na

cozinha. Não sei se isso é também autoestima, mas eu acho que é, porque é a vida que eu levo.

Eu não mudei nada na maneira de pensar e de seguir. Gosto muito de ler e tudo. O projeto de vida

que eu tenho, deixa eu te falar: eu tenho uma filha que tem uma creche e meu projeto de vida é

ajudar essa menina. Tanto que esse ano eu passei o ano todo bordando - por incrível que pareça,

pano de prato, coisa com bordadinho à toa - tudo para ela poder vender lá, em beneficio da

creche, no bazar. Quer dizer o projeto de vida é poder ajudar a quem me rodeia. É o projeto que

eu falo, penso assim. É uma cesta básica pra um, é outro que telefona precisando qualquer coisa.

Aí o meu projeto é esse. É poder ainda servir a alguém.

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ENTREVISTA 6 - ORQUÍDEA

Identificação: Orquídea Sexo: F Idade: 82 Grau de instrução: Ensino Médio (Clássico) Procedência: Estado civil: viúva Filhos: 8 Netos: 17 Bisnetos: 1 Profissão (atividade ocupacional): voluntária em ambulatório social Saúde: Bem controlada (problemas oftalmológicos) Prática religiosa: católica Origem familiar: portuguesa e espanhola Com quem mora: um filho

Eu nasci em Bom Despacho, uma cidade do oeste de Minas e vivi lá até os 11 anos. Depois vim

para o colégio em Belo Horizonte. Nós éramos oito. Dois morreram criança e ficamos seis. Sou a

quarta. Dois homens, depois duas mulheres, depois dois homens. Os que morreram, um estava

abaixo de mim, e a outra foi a última menina que mamãe teve em 1939. Eu fiz uma pesquisa. Eu

quis fazer o livro da família e consegui documento dessas pessoas. Eu consegui esses documentos

em Barbacena. Nessa ocasião eu andei aí pelo interior, me senti assim, tão humilhada em uma

ocasião que eu fui fazer essa pesquisa. Encontrei muitos universitários, muitas pessoas mais

jovens fazendo pesquisa nessas bibliotecas dessas cidades antigas. Tinham livros que você tinha

medo deles desmancharem na sua mão, de tão velhos que eles estavam. Então eles trabalhavam

com óculos de proteção, com luvas e eu estava totalmente despreparada. Fiquei muito humilhada

de ver o meu despreparo pra fazer esse trabalho. Mas fiz. Sempre a minha família foi católica. Na

minha infância eu me lembro que uma vez uma amiga da minha mãe foi falar com ela que estava

me encontrando cedinho assentada na porta da igreja esperando a igreja abrir pra eu ir à missa.

Criança no interior não tem muito que fazer. Meus irmãos maiores tinham vindo pro colégio,

tinha dois irmãos menores. Então, não tinha muito que fazer, acordava cedo levantava e ia pra

igreja. Ficava sentada lá na porta esperando abrir. E B. D. venta muito, então, essa amiga da

mamãe falou: “ela fica lá encolhidinha, sentada”. Aí a mamãe pediu pra eu olhar o relógio antes

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de ir. Desde cedo, quando eu estava no curso primário, eu fui da Cruzada Eucarística. Depois que

vim estudar, eu fui benjamina da Ação Católica, fui Pré-JEC, JEC, JIC um pouco tempo e hoje

estou na SAC, que é Senhora da Ação Católica. Ação Católica foi interrompida uma época, na

época da ditadura, e ela renasceu então, com o nome de Renovação Cristã. É o nome do nosso

grupo que eu participo hoje. Então as companheiras, muitas delas, foram da Ação Católica. A

gente tem assim, a mesma base religiosa. E é um apoio assim pra gente. Aquela frase de São

Paulo: “quer comais, quer bebais, fazei tudo em nome do Senhor”. Eu acho que tudo na vida da

gente é envolvido por Deus. E eu falo isso assim, de uma maneira muito pessoal, porque eu tenho

um problema que poderia ter me causado dificuldades. É com relação ao tipo sanguíneo. Na

minha família nós somos diversas pessoas com RH negativo e uma minha prima teve problema.

Eu tinha RH negativo, depois descobriram que às vezes, o RH é negativo, mas tem um outro tipo

de sangue que pode melhorar a situação, mas meu também era negativo e eu tive os filhos todos

sem problema. Então, eu acho que se eu andasse de joelho, não agradeceria a Deus o suficiente,

por não ter tido problema nenhum. Ah, eu agradeço tanto a Deus, assim tudo o que Ele me deu.

Sou feliz com o que eu consegui fazer. Então, eu acho a vida muito boa. Acho que eu consegui

pouco, considerando assim, minha situação, as minhas condições, acho que eu fiz, consegui. Eu

tinha muita vontade de fazer um curso superior, isso eu não consegui. Quando o meu marido

queria casar, nós fomos conversar com o padre e ele disse que se a gente casasse pensando em

evitar filho o casamento seria válido, mas não seria lícito. Eu estava preparada pra fazer

vestibular, não fiz porque a gente ia se casar no meio do ano. Então, desisti. Hoje não aconteceria

isso. Os filhos iam esperar um pouquinho. Eu tinha 19 anos e eles iam esperar. O marido adoeceu

em 84 e morreu em 93. Teve uma doença muscular, chama miosite. E ficou assim, dependente.

Ele recuperou bem os músculos, andava, mas, por exemplo, nunca conseguiu levantar sozinho da

cadeira ou da cama. Mas, graças a Deus, ele não sentia dor. Você sabe, os homens costumam ser

muito fortes pra dor... Não é a toa que só as mulheres tem filho! Eu gostava de brincar: se Deus

mudasse o mundo, cada hora 1 um, não ia passar do terceiro, não é? A velhice é uma fase da vida

como uma outra qualquer. E eu vou mais pro lado positivo. É uma idade que nos dá mais

liberdade de falar, de opinar. A gente se sente mais livre pra expressar o que a gente quer. A

espiritualidade ajuda muito. Se a gente não se agarra em Deus eu acho que a vida fica muito sem

sentido. Fica muito difícil. Principalmente num momento desses que a gente fica muito sozinha.

Então a gente tem que procurar objetivos. E o objetivo maior é Deus. Eu tive nove filhos em oito

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anos e meio. Eu perdi o oitavo. Então a vida foi cheia demais. Depois meu marido esteve doente

também nove anos. Assim, totalmente dependente. Então, eu fiquei exclusivamente por conta

dele. Nós sempre gostamos muito de ler. Então, foi um tempo rico pra nós. A gente teve tempo

de fazer aquilo que a gente gostava. E, graças à Deus, ele não sentia dor, então, isso trazia muita

paz. Ele era dependente, mas ele não sentia dor. Isso é uma graça de Deus. Eu tive assim, muito

afastada. Depois eu fui participar desse grupo, então essa é uma ajuda muito grande que eu tenho.

E a nossa paróquia também é muito boa sob esse aspecto. Nós temos um padre que é teólogo.

Tem um outro que é especializado em sagradas escrituras. Então as missas são assim, muito ricas.

Eu acho que é um privilégio. Atribuir sentido à vida - sem um objetivo, sem um plano, as coisas

ficam muito vazias, não ficam? São muitos objetivos. O objetivo central de tudo é Deus, não é?

Então a gente está sempre se perguntando: “como eu posso servir?” Eu acho que isso é assim,

muito básico na vida da gente. O que nós somos sem Deus? E Deus é bom demais! Pra mim está

muito ligado a essa união com Deus. E isso abrange toda a vida da gente, todas as tarefas, todas

as etapas da vida. Eu tenho assim, uma vontade de sempre ajudar em quanto eu der conta. Acho

que a gente recebe tanto, que a gente precisa dar um pouco. Deus me concedendo isso, acho que

está tudo bem. E quando a gente já não consegue fazer muita coisa a gente reza para as pessoas,

eu acho que também está fazendo alguma coisa. Eu sempre questiono o que eu ainda posso fazer.

Isso eu me questiono sempre. Se eu ainda posso ajudar alguém, o que eu posso fazer. Acho que

enquanto a gente está vivo a gente tem que viver e tem que ter um objetivo pra ajudar o outro.

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ENTREVISTA 7 – LÓTUS Identificação: Lótus Sexo: F Idade: 87 Grau de instrução: Ensino Médio Procedência: Belo Horizonte Estado civil: viúva Filhos: 6 Netos: 11 Bisnetos: 3 Profissão (atividade ocupacional): artista plástica e escritora Saúde: Bem controlada (fibromialgia, pressão alta) Prática religiosa: católica, budista e hindu Origem familiar: portuguesa Com quem mora: sozinha Eu nasci e fui criada em Belo Horizonte. Ao todo nós éramos sete irmãos, eu era a segunda. A

minha mãe veio do Rio de Janeiro e o papai veio do Serro. Eles se encontraram em Belo

Horizonte, naquela década de 20, por aí, que minha mãe se casou. Eu estudei primeiro no Jardim

da Infância Bueno Brandão, depois no grupo escolar em frente. Depois, no colégio Sacré-Coeur.

Eu estudei primeiro no Jardim da Infância Bueno Brandão, depois no grupo escolar em frente.

Depois, no colégio Sacré-Coeur. O grupo em frente era o Barão do Rio Branco. Sempre ali pelo o

lado de Funcionário, Savassi, por ali. Nunca mudei de lugar, sempre vivi por ali na minha

infância, adolescência, casamento e depois de casada também as casas eram por ali. Foi a partir

da década de 70 que eu vim para o R.P.. Mas em 47, que eu me casei, ai já comecei a frequentar a

fazenda em Entre Rios de Minas. Casamos jovens, mas não foi tão jovem assim, não. Vinte e

quatro anos. Eu sou viúva. Ele morreu em 77. São 33 anos. Olha, no principio foi muito difícil.

Foi difícil porque eu estava muito ligada ao L., num sentido em que ele deixava eu ter os meus

voos, mas sempre tinha aquele aeroporto. Ele sempre me dava uma proteção, uma segurança. De

repente, cortam todas as seguranças, proteção... e a gente sente psicologicamente que está

sozinha, que agora tem que enfrentar... Na morte dele, logo que ele foi enterrado, no dia seguinte

eu já resolvi que não ia morar mais em Belo Horizonte. Eu queria morar no R. P.. Já tinha

construído a casa no R., para fim de semana. E eu falei: “Não, em Belo Horizonte eu não fico,

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porque eu não quero gerenciar duas casas e essa casa é muito grande, e essa casa pertence à

minha mãe, ela pode ganhar um dinheirinho alugando essa casa e eu vou pro R.”. Contrariando

todas as vontades, assim, da família que queria me amparar. Os meus irmãos e minha mãe

principalmente: “Ah, vem morar comigo! Mora em Belo Horizonte!” Eu falei: “não! eu gosto do

R., tenho o atelier lá e vou morar lá.” E vim pra aqui. Mas nessa época não tinha ônibus no R., os

vizinhos eram todos muito longe. Eu passei muita dificuldade quando eu vi que, caí na realidade,

que eu não dirigia carro, tinha que morar sozinha, num lugar ermo e como é que eu ia me virar

desse jeito? E a família pressionando. Família que eu digo não são os meus filhos não, os filhos

me respeitaram demais. Mas assim, parentes querendo que eu mudasse para o Rio de Janeiro, pra

ficar com minha mãe no Rio de Janeiro. As ideias assim de proteção, mas, de acordo com a

mentalidade essas pessoas querem proteger, mas de acordo com o ponto de vista delas, com uma

maneira de pensar que não era coincidente com a minha. Então, eu agradeci muito mas eu tinha

as minhas ideias também. Fiquei firme aqui. Mas, sofrendo. E um dia, eu fiquei muito triste,

chorando muito, eu falei: “meu marido morreu, eu estou sozinha!” e me disseram: “Seu marido

morreu, mas você está viva!” Aquilo me acordou. Então não pode ficar presa ao morto. Eu vou

ter que ter uma vida diferente, e eu quero ter, e eu estou viva. Senti que a gente está viva a cada

dia é muito importante. Que não morreu. Você pode morrer pro passado, é muito importante.

Coincidentemente, naquela época eu já estava estudando muitas filosofias orientais, que dão um

sentido diferente pra morte. Prolongamento da vida, essa coisa toda. E ao mesmo tempo, eu tinha

lido muito, além dos místicos orientais, eu tinha lido muito sobre as ideias do Krishnamurti, que

fazia esse: ”liberta-se do passado, seja seu próprio mestre”. Uma coisa assim, que dá força pra

pessoa ir pra frente, sem ficar muito remoendo aquilo que passou. Claro que eu nem me casei

novamente, nem quis, nunca pensei nisso. Tive um casamento muito bom, pra quê procurar outro,

pra me atrapalhar? Então, eu segui em frente, mas sem ficar muito apegada ao que já tinha

passado. Criando coisas novas. Uma vida diferente. E foi aí que eu embarquei para Índia em

1977, três meses depois da morte do L. Porque o M., meu filho, tob teve uma bolsa de estudos em

Bangalore, no Indian Institute of Management de Bangalore, para fazer uma pesquisa. E com

isto, ele me escreveu de lá falando: “Oh, mãe, está muito triste pra você aí, sentindo essa solidão,

essa coisa toda. Vem para Índia que vai ser diferente!” E eu embarquei para Índia com a A,

minha nora e meu neto J. P., pequenininho. Ele tinha 2 anos nessa ocasião. E isso, para mim foi

muito importante. Antes de ir, eu ainda estava na dúvida, se iria ou não. Mas eu tenho sempre

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assim, umas intuições. E sempre eu começo a ler no livro da vida, o livro da vida me mostra

muito. Nesta ocasião, tinha um padre chamado Padre I. Ele vivia cheio de gente em torno dele,

era um padre muito santo e vidente. Eu também frequentava, ia lá pra assistir a missa dele e

seguir alguma orientação, antes mesmo do L. morrer. Ai ele lendo um dia o breviário dele, falou

assim: “manda chamar a M.H. Ela está pra viajar, manda chamar”. Então ele disse que leu o livro

de Ester. Estava escrito assim: “Escuta filha, olha! Esquece o teu povo e a casa de teu pai. Vá em

frente!” Ele falou: “Ela está querendo viajar e está com medo de largar o país assim, de largar os

filhos e tudo. Então, esse pedaço de Ester falou que é para ela ir”. Bom, foi uma resposta, um

sinal. E também do Rio de Janeiro - interessante que a Igreja Católica que me mandou para Índia.

Um cardial do Rio de Janeiro reuniu um grupo lá, quando eu tinha terminado as tapeçarias da

Igreja de N. S. C. naquela época. E eu tinha determinado que não ia cobrar, que ia ser de graça:

“Ah, para igreja eu vou dar. Não vou cobrar minha parte não!” Ele não concordou com isso. Ele

falou: “Não. Porque que todos vão receber e essa artista não vai receber?”. Então, estipulou um

cheque lá, que era o que eu precisava para viajar. Porque o meu conflito para seguir pra Índia é

porque não tinha o dinheiro suficiente. Então, aí, cobriu as despesas da viajem. Foi fantástico!

Não é interessante isso? E, também uma vidente que veio aqui em casa. Para você ver, da religião

católica essas duas respostas e uma outra vidente, que chegou aqui, bateu na minha porta e falou

assim: “Olha, eu vim aqui pra te falar algumas coisas. Você tem uma missão na Índia, você tem

que seguir, você tem que seguir essa necessidade de ir para lá, porque não é só para passear, não!

Você vai pra poder cumprir uma missão”. Bom, ela não sabia exatamente o que era, e nem eu,

sabia o que era essa missão. Lá fui eu! Mas acontece que lá, que indo pra lá, eu verifiquei aos

poucos... começou a descortinar o que é que eu teria que fazer, que era mais no campo da

educação e da espiritualidade. Quer dizer, continuar a desenvolver o que eu já tinha começado no

primeiro livro que eu publiquei que foi “V. A”, que é a arte ligada a espiritualidade. E depois,

continuar a ligar a todos os aspectos diferentes de arte a espiritualidade. Foi exatamente em 1977,

quando L. morreu, que eu escrevi o livro “O C. ª”, que já é um leque aberto para, não somente

considerar a arte do mundo ocidental, mas enxergar o oriente também, o outro lado do mundo.

Equilibrar, como a gente hoje em dia ouve falar muito, o lado esquerdo e direito do cérebro. Não

se pode ter uma harmonia no planeta sem equilibrar o lado esquerdo e direito do planeta, norte e

sul também. Eles têm 5 mil anos de cultura e essa cultura tem que vir nos beneficiar e ao mesmo

tempo a nossa tecnologia pode ir lá beneficiá-los - sem essa harmonia oriente-ocidente, norte-sul

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não vai haver paz no mundo. Comecei a descobrir uma poção de coisa assim. Pra mim foi

importante porque desde criança eu tive sempre uma tendência mais espiritual. O livro “V. A”,

que foi escrito muito antes de eu conhecer o oriente, já aborda isso. Sempre eu estudei. Papai era

um homem muito espiritualizado - cristão espiritualizado. Tinha uma biblioteca imensa de livros

de espiritualidade - São João da Cruz, Santa Tereza D’Ávila, eram os meus preferidos. Tomáz de

Aquino, todos esses. Estudava isso à fundo. Papai era muito religioso e muito “estudioso”. Eu

escolhia aqueles místicos cristãos que afinavam mais comigo e lia: Jaques Maritain, tudo isso.

Depois, coincidentemente, o meu marido também estudava muito os filósofos cristãos. Ele

estudava muito todos. Então, a gente trocava idéias desde o meu noivado, principio de

casamento, a gente lia muito. E a irmã dele, L. R., ela estudava junto comigo e me ajudou

inclusive a fazer os primeiros estudos desse livro “V. A”, que foi prefaciado por Alceu Amoroso

Lima e ele falou que nunca tinha visto assim, no meio dos artistas uma pessoa que abordasse essa

afinidade da arte com a espiritualidade - porque tudo é um caminho! Você não pode delinear

antes, não! A coisa depois de ter acontecido você pode dizer: “Oh, isso foi nessa época e motivou

isso.” Também para essa visão mais cósmica, menos dentro de uma Igreja, mais ampla, eu

encontrei naquele artista Kandinsky, primeiro pintor abstrato, uma afinidade grande também, que

ele escreveu o livro “O Espiritual na Arte”. Ele foi teosofista e ele teve uma influência muito

grande na primeira Bauhaus, que foi uma escola alemã que surgiu antes da guerra, antes do

Hitler, na Alemanha. Alemanha em Weimar. E reunia artistas, todos eles ligados a

espiritualidade. Kandinsky veio da Rússia. Naquela época, os russos pré-revolucionários, antes da

revolução russa, eram todos ligados também à espiritualidade - quase todos os pintores abstratos,

formavam um grupo do abstracionismo ligado à espiritualidade. Porque só o fato de liberar da

figura já mostrava o caminho da cor, da forma sem figura e tudo, para uma busca da essência. E

essa essência da arte é também ligada à essência da vida. Então, eu estudei também estes russos

pré-revolucionários, que foram: Mondrian, Malevich. Todos eles eram chamados a Vanguarda

Russa. Essa Vanguarda Russa teve há pouco tempo exposta em São Paulo e no Rio. Aqui ela não

veio, não tinha espaço. Era muito grande, dizem que foi uma exposição muito forte. E nessa

época também, com os estudos que eu fiz para poder escrever o livro “O C. A” eu estudei

também a ligação da arte com a educação. Porque, o Johannes Itten, que fazia parte dessa

vanguarda, fazia parte dos professores da Bauhaus, fazia uma ligação da arte com a

espiritualidade, da arte com o mundo oriental. E todas as aulas dele eram precedidas de aula de

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Yoga e de relaxamento. Tudo ligado às técnicas orientais de despertar da consciência da pessoa e

despertar desse mundo espiritual inerente à pessoa. Porque já existe dentro da gente. Nós não

temos que sair procurando coisa que vem de fora, não. Já existe desde que a gente nasceu, só que

a gente não tendo esse contato não vai percebendo, não é? Então, essa questão de começar a abrir

a consciência - acho que o importante é abrir a consciência pelo o que já existe dentro da gente.

Não tem que estar ensinando nada de fora. Eu não sei separar muito bem a vivência espiritual da

vivência da vida da gente. Tem que abrir essa consciência pra o que já existe lá dentro. Os

cristãos chamam de Cristo interno, os hindus chamam de atman, os psicólogos chamam de self. E

lá, uma russa cientista chamada Katarina Ivanova, ela chamou de condensado energético. Por que

é muito materialista - condensado energético é uma energia maior que existe dentro da pessoa.

Essa energia existe, a gente é que não olha porque fica procurando tudo fora. E dentro está tudo.

Jesus falou: “o reino de Deus está dentro de vós. Procurai em primeiro lugar o reino de Deus e

tudo mais será dado por acréscimo”. Pra mim o principal foi isso, o que eu já escutei das palavras

de Cristo. Tem hora que eu acho que essa questão da espiritualidade está afinada com o reino de

Deus. É não perder! Porque muitas vezes a gente desvia do caminho e começa a procurar fora e

daqui... fulano falou isso. Então, tem tantas ideias fora, não é? Não vou citar as ideias... Existem

ideias mil, falando: “Aqui que está a verdade! A verdade está ali! O demônio está ali!” Mais isso,

mais aquilo... Então, você fica desorientada e muitas vezes chega a loucura. Tem gente que chega

a loucura. Mas se você firmar - Krishnamurti também fala: “A luz interna, a sua luz!” Então,

você também tem que às vezes não ficar adorando aquela luz não, você tem que sentir que existe

o universo todo. Então, a sua luz está ligada a luz do universo todo. O seu reino de Deus está

ligado ao reino de Deus do universo todo. Entendeu? Então, é bom começar com o dentro, para

poder você enxergar que o dentro tem que se dissolver no todo. Não sei se é isso que está certo. O

fato é que está dando certo pra mim. Eu comecei com a religião católica, claro, não é?! Agora eu

pesquisei na Índia meditação e fui fazendo a coisa ligando a meditação à tradição. Não sei se eu

sou, ou se eu deixo de ser católica. Vou à missa o dia que eu quiser. Chego lá e assisto, comungo

também, porque eu acho que faz bem. É importante. Eu tive essa iniciação dentro da Igreja

Católica, entendeu? Agora, não quer dizer que eu não posso ter ido à Índia e recebido a iniciação

no Budismo. Budismo Tibetano também. Tive também ensinamentos importantes e

significativos na Índia com Bede Griffiths - monge beneditino inglês, que fundou um Ashman -

uma comunidade, um mosteiro religioso beneditino na Índia. E ele fazia da meditação oriental

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uma forma de transpor para o cristianismo esse tipo de meditação, a pessoa sentar, repetir o

mantra, para encontrar o seu próprio ser interno. Este mosteiro está situado no sul da Índia, Bede

Griffiths já morreu. Eu tive contato pessoal com ele, quando eu fui com meu filho, visitá-lo nesse

mosteiro. Ficamos interessados em conhecer o mosteiro dele em Londres e fomos também visitar.

E uma das formas de meditação que eles usam, para contatar o ser interno é a repetição de

mantra, mantra maranatha, que é um mantra que significa “vinde senhor Jesus”. Maranatha.

Então, eu achei interessante, como um monge beneditino não só, acreditou na meditação oriental,

como também trouxe uma contribuição para o ocidente, para os mosteiros beneditinos, ligados a

essa síntese oriente-ocidente. Eu acho que todos falam a mesma coisa. Só que quando a pessoa

está muito fanática, fundamentalista, ela não enxerga isso. Quando a pessoa já começa a abrir

mais e a perceber que nós todos pertencemos a esse todo, que Deus é um pra todo mundo...

então... Desde criança eu cismava com esse negócio de Limbo. Uma coisa que eu não concordava

era com o Limbo. Então, os pobrezinhos coitados que não foram batizados vão para um lugar

horrível e escuro chamado Limbo? Não pode ser isso não. Eu sempre questionei esse pedaço.

Mas, depois nunca questionei nada, a questão de Adão e Eva - nada disso me preocupou, não.

Mas eu acho que já estava caminhando para busca dessa essência. Teve um fato, assim... Foi

antes até do L. morrer. Um fato muito grande que foram experiências que eu tive dentro dessa

ligação que eu comecei a fazer com o oriente. Comecei a fazer meditação e tudo isso. Então, eu

tinha insights! Eu sempre fui dado muito a esses insights, a essas vivências, sabe? Essas vivências

que transportam a gente para um outro plano diferente. Você enxerga as coisas num outro plano

mais psíquico. E numa dessas vivências uma voz falou assim: “O seu caminho é direto. Não pode

ser com intermediário.” Pronto. Para mim, resolveu. Caminho direto o que é? Em uma ocasião

me perguntaram assim: “ Você esteve na Índia e não vai no nosso Centro de Yoga?” Eu falei:

“Escuta aqui. Lá mesmo me ensinaram que o centro está dentro de nós. O meu centro está dentro

de mim, ele é itinerante, ele vai aonde eu vou”. Envelhecimento, você sabe que eu sinto no corpo,

ou, às vezes, esse envelhecimento vem no corpo da gente primeiro. A gente começa a sentir que a

vista está piorando, que o ouvido está piorando, já não está escutando tão bem. Mas você, sabe de

uma coisa? Por exemplo, o ouvido, tem as suas vantagens! Quando todo mundo está ouvindo

demais, de noite eu até durmo pro lado onde eu escuto e fico com o ouvido que eu não escuto

virado pra cá, eu não escuto nada dos barulhos. Aí eu durmo melhor. Sempre a gente tira partido

das coisas, dos defeitos, não é? Então, o defeito da vista, não está dando mais pra eu fazer aqueles

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quadrinhos pequenininhos, com aqueles detalhes, tudo isso. Então, eu estou ampliando. Eu estou

pintando hoje em dia com a vassoura. Pego a vassoura, ponho a tinta ali. Quadro grande! Só não

posso fazer muito esforço, porque também devido à idade vai me fazer mal. Então, eu tenho que

fazer menos, mas os quadros começaram pequenininhos e foram crescendo! Crescendo por conta

de uma necessidade de ampliar. Mas essa necessidade vem coincidir também com a dificuldade -

eu já não posso ficar lendo assim, coisas de letrinhas pequenas. Então, eu acho que tem coisas

difíceis na velhice. Dificuldade de estômago, por exemplo, não poder comer à noite. Então, não

posso ir em uma festa e não comer nada. Não tomo por que eu sei que vai me fazer mal. Para que

eu vou tomar? Então, a parte física, a gente tem que se defender pra não ficar cedendo, porque

por cerimônia eu tenho que fazer uso, vou tomar um champanhe que depois vou pegar uma dor

de cabeça, só pra agradar os outros? Não vou fazer isso. Mas muitas vezes a gente resvala, come

açúcar essa coisa toda. Então, eu acho que essa parte física a gente tem que tomar cuidado,

principalmente com a alimentação. Acho que a prevenção tem que ser feita pela alimentação. E

eu tenho, relativamente, uma boa saúde pra minha idade. A vida, eu acho que é importantíssimo,

tem que ter um sentido. Porque se você nasceu, todo mundo que nasce tem um sentido qualquer,

tem que seguir a vida dele. O que atrapalha é que as pessoas, às vezes, ficam de olho na vida do

outro achando que é melhor. E aí cria competição, inveja, ciúme, essas coisas todas, que são os

defeitos básicos do ser humano. Ciúme, inveja, competição, medo, tudo isso porque não está

satisfeito com aquilo que Deus mandou pra ela fazer. Cada um, quando chega as circunstâncias, a

vida já via promovendo os encontros. Você sente que aquele encontro foi uma forma de você

crescer, seja por uma forma de harmonizar com aquela pessoa, ou uma forma, um desafio pra

você aprender. Em toda a situação da vida você está sempre aprendendo. Eu acho que o sentido

de vida da velhice é um prolongamento do que foi o sentido de vida da sua vida toda. Não pode

destacar só a velhice. A velhice é assim, como se fosse um vestibular para você chegar em um

outro plano, não é não? Se a gente começa a achar que a velhice é muito ruim, que está tudo

péssimo, você vai chegar péssima do lado de lá. Então, tem que estar muita atenta de que aquele

momento é um momento de preparo para passagem. A passagem mais importante de toda a sua

vida que é a morte. A espiritualidade assim, nesse sentido de você perceber, por exemplo, que

você está ligado com a natureza toda, com o universo todo. Que você não tem essa

separatividade. Eu acredito a espiritualidade mais sobre esse aspecto. Sobre um aspecto em que

você integra tudo. Integra a espiritualidade, integra a coisa material, a vida e tudo isso. Não

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separa. Quanto mais separar, menos espiritual está sendo. Porque existe espiritualidade em cada

igrejinha - aquela ali que é a verdade e briga com a outra e tudo. Você tem que sentir que está

tudo integrado. Olha, o que eu acho hoje é o seguinte: antes eu buscava muito, através de livros,

através de estudos. Estudava demais. Primeiro os mestres cristãos, depois os mestres orientais.

Depois eu me liberei dos mestres todos. Eu acho que está tudo dentro da gente. Nós vamos viver

cada momento procurando, viver aquele momento em plenitude. Viver bem. Se precisar de rezar

eu rezo, se precisar recitar um mantra eu recito um mantra. Inclusive andar a pé, fazer caminhada

repetindo um mantra que eu recebi da Índia... Eu parei um pouco de questionar. Já questionei

bastante, agora estou parando de questionar, vivendo aquele momento. Olha, eu estou achando a

autoestima muito bom, sabe? Eu acho que procurar a autoestima é bom. Você ficar muito lá na

depressão, eu tenho uma amiga que está na depressão, é horrível, gente! Ela não aceita nada, tudo

é ruim. Ela sempre acha injustiça tudo o que aconteceu que a vida foi injusta com ela. E acaba

levando a ideias até de suicídio, essa coisa toda. Então o que eu procuro às vezes para uma pessoa

nesse estado assim - eu não vou ficar confrontando nem falando: “Olha, você deve fazer isso,

fazer deve aquilo.” Você preservar, salvar essa encarnação dela, salvar! Salvar nesse sentido

assim, não deixar fazer besteira, de achar que está tudo péssimo e vai terminar com a vida. Nós

não temos o direito de terminar com a vida. Se nós estamos vivendo cada momento, até de

sofrimento, é porque precisa de ser feito. Isso é um desafio! E é uma forma de você se

aperfeiçoar. Eu estou falando agora, não sei se isso vai ser um lema pra mim no futuro, se

acontecer alguma coisa assim, muito séria comigo. Mas, o que eu acho é isso. É descobrir o lado

bom das coisas. Tem sempre um lado ótimo! Olha o P. W., no fim da vida dele, ele reunia cego,

saia cego, sem enxergar nada, sentado na cadeira de rodas, ia de uma cidade - saia de Brasília

para ir pro Rio de Janeiro dar aulas. Então, ele aproveitou a cegueira pra poder dar umas aulas

assim: tampava os olhos de todos os alunos e mandava eles passarem as mãos assim no rosto um

do outro e tudo, para perceber com outros sentidos. O sentido do tato, por exemplo. E antes dele

morrer ele reuniu os amigos para contar piada, porque para dar gargalhada, porque gargalhada é

muito bom. Não é bom isso? Eu acho que tem esses exemplos de vida assim que é importante a

gente pensar um pouco, porque não pode ficar achando que está tudo péssimo, que é uma

injustiça, não é? Não, não pode. Tem gente que pensa que está sofrendo que é injusto, que não

devia sofrer. Olha eu acho, estou sempre tendo projetos, o pior é isso, sabe? Nunca vi tantos!

Assim, pela frente agora com essa exposição, por exemplo, surge ideia! O que pode ser feito

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daqui, dali, tal. Mas não é projeto pra eu realizar, não, sabe? É ver que podem outras pessoas

mais jovens realizarem aquilo. Isso eu acho fantástico. É incentivar a energia da criatividade que

já existe em cada ser humano. É incentivar, não é determinar nada. É dar possibilidade aos outros

de criarem também. Porque a criatividade sempre presente na vida da pessoa, ela vai ao encontro

da pessoa consigo mesmo, com seu deus interno, com sua espiritualidade interna, inerente a cada

um de nós. Então eu acho que a criatividade promove isso. A pessoa sentir que criou alguma

coisa, por exemplo, com problemas de visão... O sentido da visão te amplia tanto que você perde,

às vezes a capacidade de concentrar e intuir porque tem muitas possibilidades. Então, a visão é

uma coisa maravilhosa, mas ela dispersa também, muitas vezes. O importante é a gente sentir que

cada situação da vida é um ensinamento para própria pessoa e para os outros que estão ali

também. Quanta coisa que a gente aprende com esse pessoal, que não tem a possibilidade, às

vezes, de ter todos os sentidos funcionando como nós temos. E o projeto de vida é uma coisa

assim, é aceitar e caminhar para aquele! Por exemplo, no momento agora que eu estou com essa

exposição, eu fico feliz de ver como houve assim, uma colaboração maravilhosa, não só da minha

família, dos meus filhos, dos meus netos – principalmente o meu neto é que teve a ideia da

exposição. Ele que liderou junto com minha filha que é historiadora. Foram os curadores. Outra

coisa que tem que ser feito é o seguinte: você não pode ter apego: “Ah, esse quadro é bonito, esse

tem que entrar.” Não. Você tem que ver o que vai ser melhor para o todo da exposição e então

tirar esses que não vão contribuir tanto para esse todo funcionar. Então, não pode ter assim: “ah,

esse aqui tinha que entrar, não pode deixar”. Não tem isso não, você tem que deixar que a coisa

seja feita, por outra pessoa, às vezes mais jovem, mas enxergando a direção mais certa que tem

que ser. Exatamente o que eles escolheram foi a direção que eu acho que é importante, na minha

vida, como na vida de qualquer pessoa. É a busca do essencial. Da essência. Em vez de ficar

muito preocupada com detalhes e buscando se despojar dos elementos acessórios da pintura ou

do desenho para buscar a essência. Primeiro houve a busca da essência daqueles boizinhos, a

busca da essência da via sacra, agora eu já estou buscando o essencial também nas esculturas e

naqueles quadros grandes que só foram feitos agora, há pouco tempo, já a partir do ano 2000. É

buscando sempre a essência. O essencial. A espiritualidade pra mim é isso, não separar a

espiritualidade dentro de uma igreja. Ela permeia a vida toda.

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ENTREVISTA 8 – MARGARIDA Identificação: Margarida Sexo: F Idade: 82 Grau de instrução: EMC - Contabilidade Procedência: Astolfo Dutra - MG Estado civil: casada Filhos: 4 Netos: 5 Bisnetos: 0 Profissão (atividade ocupacional): participante de grupo de estudos e trabalhos manuais beneficente, secretária administrativa do Centro Espírita que frequenta. Saúde: Bem controlada (já teve AVE e controla pressão alta) Prática religiosa: Espírita kardecista Origem familiar: portuguesa Com quem mora: com o marido Eu nasci em Astolfo Dutra, na Zona da Mata. Antigo Porto de Santo Antônio. Fica perto de

Cataguazes. Fui nascida e criada lá. São mais dois irmãos, uma irmã e um irmão. Eu sou a mais

velha. Em três anos nascemos nós três. Eu estudei em grupo escolar. Não sou espírita desde que

eu nasci, mas desde que a minha mãe se tornou. Meu pai já era espírita e um tio que eu até tenho

a biografia dele, ele era um homem muito culto, professor. Foi um dos primeiros espíritas lá da

minha terra. Mas, a minha mãe teve problemas de mediunidade. A minha diferença com minha

irmã caçula era de três anos e poucos dias, então, nós éramos todos pequenininhos quando ela

nasceu. E ficava muito serviço pra mamãe. Foi quando meu tio escreveu para a Federação

pedindo uma receita e, veio a receita, falando que o problema dela era a pela da mediunidade.

Todos os médicos olhavam, examinavam - e naquele tempo não tinha Raio-X - mas a mamãe

tinha febre na hora certa e achava que era tuberculose. E a minha irmã estava com três meses e a

mamãe falava com o médico: “Eu vou tirar essa menina do peito porque eu estou doente!” Ele

falou: “Mas a senhora não tem nada, o pulmão está limpo!” Mamãe tinha muito medo de

espiritismo. Ela morava numa fazendinha que tinha perto de Ubá e minha avó era muito católica,

então ela era católica. Não era fanática, não, mas, tinha medo. Quando o meu tio avô, esse que

era espírita, irmão da minha avó, reuniu os espíritas lá, que nem eram conhecidos, porque minha

mãe tinha casado havia pouco tempo - logo um médium, sem conhecer, falou que tinha uma

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senhora alta, magra, que estava perto da mamãe e parece que era familiar. Quando falou assim,

minha mãe já foi tomada por ela. Era tia da mamãe, irmã do meu avô, madrinha, tinha morrido

tuberculosa e, chorando muito, disse que ela estava procurando ajudar a mamãe. Porque ela

estava com pena da mamãe com três crianças novinhas, eu com três anos, meu irmão com dois e

a outra irmã novinha. Então, meu tio conversou com ela e falou que ela já tinha desencarnado.

Mamãe, daquela data em adiante, ficou boa e começou a frequentar. Ele falou que mamãe tinha

que frequentar porque ela era médium e tinha que trabalhar. E ela trabalhou até oitenta, ela

morreu com oitenta e quatro anos. E ela sempre foi espírita. Então, nós sempre fomos espíritas.

Morávamos em frente ao Centro Espírita, íamos em reunião e eu fazia todo o serviço. Costurava

desde menina, mamãe ensinou a gente a costurar. E para o Natal dava roupinha e depois abriu um

orfanato lá no Centro... e toda a vida nós fomos espíritas assim, trabalhadoras. E mudamos pra cá.

Trabalhei na U. E. V. É porque, de acordo com a religião que eu tenho, o modo de encarar a vida

é assim. Diferente não, a gente procura seguir os seus preceitos, aceitar o que a doutrina ensina.

E a gente caminha na velhice da gente. Eu costumo falar com meu marido: “A gente tem que

preparar pra ficar velha.” Porque ninguém quer morrer. Todo mundo quer tomar um remédio

aqui, melhorar e tudo. Eu acho que a gente tem que facilitar as coisas. Então, eu acho muito

importante a gente abraçar um serviço ao próximo, ajuda ao próximo, dentro da doutrina, porque

a gente sabe que a vida continua. E que tudo o que a gente aprende, também, é para o nosso

próprio bem, porque depois a gente vai evoluindo, vai e volta. A reencarnação. A gente acredita.

Então, eu acho isso muito importante. Eu gosto de trabalhar em beneficio dos outros, gosto de

ajudar, fazer o que eu posso fazer, mas... São muitos anos. Vamos ver como é que vai ser o final!

Já fizemos bodas de ouro e os filhos fizeram uma festa. Foi em 55 que nós casamos. Ele é espírita

também. Os filhos, eu agradeço todo dia a Deus, porque estão todos empregados, estão todos

formados e todos de caráter, não é? São três homens e uma mulher. Os netos também, não têm

vícios, não fumam, não bebem. Então, isso, na época de hoje, a gente tem que levantar a mão pro

alto e agradecer a Deus esses espíritos que vieram sob a responsabilidade da gente. Eu não sei

como é que foi a experiência de envelhecer, porque a gente vai envelhecendo. E é tanto serviço,

que quando você vê é tudo caindo. A física, a experiência física. E você vê que está mais velha. É

cabelo, é tudo. É o total. Mas, o modo de pensar é o mesmo, de trabalhar, vontade de servir, é

tudo a mesma coisa. A gente nem nota que ficou velho, Precisa de um de fora falar: “Espera aí, a

senhora!” “Oh, vovó!” - para gente ver que ficou velha. As coisas vão acontecendo e tão rápido,

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que a gente não toma conhecimento. É uma doença, é “Ah, está com pressão alta.” Assim, a

gente não nota. A gente não nota que está velha, não. Precisa de uma pessoa falar com a gente.

Os anos passam e a gente não vê. Eu acho que o conhecimento que a gente tem da doutrina ajuda

demais -na velhice. Porque a gente sabe que não morre, que é uma passagem, depois a gente fica.

Os livros que a gente lê e tudo. Porque eu leio muito, sabe? Tenho os horários: de manhã eu estou

cortando costura e depois eu paro um bocadinho e vou ver negócio de casa e vou ler. Sempre tem

um livro que eu estou lendo, estudando. Agora já estou estudando outra versão de mediunidade.

Eu sou médium. Então, a gente não para de ler e vai adquirindo conhecimento, sobre a vida, a

vida após a morte, a volta. Eu acho que a fé é muito importante. Ajuda demais! Porque a pessoa

que acha que morreu e acabou... Vai pro céu ou pro inferno e acabou... Fica longe dos parentes...

E acho muito triste isso. A pessoa que tem fé sabe que a vida continua em outro plano. É a

mesma coisa lá, só que a gente não tem um corpo de carne, mas tem um perispírito e tem os

mesmos serviços. Minha mãe está lá, meu pai e todos estão trabalhando. Graças a Deus, minha

família é toda é espírita, mesmo a da minha mãe e tudo. Uma família muito grande sabe? E todos

são espíritas. E todos são cumpridores do dever. Então, eu acho assim muito importante. Eu acho

que a fé ajuda demais! Atribuir sentido a vida - é importante. Você ter um caminho, ter que

seguir aquilo. Ajudar, por exemplo, um hospital. Eu fazia muita visita ao hospital. Agora eu não

tenho ido porque depende de andar. Mas eu acho que todo mundo tem que ter um ideal. Um

objetivo, tem que ter. Porque se a pessoa fala “Ah, agora eu posso esperar a morte” - é muito

triste, não é? E depois, o tempo custa a passar... Eu acho que o tempo tem passado tão rápido!

Quando a gente vê já está no fim da semana outra vez e já começa outra. Então é muito rápido,

você tem que ter um objetivo. A fé não é cega. O espiritismo tem sempre a fé raciocinada. Eu

tenho assim, aquela confiança: “Ah, amanhã está entregue a Deus, o jeito que eu vou morrer”.

Porque a gente tem medo não é de morrer, é de como vai desencarnar. Sabe, o sofrimento, porque

a gente vê tanta coisa. Mas, eu sempre peço a Deus que em qualquer circunstância a gente seja

resignada, que aceite aquilo, que aquilo é para o próprio bem da gente. Deus não vai dar fardo

superior à pessoa. A gente tem que passar por determinadas coisas. Então, eu acho isso é muito

importante: a gente aceitar as coisas que estão para vim, sem questionar se eu mereço ou não.

Devo merecer. Se eu estou passando por aquilo é porque devo merecer aquilo. Eu penso assim, e

peço a Deus sempre para me ajudar a continuar pensando assim. Que Deus, que Jesus é justo, que

nada acontece fora de uma ordem. Às vezes a gente fica: “ah meu Deus, será que vai acontecer

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isso?” Um filho que viaja, muita chuva. Procuro serenar o pensamento e se tiver de acontecer

aquilo, vai acontecer e tudo. Mas, graças a Deus, nunca aconteceu nada ruim, não. A gente fica

até assim: “oh, meu Deus, acontece com tanta gente!” Tem gente assim, assado. Tanto caso triste.

A gente nunca passou por isso e tem gente que já passou por muita coisa! Então, a gente tem que

agradecer muito. É o que eu faço sempre. Toda noite eu tenho que agradecer a Deus o dia que eu

tive, a vida que eu levo, os meus filhos, marido e tudo. Meu pai morreu de repente! Foi

fulminante o ataque cardíaco, sabe? Ele morava em Juiz de Fora e mamãe ficou sozinha e foi

aquele negócio: uns achavam que ela devia ficar lá na casinha dela e outros achavam que ela

devia vir morar com um filho. Ela toda vida com um gênio muito bom. Se dava

maravilhosamente com genro, nora, sabe? Então, não teve problema. Eu trouxe ela aqui pra casa

e ela costurava. Até oitenta e tantos anos ela costurava. Costurava pra fora. E tinha assim, uma

conversa, dava muito conselho. Então, aqui em casa vivia cheio de vizinho. Naquele tempo não

tinha ladrão igual tem hoje, então, ficava aberto ali o portão, abri pra ela a sala de costura ali

embaixo, independente. Vinha gente só pra conversar. Ela vivia aqui comigo até morrer. Ela não

ficou doente, de cama, nem nada, não. Ela ficou assim, desanimada... Na véspera, da morte dela

nós fizemos até um culto. Estava fazendo muito frio. Fizemos um culto que a gente fazia toda

semana. Fizemos no quarto dela, ela participou, etc. E eu ia levá-la até para fazer um exame, que

ela estava com o coração assim, muito fraquinho, quando eu cheguei assim, ela já tinha morrido.

Eu chamei, mas... morreu assim. Muito suave, tranquilo. A gente sente, mas dá graças a Deus de

não ficar na cama, toda vida doente. Então é assim, é um conforto. Tudo isso ajuda. Tenho

alegria de ter nascido na família que eu nasci. Dos meus pais, os tios. Já morreram,

desencarnaram todos. Na família da mamãe eram 11 vivos. Pobres, lutaram, estudaram e

praticaram mesmo. Família grande. Um era poeta, outro era escritor, outro era orador. Então, isso

tudo me trás satisfação. E os filhos também graças a Deus, os netos. Então, a gente tem que

agradecer tudo isso. Não faço questionamentos. Eu sinto é não poder trabalhar mais. Eles falam

que eu trabalho demais: “Nossa senhora, para um bocadinho!”. Eu levando cedo. Eu não tenho,

estou satisfeita comigo. Às vezes, eu converso com a pessoa e falo: “oh, meu Deus, porque está

queixando tanto?” É tanta coisa que a gente fica até às vezes com vergonha de não poder fazer as

coisas, de ver a diferença às vezes de idade. Porque eu, por exemplo, ando muito esquecida,

ultimamente. Às vezes, eu quero lembrar um negócio, esqueço, depois eu lembro. O meu marido

também está assim, então fala: “como é que chama fulano de tal?”. E eu falo: “ah, esqueci.”

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Depois fica: “ah, fulano de tal, eu lembrei!” Mas, eu converso com minha filha, que está

trabalhando, e ela: “ih, eu não lembro mais disso, não!” Então, eu falei: “uai, nós dois... está

bom!” Porque a gente na idade que tem e a minha filha caçula também está esquecendo! Então,

assim, não é problema. Porque tem gente que tem memória boa. Minha mãe, por exemplo, tinha

uma memória que tudo a gente perguntava: “mamãe vou fazer isso assim, assim, não deixa eu

esquecer, não”. Ela não deixava mesmo não, ela falava com você: “oh, você lembrou, você esta

lembrando? Tem pessoas que tem capacidade de guardar mais coisas, outras não têm. Eu, por

exemplo, esqueço, não sei se é porque não presto a atenção. É, porque eu faço muita coisa. Ele,

enquanto não acaba uma coisa, não começa outra e eu, faço uma porção de coisa de uma vez.

Então, às vezes, eu falo com minha empregada, ela tem a cabeça boa: “oh, me ajuda, porque se eu

estiver esquecendo você me ajuda aqui, porque a cabeça não está boa, não”. Eu fico fazendo uma

coisa, outra e esqueço. Fazer projetos eu acho que não devo ficar fazendo, não, porque com

oitenta e dois anos... mais alguns anos e eu não dou conta de acabar, de executar o projeto. Mas,

por exemplo, estou cheia de peças de pano pra cortar lá pro Centro. Então, eu não gosto de deixar

serviço para fazer. A S. fala: “Faz quando puder, corta quando puder”. Eu mandei pra Brasília

segunda-feira uma porção de costurinha, para os pobres de lá também, que a minha amiga

mandou, que a outra lá fez tudo errado, eu concertei e mandei. Ontem ela ligou: “oh, já chegou”.

Isso o que, eu falei: não deixo pra depois. Muitos: “ah não, vou deixar isso pra fazer isso, mês

que vem eu faço,..Não sei se mês que vem eu estou viva ou não. Então, não gosto de deixar

serviço pra depois, o que eu puder fazer eu já vou fazendo. Não sei, projeto mesmo... eu não

assumo compromisso. Eu falei até com M.: “ah, M., eu não assumo compromisso não, porque

hoje eu estou boa, estou andando, mas amanhã, a perna está ruim, não vou.” E eu não vou deixar

gente na mão. Eu sei como que é ruim quando se trabalha em equipe, e que um que faz

determinada coisa não vai. É chato. São uns projetos assim que eu não faço não. Mas já falei com

meu filho que outro dia ouvindo jornal, vi um curso de computação, e falei: “esse ano está no

projeto eu melhorar”. Porque eu já mexo com computador e tudo, mas tem uma porção de coisa

que tenho que perguntar ‘ih, não deu certo isso aqui, como é que faz e tudo?” “Vai lá!” eles

falam: “ah, a senhora tem que ligar em fevereiro, só em (acho que março, não sei) abril que vai

começar outro curso, porque já está cheio.” Eu tenho um caderninho que eu tomo nota de tudo e

eu até, meu filho que é o mais novo dos três, falou: “oh, mamãe a senhora lembra de coisa que a

vovó contava aqui?” (meu marido gosta muito de família, de fazer árvore genealógica e

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perguntava muito à mamãe). E então, ele falou assim: “A senhora podia escrever lá no centro!”

Porque ultimamente, quem está frequentando lá sou eu, dona M., só as mais velhas, não tem

mais. Então, a gente lembra de muita coisa do Centro, quando era barraco. Porque isso perde,

porque vai chegando gente nova e a pessoa não sabe. É historia da casa. Eu pensei bem, eu falei:

“mas é mesmo!” Foi bom porque eu aprendi a mexer com computador, escrevi a historia do

Centro, desde quando tudo foi criado. Está guardada no Centro. Fui eu que escrevi. Não foi livro.

É um documento com tudo o que aconteceu, como é que era o Centro, como é que foi dividido,

as reformas, a data. Tudo certo. Data e tudo eu olhei no livro de ata, porque é um documento.

Ficou bom.