erer carolina novo (2)

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1 UAB UNIVERSIDADE ABERTA DO BRASIL ERER Módulo5 EDUCAÇÃO PARA AS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS Avaliação Carolina dos Santos Bezerra Perez Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)

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  • 1UAB

    UNIVERSIDADEABERTA DO BRASIL

    ERERM d u l o 5

    EDUCAO PARA AS RELAES TNICO-RACIAISAvaliao

    Carolina dos Santos Bezerra PerezUniversidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)

  • 2

  • 3UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORAHenrique Duque de Miranda Chaves Filho

    Reitor

    CENTRO DE EDUCAO A DISTNCIA

    Prof. Da Lcia Campos PernambucoDiretora Geral

    Prof. Jos Antonio de Aravena Reyes Coordenador Geral

    Prof. Maurcio Leonardo Aguilar Molina Coordenador Acadmico

    Crystiam Kelle Pereira e SilvaCoordenadora Tecnolgica

    Aline Barreto dos Santos Coordenadora Administrativa e Financeira

    Setor de Produo de Material Didtico

    Fabrcio Brunelli MachadoChefe de Produo de Materiais

    Liliane dos SantosAssistente em Assuntos Educacionais

    Fabrcio Brunelli MachadoLiliane da Rocha

    Thais PeralvaDiagramao

    Brbara SimesFabrcio Brunelli Machado

    Paula MartinsReviso Textual

    Rodrigo Lobo GottiCinegrafia e Edio

    Samir Bretas de Deusudio e Edio

    Guilherme PortesFotografia e Imagens

    Carolina dos Santos Bezerra PerezOrganizadora

  • 4

  • 5SUMRIO

    UMA EDUCAO PARA O SCULO XXI ................................................................. 9

    O QUE SE DEVE APRENDER NA ESCOLA? ESTRATGIAS E SUBSDIOS PEDAGGICOS PARA A EFETIVA IMPLANTAO DAS LEIS 10.639/03 e 11.645/08 ENQUANTO POLTICA PBLICA .............................................................................. 12

    ASPECTOS DA FORMAO SCIO-HISTRICA, POLTICA-ECONMICA E SIMBLICO-CULTURAL DA SOCIEDADE BRASILEIRA E SUA INFLUNCIA NA CONSOLIDAO DE UM SISTEMA EDUCACIONAL DE ENSINO ............................ 16

    1. Sociedade e Educao no Perodo Colonial-Imperial-Escravocrata ............................................. 16

    2. Sociedade e Educao no Projeto Igualitrio e Liberal de Educao ............................. 21

    ORIENTAES DIDTICO-PEDAGGICAS PARA A IMPLEMENTAO DE UMA EDUCAO PARA AS RELAES-TNICO-RACIAIS NO ESPAO ESCOLA.......... 26

    UTILIZANDO A EXPERINCIA DO ENSINAR E DO APRENDER EM GRUPOS E COMUNIDADES AFRO-BRASILEIRAS COMO ORIENTAES DIDTICO-PEDAGGICAS PARA A IMPLEMENTAO DE UMA EDUCAO PARA AS RELAES TNICO-RACIAIS ...................................................................................... 30

    RELEMBRANDO ALGUNS CUIDADOS QUE DEVEMOS TER NA ADEQUAO QUANTO ABORDAGEM DA HISTRIA E CULTURA AFRO-BRASILEIRA E AFRICANA NO ESPAO ESCOLAR ................................................................................................. 35

    REFERNCIAS .............................................................................................................. 38

  • 6

  • 7SUBSDIOS TERICO-

    PEDAGGICOS PARA

    A IMPLEMENTAO

    DE UMA EDUCAO

    PARA AS RELAES

    TNICO-RACIAIS

  • 8

  • 9UMA EDUCAO PARA O SCULO XXI

    A educao na contemporaneidade uma rea sobre a qual se debruam diversos especialistas e pesquisadores que cada vez mais afirmam que a educao mundial e brasileira est em crise. Vrios so os motivos levantados e vrias so as anlises. Fala-se de violncia na escola: bullying, intolerncia, racismo, preconceito e discriminao; da crise por motivaes polticas e econmicas: globalizao, neoliberalismo, naturalizao das desigualdades scio-econmicas; da crise pela perda de finalidade educativa etc., e propem: uma educao para as competncias: necessidade de educar para a questo ambiental; de educao para a tica; para os meios de comunicao; para o empreendendorismo; para o consumo; e tantas outras questes que, como educadores, vamos estudando ao longo dos anos.

    Sobre o legado do sculo XX Morin comenta:

    O sculo XX foi o de aliana entre duas barbries: a primeira vem das profundezas dos tempos e traz guerra, massacre, deportao, fanatismo. A segunda, glida, annima, vem do mago da racionalizao, que s conhece o clculo e ignora o indivduo, seu corpo, seus sentimentos, sua alma, e que multiplica o poderio da morte e da servido tcnico-industriais. (MORIN, 2002, p.70)

    Dentre os vrios desafios colocados para a transformao da educao que temos para a educao que desejamos, uma das questes fundamentais que se apresenta, a necessidade de se trabalhar no cotidiano das escolas uma Educao para as Relaes tnico-raciais.

    Diversos rgos e entidades internacionais vm sinalizando a importncia de se efetivar aes severas de combate ao racismo, ao preconceito e discriminao1 tanto em pases da Europa, como da Amrica Latina, evidenciando que, em muitos pases, a intolerncia e o racismo tm trazido srios entraves ao seu desenvolvimento econmico,

    1 Racismo uma ideologia que postula a existncia de hierarquia entre os grupos humanos. (BRASIL, 1998, p.12)Preconceito uma opinio preestabelecida, que imposta pelo meio, poca e educao. Ele regula as relaes de uma pessoa com a sociedade. Ao regular, ele permeia toda a sociedade, tornando-se uma espcie de mediador de todas as relaes humanas. Ele pode ser definido, tambm, como uma indisposio, um julgamento prvio, negativo, que se faz de pessoas estigmatizadas por esteretipos. (SANT`ANA, 2005, p.62).Discriminao o nome que se d para a conduta (ao ou omisso) que viola direitos das pessoas com base em critrios injustificados e injustos, tais como a raa, o sexo, a idade, a opo religiosa e outros. A discriminao algo assim como a traduo prtica, a exteriorizao, a manifestao, a materializao do racismo, do preconceito e do esteretipo. Como o prprio nome diz, uma ao (no sentido de fazer deixar fazer algo) que resulta em violao dos direitos. (BRASIL, 2005, p. 15).

  • 10

    cientfico, cultural e tecnolgico. O que tem gerado polticas de conteno a esses fenmenos que se valem, dentre outras frentes, do campo educacional como uma das reas possveis de estimular e fomentar aes que conduzam a mudanas de atitudes no tocante ao respeito diversidade racial, cultural, religiosa e tnica.

    Sabemos que a escola o espao privilegiado nas sociedades contemporneas de socializao das novas geraes sociedade, ao mundo no qual habitam, como tambm para a transmisso dos conhecimentos historicamente acumulados pela humanidade. A humanidade muito vasta, possui diferentes culturas, lnguas, saberes, conhecimentos e at mesmo distintos referenciais de mundo, de humanidades e sentidos.

    Dessa forma, os conhecimentos que so veiculados nos diferentes espaos escolares jamais so neutros, eles so frutos de disputas polticas, econmicas e culturais, muitas vezes o que se torna elegvel como conhecimento vlido para ser ensinado ocorre a partir de hierarquizaes e etnocentrismos2, de polarizaes que so criadas, como por exemplo entre cultura erudita, norma culta e valores universaisem oposio `a cultura popular, oralidade e saberes ancestrais.

    Cada vez mais a sociedade brasileira vem demandando esforos no sentido de priorizar aes que visem superao do racismo, do preconceito e da discriminao no espao escolar, de forma a minimizar e reverter o quadro de invisibilidade no qual se encontram os conhecimentos sobre a histria e a cultura afro-brasileira, africana e indgena nos currculos escolares, bem como os dados relativos excluso, evaso, repetncia e fracasso escolar de grande parcela da populao negra brasileira.

    Assim sendo, prezado (a) professor (a), o material didtico com o qual voc est em mos fruto da concretizao de pesquisas desenvolvidas por meio de projetos de ensino e extenso, formao de professores e profissionais da educao, construo de materiais didtico-pedaggicos e tantas outras experincias exitosas que se pautam na reviso das metodologias de ensino, seleo de contedos, bem como conduz a mudanas de olhares e de posturas no que tange prpria concepo da gesto escolar, aliada ao planejamento, avaliao e aos estudos sobre as relaes de ensino-aprendizagem.

    Desejamos que esse curso venha somar para esse processo de transformao da educao que temos. Desejamos conhecer as realidades das vrias cidades mineiras participantes do curso, aprender com elas, com as experincias dos professores e professoras que, ao interessarem-se pelo curso, demonstram que se importam e desejam conhecer mais sobre a realidade social, tnico-racial, poltica e cultural que vivenciam na sua prtica e na sua realidade escolar.

    Acreditamos que as trocas possibilitadas em um curso como esse auxiliaro a todos ns professores e professoras a darmos alguns passos na reconstruo de nossas escolas como espaos mais democrticos, que acolhe e aprende sobre os referenciais

    2 O etnocentrismo, pensado aqui tambm no sentido proposto por Rodrigues (1989), ocorre ao concebermos uma forma nica e possvel de ver, sentir e perceber o mundo, tornada universal e definidora do humano, relegando todos aqueles que no compartilham desses referenciais categoria de no-humano, descaracterizado-os e marginalizando-os.

  • 11

    de mundo, a histria e a cultura dos diferentes grupos tnicos que construram e continuam a construir o Estado de Minas Gerais e o Brasil.

    Tenho certeza que em breve as experincias que construiremos nesse curso sero partilhadas e geraro novas possibilidades e novos conhecimentos para tantos outros educadores espalhados por este pas que, assim como vocs, acreditam que uma educao diferente possvel e que desejam outra realidade para as futuras geraes: uma escola que garanta e promova o desenvolvimento, a criao, a autonomia, o conhecimento e a sabedoria de todos os grupos tnico-raciais que nela habitam.

  • 12

    A histria oficial sobre a construo do Brasil ensinada nas escolas pblicas e particulares para as crianas, jovens e adultos narra o processo de colonizao portuguesa e depois privilegia-se a chegada dos demais europeus, os imigrantes, bem como a sua histria e a sua cultura. No se questiona de quem eram essas terras que os bandeirantes e imigrantes vinham tomar posse e muito menos se existiam seres humanos sua chegada em cada uma das diversas regies do pas. Desse modo, a imagem que se consolida no imaginrio coletivo de toda a populao a de que foram apenas os portugueses e bandeirantes, depois os imigrantes, que construram esse Pas. Faz parte da construo identitria e da memria que valorizada social e culturalmente minimizar o papel e a importncia de outros grupos tnicos que habitavam esse pas antes da chegada dos imigrantes, os ndios, assim como os africanos escravizados que vieram trabalhar nas lavouras de acar, caf e na minerao.

    Percebemos, dessa maneira, que o foco da Histria tem o europeu como personagem e o ndio e o negro como objetos. Apenas repete-se uma viso que a do europeu colonizador, sem perguntar-se ou colocar-se o ndio e o negro como sujeitos pensantes, como atores do processo histrico que indagam: eu moro aqui, quem esse que chega?. Quando o faz, sempre no sentido de diminuir, menosprezar, tornar folclrico no mau sentido que essa palavra adquiriu: como algo pitoresco, extico, rstico, cultura menor.

    Esse um dos exemplos para compreendermos a origem da desigualdade existente com relao aos ndios e aos negros nos dias de hoje na sociedade brasileira, que se reflete no olhar que temos com relao aos papis desses grupos no espao escolar . Privados do acesso terra, tratados como objetos, sem acesso s riquezas materiais produzidas, sem poder ou qualquer forma de participao na vida social, poltica, econmica e cultural do pas, enquanto sujeitos, veem-se excludos, tambm, de representaes positivas sobre si mesmos, de valorizaes significativas de suas histrias, lutas e resistncias.

    Essa abordagem tem deixado marcas e seqelas visveis nos nossos jovens e crianas negras e indgenas que no se veem parte dessa histria, gerando um vcuo na formao da sua identidade e auto-estima.

    Percebemos tambm que nos livros e contedos escolares, o imaginrio sobre os negros e a frica ainda se encontram relacionados, exclusivamente, escravido. A frica no vista nem percebida como um continente com diferentes pases, etnias e naes que possuem lnguas, costumes, histrias, religiosidades e vises de mundo amplas e diversas.

    O QUE SE DEVE APRENDER NA ESCOLA? ESTRATGIAS E SUBSDIOS PEDAGGICOS PARA A EFETIVA IMPLANTAO DAS LEIS 10.639/03 e

    11.645/08 ENQUANTO POLTICA PBLICA

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    Na nossa atuao cotidiana como educadores observamos que todos ns acabamos por ter a mesma viso sobre o continente africano que a sociedade tem, relacionando-o apenas a pobreza, doenas e escravido, espao habitado por primitivos. A escola na qual tivemos nossa formao, nossos cursos e habilitaes, tambm acabam sendo espaos que reforam esse imaginrio.

    Como exemplo do que afirmo, cito algumas situaes observadas quando em diversas formaes de professores/as informamos que o Egito se localiza no continente africano, e observamos que muitos educadores ficam surpresos por no serem acostumados a ver a imagem dos africanos ligadas a exemplos positivos de engenhosidade, complexidade, inteligncia, muito menos a avanos cientficos e tecnolgicos como, por exemplo, o que a imagem das Pirmides nos traz, assim sendo observamos uma grande surpresa dos mesmos ao perceberem que eram africanos os homens que construram as pirmides.

    Devido a essa realidade, durante os ltimos anos o Governo Federal vem implementando diversas aes. importante frisar que essas aes no so novidade, elas so fruto de uma luta histrica dos povos negros, desde seus movimentos de resistncia mais remotos como os quilombos.

    Dentre as diversas aes, podemos citar as do IPHAN (Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional), que consiste em transformar manifestaes artstico-culturais de musicalidades afro-brasileiras , como os sambas da regio do Recncavo Baiano e os chamados Batuques de Terreiro, como o jongo, em patrimnio imaterial; as Polticas para Promoo da Igualdade Racial, o processo de reconhecimento e legalizao de terras em comunidades quilombolas, bem como a aprovao das leis 10.639/2003 e 11.645/2008 que estabelecem a obrigatoriedade do ensino de Histria e Cultura Afro-Brasileira, Africana e Indgena no currculo oficial das escolas pblicas e privadas da educao bsica de todo o pas.

    Essas aes de grande valor possuem em seu cerne uma importncia poltica e histrica, embora as mudanas no papel, a partir de uma tica legalista, no garantam mudanas de atitudes na postura dos profissionais da educao e no cotidiano da realidade escolar:

    Esta tradio legalista prometica, previdente e excludente, a principal responsvel pela f legislativa, isto , a crena ingnua em que para se ter garantidos direitos e conquistar reivindicaes, basta sancionar uma lei ou decreto para figurar no aparato utilizado pelo Estado. (FERREIRA SANTOS, 2005, p.209)

    A no garantia dessas reivindicaes pela aprovao de uma lei mostra-nos, ainda mais, e de uma maneira extremamente perceptvel e transparente, que h muito trabalho a ser feito na sensibilizao dos profissionais da educao para a efetiva superao das desigualdades de origem tnico-racial que observamos de maneira incontestvel no histrico de fracassos escolares, evases e repetncias da populao afro-descendente no nosso sistema educacional.

    A necessidade do conhecimento sobre a histria e cultura afro-brasileira e africana pelos profissionais da educao o primeiro passo para que se construa no cho da

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    escola, na sua realidade cotidiana, aes e intervenes didtico-pedaggicas visando a consolidao de atitudes de respeito e compreenso da diversidade tnico-racial e cultural brasileira rumo efetiva transformao da realidade, transformao essa que passa, inclusive, pela reviso dos referenciais terico-metodolgicos que aliceram os nossos pressupostos didtico-pedaggicos, atentando para as conseqncias que temos no nosso sistema educacional por privilegiarmos uma nica matriz ancestral: a ocidental e europia.

    Segundo Ferreira Santos (2005), de forma sucinta e resumida, os plos patentes da sociedade brasileira sobre o qual se constri a cultura hegemnica possui as seguintes caractersticas: oligrquica3, patriarcal, individualista e contratualista em oposio s caractersticas da herana afro-brasileira e amerndia de base: comunitria (no-oligrquica), matrial (no-patriarcal), coletiva (no-individualista) e afetual-naturalista (no contratualista). Portanto, uma das dvidas que se apresentam como conciliar esses pares de opostos para a implementao das Leis 10.639/03 e 11.645/08 em um sistema educacional que se encontra em um Estado que erige as suas bases em referenciais epistemolgicos e tericos contrrios.

    So contrrios por se valerem em referenciais de suposto mrito, de hierarquias, classificaes, competio, individualismo, o que faz com que acreditemos que essa forma justa; no se questiona se no existem outras formas de transmisso do conhecimento nas quais cada pessoa seja valorizada e compreendida em sua totalidade, sem comparaes, sem imposies ou padronizaes de qualquer espcie; nas quais no se privilegia os saberes e os valores civilizatrios diferentes daqueles que a sociedade brasileira atualmente apresenta. exatamente por isso que conhecer a Histria e a Cultura Afro-brasileira, Africana e Indgena um exerccio extremamente valioso para brancos, negros e ndios e para todas as etnias que compem esse pas, pois, como afirma Bento (2002), a distoro de identidade na construo dos ideais de branquitude e negritude so prejudiciais para todos os grupos tnicos que convivem no espao escolar, seja o branco que tem uma identidade que se acha superior, seja o negro que experimenta cotidianamente uma situao social de subalternidade, inferiorizao e negativizao de todo o seu ser, de todo o seu saber e de toda a sua herana.

    Desse modo, aprender sobre a cultura do outro, compreender que os negros e negras escravizados jamais foram agentes passivos da histria e sempre resistiram violncia e represso desse Estado que se formou reforando esses valores para justificar e legitimar a escravido e a explorao do trabalho alheio, fundamental para uma mudana de atitude profunda e radical da sociedade brasileira como um todo. Compreender como essas lutas histricas, frutos dos movimentos insurrecionais da populao negra, desde a poca colonial, transformaram-se nas reivindicaes dos Movimentos Sociais e do Movimento Negro at os nossos dias, tambm crucial para compreendermos que as polticas educacionais de combate ao racismo e discriminao, de polticas de ao afirmativa e de uma educao para as relaes tnico-raciais so frutos de uma srie de conquistas e reivindicaes ancestrais que

    3 Segundo o dicionrio Aurlio Bsico da Lngua Portuguesa: oligarquia S.f. 1. Governo de poucas pessoas, pertencentes ao mesmo partido , classe ou famlia. 2. Fig. Preponderncia duma faco ou dum grupo na direo dos negcios pblicos.

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    sempre se valeram de diferentes espaos e linguagens para que essas histrias permancessem vivas na memria dos seus descendentes e chegassem at ns atualmente.

    Uma educao para as relaes tnico-raciais, portanto, deve se pautar no exercico reflexivo e contnuo de compreender as diferentes estratgias de resistncia que os negros e negras utilizaram para que a sua cultura, o seu conhecimento e a sua forma de ver o mundo sobrevivessem. Dessa forma estaremos possibilitando que cheguem nas escolas valores civilizatrios de base comunitria, matrial, coletiva e afetual-naturalista presentes nas culturas afro-brasileiras e de base amerndia que nunca foram valorizadas como possibilidades de humanidades possveis:

    Entender a beleza, a sensibilidade e a radicalidade da cultura de tradio africana, impregnada de norte a sul deste pas e no somente no segmento negro da populao, um aprendizado a ser incorporado pelos que cuidam das polticas educacionais.

    O mundo africano recriado no Brasil belo e cheio de sabedoria. Nele, tanto o homem quanto a mulher so vistos em sua totalidade e no como fragmentos. Nesse modo de ser e de ver a existncia e o mundo, as vrias dimenses do ser humano so destacadas: a racional, a tica, a esttica, a corprea, a espiritual a ecolgica, a poltica, etc., construdas ao longo do acontecer humano e nos diferentes ciclos da vida. (GOMES, 2001, p. 95)

    Assim sendo, para que compreendamos como se construiu na histria da educao brasileira, esse processo de hierarquizaes de saberes e de definies de espaos para serem ocupados por determinados grupos tnicos em detrimento de outros, necessria uma breve contextualizao da Histria da Educao brasileira, buscando compreender como o racismo, o preconceito e a discriminao se cristalizam no sistema educacional brasileiro, decorrente de teorias cientificistas do sculo XIX, como a eugenia e as teorias evolucionistas e racialistas, visando problematizar a necessidade de uma educao para as relaes tnico-raciais que v raiz e s questes centrais dos problemas. S assim ns, educadores, teremos segurana para implementar as mudanas e transformaes necessrias para que as Leis 10.639/03 e 11.645/08 a despeito de nossa tradio legalista, se efetive no cho da sala de aula e das escolas, por uma questo tica, de justia e de direitos.

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    1. Sociedade e Educao no Perodo Colonial-Imperial-Escravocrata

    Desde a chegada dos jesutas at os dias de hoje, a Histria da Educao Brasileira sempre foi marcada por caractersticas singulares, tanto no que diz respeito discriminao e ao preconceito com relao aos indgenas e posteriormente aos africanos sequestrados e trazidos como mo de obra escrava; como pela criao de um sistema dual de ensino que erige suas bases a partir desses pr-conceitos: uma escola para as elites e uma escola para a classe trabalhadora.

    A educao jesutica pautava-se na Ratio Studiorum, mtodo de ensino que consistia na preleo, explicao, repetio e composio. A memorizao dos contedos era um dos aspectos centrais dessa metodologia. Desse modo, o principal objetivo dos jesutas era catequizar os ndios e espalhar o catolicismo nas Amricas. Diferentemente do que aprendemos, houve vrios levantes indgenas contra os jesutas. Para muitos indgenas, os europeus haviam trazido doenas, escravido, trabalhos forados e desgraa para as suas terras.

    interessante perceber que os prprios padres se beneficiavam desse sistema, sendo muitos deles polticos e possuidores de terras e negcios, defendendo os interesses da Coroa, valendo-se inicialmente da escravizao indgena e depois da africana para a manuteno do poder econmico de Portugal. No por outro motivo a desumanizao dos africanos e o etnocdio e genocdio dos povos indgenas no Brasil, a necessidade de doutrinao e catequizao para a converso da populao brasileira ao catolicismo, acabou por focar na escravizao africana como alternativa econmica para a trade: catolicismo, poder e comrcio, desse modo, ao afirmarem que os negros no possuam alma, valendo-se das escrituras sagradas para justificar a escravido4 abriu-se precedentes para a legitimao e justificao moral do trfico negreiro, eximindo a Igreja Catlica da responsabilidade com relao ao deslocamento forado dos africanos escravizados.

    S em 2000, o Papa Joo Paulo II pediu perdo, em nome da Igreja, pelos crimes cometidos pela Igreja Catlica, incluindo entre estes o fato da mesma haver compactuado com a escravizao de indgenas e africanos.

    Assim sendo, quase quatro sculos de escravido imprimiram na nossa formao cultural uma hierarquia de saberes e funes a serem desempenhadas na sociedade

    4 A escritura sagrada a que o texto se refere a Bblia Antigo Testamento: Maldito seja Cana, disse ele; que ele seja o ltimo dos escravos de seus irmos! (livro do Gnesis 9, 25). Para saber mais sobre o Mito de Cam recomendo: Munanga (2004) e Oliveira (2000).

    ASPECTOS DA FORMAO SCIO-HISTRICA, POLTICA-ECONMICA E SIMBLICO-CULTURAL DA SOCIEDADE BRASILEIRA E SUA INFLUNCIA

    NA CONSOLIDAO DE UM SISTEMA EDUCACIONAL DE ENSINO

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    a partir da classe social a que se pertence, das suas caractersticas tnico-raciais, do sexo que possui, intrinsecamente relacionadas ao poder patriarcal dos senhores de engenho, latifundirios, os quais, conforme Srgio Buarque de Holanda em Razes do Brasil, possuam o poder de vida e de morte sobre todos os membros da famlia, incluindo a esposa, os filhos e os escravos, bem como o poder sobre seus corpos, suas escolhas e aes.

    Uma coisa interessante a perceber que quando comeamos a desvelar o racismo, o preconceito e a discriminao contra a populao negra e afro-descendente no meio educacional, TODO e qualquer tipo de preconceito e discriminao trazido baila no cenrio escolar. A percepo se amplia e iniciam-se amplas discusses que somam e fortalecem o combate a qualquer tipo de discriminao, seja ela de gnero, de classe social, de orientao sexual ou aparncia fsica. Munanga (2004) afirma que o mecanismo de discriminao contra a mulher possui em seu cerne a mesma motivao que o preconceito contra o negro, entretanto preciso que se tenha cuidado, pois, embora as discusses sejam anlogas, no podem ser trabalhadas como homlogas, ou seja, como se fossem uma coisa s. H especificidades prprias para cada manifestao de preconceitos e necessrio pesquisa e formao para que cada uma seja individualmente discutida e combatida, respeitando cada contexto prprio e o imaginrio negativo e excludente no qual cada uma opera:

    Assiste-se ento ao deslocamento do eixo central do racismo e ao surgimento de formas derivadas tais como racismo contra mulheres, contra jovens, contra homossexuais, contra pobres, contra burgueses, contra militares, etc. Trata-se aqui de um racismo por analogia ou metaforizao, resultante da biologizao de um conjunto de indivduos pertencentes a uma mesma categoria social. como se essa categoria social racializada (biologizada) fosse portadora de um estigma corporal. Temos, nesse caso, o uso popular do conceito de racismo, qualificando de racismo qualquer atitude ou comportamento de rejeio e de injustia social. Esse uso generalizado do racismo pode constituir uma armadilha ideolgica, na medida em que pode levar banalizao dos efeitos do racismo, ou seja, a um esvaziamento da importncia ou da gravidade dos efeitos nefastos do racismo no mundo. (MUNANGA, 2004, p. 26-27)

    O que precisamos, se desejamos trabalhar para que se efetive uma educao para as relaes tnico-raciais no sistema educacional brasileiro, perceber que as razes da formao scio-cultural brasileira mais uma dimenso a ser debatida e superada, tanto na questo de estudo de uma matriz afro-brasileira de caractersticas matriais que nos apresentam outras lgicas e outras relaes com o mundo, quanto para a superao da iniquidade existente nas relaes de sexo e de gnero, superao essa necessria para todos os profissionais da educao sejam homens ou mulheres, jovens ou adultos, negros ou brancos. Como exemplo podemos citar que essa formao to forte que se encontra presente na formao tanto das educadoras do sexo feminino ou dos afro-descendentes, isso demonstra que no basta ser negro, ou ser mulher para poder ter propriedade para falar sobre questes de gnero ou de relaes tnico-raciais, necessrio estudo, pesquisa e comprometimento. Um exemplo disso que embora as mulheres sejam a maioria das pessoas que compem a classe trabalhadora dos profissionais da educao, exatamente por estarem nessa sociedade e legitimarem os seus valores, perpetuam na sua prtica cotidiana a desigualdade de gnero, como tambm as de classe e tnico-racial.

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    Essas questes implicam em compreender na constituio da sociedade brasileira a forte imagem do masculino, do pai, associada lei e ordem, a figura do patriarca na nossa herana escravocrata, dos desbravadores, bandeirantes, pioneiros e tantos heris que figuram no nosso imaginrio. Alm disso temos as relaes de poder existentes na nossa sociedade: a dimenso tica, a no-delimitao da esfera do pblico e do privado, do seio familiar e do Estado, como podemos perceber nas palavras de Srgio Buarque de Holanda:

    Nos domnios rurais o tipo de famlia organizada segundo as normas clssicas do velho direito romano-cannico, mantidas na Pennsula Ibrica atravs de inmeras geraes que prevalece como base e centro de toda a organizao. Os escravos das plantaes e das casas, e no somente escravos, como os agregados, dilatam o crculo familiar e, com ele, a autoridade imensa do pater-famlias. Esse ncleo bem caracterstico, em tudo se comporta como seu modelo da antigidade, em que a prpria palavra famlia, derivada de famulus, se acha estreitamente vinculada idia de escravido, e em que mesmo os filhos so apenas os membros livres do vasto corpo, inteiramente subordinado ao patriarca, os liberi. (HOLANDA, 1994, p. 49)

    A descrio das origens das caractersticas presentes nas relaes sociais que aliceram e amlgamam a nossa constituio scio/econmica e cultural/simblica se refletem tambm no espao escolar. Ora, compreendendo a escola como aparelho burocrtico e estatal, como espao institucional privilegiado por nossa sociedade e por nossa cultura como responsvel pela transmisso do legado cultural e historicamente acumulado pela humanidade s novas geraes, como esse espao pode ser visto como neutro e livre das influncias que se constituram na formao da tradicional famlia patriarcal e que marcam a nossa vida, bem como a no delimitao da esfera pblica e privada at os dias de hoje?:

    O quadro familiar torna-se, assim, to poderoso e exigente, que sua sombra persegue os indivduos mesmo fora do recinto domstico. A entidade privada precede sempre, neles, a entidade pblica. A nostalgia dessa organizao compacta, nica e intransfervel, onde prevalecem necessariamente as preferncias fundadas em laos afetivos, no podia deixar de marcar nossa sociedade, nossa vida pblica, todas as nossas atividades. Representando, como j se notou acima, o nico setor onde o princpio de autoridade indisputado, a famlia colonial fornecia a idia mais normal do poder, da respeitabilidade, da obedincia e da coeso entre os homens. O resultado era predominarem, em toda a vida social, sentimentos prprios comunidade domstica, naturalmente particularista e antipoltica, uma invaso do pblico pelo privado, do Estado pela famlia. (HOLANDA, 1994, p.50)

    Para algumas abordagens sociolgicas, a principal imagem da escola a de reprodutora da sociedade de classes5, que visa a manuteno do status quo, assim sendo, ampliando a anlise dessa abordagem, como o espao escolar tambm no possuiria as caractersticas j citadas da cultura hegemnica, assim como

    5 Segundo Establet & Baudelot (1990) a escola seria a principal instituio social da sociedade contempornea responsvel pela reproduo da sociedade de classes, segregando as pessoas, reproduzindo uma educao para as elites dirigentes (dominantes) e outra para a classe trabalhadora (dominados). A clssica teoria de Pierre Bourdieu (2010): A reproduo, uma das obras inaugurais para a referida abordagem.

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    seus professores/as, gestores/as e toda a comunidade que dela fazem parte? No podemos desconsiderar que toda a sociedade e em especial os profissionais que atuam na educao estudaram, viveram e se formaram nessa mesma escola que est inserida nessa sociedade e, desse modo, tambm reproduzem os seus valores, as suas bases e caractersticas h sculos.

    A tica e os sentidos que esto por trs do poder, da hierarquizao, da competio, da obedincia e do individualismo que figuram nas nossas escolas representam a fora motriz que engendra o racismo e o preconceito no nosso sistema educacional. Portanto, a to sonhada universalizao da educao bsica que tanto defendem os adeptos de de uma concepo progressista pautada no dilogo, no processo, na mediao dos conflitos e na gesto democrtica no pode prescindir da anlise do imaginrio e das dimenses scio-culturais na escola, na gesto e na elaborao de polticas pblicas, para superao das desigualdades tnico-raciais, de gnero, e de classe.

    A partir das questes apresentadas, podemos perceber que a herana do nosso passado escravocrata fez com que se cristalizasse no imaginrio brasileiro e no iderio pedaggico a idia de que alguns homens haviam nascido para as atividades intelectuais, para o estudo, a filosofia e as artes, estes iriam ocupar os postos de deciso e poder dentro da sociedade, enquanto outros, de raas inferiores, s serviam para o trabalho manual e braal, sendo o estudo e a instruo algo incompatvel com a sua gentica. Kabengele Munanga nos elucida a partir do estudo das teorias cientificistas dos sculos XVIII-XIX como essas teorias desembocam no racialismo6, como exemplo, cito a classificao que utiliza de Carl Von Linn, o Lineu, naturalista sueco que classificou as plantas e tambm criou uma classificao racial humana na qual apresenta, a partir das caractersticas fsicas das raas, uma descrio de valores e hierarquias no que se refere a diversidade humana, dividindo o homo sapiens em quatro raas:

    Americano: o prprio classificador descreve como moreno, colrico, cabeudo, amante da liberdade, governado pelo hbito, tem corpo pintado;

    Asitico: amarelo, melanclico, governado pela opinio e pelos preconceitos, usa roupas largas;

    Africano: negro, fleumtico, astucioso, preguioso, negligente, governado pela vontade de seus chefes (despotismo), unta o corpo com leo ou gordura, sua mulher tem vulva pendente e quando amamenta seus seios se tornam moles e alongados;

    Europeu: branco, sanguneo, musculoso, engenhoso, inventivo, governado pelas leis, usa roupas apertadas. (MUNANGA, 2004, p. 25-26)

    Sabemos que a pesquisa cientfica j avanou bastante a ponto de desmistificar qualquer projeto de biologizao das caractersticas tnicas de tal ou qual grupo. De qualquer forma, essas idias se difundiram no iderio pedaggico quase que

    6 Racialismo: Discurso doutrinrio ou Racismo Cientfico. Pauta-se na classificao da diversidade humana em raas hierarquizando-as. (Munanga, 2004).

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    como se mesclando ao que denominamos de senso comum, e suas sequelas so sentidas, observadas e estudadas at os dias de hoje:

    Combinando todos esses desencontros com os progressos realizados na prpria cincia biolgica (gentica humana, biologia molecular, bioqumica), os estudiosos desse campo de conhecimento chegaram concluso de que a raa no uma realidade biolgica, mas sim apenas um conceito, alis, cientificamente inoperante, para explicar a diversidade humana e para divid-las em raas estanques. Ou seja, biolgica e cientificamente, as raas no existem. (MUNANGA, 2004, p.21)

    O conceito de raa biologizante foi operante at meados do sculo XX, embora percebamos seus reflexos ainda hoje. Antes disso, pautou as polticas pblicas no Brasil. Temia-se uma sociedade formada por maioria negra/indgena que impediria o desenvolvimento do pas. A soluo encontrada foi o financiamento de uma macia imigrao europia com o intuito de branquear a populao. Acreditava-se que, atravs da mestiagem alcanaramos uma raa cada vez mais prxima ao padro europeu. Com as polticas de imigrao, os negros libertos, que j haviam sido privados do acesso terra, tambm encontraram-se privados da nova forma de trabalho, o assalariado, assim como do acesso educao. Acumularam-se nas favelas ao redor das grandes cidades, ou assumiram funes socialmente menos valorizadas e remuneradas.

    Forjou-se, para salvaguardar a diferena social e racial historicamente construda, o mito segundo o qual no haveria conflitos raciais no Brasil, embora manifestaes de negritude como a capoeira e o candombl fossem perseguidos abertamente pela polcia.

    Embora de tempos em tempos ressurja no universo acadmico aqueles que desejam manipular os conceitos de raa/etnia, seja negando a sua existncia para se opor s polticas de ao afirmativa e de combate ao racismo, preconceito e discriminao, reafirmando o mito da democracia racial brasileira7, seja reconstruindo racismos e preconceitos com base no discurso da preservao das diferenas culturais e identitrias, como vemos nos discursos contra nordestinos, negros e ndios daqueles que defendem uma suposta superioridade branca.

    O importante que observemos que, mesmo que os discursos mudem, o que permanece intacto a funo ideolgica que subentende a dominao e a excluso. Destarte, embora seja comprovado que as raas bilogicamente no existam, no h como negar a importncia de compreender o conceito de raa/etnia no sentido sociolgico e poltico-ideolgico, ou seja, comprendendo que negros e indgenas produzem cultura e identidade.

    Exatamente porque produzem identidade e cultura que podemos observar a influncia amerndia e africana de base comunitria, matrial8, coletiva e afetual-naturalista presentes

    7 O mito da democracia racial pressupe que na formao da sociedade brasileira no houve regimes separatistas e de segregao entre as raas como nos EUA ou na frica do Sul, havendo uma igualdade entre as raas/etnias no Brasil. Esse conceito plasmou-se a partir da clssica obra do socilogo Gilberto Freyre (1966): Casa Grande e Senzala. Tendo sido o Brasil, equivocadamente, exemplo de igualdade racial para o mundo.

    8 Referncia ao matrialismo (a partir dos estudos de Alberto Tejero Ajuria, em Deusto) para me referir s bases femininas (...) que matriciam e estruturam as relaes sociais domsticas e comunais que, por sua vez, derivam da cosmoviso naturalista de culto terra-me. (Ferreira Santos, 2003: 27. nota: 17)

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    na nossa cultura brasileira, atuando nos diferentes espaos sociais responsveis pela socializao dos indivduos, o que acontece que em diversos aspectos acabam se constituindo como saberes menores, marginais socialmente desvalorizados ao serem simbolicamente associados aos grupos de menor prestgio9 e influncia nos espaos de deciso e poder da sociedade contempornea, assim como a sua cincia e sabedoria ancestrais so vistas e rotuladas de forma folclrica, inculta, incivilizada, insubordinada, primitiva e inferior em comparao aos saberes socialmente institudos e escolarmente valorizados.

    interessante notar que na Histria do Brasil em muitas legislaes as mulheres se encontravam em posio de inferioridade, juntamente com as crianas e os escravizados. A dificuldade em educar as mulheres na colnia e no Imprio sempre foi objeto de muitas pesquisas na historiografia educacional.

    Dessa dualidade: educao das elites versus educao das classes trabalhadoras; trabalho intelectual versus trabalho manual, que encontramos a raiz das discusses atuais sobre educao e relaes tnico-raciais, j que nos encontramos em um momento em que a universalizao da educao ponto crucial para o desenvolvimento do pas.

    Desse modo, a educao brasileira sempre foi diferenciada para alguns grupos, seja na colnia ou no Imprio, a instruo destinada a determinados grupos tnicos ou a determinadas classes sociais marcaram nitidamente os ideais de educao, bem como definiam qual a educao que era promovida e que acabava por traar as expectativas de ocupao profissional e social futura no que tangem s relaes de poder e de prestgio no Brasil. Por isso a mcula imposta mo negra, a pele negra e ao corpo negro que fora feito para o trabalho pesado, cindia as possibilidades de acesso da populao negra a uma educao que almejasse a formao intelectual, cientfica, filosfica ou artstica, j que para aquele corpo negro j se encontravam destinados espaos plasmados e cristalizados por todo o processo histrico da escravido. Cunha ilustra-nos muito bem como ocorreu essa ciso:

    Com efeito, numa sociedade onde o trabalho manual era destinado aos escravos (ndios e africanos), essa caracterstica contaminava todas as atividades que lhes eram destinadas, as que exigiam esforo fsico ou a utilizao das mos. Homens livres se afastavam do trabalho manual para no deixar dvidas quanto a sua prpria condio, esforando-se para eliminar as ambigidades de classificao social. A est a base do preconceito contra o trabalho manual, inclusive e principalmente daqueles que estavam socialmente mais prximos dos escravos: mestios e brancos pobres. (CUNHA, 2000, p.90)

    2. Sociedade e Educao no Projeto Igualitrio e Liberal de Educao

    Passados muitos processos histricos e polticos no Brasil, na dcada de 30 do sculo passado que iremos ver em documentos os ideais de uma universalizao da educao. No manifesto dos Pioneiros da Educao Nova, Ansio Teixeira, Loureno

    9 Negros, ndios, pobres, mulheres, bias-frias, homens do campo, jovens e adultos analfabetos ou com pouca escolaridade, trabalhadores, oriundos de regies do pas histrica e culturalmente inferiorizadas (interior , zona rural, norte e nordeste do pas), etc.

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    Filho, Fernando de Azevedo, dentre outros, expressam a necessidade de romper com a dualidade presente no sistema educacional, enfatizando a necessidade de democratizao da educao, sendo esta oferecida prioritamente pelo Estado, que no fizesse distino de raa, classe ou gnero, uma educao pblica, laica, gratuita e de qualidade.

    Pautados em referenciais liberais inspirados em grande parte em John Dewey, os pioneiros da educao nova, como eram chamados, acreditavam que o princpio da igualdade possibilitaria a todos o acesso e a permanncia ao sistema educacional de ensino. Os ideais presentes no manifesto de liberdade e livre circulao das idias intelectuais e a possibilidade de pessoas de diferentes classes sociais, diferentes orientaes polticas e pertencimentos tnico-raciais conviverem em ambientes educativos foi simplesmente tolhida e vista como ameaadora por setores catlicos, fascistas e integralistas no Brasil em um momento de fechamento poltico com a Ditadura Vargas.

    De qualquer forma, os ideais do manifesto foram retomados em diversas pocas, mas observamos que as polticas educacionais e pedaggicas de inspirao liberalista e igualitarista no possibilitaram o acesso e a permanncia dos grupos marginalizados no espao escolar, seja pelo paradoxo de tentar se tratar de forma igual pessoas que no so iguais, possuem universos culturais diferenciados, no tiveram as mesmas condies materiais, econmicas e polticas; seja pelo fato da escola e dos professores no estarem preparados nem formados para lidar com a entrada dessa parcela da populao no espao escolar. Outros fatores que se somam o imaginrio negativo sobre o negro que permanece vibrante e contundente at os nossos dias, ancorado nas narrativas bblicas de demonizao do negro, nas teorias cientificistas e racistas de classificao e hierarquizao das raas, bem como pela fora que a formao patriarcal, judaico-crist e eurocntrica nos legou.

    O que vimos com o passar dos anos que essa igualdade apenas formal, sendo impossvel as mesmas condies de igualdade a grupos socialmente marginalizados e discriminados dentro da sociedade brasileira que, devido aos antecedentes histricos da construo poltica e econmica j citada, se encontram alijados da riqueza material, cultural e simblica produzida por todo o conjunto da populao brasileira.

    Essa desigualdade estrutural o que impede o acesso e a permanncia desses grupos na escola.

    Tecnicismo/taylorismo

    Prosseguindo com os principais marcos na histria da Educao Brasileira, na dcada de 50 temos no Brasil um processo de industrializao intenso, que acaba por demandar uma qualificao profissional da populao brasileira. As teorias tecnicistas de inspirao Fordista/Taylorista acabam tendo uma influncia muito grande nas metodologias de ensino: o controle do tempo, a produtividade, a hierarquizao, classificao e padronizao acabam sendo palavras de ordem.

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    Educao popular

    Frente a uma educao voltada para alavancar a economia industrial capitalista, distante de um projeto educacional brasileiro que se voltasse s necessidades e caractersticas prprias para o desenvolvimento do nosso pas, comeam a surgir na dcada de 60 diversas experincias transformadoras no meio educacional que apontam para a especificidade cultural do povo brasileiro, devido ao xodo rural da populao do campo para as cidades e o contingente imenso de analfabetos que esse modelo econmico gerou.

    Experincias no campo da educao popular e da cultura popular como a metodologia de alfabetizao de jovens e adultos empregada por Paulo Freire em Angicos- PE, partindo da realidade de seus alfabetizandos, propondo uma pedagogia libertadora ao afirmar que A leitura do mundo precede leitura da palavra , os CPCs Centro Popular de Cultura ligados UNE Unio Nacional do Estudantes, o Movimento de Cultura Popular, o TEN Teatro Experimental do Negro fundado por Abdias do Nascimento, o TPB Teatro Popular Brasileiro fundado por Solano Trindade eram espaos nos quais outras educaes e outras apropriaes culturais e simblicas eram possveis frente a hegemonia econmica, poltica e cultural da elite branca.

    Destarte, nesses centros populares e crculos de cultura havia uma valorizao das identidades subalternizadas como a cultura negra e a cultura nordestina e de suas manifestaes artstica-culturais, constituindo se em um espao que promovia construes identitrias que partilhavam referenciais artsticos e estticos diferenciados daqueles da chamada cultura erudita, espao de formao e de aprendizagens.

    Do mesmo modo, os Jongos, Frevos, Maracatus, Congadas, Cacuris, Candombes, Sambas de Roda, Batuques de Umbigada, as Irmandades Religiosas, Bumbas meu boi, Moambiques, Candombls, etc, ao mesmo tempo que so expresses de resistncia simblica-cultural da populao negra, so tambm espaos educativos determinantes na educao dos/as negros/as, graas aos valores civilizatrios l vivenciados por meio da memria, da oralidade, da ancestralidade10 e da corporeidade.

    Essas formas de organizao dos Centros populares de cultura e dos diferentes movimentos sociais e culturais vo se configurando como uma resposta s transformaes geopolticas como o grande xodo rural da populao do campo para as cidades, a criao de um contingente imenso de analfabetos que o modelo econmico do perodo citado gerou, e as diferentes lutas e reivindicaes polticas que acabam sendo silenciadas na poca da ditadura.

    Educao sob a ditadura

    Aps o perodo ditatorial que vivemos, no qual as experincias educativas transformadoras sofrem retrocessos e diversas personalidades brasileiras so

    10 Ancestralidade aqui entendida como o trao constitutivo de meu processo identitrio que herdado e que vai alm de minha prpria existncia (...). A outra faceta dessa ancestralidade que a herana ancestral muito maior e mais durvel (grande durao) do que a minha existncia (pequena durao). Esta herana coletiva pertence ao grupo comunitrio a que perteno e me ultrapassa. (FERREIRA SANTOS, 2005, p. 213)

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    obrigadas a viver no exlio, a educao brasileira tem como objetivo a conteno das massas e paralizao dos processos e movimentos sociais, travestida de uma educao moral e cvica, de um patriotismo exacerbado, como observamos no slogan: Brasil: ame-o ou deixe-o, educao essa que encarna como nunca a figura patriarcal e autritria dos coronis, dos latifundirios e do Estado mo de ferro. No h dvida que ressurge de forma vida a herana escravocrata e coronelista de que j tratamos. O Brasil se torna uma grande senzala, um grande quilombo.

    Ps-ditadura

    Somente na dcada de 80 que se inicia a abertura poltica, o movimento pelas Diretas J, lutando para que os Presidentes voltassem a ser eleitos pelo voto democrtico, inicia-se um discurso pela redemocratizao do pas que culminar na aprovao da Constituio Federal em 1988 (CF/88), que apresenta como DIREITO a educao para todos, inclusive para aqueles que no puderam ter acesso a ela na idade considerada apropriada. A constituio abrange ainda o direito moradia, ao trabalho, educao, ao lazer e cultura a toda populao brasileira, afirmando a necessidade de alm do direito educao, a permanncia, o acesso e a continuidade dos estudos a todos os brasileiros independente da idade, raa, cor, religio, classe social.

    Nesse momento poltico temos erigidas as bases do que alguns autores denominam o Estado de Direito, configurando a educao como direito subjetivo e dever do Estado, confluindo os direitos humanos, civis e polticos para o exerccio da cidadania e da democracia. Complementando essas questes, a constituio contempla as diversas modalidades de ensino e apresenta a diversidade como um aspecto que deve ser levado em considerao na educao nacional.

    Educao e Diversidade nas polticas educacionais a partir de 1990

    Na dcada de 90, finalmente, temos dois importantes marcos para a questo da diversidade e educao: a Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional LDB n 9394/96 que apresentar formalmente a questo da diversidade, apontando a necessidade de polticas educacionais de incluso, enumerando e pela primeira vez considerando os diferentes sujeitos culturais presentes na formao da sociedade brasileira e suas especificidades educativas.

    Desse modo vrios decretos e leis alterando e complementando a LDB vo se configurando no cenrio das polticas educacionais de incluso. Um exemplo a Lei 10.639 de 2003 que estabelece a obrigatoriedade do Ensino de Histria e Cultura Afro-brasileira e africana em todas as escolas pblicas e particulares do pas, trazendo tona de forma mais incisiva o que a LDB j havia apontado, respondendo a uma luta secular e histrica dos movimentos insurrecionais negros e de escravizados, bem como do movimento negro e dos movimentos sociais: a necessidade histrica de reparao para com a populao negra e, posteriomente, com a indgena quando em 2006 a Lei n 11.645, acrescenta na redao do Art 26-A da LDB a histria e a cultura indgena.

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    Ambas as leis se transformam em aparato legal no combate ao preconceito, ao racismo e discriminao presentes no sistema educacional frente s culturas afro-brasileira e indgena, evidenciando a necessidade de transformao do currculo escolar que contemple conhecimentos que fazem parte da cultura brasileira como um todo, patrimnio de brancos e de negros, ndios e mulheres, possibilitando, a partir do momento que se cumpra a lei, a construo da auto-estima e da identidade de crianas e jovens que sabero sobre a sua histria, a histria e cultura do seu povo, e a contribuio que todas as raas/etnias deram para a construo do nosso pas.

    No atual momento histrico que nos encontramos, ao analisarmos a histria da educao desse pas, sabemos o porqu da dificuldade em implementar uma lei como essas. Embora muitos afirmem que so conquistas e que a situao desses grupos melhorou, h muito o que se fazer para que a Histria e Cultura Afro-brasileira, Africana e ndigena seja realmente trabalhada no espao escolar. Aps quase dez anos da Lei 10.639/2003, muito pouco avanamos no que tange aspectos da sua implementao ou impacto nas mudanas estatsticas scio-econmicas e educacionais sobre a populao negra e indgena. Alguns autores apontam perspectivas bem menos otimistas se compararmos a situao atual dos negros no Brasil com a dos negros na frica do Sul ao final do apartheid, veremos que a situao brasileira bem pior.

    Assim sendo, vemos que cursos como esse de Aperfeioamento para uma Educao para as Relaes tnico-raciais so extremamente importantes e necessrios para a transformao desses dados e dessas realidades.

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    A Coordenao Pedaggica voltada para a implementao de uma Educao para as Relaes tnico-raciais no espao escolar tem como objetivo principal coordenar os trabalhos e as diferentes frentes de atuao, articulando as aes dos diferentes atores presentes no cotidiano escolar de forma horizontal e democrtica, visando a conhecer, valorizar e se aprofundar nos saberes e conhecimentos referentes temtica da histria e cultura afro-brasileira e africana.

    Destarte, o eixo central, norteador e aglutinador dessa tarefa so as africanidades, ou seja os conhecimentos tericos e ancestrais relacionados frica e existncia cultural e simblica de todos os africanos e seus descendentes que foram sequestrados e levados para outros pases a partir da dispora:

    Ao dizer africanidades brasileiras, estamos nos referindo s razes da cultura brasileira que tm origem africana. Dizendo de outra forma, estamos, de um lado, nos referindo aos modos de ser, de viver, de organizar suas lutas, prprios dos negros brasileiros, e de outro lado, s marcas da cultura africana que, independentemente da origem tnica de cada brasileiro, fazem parte do seu dia-a-dia. (SILVA, 2005, p. 155)

    Para tanto, um projeto de coordenao pedaggica diferenciado deve atentar para aspectos culturais e simblicos de constituio desses outros saberes, adotando uma postura crtica e reflexiva, deixando de lado os etnocentrismos tanto com relao elaborao e planejamento das aulas, escolha de material didtico, bem como a ateno prtica pedaggica ao ministrar as aulas e desenvolver as atividades elaboradas. Os gestores escolares junto coordenao pedaggica devem estar atentos s maneiras de intervir, acompanhar e assessorar os professores, funcionrios e equipe tcnica das escolas, adotando uma postura de respeito com relao ao conhecimento ancestral e tradicional, com o qual temos muito o que aprender.

    Assim, uma das principais questes dessa tarefa refere-se valorizao desses saberes, compreendendo como se expressam as caractersticas culturais de base africana por meio dos diferentes grupos e etnias que aliceram toda a construo do conhecimento africano e afro-brasileiro. Deve-se atentar tambm s relaes existentes na comunidade trabalhada e nos entornos das escolas: realizar o levantamento das expresses e manifestaes artstico-culturais de matriz africana presentes na realidade escolar e comunitria, observando os modos de ser, olhar e perceber o mundo ao seu redor dos afro-descendentes que vivenciam e estabelecem suas relaes entre si, tambm, a partir da prtica religiosa e da dimenso sagrada ancoradas na sua ancestralidade africana.

    ORIENTAES DIDTICO-PEDAGGICAS PARA A IMPLEMENTAO DE UMA EDUCAO PARA AS

    RELAES-TNICO-RACIAIS NO ESPAO ESCOLAR

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    Outro aspecto a ser considerado a realidade das escolas e da comunidade. A dimenso social, poltica e econmica so fundamentais para que o contedo trabalhado nas aulas, formaes e projetos tenham sentido e significado na vida das pessoas, possibilitando a transformao das percepes e das relaes entre si e entre as diferentes instituies sociais com as quais dialogam.

    Para tanto, a insero desse tema na construo coletiva de um projeto poltico-pedaggico torna-se fundamental para a consolidao de um projeto de escola que deseja colocar em foco a questo tnico-racial. Para transformaes mais profundas na dinmica cotidiana existente no espao educativo, a questo tnico-racial no deve ser trabalhada apenas no dia 20 de novembro, Dia Nacional da Conscincia negra, tampouco no 13 de maio ou apenas em datas comemorativas, ela deve fazer parte de todo o currculo a ser desenvolvido, como tambm tema interdisciplinar e tranversal presente na organizao e planejamento do trabalho docente, na preparao e estudo de todos os educadores, coordenadores, equipe pedaggica, equipe tcnica, pais, alunos e comunidade participantes na elaborao, aplicao e avaliao do processo de implementao de uma educao para as Relaes-tnico-raciais no espao escolar.

    Assim sendo, outra atribuio da Coordenao Pedaggica auxiliar no dilogo entre os diferentes atores do projeto visando ao estabelecimento de metas e objetivos em comum, partindo das necessidades e prioridades que os conhecimentos trabalhados e desenvolvidos em uma realidade como essa requer.

    A metodologia utilizada para a implementao de uma Educao para as Relaes tnico-raciais carece ser construda respeitando tanto a forma e a metodologia de cada rea de conhecimento especfica do que estiver sendo mobilizado e utilizado para a elaborao dos diferentes recursos didtico-pedaggicos, por meio de diferentes linguagens, como tambm as orientaes pedaggicas de um projeto que deve se valer de uma pedagogia centrada nos referenciais africanos e afro-brasileiros, aliada prtica e a experincia cotidiana dos professores, que iro avaliar e utilizar os conhecimentos assimilados no curso: pesquisas, leituras e reflexes, visando a desenvolver com segurana, comprometimento, seriedade, propriedade e tica o seu trabalho docente.

    Como iniciar o trabalho de uma Educao para as Relaes tnico-Raciais no espao escolar?

    A primeira etapa para que o trabalho se inicie consiste na formao terica para uma educao das Relaes tnico-Raciais de professores/as e gestores, visando a sua atuao nas diversas modalidades de ensino, articulando a formao sociolgica, antropolgica e histrica no que diz respeito compreenso social do racismo, do preconceito e da discriminao existente na sociedade, bem como as formas e mecanismos de sua atuao e perpetuao, conjuntamente a uma educao para as Relaes tnico-raciais e a formao pedaggica necessria para atuao na realidade escolar brasileira.

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    Assim sendo, a incluso desse tema na construo ou reconstruo do projeto poltico pedaggico de cada escola e de cada realidade especfica perpassa a discusso coletiva e dinmica, construindo referenciais terico-metodolgicos e direcionamentos epistemolgicos que convergem para uma complementaridade rica e profcua to necessria para um espao de formao acadmica, de formao pedaggica e de iniciao pesquisa sobre as africanidades.

    Sendo assim, importante tambm frisar a relevncia do trabalho interdisciplinar para a construo de um PROJETO COLETIVO DE TRABALHO, construindo um planejamento que articule as diferentes disciplinas e os diferentes contedos de modo complementar, mas tendo a questo tnico-racial como eixo de todo o processo.

    Outro aspecto importante a integrao do ensino, da pesquisa e do processo de avaliao, construindo uma prtica que se embase em uma avaliao diagnstica e processual. A todo momento e em todo espao de atuao docente, os profissionais da educao sempre encontram uma realidade que exigem deles a elaborao de anlises, estudos da realidade e da cultura local. Ao realizar esse trabalho, os/as professores/as mobilizam os conhecimentos e as leituras da graduao, que se somaro as leituras sobre a temtica tnico-racial necessrias para a realizao de um curso de aperfeioamento e as leituras da dimenso educativa, convergindo para uma prxis que se desenvolve embasada por uma ao-reflexo-ao que adquire sentido e conceito, quando todos esses fatores convergem positivamente, transformam de maneira contundente a percepo e a atuao na realidade em que vivem, existem e se constroem como seres humanos e como educadores.

    Desse modo, aps todo esse trabalho de leituras, estudos tericos, desvelamentos e desmistificaes sobre a questo negra no Brasil, quando os/as educadores/as forem ao campo, retornando para as suas realidades educacionais, estaro sensibilizados e providos de conhecimentos outros que sero necessrios at mesmo para a construo de um novo olhar para o mesmo espao de trabalho, para que observem por outros ngulos e por outros enquadramentos, o local no qual convivem cotidianamente.

    Buscando auxiliar, neste trabalho, apresento um roteiro de observao para que atentem dimenso da cultura escolar especfica de cada instituio, buscando desenvolver um olhar e uma escuta diferenciados para que percebam as imagens, a dimenso imagtica e simblica desses espaos, atentando para o latente e o patente, o dever-ser em oposio ao querer-viver, o institudo e o instituinte, ou seja tanto as dimenses que podem ser vistas e percebidas de forma evidente e as que no esto aparentes, que esto ocultas e no reveladas.

    Roteiro de observao

    Observar o ambiente escolar como um todo: arquitetura, iluminao, pintura, limpeza, disposio dos mveis e objetos da escola, disposio das carteiras, grades, portas e janelas, pichaes, depredaes etc.

    Observar os cartazes, avisos, desenhos e quadros nas paredes, h smbolos religiosos? Contemplam o ensino laico e a diversidade religiosa? H referncias

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    diversidade tnico-racial brasileira, h imagens, desenhos ou referncias de crianas, jovens ou personalidades negras? E nos materiais didticos utilizados? O que eles ensinam? Como? Qual o contedo? A populao negra e personagens negros esto representados e abordados nesse material?

    Atentar para a relao entre: funcionrios, alunos (as), coordenao pedaggica e direo observando a relao entre seus pares (funcionrio-funcionrio) e entre pares diferentes (professor-aluno) atentando para a relao interpessoal, as formas de tratamento entre eles, suas caractersticas tnico-raciais, as relaes de poder, as relaes afetivas e simblicas, etc.

    Na sala de aula, observar a forma como os/as professores/as desenvolvem as aulas, isso inclui observar a sua prpria aula (se possvel realize um registro para ouvi-lo depois), a relao professor-aluno, a disposio das carteiras, como aborda o contedo (como mera memorizao ou problematizando), como avalia o processo de ensino-aprendizagem, a relao entre os educandos, a postura dos mesmos na aula (ateno, envolvimento, interesse, disperso, baguna ou indisciplina?).

    No perodo do intervalo ou recreio, perceber se esse perodo dirigido ou livre para os educandos fazerem o que desejam, como se relacionam corporalmente entre si (empurram, batem, gritam, correm, brincam, se divertem, etc.). importante perceber se h espao para brincadeiras, se as crianas e jovens brincam, cantam, danam, etc.?

    Compreender como tratada a questo tnico-racial na escola: percebida? camulflada ? invisibilizada? aceita? compreendida? escamoteada? Etc.

    Indagar sobre a relao da escola com a comunidade local, a relao famlia-escola.

    O PPP (Projeto Poltico-Pedaggico) realmente utilizado como uma diretriz ou apenas um documento burocrtico? H planejamento na escola? Tanto das aulas como do papel da coordenao e da direo escolar? Como o professor aproveita a sua formao? O seu plano de aula estudado, planejado e pensado?

    Quais as formas de avaliao do trabalho docente e dos alunos (as)?

    Como a escola se v? Como os/as alunos /as e professores/as se veem e se percebem? Como a auto-estima da escola como um todo: alunos (as), professores (as), funcionrios e direo?

    Como so os materiais didtico-pedaggicos utilizados pelos/as professores/as?

    A partir do que for observado, toda a equipe pedaggica do colgio deve, em reunio, por meio de um planejamento coletivo, decidir como iniciaro os trabalhos e como apresentaro as diretrizes curriculares para o ensino de Histria e Cultura Afro-brasileira, africana e indgena e a metodologia que ser escolhida para as primeiras intervenes nesse espao. Dessa forma, escolas que j possuem algum trabalho sobre a questo, podero se aprofundar em outros aspectos e partir para frentes e estudos mais complexos. Outras que sequer admitem que h racismo no Brasil, devem ser inicialmente sensibilizadas.

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    UTILIZANDO A EXPERINCIA DO ENSINAR E DO APRENDER EM GRUPOS E COMUNIDADES AFRO-BRASILEIRAS COMO ORIENTAES DIDTICO-

    PEDAGGICAS PARA A IMPLEMENTAO DE UMA EDUCAO PARA AS RELAES TNICO-RACIAIS

    Uma das principais questes que se apresentam como cruciais para o xito no desenvolvimento das atividades escolares com os afro-descendentes, refere-se distncia da realidade desses alunos em relao aos conhecimentos e contedos transmitidos na escola. Ao olharem para o que se ensina em nossas escolas, no h identificao, sentido ou qualquer utilizao aparente na sua vida existencial e cotidiana como nos ilustra Moura:

    Assim, a educao formal desagrega e dificulta a construo de um sentimento de identificao, ao criar um sentido de excluso para o aluno, que no consegue ver qualquer relao entre os contedos ensinados e sua prpria experincia durante o desenvolvimento do currculo, enquanto nas festas quilombolas as crianas se identificam positivamente com tudo que est acontecendo sua volta, como condio de um saber que os forma para a vida. (MOURA, 2005, p.72)

    Isso no significa que esses conhecimentos no sejam necessrios na vida desses alunos, muito pelo contrrio, so conhecimentos fundamentais para o desenvolvimento da cidadania, para a igualdade de oportunidades na vida social e no mundo do trabalho e para o empoderamento desses grupos, no sentido de possibilitar acesso e melhor utilizao dos meios educacionais e comunicacionais contemporneos, bem como ampliao e fruio do universo social, cultural e simblico no qual vivem.

    Desse modo a questo que se apresenta no somente o que ensinar, mas com qual enfoque? De qual ngulo? Como? Quando? E por qu?

    Como j comentado anteriormente neste texto, sabido que os principais problemas educacionais que se apresentaram durante dcadas no sistema educacional brasileiro referem-se ao fracasso, repetncia e evaso dos alunos. Muitos entram na educao bsica, mas poucos sequer terminam o ensino mdio. Quando observamos o universo tnico-racial a que pertencem a maioria desses alunos, verificamos que so uma grande parcela da populao afro-descendente.

    Essa pedagogia tradicional, tecnicista e comportamentalista, impregnada no nosso sistema educacional de norte a sul do pas, j demonstrou que no tem possibilitado acesso aos conhecimentos ensinados no sistema formal de ensino, de forma justa e igualitria a todos os grupos que compem a sociedade brasileira independente do seu pertencimento tnico-cultural e scio-econmico e que s vm reproduzindo uma educao de m-qualidade, que no ensina as pessoas a pensarem por si mesmas, a construrem alternativas positivas de exercerem a sua humanidade, deixando marcas irreparveis na sociedade, j que deixa de formar, ensinar e aprender com outras cincias e saberes, para alm da cincia racionalizante, cartesiana, empirista e aristotlica, bem como de formar e educar seres humanos desses grupos que

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    contribuiriam de forma decisiva na busca de solues e caminhos alternativos para o fortalecimento da cincia, da educao, da pesquisa, da tecnologia, do mundo do trabalho e da cultura e o mais importante: com os referenciais culturais do seu grupo, presentes na sociedade brasileira.

    No restam dvidas de que a populao negra invisibilizada na escola, no h construes positivas da sua imagem, no h reconhecimento do seu pertencimento e contribuio na histria do Brasil, a no ser na imagem do escravo: triste, violentado e desumanizado.

    A partir do momento que isso comea a ser questionado, ao mesmo tempo, observam-se pesquisas e experincias, por todo o Brasil, que demonstraram, na prtica, que quando se valoriza a identidade cultural dos alunos, a sua histria de vida, as suas referncias de mundo e os saberes que eles trazem de sua vivncia cotidiana em cada canto e comunidade mais recndita do pas, a escola ganha, a sociedade ganha e uma educao de qualidade se estabelece por meio de uma metodologia que no separa a teoria e a prtica, o trabalho intelectual do trabalho manual, a formao geral e cultural da formao tcnica e especfica. E isso faz a diferena na vida de grupos que h sculos vem sendo alijados do universo escolar formal e quando tm esse aspecto da sua humanidade valorizado, conseguem xito e sucesso escolar no mesmo sistema educacional que outrora os excluram, a si e aos seus antepassados.

    Desse modo, necessrio valorizar a dimenso educativa existente nos grupos tradicionais que possuem seu foco nas narrativas orais e nos ensinamentos dos mais velhos, na valorizao do aprender junto com o outro, de forma cotidiana, enriquecendo o dilogo entre as geraes, a mediao valiosa entre jovens e velhos e o compromisso entre a teoria e a prtica, ou seja: eu fao aquilo que eu falo, eu sou aquilo que voc v.

    A passagem da tradio das geraes mais velhas para as geraes mais novas, nesses grupos, possui um carter inicitico e hereditrio. a ancestralidade, o conhecimento das suas origens, que possibilitam a construo de seu processo identitrio e que os permitem saber quem so. Desse modo, o enfoque de uma Educao para as Relaes tnico-Raciais deve possibilitar aos alunos e alunas que se identifiquem com as narrativas, histrias, conhecimentos e heris de um grupo tnico que contribuiu sobremaneira para o desenvolvimento cultural, histrico, cientfico e tecnolgico da humanidade.

    As caractersticas que ora citamos so possveis de serem observadas em distintos grupos tnicos dentro do continente africano, como os bantus, os mals e os nags, por exemplo. Mesmo que esses grupos guardem diferenas entre si, no que tange a suas caractersticas lingusticas, formas de organizao social, dimenso produtivo-econmica e cultural, conservam semelhanas entre si passveis de serem reconhecidas como comum, se partimos de suas cosmologias, ou seja, como compreendem o mundo e as relaes entre os seres nesse mundo, tanto o mundo fsico como o mundo espiritual. Como exemplo, citamos algumas dessas caractersticas presentes na dimenso existencial-comunitria de vrios grupos afro-brasileiros, que possuem as seguintes caractersticas presentes na prtica simblico-educativa de suas comunidades:

    a funo da msica e do canto como linguagem simblico-educativa que ensina e constri sentidos.

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    A fora da palavra como realizadora, como potencializadora da criao e da relao com o mundo.

    O ensinar e aprender coletivo, cotidiano e existencial, pautado na carga vivencial e no exemplo da labuta diria para a sobrevivncia.

    Matrial e feminino, complementar ao patriarcal e masculino.

    O carter inicitico dessa educao e a concepo de energia vital11 nela presente.

    A equilibrao de forma harmnica entre os pares de opostos, formando uma totalidade que no refora as dualidades. Exemplo: a relao com o bem e o mal, a luz e as trevas, o dia e a noite, o homem e a mulher, o sol e a lua etc.

    Relembramos que, na concepo de mundo de todas as etnias/naes africanas, todo o universo sacralizado, assim sendo, as interaes entre as foras de todos os seres que habitam esse mundo se constroem como teias e redes que adquirem seus sentidos no prprio mundo.

    Oliveira (2010), quando apresenta os princpios para uma educao afro-brasileira, tambm refora o que ora apresentamos:

    a oralidade afro-brasileira;

    a vida cotidiana;

    os ritos de iniciao;

    ancestralidade;

    contedos elaborados pelo grupo, seu carter coletivo e social;

    integrao entre os contedos;

    a educao se d em todos os lugares e em todos os momentos da vida;

    as artes integradas ao processo educativo.

    Esse aprendizado coletivo ao mesmo tempo profundamente individual e pessoal, cada um passa por seus prprios processos e pelas suas prprias percepes para irem se construindo enquanto pessoas, enquanto seres humanos.

    A msica, a dana, os cantos, a gestualidade, a corporeidade, a memria e os elos com o passado vo construindo uma dignidade, honradez e segurana no prprio fluxo e ritmo da vida.

    11 No entanto, temos trs importantes concepes de energia sagrada que serviram de alicerce para o esprito afro-descendente: a verdade de Allah dos haus e mals; o mundu dos bantu de angola, congo e moambique; e o ax dos sudaneses yorub, dahomeyanos e Fanti-Ashanti. Ainda que guardem grandes diferenas entre si, o mundu e o ax convergem para o tipo de energia sagrada que Gusdorf (1953) faz referncia ao tratar do mana. a energia que pode ser transferida para objetos, substncias e animais, mas que guarda significao profunda de religao com o divino. (Ferreira Santos, 2002, p. 27)

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    Percebemos, portanto, que o aprendizado de forma ldica e prazerosa, valorizando a sua cultura e a de seus antepassados no deve acontecer de forma antagnica com o ensino escolar formal, e, sim, devem se complementar, trazendo essas referncias e esses valores civilizatrios ao cotidiano das nossas salas de aula.

    Sendo assim, o conhecimento destas questes auxilia aos/s professores/as entendimento sobre as possibilidades de elaborao de contedos que possibilitem a utilizao de referenciais pedaggicos e metodolgicos mais condizentes com uma educao para as Relaes tnico-Raciais, tendo assim uma postura de respeito e reconhecimento ao outro.

    Desse modo, importante destacar aspectos fundamentais para a implementao de uma proposta como essa:

    pesquisar, produzir, elaborar e avaliar materiais didtico-pedaggicos que, ao tornar visvel a presena histrica e cultural das populaes negras, se constituam num instrumento de resgate da identidade, da autoestima e da cidadania das crianas, dos adolescentes e dos adultos negros/as;

    diminuir a evaso escolar de crianas, jovens e adultos negros/as que percebem a escola como um espao que no os acolhe ou reconhece;

    dar visibilidade e valor cultura e histria das populaes negras, buscando o fortalecimento dos ncleos familiares, percebendo suas memrias e costumes como fatos positivos, minimizando as violnciais materiais e simblicas que vivenciam na famlia e na sociedade;

    potencializar a criao de novas perspectivas e novos horizontes aos jovens, auxiliando-os na sua capacidade de construirem um futuro mais digno e de qualidade, percebendo a importncia das polticas de aes afirmativas, de valorizao do patrimnio material e imaterial desses grupos, a importncia da legalizao das terras quilombolas, buscando a desmistificao do sistema de cotas como algo negativo, valorizando-a como um instrumento provisoriamente necessrio, equalizador e crucial para a democratizao da Universidade.

    valorizar a escola como local de um processo de incluso, pois a incluso no um acontecimento, mas uma construo cotidiana que transforma, no s aquele que aceito, mas tambm a sociedade que, assim, amplia seus horizontes e possibilidades;

    incentivar o desenvolvimento de cooperativas populares e aes solidrias, a partir da reflexo sobre cada contedo, propiciar uma formao especfica para a educao de jovens e adultos, refletindo sobre a necessidade de uma educao profissional que rompa com as dualidades: trabalho intelectual trabalho manual, formao profissional formao humanista, caminhando para uma formao geral que contemple aspectos de formao tcnica e profissional com uma formao filosfica, literria, artstica e crtica, trazendo baila as contribuies de Gramsci (1979), por exemplo, sobre a consolidao de uma escola nica;

    na educao infantil, promover espaos para a contao de histrias dramatizadas, brincadeiras, atividades ldicas e corporais, possibilitando que os

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    conhecimentos dos grupos afro-brasileiros sejam apresentados por meio do brincar e do ouvir histrias, sendo assim, ao terem contato com as histrias, os mitos e lendas afro-brasileiras, outras lgicas e relaes com o mundo sero sentidas e conhecidas pelas crianas, sendo muito ricas de serem exploradas j que as mesmas esto construindo a sua identidade, a sua autonomia e a sua relao com o seu prprio mundo e o mundo social.

    Um dos objetivos mais importantes que percebemos neste curso de aperfeioamento para as Relaes tnico-Raciais que ele no finda na sua aplicao, nem no acompanhamento das atividades no espao escolar somente no perodo de realizao do mesmo, pois, depois disso, o que fora aprendido ser efetivamente posto em prtica, trazendo novas reflexes, que conduziro novamente s teorias, dando ensejo a que se produzam outros materiais didtico-pedaggicos, sempre mais atentos e afeitos s necessidades pedaggicas e existenciais dos alunos.

    Buscando se aprofundar nas dimenses presentes no ensinar e no aprender de grupos culturais de matriz africana, apresentamos alguns conceitos importantes de serem incorporados na dimenso pedaggica para uma educao para as relaes tnico-raciais:

    corporeidade

    necessrio que compreendamos a corporeidade de forma global e integrada, partindo da totalidade: todos os sentidos e sentires que perpassam essa relao do corpo com o mundo, seja por meio da voz, do toque, do olhar, do olfato, do paladar, dos sentires e do perceber. Desse modo, a aprendizagem se desenvolve por meio de todos os sentidos de forma integrada, no separando as dimenses em reas estanques. Compreender que a herana de matriz africana no separa essas dimenses para a compreenso da realidade que cerca a todos um dos pressupostos fundamentais para elaborao de atividades que valorizem a dimenso cognitiva, psicolgica, simblica, intelectual, racional, motora e afetiva de forma integrada.

    Ludicidade

    A elaborao das atividades deve possibilitar que a aprendizagem se desenvolva de forma ldica e criativa, trabalhando com o corpo e os sentidos, estimulando a livre criao, a formao de hipteses e as experimentaes necessrias para o desenvolvimento da criatividade, a ampliao e refinao do senso esttico. O ldico pressupe uma relao com o conhecimento que se constri de forma instigadora, problematizadora e desafiadora, que possibilite a mobilizao de toda a corporeidade para a aprendizagem.

    Ancestralidade

    Compreendemos como ancestralidade as diferentes formas de ver o mundo e se perceber nele ancoradas: as narrativas, histrias e vises de mundo da cultura africana. Fazem parte da ancestralidade africana todo o conhecimento acumulado

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    por esse grupo tnico-cultural que garantiu a sua sobrevivncia fsica, tica, cultural e simblica, as diferentes estratgias de transmisso do conhecimento e do legado dos seus antepassados s novas geraes, bem como a religiosidade, o sentimento com relao ao sagrado, a esttica, a tica, a musicalidade e a corporeidade que vislumbramos nos conhecimentos que temos tido contato em diferentes pesquisas e aes pedaggicas estudadas junto s comunidades negras.

    Desse modo, a ancestralidade a raiz da qual extramos os sentidos existenciais que do identidade a muitos afro-descendentes que se veem reconhecidos, com rostos, com corpos, com culturas e patrimnios materiais e imateriais e com dignidade a partir da valorizao desses traos culturais.

    Oralidade-Dialogicidade

    O dilogo, a oralidade, as histrias de vida e a aprendizagem entre as diferentes geraes aparecem como caractersticas de diversos grupos culturais de origem africana. Desse modo, partindo de Paulo Freire, compreendemos que a construo do conhecimento que uma educao para as relaes tnico-raciais deve privilegiar no pode prescindir de uma organizao horizontal em que educadores, educandos e gestores compreendam a importncia do aprendizado coletivo e do dilogo como construtores de conhecimento.

    RELEMBRANDO ALGUNS CUIDADOS QUE DEVEMOS TER NA ADEQUAO QUANTO ABORDAGEM DA

    HISTRIA E CULTURA AFRO-BRASILEIRA E AFRICANA NO ESPAO ESCOLAR

    Os discursos e atitudes racistas se caracterizam por apresentar determinadas caractersticas:

    1. escalonamento cultural;

    2. lugares sociais ocupados por determinadas raas/grupos tnicos;

    3. mecanismos sociais de excluso;

    4. mecanismos psicolgicos: formao da baixa autoestima atravs de uma sistemtica inferiorizao;

    5. discurso da superioridade da raa substitudo pelo da superioridade cultural;

    6. o no-reconhecimento do racismo: aes antirracistas passam a ser consideradas racistas;

    7. a justificativa da pobreza: ao incluir no-negros, exclui-se da discusso sobre a desigualdade social a questo racial;

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    Desse modo, uma Educao para as Relaes tnico-raciais que busque a desconstruo do racismo, se constitui de forma contrria a cada um destes eixos, ou seja:

    1. valorizao e reconhecimento de distintas matrizes culturais que fazem parte da cultura brasileira, dando nfase matriz afro-brasileira;

    2. desconstruo da inferiorizao dos lugares sociais destinados ao negro e utilizao de imagens socialmente positivas tendo o negro como protagonista;

    3. reverter mecanismos sociais de excluso no espao escolar, incentivando a permanncia e o sucesso escolar da populao negra;

    4. fortalecimento da construo positiva de identidade, buscando a valorizao da autoestima, atravs de uma permanente valorizao das marcas e caractersticas tnicas afro-brasileiras (cabelos, cor de pele, caractersticas fsicas: formato do nariz, olhos e bocas etc.);

    5. valorizao das expresses artsticas, culturais e tecnolgicas de matriz africana;

    6. articular o conhecimento da histria da educao no Brasil com a histria sobre o negro no Brasil para a compreenso sobre a necessidade de polticas de ao afirmativa e de combate ao racismo e discriminao para minimizar os efeitos do racismo, do preconceito e da discriminao que observamos nos ndices sociais, econmicos e educacionais da realidade vivida pela populao negra;

    7. demonstrar que a desigualdade social somada desigualdade racial aumenta muito mais as dificuldades vivenciadas pela populao negra, que se v obrigada a lidar com uma dupla discriminao. Manter o foco na questo tnico-racial e ao mesmo tempo discutir todas as formas de preconceitos. Ilustrar que a trajetria de jovens brancos pobres costuma ser diferenciada da de jovens negros pobres (como exemplo, temos o extermnio da juventude negra nas periferias de vrias cidades brasileiras, demonstrando que a violncia tem foco dirigido de forma diferenciada populao negra).

    Resumindo necessrio atentar se as atividades propostas e os materiais didtico-pedaggicos apresentados nas escolas de Minas Gerais durante a realizao do curso pelos professores conseguem transformar a viso da frica ou reiteram o preconceito e exotismo?

    Esses recursos e as atividades possibilitam uma identificao positiva das caractersticas fsicas e culturais atribudas aos afro-descendentes, ou simplesmente reiteram as imagens j desgastadas e estereotipadas? H positivao da histria da frica e do ser africano, ressaltando suas diferentes contribuies humanidade? H construo de referncias positivas quanto ao ser negro (traos e marcas distintivas e caractersticas, como a cor da pele, as caractersticas do cabelo, lbios e nariz, a esttica, a corporeidade, a musicalidade)?

    Acreditamos que este texto tenha sido uma pequena contribuio e motivao para que todos os educadores possam se sentir instigados a saberem e a estudar mais sobre a cultura negra e a histria do negro em frica e no Brasil.

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    Torna-se cada vez mais fundamental que o espao escolar promova a desconstruo dos esteretipos e preconceitos dessa verdade ocidental que nos foi imposta a partir da construo de nosso processo civilizatrio, para que no impeam mais as nossas crianas, jovens e adultos de verem e perceberem a riqueza e a dignidade dessas comunidades que h sculos vm sobrevivendo com a sua fora e a sua cultura, presenteando-nos com a sua sabedoria, a sua cincia que se reflete, dentre outros aspectos, na sua prtica simblico-educativa, na sua corporeidade, nas diferentes formas de resistncia que os garantiram e ainda garantem a sobrevivncia fsica, simblica e cultural.

    A possibilidade de mudar a tica da concepo histrica sobre os negros e a preocupao com a sua existncia cultural e simblica evidenciam a oportunidade de ouvirmos o que eles tm para dizer e aprendermos com eles, valorizando o seu universo scio-cultural e simblico, o seu sentimento com relao ao sagrado, a forma de iniciao dos mais jovens no universo dessas manifestaes e culturas, a importncia dos gris12, assim como a sua memria, os seus cantos, os seus rituais e os seus mitos, enfim, toda a herana cultural e a riqueza do seu imaginrio.

    Ao sabermos que leis no garantem mudanas de atitudes, como anteriormente falado, nosso desejo que as transformaes ocorram devido ao comprometimento poltico necessrio de todo professor, no respeito e no querer bem aos educandos, com o outro, consigo mesmo, com os sentidos de humanidade que acolhem e aprendem com a diversidade, as diferentes lgicas e modos de ser, ver e sentir que fazem parte da nossa constituio cultural e que muito nos auxiliar a pensar a educao que temos, a educao que queremos, ou seja: por qu, o qu, para qu e como ensinamos e transmitimos o conhecimento, a sabedoria e o legado cultural da humanidade s futuras geraes:

    Minha presena de professor, que no pode passar despercebida dos alunos na classe e na escola, uma presena em si poltica. Enquanto presena, no posso ser uma omisso, mas um sujeito de opes. Devo revelar aos alunos a minha capacidade de analisar, de comparar, de avaliar, de decidir, de optar, de romper. Minha capacidade de fazer justia, de no falhar verdade. tico, por isso mesmo, tem que ser o meu testemunho. (FREIRE, 1996, p.110)

    12 Gri o abrasileiramento da palavra francesa griot, usada por jovens africanos que foram estudar em universidades francesas. Movidos pela preocupao com a preservao de seus contadores de histrias, que carregam consigo a tradio oral (a morte de um griot representa um incndio em uma biblioteca, diziam), consolidaram um conceito e uma atividade secular entre seu povo, tambm expressado na palavra dielis. So pessoas que, por diversas razes, circunstncias e habilidades, acumularam conhecimentos que pertencem s suas comunidades e que podemos entender como patrimnio cultural imaterial. So as prticas, representaes, expresses e tcnicas - junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares que lhes so associados - que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivduos reconhecem como parte integrante de seu patrimnio cultural. Este patrimnio cultural imaterial transmitido de gerao a gerao. (BRASIL, 2004, p.12)

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    REFERNCIAS

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