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Livros do autor publicados por essa editora: • Os alemães A luta pelo poder e a evolução do habitus nos séculos XIX e XX Escritos & ensaios í - Estado, processo, opinião pública 2 - Subjetividade, gênero, arte (em preparação) Os estabelecidos e os outsiders Sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade Mozart Sociologia de um gênio Norbert Elias por ele mesmo • A peregrinação de Watteau à ilha do amor O processo civilizador í - Uma história dos costumes 2 - Formação do Estado e civilização Sobre o tempo • A sociedade de corte • A sociedade dos indivíduos • A solidão dos moribundos llorbert Elias Escritos B Ensaios 1 - Estado, processo, opinião pública Organização e aprosontapão: Fedoríco íleiburg e Leopoldo ÜJaizbort Jorge ZBHBR Editor Rio de Janeiro

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Livros do autor publicados por essa editora:

• Os alemãesA luta pelo poder e a evolução do habitus nos séculos XIX e XX

• Escritos & ensaiosí - Estado, processo, opinião pública2 - Subjetividade, gênero, arte (em preparação)

• Os estabelecidos e os outsidersSociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade

• MozartSociologia de um gênio

• Norbert Elias por ele mesmo

• A peregrinação de Watteau à ilha do amor

• O processo civilizadorí - Uma história dos costumes2 - Formação do Estado e civilização

• Sobre o tempo

• A sociedade de corte

• A sociedade dos indivíduos

• A solidão dos moribundos

llorbert Elias

Escritos B Ensaios1 - Estado, processo, opinião pública

Organização e aprosontapão:Fedoríco íleiburg e Leopoldo ÜJaizbort

Jorge ZBHBR EditorRio de Janeiro

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Tradução autorizada de uma seleção de textos de Norbert Elias(Ver os créditos completos de cada texto às p. 18-20.)

Copyright © 2002 Norbert Elias Stichting, Amsterdã, Holanda

Copyright da edição brasileira © 2006:Jorge Zahar Editor Ltda.rua México 31 sobreloja20031 -144 Rio de Janeiro, RJtel.: (21) 2240-0226 / fax: (21) 2262-5123e-mail: [email protected]. brsite: www. zahar.com. br

Todos os direitos reservados.A reprodução não-autorizada desta publicação, no todoou em parte, constitui violação de direitos autorais. (Lei 9.610/98)

Tradução: Sérgio Benevides (inglês), Antônio Carlos dos Santos (alemão) eJoão Carlos Pijnappel (holandês)Preparação de originais: André TellesRevisão tipográfica: Eduardo Monteiro e Antônio dos PrazeresCapa: Sérgio Campante

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

Elias, Norbert, 1897-1990E29e Escritos & ensaios; l :Estado,processo, opinião pública/Norbert Elias;organização e apre-v.l sentação, Federico Neiburg e Leopoldo Waizbort; tradução textos em inglês, Sérgio

Benevides; textos em alemão, Antônio Carlos dos Santos; textos em holandês, João CarlosPijnappel.— Rio dejaneirojorge Zahar Ed., 2006

ISBN 85-7110-906-0

l. Elias, Norbert, 1897-1990 - Coletânea. 2.0 Estado. 3. Civilização. 4. Opiniãopública. 5. Sociologia. I.Título

CDD 30106-0460 CDU316

Sumário

Hpresentação

Conceitos sociológicos fundamentais• Oiuilização• Figuração• Processos sociais

Tecnizaçãoeciuilização

Estudos sobre a gênese da profissão naual• Drahe e Doughtg: o desenuoluimento de um conflito• Gentlemenetarpaulins

Habitus nacional e opinião pública

• Habitus nacionais: algumas peculiaridades inglesas e alemãs

Processos de formação de Estados e construção de nações

Sobre a sociogênese da economia e da sociologia

Para a fundamentação de uma teoria dos processos sociais

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Os textos originalmente em inglês foram traduzidos por Sérgio Benevides;os em alemão por Antônio Carlos Santos, e o texto em holandês por JoãoCarlos Pijnappel. Em todos os casos, os organizadores acompanharam erevisaram as traduções. Conceitos sociológicos

fundamentais

rOdGrJGO íl6Íbllí[J é professor do Programa de Pós-graduação em AntropologiaSocial do Museu Nacional / Universidade Federal do Rio de Janeiro(PPGAS — Museu Nacional / UFRJ) e pesquisador do CNPq.e-mail: [email protected]

LeOpOldO UJaiZbOrt é professor de sociologia da Universidade de São Paulo (USP).e-mail: [email protected]

OiuilizaçãoEmbora os seres humanos não sejam civilizados por natureza,possuempor natureza uma disposição que torna possível, sob determinadascondições, uma civilização, portanto uma auto-regulação individualde impulsos do comportamento momentâneo, condicionado por afe-tos e pulsões, ou o desvio desses impulsos de seus fins primários parafins secundários, e eventualmente também sua reconfiguração subli-mada. (É decerto desnecessário, mas talvez útil, dizer que Sigrnund eArma Freud são os pais do conceito de impulsos pulsionais humanosmoldáveis, capazes de sublimação.) O fato de que processos de civili-zação não seriam possíveis sem um potencial de civilização biológicoque os antecedesse é facilmente esquecido. Dado que os seres huma-nos, diferentemente de muitos outros seres vivos sociais, não possuemuma regulação nativa dos afetos e pulsões, eles não podem prescindirda mobilização de sua disposição natural rumo à auto-regulaçãomediante o aprendizado pessoal dos controles dos afetos e pulsões, nosentido de um modelo de civilização específico da sociedade, a fim deque possam conviver consigo mesmos e com os outros seres humanos.O processo universal de civilização individual pertence tanto às con-dições da individualização do ser humano singular como às condiçõesda vida social em comum dos seres humanos.

No uso cotidiano da linguagem, o conceito de civilização é,muitas vezes, despido de seu caráter originalmente processual

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(como derivação do equivalente francês"civilizer"). Contudo, para realmentepesquisar o processo de civilização é necessário saber a que elementoscomuns não-variáveis dos seres humanos, assim como a que elementos diver-sos variáveis, o conceito de civilização se refere.A coação social à autocoação ea apreensão de uma auto-regulação individual, no sentido de modelos sociaise variáveis de civilização, são universais sociais. Encontramos em todas as socie-dades humanas uma conversão das coações exteriores em autocoações.Contudo, embora as coações exteriores — tanto de tipo natural como de tiposocial — sejam indispensáveis para o desenvolvimento das autocoaçõesindividuais, nem todos os tipos de coação exterior são apropriados para produ-zir o desenvolvimento de instâncias individuais de autocoação e muitomenos para fomentá-las em massa, portanto sem afetar a capacidade indivi-dual de satisfação dos afetos e pulsões. Assim, por exemplo, a coação exteriorna forma da violência física é menos indicada para a formação de instânciasconstantes de autocontrole que a persuasão paciente; coações exteriores queoscilam freqüentemente entre a ameaça violenta e a demonstração calorosade amor são menos indicadas que coações exteriores constantes fundamen-tadas no calor afetivo, que dá segurança.

Se contemplarmos o desenvolvimento da humanidade, deparamo-noscom um amplo processo de civilização humana. Esse processo, em constanteembate com contraprocessos descivilizadores, permanece até agora — por-tanto da Idade da Pedra até nossos dias — dominante. Não há nenhummotivo para supor que ele deva permanecer dominante. Um de seus aspec-tos é o enorme crescimento das unidades de subsistência humana. De peque-nos grupos de parentes, que muitas vezes viviam em cavernas e talvez nãocompreendessem mais que 50 ou 60 pessoas, resultaram, com o curso dotempo, Estados nacionais que compreendem muitos milhões de pessoas. Aascensão das unidades de subsistência a uma maior ordem de grandeza, quetrouxe consigo vantagens a longo prazo em suas lutas de segregação, exigiu acada vez o aflorar de uma novafígumção, internamente mais ou menos paci-ficada (por exemplo, da aldeia para a cidade, da tribo para o Estado), de umnovo modelo de reserva e distanciamento, de um novo modelo de civiliza-ção. O deslocamento progressivo dos gquilíbrios de poder nesta terra emfavor dos seres humanos, em relação à natureza não-humana, atuou nomesmo sentido — o que resultou numa redução dos perigos do lado da natu-reza não-humana e exigiu uma contenção mais constante dos seres huma-nos. Simplificando, pode-se dizer: quanto mais alto o nível permanente depericulosidade, tanto mais baixo o nível permanente da civilização.

Inseparáveis do processo de civilização humana, mas distintos no planodo pensamento, são os processos especiais de civilização que — de tribo para

tribo, de nação para nação, em suma, de unidade de subsistência para unidadede subsistência — diferem em função das particularidades de seu destinosocial. Analogamente, é variado o desenvolvimento dos processos especiaisde civilização, assim como de cada figuração dos modelos de civilização.Estes últimos encontram uma de suas expressões mais prementes no habitussocial comum dos indivíduos que formam entre si uma determinada unidadede subsistência, por exemplo uma tribo ou Estado. Eles são herdeiros não sóde uma linguagem específica, mas também de uni modelo específico decivilização e, portanto, de formas específicas de auto-regulação, que elesabsorvem mediante o aprendizado de uma linguagem comum e nas quais,então, se encontram: no caráter comum do habitus social, da sensibilidade edo comportamento dos membros de uma tribo ou de um Estado nacional.O conceito de caráter nacional refere-se a isso. Ele pode ter valia como instru-mento de pesquisa no âmbito da teoria da civilização.

Dentre os elementos comuns a todos os processos de civilização, assimcomo a todos os processos de descivilização, destaca-se sua direção. Nessecaso, basta uma seleção de critérios para o direcionamento de processos decivilização. Em uma investigação de longo alcance, descobre-se que oequilíbrio entre coações exteriores e autocoações — e, com isso, tambémo equilíbrio entre autocoações e coações das pulsões e o tipo de assenta-mento individual das autocoações no curso do processo da civilizaçãohumana — transforma-se no sentido de uma direção específica. Em estágiosiniciais de desenvolvimento, portanto (por exemplo) em estágios represen-tados por tribos e outras unidades de subsistência pré-estatais, as instânciasde autocoação são habitualmente mais permeáveis às pulsões, inconstantes,débeis, lábeis e menos autônomas. Elas necessitam de apoio e reforço cons-tantes por meio de coações exteriores. Dentre estas contam-se, nesses está-gios, não apenas as coações reais, tais como as forças da natureza ou os outrosmembros do grupo e os grupos humanos inimigos, mas também, muitoespecialmente, as coações da imaginação coletiva, na forma de espíritos e dosrespectivos mitos. Dentre as suas funções estão a assistência e o reforço cons-tantes das instâncias pessoais de autocoação, relativamente mais frágeis. Osdeuses possuem, nesse estágio, funções que, em estágios posteriores, serãoexercidas em grande medida pela consciência e o entendimento individuais.

Em conexão com o oscilante nível social de periculosidade, os contra-processos tornam-se freqüentemente dominantes. Mas, apesar disso, atéagora o processo da civilização permanece preponderante. A própria ima-gem dos deuses e deusas transformou-se no sentido desse processo soberanoda civilização humana. Analogamente à sua função de suportes de uma auto-regulação relativamente débil, eles nunca perderam o caráter de seres ate-

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morizantes. Ao mesmo tempo, civiiizaram-se. A progressiva civilização dosdeuses é, de fato, uma das comprovações mais expressivas da civilização alongo prazo dos seres humanos. Ela indica sua direção. Nas épocas primor-diais os deuses eram em geral mais apaixonados, selvagens, instáveis. Um diaeram amistosos e cheios de boa vontade, no dia seguinte cruéis, cheios deódio e tão destruidores quanto os seres humanos poderosos e as forças indô-mitas da natureza. Então reduziram-se progressivamente as oscilações.Assim como diminuíram nesse domínio as oscilações incontroláveis das for-ças da natureza — boas colheitas, más colheitas — e os perigos, também osdeuses tornaram-se, na cabeça dos seres humanos, mais constantes, menosapaixonados e mais estáveis; surgiam então, freqüentemente, como figurasjustas, morais, até mesmo amáveis e bondosas, sem perder inteiramente,como disse, sua capacidade de atemorizar.

A diminuição das oscilações na imagem dos deuses é indicadora da dire-ção de um processo de civilização. Sua estrutura foi freqüentemente incom-preendida como transformação na direção de um reforço ou incremento dosautocontroles. Certamente, o reforço em massa é um dos critérios para odirecionamento das transformações civilizatórias. Mas a investigaçãoempírica mais exata de um processo de civilização especial já realizada — eo modelo teórico de um processo de civilização desenvolvido nesse contexto—, a investigação do processo de civilização que se consumou antes da Re-volução Francesa nos estratos superiores europeus laicos,1 resultou em umaimagem bem mais nuançada do direcionamento das transformações civiliza-tórias. Mostrou-se que a crescente intensidade dos autocontroles não é umcritério suficiente para o direcionamento de um processo de civilização.Formas extremamente intensas de autocontrole são encontradas, freqüente-mente, em estágios relativamente primevos do processo de civilização (porexemplo nos indígenas, ao suportarem em silêncio torturas pesadas; nas for-mas de severa automortificação na Idade Média). Contudo, em estágios pri-mevos autocoações extremamente intensas andam freqüentemente de mãosdadas com uma capacidade de liberação extremamente descontrolada deimpulsos afetivos e pulsionais ou com coações extremamente intensas, talvezbrutais, em relação a outros seres humanos.

Como um apanhado algo sumário do que se apurou até aqui na inves-tigação empírico-teórica das transformações civilizatórias acerca de seudirecionamento, pode-se dizer que dentre os principais critérios para umprocesso de civilização estão as transformações do habitus social dos sereshumanos na direção de um modelo de autocontrole mais bem proporcio-nado, universal e estável. Sem jamais se libertarem completamente das coa-ções exteriores, as autocoações ganham maior autonomia no curso do pro-

cesso humano de civilização, em contraposição às coações exteriores Asimetria da auto-regulação na relação entre todos os seres humanos e emquase todas as situações da vida cresce. Muitos elementos indicam que, nocurso de tal processo, aumenta a capacidade (até agora muito pouco inves-tigada) de transformação sublimatória dos impulsos comportamentais maisanimalescos, prenhes de pulsões.Em conexão com a crescente autonomi-zação das instâncias individuais de auto-regulação — das quais fazem parteo entendimento e a consciência, o ego e o superego —, amplia-se tambémmanifestamente o alcance da capacidade de um ser humano de se identifi-car com outros seres humanos, em relativa independência do grupo a quepertençam, e portanto amplia-se também sua capacidade de sentir simpa-tia por eles. Descivilização significa então uma transformação em direçãooposta, uma redução do alcance da simpatia. Atualmente, o fato de que emmuitas sociedades a idéia de que lutas de gladiadores ou execuções públi-cas possam causar alegria desperte antes sentimentos negativos é segura-mente um sintoma significativo de uma transformação civilizatória.

FiguraçãoO conceito de figuração distingue-se de muitos outros conceitos teóricosda sociologia por incluir expressamente os seres humanos em sua formação.Contrasta portanto decididamente com um tipo amplamente dominante deformação de conceitos que se desenvolve sobretudo na investigação deobjetos sem vida, portanto no campo da física e da filosofia para ela orien-tada. Há figurações de estrelas, assim como de plantas e de animais. Mas ape-nas os seres humanos formam figurações uns com os outros. O modo de suavida conjunta em grupos grandes e pequenos é, de certa maneira, singular esempre co-determinado pela transmissão de conhecimento de uma geraçãoa outra, portanto por meio do ingresso do singular no mundo simbólicoespecífico de uma figuração já existente de seres humanos.Às quatro dimen-sões espaço-temporais indissoluvelmente ligadas se soma, no caso dos sereshumanos,uma quinta, a dos símbolos socialmente aprendidos. Sem sua apro-priação, sem, por exemplo, o aprendizado de uma determinada língua espe-cificamente social, os seres humanos não seriam capazes de se orientar noseu mundo nem de se comunicar uns com os outros. Um ser humano adulto,que não teve acesso aos símbolos da língua e do conhecimento de determi-nado grupo humano permanece fora de todas as figurações humanas e, por-tanto, não é propriamente um ser humano. O crescimento de um jovem em

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figurações humanas, como processo e experiência, assim como o aprendi-zado de um determinado esquema de auto-regulação na relação com osseres humanos, é condição indispensável do desenvolvimento rumo àhumanidade. Socialização e individualização de um ser humano são, portanto,nomes diferentes para o mesmo processo. Cada ser humano assemelha-seaos outros e é, ao mesmo tempo, diferente de todos os outros.

O mais das vezes, as teorias sociológicas deixam sem resolver o pro-blema da relação entre indivíduo e sociedade. Quando se fala que urnacriança se torna uni indivíduo humano por meio da integração em deter-minadas figurações (como, por exemplo, em famílias, em classes escolares,em comunidades aldeãs ou em Estados), assim como mediante a apropria-ção e reelaboração de um patrimônio simbólico especificamente social,conduz-se o pensamento por entre os dois grandes perigos da teoria e dasciências humanas: o perigo de partir de um indivíduo a-social, portantocomo que de um agente que existe por si mesmo; e o perigo de postularum "sistema", um "todo", em suma, uma sociedade humana que existiriapara além do ser humano singular, para além dos indivíduos.

Embora não possuam um começo absoluto, não tendo nenhuma outrasubstância a não ser seres humanos gerados por mães e pais, as sociedadeshumanas não são simplesmente um aglomerado cumulativo dessas pessoas.O convívio dos seres humanos em sociedades tem sempre, mesmo no caos,na desintegração, na maior desordem social, uma forma absolutamentedeterminada. É isso que o conceito de figuração exprime. Os seres huma-nos, em virtude de sua interdependência fundamental uns dos outros, agru-pam-se sempre na forma de figurações específicas. Diferentemente dasconfigurações de outros seres vivos, essas figurações não são fixadas nemcom relação ao gênero humano, nem biologicamente.Vilarejos podem setornar cidades; clãs podem se tornar pequenas famílias; tribos podem se tor-nar Estados. Seres humanos biologicamente invariáveis podem formarfigurações variáveis. Essas figurações possuem peculiaridades estruturais esão representantes de uma ordem de tipo particular, formando, respectiva-mente, o campo de investigação de um ramo da ciência de tipo particular,as ciências sociais em geral e,tambép,a sociologia.A dificuldade cognitivaencontrada freqüentemente nesse contexto baseia-se, em última análise,em duas atitudes básicas complementares.Talvez valha a pena apresentá-lasaqui brevemente.

Seres humanos singulares convivem uns com os outros em figuraçõesdeterminadas. Os seres humanos singulares se transformam. As figura-ções que eles formam uns com os outros também se transformam. Mas astransformações dos seres humanos singulares, e as transformações das figu-rações que eles formam uns com os outros, apesar de inseparáveis e entrela-

çadas entre si, são transformações em planos diferentes e de tipo diferenteUm ser humano singular pode ter relativa autonomia em relação a determi-nadas figurações, mas em relação às figurações em geral, quando muito, ape-nas em casos extremos (por exemplo, o da loucura) .As figurações podem terautonomia relativa em relação a determinados indivíduos que as formam noaqui e agora, mas nunca em relação aos indivíduos em geral. Dito de outramaneira: um ser humano singular pode possuir uma liberdade de ação quelhe permita desligar-se de determinada figuração e introduzir-se em outra,mas se e em que medida isto é possível depende de fato das peculiaridadesda figuração em questão. As mesmas pessoas também podem formar umascom as outras diferentes figurações (os passageiros antes, durante e,possivel-mente, depois de um naufrágio; burgueses e nobres antes, durante e depoisda Revolução). Inversamente, diferentes seres humanos singulares podemformar figurações similares, com certas variações (famílias,burocracias, cida-des, países).

MaxWeber (1864-1920) tentou resolver esse problema central dasociologia, qual seja, o da relativa autonomia das figurações frente aos indi-víduos que as formam, criando o conceito de tipo ideal, portanto admitindoque figurações enquanto tais não existem a não ser como abstrações idea-lizadas de aglomerados menos ordenados de agentes individuais e de suasações orientadas expressamente para outros agentes. Ele também nãopercebia que as figurações que os seres humanos formam uns com osoutros são tão reais quanto cada um desses seres humanos considerados porsi só.Émile Durkheim (1858-1917) percebeu a realidade das figurações, masvia-as como algo que existia fora do ser humano singular; não foi capaz deconjugá-las à existência dos seres humanos singulares (ou, quando muito,apenas mediante o conceito de interpenetração de indivíduo e sociedade,que indica bem claramente a aceitação de uma existência separada dos doisplanos inseparáveis da existência humana). Quando falamos de figurações,que os indivíduos humanos formam uns com os outros, dispomos de urnaimagem do ser humano e de um instrumento conceituai mais adequado àrealidade e com cujo auxílio podemos evitar o tradicional dilema da socio-logia: "aqui o indivíduo, ali a sociedade", dilema que se baseia na verdadeem um jogo, de tipo extracientífico, com palavras ou com valores.

Processos sociaisO conceito de processo social refere-se às transformações amplas, contínuas,de longa duração — ou seja, em geral não aquém de três gerações — dejigu-

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rações formadas por seres humanos, ou de seus aspectos, em uma de duas dire-ções opostas. Uma delas tem, geralmente, o caráter de uma ascensão, a outrao caráter de um declínio. Em ambos os casos, os critérios são puramenteobjetivos.Eles independem do fato de o respectivo observador os conside-rar bons ou ruins. Exemplos disso são: a diferenciação crescente e decres-cente de funções sociais, o aumento ou a diminuição do capital social ou dopatrimônio social do saber, do nível de controle humano sobre a naturezanão-humana ou da compaixão por outros homens.pertençam eles ao grupoque for. Logo, é inerente às peculiaridades dos processos sociais que elessejam bipolares. Diferentemente do processo biológico de evolução, os pro-cessos sociais são reversíveis. Surtos em uma direção podem dar lugar a sur-tos contrários e ambos podem ocorrer simultaneamente. Um deles podetornar-se dominante, ou caber ao outro manter o equilíbrio. Assim um pro-cesso dominante, direcionado a uma maior integração, pode, por exemplo,andar de par com uma desintegração parcial. Inversamente, um processodominante de desintegração social, como por exemplo o processo de feu-dalização, pode conduzir a uma reintegração sob novas bases, a princípioparcial e a seguir dominante; portanto, a um novo processo de formação doEstado. Analogamente, os instrumentos conceituais para a determinação e ainvestigação de processos sociais são pares conceituais como integração edesintegração, engajamento e distanciamento, civilização e descivilização, ascensão edeclínio. Pares conceituais desse tipo indicam a direção dos processos sociais.Com isso, o emprego desses conceitos sociológicos de direção distingue-se,de modo característico, do emprego de conceitos históricos, que são foca-dos na apreensão de detalhes únicos e não-direcionados da vida em con-junto dos seres humanos no passado.

Processos sociais podem ter, em estágios anteriores ou posteriores, amesma direção. Dessa forma, surtos de distanciamento, ou surtos na dire-ção de uma maior integração e diferenciação, podem ser observados tantona Idade da Pedra quanto na Época Moderna. Processos sociais mais lon-gos permitem reconhecer freqüentemente e de modo bastante claro a rup-tura de um estágio do processo para outro mediante um decisivo desloca-mento de poder. Assim, o primeiro sutto de industrialização (ascensão aoestágio da produção industrial com máquinas e do operariado industrial)andou de mãos dadas com o declínio da produção artesanal e do artesanatoenquanto grupo social; o segundo surto de industrialização (ascensão aoestágio da produção automática guiada por computadores, robôs etc., e deseus respectivos grupos profissionais), com o declínio da produção fabrilanterior e das formas de prestação de serviços, assim como dos respectivosgrupos profissionais.

Pares de conceitos opostos, que servem para a determinação da direçãodos processos sociais, não têm apenas essa função. Eles podem servir para adeterminação de oposições e tensões estruturais no interior de um movi-mento processual em cada época considerada. Eles são imprescindíveis paraa determinação de fases ou estágios de um processo social. Uma fase poste-rior é geralmente caracterizada pela imposição de uma estrutura social mo-dificada e, especialmente, por uma mudança decisiva nas relações de poder,favorecendo determinadas posições sociais e desfavorecendo outras (porexemplo o deslocamento definitivo do equilíbrio de poder, anteriormenteflutuante, entre senhores clericais e seculares, entre a nobreza feudal e os prín-cipes, em beneficio desses últimos, no Renascimento europeu). No processode desenvolvimento da humanidade até agora, uma fase posterior freqüen-temente apresenta, em relação à fase anterior, uma ruptura na dominânciadecisiva de um centro de poder, cujos representantes anteriormente disputa-vam, sem chegar a uma decisão, com outros centros de poder.

O desmoronamento do antigo Império Romano pode servir como ummodelo instrutivo e empírico de um processo social em cujo decurso, comaceleração crescente, tendências de desintegração e descivilização sobrepu-seram-se a tendências de integração e civilização. Somente pelo encolhi-mento do Império foi possível, por cerca de um milênio, conter as tendên-cias de desintegração crescente em seu lado oriental, que atuavam tantointerna como externamente. A integração posterior, reconstituída, noespaço europeu central e ocidental oferece exemplos dos tipos mais varia-dos para processos de longa duração de formação do Estado e para o incre-mento da divisão de funções,intimamente ligado a ele.Esses processos cami-nhavam paralelamente a um deslocamento gradual de poder, desfavorável agrupos humanos estruturados segundo forças centrífugas (a nobreza feudal)e favorável aos senhores em posição central (príncipes territoriais, reis) e àscidades inicialmente autônomas e fortificadas.Todos esses são exemplos deprocessos sociais não-planejados, com uma dinâmica imanente de lutas de poderespecíficas, lutas essas que determinam direções.Vê-los como tais é umexemplo para uma síntese em um plano mais elevado que o histórico. Umateoria sociológica dos processos sociais tem de levar em conta, por exemplo,a afinidade estrutural de processos de formação do Estado no passado e nopresente. Deve também considerar os processos de formação do Estado emcurso nas épocas mais recentes, na África, ao sul do Saara. Em comparaçãocom os chefes de Estado ou de tribo centralizadores e seu aparato de domi-nação, outras tribos se contrapõem ali à crescente integração estatal. Elasencontram seu equivalente, no plano continental, na Europa, onde o amplosurto de integração, do registro do Estado nacional centrífugo para o regis-

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tro do Estado continental centrípeto, em detrimento desse último, ainda estáem suspenso.

Dentre os impulsos principais dos processos sociais encontram-se astensões e os conflitos ligados à monopolização por um grupo (ou eventual-mente também por dois grupos rivais) de meios de satisfação de necessida-des sociais, portanto de meios de poder, de outros grupos. Exemplos são amonopolização dos meios de produção, dos meios de orientação, dos meiosde organização e dos meios de violência física. Por ora, dois Estados conti-nentais (os Estados Unidos e a União Soviética) possuem uma espécie demonopólio do poder de dispor da violência física. O dilema da luta pelahegemonia, na qual não só as duas potências, mas também partes conside-ráveis da humanidade estão envolvidas, é um claro exemplo tanto do cará-ter de coação quanto do caráter bipolar dos processos sociais. A oposiçãodos potenciais de direção dos processos sociais mostra-se aqui particular-mente evidente: possibilidade de declínio na direção da autodestruição eda desintegração, possibilidade de ascensão na direção de uma integraçãomais ampla e da pacificação de unidades maiores.

Esta é uma das razões pelas quais o fulcro do que se entende por pro-cesso social deslocou-se na segunda metade do século XX, principalmenteem relação ao século XIX. No século XIX e início do XX, o foco dos soció-logos ao utilizarem esse conceito, ou outros a ele aparentados, limitava-segeralmente aos processos intra-estatais — portanto, por exemplo, à dinâ-mica de processos sociais ligados à monopolização intra-estatal dos meiosde produção. Processos sociais interestatais apareciam implicitamentecomo não-estruturados, talvez até como um campo de problemas paraalém do domínio de pesquisa sociológica. Transformações da realidadesocial mostram agora mais claramente que essa separação de processosintra-estatais e interestatais corresponde decerto à divisão das disciplinas,mas não à própria coisa. A integração crescente da humanidade aponta cadavez mais inequivocamente para a interdependência de processos intra einterestatais.A isso corresponde o fato de que o campo de tarefas da socio-logia não se restringe aos processos sociais intra-estatais, por exemplo àdinâmica dos processos de industrialização ou dos conflitos sociais de umEstado singular. Processos de formação ou de desintegração do Estado, deintegração e desintegração estatal e supra-estatal podem servir comoexemplos de processos sociais cuja estrutura e transcurso influenciam for-temente a estrutura e o transcurso de processos de Estados singulares, masque não se deixam mais esclarecer e determinar diagnosticamente pelalimitação do campo de investigação. Pode servir como exemplo o pode-roso processo de integração que, atualmente, leva todas as sociedades singu-

lares da humanidade a uma dependência cada vez mais estreita umas dasoutras. Ele merece a atenção dos sociólogos. Como no caso de muitosoutros surtos de integração, com isso aumentam inicialmente as tensões eos conflitos entre as unidades participantes que, sem serem consultadas efreqüentemente à revelia, tornam-se dependentes umas das outras. Umateoria dos processos sociais não pode ignorar processos desse tipo, ou seja,processos que englobam a humanidade. Antigamente, o conceito de huma-nidade referia-se a uma imagem ideal distante, sempre pacífica e harmô-nica. Hoje, refere-se a uma realidade rica em conflitos e tensões. Na teo-ria e na prática, o processo social de uma humanidade que se integra ou seautodestrói com alguma velocidade constitui o enquadramento universalpara a investigação de todos os processos sociais específicos. Só assim seabrirá caminho para a discussão de outros problemas relativos aos proces-

sos sociais.Bastam aqui algumas indicações. A questão da relação entre proces-

sos sociais e ações individuais está freqüentemente em primeiro plano.Processos sociais e seres humanos singulares, logo também suas ações, sãoabsolutamente inseparáveis. Mas nenhum ser humano é um começo. Assimcomo o falar individual provém de uma linguaja dada e específica de umasociedade, assim também todas as outras ações individuais brotam de pro-cessos sociais já em andamento. Os próprios processos sociais possuem semdúvida maior ou menor autonomia relativa frente a determinadas ações deseres humanos singulares, seus planos e ações (por exemplo, o surto atual deintegração da humanidade). Mas não são absolutamente independentes dosseres humanos e das ações humanas. Se os seres humanos parassem de pla-nejar e de agir, então não haveria mais nenhum processo social. Afinal decontas, essa autonomia relativa dos processos baseia-se na vida em comumde uma pluralidade de seres humanos mais ou menos dependentes uns dosoutros e que agem uns com os outros ou uns contra os outros — de sereshumanos que estão imersos em uma natureza não-humana. A autonomiarelativa dos processos sociais baseia-se, em outras palavras, no contínuoentrelaçamento de sensações, pensamentos e ações de diversos seres huma-nos singulares e de grupos humanos, assim como no curso da natureza não-humana. Dessa interdependência contínua resultam permanentementetransformações de longa duração na convivência social, que nenhum serhumano planejou e que decerto também ninguém antes previu.

Alguns outros conceitos, que podem ser úteis ao trabalho empírico eteórico da sociologia dos processos, são introduzidos aqui de maneirasucinta. Por exemplo, o conceito de constância de direção. Embora não-plane-jados, muitos processos sociais conservam a mesma direção por centenas ou

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mesmo milhares de anos, como por exemplo a ascensão das unidades de sub-sistência, a cada vez de unidades menores para unidades maiores, ou o cres-cimento, de lenta aceleração, do patrimônio humano de símbolos de conhe-cimento adequados à realidade. Na explicação dessa constância de direçãonão se pode deixar de lado a dinâmica das lutas de eliminação.2 Com o tempo,em muitos casos unidades de subsistência maiores ou um conhecimentoobjetivo mais abrangente ofereceram melhores chances de sobrevivênciaaos respectivos grupos humanos na luta concorrencial do que as unidadesmenores ou um patrimônio de conhecimento mais limitado.

O conceito de lutas sociais de eliminação remete ao de luta pelasobrevivência, que desempenha papel decisivo, como mecanismo de sele-ção, no processo de evolução biológica. A diferença entre o ponto de ata-que da seleção mediante lutas de eliminação é notável tanto no caso dosprocessos biológicos de longa duração como no dos processos sociais delonga duração. No primeiro, a continuidade do processo de uma geraçãoa outra é assegurada pela transmissão genética; e as mutações genéticas, quenão são influenciáveis por aprendizado, constituem o ponto de ataque paraa seleção mediante as lutas de eliminação. No segundo caso, a continui-dade do processo é mediada pela transmissão de conhecimento especifi-camente social, adquirido mediante aprendizado na forma de símbolossociais, sobretudo símbolos lingüísticos, e sem dúvida em todos os domí-nios da vida. A continuidade intergeracional das unidades de subsistênciahumanas como um todo, por conseguinte tanto seus aspectos econômicoscomo de auto-regulação, exige uma transmissão de conhecimento com oauxílio de símbolos lingüísticos. O ponto de ataque para a seleção mediantelutas de eliminação, nesse caso, não são inovações genéticas, mas inovaçõesdo conhecimento ou incapacidade para tais inovações em situações demudança. É evidente que os progressos muito lentos, mas retrospectiva-mente inequívocos, da técnica de ferramentas e armas no curso da Idadeda Pedra explicam-se porque as inovações no conhecimento da produçãode armas e ferramentas, que traziam vantagens a uma sociedade singularnas lutas de sobrevivência com outros grupos e com a natureza não-humana, foram incorporadas por oiitros grupos, que então também tive-ram melhores chances de sobrevivência, enquanto os grupos que não asincorporaram foram subjugados e desapareceram. Retrospectivamente, osseres humanos vêem amiúde apenas o progresso aparentemente uniformeda técnica e não as lutas de eliminação, que custaram vidas e estão por trásdaquele. A diferença entre a transmissão genética não influenciávelpelo aprendizado e a transmissão de conhecimento possível apenas me-diante o aprendizado é também co-responsável pelo fato de que os

processos de evolução biológica são irreversíveis, enquanto os de desen-volvimento social são reversíveis.

Estabeleceu-se por isso uma grande confusão ao se atribuir ao desen-volvimento social uma necessidade como que mágica de progresso. Comrelação a isso, pode-se dizer que, no curso de seu desenvolvimento, a huma-nidade realizou progressos em muitos domínios, que podem, geralmente,ser comprovados por critérios sólidos. A representação de um progressouniversal é, em comparação, um mito, particularmente quando ligada àimagem de um estado final do desenvolvimento social. Faz parte das pecu-liaridades dos processos sociais que eles possuam direções, mas, assim comoa natureza, não possuem nem objetivo nem fim. Estes poderiam ser alcan-çados se os seres humanos, como humanidade, conseguissem algum diachegar a um acordo sobre eles.

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Tecnização G ciuilização

O processo de tecnização e o processo civilizador1 são, ambos, pro-cessos de longa duração, não-planej ados, que se movem numa dire-ção discernível — com impulsos e contra-impulsos alternados —mas sem qualquer propósito na longa duração. São não-planej ados,embora surjam do entrelaçamento, da conjunção, da cooperação edo confronto de várias atividades planejadas.

TecnizaçãoTecnização é o processo que, à medida que avança, permite que seaprenda a explorar objetos inanimados, cada vez mais extensa-mente, em favor da humanidade, manejando-os e os processando,na guerra e na paz, sobretudo na expectativa de uma vida melhor.Muitos talvez preferissem limitar a noção de tecnização — e, por-tanto, também a de tecnologia — à época mais recente, na qualaprendemos a transformar energias por nós liberadas em forçamotriz da industrialização, da produção de armamentos e de ferra-mentas dos mais diversos tipos. Embora o conceito possa serrestringido à era da máquina e, assim, equiparado à motomecaniza-ção, trata-se de uma restrição vã, em todos os sentidos da palavra,pois representa uma distorção egocêntrica do desenvolvimentohumano e lança uma sombra sobre a continuidade desse processo.Quando as pessoas aprenderam a fazer fogo, a desfrutar o calor resul-tante da combustão da madeira e de outros materiais, assistiu-se a

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uma grande inovação no curso da tecnização e deu-se um importante passoem direção a uma vida mais proveitosa, na paz e (para os vitoriosos) na guerra,corno ocorreu quando da aprendizagem da arte de produzir automóveis eaviões. Para entendermos como se chegou a tais níveis de conhecimento, éindispensável reconstruir o estado do não-saber anterior. A tecnizaçãoenvolve toda a humanidade. Inicialmente, desenvolveu-se em ritmo maislento, uma vez que os seres humanos pouco sabiam do mundo ao seu redor.Contudo, acelerou-se, à medida que se foi conhecendo a natureza inanimada.

O domínio do fogo logo aumentou o rendimento do trabalho, reduziuo esforço e, com isso, resultou na chance de uma vida melhor (ver Gouds-blom, 1987 e 1992).Também possibilitou o aprimoramento dos recursosbélicos — e os guerreiros que conquistavam boas terras podiam depositarsuas esperanças numa vida mais pródiga. Muito tempo depois, quando sechegou ao controle da energia nuclear, novamente surgiram perspectivas deuma existência mais compensadora.A possibilidade de os seres humanosestarem em vias de usar essa energia num ataque recíproco deve-se em parteà natureza restrita da sua imaginação. No passado, com que freqüência pre-sumiu-se que o triunfo nos conflitos traria uma vida melhor? As pessoas dehoj e não conseguem entender que, neste caso, mesmo a vitória levaria a umasituação pior.

Possivelmente não se entenderá de imediato por que me refiro a umavida melhor e não a uma vida boa. Pode-se iniciar uma discussão intermi-nável sobre o significado de "vida boa".A expressão nos traz à mente a ima-gem de um estado final e acabado. Em grande medida, representa um ideal.Por sua vez, o termo "vida melhor" refere-se a um processo social em cujodesenvolvimento as condições de existência tornam-se não exatamente óti-mas, em sentido absoluto, porém superiores em comparação a uma faseanterior. Quando, para lavar e cozinhar, deixa-se de recolher água num poçoa 10 minutos de distância e passa-se a recebê-la encanada, a vida das pessoasmelhora. Confronta-se a fase subseqüente com a precedente, com base emcritérios impessoais—pois é possível falar de critérios impessoais de melho-ramento. A pesada carga de trabalho diminui quando, para ter água em casa,basta abrir uma torneira. Caso aludíssemos, no entanto, a uma vida boa, dei-xaríamos a porta aberta para qualquer extravagância.

O processo de ciuilizaçãoTal qual a tecnizaçãojj processo civilizador corresponde a um percurso deaprendizagem involuntária pelo qual passa a humanidade. Começou nosprimordios do gênero humano e continua em marcha, com inúmeras vicis-

situdes, no presente momento. Não há fim à vista. Só a direção é claraTambém nesse caso, a linguagem nos impele a usar conceitos que dão a ilu-são de um estado final absoluto. Fala-se da antiga civilização egípcia ou dacivilização francesa atual. A questão é saber se temos de nos submeter, e emque medida, a um uso empobrecido da língua. Não há sociedade ou indiví-duos dos quais se possa dizer: "Eles são civilizados." Existem, contudo, cri-térios tangíveis por meio dos quais se pode verificar que algumas sociedadestornaram-se mais civilizadas, em certos aspectos, do que eram um séculoantes. O processo civilizador pode ser demonstrado inequivocamente, coma ajuda de comparações sistemáticas, tanto entre estágios diferentes de umamesma sociedade quanto entre sociedades distintas. No entanto, concebidacomo um estado, a civilização é, no máximo, um ideal.

O processo de civilização está relacionado à auto-regulação adquirida,imperativa para a sobrevivência do ser humano. Sem ela, as pessoas ficariamirremediavelmente sujeitas aos altos e baixos das próprias pulsões [urges] Cai-xões e emoções, que exigiriam satisfação imediata e causariam dor caso nãofossem saciadas. Na ausência da auto-regulação, não se poderia, sem grandedesconforto, adiar — conforme circunstâncias realistas — o aplacamentodas pulsões nem modificar a direção da busca desse objetivo. Nessa situação,todos agiriam como crianças pequenas, sem condições de regular as pulsõese as paixões — ou seja, de se auto-regular — e igualmente incapazes, por-tanto, de viver permanentemente na companhia dos outros.

O padrão de auto-regulação, tal qual a maneira como esse modelo seintegra e se relaciona com as pulsões de determinada pessoa e com as da-queles que a rodeiam, muda segundo urna orientação definida no curso dodesenvolvimento da humanidade. O conceito de civilização refere-se àdireção desse processo. O fato de que haja uma direção discernível não sig-nifica, contudo, que se possa apontar-lhe um propósito ou objetivo.Trata-se, como se disse anteriormente, de um caminhar não-planejado. Numasociedade qualquer, as mudanças no sentido da civilização ou da descivüi-zação podem se suceder urnas às outras de forma variada. Num dadomomento, podem se equilibrar; noutro, um desses rumos pode prevalecer.Até agora — numa perspectiva de longo prazo — as transformações civi-

lizadoras mostraram-se predominantes.A explicação para a durabilidade da direção do processo civilizador

humano requer mais pesquisas. Minha análise anterior da questão (Elias,1939/1990-93) mostrou que essa permanência está ligada à pacificaçãointerna das unidades de subsistência. Um certo nível de pacificação — comunia situação mais estável nas relações sociais dentro de um grupo de pessoas,e menos estável nas relações entre grupos diferentes — pode ser observado

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tanto nas unidades de subsistência mais simples quanto nas mais elaboradas.Todavia, pode-se facilmente constatar e demonstrar certa transformação dahumanidade: a passagem de uma figuração formada por uma grande quan-tidade de unidades de subsistência relativamente pequenas para uma figura-ção com unidades maiores, em número mais reduzido — através de váriosestágios intermediários, incluindo algumas inversões de rumo, como ocor-reu, no passado, em algumas regiões da África. No curso dessa mudança,pouco se alterou o padrão de pacificação: o contraste entre as relações inter-nas a cada grupo e as relações entre grupos diferentes. Uma modificaçãoconsiderável afetou, contudo, o padrão, a interiorização e as condicionantesdas relações de auto-regulação. Para os grupos menores e os indivíduos quedeles fazem parte, o perigo resultante tanto do que chamamos de naturezainanimada quanto dos outros conjuntos de pessoas é imensamente maior emais incessante do que os riscos com os quais se defrontam os grupos maio-res em função desses mesmos elementos. Da mesma forma, a totalidade daexperiência e a língua usada na comunicação representam um nível maiorde afetividade, de egocentrismo irrefletido — ou seja, de envolvimento(Elias, 1983).As manifestações de auto-regulação são menos estáveis, maisclaramente marcadas por extremos contrastantes e mais sujeitas a flutuações.

Freqüentemente, a atual redução do nível de perigo observado nodesenvolvimento da humanidade passa despercebida. Alguns leitorespodem balançar a cabeça e perguntar: "Como é possível falar seriamente emredução do nível de perigo numa época em que a humanidade inteira viveà sombra da guerra nuclear?" O fato de estarmos hoje diante de um granderisco lança uma névoa no horizonte. O perigo é aceito como algo absoluto.Com base na força do envolvimento, a afirmação de que o risco é grandeassocia-se automaticamente à asserção de que o perigo é maior do quenunca. Mas, se a primeira afirmação está relacionada a um dado estado de coi-sas e é indubitavelmente verdadeira, a segunda diz respeito a um processo —que precisa ser verificado com cuidado, confirmado ou rejeitado com basenuma apreciação de longo prazo e, sobretudo, na compreensão resultante dareconstrução do não-saber, ou seja, da posição na qual as pessoas se encon-travam no passado e se encontram parcialmente ainda hoje. De fato, os indi-víduos que viviam em comunidades pequenas viam-se freqüentementecercados por seres humanos e animais hostis. Encontravam-se também par-ticularmente expostos aos eventos naturais imprevisíveis (a imprevisibili-dade era proporcional ao limitado estoque de conhecimento) e estavamincomparavelmente mais desprotegidos do que os atuais habitantes dos paí-ses mais desenvolvidos. Nestes, a vida em conjunto numa área relativamentepacificada, com um número de pessoas muito maior, requer um equilíbrio,

uma estabilidade e uma variedade de estratégias de auto-regulação relativa-mente altas.Trata-se de uma conseqüência da maior diversidade, da exten-são e da variedade das cadeias de interdependências que percorrem a exis-tência social de um indivíduo. Ao considerarmos a direção, não-planejada,do processo civilizador, e ao perguntarmos se algo dele pode ser incorpo-rado ao conjunto de objetivos traçados para o futuro, podemos talvez che-gar à seguinte conclusão: é essencial, para o conceito de civilização, haveruma regulação progressiva, crescentemente estável e equilibrada, efetuadapor indivíduos em prol de suas vidas sociais, de modo a aumentar as chan-ces de obter prazer e a melhorar a qualidade de vida de todos, de toda ahumanidade — e também de cada um dos indivíduos auto-reguladores.

TGcnizaçãoeciuilizaçãoFalamos muito dos dois processos, o de tecnização e o de civilização, separada-mente. Mas o título deste trabalho é "Tecnização e civilização". Hoje, este é omodo de compor títulos de artigos: tomar dois substantivos e os unir por meiode uma pequena palavra, a conjunção e. Soa tão inofensiva essa palavrinha...Devemos, entretanto, tomar cuidado com sua aparente simplicidade. Ela éenganadora e bem pouco confiável. Afinal, que tipo de relação existe entre atecnização e a civilização? Essa relação é similar à estabelecida entre uma mesae uma cadeira ou como a que se observa entre causa e efeito? Não se pode dizerque os dois processos simplesmente existem lado a lado, de tal forma que umdeles encontre-se imerso no outro. Obviamente, também não é o caso de afir-mar que a tecnização é a causa e a civilização o efeito — ou vice-versa. Na ver-dade, ambas vêm se prolongando tanto quanto a atual espécie humana. Mesmoa concepção da mais simples ferramenta de pedra baseava-se, como todas asoutras técnicas, na capacidade, exclusiva dos seres humanos, de deixar de lado,por um tempo, o desejo de satisfazer um impulso ou uma emoção, utilizando-se, então, essa pausa para outras atividades. Sem contribuir diretamente para asatisfação ao fim dessa pausa — ou desvio por distanciamento [detachment] —,essas atividades prometem, ao final, uma gratificação melhor, maior ou maiscerta, para as moções pulsionais postergadas. Mas se os primeiros passos nocaminho para a tecnização já supunham a capacidade de conter um impulso,de adiar um prazer — implicando, em suma, a auto-regulação dos desejos —,essa contenção, essa procrastinação temporária também se baseava na promessade um prazer vindouro e na expectativa de que os desejos fossem,por fim, real-mente saciados. De fato, a atividade contrária às pulsões durante a pausa exigia,corno recompensa, uma satisfação maior e, se possível, mais generosa dos dese-jos do que seria possível sem o desvio por distanciamento.

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Tornamo-nos conscientes, logo numa primeira tentativa de descobriro que realmente está por trás da palavrinha e no tema "Tecnização e civiliza-ção", de que a estrutura tradicional dos conceitos é insatisfatória para asociologia. A relação entre dois processos humanos interconectados e des-providos de origem (tal qual a humanidade) não cabe no esquema tradicio-nal de relações causais de curto prazo, que sempre supõe um elemento ori-ginário e, portanto — desde o começo —, um mundo descontínuo (verElias, 198371998).

Tecnização e civilização são apenas dois dos muitos fios emaranhadosno desenvolvimento da humanidade. Certamente, não os considero comose um deles fosse a base e o outro a superestrutura, como se um fosse a causae outro o efeito. Não é o caso. Muito tempo atrás, as pessoas tinham dificul-dade para imaginar que o Sol, as estrelas e a Terra não se firmavam em sóli-das fundações e que, em vez disso, estavam, por assim dizer, flutuando noespaço. Do mesmo modo, aparentemente, ainda hoje é difícil supor que ahumanidade desenvolveu-se sem estar apoiada numa esfera básica única —e sempre a mesma — concebida como um alicerce cujas transformaçõesimpulsionariam o movimento de todas as outras, como uma espécie de forçamotriz auto-ativada a lhes servir de referência. O entrelaçamento dessas"esferas" é um problema complexo. Entretanto, a necessidade de encontraruma origem turva-nos a visão. Não existe um aspecto fundamental dodesenvolvimento da humanidade que seja a base de todos os demais. O alfae o ômega desse percurso são os seres humanos — ou, de fato, a própriahumanidade.

R tecnização do transporteComo manter esse amplo tema dentro dos seus limites sem perder intei-ramente de vista os problemas teóricos básicos? Creio que possamos fazê-lo se tratarmos de um desenvolvimento tecnológico específico, se nosocuparmos mais detalhadamente de um determinado processo de tecni-zação, usando material empírico ̂ para mostrar como a tecnização e a civi-lização interagem. O caso sobre ò qual gostaria de me debruçar, as trans-formações nos transportes a partir do século XIX, é um exemplo de umgrande passo da humanidade em direção a uma nova dimensão, a novosmodos da vida social e também a um novo nível de civilização — umavanço que, no entanto, não pode ser confundido com um estágio final.Ainda nos achamos em pleno processo de aprendizagem, em cujo cursoencontraremos maneiras de lidar com os vários problemas surgidos dessasinovações. .

Permitam-me primeiro abordar a questão dessas transformações doponto de vista da tecnização. A mudança radical no transporte de bens e pes-soas foi uma das maiores e mais extensas mudanças científico-tecnológicasocorridas nos séculos XIX e XX. Essa revolução corresponde a um processoque, em todos os estágios, avançou na mesma direção, sempre buscando oaumento da mobilidade e a redução das distâncias ao redor da Terra e, maisrecentemente, no que, sem muita precisão, chamamos de espaço.Trata-se deum processo social não-planejado, resultante — como muitos outros — doentrelaçamento de várias atividades individuais que se reforçam e se neutra-lizam umas às outras. Contudo, seu caráter dramático passará quase desper-cebido se nos concentrarmos nas ações individuais. Para percebê-lo em todoo seu vigor, temos de nos distanciar, a fim de formular uma síntese a partirde um ângulo de visão mais agudo e entender os problemas encontradosquando deparamos com um percurso que se estende por séculos — como aquestão relacionada ao motivo pelo qual se conservou constantemente umamesma direção. O que terá levado os seres humanos a concentrarpor gerações, particularmente nos séculos XIX e XX, sua capacidade depesquisa científica, entre outras coisas, no incremento de sua própria mobi-lidade, na aceleração do transporte?

Para aqueles que já sabem, uma maneira útil de começar a pesquisa con-siste em reconstituir — para o seu próprio entendimento — o ponto de par-tida, o estado do não-saber.

A força motriz mais comumente usada nos meios de transporte até oinício do século XIX era a da tração muscular — humana ou animal.As for-ças adicionais disponíveis provinham de dois elementos naturais já domina-dos pelos seres humanos: o vento e a água.

O processo social da revolução dos transportes relaciona-se intimamentecom o não menos revolucionário desenvolvimento do conhecimento. Osseres humanos conseguiram romper as correntes que condicionavam suamobilidade às forças motrizes postas à sua disposição pelo maior ou menordomínio dos eventos naturais. Em seu lugar, produziram-se novas formas deenergia para os mais diversos equipamentos mecanizados, incluindo os meiosde transporte, mediante o processamento de materiais naturais. Essas forçasartificiais prestavam-se muito mais ao controle e à conservação, além de semostrarem mais poderosas que a tração muscular, o vento e a água. Nomínimo, as pessoas podiam aprender a dominá-las. Os quatro estágios da revo-lução dos transportes nos séculos XIX e XX são bem conhecidos:

1. a máquina a vapor, ou seja, o das ferrovias e dos barcos a vapor;2. os veículos com motor de explosão;

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3. o avião;4. os veículos espaciais e a energia nuclear.

Não é de se esperar que aqueles que permanecerem suficientemente distan-ciados — a ponto de obter uma visão geral de todas essas mudanças radicaisnos transportes, observadas no curso de 200 anos ou mais — acabem intri-gados com a direção constante desse processo revolucionário?

Além de apresentar a questão, posso mostrar, mediante um caso ilus-trativo, que uma preocupação com processos sociais de longa duração, pormeio de uma abordagem sociológico-processual, ajuda a ressaltar aquiloque antes não parecia tão óbvio. Por exemplo, ao compararmos os quatroestágios da revolução dos transportes, podemos ver que cada uma dessasinovações tecnológicas não foi apenas uma invenção particular de umperíodo, mas também um desenvolvimento: cada uma foi, em si mesma,um processo social, no qual se pode distinguir um período de experimen-tação, de não-saber, de riscos e perigos, e outro de (na falta de palavras me-lhores) amadurecimento ou maturação. O mais relevante, do ponto devista sociológico, é o fato de que a experimentação tecnológica normal-mente anda lado a lado, desde muito cedo, com experiências relacionadasà organização social.

Para o propósito deste artigo, devo restringir-me a considerações, algosuperficiais, sobre dois desses estágios: o desenvolvimento dos veículos commotor de explosão e o desenvolvimento do avião. Isto bastará para esclare-cer certos aspectos das conexões entre os processos de tecnização e civiliza-ção. Gostaria de apresentar, a princípio, material ilustrativo relacionado aoperíodo experimental da primeira etapa a ser examinada.

Geralmente não nos perguntamos quem de fato inventou o automó-vel. Esta seria, na verdade, uma falsa maneira de apresentar o problema. Pois,em vez de um inventor, encontramos um processo de experimentação —inicialmente difuso e depois crescentemente concentrado — que duroucerca de 100 anos.

Até onde sabemos, tentativas de desenvolver veículos terrestres auto-propulsionados que prescindissem doslrilhos de ferro foram feitas quasesimultaneamente às mais bem-sucedidas experiências para produzir veícu-los ferroviários a vapor.Tais tentativas visavam à obtenção de um sucessormotorizado para as carruagens puxadas por cavalos — destinadas a levar seusdonos aonde quer que pretendessem ir. Aparentemente, isso era bem maisdifícil, do ponto de vista tecnológico, que a criação de meios firmementeapoiados em trilhos para transportar passageiros não de porta a porta, mas deuma estação a outra.

O Parlamento Britânico aprovou uma lei, em 1835, cujo objetivo eraregular o tráfego crescente nas principais vias do interior da Inglaterra, umaespécie de "código rodoviário". Uma das medidas tinha como alvo os pre-cursores do moderno carro com motor de explosão. Com base nessa legis-lação, pode-se inferir que aquelas carruagens sem cavalos, em vez de seremconsideradas formas iniciais de uma tecnologia com grande futuro, eramvistas como monstruosidades perigosas. Alei de 1835 estabeleceu uma velo-cidade máxima de 4 milhas inglesas por hora* para veículos autopropul-sionados.Também determinou que fossem precedidos por um homem comuma bandeira vermelha, aparentemente para prevenir os pedestres e veícu-los a cavalo que viessem na direção contrária.** Essas regras só foram revis-tas pelo Parlamento em 1896, quando se permitiu trafegar a até 10 milhaspor hora. Ao que tudo indica, suprimiu-se a exigência pela qual alguémtinha de andar à frente do carro. A velocidade máxima passou para 20 milhaspor hora em 1903. Em 1930, aboliu-se o limite de velocidade para carros emotocicletas particulares. No entanto, os acidentes se multiplicaram a talponto que o controle foi reintroduzido nas áreas urbanizadas.

Com todo o transtorno, esse novo meio de transporte tornou-se ocentro de um longo processo de aprendizagem. Revelou possibilidadespreviamente inimagináveis e perigos igualmente imprevistos. Colocouem movimento, como veremos, uma nova força do processo civilizador.Mas foi também um produto de tal força que desencadeou, ao mesmotempo, um impulso em sentido contrário, na direção da descivilização.Tomando como referência o conceito teórico de civilização, podemosdizer que o veículo com motor de explosão tem, portanto, duas faces.

O processo de aprendizagem dos sociólogos exige que criemos ferra-mentas conceituais para compreender um processo de aprendizagem delonga duração — tecnológico, no caso aqui examinado — como o desen-volvimento do carro com motor de explosão. A convenção nos leva a pro-curar, por questão de rotina, o inventor individual de novidades como oautomóvel ou o avião. A confrontação com as evidências, no entanto, força-nos a desistir dessa busca. Esperançosas, muitas pessoas fizeram experiências.Algumas poucas foram bem-sucedidas. Depois, outras se saíram aindamelhor. Isso é justamente o que a sociologia procura salientar ao dizer quea explicação para as inovações tecnológicas não pode ser encontrada num

* l milha inglesa = l,6km/h. (N.T.)** É possível que a origem da bandeira vermelha como símbolo dos trabalhadores com cons-ciência de classe tenha conexão com essa lei.

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único inventor, mas, sim, num processo social. Não significa que tal pro-cesso ocorra fora e além do indivíduo. Afirma-se simplesmente que a ino-vação deriva dos esforços de muitas pessoas, que trabalham ora em coope-ração, ora em competição, aprendendo sozinhas ou em conjunto,por meiode suas tentativas, falhas e sucessos parciais. Assim, o avanço e a descobertafinal advêm do entrelaçamento de muitos pequenos passos, de muitaspequenas vitórias e derrotas, ao longo de várias gerações.

O problema sociológico apresentado pelo desenvolvimento das inova-ções sociais é diferente do — agora rotineiro — problema histórico relacio-nado ao inventor individual. Formular sociologicamente a questão significavoltar a atenção para o desenvolvimento social responsável por casos, comoo do veículo sem cavalos ou o do avião, nos quais a experimentação não-organizada e em certo sentido difusa, feita por muitas pessoas, vai aos pou-cos levando o conhecimento humano suficientemente longe, até permitirque se alcance uma solução prática para um problema da sociedade. Talvezseja útil estabelecer uma distinção entre o período preliminar de experi-mentação, fase em que o avanço se faz por meio da tentativa e do erro, e umperíodo de maturidade. Neste, depois de se encontrar a estrutura básica danovidade tecnológica desejada, segue-se um período de progressos desti-nado a aprimorá-la.

No caso do veículo motorizado, o ponto de inflexão-4o períodoexperimental de"tentativa e erro"para o de maturidade foi alcançado em1885-86. A honra da invenção do carro motorizado de uso factível cabe,geralmente, a dois alemães, Gottlieb Daimler e Karl Benz. Entretanto, opioneirismo transferiu-se rapidamente para os franceses, dos quais, porexemplo, Renault foi um dos primeiros a obter sucesso. Até hoje, palavrasoriginalmente francesas como "chaufFeur","garage" e, claro, "automobile"atestam a influência inicial da França.Entre os americanos, os primeiros a pre-sentear o público com um automóvel passível de uso foram os irmãos Charlese Frank Dureya.2 Depois dessa inovação, a expansão acelerou-se. A fim deentender o processo de desenvolvimento, contudo — e, portanto, também osnossos problemas presentes —, pode ser útil apresentar alguns dados que nosdão idéia da situação há cerca de apenas 100 anos. O Chicago Times Heraldorganizou, em 1895, a primeira corrida de automóveis. Apenas dois dos seiscompetidores completaram, sob uma tempestade de neve, o percurso de maisde 52 milhas, e o ganhador andou a uma velocidade média de 6 milhas porhora. O primeiro acidente de carro de que se tem notícia ocorreu em 1896,em Nova York; o primeiro acidente fatal, três anos depois, na mesma cidade.

Se eu estivesse contando uma história, teria agora que continuar: "Eentão veio Henry Ford", como escreveu Robert Lacey:

O carro para o povo, de Henry Ford ... não era uma idéia comum em 1907. Foiconseqüência dos instintos populistas de Henry, de seu inconformismo com omonopólio dos ricos sobre a boa vida ...

Contudo, a idéia não era unicamente de Henry Ford. Outros fabricantestentaram produzir carros baratos em grande escala. A ambição de Henryganhou notoriedade por resultar na tecnologia, nas sólidas inovações de enge-nharia que tornaram isso possível.3

Efetivamente, naquela época, além dos fabricantes de carros, outros indus-triais começaram a antever um consumo em massa, a perceber a existênciade um consumidor em potencial para bens até então acessíveis apenas paraos ricos. Bastava que esses itens pudessem ser produzidos em grande quan-tidade e, portanto, de maneira mais barata.A ampliação do mercado e o inte-resse despertado nos empreendedores eram sintomas de uma transformaçãona estrutura das próprias sociedades industrializadas. A produção mecani-zada começara a gerar bem-estar suficiente para permitir que os emprega-dos das fábricas e toda a rede de dependentes daqueles estabelecimentosobtivessem renda suficiente para comprar o que antes lhes era impossível.Em outras palavras, o padrão de vida das massas estava aumentando.

O mercado massificado não foi inventado, foi pressentido e utilizado porhomens como Henry Ford. Assim, tiveram início a produção em grande escalade carros motorizados e a generalização do uso desses veículos nas estradas dospaíses industrializados — bem como o assassinato em massa. Conforme men-cionei, uma pessoa morreu num acidente de carro em 1899.Em 1974, os auto-móveis do mundo inteiro mataram, no total, 230.276 pessoas.4

Hlgumas obsemações gerais sobre a relaçãoentre os processos de teenização e ciuilizaçãoArgumentei anteriormente que a palavrinha e, no título "Tecnização ecivilização",pode facilmente ser mal entendida. Hoje em dia,por força dohábito, somos freqüentemente levados a concluir que um dos dois proces-sos é o principal, a causa do outro.Também poderíamos pensar, por exem-plo, que o desenvolvimento econômico — do qual não tratamos até agora— desempenha o papel central, do qual deriva todo o restante. Mas acre-dito, como disse antes, que os fatos não corroboram esse modelo simples.A interação dos diferentes processos parciais é complexa e não tem pontode partida. Não posso oferecer ao leitor, nem com toda a minha boa von-tade, um novo processo fundamental que satisfaça a necessidade ideoló-

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gica de se encontrar uma causa qualquer, a não ser o próprio desenvolvi-mento humano.

A tecnização dos transportes nos séculos XIX e XX é impressionante enão há dúvida de que o uso dos novos meios de locomoção demandava umadisciplina maior, uma auto-regulação constante e uniforme. Isto se aplicanão apenas aos operadores das máquinas — motoristas, pilotos de avião emecânicos —, mas também aos passageiros. Em vários países desenvolvidos,os trens partem no exato momento marcado e a pontualidade alcança osminutos, talvez mesmo os segundos. Já tratei, em outro trabalho (Elias,1984/1998), da transformação da auto-regulação do tempo social numaespécie de segunda natureza para as pessoas dos países mais avançados. Nãoestou dizendo, contudo, que a tecnização seja a causa e a auto-regulação civi-lizadora, o efeito — nem o contrário.

Para se iniciar e se manter em curso, a tecnização já demandava um graurelativamente alto de auto-regulação civilizadora. Na tentativa de entendermelhor o estágio preliminar de experimentação com os meios de transporteno século XIX — que por fim resultou no automóvel e, pouco depois, noavião —, deparei com algo que me impressionou.Em certos aspectos,inven-tores conhecidos que contribuíram com os experimentos para desenvolvero automóvel e o avião assemelham-se uns aos outros. Veja-se Gehlen, o relo-joeiro, que fez experiências com aparelhos voadores logo no início do séculoXIX, ou Otto Lilienthal, da Pomerânia (e mais tarde de Berlim), morto emsua última tentativa de vôo não-motorizado e cujos planadores quase o leva-ram ao projeto do avião, conduzindo, por fim, à invenção dos irmãos Wilbure OrvilleWright. Ou tomem-se Karl Benz e Henry Ford. Não importa qualdeles se observe, a disciplina com que perseguiram seus objetivos por váriosanos é impressionante. Eles não tinham como saber se aquelas metas pode-riam de fato ser alcançadas.Todos começaram sem fundos ou com muitopoucos recursos — e, em todo caso, as provisões financeiras de que dispu-nham provavelmente decorriam de empréstimos. Todos eles construíramsuas primeiras máquinas (e muito freqüentemente os motores) artesanal-mente, nas suas pequenas oficinas o^ mesmo na cozinha das suas casas. Semdúvida, esses homens tinham dons incomuns — particularmente, mas nãoapenas, no campo da tecnologia. Demonstravam também tenacidade nacondução do trabalho experimental. Henry Ford e seus amigos, no esforçopara construir um chassi de quatro rodas motorizado, esqueceram que aporta da oficina era pequena demais para permitir a passagem do veículo.Com raiva, Ford arrancou os tijolos em volta da entrada, a fim de poder tes-tar sua máquina na rua. Muitos desses inventores certamente foram jovenspromissores. Sabiam que a sua única chance de ter êxito era inventar algo.

j\fão nos esqueçamos, contudo, de que uma das características da sociedadeda qual faziam parte era a de dar aos mais novos uma chance relativamenteboa de progredir caso tivessem não só o talento, mas também a disciplinanecessária para perseguir a invenção tecnológica em questão.

O que estou dizendo é que os conceitos de causa e efeito não podemser aplicados à relação entre tecnização e civilização. Atualmente, ambosos processos tendem a seguir adiante, embora em alguns casos tambémretrocedam.

Para o propósito desta pesquisa, e a fim de nos comunicarmos, usamostermos distintos, com os quais podemos lidar separadamente. Conceitosdesse tipo nos fazem esquecer facilmente sua relação com pessoas que coe-xistem umas com as outras. E particularmente importante para os sociólo-gos, quando se fizer uso de conceitos objetificadores [objectifying concepts],não perder de vista o fato de que, na verdade, eles se referem a pessoas emseus grupos \people-in-their-groups]. Há pessoas que promovem a tecnizaçãode certos aspectos de suas vidas sociais e acabam marcadas por esse processo.Há também os indivíduos em seus grupos, por assim dizer, civilizando-se ouse descivilizando. O processo civilizador compreende seres humanos civili-zando seres humanos. A linguagem que herdamos freqüentemente nos forçaa pensar e falar de uma maneira que contradiz os fatos observáveis. Caso sedeseje submetê-los a essa limitação, pode-se ir longe demais, perdendo-se ocontato com o próximo.Talvez eu me excedesse se dissesse que "as mesmassociedades tornaram-se mais tecnizadas e mais civilizadas". Mas é possívelobservar que, de fato, um surto de tecni/ação vem geralmente acompanhadode um surto de civilização. Contudo, freqüentemente também, um estágiode tecnização recém-alcançado conjuga-se a um contra-surto, em direção àdescivilização.

Isto é exatamente o que se observa na transição da tecnização de veí-culos terrestres do período experimental para o de consolidação e produ-ção em massa.Já assinalei que todas essas fases correspondem a processos deaprendizagem. Quando o automóvel chegou à maturidade, as pessoas tive-ram de lidar com todo tipo de experiências novas. Precisaram aprender aremodelar as cidades e as redes de estradas, a fim de torná-las adequadas aonovo meio de transporte — porque as vias eram, todas, originalmente pla-nejadas para coches e pedestres. As ruas, pavimentadas com pedras frouxas,por exemplo, tinham sido preparadas para veículos puxados a cavalo e agorase mostravam perigosas para carros motorizados. Em 1903, o GrandePrêmio Paris—Madri foi prematuramente cancelado.Tantos motoristas sehaviam envolvido em acidentes devido às nuvens de poeira que os organi-zadores interromperam a corrida para poupar os sobreviventes. As autori-

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dades tinham de aprender. Os projetistas tinham de aprender. Os fabrican-tes daquela inovação tecnológica tinham de aprender. E esse grande pro-cesso de aprendizagem, conectado ao novo estágio da tecnização dos veí-culos terrestres,preocupava particularmente os beneficiários do novo meiode transporte, os próprios motoristas.

Faz parte do senso comum a idéia de que, no curso do século XX, par-ticularmente entre as nações industriais mais desenvolvidas — o chamadogrupo de Estados ocidentais —, o carro tornou-se um acessório cor-riqueiro, quase indispensável à vida. Foi assim para a maioria das famílias e,com freqüência, também para os indivíduos, jovens ou velhos. Para muitaspessoas, o automóvel passou a ser parte delas mesmas, ampliando-lhes aliberdade de movimento de uma maneirajamais vista até então. Alguém dáuma ordem e o veículo obedece, pelo menos se estiver bem cuidado. Ocarro dá a seu "amo e senhor" um poder não disponível em tempos ante-riores nem para os que contavam com um grande séquito de serviçais.Leva-o em grande velocidade, com pouco esforço, através dos países, dá-lhe um prazer quase pleno, embora às vezes também traga problemas.Considerando-se tudo isso, pode-se dizer que a qualidade de vida elevou-se a um custo tolerável.

Algo nem sempre sublinhado, no entanto, é o fato de que o surto de tec-nização gerou um novo surto de civilização, uma grande massa de pessoas— responsável por fazer do veículo motorizado, sobretudo do automóvelparticular, um apêndice da vida dos indivíduos. Certamente o tráfego exi-gia certo grau de regulação por parte do governo. Já mencionei a Lei deAuto-Estradas da Inglaterra de 1835, responsável por estabelecer uma velo-cidade máxima de 4 milhas por hora. Desde então, a observância do limitede velocidade foi deixada, em muitos casos, a cargo dos motoristas. Esteexemplo nos mostra até que ponto, entre todas as determinações públicas, otráfego motorizado depende dos próprios indivíduos.Trata-se do surto decivilização ao qual me referi anteriormente. Embora um ordenamento legale supervisão sejam indispensáveis, o nível de auto-regulação imposto pelomotorista é, e continuará sendo, decisivo para a segurança do fluxo de car-ros autopropulsionados. Este é um dos mais concretos casos ilustrativos deinteração entre a tecnização e a civilização. Estamos ainda em pleno processode aprendizagem. As grandes vantagens e prazeres resultantes da posse e douso de veículos motorizados, tanto particulares quanto comerciais, levaramà aceitação das suas desvantagens. A taxa anual de acidentes é consideradapraticamente inevitável. Mas, uma vez confrontados com o fato, não pode-mos negar que o automóvel se faz acompanhar não só de um impulso civi-lizador, em direção a uma forma específica de auto-regulação individual,

mas também, e ao mesmo tempo, de um surto descivilizador, representadopelo assassinato regular de seres humanos e pelos freqüentes ferimentos físi-cos — muitos deles suficientemente severos para marcar as pessoas pelo restodas suas vidas e para infligir sofrimentos mais ou menos graves.

Ao longo dos anos, pelo menos nos países mais desenvolvidos, foi pos-sível reduzir consideravelmente a taxa de acidentes, principalmente pormeio do aprimoramento dos dispositivos usados no próprio automóvel —mudanças materiais como o emprego do vidro de segurança e particular-mente do cinto de segurança. No que se refere às pessoas, a maioria dos paí-ses se satisfez com a limitação do consumo de bebidas alcoólicas.Todavia, aembriaguez implica apenas uma diminuição extrema da capacidade deauto-regulação. Diz-se que "a consciência e o intelecto dissolvem-se noálcool",e as restrições impostas aos motoristas são verdadeiramente efetivas.Visto como um dado absoluto, no entanto, o número de ferimentos —sobretudo fatais — decorrentes dos acidentes com veículos motorizadosainda é assustadoramente alto. Certamente, algo será feito uma vez tenha-mos aprendido a aumentar ainda mais a segurança estrutural do carro e alidar melhor com a redução da auto-regulação individual provocada pelaembriaguez. Outras deficiências da auto-regulação individual e, principal-mente, do padrão social de auto-regulação já estão se tornando o foco daspreocupações com os acidentes.Esse é,portanto, um problema relacionado

ao processo civilizador.Há diferenças quanto à auto-regulação não só entre pessoas da mesma

comunidade nacional,mas também entre diferentes nações.A teoria do pro-cesso civilizador sugere que a auto-regulação individual em sociedadesmenos desenvolvidas será menos estável, menos uniforme e menos perma-nente que nos países mais desenvolvidos. Do mesmo modo, é de se esperarque o número de mortos e feridos em acidentes de carro, em relação ao totalde automóveis, seja maior no primeiro caso. De fato, é o que ocorre. Estouciente das dificuldades estatísticas dessas comparações. A definição de "aci-dente" varia de um lugar para outro, bem como o método de cálculo das víti-mas — inclusive porque, em algumas circunstâncias, incluem-se as mortesregistradas num prazo de 30 dias contados a partir do desastre. Contudo,mesmo que tenhamos em mente todas essas considerações e, portanto, nãoapresentemos senão uma hipótese a ser verificada, as enormes diferençasentre os coeficientes dos países mais e menos desenvolvidos continuamimpressionantes.Valeria a pena pesquisar a correspondência entre tais dispa-ridades e a efetividade dos padrões sociais de auto-regulação. Essa análisedeveria incluir, certamente, uma apreciação adequada do ordenamento legal.Contudo, a teoria do processo civilizador oferece a possibilidade de explica-

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50

l\3

l

l

i

cão, mesmo num contexto em que os dados estatísticos aparecem lado a ladosem qualquer explicação. A Tabela l, reproduzida de Billian (1976:26), for-nece uma lista de países classificados segundo o número de mortes nas estra-das em 1974. Se levarmos em conta todos os detalhes, esses dados não se mos-trarão totalmente confiáveis. Mas também não deixarão de ser um estímulopara o pensamento. A regularidade com que se registram coeficientes relati-vamente baixos para os países mais desenvolvidos, em comparação com osmenos desenvolvidos, é razoavelmente compatível com a idéia de que as dife-renças relacionadas à estabilidade e à regularidade do autocontrole individual— e, nesse sentido, no nível de civilização — desempenham papel impor-tante nas diversas sociedades.

Jan-Willem Genitsen e eu podemos reivindicar mais confiança nasTabelas 2 e 3, que nós mesmos construímos com base em fontes mais fide-dignas. Talvez se possa reconhecer uma inspiração durkheimiana por trásdesse esforço. Tentamos descobrir se um certo coeficiente (a razão entre

cabeia 1

mortes nas estradasEstatísticas por continente em 1974

ContinenteEuropa

América

Ásia

África

Oceania

Total

População537.457.000

426.563.000

2.365.451.000

281.668.000

17.915.000

3.629.054.000

Ueíoulos registrados98.122.777

151.354.858

33.323.688

5.902.457

7.186.700 "

295.890.480

número de mortes73.598

82.834

47.978

21.404

4.462

230.276

Coeficiente7,50

5,4714,39

36,26

6,20

7,78

Fontes: Estatísticas oficiais publicadas em cada país e no World Road Statistics 1975 (International RoadFederatíon).

Os dados relativos à população de cada país foram recolhidos em publicações da União Postal Internacional e agre-gados por continente.

* Durkheim foi talvez o primeiro a usar comparações estatísticas entre diferentes países, consi-derando períodos de vários anos, para obter um diagnóstico preciso de um problema social. Esserecurso aparece de maneira exemplar em seu conhecido livro O suicídio. O método comparativoé bastante promissor, mas seu potencial só pode ser amplamente explorado se o utilizarmos pararegistrar seqüências de desenvolvimento, ou seja.processos sociais.ATabela2 é apresentada comesse objetivo. Indica, para começar, que a efetividade da regulação legal e da auto-regulação dosmotoristas para a prevenção de ferimentos e mortes em conseqüência do tráfego de veículos

UQlluiw -

IDortes nas estradas como índice da efetiuidadede padrões sociais de auto-regulação:número de pessoas mortas por 10.000 carros (automóueis particulares e táxis)em diferente países (dados prouisórios)

Dinamarca

França

Alemanha

Grã-Bretanha

Itália

Holanda

Noruega

Suécia

Grécia

Portugal

Espanha

Turquia

Estados Unidos

Japão

1955

27,9

26,7

75,0

15,6

65,4

57,9

17,5

14,2

—53,4

117,4371,1

——

1960

18,0

15,0

33,2

12,9

41,0

37,6

13,8

8,7

—40,8

58,7

339,1

1965

13,6

12,7

17,6

8,5

16,4

19,5

9,1

7,3

73,2

32,4

34,7

298,1

6,5

64,4

1970

10,0

12,2

13,7

6,4

10,0

12,9

8,1

5,7

41,0

24,4

22,9

325,2

5,9

24,8

1975

6,0

9,1

8,3

4,8

6,8

6,8

5,6

4,3

27,0

37,1

12,1

158,94,2

8,1

1980

4,7

7,1

5,6

4,0

5,2

4,4

2,9

2,9

15,9

23,2

8,6

64,7

4,2

5,0

1982

4,6

6,5

4,8

3,8

4,2

3,7

3,0

2,6

17,5

20,5

7,0

73,0

3,6

4,8

Fontes: Statístical Report on Road Accidents m 1983, ECMT, 1985; Statistics of Road Traffic Accidents

o número de pessoas afetadas por acidentes de trânsito e o número de car-ros registrados) é marcado pelas mesmas diferenças anuais quando se fazemcomparações entre distintos países por mais de duas décadas. Fizemos cál-culos com base nos totais de feridos e, separadamente, de mortos por10.000 veículos (automóveis particulares e táxis). Como se pode ver, asdisparidades entre diversos países são consideravelmente constantes.Algumas pessoas estarão inclinadas a analisar esse fato como uma funçãoque depende de variadas características nacionais. Deixem-me, contudo,

motorizados nos diversos países europeus, bem como nos Estados Unidos e no Japão, não é uni-forme. Mostra também que esse é o caso não apenas em qualquer momento dado: num inter-valo de quase 30 anos, as disparidades sofrem somente uma pequena variação. A Tabela 3 traznúmeros comparáveis para alguns países africanos e asiáticos, mas nesse caso os dados das sériestemporais não estavam disponíveis para nenhum período significativo.

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tabelas

mortes nas estradas como índice da efetiuidade de padrõesde auto-regulagão em alguns países asiáticos e africanos:número de pessoas mortas por 10.000 carros (automóueis particulares e táxis)(dados prouisórios)

flsiaíndia

Indonésia

Iraque

Japão

ÁfricaCamarões

Etiópia

Costa do Marfim

Quênia

Uganda

1965

196,0

106,4

171,064,4

52,9

225,7

61,3

124,3

183,5

1066

190,5

98,2

165,8

55,2

42,1

214,8

55,0

121,6

183,8

1967

204,0

X

143,0

39,9

43,6

182,7

52,6

124,2

174,2

1968

x115,4

115,0

30,8

X

149,5

77,2

136,1

X

1969

X

108,6

X

26,4

X

X

X

140,3

X

Fonte: World Road Statistics 1965-69, IRF, 1970.

apresentar o argumento em termos mais concretos, por meio da interpre-tação dos dados como variações no nível, e talvez no padrão, de auto-regu-lação pessoal.

Os dados estatísticos sobre acidentes de trânsito são muito freqüente-mente interpretados como informações sobre fatores impessoais. Isso meparece inadequado. É difícil fechar os olhos ao fato de que os desastres deautomóvel decorrem principalmente do comportamento das pessoasenvolvidas — sobretudo dos próprios motoristas. O controle do carro (esua manutenção) não é senão uma extensão do autocontrole ou da auto-regulação do motorista. Todavia, o nível de auto-regulação ao volante édeterminado em grande medida por cada sociedade.Todo tipo de normaestá incluído nesse padrão social. Dele podem fazer parte as regras legais,como a adoção de um limite de velocidade, ou a própria repressão poli-cial. Outro componente possível é um eventual código não-escrito decomportamento, estabelecido tacitamente entre os motoristas de um país

ou mesmo de um grupo de países — como talvez tenha acometido naEuropa. Pode ocorrer, por exemplo, que o padrão de velocidade numdeterminado lugar seja de 70 a 80 milhas por hora, embora o limite tenhasido fixado em 60 milhas por hora.

Para entender o que o coeficiente visa a determinar, é decisivo ter emmente o fato de que todos os padrões, bem como as normas de trânsito, rela-cionam-se, em suma, à auto-regulação do motorista. As regras da sociedadepodem se tornar um hábito, uma segunda natureza para o motorista indivi-dual com certa experiência. Um novato, por sua vez, provavelmente preci-sará se lembrar delas conscientemente. De todo o modo, o padrão social deregulação será ineficiente se não for traduzido em auto-regulação indivi-dual. Ademais, a auto-regulação do motorista — o controle sobre seu pró-prio comportamento diante de outras pessoas — permanecerá não-dirigidae perigosa se não for orientada pelos critérios socialmente padronizados epartilhados por todos. Um motorista que não se regule conforme ó padrãocomum representa um perigo para todos os outros.

À primeira vista, o conceito "padrão social de auto-regulação" podeparecer complicado.Talvez seja necessário um pouco de paciência para reco-nhecer sua produtividade.Trata-se de uma expressão em perfeita consonân-cia com os postulados da teoria do processo civilizador. Os exemplos demudanças nos manuais de etiqueta, ao longo de várias décadas ou de séculos,não correspondem somente a transformações dos padrões de autocontroleindividual, mas também a modificações no padrão social de auto-regulação.O mesmo é verdade no que concerne à fala. Para ser compreendido, umfalante individual tem de seguir o padrão de linguagem comum e pode até,vez por outra, consultar uma obra de referência, como o Oxford EnglishDictionary, para ter certeza de estar procedendo corretamente.

Teorias da "ação" e do "comportamento" criam a impressão de que oser humano é um compósito, urna multiplicidade de atitudes particularesatomizadas. Ou seja, parecem considerar que as ações materiais individuali-zadas são tudo o que alguém pode perceber de seus semelhante^.Talvez elasainda retenham algo da fragilidade behaviorista. Falta-lhes a relação com aspessoas, tratadas como unidades de ações integradas.

Como se pode notar, o conceito de auto-regulação corresponde a umaimagem diferente da humanidade — e por ora basta ter isso .em mente.

L* A análise das transformações dos costumes através do extenso exame dos manuais de etiquetaé um aspecto central das demonstrações elaboradas por Elias em O processo civilizador, op.cit.

(N.T.)

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Sugeri que os resultados das Tabelas 2 e 3 fossem vistos como indicadores daefetividade do padrão social de auto-regulação individual em diferentes paí-ses. As regularidades observadas nos dois quadros, e também na tabela pre-cedente, tornam mais evidente essa interpretação da teoria do processo civi-lizador. Um exame mais detalhado da terceira lista revela imediatamente queo número de acidentes fatais permanece alto nos países menos desenvolvi-dos, em comparação com os mais desenvolvidos. O mesmo é verdade paraas nações européias de menor desenvolvimento, na Tabela 2: Grécia, Por-tugal e Turquia. A tentativa recorrente de tratar as estatísticas sociais comounidades de medida impessoais, quase como se fossem dadas pela natureza,obscureceria nossa visão mesmo nesse caso. As vezes procura-se explicar omaior número de mortes em determinadas regiões do mundo por meio dareferência à precariedade das estradas que as servem. Mas rodovias, como tal,não matam. Certamente, se o estado de conservação da pista é pior, exige-se mais cuidado do motorista. Contudo, isso significa que as taxas de aciden-tes fatais devem-se não às condições das estradas, mas ao fato de que a auto-regulação dos motoristas não está devidamente adaptada a elas.

O conjunto de dados da Tabela 2 indica que o desenvolvimento podeprosseguir por meio de melhoramentos na rede de estradas, bem como daauto-regulação dos motoristas, em conformidade com as exigências dasnovas condições das rodovias. Para uma teoria do processo, o interessante éo entrelaçamento entre um processo não-planejado e o planejamento dos seres huma-nos. Os índices de mortes nas estradas nos anos 1950, ainda elevados mesmonos países mais desenvolvidos, são testemunhas do não-planejamento.Decididamente, os acidentes de trânsito em larga escala não estavam nos pla-nos de ninguém. Foi então que teve início um esforço para reduzir os peri-gos decorrentes do fluxo de automóveis. Em certa medida, obteve-sesucesso. Mas a imprevisibilidade revelou-se persistente: em lugar algum foipossível reduzir o número de desastres fatais abaixo de certo patamar. Emsentido absoluto, aliás, o total de mortos no trânsito ainda é considerável.Certamente, é bem maior que o número de pessoas mortas em atentadosterroristas nos países em questão.

Os índices para as nações desenvolvidas fornecem também outras indi-cações. Como vimos, o nível de mortes nas estradas nos anos 1950 é testemu-nha de um processo que os fabricantes e os usuários de veículos motorizadoscertamente não haviam planejado. Contudo, pode-se deduzir inequivoca-mente, com base na evolução desses dados, o efeito de um processo de apren-dizagem. Todos os participantes — autoridades, fabricantes e motoristas —aprenderam metodicamente a aumentar a segurança na direção e a reduziro risco de morte do motorista. A efetividade do padrão de auto-regulação

cresceu e os coeficientes, pelo menos nos países europeus mais desenvolvi-dos, diminuíram consideravelmente.

Enxergamos esse processo com certa clareza quando não nos conten-tamos com uma perspectiva de curto prazo, ou seja, com coeficientes paraum ou dois anos.Ao montarmos uma curva correspondente a um períodode 27 anos, as comparações entre diferentes países nos fornecem um quadromais informativo. As diferentes características estruturais dos lugares quecompõem nossa amostra emergem de maneira mais evidente se considera-das a longo prazo.

Por todo o tempo, os coeficientes para os países menos desenvolvidosda Tabela 2 — Grécia, Portugal,Turquia e, em menor extensão, Espanha —permanecem significativamente mais altos que os dos países mais desenvol-vidos, embora se reduzam muito no curso de 27 anos.

Algumas regularidades dos países mais desenvolvidos tambémsobressaem. Os números revelam mais claramente, e de maneira maisconfiável, diferenças significativas na evolução dos dados dos diferentespaíses. Há uma similaridade evidente entre os três derrotados na SegundaGuerra Mundial. No caso de Alemanha e Itália, os coeficientes em 1955são 75 e 65, reduzindo-se gradualmente para 5,6 e 5,2, respectivamente,em 1980. Quanto ao Japão, seu coeficiente é de 64,4 para o ano de 1965,caindo para 4,8 em 1982. Efetivamente, era de se esperar que o ingressodesse país na classe dos mais desenvolvidos trouxesse consigo um padrãode auto-regulação mais estável, indispensável para uma sociedade alta-mente tecnológica em competição com outras similares. Na Tabela 3, aespantosa transformação japonesa torna-se particularmente evidente, emcomparação com a trajetória de outros três países asiáticos, todos "em de-senvolvimento" — ou seja, em linguagem não tão generosa, menosdesenvolvidos e, por conseguinte, mais pobres. Os dados relativos a estesúltimos estão em conformidade com a teoria do processo civilizador,segundo a qual a regularidade, a estabilidade e a amplitude da auto-regu-lação individual são menores nessas sociedades.

Uma análise comparativa por amostragem no grupo de países africanosindica situação similar. Outras amostras experimentais que tomamos reve-laram diferenças consideráveis entre os países anglófonos e francófonos naÁfrica. Os coeficientes são notavelmente menores na maioria dos países delíngua francesa — embora muito maiores que os dos países europeus maisdesenvolvidos.

Talvez seja arriscado falar de coeficiente de civilização. O que apresentoaqui são diferenças quanto às disposições sociais entre habitantes de paísesmais desenvolvidos e de países menos desenvolvidos. Devemos notar: dife-

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renças nas disposições sociais, não diferenças biológicas. O Japão é uni bomexemplo de que as disparidades relativas à auto-regulação podem mudar nocurso do desenvolvimento de uma sociedade.

Quando os habitantes de países menos desenvolvidos dirigem de ma-neira tal que podem causar mortes ou ferimentos, não se pode deixar de lhesatribuir a culpa e, em particular, ao seu modo falho de conduzir veículos —não às estradas como tal nem aos automóveis.Aparentemente, esses indiví-duos correm ao volante, sem se preocupar com as condições ruins da pistaou do carro. É nisto que penso quando me refiro a um nível social mais baixodos padrões individuais de direção. Efetivamente, esse é o ponto para o qualgostaria de chamar a atenção. A pobreza brutaliza as pessoas. Isto não deveser interpretado como uma afirmação relativa aos indivíduos, mas, sim, àssociedades. Um nível de civilização mais elevado — ou seja, um código decomportamento e sentimento que leva a uma auto-regulação mais uni-forme e estável — não deriva do fato de as pessoas envolvidas serem, porassim dizer, mais civilizadas por natureza. O padrão mais alto de estabilidadee rigidez do seu autocontrole não lhes é inato. É, em vez disso, parte inte-grante e, simultaneamente, condição e conseqüência do estágio superior dedesenvolvimento — e, portanto, também do maior bem-estar — da socie-dade. Rodovias mais largas, mais bem construídas, sinalizadas e planejadascustam caro e são projetadas para motoristas mais moderados. Em contra-partida, a rede de estradas dos países menos desenvolvidos, comparativa-mente pior, e a falta de consideração do motorista, relativamente maior, nãose conectam por meio de uma relação de causa e efeito. Ambas são sintomasde um nível inferior de desenvolvimento social.

Não tenho medo de me referir a sociedades em estágios distintos dedesenvolvimento, como também não receio, decerto, falar em sociedadesmais pobres e mais ricas. Mas alguns temem reconhecer que, como qual-quer observador atento pode perceber com facilidade, diferentes etapasde desenvolvimento caminham lado a lado com diferentes estruturas depersonalidade.

Uma breve referência à transformação assombrosamente rápida dosjaponeses talvez ajude a ilustrar o problema que tenho em mente. Numarecente entrevista no rádio, Laurens van der Post, escritor sul-africano resi-dente na Inglaterra, chamou de semimedieval o caráter nacionaljaponês.Vander Post dizia que o Japão fora uma nação feudal de guerreiros, orgulhosa erefinada, que olhava para si mesma, para as suas ilhas inconquistadas, como ocentro do mundo. Forçada a abandonar o seu isolamento e a ingressar nafamília maisampla de nações, continuou o escritor, essa nação ia agora à des-forra por n|eio de uma rápida ascensão econômica e tecnológica. Uma

observação relativa à Segunda Guerra Mundial deve ser suficiente parasalientar o método japonês tradicional de auto-regulação:

Enquanto cercados, os soldados civilizados tinham uma tendência pronunciada

à rendição, em lugar de prosseguir com uma resistência desesperada; os japone-

ses,"menos civilizados", revelavam-se um difícil problema por não estarem pre-

parados para se render, quaisquer que fossem as circunstâncias.5

Segundo o código do guerreiro tradicional japonês, ser capturado vivo erauma humilhação imperdoável. Criava-se, assim, uma forma extrema deautocontrole, um fanatismo que tornava impossível qualquer concessão àscircunstâncias. Essa característica resultou num desprezo ilimitado pelasForças Aliadas, que se deixavam capturar quando a resistência era inútil. Acontrapartida para esse altíssimo grau de auto-regulação em certos aspectosda vida era, por exemplo, a enorme capacidade de extrair prazeres sádicos dotratamento dos prisioneiros.É possível que apenas o imperador estivesse emposição de provocar uma quebra desse código por meio da deposição dasarmas, depois da explosão das bombas atômicas americanas. Daí em diante,verificou-se urna modificação gradual na estrutura da personalidade dosjaponeses. Está entre as peculiaridades dessas mudanças civilizadoras, queenvolvem especialmente padrões sociais de auto-regulação, o fato de sesucederem a outras transformações sociais, talvez econômicas e tecnológi-cas, geralmente após certo lapso de tempo.

Na Tabela 2, os números relativos ao Japão — que diferem considera-velmente dos valores observados em todos os outros países mais desenvol-vidos — levam à construção de uma curva ascendente para o padrão deauto-regulação. Obviamente, o tipo de autocontrole exigido pelo automó-vel é bem diferente dos códigos de comportamento de cortesãos ou deguerreiros. Como se pode notar, em 1970 o coeficiente japonês correspon-dia a um nível de auto-regulação inferior ao da Alemanha; a situação semodificou em 1974 e permaneceu razoavelmente constante desde 1981 .ijFalta pesquisar se essa mudança no padrão de auto-regulação dos. Estadosmodernos, baseada num alto grau de autocontrole autônomç.po,r parte doindivíduo, deve-se mais aos deveres impostos pelo Estado e pela polícia ouàs obrigações auto-impostas. (Em Estados modernos fundamentados numalto grau de auto-regulação automática por obra dos próprios indivíduos, épossível distinguir esses dois tipos de preceitos,mas não separá-los.) Por ora,contudo, isto não é importante para os nossos propósitos.

O tempo decorrido entre, de um lado, a transformação dos padrões tec-nológicos e outros no desenvolvimento da sociedade e, de outro lado, as

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mudanças correspondentes na estr^,^,^ ja personalidade, é um dos proble-mas centrais envolvidos na relação entre os processos tecnizador e civiliza-dor. Talvez se possa ilustrar a questão por meio de alguns exemplos.

Pensemos novamente na revolução dos transportes e nas suas conse-qüências durante os séculos XIX e XX. O automóvel e as estradas acelera-ram o deslocamento de bens e pessoas e deram aos indivíduos uma liberdadejamais vista. O avião intensificou esse processo de redução das distâncias aoredor do globo a uma dimensão tal, que agora, a menos que alguém guardeuma lembrança nítida dessa mudança em sua própria vida, é difícil imaginaro tempo do não-saber, a época em que o transporte aéreo, na paz ou naguerra, ainda não era corriqueiro. A exemplo do carro motorizado, houve,no caso das aeronaves, um longo período inicial de experimentação, do qualparticiparam europeus de diferentes nacionalidades,bem como americanos.Todos partilharam uma lição nada evidente: a de que uma máquina voadoraexeqüível não seria realizada com ilusões e sonhos, mas apenas com a com-binação de experiências conduzidas com paciência e modelos e cálculosteóricos passíveis de verificação. Muitos dos envolvidos publicaram os resul-tados de seus trabalhos e suas propostas nos novos periódicos dedicados àaviação. Entre os que contribuíram nessa fase estavam, para mencionar ape-nas alguns, Artingstore e Cayley na Inglaterra, Ader e Pénaud na França,Fornalini na Itália (com um avião movido a hélice) e Otto e GustavLilienthal naAlemanha.Vários deles estudaram e discutiram o vôo das aves.Experimentos complanadores não-motorizados parcialmente baseados naobservação de pássaros podem ser reconhecidos como um estágio prelimi-nar, quase indispensável, para se chegar ao avião. A dificuldade era que osmotores de explosão disponíveis tinham potência insuficiente em relaçãoa seu peso. O uso do petróleo em conjunção com os primeiros passos dadospelos vários entusiastas, o trabalho detalhado daqueles que nunca alcança-ram a fama — em suma, o processo social —, tudo isso ajudou os irmãosWright a construírem uma máquina voadora capaz de levar simultanea-mente um mecanismo de propulsão e uma pessoa, e suficientemente seguratanto no ar quanto durante a aterrissagem.

Talvez possamos obter um quaHro mais claro do atual trabalho experi-mental com naves espaciais se tivermos em mente o longo período inicialde experimentação com automóveis e aviões.Em contrapartida, esse últimoparecerá mais impressionante se pensarmos na presente incerteza, na falta deconhecimento acerca da forma futura e das conseqüências das viagens espa-ciais. Os pioneiros de outrora também assumiram riscos. Otto Lilienthalferiu-se fatalmente num acidente com um planador, pouco antes de um vôoque planejava fazer para testar um motor. L

Uma diferença, no entanto, salta aos olhos. No século XIX, os expe-rimentos eram realizados por indivíduos — a maioria dos quais, incluindoHenry Ford, construiu os protótipos artesanalmente em pequenas oficinas,além de fabricar seus próprios motores e peças de reposição. Dificilmenteconseguirei dar exemplo mais claro de desenvolvimento direcional do queessa diferença na estrutura da invenção tecnológica na vanguarda da revolu-ção dos transportes. Atualmente, as exigências tecnológicas e os custos dosavanços nesse campo são tão grandes que apenas as nações mais ricas podemcompetir por inovações. Esses países gastam somas enormes para superar unsaos outros. Os experimentos realizados por um dos lados envolvidos nadisputa fazem com que o outro os considere uma ameaça à sua segurança —ou seja, uma vantagem em termos militares para o inimigo. Nem sempre foiassim. Os irmãos Wright pretendiam vender sua invenção ao governo ame-ricano, mas a oferta foi recusada. Os governos da França, da Inglaterra e daAlemanha mostraram-se mais interessados na nova máquina voadora, mas,dos anos 1890 até 1907,Wilbur e Orville Wright tiveram de custear seusexperimentos com modestos lucros da venda de bicicletas e o dinheiroobtido em sua oficina de reparos. Seu primeiro vôo bem-sucedido, emdezembro de 1903, ficaria na memória das gerações posteriores. Naquelaépoca, contudo, obtiveram pouca atenção. Só depois que os Wright organi-zaram exibições aéreas, particularmente na Europa, e transportaram algunspassageiros, certos segmentos do público, especialmente os ministros daGuerra das grandes potências européias, deram-se conta de que o avião erarealmente factível.

Uma invenção dessa magnitude, no entanto, com potencial para umarevolução sempre crescente nos meios de transporte, precisava de uma novaestrutura organizacional para que nela operasse a inovação tecnológica. Noinício, havia obviamente completa escassez de instituições sociais desti-nadas, por exemplo, à fabricação de aviões e à supervisão do tráfego aéreo.Aesperada rivalidade entre as nações pela superioridade na construção deaeronaves expressou-se inicialmente nas disputas pelas patentes, por exem-plo, na França. O posterior desenvolvimento das aeronaves, tanto tecnoló-gica quanto organizacionalmente, foi impulsionado principalmente —como aconteceu muitas outras vezes,para desespero da humanidade — pelacompetição militar entre os países. O primeiro vôo regular de passageiros,ao que eu saiba, inaugurou-se pouco antes da Primeira Guerra Mundial, narota Londres—Paris. Seguiu-se então, em 1920, um serviço aéreo de passa-geiros entre Londres e Amsterdã.

Durante a guerra, os combates aéreos levaram a um novo progresso.Agora, no fim do século XX, tudo isso parece muito familiar. No período

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de paz relativa em que vivemos, sem sabermos se estamos diante da prepa-ração de um novo confronto, chamamos essa movimentação de corridaarmamentista. Mas talvez estejamos sendo vagos. Para perceber de maneiramais clara o que quero dizer, voltemos nossos olhos para trás, para o conflitodel914a!918ea intensa corrida pelas melhores aeronaves de combate. Emsi mesma, a busca de armamentos mais desenvolvidos, tanto para ataquequanto para defesa, não era novidade. Por muito tempo procurou-se obtervantagem nas batalhas mediante o uso de espadas, galeras, canhões ou fuzismelhores. A tecnização da guerra entrou numa nova fase, contudo, com ouso do avião para fins militares. Mesmo as aeronaves do início da PrimeiraGuerra Mundial eram provavelmente as máquinas mais complexas — tal-vez com exceção do navio a vapor — nas mãos dos militares. Com elas, efe-tivamente teve início a cientifização dos combates. Sob tal pressão, cientis-tas e engenheiros começaram a trabalhar para superar o inimigo por meiodo aprimoramento contínuo das máquinas. Da mesma forma, as grandespotências rivais européias impuseram-se inovações umas às outras, numritmo desconhecido até então.

Estamos agora acostumados com a cadência do desenvolvimento tec-nológico e raramente nos surpreendemos com ele. Na época da PrimeiraGuerra, entretanto, a velocidade das transformações ainda causava espanto.Na Grã-Bretanha, o ministro responsável por obter provisões militares foiprovavelmente o primeiro a se preocupar com o fornecimento de aviões.Em 1917, o titular da pasta do Municionamento deu uma entrevista em quedizia:

O progresso tecnológico do avião apresenta problemas específicos. Novos

modelos são continuamente desenvolvidos. Nunca se pôde afirmar: "Este é o

último'dos aviões e os demais planos de fabricação devem ser engavetados."

Como disse um colega, mal se testa e se aprova uma máquina, mal se corrigem

todos os erros no motor, de modo que ele trabalhe de maneira mais ou menos

confiável, e surge uma aeronave alemã mais veloz. Os pilotos ficam deprimidos.

E então, pouco depois, um novo modelo de avião britânico aparece e o alemãoé deixado para trás. ?,.

E, conforme outro comentário: "O estágio final da construção de aerona-ves ainda não foi alcançado e provavelmente jamais o será. Um modelo con-siderado melhor hoje pode acabar ultrapassado amanhã. Nunca podemosnos deitar sobre os louros." Segundo um ex-ministro francês responsávelpela área de tecnologia aérea militar, não se podem produzir aviões maciça-mente cÓ'mo artefatos de artilharia. Assim que alguém consegue se adaptar L

a um avanço, outra inovação essencial se faz necessária. Mesmo a mais brevepausa deixaria o inimigo assumir a dianteira.

Talvez pela primeira vez desde HenriqueVIII, quando a Inglaterra, gra-ças a seu poder naval cada vez maior, começou a se considerar de fato umanação insular, um inglês declarou, durante a Primeira Guerra, que o país jánão vivia ilhado, em virtude da crescente importância militar do avião.Todavia, essa percepção realista não representa muito em casos como esse.Em geral, no fundo de seus corações, os ingleses ainda se sentem os mesmos.Essa dificuldade das pessoas para se ajustarem às mudanças em seu mundorelacionadas à crescente velocidade das transformações tecnológicas e orga-nizacionais, leva-me a algumas observações finais.

ConclusãoProcurei mostrar que o desenvolvimento de novos meios de transporte —principalmente do automóvel e do avião — não é um projeto intangível,mas um processo não-planejado, derivado do desenvolvimento da socie-dade européia e americana nos séculos XIX e XX. Em contrapartida, atransformação revolucionária dos transportes posta em marcha dessamaneira age sobre a sociedade que a produziu. Por exemplo, o avião, emboranão seja — como se diz freqüentemente — a causa de uma transformaçãosocial de grande relevância, iniciada no século XIX e efetivada principal-mente no século XX, sem dúvida desempenhou um papel considerávelnessa mudança. Refiro-me à crescente integração da humanidade, à pro-gressiva interdependência de todos os subconjuntos humanos até entãoindependentes. O tráfego aéreo aproximou as pessoas, a despeito dos obstá-culos globais, dos oceanos e das montanhas, dos desertos e dos confins gela-dos. Pôs todos os grupos de pessoas prontamente em contato, e o fez comum grau relativamente alto de segurança. No século XVIII, a palavra"humanidade" associava-se a um sonho bonito, mas irrealizável (Elias,1939/1990-93: 3-28). Atualmente a humanidade tornou-se, mais quenunca, uma unidade e, podemos mesmo dizer, uma realidade social. Não sóo avião, mas também o telefone, o rádio e, enrparticularfatelevisão aproxi- - .••maram os indivíduos em todo o globo. Pode-se assistir a filmes americanosem fazendas africanas. Guerrilhas sul-americanas aparecem "ao vivo" nastelas de TV européias. Indianos vêem, em suas casas, os conflitos na Irlandado Norte. É duvidoso, no entanto, que os sikhs e os hindus, os tâmeis e oscingaleses, os bascos e os espanhóis, os irlandeses católicos e q,s protestantes ,se reconheçam nessas imagens" O avanço da tecríizaçlb lèdiMiutfs distancias,"1^'mas o desenvolvimento do habitus humano não segue o mesmo ritmo.

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A tecnização contribui para a aproximação e a unificação da humani-dade. Entretanto, quanto mais se avança nessa direção, mais evidentes se tor-nam as diferenças entre os grupos humanos. A crescente integração dahumanidade, a progressiva interdependência de todos os subgrupos huma-nos, manifesta-se não apenas numa série de instituições globais tais como oBanco Mundial e a Organização das Nações Unidas, mas também em ten-sões e conflitos específicos relacionados a esse contato mais intenso. NaÁfrica, diversas tribos incorporam-se a Estados sob a força do poderosoimpulso integrador ao qual estamos submetidos. Podemos ver claramente,nesse caso, como o habitus tradicional, inicialmente baseado na identidadecom grupos menores, entra em conflito com a necessidade de formar uni-dades maiores. Um processo análogo, embora em outro nível, ocorre naEuropa. A pressão para a unificação dentro de uma estrutura européia maisampla é inequívoca. Mas o habitus das pessoas, o padrão dominante de suaauto-regulação, concentra-se na identificação com Estados soberanos.

Possivelmente, nos primeiros dias da existência da espécie humana —que, de fato, não são fáceis de imaginar — não havia mais que um punhadode seres humanos semelhantes a nós. O momento presente talvez seja oúnico, desde então, no qual as pessoas formaram, coletivamente, uma uni-dade — não simplesmente como um belo ideal, mas como uma realidadesocial. Mesmo assim, ainda não se compreende bem por que o processo deintegração avança na direção da interdependência regional da humanidade,da sua pacificação interna e da redução das diferenças relativas ao bem-estar.Não é fácil entender esse movimento porque, nesse percurso, como sempreocorre, deparamos com forças poderosas no sentido oposto — forças que,em vista da miséria humana que as acompanha, deixam nas mentes de mui-tos de nós uma impressão mais forte.

Além do mais, as pessoas ainda não estão acostumadas com essa tendên-cia à aproximação. Apesar do ritmo cada vez mais acelerado da mudança, aperspectiva dos indivíduos com relação à vida continua psicologicamenteligada à realidade social de ontem, embora dela difiram o mundo de hoje eo de amanhã. Com o avião, Berlim, Washington e Moscou estão mais pró-ximas que quaisquer capitais da Europa continental no século XIX.Entretanto, a atitude emocional dos europeus, em relação uns aos outros eaos habitantes da Rússia e dos Estados Unidos, continua a aderir, em muitosaspectos, ao padrão do passado. E o mesmo certamente é verdade para a ati-tude dos próprios americanos e dos russos.Emocionalmente, encontram-setão longe dos demais quanto no século XIX.

Já nos anos 1930 — ou seja, cerca de 50 anos atrás — procurei mostrar,

apoiado em pesquisas teórico-empíricas, que uma teoria da interdependên-

cia era indispensável para os sociólogos e que sua função na pesquisa socialnão podia, de maneira alguma, ser desempenhada pelas teorias da ação e dainteração dominantes naquela época. O progresso triunfal do avião, comomeio de transporte global, na paz e na guerra, contribuiu decisivamente paraa crescente interdependência de todos os Estados do mundo e, ao mesmotempo, foi conseqüência desse movimento. Ao aproximar pessoas de todasas regiões da Terra, o tráfego aéreo teve uma enorme influência civilizadora— sobretudo por contribuir para que pessoas de todas as convicções se acos-tumassem com a convivência, independentemente das diferenças de seuspadrões de auto-regulação. A dependência recíproca, contudo, geralmentevem acompanhada de tensões e conflitos específicos. Nenhum grupo depessoas se contenta em ser mais dependente de outros do que antes. Daíadvém o que denomino "tensões de integração e desintegração", que domi-nam a figuração social dos Estados no fim do século XX. Aqui também, oimpulso civilizador em direção a uma humanidade mais unida vem seguidode um contra-impulso descivilizador. Até agora, essa reação tem importân-cia apenas secundária. Esperemos que isso nunca mude.

Um breve exemplo talvez ajude a deixar mais clara a contribuição dodesenvolvimento tecnológico para esse impulso em direção à interdepen-dência, com sua força civilizadora e seu potencial descivilizador. Lem-bremos que no século XIX um czar russo empobrecido vendeu o Alasca aosEstados Unidos da América. Na época, a Rússia e os Estados Unidos esta-vam tão distantes um do outro que ninguém, nem o czar e seus assessores,acreditava que os dois países pudessem se tornar rivais militares e represen-tar uma ameaça recíproca.* O avião contribuiu, em certa medida, para quea situação mudasse. Mas não nos curvemos ao erro de colocar o processo detecnização, por assim dizer, no começo de tudo. A tecnização tem ummomentum imanente, a receber continuamente novos impulsos derivados darivalidade entre indivíduos e grupos de indivíduos.Mas sobre muitos outrosprocessos que contribuíram para o desenvolvimento também atuaramnovos estímulos, resultantes da composição global predominante da huma-nidade, bem como da dinâmica do desenvolvimento do conjunto de todosos seres humanos e das várias unidades de subsistência — tribos e Estados —observadas ao longo do tempo. O momentum imanente de processos parciais

* Ou quase ninguém: em 1835,Alexis deTocqueville, ao fim da primeira parte de A democraciana América (ed.ing., 1961, p.521-2 [ed.bras.:São Paulo, Martins Fontes,2 vols.,2000,2005]),fezsua previsão, que mais tarde se tornaria famosa, de que os EUA e a Rússia seriam as potênciasmundiais do futuro.

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como a cientifização, a tecnização, o desenvolvimento econômico ou a for-mação de Estados sempre tem uma autonomia apenas limitada dentro daestrutura do desenvolvimento total da humanidade. O processo global podeser conduzido em uma ou outra direção, ou pode mesmo parar ou se inver-ter, por meio das rivalidades e das lutas de poder entre grupos de pessoas eentre seus representantes individuais.

Não quero dar a impressão de que se deva atribuir ao desenvolvimentotécnico — ou, num sentido ainda mais estrito, à revolução dos transportes— o papel de origem ou "causa primeira" desse movimento de integração.Creio que a explicação reside na dinâmica intrínseca da própria humani-dadejá exemplificada por meio do modelo dos processos de monopoliza-ção descritos no segundo volume do meu livro O processo civilizador(l93971994). Aqui mesmo propus outra representação esquemática dessadinâmica, da qual o esforço finalmente bem-sucedido para conseguir meiosde transporte cada vez mais rápidos — automóveis, aviões e espaçonaves —derivou sua força. No entanto, também se pode dizer que, em face do riscosempre presente de desintegração, o atual nível de integração da humani-dade não teria sido alcançado, não fosse pelo surto tecnizador. Costumava-se imaginar que os desenvolvimentos tecnológico, cultural e talvez mesmosocial e econômico fossem, por assim dizer, eventos autogovernados, tra-çando cada um, de modo independente, o seu próprio curso. Poderíamosentão discutir sé o percurso ao longo de cada um desses canais teve o seupróprio momenturh ou se um desses movimentos subsidiários é o motor fun-damental de todos os outros.Mas, mesmo considerando os fatos da naturezaem qualquer nível — caso as mudanças extremas, como a chegada e o fimdas eras glaciais, sejam deixadas de lado —, procuraríamos em vão expli-cações para transformações da humanidade que residissem fora do domíniohumano. Chega-se assim ao limite das explicações causais.É necessário,por-tanto, um período de reajuste, a fim de se reconhecer que as razões para asmodificações na estrutura da humanidade têm de ser procuradas em suasdinâmicas intrínsecas, e não em fatores externos ou em algum "subsistema".

Os produtos do desenvolvimento tecnológico, como o avião e a tele-visão, aumentaram a pressão em direção' à interdependência e à maior inte-gração institucional. Deram às pessoas, portanto, uma tarefa civilizadora,uma difícil incumbência. Não podemos prever se vamos conseguir lidarcom essa situação. Mas a missão é clara em si mesma. A auto-regulação dosindivíduos está ligada à identificação com pequenas subunidades da huma-nidade, como tribos ou Estados. Comparativamente à importância emocio-nal conferida a ta;is subgrupos, o conceito de humanidade é uma palavravazia. Contudo,por causa, em grande medida (embora não unicamente), dos

avanços tecnológicos, os indivíduos têm de estar preparados, a longo prazo,para viver em paz uns com os outros ou para sucumbir à guerra. Este é umprocesso de aprendizagem cujo desfecho não conhecemos.Trata-se, comotantos outros, de um processo social inacabado.

Por meio da discussão sobre a relação entre dois processos parciais — ode tecnização e o de civilização —,procurei exemplificar um modo de pes-quisa sociológica consistente, que visa evitar a redução dos processos sociaisa algo estático. Alcança-se tal objetivo por meio da apresentação dos proces-sos sociais como tais, sem reduzi-los a estados ou leis, a algo eterno, conforme,talvez, o modelo da física clássica.6 A revolução dos transportes nos séculosXIX e XX, desde a máquina a vapor, passando pelo automóvel e pelo avião,até a espaçonave, é um bom exemplo de processos não-planejados e —como se pode constatar — inacabados.

Sempre me perguntei por que uma sociologia dos processos encontratantas dificuldades para avançar, por que as pessoas não percebem asmudanças nas sociedades humanas — e particularmente as transformaçõesde longo prazo — como processos estruturados e por que não as investi-gam como tal. É aparentemente mais fácil e provavelmente mais satisfató-rio para a maioria dos indivíduos — e talvez também para grande parte dossociólogos — imaginar o mundo como algo fundamentalmente imutável,constante.Trata-se da mesma imagem cultivada por vários cientistas, deNewton a Einstein e além. Mas a influência do pensamento em termos deprocesso começou a afetar até os físicos contemporâneos, embora a princí-pio marginalmente.

A idéia de um universo em constante mudança contradiz a concepçãode uma natureza imutável e, parece-me, não é emocionalmente desejávelnem particularmente confortante. Ao imaginarmos o mundo como umprocesso, somos obrigados a lembrar algo que gostaríamos de esquecer: ofato de que, depois da nossa morte, a sociedade provavelmente será bem dife-rente, em muitos aspectos, daquela em que vivemos. Para as pessoas do pró-ximo século a época atual parecerá antiga e superada em muitos sentidos —como nos soa ultrapassada a era das diligências, ou aquela em que os auto-móveis experimentais andavam a 4 milhas por hora e as tentativas de voarlevavam os homens a construir asas com 10.000 penas de ganso, como fezClementAdie.

A maioria das pesquisas sociológicas concentra-se na busca de umestado constante, imutável, que, não tendo existência externa, seja dotadopelo menos de validade eterna no sentido filosófico. Aparentemente, háapenas uma alternativa a esse eternalismo: o historicismo do historiador.Diante de um mundo imerso na mudança sem fim, os historiadores geral-

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mente o representam como algo em constante transformação, sem qualquerordem, sem qualquer direção ou estrutura. Caso levemos esse historicismoa sério, acabaremos afirmando que os acontecimentos do século XX pode-riam ter ocorrido 200 ou até 2.000 anos antes. E, inversamente, os eventosda Antigüidade poderiam se dar hoje ou amanhã. O grande problema dessaperspectiva é a falta de urna concepção clara e não-dogmática do desenvol-vimento das sociedades humanas. Originalmente, o conceito de desen-volvimento foi abolido dos livros de história por se relacionar a uma teoriaespecífica do progresso da humanidade, ligada ao credo marxista. Sim-plesmente jogou-se fora o bebê com a água do banho. Como a noção dedesenvolvimento formulada por Marx estava atada a uma profecia sobre ofuturo, o conceito de desenvolvimento de longo prazo foi deixado de lado.O processo que levou da diligência, passando pela ferrovia, pelo carro moto-rizado e pelo avião, às experiências com naves espaciais é um pequenoexemplo do progresso social numa direção definida,mas decerto sem obje-tivo e sem envolver qualquer previsão sobre seu destino.

O conceito de desenvolvimento não é essencial apenas ao se pesquisara mudança tecnológica. Imaginemos que não há aviões e que nos encon-tramos num mundo politicamente diferente. Não nos esqueçamos decomo o czar russo vendeu o Alasca para os americanos no século XIX.Naquela época, a Rússia e os Estados Unidos estavam tão distantes que nãorepresentavam ameaça militar recíproca. Como sabemos, essa situaçãomudaria com o tempo.

Ninguém pode prognosticar quando ou se a nave espacial ultrapassaráo estágio experimental em que se encontra agora e chegará a uma etapaseguinte, transformando-se num meio de transporte regular. Vivemos nummundo emergente, no mundo da humanidade em movimento. Se, em vezde aceitá-lo como ele realmente é, nós o considerarmos eternamente imu-tável ou o tratarmos como o fim do caminho, estaremos cegos ao processopelo qual passamos. Essa é a conseqüência de se representar o mundo comomau ou bom, como civilizado ou bárbaro. Os indivíduos vivem um grandeprocesso de aprendizagem coletivo. Não sabemos aonde o gênero humanoserá levado. Só podemos ter certeza absoluta de que a humanidade de ama-nhã será bem diferente, em muitos aspectos, da humanidade de hoje.Realmente gostaria de fazer com que as pessoas entendessem isso.Geralmente, só se quer saber o mínimo possível sobre o fato de que o pro-cesso do qual todos fazemos parte talvez desenvolva percepções ou insti-tuições para as quais efetivamente teremos preparado o terreno, mas quenos serão desconhecidas e fundamentalmente inconcebíveis. As dificulda-des que as pessoas parecem ter, quando pedimos para perceberem o mundo L

(e portanto também a sociedade humana, incluindo elas próprias) comoprocesso em curso, estão provavelmente relacionadas à relutância em ima-ginarem a si mesmas como precursoras de um futuro ignorado e, em parte,impensável. Parece-me que elas procuram se proteger dessa constatação,deixando que os acadêmicos reduzam processos a estados, ou mesmo quederivem a eternidade a partir de um presente de curto prazo, por meio deuma poderosa abstração.

A fim de fazer uma sociologia dos processos, devemos nos satisfazer comum ponto de partida de certa forma mais modesto. Os processos sociais dosquais procuramos construir um modelo, além de não-planejados, são inaca-bados. Ao tratarmos dos percursos que levaram ao presente, ajudamos nos-sos contemporâneos a se orientar melhor no mundo.Ao mesmo tempo, pre-paramos o caminho para as gerações futuras, que, auxiliadas pelo trabalhopreliminar realizado hoje, poderão adquirir um conhecimento mais amplo emais seguro que o atual. Nossa tarefa agora é trabalhar em prol da pacificaçãoe da unificação organizada da humanidade. Não nos deixemos intimidar porsabermos que não veremos essa tarefa progredir, na nossa época, do períodoexperimental para o de fruição. Certamente vale a pena e faz sentido nos pre-pararmos para trabalhar num mundo inacabado, que se estenderá para alémde nós.

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Estudos sobre a gêneseda profissão naual

Drahe e Doughty:o desenuoluimento de um conflitoO que restaria ainda a ser dito sobre uma briga entre dois seres hu-manos? Se forem seres humanos comuns, a briga pode ser interes-sante para um psiquiatra, como exemplo das formas de expressão,freqüentemente caprichosas, das paixões humanas.Ele esclarecerá abriga, segundo sua formação ou suas convicções, como resultanteda agressividade inata dos seres humanos, como resultado de umexcesso de frustrações, ou como a seqüela de uma rivalidade recal-cada entre irmãos ou irmãs na infância. Se forem seres humanos quedesempenharam papel importante na determinação do destino deseu próprio país, a briga interessará aos historiadores.Estes conside-rarão a briga como um acontecimento único, tentarão descobrir osmotivos pessoais dos envolvidos e situá-los no interior de seu con-texto histórico irrepetível. Mas e os sociólogos? Tendemos a pensarque cabe aos sociólogos se ocuparem com os problemas sociais. E,pela maneira como as palavras "sociedade" e "coletividade" sãoatualmente compreendidas, isso implica que os sociólogos nãopodem ou não deveriam se ocupar com os problemas de indivíduosisolados.

Contudo, um exame mais atento poderia revelar que há algoque não funciona bem nessa separação absoluta entre o estudo das