escrita, morte, transmissão

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,.. Prólogo ESCRITA, MORTE, TRANSMISSÃO INTRODUÇÃO Para tecer algumas hipóteses sobre as relações entre escrita, morte e transmissão, gostaria de partir de uma interrogação que nasce de uma dupla prática: a de escrever e de gostar de escrever - tive essa sorte desde cedo - e a de "orientar" (como se diz de maneira simpática na universidade brasileira) trabalhos escritos, m particular dissertações de mestrado e teses de doutorado. Ora, os inúmeros conflitos e as poucas - mas intensas - alegrias que essa dupla experiência proporciona me convenceram de algo que não posso sempre dizer em voz alta aos meus sérios colegas filó- ofos: a saber, que escrever com felicidade, no duplo sentido de contentamento e de sucesso, certamente tem a ver com a compe- tência ou com o saber do autor - mas, no fundo, muito menos do que se diz e se quer acreditar. (Excluo, claro, casos de best- -sellers, bons ou ruins, que têm uma relação clara com uma com- petência específica, a de operações de marketing.) E tento me per- guntar por que tantos alunos e tantos colegas excelentes, cultos, ompetentes, sérios, aplicados etc. etc. não "conseguem" escrever, como dizem eles mesmos; ou só o fazem ao preço de um sofrimen- to psíquico e físico. Antes de qualquer discussão de conteúdo, todo "orientador" tem a tarefa primordial de analisar e entender tal sofrimento, e até mesmo de ajudar o outro (e, às vezes, a si mesmo) a desfazer minimamente esses nós que o paralisam. Algumas hipóteses de respostas são bem conhecidas. Escrever um texto, sobretudo um texto que será julgado por uma banca ou por um grupo de colegas, "abala minha autoconfiança (eu tinha tantas ideias geniais, mas percebo que não consigo formulá-Ias ou, [ rólogo: Escrita, morte, transmissão 13

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Prólogo do livro Limiar, Aura e rememoração - ensaios sobre Walter Benjamin, Editora 34, 2014

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Page 1: Escrita, morte, transmissão

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PrólogoESCRITA, MORTE, TRANSMISSÃO

INTRODUÇÃO

Para tecer algumas hipóteses sobre as relações entre escrita,morte e transmissão, gostaria de partir de uma interrogação quenasce de uma dupla prática: a de escrever e de gostar de escrever- tive essa sorte desde cedo - e a de "orientar" (como se diz demaneira simpática na universidade brasileira) trabalhos escritos,m particular dissertações de mestrado e teses de doutorado. Ora,

os inúmeros conflitos e as poucas - mas intensas - alegrias queessa dupla experiência proporciona me convenceram de algo quenão posso sempre dizer em voz alta aos meus sérios colegas filó-ofos: a saber, que escrever com felicidade, no duplo sentido de

contentamento e de sucesso, certamente tem a ver com a compe-tência ou com o saber do autor - mas, no fundo, muito menosdo que se diz e se quer acreditar. (Excluo, claro, casos de best--sellers, bons ou ruins, que têm uma relação clara com uma com-petência específica, a de operações de marketing.) E tento me per-guntar por que tantos alunos e tantos colegas excelentes, cultos,ompetentes, sérios, aplicados etc. etc. não "conseguem" escrever,

como dizem eles mesmos; ou só o fazem ao preço de um sofrimen-to psíquico e físico. Antes de qualquer discussão de conteúdo,todo "orientador" tem a tarefa primordial de analisar e entendertal sofrimento, e até mesmo de ajudar o outro (e, às vezes, a simesmo) a desfazer minimamente esses nós que o paralisam.

Algumas hipóteses de respostas são bem conhecidas. Escreverum texto, sobretudo um texto que será julgado por uma banca oupor um grupo de colegas, "abala minha autoconfiança (eu tinhatantas ideias geniais, mas percebo que não consigo formulá-Ias ou,

[ rólogo: Escrita, morte, transmissão 13

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pior, que só escrevo trivialidades)", abala a imagem ideal que tinhade mim, portanto; e escrever também me confronta com a minhafalta de originalidade, "parece que tudo já foi dito, aliás de manei-ra muito melhor, e se eu não vou dizer nada nem de novo nemmesmo de relevante, seria melhor eu desistir de vez". Essas expli-cações pelas feridas narcísicas são certamente essenciais, mas meparecem ainda parciais, porque remetem à configuração singulardo indivíduo contemporâneo, que deseja ser único e diferente paranão soçobrar no anonimato da massa - perigo, aliás, muito real.

Com o intuito de pensar as relações tensas e angustiantes quea escrita e a consciência da morte entretêm, gostaria de seguiroutra hipótese: se fôssemos imortais, não precisaríamos escrever- e, portanto, quando escrevemos, lembramos, mesmo à nossarevelia, que morremos. E assim, muitas vezes, ou escrevemos de-mais ou não escrevemos nada.

ESCRITA COMO LUTA

CONT A O ESQUECIMENTO E A MORTE

Desdef os primeiros textos de nossa tradição ocidental, a re-lação entre morte e escrita é enfatizada pela própria poesia. Penso

I

.aqui especialmente na Ilíada e na Odisseia, que podem ser lidast

não só como a história da ira de Aquiles e das aventuras de Ulisses,mas também como uma teoria poética sobre a força, sobre o poder(dynamis) da palavra poética. A atividade de colocar por escritocantos transmitidos oralmente ao longo de séculos, atribuída a umpoeta de nome Homero, parece inseparável de uma rnetarreflexâolinguística e poética, já presente na oralidade, agora sancionadapela escritura. Retomo algumas reflexões fundamentais a esse res-peito de Marcel Détienne ' e Jean-Pierre Vemant/ entre outros pes-

1 MareeI Détienne, Les maitres de vérité en Grêce archatque, Paris, LaDécouverte, 1967.

2 Jean-Pierre Vernant, I.:individu, Iamort, l'amour. Soi-même et l'autreen Grêce ancienne, Paris, Gallimard, 1989.

14 Limiar, aura e rememoração

quisadores. Na personagem de Aquiles, a Ilíada encena a duplaalternativa que será paradigmática para toda tradição grega emesmo ocidental: ou morrer velho, repleto de anos, de filhos e denetos, modelo de uma vida feliz que será rapidamente esquecidapela posteridade (pois não há nada a contar da felicidade), oumorrer jovem, na flor da idade e da beleza, numa façanha heroica,uja glória - kleos em grego, origem do nome da musa da histó-

ria, Clio - será lembrada pela palavra poética a "todas" as gera-ções futuras. A escolha de Aquiles é a escolha da glória, pois s?ssa lhe garante a imortalidade da palavra humana, uma sobrevi-

da não pessoal, mas estritamente poética (por isso, quando Ulissesncontra Aquiles no Hades, no canto XI da Odisseia, o guerreiro

não se arrepende de sua escolha, mas se queixa amargamente denão estar mais entre os vivos, já que não há uma verdadeira vida,colorida, intensa, sensível nos Infernos homéricos, apenas uma"verde" morte, ao mesmo tempo, rumorosa e muda. Aquiles mor-re para si mesmo, mas permanece vivo na palavra de louvor e nocanto poético, que são meios de luta contra uma morte pior que abiológica: o esquecimento, a ausência de nome e de fama, a obs-curidade e a indiferença dos vivos de amanhã. Essa chave de leitu-ra da Ilíada nos ajuda também a entender por que esse poemafala tanto ou da luta heroica (que garante a glória do herói lern-b~ado por sua coragem) ou, então, de preparativos, de jogos e deritos funerários: a cerimônia fúnebre e a ereção do túmulo sãoigualmente práticas de celebração e de rememoração, tentativasconcretas não de abolir a morte pessoal, inevitável, mas de trans-formá-Ia no objeto de um lembrar permanente, constante. Em su-ma, de opor à inevitabilidade da morte singular a tenacidade damemória humana, imagem utópica de uma imortalidade coletiva.

Nesse empreendimento de luta contra o esquecimento e con-tra a morte, ritual funerário e canto poético são duas práticas nãoapenas solidárias, mas mesmo análogas. Se o túmulo é um signo(sema) construído com pedras, o poema também é signo, túmulo(sema) de palavras; ambos têm por tarefa lembrar aos vivos deamanhã a existência dos mortos de ontem e de hoje. Os traçosgravados na pedra funerária encontram uma expansão na beleza

Prólogo: Escrita, morte; transmissão 15

Page 3: Escrita, morte, transmissão

di) !lI) '11H1; a recitação e, singularmente, a escrita poética retomam,t r.uisfigurando-a, a função fúnebre de dizer a morte, de dizer, por-tanto, o ausente, mas também de torná-lo presente pela força docanto. Essa correlação essencial se encarna na figura do segundoherói épico por excelência, Ulisses. Ulisses não é tão só forte ecorajoso como Aquiles. Ele é mestre do ardil e do engodo, isto é,mestre das palavras, tanto das verdadeiras como das mentirosas(pouco importa), mestre das palavras e das histórias que surtemefeito, comovem e convencem - como o fazem as palavras dospoetas. Estruturalmente, a Odisseia não conta simplesmente asaventuras de um herói, mas comporta em seu centro, nas assimchamadas "narrações de Ulisses", a transmutação do aventureiroem narrador-poeta que sabe contar sua história e encantar seupúblico. O núcleo dessas narrativas está na descida ao Hades, noconfronto com a morte e com os mortos, e na vitória sobre asSereias, isto é, na transfiguração da magia maléfica do canto empotência artística de rememoração (pois, como o notou não semironia Todorov," se Ulisses tivesse sido devorado pelas Sereias, nãopoderia te nos transmitido a beleza de seu canto). O gesto deUlisses no Hades, com o qual ele afasta com sua espada os mortosdesejosos qe beber o sangue quente da ovelha sacrificada - obri-gando-os assim a falar por alguns minutos com o(s) vivo(s) - e,ao mesmo rempo, escolhe alguns companheiros queridos para es-se diálogo que transcende a inexorabilidade do tempo, esse gestoprefigura o do historiador, cuja pena retraça, ou não, os aconteci-mentos passados, os atos e os sofrimentos dos mortos que nosprecederam. E o "lívido pavor" de Ulisses diante das "inumerá-veis tribos de mortos", que se reúnem "soltando gritos aterrado-res" ,4 talvez possa prenunciar também nosso assombro diante damultidão dos "sem nome", como diz Walter Benjamin, daqueles

3 Tzvetan Todorov, "Le récit primitif", in Poétique de Ia prose, Paris,Seuil, 1971.

4 Odisseia, final do canto XI, tradução de Antônio Pinto de Carvalho,São Paulo, Abril, 1978.

16 Limiar, aura e rememoração

qu não lembramos e cuja história deveríamos, no entanto, poderro 11tar.5

IMORTALIDADE DO AUTOR E PHARMAKON

Se o poema é um túmulo feito de palavras, ele também é um111 numento, um mnema'' ou um "memorial" que lembra as faça-11 has dos heróis mortos, sua existência e, ao mesmo passo, suap rda. Mas, através dele, outro ser adquire consistência e se per-p tua: a voz do próprio poeta pretende ressoar para sempre. O.uidado com o kleos e com o passado, a beleza do canto que os, lebra, tudo isso como que atinge a figura do aédo, ;sse velho

fi, ralmente cego, guiado por uma criança como o será Edipo, quevê o que nossos olhos comuns de mortais não veem - figura opos-ta e complementar à do adivinho que enxerga o futuro. Os "divi-n s aédos" da Ilíada e da Odisseia banham-se numa luz sagradaque os protege da morte violenta (Ulisses poupará a vida de Fêmio,nédo da corte, no massacre final dos pretendentes em Ítaca) e ostorna, eles também, imortais. Essa luz divina acompanhará os poe-ras e os colocará acima dos meros mortais pelo menos até Bau-delaire e seu poeta anônimo, cuja auréola - um círculo de luz_ cai na lama, quando atravessa uma rua movimentada de Paris.?Na Grécia antiga, poetas e adivinhos são realmente "inspirados",

5 Ver Walter Benjamin, "Sobre o conceito de história", em particular anota da edição crítica de Gesammelte Schriften (Frankfurt, Suhrkamp, 1974,vol, 1-3, p. 1.241): "Schwerer ist es, das Geddchtnis der Namenlosen zu ehrenais das der Berühmten [... ] Dem Geddchtnis der Namenlosen ist die historis-che Konstruktion geweiht"; "É mais difícil honrar a memória dos sem nomedo que a dos famosos [...] É à memória dos sem nome que é consagrada aconstrução histórica". Tradução de J. M. G. A partir de agora citarei o volu-me Gesammelte Schriften como G. S.

6 Jean-Pierre Vernant, op. cit., p. 70.7 Ver o famoso poema em prosa de Baudelaire "Perte d'auréole" ["A

perda da auréola"], uma das fontes principais da teoria benjaminiana da"perda da aura" na arte contemporânea.

Prólogo: Escrita, morte, transmissão 17

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isto é, preenchidos por um sopro de origem divina que lhes confe-re iluminação e competência. Com o desenvolvimento da demo-cra~i~ e do exercício argumentativo da palavra, do logos político,jurídico e filosófico, o estatuto da linguagem poética também setransforma, se laiciza e se democratiza, tornando-se objeto de ava-liação crítica como outro discurso qualquer. Toda filosofia de Pla-~ão test~munha essa transformação. No entanto, essa pretensão àimortalidade que o autor do texto escrito deseja alcançar atravésdele subsiste e até mesmo aumenta, pois que se generaliza. O tex-to se torna "obra" e a obra deve lembrar à posteridade a existên-cia de seu "autor".

Poderíamos inclusive dizer que esse desejo se torna uma dasmotivações principais da escrita e da atividade de escrever da es-

. , 'crttura, ate nossos dias. Assim o afirma André Gide, no seu [our-~al, no dia 27 de julho de 1922: "Les raisons qui me poussent àecrtre sont multiples, et les plus importantes sont, il me semble,les plus secrets. Celle-ci peut-être surtout: mettre que/que chose àl'abri de Ia mort" ("As razões que me levam a escrever são múlti-plas e as mais importantes são, me parece, as mais secretas. Talveze~ta sobretudo: pôr algo no resguardo da morte")." Essa frase,citada de ltnaneira bastante irônica por Maurice Blanchot, torna~anifesto um segredo público: escrevemos para sobreviver, paranao morrer por inteiro, ou para deixar algo de durável (não ousa-mos mais dizer de eterno), para deixar um rastro ou uma marcade nossa passagem; rastro ou marca que, esperamos, serão piedo-samente conservados pela posteridade. Talvez queiramos mesmotransmitir algo essencial, algo da "imortal beleza" (Baudelaire) ouda "sabedoria universal", mas queremos também, como os mortos~a O~isseia, que nosso nome não caia no esquecimento - e porISSO, ainda em vida, ficamos felizes quando um livro nosso recebe~ma. boa resenha e furiosos quando é ignorado! Homero, poetainspirado pelas Musas, educador da Grécia, é certamente umapersonagem lendária cujo nome prescinde de estado civil mais pre-

8 Citado por Maurice Blanchot no ensaio "La mort contente" in DeKafka à Kafka, Paris, Gallimard, 1981, p. 137. '

18 Limiar, aura e rememoração

( I o, justamente porque é o sopro da divindade que se diz nos seusI'I"S s. Tais versos, aliás, não pertencem só a ele, mas a uma longa

trndição que o poeta recolheu por escrito. Quando as verdadeirasMusas morrem, isto é, as filhas de Zeus e de Mnernosynê, deusad,1 memória, quando se perde a tradição ancestral, nasce entãoI' S:1 estranha figura do autor que deve lutar por sua especificidade.rngular, por seu reconhecimento e por sua pequena quota de imor-t.ilidade na galeria dos chamados grandes pensadores da humani-dn le. Escrever um texto, melhor ainda, escrever uma "obra", cons-lilui uma estratégia de autoconservação em vida e depois da vida.

Ora, sabemos todos, mesmo que não ousemos confessá-Io11 -m a nós mesmos, quão frágil, e pior, quão vã é tal estratégia.N' sas circunstâncias, vale a pena reler a famosa "condenação"da escrita no fim do diálogo Fedro de Platão." O contexto é conhe-·i 10: no fim de um belíssimo diálogo consagrado à diferenciação(' articulação do eros verdadeiro (em oposição ao amor interessa-do) e do logos verdadeiro (em oposição aos discursos bem escritosdo sofistas e dos retores), Sócrates percebe que seu jovem e belo.ompanheiro, Pedra, ainda não está totalmente convencido, aindanão conseguiu se desvencilhar por inteiro da sedução exercida pe-1:1 peças de bravura escritas pelos sofistas e oradores, pelos "10-gógrafos" - como o texto de Lísias que ele tinha pedido empres-rndo e carregava embaixo do braço para estudar suas invenções.stilisticas e, quem sabe, decorá-lo. Sócrates decide então contarum mythos antigo, carregado de dignidade e de autoridade, poisti ue vem do Egito, país mais antigo que a própria pólis de Atenas.Platão apela assim à autoridade da tradição oral. Valendo-se dainvenção descarada de um mito, pretende condenar a autoridadede uma outra tradição, aquela dos discursos escritos que começan reinar na educação dos jovens.

O mito imaginado por Platão apresenta uma cena paradig-mática de filiação e de transmissão. Mais precisamente, uma cena

9 Deve-se discutir se é realmente a escrita que Platão condena e não umc [to fetichismo da escrita; ver Luc Brisson, introdução à edição da Carta VII,Lettres, Paris, Garnier-Flammarion, 1987, pp. 157 ss.

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11 I 1111 ti 11111 lilho OU um deus menor, o jovem Thot, inventor dos1111111 'I'OS e dos jogos de dados, vem apresentar sua nova invenção- a escrita - ao pai, ao deus maior, Tamuz, deus soberano esolar, modelo do rei-juiz arcaico cuja palavra em si tem força delei. Thot, que na mitologia egípcia também é o deus da morte,parece aqui no entanto um deus jovem, brincalhão, cheio de boavontade e de ingenuidade. Sua nova invenção o entusiasma porque,assim ele diz, resolverá os problemas de armazenamento, de esque-cimento e de acumulação do saber, sendo a escrita uma "drogapara a memória e para a sabedoria": mnémês te gar kai sophiaspharmakon.10 Tamuz, que não precisa de escrita para assegurarseu saber e seu poder, retruca termo por termo; a escrita só faráaumentar o esquecimento dos homens porque eles depositarão suaconfiança em "signos exteriores e estrangeiros" (exothen hypo'allotriôn typôn),u em vez de treinar a única memória verdadeira ,a memória interior à alma, aquela que não precisa de notas parase lembrar. Tamuz conclui peremptoriamente: "Não é para a me-mória (mneme), é para a recordação ihypomnesiss que inventasteum rem é '0 (pharmakon) ",12 opondo aqui o verdadeiro processodo lembra (a famosa anamnêsis platônica, que garante o reconhe-cimento e Q conhecimento verdadeiros) a um processo de anotaçãoe inscrição que só servem de auxílio para as falhas da memória.

Em sua célebre análise desse texro.I! Jacques Derrida mostrouI

como essas separações platônicas assolam até hoje o pensamentoocidental, metafísico ou não. Com efeito, por trás da oposiçãoentre palavra escrita e palavra oral se perfilam outras dicotomiasbasilares: original e cópia, vivo e morto; isto é, também, vida emorte, memória (verdadeira, diria Platão) e esquecimento. Mesmoque a imagem pareça semelhante a seu modelo, ela difere dele, no

10 Platão, Fedro, 274a.

11 Idem, 275a.

12 Idem, ibidem.

13 Jacques Derrida, A farmácia de Piatão, tradução de Rogério da Cos-ta, São Paulo, I1uminuras, 1991.

20 Limiar, aura e rememoração

I iunnto, como a pessoa e seu retrato, e a palavra escrita da oral, ambas daquele "real" que designam. A questão é limitar e

ti -lirnitar essa relação de semelhança - termo ambíguo que situa-l' entre a diferença e a identidade, pois semelhança não significa

II'ualdade. Assim também, como realça Derrida, o pharmakon é\''IS ncialmente ambíguo - daí sua sedução e sua periculosidade

endo simultaneamente veneno e remédio, sentido que nossapalavra "droga" pode transmitir. Próprias das artes e da mimesis110 pensamento platônico, a semelhança e a ambiguidade atraem,s 'd uzem e encantam, pois são promessas de beleza e de felicidademaiores que aquelas oferecidas pela "realidade" (não a realidadeverdadeira das Ideias, que os filósofos podem alcançar, mas a rea-lidade da vida política e cotidiana, sempre decepcionante). E jus-tamente porque seduzem, como as mulheres e como as sereias, sãoainda mais perigosas, introduzindo uma zona turva de indeterrni-nação entre aparência e ser, ausência e presença.

A escrita - e os belos textos em particular - vive justarnen- (te desta perigosa indeterminação. Ela torna presente aquilo queestá ausente, e é duplamente signo: signo do som e signo daquiloque o som designa. Como signo de algo que não está mais, presen-ça da ausência e ausência de presença, é um rastro, isto é, desdePlatão até Freud.l" um estranho ser, tão imprescindível quantoinstável e incerto. Como nele confiar? Como confiar nas lembran-ças, esses "rastros mnêmicos" muitas vezes infiéis, às vezes mesmofalsos? Como confiar na escrita que não consegue dizer a vivaci-dade da vida? Platão responde por meio de uma desconfiança re-soluta, que é o reverso de sua confiança na palavra viva, inscritanão no papel, mas na alma. Palavra viva que não apenas o diálogode Sócrates com qualquer cidadão em praça pública encarna, mastambém o diálogo como gênero literário e escrito ao qual Pia tãodeu suas "letras de nobreza". Essa desconfiança solapa radical-mente a ingenuidade que um "autor" poderia ter em depositaresperanças na transmissão de uma mensagem e de seu próprio

14 Em Freud, a famosa Erinnerungsspur, um rastro mnêmico, e não umtraço mnêmico, como é muitas vezes traduzido.

Prólogo: Escrita, morte, transmissão 21

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11011' ' por mci de um "discurso escrito", como diz Platão, ou deum livro, como diríamos hoje.

A desconfiança em relação à escrita implica uma igual des-confiança em relação ao ato da leitura: escritor e leitor acreditamque se entendem, quando são de fato vítimas de uma incompreen-são estrutural e insuperável, já que não podem conversar juntos,isto é, com perguntas e respostas recíprocas, na vivacidade de umabusca comum da verdade que somente a convivência pode propor-cionar - por meio de uma comunicação existencial concreta, por-tanto oral e (se possível) cotidiana. Esboça-se aqui essa imagemde comunicação franca, aberta, viva e de comunidade amigável ede um saber compartilhado por todos que guia até hoje, pelo me-nos na teoria, nossa prática de ensino e nossos colóquios científi-cos, longe da concorrência entre colegas rivais que contam pontosnos seus curricula para cada artigo publicado! Um belo ideal,15que deveríamos lembrar justamente como antídoto, como phar-makon, talvez, contra a administração contábil da vida acadêmicaque nos rege.

O que, porém, chama a atenção no texto de Platão, é queessa relaça de transmissão verdadeira se expressa, citando nova-mente as observações de Derrida, em metáforas de filiação e depaternidad~. Mais ainda: em termos de filhos legítimos e de filhosbastardos, ou de filhos fiéis ao pai e de filhos infiéis, que saem decasa e desfiguram a mensagem paterna. Cito Platão:

"Uma vez escrito, um discurso sai a vagar por todaparte, não só entre os conhecedores mas também entreos que não o entendem, e nunca se pode dizer para quem

15 Platão o descreve assim na "Carta VII": "Só depois de esfregarmos,por assim dizer, uns nos outros, e compararmos nomes, definições, visões,sensações, e de discuti-los nesses colóquios amistosos em que perguntas erespostas se formulam sem o menor ressaibo de inveja, é que brilham sobrecada objeto a sabedoria e o entendimento com a tensão máxima de que forcapaz a inteligência humana". "Carta VII", 344b, tradução de Carlos Alber-to Nunes, in Piatão, Obras completas, volume 5, Cartas, Belém, Editora daUFPA,1973.

22

. quem não serve. Quando é desprezado o,u, 1\ t I para 'I' d i pOIS

do necessita do aUXI10 o pa ,11111

1LIIll .nte censura, '[ ] Examinemos ago-

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omento do texto platônico um elementoluu-rvém nesse m h ' di mos ao apego narcisista)I ' , o apego ( oje ma

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11~1,11, 'e ridade da palavra origmana, isto e, a pa a" I li I • .bernos, a mt g , ai-rei-deus solar Tamuz.I no mito pertence ao p ,I 1 I nt ma que, .' _ d mais ser ajudado pelo pai/'11 di rso escnto nao po e d

" () (I 10, o ISCU , diál gos de PIatão, caso o' fora recorrente nos Ia oIlltor (uma meta d necer no recinto familiar, tor-) do em vet e perma I/I,IIIt]uete quan , _ , o "filho" enquanto ta ,

'bI' está sob ameaça nao e ,1101 S' pu ICO, o que , d d I a paterna isto é, a evidênciab d a autonda e a pa avr "III.lS o retu o id imeiro e origináno. Com uma~ , de um senti o pnt' ,I transparencia ia o nrocesso de distanciamentod id d PIa tão denuncia o proc/'.1':1 n e aCUI a e, ,_ ita inst ra Ora é J' ustamente essermssao escnta ms au. ,rln fonte que a trans , , são histórica que a inter-' histónco e essa transrms Idisranciamento 1" d que sem a esperança, pe o- tarefa ana isar, am apr taça o tem por , "de resgatar ou recuperarh " rica contemporanea,menos na ermeneu, "" por isso mais autêntico queid ' iro dito ongmano eum senti o pnme , , deri d Como saber com certeza'1 ' I tidos ditos enva os. , h() mu trp os sen " _ à sua frente uma lin afi f te se o interprete nao tem Ionde ca a on , _ histórica ou psíquica em mo _I di t uma transrrussaoreta, c ara, Ire a" , , , conturbado palco de lutas' as SIm um terntono ,des cartesianos, m "jardim de veredas quee lugar errático, no melhor dos casos u~

if "mo no conto de Borges. , Ise bi urcam co _ I - à escrita é instrutiva, E aA desconfiança de Platão em re açao , ue

' I' do autorlpai/Platão/Socrates - q ,nos diz - certamente a reve Ia

16 Fedro, 275 e 276a, tradução de Jorge Paleikat, Porto Alegre, Globo,1962,

Limiar, aura e rememoraçãoPrólogo: Escrita, morte, transmissão 23

Page 7: Escrita, morte, transmissão

quando escrevemos, devemos abdicar de tentar driblar a morte enos perpetuar, integrais e transparentes, pelos nossos livros aindaque seja pelas "nossas Confissões", como Rousseau de cert; modoesperava. Escrever seria, então, não um processo de imortalizaçãodo autor, mas, pelo contrário, um duplo processo de luto: em re-lação.a uma identidade singular sempre fixa e clara, e em relaçãoa um Ide~l de compreensão e de transparência intersubjetivas. Tal-vez contmuemos presentes no processo da leitura; presentes e fu-turos, mas sempre deformados, ou melhor, transformados (pois afo~~a, o e/dos originário, só existe na bela meta física platônica).Aliás, só nos é possível ter uma relação com o passado e aquelesque nos precederam, com nossos pais e mortos, quando desistimosde co~~reen~ê-los "perfeitamente" na totalidade de uma pseudor-relaçao imediata. Em suma, a escrita não nos imortaliza; ela talvezpossa lembrar um gesto que esboçamos - o qual, no melhor doscasos, será retomado e transformado por outrém. Assim como ofilho que cresce lembra ao pai que ele, o pai, envelhece e morretambém aquilo que eu possa vir a escrever será um alerta de minhacaducidade e de minha finitude.

fESCRITA E PRESENÇA DA MORTE,

ESCRItA E PRESENÇA DOS MORTOS

. Talvez a literatura possa ser definida como a linguagem cujalei d~ estruturação é a sua relação com a morte. Tal relação nãoprecisa ser. explíci.ta,. ela habita o texto literário que; em oposiçãoa tex:os ditos objetivos ou ainda científicos, não pretende falardaquilo que existe, do assim chamado real, mas pretende inventaroutra realidade - inexistente? Sem dúvida, mas também existen-te de um ~odo diferente, aquele do possível, da invenção. A ficçãopode se~ lida tanto na chave da mentira como na da revelação deum sentido desconhecido. E mesmo quando um poeta tenta des-crever a beleza ou a dor do mundo, ele o faz revelando um outrose~ti~o que só percebemos graças a suas palavras, algo que nãoexistia antes no próprio mundo enquanto tal, se é que se pode

24 Limiar, aura e rememoração

falar dessa maneira. Criar sentido é, portanto, manter esse mundoimediato à distância, criar entre mim e ele um intervalo que deleme afasta, me separa, me corta, mas também me permite nomeá-lo.Ninguém enfatizou tanto como Maurice Blanchot a radicalidadedesse corte, espécie de aniquilamento da presença viva para queIa se torne presente como ausência, como fala. Blanchot chamassa destruição-presentificação-? de "assassinato diferido", objeto

de preocupação maior dos poetas e também, poderíamos acrescen-tar, objeto de repulsa e de ódio por parte de muitos que acusam os'intelectuais" de matar o calor da vida. O escritor arriscaria, pois,

segundo Blanchot, arruinar essa imediatidade da vida - essa in-diferenciação quente, gostosa e, ao mesmo tempo, pegajosa e su-focante - .para instaurar um espaço, isto é, um vazio onde algooutro possa se articular, se desdobrar e crescer, ou falhar e desva-necer. Se a escrita configura um nascimento, é porque adentra oreino da separação e da despedida, da intensidade do início e daprefiguração da partida. Cito Blanchot:

"Je dis: cette femme. Hõlderlin, Mallarmé et, engénéral tous ceux dont Ia poésie a pau r thême l'essencede Ia poésie ont vu dans I'acte de nommer une merveilleinquiétante. Le mot me donne ce qu'il signifie, maisd'abord ille supprime. Pour que je puisse dire: cettefemme, il faut que d'une maniere ou d'une autre je luiretire sa réalité d'os et de chair, Ia rende absente etI'anéantisse. Le mot me donne l'être, mais il me le donneprivé d'être. {...] Sans doute, mon langage ne tue per-sonne. Cependant: quand je dis 'cette [emme', Ia mortréelle est annoncée et déjà présente dans mon langage.[...} Mon langage ne tue personne. Mais, si cette femmen'était pas réellement capable de mourir, si elle n'était

17 Não por acaso, Blanchot cita Hegel inúmeras vezes nesse texto, poisI /\ufhebung hegeliana poderia ser pensada a partir dessa relação entre lin-

, ungem e realidade. "La littérature et le droit à Ia mort", in De Kafka à Kaf-/"11, op. cit., p. 37.

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pas à chaque moment de sa vie menacée de Ia mort, liéeet unie à elle par un lien d'essence, je ne pourrais pasaccomplir cette négation idéale, cet assassinat différéqu'est mon langage."18

Talvez possamos pensar, nas pegadas de Blanchot, que essarelação entre linguagem e morte, entre escrita (esse rastro rígidoda voz viva) e morte, se sempre esteve presente na literatura, mes-mo que sob a forma poética da rememoração dos mortos, acaboupor tornar-se tão nuclear na literatura moderna em razão de umaoutra ausência: aquela de uma tradição viva, que garanta ao textopoético sua inserção num fluxo maior de histórias transmitidas degeração em geração; tal fluxo seria, segundo a bela imagem deWalter Benjamin, como um anel. Desprovido de sua auréola, opoeta perde a ligação intrínseca com o sagrado, com uma ordemmaior que a da curta existência humana, na qual podia "criarraizes" e "lançar sementes", como o afirma toda metaforologiaorgânica da criação artística. Como outros trabalhadores, o poetaé agora ur produtor de mercadorias, sem dúvida singulares, masrapidamente sucateadas para darem lugar a outras novas que as-seguram 'única continuidade essencial, a do funcionamento domercado . .j\inda que o poeta, como Baudelaire, procure acreditarnuma beleza imortal, a impressão é de que essa fé não faz mais que

18 Idem, pp. 36-7. "Digo: esta mulher. Hôlderlin, Mallarmé e, em geral,todos aqueles cuja poesia tem por assunto a essência da poesia, viram no atode nomear uma maravilha inquietante. A palavra me dá aquilo que significa,mas, primeiro, o suprime. Para que eu possa dizer: esta mulher, devo de umamaneira ou outra dela remover sua realidade de osso e de carne, torná-Iaausente e a aniquilar. A palavra me dá o ser, mas mo dá desprovido de ser.[...] Sem dúvida, minha linguagem não mata ninguém. No entanto: quandodigo 'esta mulher', a morte real é anunciada e já presente em minha lingua-gem. [...] Minha linguagem não mata ninguém. Mas se esta mulher não fosserealmente capaz de morrer, se não fosse a cada momento de sua vida amea-çada pela morte, a ela ligada e unida por um laço de essência, eu não poderiacumprir essa negação ideal, este assassinato diferido que é minha linguagem."Tradução de J. M. G.

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li regar um elemento, um certo "glamour", talvez, ao produto. A.rise da transmissão e da transmissibilidade, segundo Benjamin,.aracteriza a modernidade - deduzida, em termos marxistas, apartir do desenvolvimento do capitalismo e da generalização daforma mercadoria. Tal crise sulca no texto literário inúmeras figu-r ções da caducidade, imagens que podem possuir, aliás, uma gran-de beleza, como em Kafka, Proust ou Beckett.

Se a escrita literária, como escrita ligada à invenção de outrosmundos, tem uma relação intrínseca com a morte e a ausência,poderíamos esperar que outros tipos de escrita, ditos mais objeti-v s ou científicos, fossem poupados de tal associação. Ora, no quediz respeito à historiografia, à escrita da história (e não mais dehistórias), essa relação com a morte, parece, pelo contrário, apenasse aprofundar. Pertence a um passado revogado, à época feliz naqual os historiadores tinham como ideal metodológico relatar opassado "tal qual realmente foi", como o apontou com ironiaWalter Benjamin.l" Ainda que o passado tenha realmente aconte-'ido e deixado no presente marcas reais de sua existência, nadagarante seu estatuto unívoco. Pode-se postular essa realidade pas-sada, mas é impossível demonstrar com rigor - como num axio-ma de geometria - que ela apresentou exclusivamente tais quali-dades e não outras. A "descrição" do passado é uma construçãoque obedece à interpretação de rastros de diversa ordem (documen-I ,arquivos, testemunhos etc.) e a injunções singulares de enun-.iação, ligadas ao presente específico do historiador. Essa comple-idade provém, entre outras razões, do duplo estatuto ontológico

do passado, ressaltado em particular por Heidegger e pela filosofiah 'rmenêutica. O passado é aquilo que não é mais, que foi extintoI' não volta, no sentido de vergangen/révolu; mas também é aquiloruja passagem continua presente e marcante, cujo ser continua at' istir de forma misteriosa no presente: aquilo que tem sido, gewe-senlété. Assim, a narração histórica é tributária de todas as ambi-

19 No original, "Wie es eigentlich gewesen ist", citação de Leopold vonI nnke que Walter Benjamin elege como mote do historicismo em suas tesesti Sobre o conceito de história".

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guidades da imagem rnnêmica e da atividade do lembrar, ambigui-dades tão bem analisadas por Paul Ricoeur.ê? A história não ésomente uma narração, em que tomam parte a elaboração subje-tiva e imaginativa. Aquilo que ela pretende narrar, o passado, nãopode ser objeto de apropriação unívoca, já que não está mais e nosescapa. O presente falha em suas tentativas de apoderar-se do pas-sado de modo definitivo. Como o presente está destinado a tornar--se em breve (aliás, em muito breve) também passado, suas preten-sões de dominação também caducam. E, com cada presente, trans-forma-se a memória do passado, como bem o sabem historiadorese também psicanalistas, mesmo que haja tentativas de contá-Ia ede lembrá-Ia de uma maneira unívoca, esforços que obedecem aoestabelecimento de uma narração e de uma memória dominantes.

Isso não significa que devamos cair num relativismo genera-lizado e preguiçoso, mas, pelo contrário, que é preciso enfatizar arelevância não só epistemológica, mas também, e antes de tudo,ética e política da construção do passado. Esse tema, caro a WalterBenjamin, se tornou candente nos debates posteriores sobre a his-toriografia da Segunda Guerra, em particular no que se refere àhistória da Shoah - que proíbe tanto o. comodismo relativistaquanto as Ifosturas dogmáticas do positivismo científico, invocadojustamente pelos assim chamados negacionistas. Ora, como contaruma história cuja lei de estruturação inclui o apagamento delibe-,rado dos rastros e dos documentos? (Estratégia de apagamentopraticada pelos nazistas quando compreenderam que perderiam aguerra e que, portanto, não poderiam impor sua versão da história,como o relata Primo Levi.)21 Como conceber uma narrativa quedeve tentar se articular na consciência dolorosa da insuficiênciainerente de qualquer relato e no balbuciar da repetição traumática?As categorias de testemunho e de atestação, desde sempre muito

20 De Ricoeur, ver, sobretudo, o volume L'histoire, Ia mémoire, l'oubli(2000). Edição brasileira: A história, a memória, o esquecimento, Campinas,Unicamp, 2007.

21 Primo Levi, Os afogados e os sobreviventes, São Paulo, Paz e Terra,1990; particularmente, o prefácio.

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presentes na tradição teológica, adquirem um sentido renovado nahi toriografia contemporânea. Elas levam Paul Ricoeur a afirmarIue a noção usual de "representação" (Vorstellung/représentation)

110 discurso histórico deveria ser substituída pela noção, que ele'unha, de "representância" (Vertretung/représentance), isto é, umanritude narrativa que segue também uma injunção ética com rela-'~o ao passado e, em particular, aos mortos do passado.

Ressurge aqui, com notável insistência, a antiga ligação entre\'S rita e túmulo, que o epos homérico já materializava. A escritu-ra da história e a relação do escritor com o passado são ambaspráticas de sepultamento, como o afirma com força Michel de(: .rteau, que compara as obras dos historiadores aos cemitériosd ' nossas cidades. Esse "rito de sepultarnento'V? (rite d'enterre-/1/ 'nt) pode ser interpretado, de maneira clássica, como expressãorln vontade humana de honrar a memória dos mortos, de respeitaros antepassados, e de opor à fragilidade da existência singular aesperança de sua conservação na memória dos vivos - de reco-nhecer a dívida que nos liga ao passado, diria Ricoeur. Ainda quet' ularizado, trata-se de um ritual ético e religioso, no sentido da

Ins rição dos vivos de hoje na continuidade reconhecida e assumi-ti: de uma temporalidade que ultrapassa o mero espaço da atua-lidade imediata. Mas esse rito também permite, como aliás outraspráticas de sepultamento e de luto, marcar uma separação claraentre o domínio dos mortos e o dos vivos, isto é, impedir que osmortos, invejosos, raivosos, ou somente nostálgicos, possam voltar,I luz do nosso (dos vivos) dia. Cito Certeau:

"Por um lado, no sentido etnológico e quase reli-gioso do termo, a escrita representa o papel de um ritode sepultamento [un rite d'enterrementi; ela exorciza amorte introduzindo-a no discurso. Por outro lado, temuma função simbolizadora; permite a uma sociedadesituar-se, dando-lhe, na linguagem, um passado, e abrin-

22 Michel de Certeau, A escrita da história, Rio de Janeiro, Forensel luiv .rsitária, 1982. O original francês, L'écriture de l'histoire, é de 1975.

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do assim um espaço próprio para o presente. [... ] A es-crita não fala do passado senão para enterrá-Ia. Ela éum túmulo no duplo sentido de que, através do mesmotexto, ela honra e elimina. "23

As observações agudas de Michel de Certeau me levam a umaconclusão. Escrevo, sim, para enterrar e honrar os mortos, sobre-tudo se eu for historiador. Escrevo também para enterrar talvezmeu próprio passado, para lembrá-lo e, ao mesmo tempo, dele melivrar. Escrevo então para poder viver no presente. Escrevo, enfim,para me inscrever na linha de uma transmissão intergeracional, adespeito de suas falhas e lacunas. Assim como leio os textos dosmortos e honro seus nomes no ato imperfeito de minha leitura,também lanço um sinal ao leitor futuro, que talvez nem venha aexistir, mas que minha escritura pressupõe. Lanço um sinal sobreo abismo: sinal de que eu vivi e de que vou morrer; e peço ao lei-tor que me enterre, isto é, que não anule totalmente minha existên-cia, mas saiba reconhecer a fragilidade que une sua vida à minha.Talvez isso o ajude a "viver enquanto mortal e morrer enquantovivente". 4

23 Idem, p. 118.

24 A frase é de Denis Vasse: "Vivre en mortel et mourir en vivant".

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LIMIAR

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Jeanne Marie Gagnebin

LIMIAR, AURAE REMEMORAÇÃO

Ensaios sobre Walter Benjamin