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SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros PRETTO, N.D.L. Educações, culturas e hackers. In: Educações, culturas e hackers: escritos e reflexões [online]. Salvador: EDUFBA, 2017, pp. 29-64. ISBN: 978-85-232-2019-8. https://doi.org/10.7476/9788523220198.0004. All the contents of this work, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International license. Todo o conteúdo deste trabalho, exceto quando houver ressalva, é publicado sob a licença Creative Commons Atribição 4.0. Todo el contenido de esta obra, excepto donde se indique lo contrario, está bajo licencia de la licencia Creative Commons Reconocimento 4.0. Escritos Educações, culturas e hackers Nelson De Luca Pretto

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SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros PRETTO, N.D.L. Educações, culturas e hackers. In: Educações, culturas e hackers: escritos e reflexões [online]. Salvador: EDUFBA, 2017, pp. 29-64. ISBN: 978-85-232-2019-8. https://doi.org/10.7476/9788523220198.0004.

All the contents of this work, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International license.

Todo o conteúdo deste trabalho, exceto quando houver ressalva, é publicado sob a licença Creative Commons Atribição 4.0.

Todo el contenido de esta obra, excepto donde se indique lo contrario, está bajo licencia de la licencia Creative Commons Reconocimento 4.0.

Escritos Educações, culturas e hackers

Nelson De Luca Pretto

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EDUCAÇÕES, CULTURAS E HACKERS

Quando encontramos a resposta, mudaram a pergunta.

Eduardo Galeano

Começo este livro com uma provocação a nós mesmos, professores ou não. E a faço com uma imagem que gosto muito e que me foi apresentada pelo escritor uruguaio Eduardo Galeano, autor do histórico As veias aber-

tas da América Latina, em uma sessão de depoimentos no Fórum Social Mundial de 2001, em Porto Alegre. Galeano começou a sua fala, em um auditório superlotado, lembrando uma pichação encontrada no muro de alguma cidade da América Latina, que serve como epígrafe deste capítulo. Penso ser esse o nosso momento histórico, com especial destaque para o campo educacional. Um momento dramático, justamente porque, talvez, estejamos realizando muito esforço para responder perguntas que não são mais aquelas postas à mesa.

Este capítulo, maior do livro, está estruturado em blocos, que se interconectam e que buscam dar o tom geral de toda a obra. Como já

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disse na introdução, resolvi sistematizar alguns textos autorais 1, que cir-cularam anteriormente em ambientes mais restritos, para construir essa narrativa de forma a apresentar uma síntese de nossas pesquisas mais re-centes2 e dos diálogos mantidos no interior do nosso grupo de pesquisa e com colegas de outras instituições e grupos sociais.

Primeiro, começamos com uma breve análise da História da com-

putação. Seguimos pela Ética dos hackers, passando pelas Redes e as políticas

de inclusão digital. Adiante, discutiremos a apropriação dessas Redes e os

movimentos ativistas. Com um breve debate sobre a Cultura chegaremos às nossas Educações.

Um bom começo: a computação

O primeiro bloco deste capítulo nos levará a retomar um pouco sobre a história da ciência da computação. Poderia ser outro marco temporal, claro, mas para o que me proponho aqui creio ser uma razoável escolha. Então, fixemos temporariamente nosso olhar no desenvolvimento cien-tífico e tecnológico da ciência da computação e, de modo mais particular, na internet, em função da sua centralidade no mundo contemporâneo.

Estamos nas décadas de 1950 e 1960. A transformação das in-formações em zeros e uns, trazida pelo digital, possibilitou a montagem de grandes redes de comunicação pela implantação da chamada rede das redes, a internet. Rede que, num primeiro momento, estava vinculada a interesses militares associados aos acadêmicos. Foi com a apropriação dessa rede, a partir da utilização das BBS (Bulletin Board System) que jovens hackers começaram a transformar – a bem da verdade, a criar – uma rede horizontalizada para a permuta de informações. Essas BBS ‒ montadas com a generosidade de cada um dos hackers, que conectava seu computa-

1 Capítulo escrito a partir dos artigos: Educação e cultura digital: professores autores, para a publicação Cultura Digital e Educação: Novos Caminhos e Novas Aprendizagens, v. 8, distribuído pela Fundação Telefônica, em 2013; Professores-autores em rede, escrito para o VIII Seminário WebCurrículo, realizado na PUC-SP, de 12 a 14 nov. 2012; e Hackear a educação, originalmente publicado na revista Facta #3, em 19 ago. 20142 Destaco aqui as pesquisa apoiadas pelo CNPQ, com a chamada bolsa de Produtividade em Pesquisa (PQ - 2014-2018) e edital Universal 14/2014.

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dor pessoal a um modem, via linha telefônica também pessoal, permitindo que outros computadores e pessoas pudessem se conectar ‒ viabilizaram a montagem de uma rede de comunicação entre eles, o que, de fato, deu ori-gem à internet como a conhecemos hoje. E tudo isso numa surpreenden-te velocidade, desde aqueles primeiros momentos, em meados do século passado, até os dias de hoje. Pois foi justo pela presença dessa turma jo-vem, que depois ficou conhecida como hackers, que esse desenvolvimento se deu de forma mais acentuada e, principalmente, diferenciada. Aqueles que, ainda jovens, cabeludos e comendo comida chinesa nos restauran-tes de Boston3, onde se situava o Massachussetts Institute of Technology (MIT), animavam-se com os seus jogos-criações, reuniam-se nas garagens das casas e nas universidades, transformando esses toscos ambientes em verdadeiros laboratórios científicos e tecnológicos. Foram eles, assim, os principais responsáveis pelo início do desenvolvimento de um sistema e de uma linguagem que deixariam marcas indeléveis na História. Ao longo desse tempo, foram construídas máquinas que, posteriormente, passaram a ser denominadas, com muita naturalidade, computadores, e se tornaram parte indissociável de nossas vidas.

O importante é compreender que esse processo foi, em sua es-sência, colaborativo (não excluindo o fato de ter havido muitas brigas!). Desenvolvidos os protótipos dos computadores primordiais, ainda enor-mes máquinas que ocupavam salas inteiras, criavam-se as primeiras redes para que eles pudessem falar entre si; para tal foram criadas várias lingua-gens que viabilizasse essa comunicação a distância. O protocolo TCP/IP (Transfer Control Protocol/Internet Protocol) terminou prevalecendo como a grande pilha de protocolos que possibilitou essa interação massiva.

Um salto no tempo e no espaço rumo à Europa, mais especifica-mente, aos laboratórios do European Organization for Nuclear Research (EONR, em português: Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear), na Suíça, nos leva à Tim Bernes-Lee, que criou World Wide Web (cha-mada popularmente de web ou simplesmente www). O que percebemos nesse processo de criação da internet é que a denominada rede das redes

3 LEVY, S. Os heróis da revolução: como Steve Jobs, Steve Wozniak, Bill Gates, Mark Zuckerberg e

outros mudaram para sempre as nossas vidas. São Paulo: Évora, 2012.

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(uma meta rede) recebeu essa denominação por uma única e fundamen-tal razão, vital para o nosso raciocínio: o sistema desenvolvido partiu do princípio de que não era preciso modificar o que já existia e, sim, criar um protocolo (ou muitos) que conectasse as máquinas já existentes, ou seja, o diferente. Cada um usaria o sistema operacional que desejasse (eu só uso os livres, claro!), e a comunicação aconteceria mesmo assim, sem precisar transformar as redes diferentes numa mesma rede, isto é, sem precisar transformar o diferente no igual. Outro princípio fundamental definiu que não importava o que cada computador recebia no nó da rede a que ele estava conectado. O que era recebido devia ser entregue, sem se olhar o teor das informações contidas nos pacotes de dados que ali circulavam (no jargão da computação: todos os bits são neutros) e nada seria cobrado por isso. Essa é a razão pela qual eu e você, leitor(a), podemos conversar sem custos diretos, estando em qualquer outro lugar do planeta. Na verdade, isso se dá com um jeitão meio “economia solidária de ser”, pois o custo é diluído por todos.

Voltemos aos hackers.Como eles estavam na base do próprio desenvolvimento da inter-

net, esses princípios estavam presentes desde aquele momento. O exemplo maior disso é o movimento do software livre (ou do software aberto, dis-tinção que dá uma boa discussão, mas na qual não vou entrar aqui)4. Pois bem, o movimento software livre tem como base justamente o comparti-lhar a informação, o não se preocupar (muito) com o erro, colocando-se na roda as descobertas de cada um, de maneira a estimular a comunidade a buscar coletivamente o aperfeiçoamento do sistema. Desta forma, todos participam do desenvolvimento e, quanto mais usamos os softwares, mais eles se aperfeiçoam.

Esse trabalho mais coletivo que levou à linguagem binária, ao di-gital e ao desenvolvimento de novos aparatos (os computadores!), incluía a resolução dos problemas de forma compartilhada e a sua socialização em rede. Nasciam as comunidades do movimento, como temos hoje as comu-

4 Para saber mais, tem um livro bacana que traz isso bem explicadinho, com todas as informações: Do regime de propriedade intelectual: estudos antropológicos, organizado por Ondina Fachael Leal e Rebeca Hennemann Vergara de Souza, publicado pela Tomo Editorial, em 2010.

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nidades do Gnome, Debian, Inkscape e diversas outras associadas a cada um dos sistemas, distribuições ou softwares de aplicação. E cada solução alcançada circulava para ser objeto de crítica de novos colaboradores. Era o início do conhecido na computação como RFC (Request For Comments

- solicitação de comentários). O RFC nada mais é do que pôr uma ideia (uma solução) na mesa, aguardando a colaboração dos demais. Os mais antigos devem se lembrar de como era difícil usar um computador com o GNU/Linux (essa denominação GNU/Linux no lugar de somente Linux é outro importante debate, mas que não vou aqui entrar)5. Pois, enfim, usamos, e usamos muito, vários softwares e a comunidade os foi aperfeiço-ando; à medida que os problemas apareciam, íamos, de uma forma ou de outra, dando ciência aos desenvolvedores e eles, assim, podiam buscar o aperfeiçoamento dos programas. Conforme nos conta Steven Levy, essa turma, organizada em torno desses clubes juvenis, reunia-se para resolver os problemas tecnológicos que iam surgindo e, com isso, criavam e desen-volviam novos protótipos. Enquanto esses jovens inovavam tecnologi-camente, criavam ao mesmo tempo o que Levy denominou de código de ética dos primeiros hackers. Claro, muitas empresas e pessoas com capital investiram nisso, como, por exemplo, o empresário milionário sul-afri-cano Mark Shuttleworth, do Ubuntu (que muitos afirmam já não ser um sistema tão livre assim!), que investiu muito no desenvolvimento do sis-tema a partir da empresa Canonical6.

Não nos propusemos a fazer mais do que essas pequenas pílulas dessa linda, grande e longa história da ciência e, para não nos prolongar-mos muito, quero apenas registrar que o resultado de tudo isso é a possi-bilidade de constatar que uma única geração, a minha por exemplo, teve a oportunidade de acompanhar o desenvolvimento das Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) de maneira surpreendente, pois, temos a possibilidade de ver nascer e morrer algumas tecnologias de comuni-cação, repito, no curso de uma única geração. Penso que o exemplo mais evidente desse movimento é a televisão. Nos meus primeiros anos de vida,

5 Para saber mais, veja o artigo de Richard Stallman (da Free Software Foundation) sobre o tema: <https://www.gnu.org/gnu/linux-and-gnu.pt-br.html>. Acesso em: 24 jul. 2017.6 <https://www.canonical.com>. Acesso em: 24 jul. 2017.

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lá pelo início dos anos 1960, acompanhei a implantação na cidade onde morava, Joaçaba, Santa Catarina, da primeira emissora local de televisão, que funcionou ao vivo durante meia dúzia de dias, transmitindo direto do clube social para cerca de cinco aparelhos de televisão, espalhados nas lanchonetes e bares da cidade.7 Hoje, a televisão que vi nascer já podemos dizer que está morta, o que também já foi dito por George Gilder8 em seu A vida depois da TV. Morreu enquanto tecnologia e, principalmente, implodiu enquanto modelo, em especial por conta do digital e da internet. Isso é válido tanto para a televisão quanto para muitas das tecnologias digitais de informação e de comunicação.

E esse desenvolvimento não para. Recentemente circulou na web um prognóstico realizado pelo pesquisador Reto Meyer que, com base em estudos de várias publicações9, pode fazer alguns interessantes prognósti-cos, indicando que:

• Nos próximos 50 anos, vamos praticamente descobrir, ou mesmo inventar, 95% do conhecimento que temos hoje.

• Em 2011, a quantidade de informação no mundo estava sendo duplicada a cada 11 horas.

• Em 2015, o Google deve ter indexado em torno de 775 bilhões de páginas e um em cada quatro computadores vendidos deve ter sido um tablet.

• Em 2020, a transmissão de dados aumentará 44 vezes e a velocidade de banda larga doméstica será 20 vezes superior a de hoje.

• Em 2030, um disco rígido (HD externo) poderá ser comprado por cerca de U$100 e abrigará 600 anos de vídeo em qualidade de DVD, tocando sem parar durante 24 horas por dia, 7 dias por semana. A velocidade de conexão em sua casa poderá chegar a 100 Gbps e a velocidade de processamento dos computadores será a mesma do cérebro humano.

7 Essa pequena história conto em mais detalhes no meu livro Uma dobra no tempo: um memorial

(quase) acadêmico, lançado pela EDITUS, em 2015.8 GILDER, G. Life after television: the coming transformation of media and American life. Pennsylvania: W W Norton & Co Inc, Scranton, 1992.9 As fontes utilizadas pelo autor estão no infográfico disponível em: <http://www.tecmundo.com.br/5085-tudo-o-que-voce-pode-esperar-da-tecnologia-ate-2030.htm>. Acesso em: 12 dez. 2010.

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Essas espantosas transformações das tecnologias demandam um olhar mais atento para outras questões subjacentes a esse veloz e alucinado desenvolvimento. A pressão da indústria e do mercado de tecnologia é muito grande, sendo evidente o interesse em um maior consumo de todos esses aparatos. Somos levados a adquiri-los de forma quase inconsciente e, como não poderia deixar de ser, essa pressão ocorre também sobre a esco-la. Acompanhar e compreender esses fenômenos requer um olhar atento para o próprio processo de desenvolvimento tecnológico e da sociedade.

Este capítulo não objetiva proceder a esta análise por completo, mas se propõe a levantar em algumas alternativas para fazer frente a essa lógica que, por um lado, traz possibilidades revolucionárias e, por outro, pode se constituir em um processo de aniquilamento das próprias poten-cialidades proporcionadas pelas tecnologias digitais.

Assim, avançamos nessas reflexões em busca de analisar, de início, dois aspectos que nos parecem fundamentais para o contexto em questão: o espírito hacker em busca de uma ética hacker e o papel do software livre na sociedade e, especialmente, no campo educacional.

Os softwares livres e a ética dos hackers

Comecemos pelo software livre (free software). Quando falamos em sof-

twares livres, não nos referimos a software grátis. Referimo-nos, essen-cialmente, à ideia de free como liberdade e não gratuidade, à ideia de um sistema no qual a liberdade é parte de sua criação e integrante do todo o processo. Portanto, o acesso ao código-fonte é uma condição necessária ao software livre porque permite que se possa executar e estudar o progra-ma, redistribuir cópias e aperfeiçoá-lo, aspectos que conformam as liber-dades definidas pela Fundação do Software Livre (FSF).10

10 Disponível em: <http://www.gnu.org/philosophy/free-sw.pt-br.html>. Acesso em: 28 out. 2011.

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O movimento do software livre, portanto, ‒ e nas palavras do pes-quisador e ativista Sérgio Amadeu da Silveira11 ‒, é “[...] um movimento baseado no princípio do compartilhamento do conhecimento e na soli-dariedade praticada pela inteligência coletiva conectada na rede mundial de computadores.” Como aponta o referido autor, a sua criação é fruto do esforço de mais de 400 mil desenvolvedores espalhados por todos os continentes, numa grande rede planetária. Portanto, o papel do software livre é básico para se compreender que esse movimento situa-se no plano político, indo muito além das dimensões técnicas, tendo a liberdade como característica fundamental. Nesta concepção, a cooperação leva à criação e, o mais importante, desconfigura a ideia de um poder centralizador da informação.

O movimento do software livre, tocado por aqueles apaixonados pela computação e pela solução de problemas, ganha espaço na socieda-de e, para melhor compreendê-lo, dois livros são importantes marcos. O primeiro foi escrito pelo jornalista Steven Levy12, em 1984, e publicado no Brasil em 2012, com o título Os heróis da revolução: como Steve Jobs, Steve

Wozniak, Bill Gates, Mark Zuckerberg e outros mudaram para sempre as nossas

vidas; o outro, referência importante para quem está atento ao tema, é o livro do filósofo finlandês Pekka Himanen13: A ética dos hackers e o espírito

da era da informação. Dos dois livros podemos elencar alguns princípios que regem o movimento dos hackers e que podem ser úteis para as nossas reflexões sobre educação.

Mas antes, uma primeira distinção é necessária. Quando se pensa em hacker, é comum que se pense num criminoso que age entre os zeros e uns da internet, roubando senhas e quantias em dinheiro. Entretanto, o estereótipo do vilão online não representa adequadamente os hackers. Para os vilões, foi inclusive criada a palavra cracker, para identificar esses crimi-

11 SILVEIRA, Sergio Amdeu. Formatos Abertos. In: SANTANA, B. et al. Recursos educacionais

abertos: práticas colaborativas políticas públicas, Salvador: EDUFBA; São Paulo: Casa da Cultura Digital, ano. p. 36.12 LEVY, Stevie. Os heróis da revolução: como Steve Jobs, Steve Wozniak, Bill Gates, Mark Zuckerberg e outros mudaram para sempre as nossas vidas. São Paulo: Évora, 2012.13 HIMANEN, Pekka. et al. La ética del hacker y el espíritu de la era de la información. Trad. Ferran Meler Ortí. New York: Ediciones Destino, 2002.

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nosos cibernéticos, que não têm nada a ver com o jeito hacker a que aqui nos referimos. Portanto, a única forma de combater a marginalização do termo hacker é a população receber informações sobre o assunto e ser edu-cada para não vê-los como terroristas virtuais, mas, sim, como um grupo de pessoas em busca da construção coletiva do conhecimento. Conforme síntese que fazemos dos dois livros anteriormente referidos, para o ha-

cker, o acesso aos computadores e a qualquer coisa que possa ensinar algo sobre o funcionamento do mundo deve ser irrestrito e total. Além disso, o hacker faz o que gosta, do jeito que gosta e quando gosta e, assim, cria coisas úteis para a sociedade e espera reconhecimento em troca. Por isso, os hackers devem ser julgados por suas ações, não por critérios artificiais, como diplomas, idade, raça ou posição. De outro lado, as criações dos ha-

ckers devem estar sempre disponíveis para serem aperfeiçoadas, sendo im-portante não confiar nos argumentos de autoridade e, ao mesmo tempo, promover sempre a descentralização das produções e decisões. Um hacker tem participação ativa no seu grupo social, por isso gosto de usar a ex-pressão ativismo quando a eles estou me referindo. Os hackers produzem conteúdos e os colocam logo na roda – e na rede! – para que possam ser testados e aperfeiçoados por todos. Eles reconhecem o esforço do outro e dão créditos aos desenvolvedores anteriores. Para o movimento hacker, é importante sempre inovar, buscando constantemente melhorar o que foi produzido. Isso porque, para eles e para nós, os computadores podem mudar sua/nossa vida para melhor. Mas é necessário dedicar-se ao que se faz e acreditar que é possível criar arte e beleza por meio do computador.

Sob essa perspectiva, ao mencionar a ética dos hackers, referimo--nos àquelas pessoas encantadas pela programação, podendo ser a me-ninada, os jovens ou os não tão jovens que, com os seus jeitos, às vezes um pouco estranhos, sentam na frente do computador e ficam horas a fio concentrados, desenvolvendo possibilidades de uso e de novas descober-tas, colocando-as logo disponíveis na rede. São aqueles que, ao fazerem isso, se expõem, distribuindo inclusive soluções ainda não concluídas, ou seja, assumindo a possibilidade do erro, a incompletude de uma ideia ou solução, atitudes que a escola valoriza cada vez menos. A princípio, essa discussão estava associada aos entusiastas da computação, mas ao perceber

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os valores associados à denominada ética dos hackers, podemos extrapolar e dizer que esses são valores que podem estar ligados a qualquer profissão e, no nosso caso, com especial ênfase ao campo educacional, o que fare-mos mais adiante. Novamente, retomamos a importância do compartilha-mento como algo muito importante.

Bastante empregada na discussão em torno da ética dos hackers e do software livre é a citação atribuída a Bernard Shaw e que gostaria de trazer aqui como forma de fortalecer a ideia da partilha, estruturante do nosso raciocínio: “Se você tiver uma maçã e eu tiver uma maçã, e trocar-mos as maçãs, então cada um continuará com uma maçã. Mas se você tiver uma ideia e eu tiver uma ideia, e trocarmos essas ideias, então cada um de nós terá duas ideias.”14

A partir dessa citação trazemos à discussão o tema do rossio não rival, proposto por Imre Simon e Miguel Said Vieira, no livro Além das

redes de colaboração: internet, diversidade cultural e tecnologias de poder. Para os autores, o rossio não rival corresponde àquele espaço público que pos-sibilita a troca entre as pessoas, constituindo-se no bem comum e que possibilitou as grandes transformações sociais, culturais e tecnológicas que temos vivido. Para tal, eles nos propõem verificarmos isso em quatro atos, a saber:

• Ato um: a tecnologia digital viabiliza armazenar e processar os bens de rossios não rivais.

• Ato dois: a rede dissemina os bens dos rossios não rivais.• Ato três: estudo e análise acadêmica.• Ato quatro: a política.

Ao desenvolverem esses quatro atos, os autores percebem e pro-põem o reconhecimento das possibilidades trazidas pela internet que, em sua essência, foi construída como um rossio não rival, Portanto, nos re-ferimos às possibilidades de transformações por meio da política, com o intenso uso da internet e dos computadores, como vamos ainda traba-

14 Citado por SIMON, Imre; VIEIRA, Miguel Said. O rossio não rival. In: PRETTO, Nelson De Luca; SILVEIRA, Sergio Amadeu. Além das redes de colaboração: internet, diversidade cultural

e tecnologias de poder. Salvador: EDUFBA, 2008, p. 15.

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lhar neste capítulo e que também aparecerá nos artigos de divulgação que compõem a segunda parte deste livro.

Com a filosofia hacker, outra cultura se estabelece ao enfatizarmos a paixão, o trabalho solidário e colaborativo como elementos socialmente necessários para a construção de um mundo sustentável. Entretenimento, trabalho, cultura, educação, ciência, tecnologia, todos os campos podem e deveriam estar imersos nessa cultura, onde o prazer em construir seja o mote realizador das ações. Dessa forma, Imre Simon e Miguel Said Vieira tratam o tema a partir dos dois primeiros atos. Os dois últimos atos pro-postos por eles são justamente aqueles que cobram de nós, acadêmicos, maior estudo e o desenvolvimento de novas pesquisas sobre todas essas questões que aqui estão sendo postas, uma vez que, para eles, estas inves-tigações estão apenas “engatinhando”.15

Mais ainda ‒ e na nossa perspectiva uma dimensão crucial para todo esse momento de forte disputa ‒, o desenvolvimento dessas pesqui-sas sobre o tema precisa estar associado à uma ação política mais contun-dente de cada um, pois é necessário politizar o debate, uma vez que, “[...] ele não pode continuar sendo tratado apenas da perspectiva privada, das vantagens estritamente individuais.”16

Insisto trazendo esses dois autores em mais dois momentos trata-dos por eles no encerramento do capítulo O rossio não-rival

17:

O fato de que a internet foi inicialmente estruturada de forma análoga a um rossio (isto é, seus protocolos são abertos e livre-mente utilizáveis, os bens que compõem sua estrutura são, em grande parte, compartilhados, e, de maneira geral, seu funcio-namento é descentralizado) provavelmente conta a favor para ampliar a participação possível no debate político.

Mas o alerta precisa ser dado, pois isso, em hipótese alguma, sig-nifica que vivemos o melhor dos mundos:

15 SIMON; VIEIRA, op. cit., p. 25.16 Id., ibid., p. 25. 17 Id., ibid., p. 25.

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[…] é certo também que a situação é muito melhor do que a que vivemos com os meios de comunicação de massa, nos quais, na prática, a comunicação possível é majoritariamente unilateral e mercantilizada. Há muito mais pessoas em nossa sociedade capazes de expressar e compartilhar seus pontos de vista pela internet do que por meios de comunicação de massa. A concretização dessas possibilidades poderá depender da rea-lização eficiente e culturalmente atrativa de novos e poderosos rossios não-rivais.18

Essa é a disputa posta na mesa e essa perspectiva de abertura e do bem comum tem sido duramente combatida por aqueles que não querem ver a materialização de uma política de compartilhamento e de plena ex-pressão na internet. Enfrentar essa disputa demanda construir políticas públicas em diversos campos, como a cultura, a educação, a ciência e a tecnologia.

Alexandre Oliva, representante da Free Software Foundation (FSF) para a América Latina, em conversa pessoal, afirmou de forma ca-tegórica: “Querem nos fazer crer que o pilar moral de compartilhar tem mais a ver com saquear um navio do que acender uma vela com outra”. Essa metáfora da chama da vela, muitas vezes, é confundida com o simples copiar-colar, principalmente no campo educacional. Insistimos no aspec-to da cópia como uma dimensão do compartilhamento e não da simples cópia que, seguramente, foi facilitada e até intensificada a partir das tec-nologias digitais, computadores e internet e que condenamos, a modo de um simples plágio. Essa possibilidade de trocar de modo permanente, de copiar e remixar, portanto, recriar, é o que estamos preconizando como um dos pilares maiores que deveria sustentar os processos educacionais e, nesse sentido, o próprio processo da simples cópia seria esvaziado, pois não se preocuparia com o resultado – a cópia –, mas sim com o processo de recriação associado a tudo isso.

A Ética hacker vem demonstrando – através de iniciativas bem-su-cedidas, a exemplo do GNU/Linux, Wikipedia, e agora com o que vem sendo denominado de Recursos Educacionais Abertos (REA), que a mo-

18 SIMON; VIEIRA, op. cit., p. 25.

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tivação para criação de software está no alcance social dessas ações. Vemos a cultura hacker como um novo campo de luta pela socialização dos bens culturais e científicos. Portanto, como afirma Pekka Himanen: “[...] quan-to mais se pensa no modo de agir e de ser dos hackers, o que mais resul-ta interessante, em termos humanos, é o enorme ‘desafio espiritual’ para nossa época.”19 (tradução nossa).

Os desafios estão postos. Adentramos, mais uma vez e antecipan-do o que ainda será desenvolvido adiante, no caminho da construção de outras educações, em seu plural pleno, com o fortalecimento dos nossos mestres, verdadeiros professores-autores em rede. No entanto, necessário olhar com mais atenção para os computadores e a própria rede.

Internet e computador não são ferramentas

Chegamos assim a mais uma dimensão da questão que queremos tratar nesse livro: os computadores e as tecnologias digitais. Insisto na ideia já defendida por mim em diversos outros textos, de que a internet e os com-putadores não podem ser considerados meras ferramentas auxiliares dos processos científicos, culturais e educacionais20. Precisamos entendê-la enquanto espaço social, como bem argumenta Mark Poster:

[os efeitos da internet são] mais como os da Alemanha do que como os dos martelos. Os efeitos da Alemanha sobre as pessoas dentro dela é o de torná-los alemães (pelo menos na maior par-te dos casos); os efeitos do martelo não é fazer com que as pes-soas sejam martelos, embora os heideggerianos e alguns outros possam discordar, mas pregar pontas metálicas na madeira. Enquanto entendermos a (i)nternet como um martelo, vamos deixar de compreendê-la como compreendemos o exemplo da Alemanha. O problema é que as perspectivas modernas ten-

19 HIMANEN, Pekka et al. La ética del hacker y el espíritu de la era de la información. Trad. de Ferran Meler Ortí. Barcelona: Ediciones Destino, 2002. p. 10.20 PRETTO, Nelson De Luca. Uma escola sem/com futuro: educação e multimídia. Campinas: Papirus, 1996; PRETTO, Nelson De Luca. Redes colaborativas, ética hacker e educação. Educ. Rev. [on-line], Salvador, v. 26, n. 3, p. 305-316, 2010. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S0102-46982010000300015>. Acesso em: 23 nov. 2012.

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dem a reduzir a (i)nternet a um martelo. Na grande narrativa da modernidade, a (i)nternet é uma ferramenta eficaz de co-municação, que adianta os objetivos de seus usuários, enten-didos como pré-constituídos de identidades instrumentais.21 (grifo nosso; tradução nossa)

O fato é que continuamos a observar a escola pensando as tecnolo-gias digitais como recursos auxiliares ou animadores da educação, ao con-trário da maneira como as compreendemos. Para nós, essas tecnologias precisam se constituir em obstáculos construtivos e desafiadores para a criação. Insistimos que as políticas públicas que buscam introduzir as TIC nas escolas não podem continuar com essa perspectiva e, muito menos, referir-se a elas a modo de tecnologias educativas. Nos últimos tempos, com a implantação, entre outros, do Projeto e posteriormente o Programa Um Computador por Aluno (PROUCA), observamos isso de forma contun-dente, pois ao longo dos anos que o programa vem (foi?!) sendo gestado, buscou-se, antes de tudo, inserir a pedagogia dentro do computador para que ele se transformasse, de fato, em mais um elemento pedagógico a ser introduzido na escola.22 Não custa lembrar que já fizemos isso com o livro que se tornou didático, a televisão que se transformou educativa e forne-cedora de aulas, e também com os computadores que foram aprisionados nos laboratórios. Fizemos isso com a internet, que virou um conjunto de portais educativos, denominados por André Lemos, da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia (UFBA), de “portais-cur-rais”. Lemos23, ao denominá-los dessa forma, fazia uma forte crítica, segui-da por nós em diversos outros textos24, de que ao proceder nesse sentido,

21 POSTER, Mark. Whats the matter with the Internet. Minneapolis: University of Minnesota, 2001, p. 177.22 Meu orientando, Harlei Vasconcelos Rosa, desenvolveu sua pesquisa de doutorado justamente buscando identificar essa tendência, analisando os computadores portáveis do Programa UCA em sua tese Tecnologias digitais e educação: os dispositivos móveis nas políticas

públicas de inserção das tecnologias na escola, 2017. 23 LEMOS, André. Morte aos portais. Disponível em: <http://www.facom.ufba.br/ciberpesquisa/andrelemos/portais.html>. Acesso em: 20 out. 2000.24 Disponível em: <http://www2.ufba.br/~pretto/textos/so%20na%20net/currais/abaixoo%20portais.htm>. Acesso em: 23 nov. 2012.

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o que buscávamos era organizar as informações para facilitar a navegação dos leitores e, no caso da educação, dos professores e alunos. Ora, o gran-de mérito da internet foi desorganizar e possibilitar que as informações estivessem disponíveis a todos, sem a mediação de um único editor, todo poderoso. Para se contrapor a isso, criaram-se (criam-se!) grupos de tra-balho, de pesquisa nas secretarias e ministérios, com o objetivo de orga-nizar o conteúdo, buscando, em última instância, organizar a internet! Se fizermos o mesmo com os computadores portáteis no modelo 1-a-1, eles serão novos livros didáticos, sem grandes diferenças. E com um alto custo financeiro! Precisamos compreender esses computadores e as tecnologias digitais como elementos essenciais de comunicação e de produção, tan-to intelectuais, quanto de conhecimento e de culturas. Os computadores, como qualquer produto cultural e científico, são simplesmente (simples-mente!?) produtos culturais e científicos e eles passam a cumprir um papel pedagógico no momento em que o professor qualificado se apropria deles intencionalmente, a rever e a modificar sua prática a partir das potencia-lidades e desafios que esses aparatos tecnológicos trazem, por exemplo, adotando o celular em sala de aula ao invés de proibi-los.

Evidentemente, não quero afirmar que não existe a necessidade de produzir software educativo, aplicativos (app), páginas para a internet, portais para a educação, a cultura, a ciência e a tecnologia. Essa não é a questão, muito pelo contrário. O fato de isso acontecer é algo realmente bom, mas esse não pode ser o foco principal das políticas públicas que pre-tendem integrar as tecnologias digitais às escolas. Por que esse não pode ser o foco? Porque o que precisamos prioritariamente é nos apropriar plenamente dessas tecnologias digitais e essa apropriação só se dará se formos capazes de produzir conteúdos e disseminá-los. Precisamos fazer com os pequenos computadores do programa Um Computador por Aluno (UCA) ‒ que já começam a ficar em desuso ‒ o mesmo que já fazemos no cotidiano com os telefones celulares e as máquinas fotográficas digitais, que passaram a fazer parte do dia a dia de boa parte das pessoas. Esse foi um processo interessante e vale recordá-lo um pouco.

Em um primeiro momento, os telefones celulares foram pensa-dos apenas para que as pessoas falassem umas com as outras fora de suas

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residências. Tempos depois, com as pesquisas e o desenvolvimento das tecnologias de distribuição de textos para aparelhos móveis, veio a se-gunda geração dos celulares, que buscou apenas fornecer conteúdo para os assinantes. Com o surgimento da geração seguinte e as possibilidades de transmissão de pacotes multimídia, os próprios usuários começaram a descobrir novas possibilidades de produção de conteúdo e não somen-te de recebimento de informações produzidas pelos grandes players do mercado, como a grande mídia, o mercado financeiro ou a indústria do entretenimento. Assim, uma rede horizontal, usuário-usuário, começou a se estabelecer e ganhar contornos inigualáveis em todo o mundo. E, além disso, afetou o tal modelo de negócios das operadoras.

Os exemplos fora do campo da educação são inúmeros. Têm sido destacados por diversos autores e provêm da música, do mercado audio-visual, dos movimentos sociais, sendo o Twitter, sem nenhuma dúvida, um dos maiores fenômenos, desde sua criação em 2006. O próprio desen-volvimento dessa rede social merece aqui um enorme parêntese, pois ele é a clara demonstração de como podemos pensar em soluções inovadoras (principalmente para a educação e para a escola) a partir de um olhar um pouco mais amplo sobre as tecnologias. Segundo Steven Johnson25, no seu livro De onde vêm as boas ideias, o desenvolvimento do Twitter aconteceu a partir de plataformas já existentes, no caso, a própria limitação de espaço da plataforma de comunicação dos celulares (os tais SMS, que no Brasil ganharam o nome de torpedo, fazendo uma referência aos antigos bilhe-tinhos enviados às(aos) namoradas(os) em pedacinhos de papel, de mão em mão). As pessoas partiram da ideia inicial de escrever “o que eu estou fazendo”, para uma apropriação tecnológica sem igual. O Twitter passou, então, a ser usado para reclamação sobre produtos, para a organização de mobilizações, para a derrubada de ditadores na chamada Primavera Ára-be, para driblar a censura, entre tantas outras coisas inimagináveis. Ste-ven Johnson denomina o fenômeno de exaltação cultural: “[...] pessoas en-contrando um novo uso para uma ferramenta projetada para fazer outras coisas”. Para ele, “[...] no caso do Twitter, os usuários vem reprojetando

25 JOHNSON, Steven. De onde vêm as boas ideias. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.

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a ferramenta.”26 Mas há ainda outro elemento que merece destaque, nos obrigando a comentar um pouco sobre aspectos mais técnicos. Segundo Steven Johnson, no livro citado, o sucesso do Twitter enquanto platafor-ma é que “[...] a vasta maioria dos usuários interage com o serviço por meio de softwares criados por terceiros”. Em suas palavras:

A diversidade da plataforma do Twitter não é casual. Ela resul-ta de uma estratégia deliberada que Dorsey, William e Stone (seus criadores) abraçaram desde o início: primeiro eles cons-truíram uma plataforma, depois fundaram o Twitter.com. Uma plataforma aberta em software é, muitas vezes, chamada de API, que significa application programming interface. Uma API é uma espécie de língua franca que aplicativos de software podem usar de maneira confiável para se comunicar uns com os outros.27

Assim, ele mostra o chamado “pulo do gato” dos criadores do Twitter:

Convencionalmente, um programador cria um software e, de-pois de concluí-lo, expõe uma pequena parte de sua funcionali-dade para programadores de fora por meio da API. A equipe do Twitter adotou a abordagem exatamente contrária. Primeiro eles criaram a API e expuseram todos os dados essenciais para o serviço, depois criaram o Twitter.com em cima da API.28

O que se quer demonstrar é que a “vantagem cooperativa” da tur-ma do Twitter foi justamente “[...] dar pleno acesso ao pulo do gato do software”. Ou seja, buscar a colaboração e com isso tornar um simples aplicativo em um dos maiores fenômenos contemporâneo da computação (e vamos ter muito mais daqui para frente, claro!).

Fechemos esse longo parêntese, reconhecendo sua importância e relacionando-o com a educação. Apesar da relevância do Twitter, não te-

26 id., ibid., p.15927 JOHNSON, op.cit., p.16028 id., ibid., p. 161

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ria o menor sentido começar a ensiná-lo na escola e, sim, utilizá-lo com todas as suas potencialidades. Mais do que isso, o que nos interessa aqui, de um lado, é perceber o quanto o desenvolvimento colaborativo pode trazer resultados surpreendentes e com isso reforçar os argumentos do nosso primeiro bloco; de outro, a partir do reconhecimento do fenômeno, compreender sua importância e a necessidade de desenvolver estratégias para que ele seja cada vez mais utilizado no cotidiano das escolas e não instalar filtros para que ele e outros aplicativos sejam bloqueados, algo que já vem se tornando realidade em muitos estados brasileiros.

Nessa linha, outro enorme destaque e que mexeu radicalmente com todo o sistema midiático foi a ampla utilização das redes sociais, es-pecialmente com as plataformas de vídeos, como Youtube, Vimeo, Face-book, Instagram e outros. Além de todas as possibilidades trazidas para o entretenimento, esses canais desempenham um importante papel no ativismo político em diversos países, ao mesmo tempo em que temos uma enorme preocupação com a concentração de poder na mão das empresas que desenvolvem e detêm a propriedade dessas plataformas.

Temos, portanto, enormes desafios e grandes possibilidades se pensarmos, de um lado, em políticas públicas que acompanhem (e contro-lem) o poder transnacional dessas empresas e, de outro, em nos apropriar dessas tecnologias a serviço de um ativismo político cidadão.

Mundo em ebulição e ativismo das juventudes

O mundo em crise, crise econômica, moral, religiosa, crise de modelos. O poderio econômico ditando as regras, determinando tudo. As grandes corporações assumindo, de fato, o controle de quase todas as coisas. Foi-se o Estado, foram-se os governos. O que vemos é a expansão dos tentácu-los de grandes empresas e corporações, antes de comunicação e, hoje, de telecomunicações e de TI. Para termos um exemplo do poderio desses grupos, durante a tramitação do Marco Civil da Internet no Brasil, a atu-ação das quatro grandes operadoras de telecomunicações que atuam no país foi marcante para exemplificar a situação. Em função da pressão que faziam para que seus interesses fossem preservados (em outras palavras,

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seus modelos de negócios), conseguiram paralisar mais de 400 deputados do final de outubro de 2013 até abril de 2014 por discordarem de aspectos do Marco que estava no Congresso em Regime de Urgência, o que fazia com que todos os demais projetos de lei tramitavam na casa teriam que esperar a conclusão do Projeto de Lei (PL) do Marco Civil para poderem voltar à pauta, conforme determina a legislação brasileira. Esse é apenas um dos muitos episódios que vemos acontecer nessa disputa pela ocupação do es-paço público, seja o das ruas ou das redes.

Portanto, os desafios contemporâneos estão a exigir de cada um de nós uma atitude que vá além do reclamar ou se indignar. Exige ativis-mo. Sim, esta é a palavra que uso com mais frequência nos dias de hoje, principalmente trabalhando em educação. E essa perspectiva ativista foi tomada pelas juventudes – jovens, mas nem só eles – que foram às ruas do Brasil e do mundo, desde junho de 2013. Foram às ruas, mas não larga-ram as redes. Utilizando-se de todas as redes sociais disponíveis (Youtube, Facebook, Diaspora, Flickr, Snapchat, Instagram, Telegram, WhatsApp, entre outras), as mobilizações cresceram em todo o mundo, a ponto de, no início de 2013, o governo da Inglaterra ter cogitado bloquear o Facebook por conta das manifestações ocorridas e que se espalharam de forma viral ao longo da ilha, mediante a forte evidência de que sua organização ga-nhou essa dimensão por conta do intenso uso das redes sociais. Um estudo da Universidade de Washington, realizado pela equipe do Projeto sobre a Tecnologia da Informação e o Islã Político (PITPI), publicado no jornal Folha de S. Paulo, com o sugestivo título A revolução foi, sim, tuitada, mos-

tra estudo29, apresentou dados quantitativos do uso das redes sociais nos

movimentos que derrubaram ditadores na Tunísia e no Egito. A pesquisa analisou mais de três milhões de tuítes relacionados à Primavera Árabe e concluiu que, “[...] embora não tenham provocado a revolução em si, Twitter, Facebook, YouTube e blogs, nessa ordem, deram aos protestos velocidade suficiente para culminar na queda dos ditadores Zine Ben Ali,

29 COELHO, Luciana. A revolução foi, sim, tuitada, mostra estudo. Folha de S. Paulo, 21 set. 2011.

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na Tunísia, em janeiro, e Hosni Mubarak, no Egito, em fevereiro”30. No Brasil, destaco, entre tantos outros, o caso da ocupação do Morro do Ale-mão, no Rio de Janeiro, pela polícia e pelo exército, em novembro de 2010. Com o morro todo cercado, a imprensa não tinha informações so-bre o que exatamente ocorria no interior da região tomada. As televisões transmitiam o episódio ao vivo, direto das redondezas, durante quase 24 horas, todos os dias. Renê Silva era um jovem de 12 anos quando criou um jornal chamado A voz da comunidade.31 Em 2010, com 16 anos, ele havia descoberto o Twitter e o utilizava constantemente (@vozdacomunidade). Durante os momentos que antecederam a invasão pela polícia, a única fonte confiável era o perfil comandado por Renê, da casa de sua avó, no epicentro do Morro do Alemão. Para que se tenha ideia da importância de suas informações, na quinta-feira antes da invasão (26/10), ele contava com 180 seguidores. Na segunda-feira (29/10), dia seguinte a invasão, já contava com 40 mil, chegando ao final da terça-feira (30/10) com mais de 60 mil seguidores.

Estamos falando de movimentos sociais que ocorrem longe do ambiente acadêmico, aspecto que pode levar alguns a pensar que eles não podem ser estudados sob os mesmos critérios aplicados nos estudos feitos pelas áreas acadêmicas da ciência ou da educação. No entanto, são inúme-ros os exemplos, ponderados por diversos autores, entre eles Clay Shirky, Charles Leadbeater e Yochai Benkler32, dando conta de projetos colabo-rativos que têm demonstrado significativos resultados, do pondo de vista da inovação. São exemplos que não detalharemos aqui por já terem sido

30 id., ibid. A pesquisa integral encontra-se disponível em: <http://pitpi.org/index.php/2011/09/11/opening-closed-regimes-what-was-the-role-of-social-media-during-the-arab-spring/>. Acesso em: 23 nov. 2012.31 Disponível em: <http://www.vozdacomunidade.com.br/>. Acesso em: 23 nov. 201232 SHIRKY, Clay. Here comes everyvody: how change happens when people come together. London: The Penguin Press, 2010; LEADBEATER, Charles. We-think: the power of mass

creativity. profile, 2009; BENKLER, Yochai. The wealth of networks: How social production

transforms markets and freedom. Yale: Yale University Press, 2006.

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explicitados em outro texto33, como o projeto Genoma e o projeto coletivo Science Commons

34, esse tocado pela Fundação Creative Commons.

Qualificando as redes - banda larga - escolas (des)conectadas

Todas essas potencialidades esbarram em um dos mais importantes desa-fios contemporâneos, principalmente para países como o Brasil. Refiro--me, como temos evidenciado em nossas pesquisas, à deficitária conectivi-dade pública, que vem a se constituir em um dos maiores problemas para viabilizar essas transformações, acrescida da deficiência na infraestrutura das escolas. A situação é grave para todas as áreas, mas como nosso maior foco é a educação, referimo-nos aqui mais especificamente às escolas do sistema público de educação.

São necessárias políticas públicas de acesso à banda larga que, tam-bém elas, superem a visão exclusiva de estímulo ao consumo de informa-ções (e produtos). É premente a montagem de um efetivo Plano Nacional de Banda Larga que dê conta da perspectiva que aqui advogamos: for-talecer as escolas enquanto produtoras de conhecimentos e culturas. A conexão à internet em banda larga é fundamental para que possamos ter projetos emancipatórios que tragam resultados significativos. Não pode-mos pensar num sistema onde as escolas, que já receberam os computado-res portáteis e os tablets em quantidades significativas, muitas vezes com 400, 500 ou mais unidades, disponham de uma conexão que longe está dos já pouco 2 Mbps, prevista na última atualização do Plano Nacional de Banda Larga (PNBL). O que está previsto nesse Plano, desde 28 de fevereiro de 2011, é que a velocidade ofertada em cada escola deveria ser “[...] revista semestralmente, de forma a assegurar a oferta de velocidade equivalente a melhor oferta comercialmente disseminada ao público em

33 PRETTO, Nelson De Luca O desafio de educar na era digital. Rev. Port. de Educação. [on-line], v. 24, n. 1, p. 95-118, 2011. Disponível em: <http://www.scielo.oces.mctes.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0871-91872011000100005&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 23 nov. 2012.34 Disponível em: <sciencecommons.org>. Acesso em: 23 nov. 2012.

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geral, na área de atendimento na qual se inclui a Escola”, o que não vem acontecendo. O acordo ainda vigente previa que, desde 2012, seriam ga-rantidos percentuais mínimos de qualidade. Para essa etapa, falava-se em oferecer, em média, 60% da velocidade contratada, ou seja, não menos que 600 kbps. No entanto, pelo que temos visto em nossa amostra de escolas, essa velocidade deve estar em torno de 10% do ofertado comercialmente em Salvador e nas cidades da Bahia que acompanhamos para a pesquisa de avaliação do projeto Um Computador por Aluno (UCA) . O fato é que, com essas velocidades, muito pouco poderá ser feito nas escolas.

Para além da questão da banda larga, o que constatamos em nossas pesquisas é a ausência das condições estruturais básicas para a realização de qualquer projeto. O exemplo é o da Bahia35 e sabemos que essa realida-de se repete principalmente nas escolas do Norte e Nordeste: não existem tomadas para carregar os computadores; não há mobiliário para os alunos e professores trabalharem; a rede de internet, prometida pelas operadoras, leva meses para ser implantada e, mesmo assim, com péssima qualidade.

Portanto, infraestrutura e conexão à internet em banda larga são fundamentais para que possamos ter projetos dessa natureza, que apre-sentem resultados significativos. Mas só a infraestrutura não basta. Preci-samos de muito mais.

Cultura, tecnologia e educação: aproximações mais que necessárias

A relação da educação com a cultura sempre foi algo considerado impres-cindível e vem demandando um olhar mais atento, uma vez que, nesses tempos de conexão generalizada, as possibilidades de interrelações entre culturas nos direciona a grandes possibilidades de diálogos interculturais, que considero absolutamente necessários e fundamentais. Compreendo, assim como Marc Augé, que não podemos isolar as culturas com o intuito de preservá-las. Uma cultura só se mantém viva, com sua riqueza, se ela

35 QUARTIERO, E.; BONILLA, M. H. S.; FANTIM, M. Projeto UCA: entusiasmos e desencantos

de uma política pública. Salvador: Edufba, 2015.

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interage com outras. Vou ainda além: se elas se remixam e dialogam com o outro. Como diz Augé,

[...] uma cultura que se reproduz de maneira idêntica (uma cul-tura de reserva ou de gueto) é um câncer sociológico, uma con-denação à morte, assim como uma língua que não se fala mais, que não inventa mais, que não se deixa contaminar por outras línguas, é uma língua morta. Portanto, há sempre certo perigo em querer defender ou proteger as culturas e certa ilusão em querer buscar sua pureza perdida. Elas só viveram por serem capazes de se transformar.36

Retomar essa forte articulação entre educação e cultura é funda-mental para a perspectiva que adotamos, afinal, o que estamos demandan-do é que tenhamos um professor-autor em rede e não apenas reprodutor de informações.

Vivemos um mundo profundamente transformado pela presença das tecnologias digitais de informação e comunicação. Tecnologias que têm possibilitado a interação entre local e não local de forma intensa e quase instantânea. A aproximação das pessoas e das diversas áreas do co-nhecimento corresponde, de forma quase que definitiva, a uma relação mais intensa da educação com a cultura, especialmente a cultura digital, transformando professores e alunos, mais do que sempre, em fazedores do seu próprio tempo.

Dessa forma, pensamos que cultura e educação precisam estar articuladas de forma muito intensa e isso não se dará se continuarmos a pensar a educação como um processo industrial, em uma perspectiva fordista de produção em série. Essas articulações precisam compreender a educação, a cultura, a ciência, a tecnologia, o digital, entre tantos outros campos e áreas, enquanto elementos históricos e que, como parte desses processos históricos, ora facilitam os processos, ora criam novos obstácu-los quando empregados como elementos vivos para a sala de aula.

36 AUGÉ, M. A guerra dos sonhos: exercícios de etnoficção. Tradução de Maria Lúcia Pereira. Campinas, SP: Papirus, 1998, p. 24-25.

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O já citado Steven Levy, ao pesquisar sobre o desenvolvimento da computação e o papel desempenhado por aqueles jovens da década de 1950 até os contemporâneos, descobriu uma “[...] filosofia ligada ao com-partilhamento, abertura, descentralização e do prazer de pôr as mãos na máquina a qualquer custo – desde que seja para aprimorá-las e também o mundo. Essa ética hacker é o legado deles para nós: algo de valor até mesmo para aqueles que não têm o menor interesse por computadores”.37 Pensamos ser essa a necessária atitude dos professores. No entanto, eles são levados a estranhar todas as possibilidades mais radicais de transfor-mação da escola, de um lado, por não serem chamados para construir essa transformação e, de outro, em função das suas permanentes precárias condições de trabalho, formação e salário. A superação dessa situação de-manda ações em torno das políticas públicas que compreendam a educa-ção de modo muito mais amplo do que apenas o próprio (e complexo!) campo educacional. Assim, necessário se faz pensar, como temos insisti-do, a educação fortemente articulada com a cultura, com as telecomunica-ções, ciência e tecnologia, só para falar em algumas áreas.

Não podemos nos contentar com um sistema educacional que continue centrado na lógica de distribuição de informações. No passado, elas eram escassas e fazia sentido procurar a escola e os mestres para bus-cá-las. Os professores eram verdadeiros poços de saber e de informações. Hoje, temos abundância de informações e isso, diferentemente do que pensam alguns, é mais do que bom. É excelente, mas não basta. Precisa-mos, justamente por conta disso, ter uma enorme capacidade de leitura destas informações que abundam. E a leitura, aqui, ganha uma dimensão muito maior daquela que estamos acostumados a associar às letras e, no máximo, aos números. Agora, muito mais do que antes, isso é insuficien-te. É importante, claro, mas também é preciso que tenhamos a capacidade de ler num sentido muito mais amplo. Uma leitura do mundo, que inclua a leitura dos códigos de programação dos computadores; a leitura das ima-gens que circulam de forma frenética pelas redes e pelas ruas; a leitura do corpo, cada vez mais preso a gadgets eletrônicos; e a leitura do ambiente,

37 LEVY, Stevie. Os heróis da revolução: como Steve Jobs, Steve Wozniak, Bill Gates, Mark Zuckerberg

e outros mudaram para sempre as nossas vidas. São Paulo: Évora, 2012.

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cada vez mais destruído, aqui, ali e acolá. Mas a leitura apenas não basta. Precisamos também dotar a escola de processos formativos que compre-endam as novas linguagens contemporâneas; referimo-nos à linguagem dos computadores: os códigos. Nas palavras de Douglas Rushkoff,

Quando os primeiros humanos adquiriram a linguagem, nós aprendemos não só a ouvir, mas a falar. Quando nós domi-namos a escrita, nós aprendemos não apenas a ler, mas como escrever. E à medida que nos movemos progressivamente em direção a uma realidade digital, nós devemos aprender não só como usar os programas, mas como fazê-los.38

Essa geração, que denominei num passado recente de “geração al-t+tab”, trabalha com multiprocessamento. É uma geração diferente, que precisa ser mais bem compreendida. Fazia essa referência às duas teclas do computador que possibilita a mudança rápida de uma página a outras, de uma ação à outra. Mas, hoje, essa turma nem usa mais os computadores de mesa (desktops); estão conectados, também de forma multitarefa, aos celu-lares, sempre com um fone no ouvido. Para essa geração, a escola centrada em um modelo broadcasting não funciona, uma vez que ela se fundamenta nos mesmos princípios dos tradicionais meios de comunicação de massa (que estão morrendo, enquanto modelo, apesar de ainda resistirem!); ou seja, esse modelo espelha a lógica de uma produção centralizada nos gran-des centros e depois é distribuída para o “resto” do país. Isso não funciona para a juventude, nem para nós, educadores, que buscamos loucamente alternativas para superar essa situação. Justo porque não é essa a rede que preconizamos, porque esse é um modelo de rede de distribuição que po-demos associar, muito fortemente, aos “portais-currais” e aos “computa-dores pedagógicos” já referidos. Essa escola broadcasting nos leva a pensar o sistema educacional e a escola, em particular, como uma grande máqui-na de transformar o Outro no Eu, para transformar o diferente no igual, a partir da distribuição de informação. Se quisermos superar essa concep-

38 RUSHKOFF, D. Program or be programmed: ten commands for a digital age. [S.l.]: OR Books, 2010.

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ção, a escola precisa passar a se constituir em um ecossistema pedagógico de aprendizagem, comunicação e produção de culturas e conhecimentos.39 Essa escola, com todas as diferenças históricas, já havia sido pensada por Anísio Teixeira, na década de 1960 do século passado. Em um artigo inti-tulado Os mestres de amanhã

40, ele afirmava que a

[...] escola de amanhã lembrará muito mais um laboratório, uma oficina, uma estação de televisão do que a escola de ontem e ainda hoje. Entre as coisas mais antigas, lembrará muito mais uma biblioteca e um museu do que o tradicional edifício de salas de aulas.41

E caracterizava os professores como intelectuais que lembrarão

[...] muito mais o bibliotecário apaixonado pela sua bibliote-ca, o conservador de museu apaixonado pelo seu museu e, no sentido mais moderno, o escritor de rádio, de cinema ou de televisão apaixonados pelos seus assuntos, o planejador de ex-posições científicas, do que o antigo mestre-escola a repetir nas classes um saber já superado.42

Inspirado em Anísio, dizemos que o mestre de hoje, para sobre-viver ao amanhã, será um grande negociador das diferenças,43 capaz de ser o catalisador das produções coletivas que envolvam os próprios mestres,

39 PRETTO, op. cit., 2011, p. 9740 TEIXEIRA, Anísio. Os mestres do amanhã. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Rio de Janeiro, v. 40, n. 92, p. 10-19, out./dez. 1963. Disponível em: <http://www.bvanisioteixeira.ufba.br/artigos/mestres.html>. Acesso em 25 abr. 2014.41 TEIXEIRA, Anísio. Os mestres de amanhã. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, v. 85, n. 209/210/211, jan./dez. 2004, p. 147. Disponível em: <http://www.bvanisioteixeira.ufba.br/artigos/mestres.html>. Acesso em 25 abr. 2014.42 TEIXEIRA, op. cit, 2004, p. 147-148. 43 PRETTO, Nelson De Luca; SERPA, Luiz Felippe Perret. A educação e a sociedade da informação. In: DIAS, P. (Org). Challenges 2001. Publicado nas Actas da 2ª Conferência Internacional de Tecnologias da Informação e Comunicação na Educação, Centro de Competência Nónio Século XXI da Universidade do Minho, Braga.

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alunos e comunidade. E, para tal, os aparatos tecnológicos já estão poten-cialmente disponíveis.44

Precisamos, portanto, olhar de maneira ampla para a questão educacional, focando nas profundas e necessárias transformações curri-culares, na formação de professores, na arquitetura escolar, entre tantos e tantos outros temas correlatos. Queria destacar aqui, para o propósito deste livro, a necessidade de se trazer, mais uma vez os temas softwares e formatos livres e abertos e o acesso dos professores às redes.

Para a educação, libertar-se dos softwares proprietários é um gran-de desafio, uma vez que a independência no acesso aos códigos-fonte está intimamente associada às inúmeras possibilidades de independência de fornecedores centralizados que dominam o mercado, o que resultará, potencialmente, na ampliação de uma rede de produção colaborativa, di-mensão fundamental para a educação. De maneira complementar, é im-portante que se pense na necessidade da adoção de formatos abertos que não engessem os produtos e possibilitem a sua circulação, independente do sistema utilizado para a leitura do arquivo. Como afirma Sérgio Ama-deu da Silveira,

[...] a propriedade de um formato de arquivo digital dá ao seu dono também o controle sobre o software que irá permitir a sua leitura. O formato e o software que permitem o arquiva-mento e a leitura de informações digitais, quando proprietá-rios, são componentes de um processo econômico que podem aprisionar os seus usuários. Sem acesso às instruções que com-põem a conversão do formato, ou simplesmente impedido de desenvolver a conversão por proibição legal, o usuário de um formato proprietário teria um grande custo de troca de todos os seus dados para se libertar de uma solução proprietária.45

44 Menciono de forma insistente, em todos os meus textos, a palavra potencialmente, por conta da ausência de políticas públicas que deem conta do tema, como venho desenvolvendo ao longo dessas páginas, e que será ainda abordado em diversos textos deste livro, dentro da minha perspectiva ativista de atuar na grande mídia em defesa da construção dessas políticas.45 SILVEIRA, Sérgio Amadeu. Formatos abertos. In SANTANA, B. et al. Recursos educacionais

abertos: práticas colaborativas políticas públicas. Salvador: Edufba; São Paulo: Casa da Cultura Digital, 2012. p. 115.

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Portanto, a adoção de softwares e formatos livres e abertos é uma questão filosófica e, também, uma questão econômica que deve ser consi-derada nas políticas públicas educacionais.

A montagem de uma agenda afirmativa para a inserção do país com autonomia e independência, num projeto de sociedade, é muito im-portante e, para tanto, é fundamental a ampliação do acesso dos profes-sores e alunos nesse mundo tecnológico. Essa inserção precisa ter como horizonte a preparação de cidadãos plenos para a interação com o uni-verso de informação e comunicação. Mais uma vez, trazemos a necessi-dade de uma urgente reaproximação da educação com a cultura e, agora, de ambas com as tecnologias da informação e comunicação, o que pode vir a se constituir numa radical transformação também da escola. Para esse olhar, miremos para um pequeno exemplo ocorrido em uma escola no interior da Bahia, onde trabalhamos com a formação dos professores para o Projeto Um Computador por Aluno. Tão logo a distribuição dos com-putadores foi feita, fomos visitar as escolas e, ao chegar, nos deparamos com professores absolutamente animados e fazendo todo o possível para o pleno uso das máquinas. O enorme esforço dos docentes envolvidos no projeto era visível e evidente, apesar de as condições serem as mais precárias. A escola funciona em uma antiga padaria da cidade, não existe segurança e, para guardar os laptops, os professores construíram, criati-vamente, estantes com as caixas de papelão que embalavam os próprios equipamentos. Mesmo com as dificuldades, eles atuam em busca de ca-minhos para a utilização dos computadores no cotidiano de suas aulas. Nesse contexto, observamos certa insegurança nos docentes, já que sua formação não lhes prepara para o enfrentamento dos desafios contem-porâneos aqui pontuados. A única alternativa é adaptar e acomodar os computadores nas salas, de acordo com os modelos pedagógicos que co-nhecem e os currículos historicamente definidos. Assim, terminam sendo as vítimas do não funcionamento do sistema e, pior, é muito provável que a eles será imputada a culpa, como sempre tem sido, pela resistência às transformações (e principalmente às tecnologias). Esses profissionais não são preparados para tal demanda. Mas ao invés de usarem isso como pretexto para não dar conta dos desafios postos e enfrentá-los na prática

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cotidiana, tentam juntar, justapor, dois universos incomensuráveis. Em uma das animadas salas que visitamos, encontramos a seguinte situação: na mesa do aluno, o computador portátil. Na parede, em cartolina e com a caligrafia da professora, os métodos de alfabetização resistente à chegada dos equipamentos. O processo de alfabetização ainda é o silábico (ma, me, mi, mo, mu), das mais que conhecidas cartilhas. Dois mundos convivem nesse momento, ambos precisando ser confrontados e não simplesmente ajustados. O confronto aqui é fundamental, pois como afirma Alejandro Piscitelli,

[...] as transformações que estamos vivendo são enormes e a descontinuidade que existem entre esses meninos e nós não é incremental, nem acessória, nem sequer histórica e tendencial. Trata-se, em uma linguagem astronômica, de uma singularida-de, uma comporta evolutiva, um antes e um depois, tão radical que é difícil contextualizá-lo e, muito mais difícil é gerar ins-trumentos educativos capazes de operacionalizar para suturar as descontinuidades feitas possíveis pelas tecnologias.46

Por isso, afirmamos que a distância entre a formação inicial desses professores e os computadores nas mãos dos meninos é de, no mínimo, um século. Eles/nós foram preparados para transmitir conhecimentos e ensinar conteúdos no modelo broadcasting, a partir dos livros didáticos. Agora, convivem com a possibilidade de cada um de seus alunos ter um aparelhinho que, potencialmente, lhe conecta com um mundo de informa-ções em um único clique, se a conexão for boa.

As tecnologias digitais para fortalecer os processos criativos, em vez de estimular as meras reproduções, nos possibilitam pensar em cada menino e menina, cada professor e professora como efetivamente criado-res de conteúdos, de cultura, de ciência, de tecnologia e de artefatos cria-tivos. Tudo isso com a comunidade escolar se apropriando dos múltiplos e diversos suportes, com intenso uso das diversas linguagens, de modo a transformar os laboratórios de informática e as bibliotecas em espaços

46 PISCITELLI, A. Nativos digitales: dieta cognitiva, inteligencia colectiva y arquicteturas de la

participación. Santa Cruz de Tenerife: Santillana, 2009. p. 44.

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multimídia, em vivos lugares de produção, com os computadores portá-teis circulando pela escola na mão dos meninos e de professores, além da ajuda de pais e da comunidade, em um rico processo criativo e ativista. A escola passa a assumir, assim, um novo papel: o de articular os diversos saberes ao conhecimento estabelecido. A partir dessas iniciativas, o antigo laboratório de informática pode ser melhorado e fortalecido, converten-do-se em um grande núcleo de produção de produtos culturais, científicos e, claro, educativos.

Isso tudo nos leva a pensar no papel protagonista da escola na so-ciedade, uma escola que atue, na verdade, como uma plataforma educati-va, e se constitua num ecossistema de aprendizagem, comunicação e pro-dução de culturas e conhecimentos. Os professores deixam de ser meros atores de uma peça escrita por outros e passam a assumir, como lideranças intelectuais e políticas, a função de autores. E, claro, instigando os alunos a, também eles, serem autores. Estabelece-se, desse modo, o que tenho de-nominado um círculo virtuoso de produção de culturas e conhecimentos, com um estímulo à criação permanente, à remixagem, à mistura de tudo, em um diálogo intenso entre o criado e o estabelecido historicamente, um consumo antropofágico dos conteúdos das ciências, das culturas, em que a escola viva uma excitação permanente e, ao mesmo tempo, se constitua no espaço e no tempo para a reflexão tranquila e profunda.

Não custa insistir, se nas linhas anteriores isso não ficou explícito, que nessa perspectiva de colaboração e produção local não estamos nos referindo a deixar de lado a ciência moderna e as leis da química, da física, da biologia, a língua culta. O que queremos, insisto, é promover um diálo-go permanente entre autores, conhecimentos, leis, percepções de mundo, saberes e culturas locais, de maneira constante e permanente. No passado, propor uma coisa nesse sentido seria colocar aquela comunidade apenas em contato com seu próprio conhecimento, o que seria absolutamente equivocado, pois a isolaria do contato com os outros, transformando-a em uma cultura de reserva ou de gueto, como mencionou Marc Augé na passagem citada anteriormente. No entanto, hoje, com as redes digitais, isso pode não acontecer, pois é potencialmente possível considerar o uni-versal e o regional juntos, a ciência (com C maiúsculo, a Ciência estabele-

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cida), dialogando com os outros conhecimentos e saberes comunitários. Local e planetário convivendo por meio das redes digitais de comunicação e informação. Saberes locais e conhecimento estabelecido dialogando de forma permanente. Estabelecem-se assim, pelo menos potencialmente, as redes de relações, redes horizontais que podem ser tecnológicas ou não. O estabelecimento dessas redes demanda uma mudança de postura muito mais do que a dependência de fatores externos que, obviamente, são ne-cessários, mas não suficientes. Essa outra postura é o que denominamos um jeito hacker de ser, centrado numa forte ética de compartilhamento, uma ética hacker que propicia, ao fortalecer as redes de nós fortalecidos, que professores-autores em rede exerçam plenamente sua cidadania. Pro-fessores fortalecidos fazendo a diferença. Começamos, assim, a pensar a educação numa perspectiva plural, acontecendo a partir das realidades lo-cais, fortalecidas pelas interações nacionais e planetárias.

Falamos, portanto, em educações, e mais do que tudo, potenciali-zadas pela cultura digital. Talvez aqui, seja importante resgatar a palavra do ex-ministro da Cultura, Gilberto Gil, que trouxe para o centro do de-bate, durante o governo Lula da Silva, o tema da cultura digital, dando-lhe uma dimensão estruturante:

[...] o que está implicado aqui é que o uso de tecnologia digi-tal muda os comportamentos. O uso pleno da Internet e do software livre cria fantásticas possibilidades de democratizar os acessos à informação e ao conhecimento. Maximizar os po-tenciais dos bens e serviços culturais, amplificar os valores que formam o nosso repertório comum e, portanto, a nossa cultu-ra, e potencializar também a produção cultural, criando inclu-sive novas formas de arte. A tecnologia sempre foi instrumento de inclusão social, mas agora isso adquire novo contorno, não mais como incorporação ao mercado, mas como incorporação à cidadania e ao mercado, garantindo acesso à informação e barateando os custos dos meios de produção multimídia atra-vés das novas ferramentas que ampliam o potencial crítico do cidadão. Somos cidadãos e consumidores, emissores e recepto-

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res de saber e informação, seres ao mesmo tempo autônomos e conectados em redes, que são a nova forma de coletividade.47

E acrescentamos: nada melhor do que o espaço da escola para essa revolução. Nada melhor do que qualificar o acesso às TIC para fortalecer a dimensão de produtor em lugar de consumidor, seja de produtos, seja de cultura ou de informações.

Estamos convencidos, e aqui o plural é fundamental, pois as pes-quisas que realizamos em nosso grupo Educação, Comunicação e Tec-nologias48 têm apontado para isso, que a escola contemporânea e junto com ela todos os espaços de aprendizagem, em qualquer que seja o nível, não pode ficar indiferente e se furtar ao exame das possibilidades de uso do computador e da internet no espaço pedagógico, enquanto elemento estruturante de novos processos educacionais, trazendo para o cenário da escola a formação de produtores de proposições, de culturas e conheci-mentos e não de mais e melhores consumidores de informações. De novo precisamos trazer o tema da inclusão e, mais uma vez, qualificá-la. Para nós, falar em inclusão é: articular temas, como acesso às máquinas, cone-xão, software livre, universalização de serviços de comunicação, cidadania plena e transformação da escola em espaço de produção de cultura, nos contextos nos quais ela está inserida49.

Isso demanda outra postura frente à vida e nesta hora entram, mais uma vez, os hackers.

Anteriormente, apresentamos alguns princípios do que vem sen-do chamado de a ética dos hackers. De forma simplificada, relembramos: é preciso que você goste de jogar e brincar; é preciso que goste do que faz e seja criativo; que goste de explorar e investigar; e também goste de com-partilhar suas descobertas com seus pares.

47 GIL, G. Aula magna na USP: hacker em espírito e vontade, 2004. Disponível em: <http://www2.cultura.gov.br/site/2004/08/10/ministro-da-cultura-gilberto-gil-em-aula-magna-na-universidade-de-sao-paulo-usp/>. Acesso em: 19 nov. 2004.48 Disponível em: <http://www.gec.faced.ufba.br>49 PRETTO, Nelson De Luca; BONILLA, Maria Helena Silveira. Construindo redes colaborativas para a educação. Revista Fonte, Belo Horizonte, 2008.

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O que quero aqui fazer é propor associá-los à educação para que possamos usá-los como inspiração para repensar o sistema educacional como um todo. Estas ideias estão sendo trabalhadas de forma permanente pelo nosso grupo de pesquisa e sendo sistematizadas e socializadas ime-diatamente, bem no espírito hacker e da ciência aberta50, pois ao imediata-mente darmos publicidade a elas já estamos trabalhando como os hackers. Assim, os leitores do livro podem, discutindo as ideias aqui desenvolvidas, contribuir para a construção do que estamos chamando de educação ha-

cker, produzindo conhecimento, com um jeito hacker de ser! Fizemos isso quando organizamos, eu e a colega Maria Helena Bonilla, o número es-pecial da revista acadêmica Em Aberto, sobre Movimentos Colaborativos, Tecnologias Digitais e Educação51, onde apresentamos alguns elementos para o sistema educacional que estamos a vislumbrar, a partir de alguns desses princípios, a saber:

• O acesso a todo e qualquer meio de ensino deve ser total aos que querem aprender.

• Desconfiar da autoridade significa pensar que os professores, livros e quaisquer fontes de informação devem ser lidos com desconfiança, com uma profunda atenção, sempre buscando comparar e encontrar outras possíveis fontes para ver os fatos a partir de outros ângulos.

• Os processos de aprendizagem precisam estar centrados numa lógica baseada na criação e produção de culturas e conhecimentos e não no consumo de informação, da mesma maneira que deve ser defendido o livre acesso a todo tipo de informação.

• É necessário compreender a diversidade de saberes, culturas e conhecimentos trazidos para a escola por alunos, professores, mídia e materiais didáticos. Isso, se trabalhado na sua extensão, favorece a formação e a criação. Como as escolas não estão preparadas para lidar com a complexidade e a pluralidade de opiniões dos seus alunos, elas acabam destruindo, ao longo de sua escolarização, a criatividade, fazendo (e achando que

50 ALBAGLI, Sarita; MACIEL, Maria Lucia; ABDO, Alexandre Hannud (Org.). Ciência aberta,

questões abertas. Brasília, DF; Rio de Janeiro: IBICT; UNIRIO, 2015.51 PRETTO, Nelson De Luca; BONILLA, Maria Helena Silveira. Movimentos colaborativos, tecnologias digitais e educação. Em Aberto, Brasília, n. 94, p. 23-40, jun. 2015.

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conseguem!) com que todos os jovens pensem da mesma forma. Necessário se faz superar essa visão.

• A cópia é parte do processo de aprendizagem e deve ser defendida, assim como o livre acesso a todo tipo de informação. O que vemos é que, apesar de nas séries iniciais o compartilhamento dos bens, como brinquedos e materiais escolares, ser estimulado pelos professores, conforme os anos vão avançando o aluno aprende que a troca de informações tem certos limites e que a cópia52 não é bem vista no ambiente acadêmico.

• O erro não deve ser criminalizado e nem mesmo evitado, pois ele faz parte dos processos de aprendizagem que têm como foco a busca de formar cidadãos criadores de conhecimentos, saberes e culturas.

• A arquitetura das escolas deve ser tal que possibilite que as atividades se deem de forma muito mais livre e coletiva, não deixando, obviamente, de haver espaço para uma aula, um quadro negro, uma biblioteca com livros e coisas com que estamos já acostumados no ambiente escolar. Mas essa não pode ser a dominância espacial do projeto.

Para que os princípios da cultura hacker façam parte da educação escolar seria necessária uma reestruturação da rede como um todo, o que não impede que possamos ir promovendo algumas modificações e intro-duzindo algumas práticas que já apontariam na direção da escola hacker que queremos. Por exemplo, aproveitando todos os equipamentos que já chegam às escolas, fornecidos pelo MEC e Secretarias de Educação, como computadores e câmeras fotográficas, e os celulares dos próprios alunos, poderiam ser montados laboratórios hackers e promovidos hackdays nas es-colas, isto é, encontros de pessoas para, juntos, chegarem a um fim dese-jado, por meio de métodos inteligentes de hacking, convidando inclusive ex-alunos e comunidade. Assim, os temas do cotidiano desses alunos e comunidade poderiam adentrar as escolas e interagir, como já menciona-mos, com o conhecimento estabelecido, fazendo com que cada escola pu-desse, em seu projeto político e pedagógico, constituir-se como um espaço de referência para a sua comunidade.

52 Já comentamos que não estamos aqui referindo-nos à cópia como simples plágio.

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O modo como os hackers trabalham tem muito a nos ensinar para repensar do sistema educacional. Uma primeira e fundamental questão é a própria internet, como já mencionamos anteriormente. Já vivemos algumas experiências significativas no Brasil, nesse sentido. Apesar de to-das as dificuldades que encontramos na implantação de um efetivo Plano Nacional de Banda Larga, do ponto de vista macro, tivemos políticas pú-blicas que colocaram o Brasil no cenário internacional, com um impor-tante protagonismo nesse campo, a exemplo da própria implantação da internet no país e das políticas de cultura digital do Ministério da Cultura nos anos 2000. A cultura hacker começou a ser uma política de governo, a caminho de uma política de Estado, desde o início do governo Lula da Silva, tendo um papel protagonista o Ministério da Cultura, sob o co-mando de Gilberto Gil e Juca Ferreira. Lamentavelmente, tivemos uma Ana de Holanda como ministra da Cultura no governo Dilma Roussef, no meio do percurso que estava sendo trilhado pelos anteriores ministros, o que resultou em represamento de parte desse avanço. Obviamente, o gol-pe jurídico-parlamentar-midiático de 2016 estancou todo esse processo, que a bem da verdade já vinha sendo desacelerado, mas o já plantado foi marcante. Refiro-me, especialmente, ao Programa Cultura Viva, com os Pontos de Cultura, que foram (ainda são?) atuantes nas lutas pela reforma do direito autoral, de uma política de banda larga para o país, do Marco Civil da Internet, entre outras. Tudo isso foi fruto, talvez tenha aqui até um exagero, de uma forte articulação em rede – a la movimento hacker – e cada ação contra esse avanço correspondia a uma violenta reação em defesa dos princípios hacker que, em última instância, são os princípios da liberdade de expressão, do direito ao anonimato, da transparência dos dados, dos dados abertos, entre tantos outros. Neste último, em particu-lar, vale sempre relembrar a máxima hacker: a privacidade é para os indi-víduos e a transparência é para os governos e políticos. Obrigatório aqui destacar a ação atenta e permanente dos ativistas das organizações não governamentais da sociedade civil, como o Intervozes, Idec, Artigo 19, Proteste, Centro de Estudos de Mídia Alternativa Barão de Itararé, Ins-tituto Bem-Estar Brasil, Coletivo Digital, Coding Rights, Instituto Beta: Internet & Democracia, Clube de Engenharia, entre tantos outros.

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Portanto, se pensamos em profundas transformações para o pla-neta e consideramos que a educação tem nelas um importante papel nesse movimento, mas não o único, evidentemente, precisamos pensá-la a par-tir de uma visão bem ampla, uma visão com um jeito hacker de ser.

Finalizando sem concluir, no entanto.

Em dois momentos, ao longo dos últimos anos cobertos por este livro, escrevi artigos para um público muito específico, mas que, penso, ajudam a completar esse quadro teórico inicial que aqui apresento. Com pequenas adaptações, os incluo no livro como sendo os próximos três capítulos, acreditando que eles possibilitam uma melhor compreensão do que penso serem alguns dos elementos importantes para a montagem dessa escola com um jeito hacker de ser, sempre tendo a arte, o cinema, os movimen-tos dos fazedores, as gambiarras, enfim, as culturas como amálgama dessa construção desejada.

O capítulo seguinte foi escrito para a comemoração dos 10 anos do projeto Oi-Kabum, logo a seguir há um texto originalmente escrito para o catálogo da 11ª Mostra de Cinema de Ouro Preto, em 2016 e, o terceiro, foi escrito para o Boletín Tendencia Editorial 7, Bogotá, publicado em maio de 2015.53

53 Disponível em: <https://issuu.com/editorialuniversidaddelrosario/docs/04_conhecimento_livre_e_abertonelso>.

Educação-Cultura-e-Hachers_miolo.indb 64 28/11/2017 13:31:55