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ENSAIOS ARTURIANOS

Apresentados como parte do curso LET 2383, Formação e Transformação da Narrativa,tendo como tópico: A Matéria da Bretanha nos Séculos XII e XIIICoordenadora: Eliana Lúcia M. Yunes GarciaDocente: Antonio L. FurtadoPeríodo: 2003.1

Capa de Eliane Bettocchi

Departamento de LetrasPontifícia Universidade Católica do R. J.

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Sumário

_ O Enigma da Mulher - 3Eliana Yunes

_ Idade Mística: A matéria da Bretanha no contexto do RPG - 5Carlos E. Klimick Pereira e Eliane Bettocchi

_ Amor e Erotismo na Idade Média: Uma perspectiva literária a partir das obrasAmadis de Gaula e A Demanda do Santo Graal - 17Cleide Maria de Oliveira

_ As Vozes Femininas em Perceval - 30Cristina Almeida

_ Adaptações Cinematográficas Arturianas: Excalibur, Lancelot e As Brumas deAvalon - 45Irene Bosisio Quental

_ Da Cavalaria à Ficção Científica: O rei Artur e os cavaleiros da Távola Redondaem quadrinhos - 54Mario Feijó Borges Monteiro

_ Leir e Rei Lear - 67Renata Christovão Bottino

_ Ritmo e Descrição: A marca anônima do estilo nas crônicas arturianas - 76Roberto Dutra Junior

_ Do Motivo da Falsa Noiva ao Tema da Inveja: Um percurso de leitura comparadade três contos de Grimm ao episódio de “A Falsa Genevra” - 83Sylvia Maria Trusen

_ O Eterno Retorno do Cavaleiro ao Reino do Caos: Apontamentos quanto à leituradas intertextualidades nas ficções arturianas - 106

Alex Jesus de Souza

_ Caradoc do Braço Inchado e o Desafio do Auto-conhecimento - 112Terezinha de Fátima Sanches Bussad

_ A Última Nau para Avalon æ D. Sebastião: A história, o mito, a lenda - 120Claudio de Sá Capuano

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O Enigma da Mulher

Eliana Yunes

Tradução e adaptação livre elaborada em julho de 1995.1

Voltando de uma das disputas em que estava envolvido com seus cavaleiros da TávolaRedonda, Arthur penetrou um bosque junto ao acampamento, distante ainda do reino deCamelot. Vagava pensativo, com o coração em tumulto, recordando a rainha Guenevire,quando foi surpreendido por um guerreiro, de armadura e cavalo negros.

Ali desamparado, ã mercê da morte, Arthur propôs-lhe um desafio em campo aberto,pois seria indigno para qualquer cavaleiro tirar a vida ao rei desarmado. Conhecendo aslendas em torno da espada de Escalibur, o inimigo vacilou por um instante para em seguidadecidir por outra arena de luta: ao final de um ano, Arthur deveria voltar ao bosque, nestemesmo lugar, com a resposta para o seguinte enigma: O que mais deseja uma mulher de umhomem? Caso não tivesse a solução correta, Arthur morreria.

A caminhada para Camelot não aliviou o rei, que afinal se viu obrigado a partilhar suasangústias, com seu cavaleiro de armas e companheiro de lutas Gawen. Acertaram entãopercorrer o reino consultando homens de todas as classes e origens, guerreiros, aldeões,lordes e príncipes que especulavam com as carências e fragilidades femininas. Mas Arthurintuía, do fundo de seu coração, que não havia encontrado a resposta justa.

Uma tarde, voltando ao mesmo sítio em que o enigma lhe fora proposto, surpreendeu-seao encontrar uma mulher disforme como uma bruxa que lhe disse conhecer o motivo de seudesassossego. Comprometia-se a ajudá-lo contanto que Arthur lhe desse sua palavra de reique a faria casar-se com seu sobrinho amado. Retornando desalentado ao palácio ouviu deGawen que mil vezes arriscara sua vida por Arthur e agora, de bom grado, se casaria comuma bruxa, se isto pusesse a salvo o Senhor da Távola Redonda. Arthur voltou ao bosque eselou o pacto com a velha mulher que, exigindo-lhe segredo absoluto, entregou-lhe a chavedo enigma.

Poucos meses mais tarde foi a vez de o cavaleiro negro alcançar Arthur nas sombras dobosque e cobrar-lhe a resposta. O rei desfiou-lhe uma após a outra as que colhera peloreino, na esperança de livrar o sobrinho de tão cruel destino. Percebendo que o tempo seescoava, ofereceu-lhe a solução que a bruxa lhe segredara: viu-se, então, liberto e vitoriosonaquele combate estranho. Agora restava-lhe cumprir com sua palavra e realizar as bodasde Gawen com a mulher desfigurada.

As paredes de pedra do castelo engalanaram-se com guirlandas de flores do camposuspensas em cordões, os veludos foram escovados, as tochas e arandelas acenderam-se.Javalis e faisões foram caçados para o banquete e os tapetes desenrolados para aquecer osfrios corredores. Já se fazia ouvir das torres aos calabouços a música dos alaúdes e flautas.

Quando o príncipe adentrou os salões trazendo pela mão a mulher em rugas e andrajos,recobertos apenas por uma capa de seda esplendorosa, presente do noivo, toda a corte deCamelot recuou. O quadro era patético e ninguém atinaria com a razão pela qual Gawenfizera tal escolha abjeta. A alegria da festa esvaiu-se e silenciou-se o brinde nas taças de

1 Reproduzida sem permissão da autora. A narrativa está no poema The Weddynge of Sir Gawen and Dame Ragnell . Aindamais conhecida é a versão em prosa do "relato da comadre de Bath", que figura em The Canterbury Tales de Chaucer.

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estanho. Um clima fúnebre desceu sobre o castelo e a mulher, constrangida pelos olhares,procurava arrastar o esposo para os aposentos de núpcias.

Recolhidos sozinhos a sua câmara, o príncipe se viu intimado por sua honra a cumprirseus deveres de esposo. De costas para a mulher, entre resoluto e perplexo, despojou-se dasroupas e voltou-se: diante dele estava a mais linda jovem que seus olhos jamais tinhamvisto.

Revelou ela com voz doce e ares de cisne que era uma princesa enfeitiçada cujo encantose quebrara – em parte – no momento em que ele decidira, de fato, fazê-la sua mulherapesar da repugnância. Mas o poderoso feitiço ainda o obrigaria a uma dura escolha:poderia tê-la à noite como uma princesa e bruxa durante o dia, ou ao contrário, vê-la noquarto como velha e exibi-la à luz como uma jovem mulher.

Gawen, tomado pela surpresa, mal conseguia pensar; os sentimentos em turbilhão nãolhe permitiam optar entre o prazer de tê-la à noite entre os braços com sua pela perfumadaou livrá-la do repúdio de toda Camelot que durante o dia lhe perseguiria. Caindo de joelhosaos pés da mulher, com o coração aturdido e os lábios trêmulos, lhe suplicou que decidissepor ele.

A jovem sorrindo, cobriu-o de beijos, pois ele acabara de desvendar todo o enigma,rompendo o feitiço por completo. E como ele não parecia entender, sussurrou-lhe:

- O que mais pode uma mulher desejar de um homem, senão ser a senhora dos seuasdesejos?

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Idade Mística: A Matéria da Bretanha no Contexto do RPG

Carlos E. Klimick Pereira Eliane Bettocchi

Introdução

Este trabalho apresenta o projeto da estrutura textual da ambientação Idade Mística(cronologicamente situado entre a 1a. Cruzada, 1095 e a Cruzada Albigense, 1209) para ojogo Incorporais. Este jogo é um projeto de pesquisa cujo objetivo geral é desenvolver(projetar e testar) um RPG (role-playing game) para experimentar suas característicassocializante, interativa, narrativa e hipermidiática e sua conseqüente conceituação comoobra aberta (Eco, 2001), estimulando os participantes a vivenciarem uma situação eproduzirem material sobre esta situação em qualquer linguagem (escrita, verbal, visual,musical, corporal etc.) e qualquer suporte (gráfico, eletrônico, tridimensional etc.).

1. RPG1

Role Playing Game é uma forma de narrativa que se diferencia das narrativas linearestradicionais, tendo surgido nos EUA em 1974 a partir dos jogos de guerra que simulavambatalhas em tabuleiros. David Arneson e Gary Gygax, fãs do universo fantástico concebidopor J.R.R. Tolkien em O Senhor dos Anéis, criaram um cenário similar para as primeirasaventuras. Inicialmente, as histórias eram muito simples: invadir as catacumbas, matar osmonstros e pegar o tesouro. 2 A terminologia dessa primeira fase do RPG contaminou-secom termos oriundos dos Jogos de Guerra: "Mestre do Jogo", "Aventura", "Campanha".Quase todos os cenários criados eram de "fantasia medieval".3 Em sua fase atual, há umagrande diversidade de cenários (fantasia, terror, histórico, aventura etc), e o RPG passou aser aplicado para outros fins além do entretenimento. 4 Surgiram outros termos como"Narrador", "História" e "Crônica". Mas, como funciona o RPG?

No RPG, os praticantes criam suas personagens que participam de histórias parcialmentecontadas por um Narrador (também chamado de Mestre). No livro de RPG se encontraparcialmente descrita uma ambientação, na qual se passarão as histórias.5 As personagenscriadas pelos “jogadores” e pelo Narrador serão coerentes com o cenário: brasileiros eíndios num cenário de Brasil colonial; cavaleiros e alquimistas num cenário de Europa 1 Descrição extraída de meu artigo "RPG & Educação: metodologia para uso paradidático dos role playing games". A serpublicado.2 TOLKIEN, J.R.R. The Lord of the Rings . Trilogia de livros ( The Fellowship of the Ring; The Two Towers; The Return of theKing). Os dois primeiros foram publicados em 1954 e o terceiro em 1955 na Inglaterra. O livro descreve uma história épicaem um cenário de inspiração medieval européia em que heróis de diferentes raças (humanos, elfos, anões e hobbits) seunem para enfrentar o maligno Sauron. A trilogia foi adaptada para o cinema em três filmes nos anos de 2001, 2002 e 2003.3 "Fantasia medieval" é um jargão do meio do RPG. Refere-se a um cenário em que existem povos de diferentes raças(normalmente humanos, elfos, anões e hobbits/halflings/pequeninos) em que heróis como cavaleiros, magos, sacerdotes,bardos e ladinos, enfrentam monstros e outros seres malignos. A magia e os seres sobrenaturais estão presentes. Oambiente costuma ser inspirado no imaginário da Idade Média européia, com castelos, tavernas, vilarejos, nobres, dragõesetc. Foi o primeiro tipo de cenário dos RPGs e até hoje é um dos mais populares.4 Similares aos ditos gêneros literários e cinematográficos5 "Ambientação" é um jargão do RPG. Refere-se à uma combinação do cenário com os tipos de histórias. Por exemplo:aventuras num cenário medieval ou suspense num cenário moderno. É o "ambiente" no qual transcorrem as histórias daspersonagens do grupo.

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Medieval, etc. A história começa a ser contada pelo Narrador, mas os “jogadores” sãolivres para decidir o que suas personagens falam e fazem na história. Assim, os rumos dahistória são freqüentemente alterados pelas ações das personagens, sendo na verdade umahistória contada em conjunto pelo Narrador e “jogadores”.

Um livro de RPG contém, basicamente, a descrição mais ou menos detalhada de umaambientação (maiores detalhes costumam vir separadamente em outros livros menores, oschamados complementos) e um sistema de regras. O sistema de regras serve para organizara ação dos personagens durante o jogo, determinando os limites do que ele pode ou nãopode fazer. Por exemplo: não basta uma personagem saber atirar para acertar um alvo. Vaidepender do alvo e das condições em que a personagem se encontra, além do quão bomatirador ela é. O sistema de regras tem como finalidade fazer uma simulação da realidade (arealidade do jogo), influenciando a ação das personagens nas ações mais complexas.

Como não há apenas um sistema de regras (cada jogo de RPG costuma ter o seu), aspossibilidades de jogos de RPG se multiplicam ainda mais, pois cada ambientação pode serdesenvolvida por diferentes sistemas de regras. Ou seja, cada combinação ambientação-sistema dá origem a um jogo diferente.

Acredita-se ser possível entender o RPG como um meio de comunicação dotado de umrepertório partilhado com outras formas de narrativa (literatura, cinema, teatro, videogame),porém com um código próprio que utiliza tal repertório de modo interativo ehipermidiático, tanto na sua veiculação (suporte) quanto na sua fruição (processo de jogo).Deste modo, para facilitar este entendimento, propõe-se uma breve descrição do que é esterepertório, os componentes do RPG, e de seus códigos de produção e utilização, suascaracterísticas.

1.1. Características do RPG

Vemos no RPG quatro características sobre as quais vamos discorrer um pouco para quesua prática fique mais clara. São elas: socialização, interatividade, narrativa e hipermídia.1

Socialização: a capacidade de integração do RPG começa na sua própria estrutura, pois éjogado em grupo, demandando não a competição, mas sim a cooperação entre seusparticipantes. Além disso, é calcado no diálogo e troca de idéias. Neste aspecto, o RPG éum importante elemento de comunicação, pois o ato de jogar leva, naturalmente, a umamaior facilidade de se comunicar, expressar um pensamento.

Interatividade: se traçarmos um paralelo com o teatro, um RPG oferece uma ambientação,uma plataforma a partir da qual os jogadores constróem, coletivamente, suas própriashistórias e personagens. Isto quer dizer que um suporte de RPG, seja ele impresso,eletrônico ou oral, não tem por objetivo oferecer histórias completas e fechadas - ainda quepossam existir exemplos de histórias e personagens -, mas sim possibilidades, autônomas eimprevisíveis, que se realizam em cada momento de jogo, termos utilizados por ArlindoMachado (1997) para definir interatividade:

1 Mais detalhes estão disponíveis em http://www.historias.interativas.nom.br

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Na mesma época, Raymond Williams (1979:139) dizia que a maioria das tecnologiasvendidas e difundidas como "interativas" eram na verdade simplesmente "reativas", poisdiante delas o usuário não fazia senão escolher uma alternativa dentro de um leque deopções definido (verdade que continua sendo válida para a maioria dos videogames eaplicativos multimídia hoje consumidos em quantidade). Interatividade, entretanto,implicava para ele a possibilidade de resposta autônoma, criativa e não prevista daaudiência, ou mesmo, no limite, a substituição dos pólos emissor e receptor pela idéia maisestimulante dos agentes intercomunicadores. (Machado, 1997:250)

Assim, o RPG se diferencia dos livros-jogos e videogames, onde só é possível escolherdentre uma série de opções pré-definidas. Essas seriam narrativas reativas, enquanto o RPGé interativo.

Narrativa: conforme já foi dito, o RPG difere das narrativas tradicionais por ser umaplataforma a partir da qual diferentes histórias podem ser criadas em grupo. Se pensarmoscom base na teoria de Pierre Lévy (1997) sobre virtualidade, podemos dizer que o RPG éum campo virtual que se atualiza a cada momento de construção de uma personagem e deuma história. As narrativas no RPG são, neste contexto, escolhas feitas pelos jogadores, oque reservaria aos autores do jogo o papel de facilitadores destas escolhas, muito mais doque de autoria.

Além das suas características virtual e hipermidiática, que enfatizam a multiplicidade deestímulos e respostas e a diluição de fronteiras entre autor e receptor, o RPG também secaracteriza pela mistura e apropriação de diferentes linguagens como teatro, cinema,televisão, literatura, quadrinhos ocidentais e orientais e computador sem, no entanto, perdera consciência de sua própria forma. A representação visual expressa-se como uma colchade retalhos através da mistura de estilos dentro de uma mesma publicação, fato marcante,sobretudo, nos jogos da terceira fase (Bettocchi, 2002).

A linguagem verbal do RPG é muito próxima das narrativas orais, e a relação entre textoe imagem nos suportes é fundamental para a interatividade. No livro de RPG, texto eimagem existem não para serem consumidos acriticamente, mas para serem, como diriaSonia Mota (Apud: Pavão, 1999), "pilhados" pelo sujeito a fim de serem reconstruídos deacordo com suas experiências cotidianas, permitindo a concepção de novas imagens enovos textos e a recriação da realidade.

Hipermídia: como forma de comunicação hipermidiática, o RPG se constitui de textoverbo-audiovisual (texto escrito, imagens e a narração do Mestre e interpretação daspersonagens pelos jogadores), onde a disponibilidade instantânea de possibilidadesarticulatórias permite a concepção não de uma obra acabada, mas de estruturas que podemser recombinadas diferentemente por cada usuário. Estes elementos (ilustrações, textos,linguagem corporal e verbal) são "janelas" ou "links" de informação para o jogador sobre ocenário onde serão construídas suas próprias histórias, e, conseqüentemente, suas própriasimagens, textos etc.

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1.2. Componentes do RPG

Regras: no RPG, as regras compõem um sistema de simulação de realidade. Quando seutiliza o termo simulação de realidade no jogo de interpretação, está-se referindo não aosentido de engano ou falsidade, mas ao sentido de modelo. Segundo o dicionário, define-sesimulação como a reprodução análoga de algo ("simulação analógica: experiência ou ensaioem que os modelos se comportam de maneira análoga à realidade"). Deve-se ressaltar,ainda, que as regras no RPG favorecem e pressupõem a cooperação entre os participantes,não a competição, diferentemente da maioria dos jogos.

Cenário: um cenário apresenta um mundo, um período histórico, uma situação ou gruposocial. Algumas vezes o cenário pode ser bastante familiar aos jogadores, mas visto sob umenfoque inusitado (por exemplo, o Mundo das Trevas, da editora norte-americana WhiteWolf, que apresenta o mundo ocidental contemporâneo sob o enfoque de vampiros,lobisomens, magos etc.):

O Cenário é o palco de sua história.. Ele inclui não somente uma descrição do local (bairro,cidade, condado, país, planeta, etc.) e da época na qual a história vai-se desenrolar comotambém uma visão da situação "política" dos personagens envolvidos (o relacionamento queexiste entre eles e entre cada um deles e os personagens secundários da história). (Mini-Gurps, 1999:22)

É interessante que um cenário contenha descrições tanto mais detalhadas quanto maisbizarro for o objeto descrito. Um conjunto de referências visuais, sonoras, textuais tambémamplia as possibilidades de criação dos jogadores.

Personagens: a personagem no RPG é a interface entre o jogador e o jogo; através dela,vive-se (mais do que se acompanha), a história. Pode-se dizer que, sem a atuação daspersonagens, a prática do RPG não acontece. Estas personagens são essencialmente figurasheróicas.1

As personagens são definidas para jogo em termos de suas características inatas, comoforça e inteligência, habilidades aprendidas, personalidade e histórico. Como no RPG hácontinuidade, as personagens podem viver várias histórias, as personagens evoluem a cadaaventura, aumentando suas capacidades de atuação.

Cabe observar que numa sessão de RPG também há as personagens do Mestre queinteragem com as personagens dos jogadores.

Enredo: para melhor compreender a questão do enredo, sugere-se duas definições deorigem diferente para o termo, a primeira oriunda de estudos sobre o romance e a segundade um RPG:

Definiremos a história como uma narrativa de acontecimentos dispostos em sua seqüênciano tempo. Um enredo é também uma narrativa de acontecimentos, cuja ênfase recai sobre acausalidade. "O rei morreu e depois a rainha"- isto é uma história. "Morreu o rei, e depois arainha morreu de pesar" é um enredo. [...] Consideremos a morte da rainha: numa históriadiríamos - "E depois?"; num enredo - "Por quê?" (Forster, 1927; 1998:83-84)

1 A este respeito, ver KLIMICK, Carlos. Onde está o herói? In: Simpósio O Outro, LaRS, Depto de Artes e Design, PUC-Rio,2002.

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O enredo é a seqüência de coisas que devem acontecer durante a aventura. Numa aventurasimples, o mestre guia os personagens de uma cena para outra. Numa aventura maissofisticada, existem coisas acontecendo sem que os personagens saibam. Nesse caso, omestre cria muitas situações e os personagens vão passando de uma cena para outra àmedida que vão descobrindo pistas. (Mini-Gurps, 1999:22)

No romance, o leitor é atraído pelas perguntas "por quê? O que causou tal fato? Qual foia motivação da personagem?" No RPG, este aspecto está presente nas ações daspersonagens controladas pelo Mestre. Contudo, também está presente nas conseqüênciasdas ações das personagens dos jogadores, as quais, muitas vezes imprevistas, fazem comque o Mestre tenha que alterar constantemente o enredo. A causalidade é então de mãodupla, do Mestre para os jogadores e vice-versa. O enredo é então a seqüência de eventosna narrativa amarrada pela causalidade de mestres e jogadores.

Clima: este seria uma maneira de jogar tanto o cenário quanto os enredos. Pode-se, porexemplo, jogar um enredo de fantasia com clima dramático (Ladyhawk: O Feitiço deÁquila), ou um cenário de terror com clima de ação (Blade), ou um cenário de ficção-científica com clima noir (Blade Runner, Gattaca) etc. Por se tratarem de personagensheróicas, o clima predominante nos enredos e cenários de RPG é o de aventura. Por setratar de um modo de jogar, pode-se dizer que o clima seria uma ponte entre código erepertório, talvez se aproximando do que a literatura, o cinema e o teatro entendem porgênero narrativo.

1.3. Ambientação

A ambientação é uma combinação de cenário, personagem, enredo e clima, compondo aplataforma para as histórias daquela proposta de RPG. Tomando como exemplo o RPGVampiro: a Máscara, vemos que a ambientação deste RPG se compõe de: o mundo atual,com a presença do sobrenatural, onde vampiros existem e se organizam em clãs e facçõespolíticas, com possíveis focos em determinadas cidades, como Chicago (cenário); vampirosde diferentes clãs, com seus poderes, históricos e personalidades (personagem); aventuras-prontas, idéias para aventuras, dicas para o Narrador (enredo); histórias de horror, vampirosatormentados com a progressiva perda de sua humanidade, conspiração e suspense (clima).

Podem ser observadas similaridades entre a ambientação do RPG e os ambientes da arteparticipativa, conforme propostos por Plaza – “O ambiente (no sentido mais amplo dotermo) é considerado como o lugar de encontro privilegiado dos fatos físicos e psicológicosque animam nosso universo.” (Plaza, 2003:14)

2. A ambientação Idade Mística

Uma vez esclarecidos estes conceitos, passar-se-á ao foco deste trabalho: a apresentaçãotextual (forma) de uma ambientação de RPG. A ambientação proposta, Idade Mística, serádisponibilizada em suporte impresso, um livro de RPG em que conste, além dos textos ecomposições visuais, o levantamento documental e iconográfico como narrativas paralelas.

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Deste modo, pretende-se focalizar a discussão nas características de narrativahipermidiática deste suporte.

2.1. A forma hipermidiática do texto medieval

Sugere-se que a hipermídia ou multimídia hipertextual (texto + imagem + som etc) seriauma evolução do hipertexto (Crenzel, 2002:31):

Ted Nelson (1992), considerado o inventor do termo "hipertexto", o conceitua como conjunto deescritas associadas, não-seqüenciais com conexões possíveis de seguir e oportunidades de leituraem diferentes direções. A hipermídia é, pois, uma forma combinatória e interativa de multimídia[...] (Plaza, 2003:25).

Isto quer dizer que, num hipertexto, as informações não são absorvidas de forma linear,umas após as outras, mas de forma simultânea e fragmentada, de modo similar aofuncionamento do cérebro humano.

O signo de pontuação mais característico do hipertexto é o link (elo, em português), oponto de interseção entre os "nós" textuais, a janela de acesso entre as diferentes camadastextuais e visuais. O link transforma a imagem fixa em seqüencial e cria um espaçoinformativo tridimensional (Crenzel, 2002:37-38).

É interessante notarmos que, apesar desta nomenclatura remeter diretamente àinformática, este tipo de hiper-estrutura interativa existe desde que existe linguagem(ANEXO I); as novas tecnologias nos permitiram, sim, tomar consciência deste processo eutilizá-lo de forma mais direta e simplificada.

Como mostra o exemplo do ANEXO I, o texto medieval incorpora digressões, anotaçõese glosas de forma simultânea e não-linear, sem preocupações com pureza de gênero,freqüentemente misturando trágico e cômico, histórico e fictício. A literatura medieval sevale bastante das referências clássicas, misturando os estilos grego e latino com o temário eo folclore do período, além de inserir temas religiosos da mitologia cristã, justificando umaprodução pagã sofisticada.

Esta estrutura reflete o pensamento filosófico da época de uma unidade teológica quemantém o mundo; o Homem, a Natureza e a Escritura são mais pelo que significam do quepor si – o U m que se manifesta no Trino . A lógica de Aristóteles aparecedescontextualizada, misturada ao pensamento agostiniano, de fato mais próximo doplatônico do que do aristotélico. As "figuras de linguagem" são simbólicas e alegóricas: ascoisas significam a si mesmas e estão por outra coisa (Agostinho: Res et signum; in: Boniet all, 1988).

O quadro a seguir mostra um resumo esquemático de alguns dos principais conceitosfilosóficos que se pretende utilizar na concepção da estrutura do texto de apresentação docenário:

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Díade/quadríade TríadeQuatro Elementos

Pessoa e Natureza, Humano e Divino, Sagrado eProfano, Teologia e Dialética

Razão e Mística (entender a palavra do filósofo paracrer, crer na palavra de Deus para entender)

Quadrívio (Aritmética,Geometria,Música,Astronomia)Mundo exterior (macrocosmo) e mundo humano

(microcosmo)Sentido literal-sensível superado pelo simbólico-

espiritual

Santíssima trindadeLógica Aristotélica (logica Vetus, tradução de Boécio):bondade, verdade e beleza ou bondade, verdade e fé cristãVerdade, conhecimento e poder (crer para entender,entender para dominar)Trívio (Gramática, Dialética, Retórica)Supraceleste, celeste e infraceleste (harmonia pela escalaplanetária)Alegórico (refere a outro fato) > tropológico ou moral(ideológico) > anagógico (aponta para a salvação)

Na análise comparativa Artur e Alexandre - Crônica de dois reis, Furtado (1995)comenta que, assim como Plutarco (séc. I), Geoffrey de Monmouth (séc. XII), autor daHistoria Regum Britanniae (1135) constrói uma narrativa por analogias.

Na passagem da Historia sobre o Rei Leir, a situação sucessória pode referir-se à própriasituação da Inglaterra na primeira metade do século XII, quando se discutiu a sucessão dotrono por uma mulher, Matilda. Note-se que o livro de Monmouth foi dedicado a Robert deGloucester (Furtado, 2003). A situação de três filhas que disputam uma herança, em queuma delas é rejeitada por supostamente ser sincera, ficando o rei na companhia das outras,as quais no final tentam usurpar-lhe o poder, encontra eco no folclore de diferentes culturas,conforme classificado por Aarne & Thompson (1961; in: Furtado, 2003). Finalmente,referências clássicas de situações sucessórias conflituosas e usurpação de trono aparecemtanto nas biografias de Artaxerxes quanto de Pompeu (Plutarco, séc. I;1986; in: Furtado,2003).

De acordo com o quadro de conceitos anterior, pode-se sugerir uma estrutura triádica designificados inferíveis além do perceptível (sentido literal): um sentido alegórico, referindo-se à identificação com uma situação histórica; um sentido moral ou tropológico, delegitimação de valores e ideologias, por vezes fundamentado no modelo clássico; e umsentido anagógico, de pretensão universal, que pode tanto buscar suas raízes no folclorepagão quanto na mitologia judaico-cristã.

Encontra-se neste modelo uma díade (sentido literal versus sentido simbólico-espiritual)que encerra uma tríade (o sentido simbólico-espiritual composto dos níveis alegórico, morale anagógico). Este modelo servirá de base para a estruturação do texto de apresentação docenário medieval em questão.

2.2. O hipertexto de Idade Mística

O conteúdo da ambientação será apresentado, conforme mencionado, de formahipermidiática, constando de texto verbal e texto visual. Neste trabalho serão discutidosapenas os textos verbais, dispostos em três níveis, tomando-se como exemplo o ANEXO I:texto literário (principal), glosas e anotações.

É importante esclarecer que o termo principal entre parênteses não se refere a umahierarquia de subordinação: o conteúdo do texto literário não é mais ou menos importanteque o das glosas e anotações, como costuma acontecer com notas de rodapé ou de fim depágina nos textos acadêmicos. Daí se preferir utilizar o termo literário, ficando o termoprincipal apenas como referência de posicionamento na mancha gráfica.

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O texto literário (sentido literal), consistirá de uma narrativa linear em prosa ou verso, apartir do qual se abrirão os links para os elementos explicativos do cenário (sentidossimbólicos): as glosas, que farão referência a uma situação histórica similar à situaçãodescrita no texto literário (sentido alegórico); e as anotações, que citarão o modelo clássicoe a referência mitológica ou folclórica (sentidos moral e anagógico). Tanto as glosas quantoas anotações poderão conter ainda referências a questões específicas de jogo (característicase competências de personagens, resolução de ações, feitiçaria etc.).

2.1.1. Os textos literários

O RPG se caracteriza pelas colagens, apropriações e reinterpretações (Bettocchi, 2001).Parece muito pertinente o termo “pilhagem narrativa”, cunhado por Sônia Mota (Apud:Pavão, 1999:24) para descrever o processo de construção e utilização desta linguagem,cujas histórias e imagens são tecidas a partir de elementos de outras histórias e de outrasimagens, apropriadas de autores que não são citados, aproximando essa narrativa danarrativa oral “sem dono”.

Por narrativa, tradicionalmente, entenda-se:

[...] formas textuais, utilizando ou não imagens, como é o caso da literatura, cinema,televisão, RPG ou videogame, embora os elementos constitutivos de ambos, como nãopoderia deixar de ser, sejam recorrentes. Estes se caracterizam como narrativos porpossuírem os elementos levantados por Cardoso [2001] (tema, personagens, ação, tempo,espaço, ponto de vista, conflito), possuindo unidade de ação, tempo e lugar, edesenvolvendo-se através da relação de causa e efeito, etc. (Coelho, 2002).

Se narrativa permite uma aproximação com papel e personagem, pode-se sugerir quenarrativa oral permite uma aproximação com tradição oral, folclore, conto de fadas, mito.Segundo Japiassú e Marcondes (2001:183), a palavra mito, do grego mythos, inclui osentido de: "1. Narrativa lendária, pertencente à tradição cultural de um povo, que explicaatravés do apelo ao sobrenatural, ao divino e ao misterioso, a origem do universo, ofuncionamento da natureza e a origem e os valores básicos do próprio povo. [...]"

Temos aí uma representação teatral do papel de uma personagem de uma narrativa oralque se aproxima do folclore e do mito, portanto de cunho aventuresco: uma personagemheróica. Herói combina com aventura, aventura com desafio, desafio com jogo. Destemodo, optou-se por tomar como textos literários, entre outros que não serão comentadosneste trabalho, trechos de algumas narrativas arturianas datadas do século XII e início doXIII, período que também abrange o cenário do jogo.

Segundo Furtado (2003), as narrativas arturianas deste período compõem uma tradiçãoliterária conhecida como Matéria da Bretanha, inaugurada pelo já citado bretão Geoffrey deMonmouth, dividida em três fases distintas: as crônicas pseudo-históricas, os romances decavalaria e as estórias exemplares. Devido à delimitação cronológica do cenário (1095-1204), trataremos aqui apenas das duas primeiras fases.

Nas ditas crônicas pseudo-históricas, ainda que os textos aparentem verossimilhança,não se pode deixar de notar a forte presença do sobrenatural, seja em figuras como Merlim,seja na descrição do mistério envolvendo a morte de Artur e sua ida para a fantástica ilha deAvalon. Como já foi mencionado (Furtado, 1995), a narrativa parece ser construída por

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analogias com situações históricas e com narrativas clássicas e folclóricas. Os trechos quese pretende utilizar encontram-se nas seguintes obras:1

• Historia Regum Britanniae, 1135 e Vita Merlini (1148), Geoffrey de Monmouth:o primeiro texto se propõe a ser um registro "histórico" dos reis da Bretanha,incluindo a primeira biografia detalhada de Artur, a partir das fontes fornecidas nosescritos de Gildas (séc. VI) e Nennius (séc. IX); o segundo texto dedica-se à figurade Merlim, sábio de origem mágica, associado a e/ou inspirado em Santo Ambrósio(séc. IV), e que também fora mencionado por Nennius como o "menino sem pai"com dons proféticos.

• Roman de Brut, 1155, Wace: tradução do latim para o francês, dando maiordivulgação à obra de Monmouth; sua grande contribuição foi a invenção da TávolaRedonda, mesa sem cabeceira, logo com todos os lugares igualmente importantes,de modo a evitar disputas entre os barões de Artur.

A fase seguinte, dos romances de cavalaria, é protagonizada pelos cavaleiros, ficando orei Artur em segundo plano. Nesta fase já é possível perceber o reflexo de uma sociedadefeudal e suas instituições de cavalaria cada vez mais estabelecidas, onde o "valor" de umcavaleiro é medido pela sua bravura em combate e torneios e pela sua generosidade emgastos materiais. Diferentemente da fase anterior de batalhas campais, estes cavaleirosprotagonizam aventuras de cunho mais pessoal, inspiradas nas regras do fino amor (ouamor cortês, segundo nomenclatura cunhada no século XIX) proclamadas por André, oCapelão (séc. XII), cantadas nas trovas, e recheadas de acontecimentos fantásticos emotivos folclóricos. Os trechos a serem utilizados estão nas seguintes obras:

• Érec et Énide, Cligès (ou A Falsa Morta), Lancelot (ou O Cavaleiro daCarreta), Yvain (ou O Cavaleiro do Leão) e Perceval (ou O Conto do Graal),1170-1185, Chrétien de Troyes: o autor, que é o principal poeta francês destafase, incorpora a Távola Redonda criada por Wace e cria a personagemLancelote, colocado como terceiro cavaleiro de Artur (o primeiro é Galvão, osegundo Erec). Menciona o graal (citado no Roman d'Alexandre, poemanarrativo de autoria coletiva, ca. 1160) ainda como escudela, mas já lheatribuindo um significado místico que não foi esclarecido devido à interrupçãode sua obra quando de sua morte.

• Tristan et Iseut, ca. 1180, Béroul: preservada de forma incompleta, esta é umadas mais antigas versões do amor entre Tristão (também citado como cavaleirode Artur por Chrétien) e a rainha Isolda, esposa do rei Marcos.

• A mula sem freio e O Cavaleiro da Espada, final do século XII ou início doXIII, anônimos: possivelmente sátiras à obra de Chrétien, atribuindo-se aprimeira a um pretenso Païen de Maisières ("Pagão" em oposição a Chrétien,"Cristão", e sendo Maisière, como Troyes, uma cidade da Champagne).

• Primeira Continuação do Persival, final do século XII, anônimo: de autordesconhecido designado por alguns como Pseudo-Wauchier, pretende ser umacontinuação do último texto de Chrétien.

1 À exceção dos Lais de Maria de França, todos os textos citados encontram-se em FURTADO, Antonio L. Artur eAlexandre - Crônica de Dois Reis. São Paulo: Ática, 1995 e Aventuras da Távola Redonda - Estórias Medievais do ReiArtur e seus Cavaleiros. Petrópolis: Editora Vozes: 2003.

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• Lais, 1160-1178, Maria de França: apesar de não tratar somente de matériaarturiana, os contos desta autora lidam com temas similares e com as mesmasreferências: aventuras fantásticas e fino amor. Os lais ambientados na corte doRei Artur são Lanval e Madressilva, este último sobre Tristão e Isolda.

2.2. Anotações e glosas

Estes textos complementares servirão, assim como nas obras medievais, como brevesinterpretações dos textos literários (textos "principais") fornecendo explicações sobre ocenário do jogo, fazendo o contraponto diádico entre sentido literal e sentido simbólico.Estes textos terão um teor descritivo e consistirão em resumos de diferentes fontes sobrehistória, filosofia e cultura medieval, mesclados com informações específicas para osjogadores sobre concepção de personagens e enredos de jogo.1

A título de exemplo, sugere-se uma relação diádica entre os textos das crônicas pseudo-históricas e, desdobrando-se a relação triádica:

• sentido alegórico de uma situação de fortalecimento do sistema feudalcaracterístico do primeiro quartel do século XII (Le Goff, 1989; Loyn, 1991;Duby, 1989);

• sentido moral de afirmação da emergente classe cavaleiresca (a TávolaRedonda) com base no modelo clássico fornecido pelas crônicas de Plutarcosobre Alexandre, o Grande (Furtado, 1995);

• sentido anagógico de divinização ou heroicização do rei (Beatie, 2001), seja nasua origem sobrenatural, seja na participação de um auxiliar místico (Propp,1984), como Merlim, seja no mistério que envolve sua morte, com referênciasna mitologia grega (as nove irmãs de Avalon e as nove musas) e judaico-cristã(a ilha paradisíaca e o jardim do Éden), entre outras.

Para os textos dos romances de cavalaria, pode-se sugerir, como exemplo, o seguintedesdobramento triádico:

• sentido alegórico de uma situação feudal implantada, tendendo para adescentralização do poder real (Artur já não é mais protagonista) (Le Goff,1989; Duby, 1989; Loyn, 1991; MacDonald, 1995) e os jogos de sedução daselites, como uma espécie de amenização das situações matrimoniais políticas,organizados nas regras do fino amor de André, o Capelão sob os cuidados daCondessa Maria de Champagne (Furtado, 2003);

• sentido moral de valorização dos códigos guerreiros (militas), da herançapatrilinear e da honra da ancestralidade (nobilitas) – como sugere Duby(1989:16), utilizando como exemplo a desconhecida condição nobre de Persival– ainda buscando seus modelos na literatura clássica de Plutarco e, para ocomportamento amoroso, em Ovídio;

• sentido anagógico de fidelidade carnal/espiritual, abordando o pecado e a

1 Lembrando que este trabalho refere-se à ambientação de um RPG, a qual deverá ser acompanhada de um livro contendoas regras básicas.

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traição femininos, temas presentes em passagens bíblicas e no folclore tantoeuropeu quanto oriental (Aarne-Thompson, 1961; Furtado e Veloso, 1996;Furtado, 2003) ao mesmo tempo promovendo uma valorização de cultosmarianos e da virgindade; a questão do graal como objeto simbólico de buscamístico-espiritual já começa a surgir nas obras do final do século XII.

Para finalizar, apresenta-se no ANEXO II um exemplo de mancha gráfica segundo oscritérios estabelecidos neste trabalho. O texto literário é um trecho do Lanval, lai arturianode Maria de França, acompanahdo de glosa descrevendo resumidamente as relações feudaise o lugar do cavaleiro nesta relação e de anotações sobre o sentido moral dos códigosguerreiros contrapondo-se às regras do fino amor; e sobre o sentido anagógico da buscaespiritual. Para efeito de compreensão, todas as referências específicas às regras do RPGestão entre colchetes.

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Amor e Erotismo na Idade Média:Uma perspectiva literária a partir da análise das obras

Amadis de Gaula e A Demanda do Santo Graal

Cleide Maria de Oliveira

Introdução

O presente ensaio tem por objetivo estudar o amor e o erotismo no períodomedievo, em especial na Baixa Idade Média, a partir da perspectiva oferecida pelasobras Amadis de Gaula e A Demanda do Santo Graal, a segunda vinculada aoassim chamado Ciclo Arturiano.

A escolha do tema se deu pela possibilidade de analisar o amor e o erotismoenquanto fenômenos sócio-culturais que se inscrevem na história e no espaço, eque, como toda realização humana, influenciam as manifestações artísticas eliterárias, sendo essas, portanto, narrativas prenhes de signos a seremdecodificados no intuito de uma maior compreensão dos comportamentos sociais.Conforme assinala André Lázaro em seu livro "O amor: do mito ao mercado",

... o amor tem sido "bom" para pensar pois coloca em jogo fichas valiosas. É o próprio sujeitoque se pensa, a ameaça constante da morte e do abandono, a possibilidade de romper, por ummomento que seja, a barreira invisível que o separa do outro e das forças estranhamentesimilares que parecem atuar na aparente desordem do universo. (1996: 11)

O interesse por esse período histórico se deve ao fato de essa época encerrar o"nascimento" daquilo que modernamente chamamos de amor romântico1, O amorcortês, ou amor delicado, extrato da lírica provençal que surge ao sul da França(Provença) ainda no século XI, assume particular importância em nosso estudopois, como afirma o historiador Jacques Le Goff, "a descoberta do amor humano(....) é um dos grandes acontecimentos do século XII" (1987: 56).

A poesia provençal, ou trovadoresca, pode ser entendida como uma codificaçãode comportamentos sociais, uma elaboração da erótica provençal sistematizadapelos trovadores que marca indelevelmente a concepção do Ocidente modernosobre o amor. Nesse sentido, a lírica trovadoresca exerceu grande influência sobrea matéria ficcional na Demanda e no Amadis de Gaula, posto que um movimentocultural e literário de tal âmbito não poderia deixar ilesas formas narrativas comoos populares romances de cavalaria. O que se pretende observar, neste estudo, nãoé tanto o desenvolvimento do amor cortês, e sim sua popularização, efetuada aolongo dos séculos XIII, XIV e XV. Dado que é extremamente problemático apontara permanência de uma erótica cortês no decorrer dos séculos, talvez seja maispertinente falar em influências; ou seja, como um fenômeno literário e cultural

1 Con forme aponta Rou gemont (1988 ) , em referê nc ia à t rág i ca h is tór ia de Abe lardo e Helo isa,amb ientad a no i n íc io do séc ulo X I I , cu j os des dobramentos podem ser en tendid os como "mar casde um combate e nt re o pensa mento escolá s t ico e a re tór ica do amor cor tês " ( Lázaro , 1996 : 92) .

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pode contribuir para a disseminação de uma erótica baseada no controle (o controlede si, ou pedagogia do eu) e na singularização do indivíduo que irá evoluirprogressivamente para o que chamaremos modernamente de amor-romântico.Parecerá talvez impróprio falar em controle quando se fala em amor-paixão, ouamor-romântico, mas esta característica do amor delicado não está tão distante dasnossas modernas experiências passionais1; o controle se relaciona intimamente coma noção de individualidade, tão cara ao amor: o amor é um movimento de dentropara fora, ou seja, parte de um núcleo duro e coeso – o cogito cartesiano – paraalcançar o “outro” do outro.

O périplo do herói enamorado inclui provas e combates que possuem caráterpedagógico: é preciso descobrir-se na mesma medida em que é preciso revelar-se,e descobrir-se é, antes de mais nada, civilizar-se, isto é, opor à natureza a cultura.De tudo isto restou-nos, modernamente, o mito de que o amor revela-nos a nósmesmos: na medida em que nos põe à prova somos mais fortes e capazes de seraquilo que devemos ser, de amar – não obstante infelicidades, dores, traições eabandono – com amor imortal, pois o amor nos dá porção recobrada de “Eu”...

Desenvolvimento

Conforme aponta André Lázaro (1996), tanto a lírica provençal quanto osromances de cavalaria, inclusive os pertencentes ao ciclo arturiano, se utilizam damística amorosa para fomentar um combate contra o desejo, um jogo requintado deauto controle com objetivos civilizatórios. A força do desejo dotava o corpo doamante-guerreiro de virtudes mágicas, o domínio de si investia-o de poderesmísticos. Um episódio exemplar é a queda de Erec próximo à "Fonte da Virgem"(A Demanda do Santo Graal), onde tombariam todos os cavaleiros "tocados pelaluxúria" (p.101). Neste relato, o poder sobre si, a força e o vigor, estão emproporção à pureza do corpo, cujo paradigma é Galaaz, o cavaleiro perfeito.

O ciclo arturiano permite que reconheçam traços de antigas crenças nos poderes mágicos einiciáticos do amor. Algumas provas a que são submetidos os cavaleiros consistem ematravessar o vale da morte, enfrentar seres do outro mundo e resistir às terríveis tentações dodesejo quando belas donzelas lhes oferecem o leito após dias de duras lutas e caminhadas.Castelos habitados por mulheres encantadas aguardam o herói que, em suas aventuras, devedar prova de sua capacidade de conter-se. Esta contenção significa domar em si mesmo aforça da natureza rebelada: a alegoria do combate com o leão costuma pontuar os momentosdesta vitória integradora dos diferentes níveis da alma humana, tal como o compreendia atradição céltica da qual o ciclo arturiano é tributário. (Lázaro, 1996:81)

No século XIII alguns historiadores apontam um renascimento, dada arelevância das realizações artísticas nesse período. A riqueza produzida devido àampliação da atividade produtiva, do uso da moeda, da expansão das fronteirasagrícolas e do significativo aumento demográfico se traduz no crescimento edesenvolvimento dos burgos (cidades), na formação das primeiras universidades,no maior cosmopolistismo dos intelectuais, e na ascensão da burguesia, que

1 Para comprovar isto basta lembrar da presença recorrente da idealização feminina e da vassalagem amorosa emcompostitores da música popular brasileira, como por exemplo a canção "Amor delicado", de Caetano Velozo.

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adotava as formas culturais da aristocracia como um método de confundir-se com agente bem-nascida (Lázaro, 1996:82). Lênia Mongelli (1992: 63) aindamencionará, como influentes para o contexto histórico dos séculos XII e XIII, osseguintes fatores sócio-culturais:

- a influência do folclore céltico-bretão, possibilitado pela conquista normanda deGuilherme, o Conquistador (1066);

- o intenso movimento das Cruzadas, divulgando o ideal de Cavaleiro de Cristo, ouseja, unindo os valores guerreiros a uma mística cristã;

- a ascensão da Cavalaria, que se transformou, a partir de Carlos Magno (séculoIX), em uma confraria religiosa, exigindo de seus membros a obediência a ritossagrados; cite-se como exemplo a confraria dos Cavaleiros Templários, instituídaem 1118 e extinta em 1314;

- o surgimento da lírica trovadoresca que "inventa" uma nova forma de lirismo; oprimeiro trovador de que se tem conhecimento é Guilherme IX, duque daAquitânia (século XI).

A novela de cavalaria A Demanda do Santo Graal portuguesa filia-se ao que seconvencionou denominar "Matéria da Bretanha", que é composta por obrasficcionais em torno da figura do lendário rei Artur. O texto existente é a traduçãode um original francês desaparecido, situado aproximadamente nas últimas décadasdo século XIII, fazendo parte da segunda prosificação do ciclo arturiano,conhecida por Post-Vulgata ou ciclo do pseudo Boron. Da tradução portuguesachegou-nos um manuscrito do século XV, entre 1400-1438. (Mongelli, 1992: 55) Oexemplar analisado no presente estudo é uma tradução em português moderno, porHeitor Megale, de alguns episódios extraídos da versão portuguesa medieval,iniciando-se no fragmento de número 107.

Já a obra Amadis de Gaula, é de origem controversa, existindo uma querelaacirrada entre portugueses e espanhóis, cada grupo reivindicando para seu país aorigem da obra, não existindo até o momento certeza sobre a língua e a autoria doAmadis primitivo. Não é de nosso interesse, no presente estudo, entrar nessasextensas discussões; o que se tem como certo é que a edição mais antiga existenteé de língua espanhola e de autoria de Garci Rodriguez de Montalvo, no século XVI(1508). Não obstante, é de se lembrar que existem testemunhos nos séculos XIV eXV de edições mais antigas do Amadis, o que permite situar essa obra, em sentidoamplo, nos fins do período medieval e início da Idade Moderna.

Em resumo, a versão analisada de A Demanda do Santo Graal foi elaborada nasúltimas décadas do século XIII; o Amadis de Gaula que se tem em mãos é umasuposta restauração de um texto português encoberto em um texto castelhano, e aele anterior, realizada por Afonso Lopes Vieira na década de vinte do séculopassado. Entretanto, esta restauração é realizada em cima do texto castelhano doinício do século XVI, que já era a versão de textos mais antigos. É possível então,simplificando um pouco essas questões de data que são por demais complexas parao âmbito do trabalho que nos propomos a realizar, entender que a primeira obra (aDemanda portuguesa) se insere no século XIII e que a segunda (o Amadis de quetemos conhecimento) já no início do século XVI, havendo então entre ambas adiferença significativa de quase três séculos.

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As duas obras a serem analisadas se situam num período crítico entre o fim dasociedade medieval e o nascimento da modernidade, podendo ser lidas comodocumentos das relações complexas e paradoxais entre indivíduo e sociedade; emambas as obras, o amor assume progressivamente um valor afirmativo para asingularização e o desenho de uma geografia interior que instaura um novo lugar(ou não lugar) para a experiência amorosa na ordem social. Conforme tese deAndré Lázaro, a idéia moderna do amor romântico aparece como fundamento daorganização familiar e, mesmo, como "uma ampliação de nossos limites até suadissolução numa ordem onde o tempo e o espaço adquirem novo valor " (Lázaro,1996: 23). Essa idéia, que instaura um espaço dissociado do social, isto é, uma u-topia onde amante e amado afirmam-se como singularidades absolutas na místicaamorosa, estaria indelevelmente associada ao Renascimento e à elaboração dasubjetividade do Eu em contraponto ao social:

O mito do amor como um movimento da ordem do sagrado, que transcende a vida social paracriar um espaço próprio e íntimo ao sujeito, este mito está formulado claramente noimaginário do Renascimento, embora não encontre aí sua plena legitimidade. (1996: 129)

No período medieval, o amor que deveria existir entre os membros do casal,segundo a Igreja, era o amor ao próximo, a caridade, sem o desejo carnal. Noséculo XII São Jerônimo dizia que "aquele que ama a sua mulher com um amordemasiado ardente é um adúltero" (apud Casey, 1992: 121). A união parasatisfação do dever conjugal era considerada pecaminosa, pois visava apenas aocarnal, ao desejo. O ideal seria a união numa intenção procriadora (superior), quemultiplicaria os filhos de Deus. Clérigos como Huguccio condenavam o prazersentido até mesmo nas relações que visavam a procriação. Relações sexuaisinadequadas eram julgadas antinaturais, considerando-se como "inadequadas"aquelas feitas em posições sexuais que não favorecem a chegada do esperma até oóvulo, como por exemplo a mulher em posição vertical. A sodomia também eraterminantemente proibida pela Igreja. (Casey, 1992: 121)

O casamento, portanto, não deveria ser o lugar para o amor carnal ou a paixão.Na realidade, o casamento era uma instituição que visava a estabilidade dasociedade, servindo apenas para a reprodução e união de riquezas, dandocontinuidade à estrutura feudal. A partir do momento em que o amor aparece nocasamento, esses pilares (reprodução e união de riquezas) passam a um segundoplano, ameaçando toda essa estrutura. Quando um casamento acontecesimplesmente por amor, não há mais interesse a priori em reprodução ou união deriquezas.

O século XII é marcado por uma grande mudança em vários aspectos da IdadeMédia; a partir daí observa-se um movimento intrincado e complexo deaproximação entre casamento e amor, que se desenvolverá através do períodomedieval até sua plena ascensão na Idade Moderna. Já se pode observar mudançasnas concepções sobre o amor no casamento com o monge Bernardo de Clairvaux:"o amor não requer nenhum outro motivo, além de si mesmo, e não busca frutos.Seu fruto é o gozo de si próprio" (apud Casey, 1992: 121). Este movimento delegitimação do amor, elevando-o a uma "terceira margem, onde é possível viverum 'eu' humano, puramente humano" (Lázaro, 1996:139), ou seja, de um ou-topos

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de autenticidade, longe da máscara e da obrigação social, possui no fenômeno doamor cortês a chave para seu pleno entendimento. Falando sobre a significância doamor cortês para a inserção social da mulher neste período, George Duby afirmaque esse

Era um jogo de homens e, entre todos os textos que convidam a ele, há poucos que não sejammarcados por traços misóginos. A mulher é um engodo, análogo a esses manequins contra osquais o novo cavaleiro se lançava, nas demonstrações esportivas que se seguiam àscerimônias de sagração. Não era a dama convidada a enfeitar-se, a disfarçar e a revelar osseus atrativos, a recusar-se por longo tempo, a só se dar parcimoniosamente, por concessõesprogressivas, a fim de que, nos prolongamentos da tentação e do perigo, o jovem aprendesse adominar-se, a controlar seu próprio corpo? (1989:61)

Não se deve entender, conforme Duby nos alerta, que a lírica cortês tenharealmente alçado a mulher a uma posição social mais elevada. Ela era, na verdade,um chamariz nesse jogo civilizatório que era a cortesia. As relações são maiscomplexas do que as de causa-e-efeito: o movimento de elevação do amor aelemento essencial à instituição do casamento, realizado pelo pensamento burguêsromântico e presente ainda no imaginário moderno, que busca conciliar, pelomenos nos romances hollywoodianos e nas telenovelas brasileiras, a paixãoarrebatada à rotina do casamento, foi obra de longos e intrincados eventos sócio-culturais. Duby, por exemplo, vai relacionar a invenção do "amor delicado" a umaforma de organização social da nobreza, dos séculos X, XI e XII, que limitava onúmero de casamentos dos rapazes, sendo esta uma estratégia de concentração econservação de riqueza; assim, apenas o primogênito possuía direitos depropriedade, as mulheres eram excluídas da partilha e recebiam dotes quandocasadas, donde a regra era casar todas as filhas e reforçar os obstáculos aocasamento dos filhos, exceto do mais velho. Isto provocava um crescimento dapopulação de jovens celibatários

... expulsos da casa paterna, correndo atrás das prostitutas, sonhando nas diversas etapas desua aventura errante em encontrar donzelas que, como dizem eles, os apalpem, mas primeiroem busca, ansiosa e quase sempre vã, de um estabelecimento que os transforme finalmente emseniores (proprietários), em busca de uma boa herdeira, de uma casa que os acolha e onde,como se diz ainda em certos locais no interior francês, eles possam "ser genros". (Duby,1989: 23)

As severas restrições ao casamento dos rapazes multiplicavam, no meioaristocrático, os homens não casados sedentos de uma esposa e do que elasignificava: a possibilidade de ter sua própria casa e bens – tornando-os invejososdos “seniores”. È de se recordar que os acordos de casamento eram realizados sema consideração dos sentimentos dos esposos, ou mesmo seu consentimento, o quefazia com que essas uniões não passassem de uma ligação fria, quase comercial. Oamor cortês funcionava, segundo Duby, como um código que complementava odireito matrimonial, sendo privilégio exclusivo das pessoas da corte, portanto docavaleiro; o vilão estava excluído deste jogo de homens:

No próprio seio da cavalaria, o ritual cooperava de outro modo, complementar, para amanutenção da ordem: ele ajudava a controlar parte do tumulto, a domesticar a "juventude".

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O jogo do amor, em primeiro lugar, foi educação da medida. Medida é uma das palavraschaves de seu vocabulário específico. Convidando a reprimir os impulsos, ela era em si umfator de calma, de apaziguamento. Mas esse jogo, que era uma escola, trazia consigo tambémo concurso. Tratava-se, superando o concorrente, de ganhar o prêmio do jogo, a dama. E osenior, o chefe da fortaleza, aceitava colocar sua esposa no centro da competição, em situaçãoilusória, lúdica, de preeminência e de poder. Até certo ponto: o código projetava a esperançade conquista como uma miragem nos limites imprecisos de um horizonte artificial. (1989: 64)

Após esta análise inicial, estaremos concentrando nossa reflexão sobre o amor eo erotismo medieval no estudo das obras literárias anteriormente mencionadas.Inicialmente faremos uma abordagem geral da temática e do estilo de cada umadelas, como se segue abaixo.

A Demanda do Santo Graal

Em linhas amplas, o enredo da Demanda portuguesa é o seguinte: o Rei Artur eseus 150 cavaleiros estão reunidos à volta da Távola Redonda para festejar oPentecostes – festa cristã que celebra a descida do Espírito Santo aos cristãos – e àespera de algum acontecimento maravilhoso, extraordinário. Nesse ínterim, chegauma donzela à procura de Lancelot, para que este a acompanhe até a floresta ondeserá armado Galaaz, seu filho bastardo. Ao retornarem para Camaalot, inúmerossinais demonstram que Galaaz é o cavaleiro esperado e eleito para dar cabo àsaventuras do reino de Logres: ele retira a espada fincada no mármore que boiavadescendo o riacho – dela se dizia que só seria retirada pelo melhor cavaleiro domundo, façanha que havia sido tentada sem sucesso por Lancelot, Galvão e outroscavaleiros; a ocupação, por Galaaz, do acento perigoso na Távola Redonda, noqual apenas poderia se sentar o cavaleiro perfeito; as palavras do ermitão queacompanhava Galaaz: "Rei Artur, eu trago o cavaleiro desejado, aquele que vem daalta linhagem de Davi e de José de Arimatéia, pelo qual as maravilhas desta terra edas outras terão fim."

A seguir, chega o Graal, satisfazendo a todos com iguarias especiais eenchendo-os da graça do Espírito Santo. Quando o Graal vai embora, os cavaleirossentem o desejo de trazê-lo de volta a Logres, jurando a demanda. As aventuras seiniciam, e a maior parte dos cavaleiros ficará pelo caminho, sem conseguirencontrar o Graal, dizimados pela Besta Ladradora ou pela fúria de Galvam;apenas Boorz, Persival e Galaaz chegarão a Corberic, onde se encontra o Graal.Entretanto, Galaaz é o único que contemplará o santo Vaso; Persival morre e éenterrado numa ermida e Boorz retorna a Logres para dar as notícias ao Rei Artur,fazendo-se depois um ermitão, bem como Lancelot e Heitor. Sem o Graal, o reinode Logres é destruído por seus inimigos, e o Rei Artur é traído pelo Rei Mars, seusobrinho. Ferido, Artur faz com que seja atirada a um lago Excalibur, a espadasagrada dos druidas, e desaparece levado pela fada Morgana em uma barca. Emseguida, o escudeiro do Rei, Gilfrete, irá a uma ermida próxima onde um ermitãolhe diz que Artur foi enterrado, mas o túmulo está vazio, contendo apenas o elmodo Rei. O mistério se aprofunda, então, pela impossibilidade de se saber doverdadeiro destino de Artur.

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A seleção feita por Heitor Megale não contém todos esses episódios; e é de semencionar também a fragmentação deste texto, com personagens que entram esaem sem conexão com a linearidade da narrativa, como por exemplo oprotagonista Galaaz, que desaparecerá no fragmento 676 sem reaparecer e sem quesejam dadas explicações de seu destino. Este é um elemento complicante para aleitura, em especial por quem não tenha prévio conhecimento do enredo.

Amadis de Gaula

O Amadis de Gaula apresenta inúmeras semelhanças com a Demanda do SantoGraal, cabendo ressaltar: a geografia em que se passam as aventuras, de vez que,conforme observa Carolina Michaelis de Vasconcellos, "Gaula" corresponde aGales, não a Gália, localizando-se portanto na Grã-Bretanha; o elogio ao melhorcavaleiro do mundo (na Demanda este é Galaaz e no Amadis é ele próprio); ossinais inegáveis da eleição do cavaleiro perfeito; a valorização das virtudes dacoragem, força, beleza e lealdade; a determinação dos heróis, decididos que estão ase fazerem heróis; a valorização da aventura pela própria aventura; o misticismofantástico que mistura elementos cristãos à presença de monstros, gigantes, fadas,magos, referências à cultura grega, etc; o enredo fragmentado, formado peloentrelaçamento de aventuras concomitantes; o estilo oral, conveniente à prática deleitura em voz alta; a recorrência de sinais sobrenaturais (sonhos, visões, vozesmisteriosas, objetos mágicos que revelam enigmas aos eleitos ou que entãorevelam verdades sobre eles – veja-se a esse propósito a espada do pai, que servepara que este reconheça em Amadis o filho cuja existência havia sido anunciadaem sonho enigmático, lembrando a espada fincada no mármore e retirada porGalaaz, como prova de que era o cavaleiro eleito. (Maleval,1992)

O enredo de Amadis se assemelha às narrativas de personagens bíblicos: i)temosprimeiro as provas de sua eleição, isto é, de que ele era o cavaleiro escolhido – OPerfeito Amador –, muito semelhante à narrativa de Moisés1; ii) a singularidade deAmadis é confirmada, também, pelo fato de ter como pais um nobre casal quehavia dado provas de que um verdadeiro sentimento os unia, tendo enfrentadodiversas provas até a institucionalização da relação pelo casamento; iii) em seguidaAmadis passa um tempo na corte de Gandales e depois na corte de el-reiLanguines, onde cresce e espanta a todos com sua formusura, força e coragem;iv)Amadis, ao chegar à puberdade, conhece Oriana, a Sem Par, por ela se apaixona,e, sentindo-se indigno dela por não saber quem são seus pais e nem que é desangue nobre, decide ser cavaleiro, “para ganhar honra e preço como aquele quenão sabe de onde vem” (AG: 61); v) o restante da obra se divide na narrativa deaventuras que vão confirmando a superioridade de Amadis em todos os aspectos(força, beleza, lealdade, honra, fé e devoção amorosa), na descoberta de sua

1 Amadis é, como o patriarca bíblico, atirado às águas dentro de uma arca que continha um pergaminho com as seguintespalavras: "Este é Amadis sem tempo, filho de Rei"; além do pergaminho a arca continha um anel dado, por D. Perion, aElisena, além de sua espada. Isto ocorre por que Elisena, sua mãe, escondia sua gravidez por medo do que poderia lheacontecer e a seu filho, caso se descobrisse seus amores secretos com D. Perion, que, pelo tempo do nascimento deAmadis, estava ausente.

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descendência nobre e na superação, depois de inúmeras peripécias, dos empecilhosa sua união com Oriana.

Quanto a esse último núcleo temático, é digno de nota como esta novela decavalaria valoriza os encontros e desencontros amorosos de Amadis e Oriana: emtodos os episódios, mesmo nas lutas mais cruentas, Amadis encontra sua“inspiração” no amor que sente por Oriana; veja-se o exemplo abaixo, em queAmadis luta contra um poderoso adversário num combate assistido pela corte, mas,ao avistar Oriana, após muitos anos sem se encontrarem, ele titubeia no duelo:

Mas, ah! Senhores, assim como Oriana o ia perdendo, Oriana o salvou: porque Amadislembrou-se que a fraqueza poderia ser julgada covardia. Então, como acordando de um sonho,sentiu que lhe afluía ao sangue uma força invencível. E, crescendo para Dardan, arrancou-lheo elmo de um golpe e o Soberbo rolou ao chão! (AG, 1983: 77)

Não obstante as semelhanças, salta aos olhos que Amadis é um herói diverso doscavaleiros da Demanda, e sua singularidade reside exatamente na “modernidade”daquilo que o move: Amadis é movido pela paixão, um cavaleiro-poeta exemplar,cuja epítome primeira é Amadis, o bom amador. Michaelis, em prefácio da versãoportuguesa de Afonso Lopes Vieira, afirma que

... foi o idealismo amoroso de Amadis que impressionou os Quinhentistas. Foi a admirávelcombinação que há nele de uma audácia e heroicidade a toda prova, em perigos e guerras, e,na paz, de mesura discreta, suave melancolia e sentimentalidade meiga, qualidades queestavam em contraste abençoado com a bárbara rudeza dos costumes, documentada emnumerosas façanhas registradas nos Livros de Linhagem. (AG, 1983: 14)

O próprio narrador confirmará que as aventuras e maravilhas vividas porAmadis são motivadas pelo amor de uma mulher, Oriana:

... é que toda história que se vos conta, só por amor dela se pode contar. E entre todas asBem-Amadas nenhuma foi mais bem-amada. Nem Genevra, a quem tanto amou Lançarote doLago; nem Brancaflor, a quem tanto quis Flores, nem mesmo a loira Iseu, por quem morreuTristan de Leonis, foram mais adoradas que Oriana. (AG, 1983: 59)

Análise comparativa de A Demanda do Santo Graal e Amadis de Gaula

A modernidade da novela de cavalaria Amadis encontra-se justamente em ser umaglorificação do amor romântico que, ainda que ilegítimo perante as leis doshomens, é protegido pelas bênçãos divinas, conforme se vê na assertiva deDarioleta, acerca do romance de Elisena e D. Perion, futuros pais de Amadis:“Ficai senhora, que ainda que vos defendestes de muitos, e ele de muitas tambémse defendeu, mandou Deus que vós não defendêsseis um dos outro.” (AG, 1983:40)

A nossa hipótese é que as duas obras analisadas podem oferecer uma leitura dopercurso que o amor romântico efetuou entre a sua exclusão completa do

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casamento medieval, com conseqüente afastamento das relações legítimas1, até suaeleição como princípio fundamentador das relações entre homem-mulher e basepara a instituição familiar. Parece que a obra Amadis já apresenta uma mudançasignificativa na percepção ideológica do amor e do erotismo, e é interessante notar,também, como essa novela de cavalaria foi popular no Renascimento: recebeu maisde vinte impressões antes de 1588; as aventuras de Amadis foram continuadas poroutros autores, chegando a constar de doze livros, cada qual com um título e heróiespecífico, e o livro original foi traduzido para as principais línguas vivas(inclusive para o hebraico, em 1540). Assim, “esse Amadis ficou sendo um doslivros prediletos de fantasia, tanto em cortes, palácios e solares como em casasburguesas, hospedarias e celas de frades e freiras, lido e relido pelos reis, fidalgos,letrados, artistas e santos.” (Carolina de Michaelis, In: AG, 1983: 12).

Portanto, a popularidade deste herói, atestada pelo depoimento de Dom Quixote,a afirmar que esta era a única obra a merecer ser salva da fogueira (Michaelis, AG,1983: 12), parece indicar que os ideais do amor delicado já haviam saído docírculo restrito das cortes, alcançando paulatinamente os vilões, e tornando-se,como se vê hoje, a grande força motriz das artes, populares e elitistas: o amorromântico tornou-se, segundo André Lázaro (1996), o fundamento da modernasociedade de consumo (o amor “vende” qualquer coisa, veja-se os anúncios depropaganda), ele próprio um objeto de consumo que promete conferir a seu donouma experiência singular, em oposição à massificação que caracteriza suas outrasvivências sociais, comercializando signos utilizados nas “formas” de amaraprendidas com as estrelas da TV.

Um elemento importante da Demanda que pode nos auxiliar a traçar um paraleloentre as duas obras, quanto à forma em que ambas tratam das relações amorosas, éoferecido pela condição de ingresso na busca do Graal: o cavaleiro não poderialevar consigo mulher, sob pena de cometer pecado mortal. Conforme apontaMongelli (1992), nesta época conturbada e cindida pelos igualmente sedutoresapelos da Igreja/Cavalaria e da Prevaricação, “o erotismo dos trovadores écombatido pela multiplicação das hagiografias sobre a vida dos santos e mártires,exemplos ascéticos contra a tentação do pecado. Divididos entre rezar eprevaricar...” aos cavaleiros não era permitida a vivência da sexualidade, mesmoaquela legitimada pela Igreja, isto é, dentro do casamento (Mongelli, 1992: 76). Aocontrário de Amadis, cuja maior virtude é ser o Bom Amador, Galaaz, é ocavaleiro perfeito da Demanda, “o puro dos puros porque nunca pecou contra acastidade, a única falha que parece verdadeiramente impedir o acesso ao Graal, amenos que a purgação seja longa e sincera, como a de Boorz.” (ibidem:72)

Amadis possui todas as virtudes necessárias ao cavaleiro, além daquelasvirtudes que em francês arcaico são designadas com os termos “largesse”(generosidade) e “courtoisie” (cortesia), mas não encontram uma correspondênciaexata e satisfatória no francês moderno.

O primeiro, largesse, significa ao mesmo tempo a liberalidade, a generosidade ea prodigalidade, supondo a riqueza. Seu oposto é a avareza e a busca do lucro, quequalificam os mercadores e burgueses das comunas, constantemente

1 Conforme anotado por Duby (1989: 58), a sentença da Igreja definia a relação conjugal em termos de cordialidade eamizade: “O amor do marido por sua mulher se chama estima, o da mulher por seu marido chama-se reverência” .

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ridicularizados por Chrétien de Troyes e seus imitadores. Numa sociedade em quea maior parte dos cavaleiros vive mesquinhamente do que lhes dão ou concedemseus protetores, é normal que a literatura exalte as oferendas, as despesas, odesperdício e a manifestação do luxo.(http://www.terravista.pt/Enseada/2674/Medieval_cavalaria.htm)

Já o termo cortesia, courtoisie, é ainda mais difícil de definir, pois compreendetodas as qualidades acima, além da beleza física, e ainda: a elegância e o desejo deagradar; a doçura, o frescor da alma, a delicadeza de coração e de maneiras; ohumor, a inteligência, uma polidez requintada, e, para dizer claramente, um certoesnobismo. Pressupõe também a juventude, a liberdade de todo apego para com avida, a disponibilidade para a guerra e os prazeres, a aventura e a ociosidade. Seuoposto é a “vilania”, defeito próprio dos vilões, dos rústicos, das pessoasmalnascidas e sobretudo mal-educadas. Para ser cortês, a nobreza de berço nãobasta; os dons naturais devem ser refinados por uma educação especial ealimentada por práticas cotidianas no palácio de um grande senhor. O modelo é acorte de Artur. É lá que encontramos as damas mais belas, os cavaleiros maisvalentes, as maneiras mais delicadas.(http://www.terravista.pt/Enseada/2674/Medieval_cavalaria.htm)

Alguns episódios são extremamente importantes para entender essa misoginiaque perpassa toda a Demanda. A primeira maravilha1 da Demanda analisadachama-se Como Galaaz e Boorz chegaram ao castelo de Brut e a filha do reienamorou-se de Galaaz por louco amor. Como o título do episódio já antecipa, afilha do rei Brut se apaixona perdidamente por Galaaz. Resta saber se a loucuradeste amor se deve aos acontecimentos subsequentes, isto é, ao suicídio da donzelaapós ser recusada por Galaaz, comprometendo a sua inocência diante da mortedela, ou, então, ao próprio amor por aquele que, não obstante toda sua formosura,havia jurado permanecer casto até a morte.

A própria Besta Ladradora, que os cavaleiros irão perseguir tenazmente durantetoda a demanda, é um exemplum doutrinador dos perigos da sensualidade, armademoníaca a tentar os mais frágeis, em especial as mulheres. Conforme Furtado(2000: 66) “a imagem híbrida da Besta Ladradora tem a função de um emblema,objeto que comumente acompanha e serve de insígnia a locuções proverbiais.” ABesta é fruto da união entre uma nobre donzela e o próprio Diabo, sendo provacabal da traição que a donzela praticou contra o próprio irmão, levando-o à morteinjusta. Nesse episódio o prazer sexual aparecerá intrinsecamente ligado à luxúriae à infâmia:

Deste modo entregou seu amor ao demo, e ele deitou-se com ela, como o pai de Merlim comsua mãe. E quando deitou com ela teve tão grande prazer que esqueceu o amor de seu irmãotão mortalmente que mais não poderia. Um dia estava diante de uma fonte com seu amigo, odemo, e começou a pensar muito. E ele lhe disse: –Que pensais? Pensais como podereis matarvosso irmão? – Por Deus – disse ela – isso. E ora bem vejo que sois o homem mais sisudo do

1 Termo freqüentemente usado na Demanda para designar algum evento que causasse espanto, admiração ou pasmo.Segundo Jacques Le Goff: "Com o termo mirabilia estamos perante uma raiz mir (miror, mirari) que comporta algo de visivo.Trata-se de um olhar. Os mirabilia não são naturalmente apenas coisas que o homem pode admirar com os olhos, coisasperante as quais se arregalem os olhos; originalmente há, porém, esta referência ao olho que me parece importante, porquetodo um imaginário pode organizar-se à volta desta ligação a um sentido, o da vista, e em torno de uma série de imagens emetáforas que são metáforas visivas.” (1985:20) As maravilhas são, portanto, exemplos para serem vistos.

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mundo, e rogo-vos por aquele amor que tendes por mim, que me ensineis como o possa matar,porque não há nada no mundo com que tanto me agradasse. (DSG, 1996: 126)

Os exemplos se multiplicam: a mulher da tenda, que, apesar de inocente,provoca a morte do marido e de parentes dele (pai e dois irmãos); a bela grega natenda, que na verdade era o demônio disfarçado para tentar Persival; o episódio daFonte da Virgem, lugar onde todo aquele que não fosse casto cairia sem forças atéa morte, cujas origens remontam também a um amor incestuoso entre irmão e irmã;a mulher da capela, que novamente retoma o topos do amor infeliz aliado aoassassinato... Cada fragmento narrativo contém algum evento onde se misturammisoginia e educação pelo terror, conforme Mongelli (1992):

Embora na Besta Ladradora se concentre a grande metáfora das transgressões a que conduz ogosto pecaminoso da “fornicacion”, a maioria quase dos episódios vividos pelos demaiscavaleiros acaba desembocando, de maneia mais ou menos nítida, nos perigos a que se expõeo homem apaixonado. Tanto que o conflito central da Demanda culmina por ser entre ojuramento feito e a incapacidade de cumpri-lo, principalmente no que tange à mulher. Vítimasde sua humanidade imperfeita e ansiosos por um Graal mirífico que lhes dará a redenção, osvassalos de Artur empreenderam “agonicamente” a Santa Busca como se corressem atrás deum objeto sabidamente impossível de alcançar. (1992: 72)

Um episódio a meu ver altamente significativo é a morte da rainha Genevra,cuja história de amor com Lancelot, ainda que adulterina e ferindo os ideais dehonra e lealdade da cavalaria – afinal, Lancelot devia lealdade1 a Artur – poderiaser citada como um exemplo único da menção de uma relação amorosa, naDemanda. Ainda assim, é interessante notar que no episódio mencionado, o de suamorte, os signos amorosos não se cumprem corretamente e o exemplum que se temé de um desencontro implícito na paixão amorosa. Genevra adoece gravemente porpensar que Lancelot está morto, e, estando em seus últimos instantes, pede à criadaque após sua morte retire seu coração e leve-o para Lancelot, um souvenir macabroa lembrar a grandeza desse amor. Entretanto, é curioso observar que a criada nãocumprirá sua missão porque, como conta o conto, “a donzela cumpriu sua ordem,mas não achou Lancelot e por isso não deu cabo a tudo que a rainha mandara.”(DSG, 1996: 152)

Considerações finais

A paixão amorosa, como se percebe pelos episódios explicitados, é fonte deviolência, traição, desilusão, desencontro e apostasia. Na Demanda do SantoGraal, o amor-romântico ainda não terá encontrado o seu espaço utópico eindividual em oposição à conveniência social e às relações públicas estereotipadasdos casamentos arranjados. Tal movimento parece se adiantar no Amadis de Gaula, 1 Os dez mandamentos do cavaleiro são os seguintes: I- Acreditarás em tudo o que a Igreja ensina e observarás todos osseus mandamentos; II- Protegerás a Igreja; III- Defenderás todos os fracos; IV- Amarás o país onde nasceste; V- Jamaisretrocederás ante o inimigo;VI- Farás guerra aos infiéis até exterminá-los;VII- Cumprirás com teus deveres feudais, se estesnão forem contrários à lei de Deus;VIII- Nunca mentirás e serás fiel à palavra empenhada; IX- Serás liberal e generosocom todos; X- Serás o defensor do direito e do bem, contra a injustiça e contra o mal.http://www.terravista.pt/Enseada/2674/Medieval_cavalaria.htm .

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onde teremos a apologia do Bom Amador, como fica explícito na profecia sobreele:

Digo-te que aquele que achaste no mar será a flor da cavalaria: fará tremer os fortes,humilhará os soberbos, defenderá os agravados, e tudo obrará com honra. E será também ocavaleiro que com mais bela lealdade há de manter seu amor. (AG, 1983: 51)

Assim, Amadis é glorificado por diferentes aspectos que já tínhamos observadonos cavaleiros da Demanda; contudo a característica que o distingue dos outros éjustamente a capacidade de unir força e fraqueza: é absolutamente notável onúmero de vezes em que Amadis chora pelo amor de Oriana, causando espanto atémesmo em seus companheiros:

Vendo desfalecido o mais forte cavaleiro, a quem apenas derrubava o cuidado da bem-amada,considerava o escudeiro com pranto enternecido aquele maravilhoso amor do seu senhor eamigo. – Este que vai desacordado – pensava Dardalin – aquele é que venceu Dardan oSoberbo, desbaratou Abies de Irlanda, converteu Madarque o gigante, matou o demônioEndriago. (AG, 1983: 151)

Tal como já havia dito o apóstolo Paulo, sobre o sofrimento por amor a Cristo,Amadis poderia responder a possíveis interlocutores: “Pois, quando sou fraco é quesou forte” (II Carta aos Coríntios, 12:10). O amor torna-se, no Amadis de Gaula,um método de subjetivação e aperfeiçoamento; a fraqueza torna-se força em umasignificativa inversão de significantes culturais. Ao contrário do que aconteceucom Erec, à beira da Fonte da Virgem, a realização do amor e do erotismo nãotorna Amadis mais frágil, pois sua aparente fraqueza é transformada em forçacombativa e guerreira; a fraqueza reside em não viver a paixão, em estar longe doamado, e não na vivência do amor. O amor é, no Perfeito Amador, plenamentelegitimado.

Referências bibliográficas

CASEY, James. A história da família. São Paulo : Ática, 1992.DUBY, Georges. Idade Média, idade dos homens: do amor e outros ensaios. São

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Ateliê Editorial, 1996.MONGELLI, Lênia Márcia de Medeiros. A novela de cavalaria: 'A Demanda do

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ROUGEMONT, Denis de. O amor e o ocidente. Rio de Janeiro: Guanabara, 1988.VIEIRA, Afonso Lopes. Amadis de Gaula. Lisboa: Ulmeiro Livraria e Distribuidora. 1983FERNANDES, Raul César Gouveia. Reflexões sobre o estudo da Idade Média.

http://www.terravista.pt/Enseada/2674/Medieval_cavalaria.htm Acessado em 23de junho de 2003.

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As Vozes Femininas em Perceval

Cristina Almeida

“Plus profond est le coeur des femmes quela plus profonde mer du monde”

Resumo: Este estudo visa abordar a identidade feminina no romance arturiano Perceval,do século XII. Para o desenvolvimento do trabalho foram escolhidas quatro figurasfemininas que fizeram parte da vida do cavaleiro, visando demonstrar como elas foramimportantes para preencher por completo a sua armadura. Baseada numa leitura feminista,esta avaliação terá como ilustração as críticas literárias, a questão do gênero, a posição damulher na literatura e na sociedade medieval.

1- Introdução

Deve-se ao poeta francês Chrétien de Troyes um dos trabalhos literários mais antigos econhecidos até hoje sobre a lenda do Graal. O cavaleiro em questão é Perceval, um jovemimaturo que se joga de corpo e alma nas aventuras cavaleirescas que permeavam ashistórias do ciclo arturiano.

Como o objetivo deste estudo é sublinhar as influências femininas na vida destecavaleiro, resolvi considerar a teoria dos arquétipos femininos de Jung por entender que amoderna psicologia reconhece o quanto este estudo também é fundamentalmenteimportante na atualidade, apesar de reconhecer que a mulher na sociedade medievaldesempenhava um papel estritamente social, não sendo levado em consideração nenhumtraço psicológico capaz de alterar sua estrutura de comportamento. Achei interessanteanalisar por este viés já que numerosos paralelos mitológicos e histórico-religiososmostram que não se trata apenas de algo individualmente condicionado, mas de situações eatitudes arquetípicas universalmente existentes.

O que se passa aqui nesta esfera é que, em se tratando de personagem feminino, o papeldesempenhado pela mulher na literatura arturiana orienta a nossa reflexão sobre aencruzilhada de influências de uma sociedade celta, as tendências ideológicas e uma linhade cristianização que vinha se instalando a partir do século XII. A importância dopersonagem feminino neste romance está intimamente relacionada com a busca do Graal e,conseqüentemente, com os ideais cavaleirescos de honra, serviço e linhagem.

Por mais que seja sabido que damas e donzelas desempenhavam papéis de tentação,mistério e premonição, muitos personagens femininos aparecem aqui em Perceval como averdadeira manifestação do bem e do amor apesar de não terem nenhuma “vantagem” doponto de vista feminino, pois invariavelmente eram abandonadas em função de uma missãomais importante dos cavaleiros. É exatamente sobre este “estado” das mulheres na literaturaque nos fala todo o movimento feminista que se instalou no mundo no meio do século XXe que vou neste trabalho tratar em particular.

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2- Tempo e história: a mulher na literatura

Enquanto o homem criava e recriava o mundo, descobria novos territórios e marcava comsua atuação todo o processo de construção cultural, por onde andava a mulher?

A mulher não foi considerada personagem, senão à margem da história, em todas asdimensões contidas nesse processo. Em geral, sua presença tem-se definido como coroláriodo protagonismo masculino. Na maior parte dos casos em que a mulher surge na cena, elatem como ponto de referência o desempenho masculino, seja como exemplo ou modelo desolidariedade e dedicação ao homem, seja como objeto de paixão ou outras expressõesderivadas das ações masculinas, estas sim entendidas como originais, renovadoras erevolucionárias. Na interação homem-mulher, o que mais chama a atenção é o usosistemático do poder do primeiro sobre a segunda, bem como o abuso da autoridade quedecorre desse poder .

As razões de permanência, pelos séculos afora, da velha fórmula imobilista “homem éhomem, mulher é mulher” apontam para aspectos importantes dessa saga e trazem para odebate a tentativa de reconstrução desse modelo. Sempre a figura feminina é tecida nosenredos de forma a não perdoar jamais a pecadora, a infiel, a devassa ou a adúltera. “Desdeas civilizações mais antigas até as primeiras conquistas da chamada revolução industrial, ahistória da humanidade tem sido a história de personagens masculinos, sejam elesguerreiros, sacerdotes, heróis ou artistas: os faraós do Egito, os deuses gregos, os profetasislâmicos, os evangelistas que disseminaram a fé cristã, os imperadores da China, ossamurais do Japão, sem exclusão, foram todos personagens homens”, (como avalia MoemaToscano em seu ensaio “Um espaço para a mulher” in Feminino/Masculino, Jacobina, E.).Como se vê, em todo o mundo, as mulheres através da história da humanidade têm sofrido,sob o jugo do patriarcado, um discurso que as diferencia, separa, humilha e subjuga. Essediscurso, partindo de uma diferença biológica, constrói diferenças sociais marcantes que seencontram, ainda hoje, presentes nas mais avançadas culturas do mundo.

3- Crítica feminista

Simone de Beauvoir assim se expressa em O Segundo Sexo (1940).

Esta humanidade é masculina e o homem não define a mulher per se, mas com relação a ele; ela não étida como ser autônomo...Define-se e diferencia-se a mesma em relação aos homens e não em relação aela; ela é o não essencial, em oposição ao essencial. Ele é o sujeito, ele é o Absoluto – Ela é a outra.

Isto está mais que evidente na linguagem, tanto literária como não literária. SegundoHeloísa Buarque de Holanda em Vozes Femininas “... As teorias críticas feministas estãoexperimentando um momento bastante interessante. Nos países de formação saxônica,especialmente nos Estados Unidos, conseguiram certa legitimidade acadêmica econstituem-se como uma inegável tendência dentro do mercado editorial. Muitos centros dewomen´s studies se formaram dentro das universidades, desde a segunda metade dos anos70, e seu projeto é claramente intervencionista e político-acadêmico. Na França, já o quadroé relativamente diverso. Os estudos feministas, cuja facção mais representativa einternacionalmente reconhecida é ligada à psicanálise, recusam a filiação institucionaldentro das universidades e preferem formas de organização independentes ou, pelo menos

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desvinculadas da produção acadêmica oficial. De um modo geral, a formação desta área deconhecimento está intimamente ligada aos movimentos políticos dos anos 60, mas vaiganhar estatuto acadêmico um pouco mais tarde, no contexto da consolidação das teoriaspós-estruturalistas e desconstrutivistas, cuja desconfiança sistemática em relação aosdiscursos totalizantes passa a ter uma posição central no debate teórico conhecido comopós-modernista...”

A crítica literária é o outro campo questionado pela teoria feminista, no sentido de quegrande parte da crítica adotou valores e critérios que de igual forma centralizavam a visão ea experiência masculinas, marginalizando aquelas da mulher. A crítica feminista norte-americana Annete Kolodny demonstrou como a educação e o processo crítico posicionam econdicionam o leitor a enxergar e apreciar os textos de certa forma permissíveis. Ela afirmaque a leitura é uma forma de compromisso não com os textos, mas com paradigmas: ouseja, “apropriamos o sentido de um texto de acordo com nossas necessidades (ou desejos),ou, em outras palavras, de acordo com as presunções críticas ou predisposições (sejamconscientes ou não) que trazemos a ele”.(Webster, R in Studying Literary Theory).

O livro de Virgínia Woolf, Seu Próprio Quarto (1928), embora não seja uma obrateórica no sentido convencional do termo, funciona como ponto de partida para o estudo daliteratura feminina e como início de uma crítica feminista. Neste ponto, vale observar quealguns críticos feministas têm evitado o discurso da teoria literária como uma extensãomaior do discurso masculino e, portanto, da dominação nos estudos literários, e certamentea força e talvez as propriedades lingüísticas de muitas obras teóricas realmente tornam estauma posição válida. Avançando a partir daí, seria perigoso caracterizar a teoria feministacomo um discurso unificado: por sua natureza, a maioria das obras feministas tenta evitaruma visão singular e centralizada em favor do âmbito mais plural, mantendo-sedescentralizada nas abordagens. Seria mais apropriado neste contexto, falar em feminismos.

Virgínia Woolf fazia parte de um movimento mais amplo de mulheres escritoras quehaviam adotado um ponto de vista especificamente feminino no início do século vinte,entre elas Katherine Mansfield, Rebecca West e Dorothy Richardson.. Assim como noMarxismo, é perigoso caracterizar a literatura feminista em termos de personalidadesindividuais, e é útil ver a literatura de Virgínia Woolf como parte de um movimento maiorou de um novo discurso que começou a desafiar os discursos do gênero dominante; étambém uma tentativa de recuperar e explorar pontos ressaltados por outras escritoras, até omomento amplamente ignoradas. O argumento principal de Woolf com relação à ausênciade mulheres escritoras está relacionado às condições materiais sob as quais vivem asmulheres, com pouca ou nenhuma independência financeira e geralmente destinadas aservir às necessidades dos homens.

No que tange especificamente às identidades femininas a história mostra que elas têmsido formadas em oposição às identidades masculinas e, na maioria do tempo, em umaevidente relação de subordinação e controle. Millet, em seu texto Sexual Politics (1993),observa como o sexo tem sido utilizado para degradar a mulher e engrandecer o homem etem sido negligenciado em seu aspecto político. A estrutura do patriarcado foi gerando, aolongo do tempo, vários mecanismos para moldar a identidade da mulher de forma a torná-lasubordinada. Esses mecanismos vão desde a fossilização e criação de estereótipos do queseja e de como deve se comportar a mulher, até a ênfase nas diferenças biológicas,limitando os espaços de atuação da mulher dentro da sociedade, diferenciando as mulheresem classes e modelos antagônicos, evitando seu acesso à educação e atividadeseconômicas, usando a força e até mesmo mecanismos psicológicos, através dos quais a

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mulher é levada a interiorizar a ideologia do patriarcado. Com a entrada das ditassociedades modernas, que se convencionou chamar de pós-modernidade, observa-se queem alguns contextos sociais essas práticas de dominação passam a atuar de forma cada vezmais indireta depois que as mulheres vieram a conquistar direitos em seus casamentos eatravés de seu voto. O poder do patriarcado pode não estar tão presente nas ditas sociedadesdemocráticas, mas ainda se evidencia como analisa Michel Foucault (Machado,1982), ...”opoder não se localiza num lugar específico; antes, ele é uma estrutura, uma rede sem limitese que é exercido, ao invés de ser possuído por alguém ou alguma entidade dentro dasociedade”.

Diversas questões sobre a representação da mulher na literatura foram suscitadas noséculo XX, especialmente por Virgínia Woolf, e logo por críticas literárias feministas. Istonão significa que não houve tentativas anteriores de questionar a posição da mulher atravésde um meio literário: A Reivindicação dos Direitos da Mulher (1792) de MaryWollstonecraft defendia a necessidade de apurar a educação das mulheres, e romancistas doséculo XIX, tais como George Elliot na Inglaterra e George Sand na França, atacavam asatitudes sociais vigentes em relação à mulher, embora não de maneira tão radical como suassucessoras do século XX. A questão principal que se tornou cada vez mais significativa é:até que ponto estão representadas na literatura as experiências e a voz da mulher? Resgataresta trajetória silenciosa tem sido objeto de estudo de inúmeras teorias feministas.

4 - Construção da identidade: um estudo sobre gênero

Quando comecei a fazer esta pesquisa, deparei-me com diversas formas de abordar o temado feminino, mas, em todas as leituras que fiz, o gênero era parte intrínseca do assunto æcomo se eu não pudesse falar de feminino ou masculino sem falar dos estudos de gênero eda construção da identidade no discurso literário. Sendo assim, tendo em vista aimportância do discurso na formação da identidade, é importante esclarecer que discursoaqui é entendido de forma que abranja qualquer enunciação onde haja um emissor e umreceptor (falante/ouvinte, escritor/leitor), e a intenção de influenciar o outro. Como observaSara Mills:

“O discurso não é um conjunto vazio de declarações, mas grupos de orações ou sentenças, declaraçõesque são estabelecidas dentro de um contexto social, que são determinadas por esse contexto e quecontribuem para o modo pelo qual o contexto social dá prosseguimento à sua existência”.(1997).

A identidade é um fenômeno relacional, uma vez que é construída a partir da negação doque não se quer e da afirmação do que se pretende ser. Assim, as identidades não sãoestáticas, já que estão sempre se modificando com menor ou maior grau de intensidade,absorvendo alguns traços e repelindo outros, quase sempre, em termos de oposição. É dessamaneira que marcas naturais (homem/mulher, branco/negro) são transformadas emconstrutos sociais que classificam o sujeito em relações de subordinação: um homem quenasce negro não nasce com uma identidade social da raça negra; esta lhe é imposta dentroda sociedade, da mesma forma que o bebê ao nascer, embora possuindo a marca biológicaque o distingue entre masculino ou feminino, só aprende a se comportar como homem oumulher dentro dos construtos da sociedade.

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O conceito de gênero com o qual estarei trabalhando aqui compreende o conjunto decaracterísticas que compõem homens e mulheres dentro de convenções socialmenteestabelecidas, o que implica em afirmar que gênero não é algo fixo, mas construído dentroda interação social (Connell, 1995), diferente, portanto, da concepção que consideramasculino ou feminino como algo relacionado ao aspecto biológico. Existem dois modelosidentitários: o essencialista que entende que o homem herda características e idéias sobre omundo que orientarão suas práticas ao longo da vida, e o não essencialista que compreendeque a identidade é múltipla e, portanto, sujeita a modificações através do tempo. Uma visãocomo a essencialista não é capaz de oferecer uma perspectiva ampla sobre a questão dosgêneros, uma vez que, dentro desta forma de pensamento, tudo é compreendido comoestando “inscrito por antecipação, sem possibilidade de mudança ou de criação.Prisioneiros de um esquema predeterminado, homem e mulher estão condenados adesempenhar para sempre os mesmos papéis”. (Badinter, 1993).

Uma vez colocada a posição crítica-literária feminista em seus estudos bastanteavançados, cabe agora retornar ao universo feminino medieval e observar que, nos textossobre a demanda do Santo Graal, a tendência feminina surgirá freqüentemente aliada à idéiade pecado. Da mesma forma que um homem se perdeu por causa de uma mulher, sendopor isso expulso do paraíso, também os cavaleiros que se aventuram na corte arturianapodem ser expulsos da possibilidade de contemplarem as maravilhas do vaso sagrado casose deixem cair em tentação.

Assim sendo, numa leitura atenta dessas obras, verifica-se o aparecimento de damas edonzelas que permitem atestar a honra e a cortesia dos cavaleiros. Entendendo-se cortesiaæ ideal ético e social da cavalaria æ como uma noção que engloba tudo, todas asqualidades morais do perfeito cavaleiro (generosidade, humildade, lealdade, bravura. etc.),facilmente também se entende como os cavaleiros atendiam, sem questionar, aos pedidosdesses seres que se rodeavam de uma aura de mistério e maravilha, as damas e donzelas. Éassim que, por exemplo, Perceval atende à aflição de Blanchefleur quando esta solicita aocavaleiro libertar o seu castelo. Ele assim o faz com sucesso! Intervir a favor de umamulher e ampará-la fazia parte das virtudes de um cavaleiro.

O papel da mulher na sociedade medieval é bastante ambíguo, pois, se era exigido doscavaleiros em busca do Graal que não fossem seguidos por damas ou donzelas, eles, sempreque solicitados, dispunham-se a servi-las para desta forma atestarem sua cortesia e suahonra.

Em traços muito gerais, coexistem nas páginas dos contos arturianos, nãoespecificamente em Perceval, traços bem marcantes do aparecimento em cena dasmulheres. Por um lado elas são o amor e a fonte de toda a coragem dos cavaleiros e, poroutro, são vistas como simples encarnações do mal que usam suas belas e frágeis figuraspara tentar e seduzir o homem, desviando-o assim de suas missões.

O caráter misterioso que rodeia as personagens femininas emerge também daquelas queprevêem o futuro, intimidando os cavaleiros com suas falas ameaçadoras, como foi o casoda prima de Perceval e da mulher feia que o amaldiçoaram por não ter feito a perguntasobre a cerimônia do Graal que ele havia presenciado no palácio do Rei Pescador.

Neste trabalho, as mulheres que serão objeto de estudo, a mãe, a mulher da tenda, aBlanchefleur e a mulher feia, têm em comum os diversos fios de influências, quer do pontode vista ideológico-moral, quer do ponto de vista do encontro de épocas e sociedadesdiversas como a celta e medieval. Não raro, o aspecto mágico permeava o ciclo arturianoem se tratando de personagem feminino, a maior de todas as fadas sendo sem dúvida a

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Morgana. Preferi deixar para trás seu caráter maligno e exaltar seus fios mágicos que serãotecidos por outras mãos, que por sua vez bordarão outras tramas sobre a busca do Graal.

5 - A mãe

A relação de Perceval com a mãe desde cedo foi bastante inusitada, uma vez que ela, jáviúva, resolveu poupar o filho das amarguras da cavalaria. Seu marido havia sido ferido emcombate, bem como seus outros dois filhos que não sobreviveram. O luto por essas perdaso levou à morte e agora ela sozinha havia de cuidar da criação deste filho. Decidiu que,escondendo Perceval na floresta, este jamais tomaria conhecimento das artes cavaleirescas.Ele cresceu jogando dardos e ouvindo de sua mãe conselhos religiosos. Num desses dias debrincadeiras encontrou-se com um grupo de cavaleiros e naturalmente não os reconheceu.Sua ingenuidade era absoluta e sua inabilidade quanto ao comportamento social era infinita.

Perceval era até este momento um rapaz tolo e frágil:

“... O rapaz ouve mas não vê os que chegam a bom passo. Espanta-se dizendo consigo: por minh`alma,minha mãe e senhora diz a verdade quando afirma que os diabos são as mais feias cousas do mundo, eensina que eu faça o sinal da cruz para me proteger deles....- Garoto, não tenhas medo!- Pelo Salvador em que creio, não tenho medo! Diz o rapaz – Sois Deus?- Claro que não!- Então quem sois?- Um cavaleiro.- Cavaleiro? Não conheço ninguém assim chamado! Nunca vi um. Porém sois mais belo que Deus.Gostaria de parecer convosco, assim todo brilhante e afeitado! ...”(in Perceval, Chrétien de Troyes,pág.27).

A partir deste instante, muda a vida de Perceval. Diz à mãe que quer ser cavaleiro, e estadesfalece!

“-... Caro filho, meu coração muito sofreu com vossa ausência. Tive tanta tristeza que por pouco nãomorri. Onde estivestes tão longe?- Onde? Mãe, vou contar.Em nada vos mentirei, pois mui grande júbilo senti de uma cousa que vi.Mãe, não dizíeis que os anjos e Deus Nosso Senhor são tão belos que jamais Natureza fez tão belascriaturas?- Sim, caro filho, e digo ainda. Digo e repito.- Mãe, calai-vos! Pois vi hoje as mais belas cousas que existem, indo pela Gasta Floresta. Creio quesão mais belos do que o próprio Deus e todos os Seus anjos.A mãe toma-o nos braços:- Caro filho, entrego-te a Deus porque tenho mui grande medo por ti. Segundo creio, viste os anjos dosquais a gente se queixa pois matam tudo que atingem.- Verdadeiramente, não! Mãe! Oh, isso não! Não! Eles dizem chamar-se cavaleiros.A esta palavra a mãe desfalece. Quando volta si, diz em grande cólera:- Ah, infeliz que sou! Caro filho, eu acreditava vos manter tão bem afastado da cavalaria que jamaisouvíreis falar dela! Nunca vos deixávamos ver um cavaleiro.”(in Perceval pg, 31).

Segundo Emma Jung em seu livro “A Lenda do Graal, a posição adotada pela mãe deescolher um domicílio tão afastado deve-se a seu desejo de proteger o filho dos perigos domundo, especialmente dos da cavalaria. A mãe quer manter o filho sob suas asas longe das

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influências do mundo a fim de protegê-lo dos perigos e dificuldades. Esta atitudecorresponde a um instinto fundamental que existe também nos animais e é chamado deinstinto protetor da ninhada. Isto, se levado adiante em idade avançada do filho, podeacarretar estados neuróticos que Freud chamou de Complexo de Édipo, ao qual confereimportância fundamental. Já Jung demonstrou em sua obra Symbole der Wandlung, que a"saudade da mãe" pode ser entendida como a ocultação do anseio de crescimento etransformação, chegando assim ao significado transpessoal da mãe. Encarada deste pontode vista, ela não é mais uma determinada pessoa, porém, a doadora e conservadora da vida,e, no mais amplo sentido, comparável ao inconsciente, fonte e raiz de toda a vida psíquica.O desejo de não largar o filho muitas vezes é representado nos mitos e contos pelo ato dedevorá-lo ou matá-lo. Jung fala da mãe medonha ou devoradora que é representada namitologia como uma deusa cruel e destruidora, como a Kali indiana e, nos contos de fadas,como madrasta ou bruxa.

A decisão de Perceval de ir ao encontro ao Rei Artur e assim se fazer cavaleiro rompedefinitivamente a sua relação com a mãe que, de tanta dor, falece. Antes, porém, aoentender que a separação era inevitável, ela ainda o ajuda a vestir-se, à moda galesa porcerto, mas talvez numa última tentativa de servi-lo.

Este aspecto, sim, gostaria de salientar. Em algum momento da vida das mães elasvivem como “senhoras do servir”, são elas que alimentam os filhos, os educam, osorientam, os protegem, os ajudam e fazem dessas tarefas seus objetivos de vida.

Apesar de as críticas insistirem em posicionar esta mulher como protetora-devoradora,há que se reconhecer que todo o esforço dela foi no sentido de poupar Perceval de um golpede espada fatal. Este movimento é de amor, assim como seus ensinamentos religiosos esuas considerações em relação ao tratamento com as donzelas.

-“...Se encontrardes, perto ou longe, dama que tenha precisão de ajuda ou damizela em desgraça, sedepronto a socorrê-las assim que vos solicitarem. Quem às damas não presta honra é porque não temhonra no coração...” ( in Perceval-pág-32).

6- A mulher da tenda

Perceval está na sua busca. Andando pela floresta passa por toda a sorte de aventuras. Umdia encontra uma tenda e, como em toda a sua vida apenas conhecera uma simples cabana,deixa-se levar pela curiosidade e, lá entrando, depara-se com uma donzela que lhe imploraque vá embora, que suma dali antes que seu companheiro volte e pegue Perceval com ela.Nosso herói nem liga para seus pedidos e a toma nos braços, beijando-a de uma formabastante instintiva, sem muito se importar com os comprometimentos sociais implicadosneste ato.

...”Quando o rapaz penetrou sob a tenda, seu cavalo fez tal barulho de cascos que a donzela ouviu.Despertou. Estremeceu. Muito inocente, o rapaz diz:- Damizela, eu vos saúdo, pois minha mãe recomendou-me saudar todas as damizelas, em todo o lugaronde as encontrar.A donzela treme de medo, pois esse rapaz parece louco, e ela pensa que também é louca de deixar quea achem sozinha nesse lugar.- Vai embora, rapaz! Segue teu caminho, que meu amigo não te veja!- No entanto vos beijarei, juro! Tanto pior para quem se agastar!

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- Nunca vos beijarei, se puder me defender – diz a donzela. – Foge! Que meu amigo não te encontreaqui, ou estás morto!Mas o moço tem braços fortes e a abraça avidamente, pois não sabe fazer de outra forma.Segura-a deitada sob seu corpo, malgrado a defesa que ela tenta para se desvencilhar. Mas em vão.Queira ou não, o rapaz beija-a sem parar sete vezes a fio, diz o conto. Ao fazer assim, vê que a donzelatraz no dedo um anel de ouro onde brilha uma esmeralda.- Minha mãe disse também para eu tomar vosso anel, sem nada mais vos fazer. Eia o anel! Quero tê-lo!- Juro que não o terás se não o arrancares à força!O moço segura-a pelo pulso, estica-lhe o dedo, pega o anel, passa-o para seu próprio dedo e diz:-Damizela, desejo-vos todos os bens! Agora vou embora, bem pago. Sabeis dar beijos bem melhoresque as camareiras da casa de minha mãe, pois não tendes boca amarga.Porém, a damizela chora e diz:-Não leves embora meu anelzinho! Serei maltratada por isso e, quanto a ti, perderás a vida a qualquermomento, tenho certeza.Ele parece nada compreender dessas palavras. É verdade que jejuou tempo demais! Está morrendo defome. Avista um barrilete de vinho. Ao lado, uma taça de prata. Depois, sobre um feixe de junco, umguardanapo branco e novo. Ergue-o. Encontra embaixo três belas tortas de carne de cabrito, que não opodem desagradar. Por grande fome, eis que começa a comer uma torta, que acha gostosa. Enchegrandes copadas e as engole em largos sorvos. O vinho não é dos piores!O rapaz continua a comer o quanto lhe apraz. Bebe tanto quanto tem vontade. Depois torna a cobrir orestante, despedindo-se, recomendando a Deus aquela que não lhe está nem um pouco reconhecida:- Deus vos salve, cara amiga! Não fiqueis tão agastada comigo por levar seu anelzinho. Antes que eumorra tereis recompensa por isso.A donzela chora e diz que não o recomendará a Deus, pois por causa dele sofrerá desventura e desonra,mais do que qualquer cativa. Bem sabe que ele nunca lhe prestará ajuda nem socorro”.(in Perceval-pg,34-35).

Se o papel desempenhado pelas donzelas permite, em alguns casos, pôr à prova,comprovando ou não o espírito do cavaleiro de defesa e proteção dos seres femininos, bemcomo da satisfação dos desejos por eles expressos; outras ocasiões há em que estaspersonagens servem magnificamente para atestar a vilania dos cavaleiros e, desta forma, osexcluir de imediato do grupo daqueles que contemplarão as maravilhas do Graal. ComoPerceval de nada ainda sabia sobre os deveres de um cavaleiro, agiu de forma erradaatropelando as leis da cavalaria. Deste encontro fortuito Perceval realizou seus desejos,alimentou-se, saboreou o vinho e ainda levou um anel. A postura da mulher da tenda foiretratada aqui nesse romance como a mulher usada, aquela que se descarta depois, semmaiores dores ou culpas. Nenhum sentimento esteve envolvido neste encontro a não ser ode humilhação dela perante seu ciumento companheiro.

...”E fica lá chorando. Seu amigo não tarda a retornar do bosque. Vê que a amiga chora e, curioso,pergunta:- Damizela, por estes vestígios que vejo, creio bem que veio aqui um cavaleiro.- Não senhor, asseguro. Mas veio um campônio galês maldoso, feio e louco, que bebeu de vosso vinhoo quanto quis. Comeu três de vossos empadões.- É por isso que chorais, bela?- Há mais senhor – diz ela. – Tem a ver com meu anel: ele o tomou e levou embora. Eu queria estarmorta!- Palavra – torna o amigo – houve ultraje! Já que mais. Dizei-me sem nada ocultar.- Sire – diz ela – ele me beijou.- Beijou?- Verdadeiramente, asseguro, foi mau grado meu.- Ao contrário! Isso vos agradou e não opusestes defesa – diz o cavaleiro ciumento. – Pensais que nãovos conheço? Não sou tão cego ou vesgo para não ver vossa falsidade. Tomastes caminho mau. Duro

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penar vos aguarda. Nunca mais vosso cavalo comerá aveia nem será cuidado, até que do feito estejavingado! Se perder a ferradura, não será mais ferrado! Se morrer, tereis de seguir-me a pé! Nunca maistrocareis de roupa e caminhareis a pé e nua, enquanto eu não cortar a cabeça desse que aqui veio. Nãodesejo outra justiça.”(in Perceval, pg, 34-36)”.

As mulheres medievais sofriam com a vergonha que lhes era imposta mas ao que parecenada muito diferente acontece ainda nos dias de hoje, quando podemos verificar o exercíciodessa prática talvez numa tentativa de provar a resistência masculina. Nota-se, porém, queesta mulher foi apresentada aqui sem nome, conhecida apenas como “mulher da tenda” quede alguma forma serviu ao cavaleiro. No processo de amadurecimento de Perceval, pode-seconstatar ao longo da narrativa que ela teve importância fundamental já que o herói maistarde aprendeu que nada do que ele havia feito com ela é mérito de um verdadeirocavaleiro. Ela serviu como um degrau para o seu aprimoramento. Também através dela edeste encontro fortuito, Perceval aprenderia que o cavaleiro cortês será, em suma, não ummodelo apenas de valentia, inteligência, elegância e formosura, mas, acima de tudo, ummodelo de dedicação às donas e donzelas.

7- A Blanchefleur

Perceval a esta altura já havia encontrado com Gornemant de Gort, homem que lhe ensinouas artes da cavalaria.

- “... Caro amigo, aprendei agora as armas e observai como homem deve segurar a lança, como faz ocavalo andar e como o detém”.Desfraldada então sua insígnia, mostra ao rapaz como se deve segurar o escudo...”(in Perceval, pg,41)”.

Continuando então suas aventuras, Perceval chega a uma cidade quase morta – “Emnenhum lugar homem encontra pão nem bolo, nem cousa à venda, inútil procurar vinho oucerveja”. Porém, chega ao castelo onde valetes o guiam por uma escada até uma grandesala onde o aguarda a damizela:

“... a damizela que se aproximava era mais graciosa, vivaz e elegante que falcão ou arara. O manto e atúnica eram púrpura escuro estrelado de veiros, com guarnição de arminho, e bela gola de martazibelina branca e preta. Se já descrevi a beleza que Deus pode colocar em corpo ou rosto de mulher,desejo fazê-lo mais uma vez, sem mentir uma palavra. Os cabelos que flutuavam sobre as espáduaspareciam fino ouro, tanto eram luzentes e louros. A fronte era alta, branca e lisa, como talhada por mãohumana em mármore, marfim ou madeira preciosa; supercílios castanhos, olhos cinza-claros, bemseparados, oblíquos e risonhos. Nariz reto. O branco sobre o rubro, iluminava seu rosto melhor quesinople sobre prata. Para arrebatar o coração das pessoas, Deus a fizera a Mais-que-Maravilha. ( inPerceval-pg,49).

Perceval, portanto não encontra a mãe neste ponto do caminho e sim, a mulher e, aindapor cima, uma pessoa super atraente e irresistível ao sentimento masculino: a da beldadeaflita e que necessita de proteção. De modo encantadoramente ingênuo, ela vem à noitepara a cama de Perceval contar-lhe sua aflição.

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...”Avista a damizela ajoelhada à beira do leito, abraçando-lhe estreitamente o peito. Por cortesia,abraça-a da mesma forma e, estreitando-a firmemente, pergunta:- Bela, o que desejais? Por que viestes?- Piedade, sire cavaleiro! Por Deus e por Seu Filho, suplico que não me julgueis mais vil porque vimtão pouco vestida, como vedes...”(in Perceval, pg-50)”.

Assim ela pede ajuda ao cavaleiro, diz que não agüenta mais tanto sofrimento e que seureino está em ruínas. Perceval a

”...coloca em seu leito e ela aceita seus beijos sem muito sacrifício! Assim ficaram toda a noite, bemjuntos e boca a boca, até chegar a manhã. Nesta noite a anfitriã encontrou consolo: boca a boca e corpoa corpo eles repousaram até o alvorecer”( in Perceval, pg-52).

Segundo Emma Jung (in A Lenda do Graal-pg, 49) analisa, “deve ter-se tratado, antes detudo, de demonstrar à mulher uma verdadeira consideração e de estabelecer com ela umrelacionamento que não fosse apenas de natureza instintivo-erótica; de mãos dadas comisso ia também a consideração da feminilidade em geral, sobretudo da feminilidade própriado homem, isto é, da Anima. Sob a designação de Anima Jung entendia a personificação doinconsciente do homem, que surge, nos seus sonhos, visões e fantasias criativas, comomulher ou deusa. A sua imagem parece derivar da mãe e nela como que se incorpora aporção de feminilidade que vive o homem e também a experiência que o homem tem com amulher. Mas ela é também, ao mesmo tempo, o a priori de todas as experiências do homemcom a mulher, porque, surgindo como deusa, a Anima é um arquétipo e possui por isso,uma existência real invisível anterior a toda a experiência. Na literatura do Graal,encontram-se muitas figuras femininas que têm o caráter de Anima e devem serconsideradas menos como mulheres reais do que como figuras de Anima que possuemcaráter sobre-humano e traços arquetípicos. Parece-me, contudo, que na figura deBlanchefleur, a mulher real é mais acentuada do que o caráter da Anima porque este ainda étotalmente projetado. Corresponde também à marcha de desenvolvimento de Perceval queagora – depois de ter deixado a mãe e de enfrentar o mundo como cavaleiro – encontratambém a mulher objetiva com a qual, neste nível, o problema da Anima ainda estáindistintamente mesclado.”

Perceval luta, retoma o castelo, recompõe a harmonia e, juntos, ele e Blanchefleurpodem folgar à vontade e se abraçar, e beijar, felizes do júbilo partilhado, até que ele sabede um novo desafio:

- “... Por que ir a esta batalha? Mais valeria permanecer em paz no castelo. O que temer ainda deClamadeu e sua gente?Mas tão pouco ela é ouvida. Isso é maravilha, pois fala com tanta meiguice, beijando o amigo a cadapalavra, com beijo tão afetuoso e delicioso que lhe põe a chave do amor na fechadura do coração.Porém nada adianta. Ele irá combater.”(in Perceval, -pg, 59)”.

Apesar de sua posição no castelo de Blanchefleur, ele se rende à virilidade de sesatisfazer unicamente com o amor de sua dama e com a vida agradável de senhor docastelo. Muito embora ela desejasse que permanecessem juntos para que desta forma seureino ficasse a salvo, ele parte para novas aventuras, abandonando sua amada. Esteabandono também significou um caminho para o seu processo de individuação. Também aBlanchefleur o ajudou a preencher um pouco mais a sua armadura, tornando-o agora umhomem que conhece o amor.

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8- A mulher feia

O fato de algumas donzelas deste universo arturiano se relacionarem diretamente compoderes maléficos que atormentam os cavaleiros envolvidos na demanda do santo vasopode levar o leitor a pensar que todas as aventuras têm por função pôr à prova o cavaleiro, afim de avaliar seu mérito e sua boa conduta. O labirinto que permeia o ciclo arturiano éuma construção com muitos caminhos sinuosos e entrecruzados e às vezes inexplicáveis,sugerindo o tom mágico dos contos de cavalaria. Estas donzelas, que revelam ultrapassar oslimites temporais dominando o tempo futuro pelo conhecimento que dele têm, surgiramcomo mensageiras de uma entidade divina que preside aos destinos dos cavaleiros. Ouniverso interior dessas várias donzelas permanece misterioso; eis o que nos conta apassagem da mulher feia, que tanto amaldiçoou a vida de Perceval:

“-... Nessa mesma noite, o rei, a rainha e os barões fazem grande festa a Perceval, que conduzem aCarlion. Festejam toda a noite, mais o dia seguinte. Depois, no terceiro dia, vêem chegar uma donzelasobre uma mula amarela, que guia com a mão direita, duas tranças negras às costas. Homem jamais viuser tão feio, mesmo no inferno! Homem jamais viu metal tão baço como a cor de seu colo e das mãos.Outra cousa, porém era bem pior: os dois olhos, dois buracos não maiores que olhos de ratos. O narizera um nariz de gato, os lábios de burro ou boi, os dentes amarelos como gema de ovo. A barba era deum bode. Peito corcunda, espinha torcida. Ancas e ombro mui bons para o baile. Outra corcunda nascostas, pernas tortas como vara de vime, também próprias para a dança.A donzela impele a mula até diante do rei Artur. Haveria homem jamais visto na corte uma jovemassim? Ela saúda o rei e a todos os barões, exceto Perceval e sem descer da mula diz a ele:- Ah, Perceval, fortuna tem cabelos na frente, mas por trás é calva! Maldito seja quem te saudar ou tedesejar algum bem! Não soubestes agarrar a fortuna quando passou perto de ti! Estiveste em casa derei Pescador e viste a lança que sangra. Seria tão custoso abrires a boca, emitires um som, tanto quenão, não pudeste perguntar a razão da gota de sangue que corre da ponta da lança? Viste o Graal, mas aninguém perguntaste quem era o rico homem servido por ele. É digno de pena quem vê tempo tão belo,tão claro, tão favorável e espera céu inda mais belo! É de ti que falo. Foi esse teu caso. Era tempo elugar de falar. Quedaste mudo. Não te faltou azo. Teu silêncio nos foi nefasto. Era mister fazer apergunta.”(in Perceval-pg, 85-86)”.

A prestação de um serviço a mando de uma donzela reveste, por vezes, característicasdiferentes, visto que o pedido é inicialmente envolvido por um caráter misterioso, pois nãoexplicita o objeto e o objetivo do pretendido. Isto faz com que o cavaleiro fique ligado àpromessa de reparar o suposto dano, quer dizer, se entrega à nova missão até que tenha asolução do caso. Especificamente nesta passagem da mulher feia há que se entender que abruxaria se tornara uma prática, justamente por ocasião do florescimento do cristianismomedieval. Segundo Emma Jung, “... a espiritualização demasiado unilateral por um lado, eo fato de, no culto à Maria, apenas o aspecto coletivo e luminoso do elemento femininoencontrar manifestação, vivificaram os lados sombrios da feminilidade, conferindo-lhe umcaráter demoníaco ameaçador”. A mulher feia aparece com esta conotação: é uma figurahorrorosa que ofende, ameaça e ainda vem envolvida de mistério e magia.

Nos contos de cavalaria do ciclo arturiano, os fios não vão sendo tecidos de formahomogênea, uns se desprendem exigindo que os transformemos de outros novelos paraaqueles que vínhamos tecendo para o caminho do Graal, símbolo que, ao longo de todo opercurso de análise, nos transforma em identificadores de sentidos e, por que não, emsonhadores de significados. O universo interno da mágica mulher feia permanece de tal

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forma misterioso que pode de imediato trazer à memória o provérbio que abre este trabalho:“Plus profond est le coeur des femmes que la plus profonde mer du monde”.

9- Breve resumo do romance Perceval

Perceval não cruzou apenas com essas quatro mulheres em sua busca pessoal, mas estudá-las mais cautelosamente pode ajudar a entender melhor a saga do herói. Desde queabandonou a mãe, em busca de pertencer à cavalaria, suas aventuras foram no sentido devoltar um dia para ver a mãe. Encontrou a mulher da tenda fortuitamente, vai à corte deArtur e ingenuamente pede para ser cavaleiro, luta com o Cavaleiro Vermelho e o matacom um dardo. Na tentativa de ver a mãe, se encontra com Gornemanz de Goort que lheensina as artes da cavalaria. Parte outra vez para casa e se depara com o castelo deBlanchefleur e lá conhece o amor. Sai em batalha e, sempre na tentativa de voltar para ver amãe, descobre o castelo do rei Pescador e lá, além de receber a espada, testemunha acerimônia do Graal e comete seu maior erro – não pergunta o significado daquilo. No diaseguinte, está sozinho no castelo e, quando parte pela ponte, esta é levantada sem que eleveja por quem. Seu encontro com a prima dizendo-lhe que a mãe havia morrido e a culpajogada sobre ele quanto à omissão da pergunta do cortejo do Graal, faz com que o cavaleiroatormentado, siga em frente. Se tivesse perguntado sobre o ritual que viu, o rei Pescadorvoltaria a andar, pois o encanto teria sido desfeito.

Perceval volta a encontrar a mulher da tenda, ela em lamentável estado, toda maltrapilhae machucada, pois seu ciumento companheiro não havia acreditado em sua história. O heróipromete-lhe reparar a injustiça que sofrera. Pernoitando numa clareira da floresta, percebeuque havia nevado e presencia a luta de um falcão com patos selvagens; um deles cai feridoe, quando Perceval vai salvá-lo, lança vôo deixando gotas de sangue na neve. Esta cena ofaz lembrar de Blanchefleur e ele se põe a refletir. Revê sua trajetória: o surgimento datriste mulher de quem ele havia roubado o beijo e o anel, tornando-a desgraçada; depois, amorte da mãe, o erro em não fazer a pergunta do Graal e a infeliz lembrança da abandonadaBlanchefleur. Paralisado em seus pensamentos, é socorrido e levado à corte de Artur onde éacolhido como membro da cavalaria do rei. O encontro com a mulher feia é doloroso, poisesta, além de não o cumprimentar com efusiva saudação, o acusa de não ter feito a perguntado Graal e lhe roga pragas horríveis. O cavaleiro faz disso a sua missão e sai em busca doobjeto sagrado. Ao encontrar com o eremita que era seu tio, inicia seu caminho espiritual.

Chrétien de Troyes faleceu antes de terminar o conto, mas deixou muitos seguidores queescreveram várias versões diferentes para encaminhar a saga do herói.

Do ponto de vista psicológico, Perceval encontra outra coisa: “... a sua tarefa, agorareconhecida claramente, e o seu objetivo, que apesar de todas as reviravoltas, ele nuncamais perderá de vista. A capacidade de se impor um objetivo e de persegui-lo comconstância é outra conquista no decorrer do desenvolvimento humano...”. ( in A Lenda doGraal-pg,138).

Essas mulheres sem dúvida fizeram parte do crescimento do cavaleiro; com cada umadelas aprendeu a se tornar um homem melhor!

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10- Conclusão

A experiência do Graal para Perceval está estreitamente ligada ao desenvolvimento de suaconsciência. A espada que o cavaleiro recebe anuncia simbolicamente esta conquista, bemcomo suas experiências com as figuras femininas que, de toda forma, o ajudaram nesteprocesso. Se analisarmos o crescimento do nosso herói, em muitos outros simples quesitospoderemos verificar a sua melhora, e um bom exemplo disso seria através das roupas. Numprimeiro momento ele é apresentado como um galês usando roupas rústicas, simples comoele. Ao ganhar sua primeira armadura torna-se cavaleiro, mas só por fora, precisa ainda sefortalecer tanto intelectualmente como psicologicamente e espiritualmente. Sua experiênciacom seu instrutor Gornemanz de Goort não só lhe dá a chance de vivenciar a presençamasculina, a figura do pai, como também o torna sabedor das artes cavaleirescas. Maistarde, seu encontro com o ermitão lhe proporciona a vivência religiosa fortalecendo aindamais seu espírito, aprendendo afinal que é preciso se desarmar para o encontro com Deus!

Como este estudo está concentrado nas questões do gênero feminino, há que ressaltaraqui que os personagens femininos foram criados e representados por homens, o quecontribuiu para a predominância do discurso hegemônico do patriarcado, direcionando asvozes femininas e, conseqüentemente, moldando o espaço da mulher no mundo medieval.Saber como se origina o patriarcado é irrelevante para os desafios que a mulher tem deenfrentar dentro das sociedades assim constituídas, ainda nos nossos dias. Basta considerara diferença de oportunidades no mercado de trabalho e a efetivação de sua capacidade deatuação no desenvolvimento humano, quer seja este político, científico ou tecnológico. Poroutro lado, conhecer a história que mantém a mulher afastada da esfera de atuação dentroda sociedade, cria uma ferramenta útil para todos que se propõem a refletir sobre essaspráticas e que possam quebrar esses moldes opressores daqui para frente.

Talvez a maior virtude do texto medieval resida no fato de que, além de fixar nossoolhar no passado, ele nos leva a refletir a respeito de nosso próprio mundo social e dosdesafios que temos de superar para a construção de uma política de gênero mais igualitárianos diversos campos do desempenho humano.

No desenrolar desta pesquisa, constatei que a mulher tem uma natureza própria, e esta éacolhedora, doadora, paciente e intuitiva, independentemente da época em que vive. Suaaptidão geradora dá esse tom de misturar suas diversas facetas como filha, mãe, esposa,amante, amiga, avó, profissional; seja lá em que área atuar, a mulher vai estar presentetecendo seus fios para melhorar o bordado do mundo, assim como as figuras femininasestudadas neste artigo ajudaram e melhoraram o crescimento do herói Perceval.

Notas

Todas as cotações deste artigo estão citadas nas páginas e identificadas entre parênteses.

As traduções para o Português são minhas com exceção dos diálogos transcritos in Perceval, editado pelaMartins Fontes.

A passagem sobre a discussão da teoria de Jung para os quatro lados da psiquê feminina foi resultado daleitura dos seguintes livros: The Moon and The Virgin (New York: Harper and Row, 1980) e The Feminine inJungian Psychology (Evanston: Northwestern. UP, 1971).

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A cotação inicial que inaugura o trabalho é um provérbio bretão da ilha de Batz in La Femme Celte, JeanMarkale, achado na Internet.

Para a realização desta pesquisa foi estudado também o ensaio feminista da autora GUEDES, P: Between theCauldron of Ceridwen and the Christian Cross: Feminist Revisions of The Arthurian Legend.

Este estudo foi baseado também em toda a bibliografia oferecida durante o curso LET 2383.

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FURTADO, Antônio (2001). Lais de Maria de França. Editora Vozes. Petrópolis. Brasil.Especialmente o prefácio de Marina Colasanti.

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Adaptações Cinematográficas Arturianas:Excalibur, Lancelot e As Brumas de Avalon

Irene Bosisio Quental

“Then it was, that the magnanimous Arthur, with all the kings and military force of Britain,fought against the Saxons. And though there were many more noble than himself, yet he wastwelve times chosen their commander, and was as often conqueror” ( Gildas)

1 - Introdução

A tradição literária criada em torno do rei Artur, conhecida como Matéria da Bretanha, nostraz uma série de escritos que relatam as fantásticas aventuras deste rei, que teria sidoaquele que, ao lado de seus cavaleiros, lutou bravamente pela Bretanha diante da terrívelameça de dominação dos bárbaros. Teria Artur realmente existido ou trata-se de uma lenda?A resposta para tal pergunta permanence um mistério, mas suas histórias recheadas deaventuras, batalhas, magia e bravura vêm encantando leitores já há algum tempo.Encantando não apenas autores e leitores como também diretores de cinema, que viram nastramas arturianas elementos que poderiam encaixar-se adequadamente na linguagemcinematográfica. Ação, aventura, amor, traição…aos olhos do cinema, o que mais poderiafaltar nas lendárias histórias do rei Artur para que se fizesse uma grande produção? Foi oque diretores da indústria cinematográfica perceberam e executaram: filmes que, a partir daliteratura referente ao lendário rei da Bretanha, retratassem as aventuras e conflitos queenvolveram personagens como o próprio Artur, a rainha Guinevere, o cavaleiro Lancelot,Merlin, Morgana, Uther, Gawaine e muitos outros. Ao observarmos a lista de filmesarturianos, encontraremos obras como Excalibur, Lancelot (First Knight), As Brumas deAvalon, Camelot, Lovespell, Lancelot do Lago, O Graal, Knightriders e vários mais.Observando alguns desses filmes, veremos como ocorreram os processos de adaptação dasobras literárias para a grande tela, suas diferenças, personagens, estrutura. A partir dosfilmes Excalibur, Lancelot (First Knight) e As Brumas de Avalon analisaremos como ahistória do rei Artur foi conduzida nesta outra linguagem que em muitos momentoscostuma privilegiar a ação, o duelo entre o herói e o vilão, a fantasia e, como não poderiafaltar, os conflitos amorosos.

Para que possamos analisar adequadamente estas adaptações é fundamental que tambémobservemos as obras literárias que serviram de fonte para sua construção. É importantelembrar que a figura do rei Artur foi mencionada pelos autores Gildas e Nennius e queoutros, como Geoffrey de Monmouth e Chrétien de Troyes, produziram obras consideradascomo grandes marcos dentro do ciclo arturiano. Também encontramos, como autor deobras relacionadas a Artur, o poeta Wace, que traduziu em versos a obra de Geoffrey. Seráa partir destas obras que analisaremos os filmes arturianos, sendo que, no caso de Excalibure de As Brumas de Avalon, teremos também como fonte de comparação as narrativas Amorte de Artur, de Thomas Malory e As Brumas de Avalon, de Marion Zimmer Bradley.Como estaremos falando da questão da adaptação, não podemos deixar de lado estes doisúltimos livros citados, já que dois filmes foram feitos baseados diretamente em seus textos.

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Mas acredito que o mais interessante seria observarmos as obras cinematográficasprincipalmente a partir das obras de Geoffrey, Chrétien e Wace, uma vez que estas foram asfontes iniciais de onde A morte de Artur e As Brumas de Avalon foram provavelmenteescritas, e também por estarem elas entre as mais reputadas da Matéria da Bretanha.

Para que possamos realizar uma análise comparativa entre as obras literárias ecinematográficas, é interessante também que observemos algumas questões referentes àsdiferenças entre a linguagem escrita e a do cinema. Dessa forma será possivel que seentenda de maneira mais clara algumas das diferenças no processo de adaptação. Atravésde autores como Marcos Rey, de artigos de Constança Hertz e André Klotzel, teremos umaidéia de como funciona esta linguagem e como se dá a questão da adaptação. Neste ponto,podemos comentar também a conveniência de elaborar uma adaptação para que se possacontar uma história através de imagens, e da importância do roteiro neste processo. GabrielGarcia Marquez, em “Como contar um conto”, fala um pouco sobre esta questão do roteiroe sua linguagem.

Por outro lado, será igualmente interessante perceber que, apesar das diferenças entreessas duas linguagens, ambas estabelecem um diálogo que vem desde meados dos anos 20,como nos mostra Flora Sussekind em seu livro Cinematógrafo de letras. Não é à toa queadaptações são possíveis de serem feitas neste trabalho de transição entre o literário e ocinematográfico. Ao fim, o objetivo será sempre contar uma história, seja ela através destaou daquela linguagem.

2 – Adaptação

Ao procurarmos pela definição do que é uma adaptação, vemos que se trata de “modificar otexto de (obra literária), ou tornando-o mais acessível ao público a que se destina, outransformando-o em peça teatral, script cinematográfico, etc”. Esta definição contida noDicionário Aurélio nos dá inicialmente uma noção do que vamos observar a respeito dostextos arturianos que foram adaptados para uma outra linguagem: a cinematográfica. Ocinema de todo o mundo se utiliza da literatura como fonte para a criação de projetosdestinados a um grande público. Mas esta questão da adaptação costuma ser consideradapor alguns um tema controvertido pois, na grande maioria das vezes, tais adptações não sãobem recebidas por aqueles que já tiveram um contato anterior com a obra literária. Afidelidade à obra original é, na maioria das vezes, cobrada pelos leitores que não vêem combons olhos as possíveis modificações realizadas pelos diretores cinematográficos. Éimportante que se discuta até que ponto o adaptador é obrigado a se prender aos elementosda obra original e, portanto, até que ponto pode ir sua liberdade criadora.

Esta utilização de uma concepção de adaptação fílmica postulada em termos defidelidade faz com que obras cinematográficas que sejam adaptadas fiquem subordinadasaos critérios literários. Trata-se de questão delicada, pois é preciso que se analise também alinguagem para o qual determinada adaptação foi feita. No caso do cinema, este percebeuque uma série de elementos presentes na literatura serviam adequadamente aos seuspropósitos. Cineastas viram desde cedo que o universo literário abriga temas e estruturasnarrativas que poderiam constituir uma verdadeira fonte de inspiração e de trabalho. Comoexemplo temos o caso de Griffith, que reconheceu nas narrativas de Charles Dickensmodelos, técnicas, concepção de ritmo e de suspense e articulação de duas açõessimultâneas e paralelas que se encaixariam muito bem no formato cinematográfico. Já em

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1867, Mélies adaptava da literatura Fausto e Margarida, em 1868, A Gata Borralheira e,em 1902, iniciava seu percurso de versões de obras de Júlio Verne, com Viagem à Lua.Vemos por aí que esta aproximação do cinema com a literatura no que diz respeito aadaptações não é recente. Mesmo assim, as críticas referentes às adaptações são muitas,como afirma Marcos Rey, em seu livro O Roteirista Profissional: “…a daptação, mesmoexcelente, sempre desagrada os que dela esperam uma fidelidade maior. O público que leuo livro deseja vê-lo todo na tela. Notando a falta de uma cena ou dum personagem semimportância, fica contra. Uns arrogan-se defensores da obra deste ou daquele escritor, ediante de uma adaptação reagem agressivamente se algo na obra foi esquecido oumodificado” e, acrescenta logo depois, “no geral existe um juizo preconcebido contraadaptações”.

Este desagrado com relação às adaptações é o que vemos também nos filmes queretratam a história de Artur. Kevin J. Hartly comenta sobre esta questão ao se questionarsobre quais os critérios utilizados para a classificação de uma filme arturiano como bom ouruim. Hartly diz que, ao se julgar um filme arturiano, é necessário que antes se estabeleçaquais serão os termos deste julgamento, sejam eles baseados na estética cinematográfica oubaseados nas histórias arturianas escritas, ou até mesmo em ambos os critérios. Mas, comonão poderia deixar de ser, as críticas com relação a alguns filmes arturianos como Lancelote As Brumas de Avalon não foram muito animadoras. Quando estivermos analisando cadafilme, veremos algumas destas críticas e, claro, veremos também como estas adaptações sederam. Mas antes é importante que ainda nos detenhamos um pouco mais sobre a discussãoda adaptação em geral, para que tenhamos uma base maior para nossa futura análisearturiana.

Voltando portanto à questão dos critérios de escolha de julgamento citado por Kevin J.Hartly, também podemos observar alguns depoimentos de profissionais da área do cinema,como é o caso do roteirista norte-americano Syd Field. Ele diz que o produto final adaptadonão deve ser analisado segundo critérios de fidelidade, mas de funcionalidade dramática.Quer dizer, Field afirma que o roteirista do filme deve ter liberdade de criação, uma vez quese está utilizando de uma linguagem diferente. “Adaptar é a mesma coisa que escrever umroteiro original, pois o processo de adaptação de uma narrativa implica a construção de umoutro texto, o dramático (…) são formas diferentes”. Outra opinião a respeito do tema é deGérard-Denis Farcy, que ao falar de adaptação diz que que o mínimo inerente à adaptaçãoestá na história e não nos personagens, que podem ser mudados. No entanto, a partir destaopinião é interessante pensarmos que, no caso dos filmes sobre o rei Artur, a históriacentral que em princípio deveria ser seguida está intimamente ligada a um personagem: orei. Ele é o centro da história, é a figura legendária que nas aventuras relatadas é aquele queconduz as tramas com coragem e bravura. Estes aspectos do personagem, portanto, nãopoderiam ser modificados ou alterados em nome de um novo e original roteiro. Dessaforma, a verdadeira essência que foi, desde o princípio, a fonte para as aventuras doscavaleiros da Távola Redonda, não poderia ser transformada. E, como veremos maisadiante, a figura de Artur e sua bravura e bondade não são alteradas nos filmes em questão.

Para que então entremos nos filmes analisados, seria interessante acrescentar que, separa a linguagem cinematográfica parece ser apenas na história que está a parte central dotrabalho de transposição ou adaptação, não devemos nos esquecer das considerações dealguns profissionais do cinema que dizem respeito às condições necessarias para que umaadaptação seja realizada da forma o mais fiel possível. A primeira destas considerações éque o texto original seja condizente com a duração pretendida pelo cinema, para que não

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seja necessário acrescentar ou suprimar muitas cenas. Na grande maioria dos casos, asobras literarias, ao passarem para as telas, sofrem cortes para que a duraçãocinematográfica seja adequada. Veremos que, no caso de As Brumas de Avalon, o diretorpereceu querer transpor quase que integralmente a obra original, o que resultou em umfilme extremamente longo e por vezes cansativo.

Outra consideração importante se refere à importância de as ações do original serem“filmáveis”, não apenas de acordo com as possibilidades de orçamento e produção, mas quesejam ações próprias para a tela do cinema. Dessa forma, alguns autores afirmam queexistem textos propriamente adaptáveis e outros que constituem um desafio. Sobre istoUmberto Eco diz que “(…) a história e enredo não são funções da linguagem, masestruturas quase sempre passíveis de tradução para outro sistema semiótico”. Estastraduções ocorrem em conformidade com o texto original e o essencial parece residir namaior ou menor capacidade de a obra fílmica gerar um produto estético de boa qualidade.Este é o critério discutido em artigo sobre cinema, literatura e adaptação cinematográfica,de Sérgio Paulo Guimarães de Souza. Ele diz também que, sempre que se discute ouquestiona a adaptação ao cinema de um objeto literário, abala-se a centralidade concedida àfidelidade como critério de avaliação, e aposta-se na tônica de que uma apropriação fílmicada obra literária corresponde a uma leitura desta. Como se dará esta leitura é o quepodemos observar. A partir daí, poderíamos começar a pensar: e os textos arturianos? Sãoadaptáveis? Constituem um desafio?

3 – Adaptações arturianas

Apesar da defesa de alguns profissionias cinematográficos com relação às adaptaçõesfílmicas de obras literárias, percebemos que na maioria das vezes existe um juízopreconcebido contra estas adaptações. Mesmo assim, elas continuam sendo feitas, e cadauma apresenta resultados tão diversos que podemos pensar que realmente não existe ummodelo pré-estabelecido para todos os casos. Trata-se de um processo que exige esforço ecriatividade dos roteiristas para que consigam transformar em imagens as mais diversasnarrativas. Como vimos também, algumas obras parecem possuir caracterísitcas que sãomais facilmente adaptáveis para o cinema. No caso das obras literárias arturianas,percebemos que existem ingredintes que, antes de mais nada, estão de acordo com asintenções que envolvem as produções de cinema. Elementos que compõem uma históriadramática, capaz de prender a atenção do espectador, estão todos presentes na história dorei Artur, como grandes batalhas envolvendo heróis e bárbaros inimigos, aventurasrecheadas de magia e coragem que envolvem a figura de um típico herói de cinema: um reibom, justo, corajoso, carismático. Ao levar para as telas um personagem com taiscaracterísticas, o diretor e o roteirista tem a possibilidade de trabalhar com um tipo queagrada tradicionalmente o grande público. Não podemos no entanto deixar de lembrar queas produções cinematográficas ao estilo Hollywood costumam levar ao extremos estadinâmica entre o herói e o bandido. Por ser uma estrutura altamente explorada, vemos nosfilmes arturianos a figura do personagem mau bem marcada, constrastando com asqualidades do herói e seus fiéis companheiros, sempre bravos e prontos para a luta. Mas, seobservarmos bem, é exatamente isto o que vemos nas obras literárias arturianas: o rei bom,quase que sem defeitos, junto a seus cavaleiros e contra os inimigos saxões bárbaros emaus. Talvez seja por isto mesmo que as narrativas arturianas tenham inspirados tantos

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diretores que viram nas aventuras emocionantes dos cavaleiros uma estrutura que seadequaria às regras de uma bom filme de ação e aventura.

Nas adaptações Excalibur , Lancelot e As Brumas de Avalon vemos algumascaracterísticas citadas por roteiristas e diretores sobre os tipos de transposições que podemser feitas para o cinema. Uma delas é a chamada “adaptação baseada em…” onde semantém a história na íntegra, mas se permite algumas modificações que podem ser denomes de personagens e de algumas situações. Este seria o caso do filme de John Boorman,de 1981, Excalibur. O filme se inicia com o conflito que estará prestes a acontecer quandoUther Pendragon, escolhido rei da Bretanha, se sente atraído por Igraine, esposa de seurival Gorlois. Com a ajuda de Merlin, Uther adquire a aparência de Gorlois e entra em seucastelo conseguindo então se juntar a Igraine. Deste enlace nasce Artur que é levado porMerlin e é criado por outra família. Uther morre em emboscada e enterra a espadaExcalibur em uma pedra da qual será arrancada pelo futuro rei da Bretanha. Tempos sepassam e o jovem Artur, sem saber de sua linhagem real, consegue arrancar Excalibur dapedra e se torna rei. Com o tempo, Artur estabelece a paz, cercado por seus cavaleiros daTávola Redonda. Casa-se com Guinevere, mas seu cavaleiro Lancelot se apaixona por ela eela por ele e ambos são acusados de adultério. Nesse mesmo tempo, a irmã de Artur,Morgana, planeja trair Artur e Merlin e, depois de ter com o irmão um filho, Mordred, ela ousa para tomar posse do reino. Artur, enraivecido, quebra a espada Excalibur e o reino entranum período de caos e devastação, enquanto seus cavaleiros partem em busca do Graal pararedimir e salvar a Inglaterra. Percival é quem encontra o Graal e o traz a Camelot parareabilitar Artur. O rei recupera a força e enfrenta Morgana e Mordred, que é morto embatalha final por Artur. Este por sua vez é mortalmente ferido e levado em barco guiado pormulheres misteriosas, e Percival devolve Excalibur para a Senhora do Lago. A partir desteresumo do enredo do filme, percebemos que, na maior parte, o diretor procurou se manterfiel à história literária de Malory. De acordo com opiniões de alguns fãs da história deArtur, as quatro áreas em que o filme se manteve fiel à narrativa foram: a conexão daespada Excalibur a forças mágicas, a ida de Artur mortalmente ferido em barco paraAvalon, a ênfase em Lancelot como cavaleiro preeminente e a ida de Guinevere para oconvento ao final. Entre os filmes arturianos este parece ser o que conseguiu agradar umpouco mais aos leitores da história de Artur, mas mesmo assim não seguiu inteiramente anarrativa de Malory como, por exemplo, no momento em que Guinevere e Lancelot sãoacusados de adultério. No filme o acusador é apenas Gawain enquanto que no livro osacusadores são quatorze cavaleiros. De qualquer forma, este não parece ser um “erro” tãofatal a ponto de não se considerar a adaptação como boa. Outra opinião com relação a elafoi do estudioso de Artur, Kevin J. Hartly, que afirmou ser o filme livremente baseado nolivro de Malory, o que, como veremos mais adiante, significa uma adaptação que étrabalhada sob um novo ponto de vista. Kevin também declarou que o filme “nãoenvelheceu bem”; que analisando-o agora parece-lhe ser um produto específico da épocaem que foi feito, dominado por uma marcação musical pesada. Também vemos algumascenas no filme que caracterizam aspectos tipicamente recorrentes no entretenimento visual,como é o caso das cenas iniciais entre Guinevere e Uther, que são talvez mais recheadas deerotismo do que as narrativas escritas. Mas, como estamos falando da linguagemcinematográfica norte-americana, este é um ingredinte que não poderia faltar. Tambémpode ser interessante compararmos o filme com as narrativas arturianas anteriores à deThomas Malory. Neste caso, encontramos mais diferenças, tais como a personagem deMorgana que, em Geoffrey de Monmouth aparece apenas ao final quando Artur é levado

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para Avalon. Já no filme ela aparece em todo o decorrer da trama como a irmã má etraiçoeira que através da magia engana a todos. Também não vemos em Geoffrey opersonagem Lancelot, que viria a ser criado por Chrétien de Troyes, assim como a TávolaRedonda, inventada por Wace. Outro aspecto interessante que diverge entre a narrativa deGeoffrey e o filme é a presença de Merlin, que no filme está o tempo todo presente ao ladode Artur, como uma espécie de conselheiro. Em Geoffrey, Merlin não se encontra comArtur pessoalmente em nenhum momento. E ainda um outro ponto é a cena da espadaenterrada na pedra que viria a aparecer na narrativa de Robert de Boron e não em Geoffrey.Mas, como estamos falando de adaptações e Excalibur se apresenta como uma adaptação daMorte de Arthur de Thomas Malory, estas diferenças com relação a Geoffrey de Monmouthnos servem apenas como uma ilustração à parte. No que se refere a Malory, vimos umadiferença relacionada ao filme e podemos ver uma outra ainda que é a ênfase no filme emPercival, que parece ser para alguns uma modernização realizada por Boorman. Igualmenteo personagem de Bedivere não é mencionado no filme, enquanto que Malory em seu livrolhe dá a função crucial de devolver Excalibur para a Senhora do Lago.

Como é possível perceber, as modificações estabelecidas pelo diretor John Boorman nãoforam tão grandes e não mudaram o sentido básico da história de Artur. Vimos que existemvários tipos de adaptação e uma delas é a “baseada em…”, como foi o caso de Excalibur.Nela, a história se mantém na íntegra, mas nomes de personagens ou situações podem sermodificados. Foi o que aconteceu com os personagens de Percival e Bedivere e aeliminação dos outros acusadores na cena do adultério, por exemplo.

Outra espécie de adaptação é aquela chamada de “inspirada em…” onde se desenvolveuma nova estrutura para a história tomando como referência um personagem e umasituação dramática. Há também a “recriação”, onde o grau de fidelidade é mínimo, limita-seà trama central, e a “adaptação livre”, na qual história, tempo, espaço e personagens sãomantidos mas a estrutura é montada sobre um dos aspectos dramáticos da obra. Talvez sejaesta última o caso do filme Lancelot, de 1995, do diretor Jerry Zucker. O que vemos nestefilme é a utilização de um determinado ponto de vista, de uma determinada situaçãodramática como trama central. No caso, estamos falando do amor entre Lancelot eGuinevere e do próprio personagem Lancelot. O filme não diz em que obra literária foiinspirado e, portanto, podemos analisá-lo a partir das primeiras narrativas arturianas etambém naquelas em que aparece Lancelot.

O filme, como o próprio nome diz, tem como inspiração central o cavaleiro Lancelot.Ele aparece como o vemos nas narrativas literárias; é um cavaleiro corajoso, destemido ebem apessoado. Mais uma vez os ingredintes de um verdadeiro herói ao estilo Hollywoodestão presentes, sendo que desta vez eles estão concentrados principalmente em Lancelot,enquanto que Artur, mesmo aparecendo como um rei justo e corajoso, não possui asqualidades de um “galã” como é o caso de Lancelot. Neste filme vemos o herói charmoso,bonito, que encanta a mulheres, como a rainha Guinevere. Na verdade isto também é o queacontece nas narrativas arturianas, onde Lancelot é aquele que conquista as mulheresenquanto que o encanto de Artur não parece ser exatamente na área amorosa. Além de ofilme se concentrar na figura de Lancelot, vemos de novo a figura do vilão bem delimitada,como aquele que assume a postura de extremamente perverso. Malagant, o vilão e ex-cavaleiro de Artur, o trai e faz de tudo para tomar o reino. Suas maldades e atos de traiçãonos lembram o personagem Mordred que aparece em Excalibur e na narrativa de Geoffrey.Embora o sequestrador da rainha se chame Meleagant em Chrétien de Troyes,provavelmente o personagem Malagant do filme se refere sobretudo a Mordred, o que nos

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leva a perceber uma das modificações realizadas durante a adaptação. Outro aspecto queevidencia modificação no texto arturiano se refere às cenas no filme em que Lancelot éconvidado por Artur para ser um cavaleiro da Távola Redonda e ele só aceita para ficarperto de sua amada Guinevere. Ao lermos as histórias de Artur, isto não se dá destamaneira, uma vez que Artur, ao se casar com a futura rainha, já tinha Lancelot como bravocavaleiro entre seus companheiros. Portanto o motivo pelo qual Lancelot aceita se tornarum cavaleiro não parece ser por causa de Guinevere e sim por sua amizade, lealdade econfiança em Artur.

Ainda no filme Lancelot, podemos observar a cena em que Guinevere e Lancelot sãojulgados em praça pública por adultério, e o vilão Malagant interrompe o julgamento eataca Artur e seus cavaleiros. Nesta cena temos um dos momentos em que a bravura ecoragem de Artur aparecem mais explicitamente: quando ele se nega a ajoelhar-se peranteMalagant, recusando a oferecer-se como seu servo. Malagant e seus homens se encontramestrategicamente situados para matarem Artur que, diante da ameaça de morte, não seajoelha e conclama o povo a lutar até o fim. Neste momento o rei é então mortalmenteferido por Malagant, o que nos leva às narrativas literárias onde Artur é tambémmortalmente ferido por seu rival e filho Mordred em batalha. No filme vemos a questãocentral, ou seja, a morte de Artur por seu traidor. O nome do personagem está trocado, elenão aparece como o filho do rei e a batalha se dá durante o julgamento de adultério. Comovemos, algumas modificações foram feitas pelo diretor e roteirista que se preocuparam emmanter apenas os acontecimentos centrais. Este filme, portanto, seria o que assinalamosanteriormente como adaptação livre a partir da história literária do rei Artur. Diretor eroteirista escolheram o viés do amor entre Guinevere e Lancelot para contarem a história. Apartir deste ponto de vista do romance é que o filme foi construído.

Já no filme As Brumas de Avalon encontraremos um outro ponto de vista, o ponto devista das mulheres presentes na história do rei Artur. Temos aí portanto um viéscompletamente diverso daquele apresentado em Excalibur e Lancelot, mas esta adaptaçãofílmica está de acordo com a obra da qual foi adaptada: o romance As Brumas de Avalon,de Marion Zimmer Bradley. A estrutura do filme segue o mais fielmente possível aestrutura literária da autora, excetuando-se as cenas em que a irmã de Igraine, Morgause,lança um feitiço sobre a rainha para que esta não possa engravidar. Isto não é o queacontece no livro que, apesar de, como no filme, colocar a figura de Morgause como umpersonagem não bondoso, não atribui a ela a razão da infertilidade de Guinevere. Tambéma “maldade” de Morgause é profundamente acentuada no filme pois, como já vimos, todaobra cinematográfica norte-americana parece necessitar de um vilão bem delineado quesirva como a função do inimigo que que se contrapõe ao herói bom e justo. No filme, osheróis são Artur e Lancelot, mas a personagem de Morgana ganha grande importânciacomo se desempenhasse o papel de uma heroína que sofre e luta. Este aspecto, éinteressante observarmos, é o oposto do que vemos em algumas narrativas arturianas queretratam a irmã de Artur como uma feiticeira má. Em algumas outras, por outro lado, malse fala em Morgana, como no caso de Geoffrey onde a personagem só aparece ao final,quando Artur é levado para Avalon. Temos estes dois exemplos também nos filmesanalisados. Enquanto em Excalibur Morgana adquire o papel da feiticeira má e traidora doirmão, em Lancelot ela simplesmente não existe. Mas em As Brumas de Avalon não apenasMorgana, mas outros personagens femininos, como a Senhora do Lago, ganham grandeimportância pois é através delas que a história de Artur é contada. A perspectiva femininae, mais ainda, a perspectiva das mulheres mágicas de Avalon é o fio condutor da narrativa

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do romance e do filme. A autora Marion Zimmer Bradley constrói uma história onde asações de Artur, os acontecimentos do reino, da Bretanha, as vinganças, aventuras e relaçõesamorosas são todos guiados por estas mulheres de Avalon. Com isso percebemos que, secompararmos esta narrativa com outras sobre Artur, encontramos uma série de diferençasestabelecidas a partir de um novo e diferente ângulo. No entanto, não podemos esquecerque, mais uma vez, os fatos e acontecimentos principais foram mantidos. A história básicaé a mesma, o que é diferente é a maneira como esta estrutura básica é contada. Enquanto aprópria Marion Bradley realizou uma adaptação das narrativas arturianas, o filme AsBrumas de Avalon segue o livro da autora na maior parte das cenas.

4 - Conclusões sobre a linguagem cinematográfica e as adaptações arturianas

Por mais complicado que seja para os que se desagradam da pouca fidelidade que asadaptações dos filmes arturianos estabelecem, é preciso lembrar mais uma vez que não setrata de processo fácil. E que, além disso, a obra fílmica possui um olhar; o olhar de umautor de cinema que reflete o seu ponto de vista, o seu modo de transmitir através deimagens uma história já conhecida via outros meios, como o literário. Mas é exatamentedisto que trata uma adaptação. É a transformação de algo de um determinado meio, de umadeterminada linguagem, para outro meio, outra linguagem. Por se tratar de uma outralinguagem, o resultado não poderia ser o mesmo. A “tomada” é outra – é a tomadacinematográfica. É evidente que, por outro lado, a adaptação não deve ser uma total traiçãocontra a obra literária; do contrário, para que se utilizar de um original? Nos filmes queobservamos não ocorre uma traição total das primeiras narrativas arturianas e nem dasobras de onde foram tiradas, como é o caso de Excalibur e As Brumas de Avalon. O queocorreu foram ênfases em determinadas situações ou personagens, e, para alguns talvezmais grave, novos pontos de vista utilizados. Mas é na maioria das vezes a questão dalinguagem que faz com que modificações sejam adotadas e que a impressão de umdeterminado diretor seja passada para o público. Esta relação acontece desde a criação dasprimeiras veiculações cinematográficas. Quando o cinematógrafo foi inventado, porexemplo, a nova linguagem que surgia era vista não apenas como algo que dependia dereprodução, mas também de criação, invenção. Flora Sussekind em seu livroCinematógrafo de Letras nos fala sobre os passos iniciais desta nova linguagem, e diz que afita cinematográfica se tornou em determinado momento uma “espécie de diário emmovimento de impressões pessoais variadas (…) assume os contornos da ‘personalidade’do operador”.

As duas linguagens, a literária e a cinematográfica, sempre estabeleceram uma conexãoentre si e, apesar de suas diferenças, conseguem manter um diálogo como pode ser vistoatravés das adaptações cinematográficas. Se em alguns momentos a fidelidade às históriasdo rei Artur não foi mantida, ou se não agradaram a alguns, estas adaptações procuraramseguir a estrutura central, inserindo alterações que se encaixassem ao espírito do cinema eao espírito do diretor. Pois isto não podemos evitar: todo autor, por mais que esteja somenteadaptando, inclui elementos de seu próprio repertório. Espera-se apenas que isto seja feitocom responsabilidade e respeito.

E cabe mais uma vez lembrar que adaptar não é tarefa fácil. Como afirma o jornalista ecrítico de cinema e literatura, Ubiratã Brasil: “Adaptar uma obra literária para a linguagemdo cinema pede uma série de qualificações do roteirista, que deve ter a firme disposição de

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selecionar trechos compatíveis com a narrativa cinematográfica. Mesmo que isso exija osacrifício de momentos essenciais. A tarefa é árdua e exige, além de criatividade, umpunhado de coragem”.

Referências Bibliográficas

1 - Malory, Thomas. A morte de Arthur. Brasília, Thot Livraria e Editora, 19872 – Zimmer Bradley, Marion. As Brumas de Avalon. Rio de Janeiro, Imago Editora, 19823 – Furtado, Antonio. Artur e Alexandre. São Paulo, Ática, 1995.4 – Metz, Christian. A significação no cinema. São Paulo, Perspectiva, 19685 – Sussekind, Flora. Cinematógrafo de letras. Rio de Janeiro, Companhia das Letras, 19876 – Carrière, Jean-Claude. A linguagem secreta do cinema. Rio de Janeiro, Nova Fronteira,

19957 – Garcia Marquez, Gabriel. Como contar um conto. Rio de Janeiro, Casa Jorge Editorial,

20018 – Avellar, José Carlos. Cinema e Literatura no Brasil. São Paulo, Câmara Brasileira do

Livro, 1994

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Da Cavalaria à Ficção-Científica:O rei Arthur e os cavaleiros da Távola Redonda em quadrinhos

Mário Feijó Borges Monteiro

No final da Idade Média, Thomas Malory veio reunir com êxito todas essas abordagens: o Arturheróico defendendo o país, seus cavaleiros obcecados em aumentar a própria fama, a cruzadasimbólica da busca do Graal. Dessa época aos nossos tempos, vêm ocorrendo inumeráveistentativas, com grau variado de sucesso, para atualizar o conceito heróico arturiano adaptando-oaos novos contextos.

A. L. Furtado1

Antes de Gildas, Nennius, Geoffrey of Monmouth, Wace, Chrétien de Troyes, Robert deBoron ou mesmo Thomas Malory havia o canadense Harold (Hal) Foster, grande mestredos quadrinhos. Para mim, foi assim que a lenda começou, lá pelos meus oito anos.Gostava muito de ouvir meu pai contar histórias baseadas em filmes, livros e gibis. Elecostumava narrar de memória, recordando suas aventuras favoritas, fazendo uma ou outraadaptação para agradar ao público (que, no caso, era apenas eu). Foi assim que me tornei fãpor antecipação de filmes como King Kong, romances como O último dos moicanos e dasséries em quadrinhos Tarzan e Príncipe Valente nos tempos do rei Arthur.

Passariam-se ainda alguns anos até que eu pudesse ler os gibis escritos e desenhados porFoster (em edições comemorativas publicadas pela antiga EBAL); entretanto o importantejá estava garantido: o conhecimento de que havia um grande rei em cuja corte se reuniamos mais bravos cavaleiros do mundo, todos guerreiros extraordinários, verdadeiros heróis.

É curioso observar que os quadrinhos como os conhecemos não existiam antes de HalFoster começar a desenhar as tiras de Tarzan para jornais norte-americanos. Até 1929, afórmula usada para fazer sucesso era inventar coisas absurdas e engraçadas, sempre a partirde situações típicas do cotidiano das famílias. A história começava e acabava na mesmatirinha de jornal (ou página dominical). Prevalecia o desenho caricatural, não havia nenhumrealismo estético – os personagens nunca pareciam seres humanos ou animais reais, namelhor das hipóteses eram apenas desproporcionais. As séries eram sempre cômicas: OsSobrinhos do Capitão de Rudolph Dirks, Sonhos de um Comilão e Little Nemo de WinsorMcCay, Mutt & Jeff de Bud Fisher, Krazy Kat de George Herriman, Pafúncio & Marocasde Geo McManus, Gato Félix de Pat Sullivan, a pequena orfã Annie de Harold Gray, etantos outros. Daí o fato de que, até hoje, os gibis serem chamados de comics nos países delíngua inglesa.

As narrativas visuais feitas de aventura e romance, com tramas de longa duração e umamocinha sempre em perigo, surgiram apenas quando o popular escritor norte-americanoEdgar Rice Burroughs autorizou a adaptação de seus livros sobre o famoso rei das selvaspara o formato quadrinhos. As novas histórias de Tarzan estrearam em tiras diárias em1929 e, em 1931, Hal Foster já estava escrevendo e desenhando para as páginas coloridasdominicais.

1 FURTADO, 1985, pág. 211.

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Com Tarzan, cada tira ou página dominical passava a ser um breve capítulo de umalonga história. A emoção e o suspense continuavam sempre no mesmo jornal no diaseguinte, no caso das tiras, ou na semana seguinte, no caso das páginas. Dessa maneira, oleitor deixava de rir da piada em forma de situações ligeiras (onde cada personagem já tinhasuas situações típicas) para acompanhar verdadeiro folhetim. Ou seria um romance decavalaria ambientada no coração da África?

Em 1937, cansado de trabalhar para os outros, Foster resolveu deixar o personagem deBurroughs para ficar razoavelmente rico com sua própria criação: as páginas dominicais doPríncipe Valente, herói dos tempos gloriosos da Távola Redonda.

Naquela nova série, Arthur, Lancelot e Merlin eram meros coadjuvantes. Sir Gawain (ouGalvão na tradição portuguesa) era o único cavaleiro que realmente tinha algumaimportância, pois atuava como um mentor do jovem Valente. A rigor, Foster não precisavaambientar seu herói “nos tempos do rei Arthur”, visto que o rapaz viajava bastante, corriamundo, aventurava-se no Oriente, lutava com piratas, derrotava gigantes, derrubava tiranos,fazia de tudo um pouco. Valente podia ser um herói medieval, um príncipe corajoso e umcavaleiro excepcional sem precisar viver “nos tempos do rei Arthur”. Acontece que HalFoster não deixara Tarzan para correr riscos...

Não sei se ele percebia claramente que a estrutura dramática e o apelo heróico dosquadrinhos de Tarzan e de outros personagens recém-chegados (como Flash Gordon)remetia diretamente aos romances de cavalaria. Entretanto, com certeza, o artista sabia dopoderoso fascínio exercido pelos mitos arturianos no imaginário popular. Inserir Valenteentre os cavaleiros da Távola Redonda era sua estratégia para ficar rico (e disso nunca fezsegredo).

É necessário registrar que, apesar de ter sido um importante divulgador da lenda do reiArthur, o criador do Príncipe Valente nunca se propôs a fazer uma adaptação da Matéria daBretanha. Sua obra se inspirava na mitologia arturiana e só. Não havia nenhuma intençãode atualizar Arthur, Merlin, Lancelot ou Gawain como heróis para uma nova geração deleitores.

À exceção da saga Camelot 3000, de Mike Barr e Brian Bolland, publicada pelaprimeira vez em 1982, e que comentarei em breve, todas as demais séries em quadrinhosusaram elementos da lenda para enriquecer suas tramas ou promover suas vendas, sem,contudo, restabelecer a Arthur seu lugar de direito como poderoso e invencível rei-guerreiro, senhor da temida espada Excalibur, aquele que retornaria quando a Inglaterramais precisasse.

Mesmo em séries britânicas como Capitão Britânia (1977) e Union Jack (1999), que arigor são dois super-heróis ingleses publicados pela editora norte-americana MarvelComics, lá estão os elementos lendários tão-somente como coadjuvantes a enriquecer atrama.

Na primeira, o futuro líder de uma super-equipe de mutantes europeus (que seriabatizada como EXCALIBUR) ainda é apenas o estudante Brian Bradock. Em Stonehenge,diante de Merlin e Morgana, ele tem de escolher, entre uma espada encravada na rocha eum amuleto misterioso, qual será o seu símbolo de poder. Bradock escolhe o amuleto e setorna o Capitão Britânia em sua primeira encarnação (na década de 1980 o personagemseria reformulado).

Na segunda, o herói mascarado Union Jack (o terceiro da linhagem) tem de impedir quea temível rainha de uma horda de vampiros encontre e se apodere do Santo Graal. Ele

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fracassa na missão, mas tudo acaba bem, porque a visão do Graal extermina a horda comose fosse o sol do meio-dia. Mais uma vez, nada de Arthur, Lancelot ou Guinevere...

Outro interessante ponto de ligação entre os quadrinhos de aventura e ação editados parajovens e certos elementos da tradição arturiana é um ocultista que mora em Gotham Citychamado Jason Blood, um tipo muito estranho e misterioso.

Gotham, como o mundo inteiro sabe, é a cidade do Batman. Sempre que o homem-morcego tem de investigar algum caso macabro envolvendo forças sobrenaturais bemsinistras, ele costuma recorrer à orientação especializada de Blood. E Batman não é o únicoa fazer isso, outros super-heróis da mesma editora, a DC Comics, já pediram socorro aoperito em ocultismo, pois o "cara" entende como ninguém sobre criaturas infernais,maldições e afins. Pudera. O homem (?) na verdade é um demônio! Não um qualquer, maso meio-irmão de Merlin por parte de pai.

Segundo a lenda, o mago era filho de um ser das trevas com uma mulher mortal,portanto meio-humano. Blood, porém, é totalmente demoníaco, nasceu no inferno, foigerado para ser um escravo de Merlin; seu nome verdadeiro é Etrigan, um ser horrendo,fedorento e amarelo que só fala em rima. Ah, ele também cospe fogo e adora matar. Suamissão, no passado, era dar combate a Morgana. Em nossa era, ganhou independência, nãoquis mais saber da luta eterna entre o mago e a feiticeira e agora cuida é da sua vida. Seusobjetivos e motivações não são claros; com certeza, sabe-se somente que ele odeia o irmãoMerlin (a quem já teve a oportunidade de aprisionar e torturar) e todos os outros demônios.É um personagem extremamente carismático, porém cada vez mais distante de sua origemarturiana.

Origem? Ah, sim. A “verdadeira” origem de Etrigan, o demônio, é, no mínimo, um tantocuriosa. Décadas antes de começar a fazer sucesso em Gotham City, disfarçado na figurahumana do ocultista Jason Blood (um simulacro de carne e sangue), o terrível Etrigan era opróprio Príncipe Valente. Como é possível? Ora, é a intertextualidade...

Houve uma aventura de Valente, na década de 30, em que o rapaz se disfarçou de diaboamarelo para enganar e assustar os vilões que dominavam um castelo. Usando de tal ardil, ojovem príncipe libertou o castelo sozinho, sem precisar pegar em armas para lutar com ummonte de inimigos. Essa história e o desenho que Hal Foster criou para o disfarce de“demônio amarelo” devem ter influenciado Jack Kirby, o primeiro a desenhar Etrigan, lápelos anos 60. O visual de Etrigan é absolutamente idêntico ao disfarce do PríncipeValente.

Também na editora DC Comics, temos o caso de Aquaman, o herói submarino, rei dosmares, cujas semelhanças com a lenda de Arthur têm sido acentuadas progressivamente pordiferentes artistas. Rick Veitch, o atual roteirista titular da revista, porém, resolveuradicalizar e mergulhar de cabeça no charme dos velhos mitos da Bretanha. Reproduzo suaspalavras em entrevista disponível no site oficial da editora em maio de 2003:

RICK VEITCH: There have long been hints of a connection with Arthurian legend in the Aquamanmythos, and while I can categorically say we're not going to make him the long lost reincarnation of KingArthur, we are going to resonate with some of that stuff in devilishly cool ways.

Mas, afinal de contas, que conexão pode existir entre um rei da Atlântida, um homem dofundo do mar, e o lendário rei dos bretões? De início, nada. Acontece que o nomeverdadeiro de Aquaman é Arthur Curry Jr... A Atlântida, portanto, tem o seu rei Arthur.

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Quando surgiu, em 1940, o personagem Aquaman tentava faturar uma fatia do mercadode gibis dominada por Namor, o Príncipe Submarino, da Timely Comics (antecessora daMarvel). Na sua versão original, Aquaman era um rapaz da superfície, filho de um cientistadedicado a explorar as profundezas dos oceanos em busca das ruínas submersas da cidadeperdida de Atlântida. Ao encontrá-las, o cientista passava a viver numa espécie delaboratório submarino, sozinho com o filho. Usando os segredos da ciência atlante,conseguia o milagre de fazer o rapaz respirar debaixo d´água, comandar os peixes portelepatia etc. etc. etc. O resto era o de praxe na década de 40: o cientista morria, o filhojurava defender a justiça, a verdade e o modo americano de viver e passava a proteger osnavios aliados dos ataques traiçoeiros dos submarinos nazistas.

Foi na década de 50, quando a publicação das aventuras de Namor tinha sido cancelada,que os editores de Aquaman resolveram se apropriar daquele conceito de príncipesubmarino, apresentando uma nova origem para o personagem, quase idêntica à de Namor.Em resumo: (1) a filha do monarca da Atlântida, como a pequena sereia de Hans ChristianAndersen, subia à superfície e se apaixonava por um homem, (2) casava com ele e geravaum filho; (3) os soldados atlantes finalmente acabavam por encontrá-la e a levavam devolta para o fundo do mar à força. As diferenças eram mínimas: (4) o destino do pai e (5) olocal de nascimento do bebê híbrido. Em Namor, o pai era o comandante de um naviomercante, o capitão McKenzie. No novo Aquaman, o pai era o solitário encarregado de umfarol, chamado Arthur Curry. O capitão MacKenzie era assassinado pelos soldados e aprincesa dava à luz depois de retornar à corte imperial. O faroleiro Arthur era poupadopelos soldados, mas assistia impotente ao seqüestro da esposa e do filho pequeno (aprincesa dera à luz na ilha do farol). Assim, na nova versão, muito mais do que um heróisubmarino, Aquaman era um rei dos mares.

Quando Stan Lee trouxe o velho Namor de volta aos gibis da Marvel (primeiro comocoadjuvante do Quarteto Fantástico, depois dos Vingadores), Aquaman entrou emconstrangedora crise de identidade, a qual foi superada aos poucos. Entretanto, se o nomecivil do personagem não fosse Arthur, não sei como a história teria continuado...

Hoje, a biografia oficial do rei Arthur da Atlântida, em resumo bem resumido, é aseguinte: (1) um feiticeiro banido do reino de Poseidonis, o mais importante daconfederação atlante, assumiu a forma do monarca e se deitou com a rainha, gerando umfilho. O bebê nasceu louro, algo inusitado no mundo submarino, uma espécie de marcamaldita, indicativo de desgraça ou adultério. (2) O monarca, sabendo que o filho não eraseu, ordenou que ele fosse levado para longe, para morrer em águas distantes. À rainha,disse que o bebê morrera logo após nascer. (3) Milagrosamente, a criança sobreviveu,protegida por golfinhos, e depois foi encontrada numa das praias da ilha do farol ondetrabalhava Arthur Curry. (4) Adotado pelo faroleiro, o menino mágico, capaz de respirarágua e ar, ganhou o nome de Arthur Curry Jr. e aprendeu como é a vida na superfície.(5) Ao se tornar rapaz, retornou ao mar em busca de sua origem. (6) Após muitas aventurase façanhas, chega ao reino de Poseidonis, que está mergulhado no caos e na vilania desdeque o rei (o marido de sua mãe) morreu sem deixar herdeiros. (7) Arthur Jr., agora chamadoAquaman, expulsa os invasores, restabelece a ordem e restaura a glória de Poseidonis.(8) O trono é oferecido ao antigo Primeiro-Ministro, um homem sábio e justo,indiscutivelmente apto a governar, mas este recusa. Então, dá-se a revelação: Aquaman é ofilho bastardo da rainha que voltou justo quando o povo mais precisava de um rei... Ocabelo louro do herói é a marca de nascença que permite o reconhecimento. E como a linhasucessória da Atlântida passa pelas mulheres, não havendo outros pretendentes, também

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não há nenhum empecilho jurídico para que Aquaman seja proclamado rei, mesmo sendoum bastardo.

Pronto, Aquaman liberta-se do fantasma de Namor!Na nova fase a que se refere Rick Veitch, há muito mais magia do que ciência no fundo

do mar. Uma nova personagem está sendo introduzida na série, fazendo a ponte definitivaentre os dois reis de nome Arthur: é a Dama do Lago.

Na tradição medieval, Lancelot, ainda bebê, foi levado para o reino encantado da Damado Lago, onde cresceu com as honras de príncipe, sendo devidamente educado e treinadopara se tornar um nobre e destemido cavaleiro. O lago, porém, era uma ilusão mágicacriada pela Dama para manter seus domínios a salvo de estranhos. Isto é, os forasteirosenxergavam um lago, mas abaixo do espelho d´água havia terra seca, um reino com castelo,cavalos, florestas, caça etc. etc. etc. Provavelmente, o tal lago deve ter sido inventado aposteriori para justificar o porquê de o herói criado por Chrétien de Troyes em O Cavaleiroda Carroça se chamar Lancelot du Lac. Enfim, Ninienne, conhecida como a Dama doLago, e que aprendera as artes da magia com seu amante Merlin, não respirava debaixod´água!

Como os nomes têm poder, é aceitável que o imaginário popular, depois de tanto tempo,tenha transformado a Dama em uma espécie de boa fada das águas. E como foi o nomeArthur que atraiu a mística arturiana para a história de Aquaman, não chega a sersurpreendente que a lendária Dama do Lago seja agora uma força do Bem a habitar águasdoces e salgadas, uma presença invisível que sempre protegeu o rei da Atlântida emsegredo. A novidade é que finalmente Ninienne se revela ao seu protegido para explicarqual é a verdadeira missão do rei na ordem do mundo (aquático, naturalmente).

Apesar dessa aproximação cada vez maior com os mitos da Bretanha, como o próprioautor Rick Veitch enfatizou, Aquaman não é “a reencarnação do rei Arthur”.

Assim sendo, acho que já podemos conversar sobre a volta do rei. Sobre o Arthur, super-herói de quadrinhos e última esperança da Terra no século XXX. Antes, contudo, peço odireito de fazer uma rápida pausa para breves reflexões teóricas.

Pausa: A adaptação como discurso que se atualiza.

Gostaria de afirmar que o processo de formação e transformação da narrativa literária aolongo do tempo ocorre como processo de adaptação de histórias, personagens e linguagenspara novos públicos, em novas eras, às vezes em gêneros narrativos que não existiam antes.Gostaria também de argumentar, com base no pensamento de Michel Foucault, autor de Aordem do discurso, que a adaptação é um discurso que se atualiza. No caso, um tipoespecial de tradução que envolve seleção de conteúdo e adequação de linguagem paraapresentar a obra a uma nova geração de jovens leitores.

Embora jamais tenha escrito especificamente sobre o tema “adaptações”, Foucaultconsiderava os textos jurídicos, religiosos e literários como narrativas especiais, construídaspara propagar discursos, visto que carregam em si sistemas de valores, significados eprocedimentos de controle e delimitação dos jogos de poder e desejo. As coisas ditas, ouescritas, e constantemente repetidas, servem para ordenar o mundo, as sociedades, ascrenças e comportamentos.

Refletindo sobre as questões envolvidas na idéia de autoria, e sobre textos escritosdiretamente inspirados por outros que os precederam, Foucault nos apresentou os conceitos

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de texto primeiro e texto segundo, ou comentário, fundamentais para se pensar as obrasclássicas e suas adaptações.

Se aceitarmos que os grandes clássicos da literatura podem ser classificados como textosprimeiros, e que, portanto, podem dar origem, indefinidamente, a novos textos, sempreatualizados ao contexto histórico em que são produzidos e ao público a que se destinam,então poderemos pensar a adaptação como um procedimento inerente à renovação datradição literária; como perpetuação e divulgação dos cânones; como atualização de umdiscurso. Sem esquecer que qualquer tipo de análise de discurso remete inevitavelmente adisputas sobre critérios de legitimação e hierarquias de valores.

Deixo que as palavras do próprio Foucault expliquem como um clássico da literaturapode ser um tipo de discurso sempre reatualizável e capaz de gerar, constantemente, novosdiscursos:

Suponho, mas sem ter muita certeza, que não há sociedade onde não existam narrativas maiores que secontam, se repetem e se fazem variar; fórmulas, textos, conjuntos ritualizados de discursos que se narram,conforme circunstâncias bem determinadas; coisas ditas uma vez e que se conservam, porque nelas seimagina haver algo como um segredo ou uma riqueza. Em suma, pode-se supor que há, muitoregularmente, nas sociedades uma espécie de desnivelamento entre os discursos: os discursos que “sedizem” no correr dos dias e das trocas, e que passam com o ato mesmo que os pronunciou; e os discursosque estão na origem de certo número de atos novos de fala que os retomam, os transformam ou falamdeles, ou seja, os discursos que, indefinidamente, para além de sua formulação, são ditos, permanecemditos e estão ainda por dizer. Nós os conhecemos em nosso sistema de cultura: são os textos religiosos oujurídicos, são também esses textos curiosos, quando se considera o seu estatuto, e que chamamos de“literários”; em certa medida textos científicos.É certo que esse deslocamento não é estável, nem constante, nem absoluto. Não há, de um lado, acategoria dada uma vez por todas, dos discursos fundamentais ou criadores e, de outro, a massa daquelesque repetem, glosam e comentam. Muitos textos maiores se confundem e desaparecem, e, por vezes,comentários vêm tomar o primeiro lugar. Mas embora seus pontos de aplicação possam mudar, a funçãopermanece; e o princípio de um deslocamento encontra-se sem cessar reposto em jogo. Odesaparecimento radical desse desnivelamento não pode nunca ser senão um jogo, utopia ou angústia.Jogo, à moda de Borges, de um comentário que não será outra coisa senão a reaparição, palavra porpalavra (mas desta vez solene e esperada), daquilo que ele comenta; jogo, ainda, de uma obra que nãoexiste. (...).Por ora, gostaria de me limitar a indicar que, no que se chama globalmente um comentário, odesnível entre texto primeiro e texto segundo desempenha dois papéis que são solidários. Por umlado permite construir (e indefinidamente) novos discursos: o fato de o texto primeiro pairaracima, sua permanência, seu estatuto de discurso sempre reatualizável, o sentido múltiplo ou ocultode que passa por ser detentor, a reticência e a riqueza essenciais que lhe atribuímos, tudo issofunda uma possibilidade aberta de falar (grifo meu). Mas, por outro lado, o comentário não tem outropapel, sejam quais forem as técnicas empregadas, senão o de dizer enfim o que estava articuladosilenciosamente no texto primeiro. Deve, conforme um paradoxo que ele desloca sempre, mas ao qualnão escapa nunca, dizer pela primeira vez aquilo que, entretanto, já havia sido dito e repetirincansavelmente aquilo que, no entanto, não havia jamais sido dito.1

As possibilidades de atualização de um discurso (seja ele literário ou não) são vastas enão se limitam a textos. No cinema e na televisão, os roteiros podem ser originais ouadaptados. Em teatro, cada montagem é uma adaptação/interpretação de uma peçaanteriormente escrita. Na música, um novo arranjo corresponde a uma adaptação da obraoriginal, tanto que, pela legislação brasileira em vigor, os direitos de adaptadores earranjadores são iguais e estão protegidos pela mesma cláusula legal (ver lei 9.640, de 19

1 FOUCAULT, pág. 21 a 25.

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de fevereiro de 1998, sobre a regulamentação dos direitos autorais). Grandes editoras dehistórias em quadrinhos já investiram em coleções dedicadas a adaptações de clássicos daliteratura, publicando obras escritas e desenhadas por artistas consagrados.

A adaptação ideal parece ser aquela que consegue atualizar a linguagem da narrativa epreservar ao máximo o enredo. Mas até que ponto é possível atualizar um discurso para queele permaneça entre nós sem inserir alterações/mutações na trama original? Perguntolembrando que, como dizia o tradutor Paulo Rónai, em A tradução vivida, o “setor especialda adaptação é a literatura para adolescentes”. E acrescentando que, nesse “setor especial”,são plenamente aceitas aquelas obras que se destacam pela força do enredo, pelo apelo àimaginação.

Por falar em força de enredo e apelo à imaginação que encantam gerações e gerações deleitores, é hora de encerrar a pausa e retomar a narrativa interrompida. De volta a Camelot!

Fim da pausa.

Na minha compreensão de menino, o rei Arthur, pelo menos em sua juventude, quandodeveria estar no auge do vigor físico e mental, tinha de ser muito mais fabuloso e destemidodo que qualquer um de seus cavaleiros. Se ele, e somente ele, tinha sido o escolhido porforças superiores para receber a espada mágica Excalibur, então o grande herói daquelestempos não podia ser outro.

Meu pai adorava o Príncipe Valente e também o mito de Arthur. Entretanto, o rei queaparecia no gibi já estava um tanto ou quanto velho e cansado de guerra. Era umgovernante bom, sábio e justo; só isso. Infelizmente, não lembrava em nada aquele mitobretão que atualizava outro mito da antiguidade: Alexandre, o Grande. Já o Arthur de HalFoster, que aparecia quase sempre sentado, no fundo, remetia o imaginário do públiconorte-americano ao presidente da época, Frank Delano Roosevelt.

A evolução da lenda arturiana, de fato, rebaixou a importância guerreira ou heróica dorei. Da crônica pseudo-histórica de Geoffrey of Monmouth, passando pelos contos do amorcortês de Chrétien de Troyes e chegando às histórias exemplares (de orientação religiosa)escritas por Robert de Boron, o nosso grande Arthur foi encolhendo...

Recapitulando as palavras de Furtado:

Ao passar da austera prosa latina de Geoffrey para os versos franceses de Chrétien, a literatura arturiananão mudou apenas quanto à forma. Com a crescente voga dos ideais, ritos e costumes da cavalaria, aênfase em guerras entre povos, marcada pelas batalhas campais e ocasionais combates singulares, foisubstituída por conflitos individuais, decididos em duelos, justas e torneios. A figura do rei Artur passoua segundo plano, valendo mais como um ponto de confluência de tudo o que é nobre – fala-se mais nacorte do rei do que nele próprio –, e a ação se deslocou para seus cavaleiros, reunidos à volta da TávolaRedonda. Os objetivos de um cavaleiro, nesses poemas, não tinham senão ligações remotas com osdestinos de sua pátria (...)1.

Em 1982, os artistas Mike Barr e Brian Bolland lançaram uma série em 12 capítulosmensais que se tornou um dos grandes clássicos das histórias em quadrinhos modernas.Desde então, Camelot 3000 já foi reeditada inúmeras vezes, em vários países. No Brasil, foi

1 FURTADO, 1985, pág. 32.

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lançada em agosto de 1984, publicada a princípio na revista Batman (Ed. Abril, 1ª série),depois em Superamigos (Ed. Abril).

No dia em que chegou às bancas o último capítulo brasileiro, houve tumulto no colégioSanto Inácio, no Rio de Janeiro, porque dois exemplares da revista foram contrabandeadoslogo de manhã cedo para dentro do terceiro ano colegial, um circulou na turma 32, outro na34; vários alunos queriam ler ao mesmo tempo, aquela confusão... Houve um rapaz, comfama de palhaço, que começou a gritar “Ele morre! Ele morreu!” em sala de aula e, porisso, levou um soco do colega que ainda não tinha lido o desfecho. Briga em sala de aulasempre acaba na coordenação, aquele vexame. O mais difícil foi os rapazes conseguiremexplicar o motivo da briga. Na outra turma, a revista em circulação foi despedaçada por trêsleitores em conflito, mas o acerto de contas ficou para a hora do recreio.

A série foi republicada no Brasil, em quatro volumes, em 1988.Mas o que Camelot 3000 tem de especial afinal? Trata-se de uma obra-prima, tanto em

arte como em enredo. Apóia-se firmemente na tradição arturiana, mas inova com aambientação futurística. Das histórias de cavalaria, chegamos às aventuras de ficção-científica.

Mike Barr, antes de se consagrar com Camelot 3000, estava escrevendo os roteiros paraa versão em quadrinhos de Guerra nas Estrelas. Como Hal Foster, quase cinqüenta anosantes, resolveu deixar a adaptação de uma saga de sucesso garantido para se arriscar numaprodução própria. Mas, diferente de Foster, ele estava determinado a recolocar ArthurPendragon no seu trono.

Diz a lenda que Arthur, gravemente ferido, foi levado para a ilha de Avalon e de lá sóvoltaria quando a Inglaterra mais precisasse dele. Pois, no fatídico ano 3000, não só aInglaterra, mas todo o planeta precisará do rei. Dessa vez, os invasores não são os saxões;são os alienígenas que vieram para conquistar a Terra.

No futuro imaginado por Mike Barr, a humanidade chegou ao último ano do séculoXXX bem no limite dos recursos naturais do mundo, às voltas com problemas desuperpopulação, falta de liberdades democráticas, corrupção em todos os governos,descrédito da sociedade quanto às classes dirigentes etc. A pesquisa espacial fora canceladaséculos antes, porque se acreditava que era dinheiro jogado fora. Portanto, não há colôniasespaciais, astronaves capazes de ir além de Marte, tubos de teleporte ou coisas do gênero.Há asteróides em órbita habitados por milionários excêntricos e nada além disso. A espéciehumana, portanto, está presa ao planeta Terra, tecnologicamente despreparada paracombater no espaço ou rechaçar uma invasão.

Há quatro superpotências globais: Estados Unidos, União Soviética, China e RepúblicaAfricana. Seus líderes são absolutamente ridículos e facilmente manipuláveis pelo ardilosodiretor de segurança da ONU. A União Soviética está lá, é claro, porque a história foiescrita em 1982. Aliás, para constar: é um futuro sem nada que seja parecido com aInternet.

Mas vamos ao que interessa: a ação! E as transformações na narrativa.A guerra entre mundos começou, as criaturas estão vindo do, até então desconhecido,

décimo planeta do sistema solar, que o leitor ficará sabendo que se chama Chiron. AInglaterra é o foco principal da invasão, porém os ataques castigam toda a Europa. Aresistência francesa é a mais bem organizada e eficiente, graças à liderança de Jules Futrele,o último multibilionário idealista, e aos extraordinários recursos em termos de tecnologia elogística de sua megacorporação. Nos Estados Unidos, a comandante Joan Acton,coordenadora da defesa global, assiste impotente ao aniquilamento da força aérea norte-

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americana. O equilíbrio político mundial está por um fio. As populações civis estãodesesperadas. É um momento de trevas. E os aliens continuam a desembarcar suas tropasem solo inglês...

Thomas Prentice, ou apenas Tom, é um rapaz de seus dezoito anos, acaba de perder ospais no massacre de Londres e está fugindo, tentando sobreviver. Sua esperança é despistaros perseguidores no labirinto formado pelo sistema de cavernas do parque arqueológico doMonte Glastonbury. Na mais profunda das cavernas, Tom descobre uma cripta. Ao abri-la,descobre um homem, aparentemente um guerreiro medieval, que acaba de despertar de umsono milenar. Quando os invasores alcançam a galeria da cripta, em instantes, o misteriosoguerreiro recupera seus reflexos fenomenais, parte para a luta corpo-a-corpo com osalienígenas e vai matando, um por um, todos os inimigos que encontra em seu caminho.Impressionado com aquele humano diferente, Tom passa a acompanhá-lo e depois aconduzi-lo aonde ele ordena. O sujeito diz ser o rei Arthur, Tom não acredita, mas, emtempo de guerra, é melhor seguir um maluco bom de briga do que morrer. Assim, os doischegam a Stonehenge, enfrentam alguns fantasmas e libertam o mago Merlin, prisioneirode um encanto. Vendo os dois juntos, Arthur e Merlin, Tom começa a acreditar que elessejam de fato quem dizem ser. A missão de Arthur é clara: unificar todos os povos domundo sob seu comando e expulsar os invasores.

Juntos, os três partem para recuperar Excalibur. À beira de um lago, a espada é invocadae uma mão feminina se ergue da água atendendo ao chamado, devolvendo Excalibur ao rei.Subitamente, porém, a arma desaparece. A magia de Merlin a transportou para o edifíciodas Nações Unidas, onde diante das câmeras de televisão e dos olhares atentos dapopulação de diversos países, ela reaparece encravada numa bigorna e numa rocha (abigorna está sobre a rocha que surgiu do nada em plena assembléia-geral da ONU; a espadaatravessa os dois objetos). Máquinas, robôs e soldados tentam retirar a espada, sem sucesso.Finalmente, chega Arthur, abre caminho até o local à força e, com um puxão, retiraExcalibur da rocha e da bigorna. Os populares entram em êxtase, as autoridades começam atremer. Arthur se apresenta como rei da Bretanha e soberano do Império Romano, prometea vitória contra os alienígenas e um mundo livre, unificado sob uma única bandeira.

O rei Arthur voltou. Os cavaleiros da Távola Redonda idem.Jules Futrele é a reencarnação de Sir Lancelot. A comandante Acton, da rainha

Guinevere. Outros cinco cavaleiros também reencarnaram: Kay, Gawain, Percival, Galahade Tristão. A magia de Merlin faz com que recuperem as lembranças da Távola Redonda eestejam novamente prontos para combater a serviço do rei. Uma nova corte é estabelecidana Fortaleza de Futrele, o maior dos asteróides em órbita, agora rebatizada como NovaCamelot. As autoridades constituídas não gostam dessa história, mas decidem aceitar o reiaté que ele cumpra sua promessa de expulsar os invasores, depois pretendem se livrar dele edos cavaleiros. Várias batalhas ocorrem antes que todos os segredos sejam revelados e sereinicie a demanda do Santo Graal.

Os dramas entre os cavaleiros e as intrigas do diretor de segurança da ONU dão o tom danarrativa enquanto a batalha final não chega. Lancelot e Guinevere não resistem à paixão evoltam a ser amantes, para sofrimento de Arthur. Galahad, agora um samurai japonês, estáesperando a hora certa para se matar e pagar uma dívida de honra. Gawain, um negroafricano, não consegue parar de pensar na família e no filho pequeno que deixou para trás.Kay, um americano vigarista, só pensa em trapaças. Merlin sabe que a vilã por trás dainvasão é Morgana Le Fey, mas não sabe onde ela está. Percival é um neo-humano, um sergeneticamente modificado para ser um monstruoso soldado do regime; pouco inteligente e

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fortíssimo. Tristão vive atormentado, pois reencarnou no (belo) corpo de uma mulher e,agora que recuperou a identidade da vida passada, não consegue aceitar a situação,principalmente depois de descobrir que sua amada Isolda reencarnou também. O jovemTom, por azar, apaixona-se por Tristã/Tristão e está armado outro triângulo amoroso, outraconfusão. E quem estava faltando, não está mais: o diabólico diretor de segurança da ONUque conspira contra o novo reinado de Arthur não podia ser outro que não o traiçoeiroMordred reencarnado.

Depois de muitas peripécias, Arthur ordena uma nova demanda do Graal para curar oamigo Tom, gravemente ferido na mesma batalha em que Kay morreu. É a primeira baixana equipe.

Percival, por fim, encontra o Graal e cura Tom, sendo transfigurado, libertado de suaforma mortal e partindo como um anjo de fogo para a eternidade. É a segunda baixa naequipe. Lancelot, então, recebe a missão de ser o guardião do Graal. Mas Morgana eMordred querem o objeto sagrado, cada um tem seus motivos, e conseguem obtê-lo numafalha de Lancelot; em determinado momento o cavaleiro tem de escolher entre proteger suadama ou o cálice; ele salva a rainha, porém perde o Graal para os vilões.

O clímax da história acontece quando os cavaleiros chegam a Chiron, de onde estãopartindo as naves alienígenas. Lá está o castelo de Morgana, onde Merlin foi aprisionado eonde, inevitavelmente, se dará o combate final. Os heróis conseguem chegar ao décimoplaneta do sistema solar graças ao único foguete para viagens interplanetárias existente naTerra, guardado como segredo de Estado pela ONU. A nave, porém, não podia voar porfalta de uma fonte de energia adequada. Arthur Pendragon logo resolve esse problema,usando o poder mágico de Excalibur para energizar o foguete.

Durante a tomada do castelo, Galahad morre. Sir Lancelot enfrenta Mordred emcombate singular, mas, pela primeira vez em sua vida, é derrotado. Não por falta dehabilidade, mas porque o vilão fundiu o Graal numa armadura e, por meio desteestratagema, tornou-se imune a qualquer ferimento. O cavaleiro só escapa da morte graçasà chegada providencial de Arthur. O rei consegue matar o usurpador e libertar Merlin,depois manda o mago teleportar os cavaleiros sobreviventes para a Terra e fica sozinho noplaneta hostil para terminar de uma vez por todas com Morgana e suas tropas. Usando amágica de Excalibur, provoca uma fissão nuclear e explode com a feiticeira, o castelo e astropas.

No desfecho, na Terra livre dos invasores, Lancelot e Guinevere ficam finalmentejuntos. Tristão e Isolda também, mesmo sendo do mesmo sexo. Gawain retorna para suafamília, é recebido como herói pelo filho. Tom Prentice aparece lendo Le Morte d`Arthur,de Thomas Malory, depois se torna o líder da reconstrução da Inglaterra. E Merlindesaparece, desfaz-se no ar, prometendo voltar um dia, quando o ciclo se reiniciar.

Em outra galáxia, um alien encontra uma espada encravada numa rocha, é a mágicaExcalibur. Ao retirá-la, ele se lembra de que, em outra era, foi o rei Arthur. Um novo cicloarturiano está começando.

Mike Barr aproveitou bastante da Matéria da Bretanha, mas, é claro, criou sua própriaversão para certos eventos ou personagens daquela tradição, tomando sempre cuidado paraconstruir uma narrativa coerente, sem pontas soltas ou contradições internas. Como, desdeque Geoffrey of Monmouth escreveu a primeira “biografia” de Arthur em Historia regumBritanniae (História dos reis da Bretanha), concluída em 1135 d.C., incontáveis autoresforam acrescentando novos elementos à lenda, fazendo aqui e ali pequenas modificações,temos hoje uma razoável quantidade de variações sobre os mesmos temas.

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É realmente impossível criar uma narrativa nova sobre o rei Arthur e seus cavaleiros daTávola Redonda, que seja uma história bem contada, com início, meio e fim, sem fazercertas escolhas... A Matéria da Bretanha é um tipo de mitologia e, assim sendo, qualqueradaptação ou versão atualizada, seja na forma de cinema, teatro, literatura ou quadrinhos,implicará necessariamente em interpretação, seleção, corte e edição de elementospreexistentes.

A Dama do Lago, o Graal, o amor impossível de Tristão e Isolda e a origem de Mordredsão os principais elementos que envolvem variações em relação à tradição e algumasliberdades autorais.

Em Camelot 3000, o autor Mike Barr não menciona nenhuma vez o Rico Rei Pescador.Percival (na primeira encarnação) teve sua visão do Graal, mas não há detalhes sobre comoisso se deu. Os cavaleiros medievais procuraram, sem encontrar, o cálice sagrado. Galahad,filho de Sir Lancelot e Elaine, portanto, nunca foi seu guardião. Na versão reencarnadacomo samurai japonês, ele continua exemplar, obediente e casto, digno do título deCavaleiro Sem Mancha. Entretanto, será Lancelot o escolhido para guardar o Santo Graal (efalhará...). O Graal, fundido à armadura de Mordred, explodirá ao entrar em contato com ocorpo de Merlin, pois a santidade de um é incompatível com a natureza demoníaca dooutro. Após a grande reação nuclear que destruirá o castelo de Morgana, o Graal serádesintegrado, para, logo em seguida, suas moléculas se juntarem novamente e o santificadoobjeto reaparecer restaurado. De novo, ele desaparece, por mágica. No dia em que o ciclorecomeçar, Lancelot terá de encontrá-lo, onde quer que esteja.

Outro elemento importante da tradição a sofrer transformações é a Dama do Lago. EmCamelot 3000, esse nome não é citado nenhuma vez, mas há duas personagens diretamenterelacionadas ao mito. A primeira é a fada do lago que guardou Excalibur durante séculos,esperando o retorno do rei. A cena em que ela devolve a espada lembra de imediato o filmeExcalibur, de John Boorman, produção inglesa de 1980. Saberemos, perto do final da sagade Mike Barr, que ela é Elaine, a mãe de Galahad, transformada em fada das águas porMerlin, depois de muito chorar após ser abandonada por Lancelot. A segunda é a feiticeiraNyneve, aprendiz e amante de Merlin, que o aprisionou em Stonehenge no passado e agorase aliou a Morgana para aprisioná-lo em Chiron.

Em Lancelot do Lac, romance francês do século XIII, podemos ler a origem da famosaDama do Lago, a fada que criou Lancelot em seu reino encantado. Ela era Ninienne,aprendiz e amante de Merlin, que, por meio de artimanhas femininas, aprendia com opróprio mago as palavras mágicas e os passes para aprisioná-lo para sempre em localsecreto. A Nyneve, de Barr, é a Ninienne medieval que se tornou uma feiticeira poderosa,mas não a Dama do Lago. Na série em quadrinhos, quem mais se aproxima do mito daDama é a triste Elaine, inclusive porque atua como protetora de Lancelot, seu ex-amado.

Outra variação em Camelot 3000 em relação a alguns textos arturianos é a condição deTristão como cavaleiro da Távola Redonda. Em vários desses textos, ele servia apenascomo cavaleiro favorito do rei Marcos da Cornualha, seu tio e marido de Isolda, sua amada.Marcos era vassalo do rei Arthur e era por meio desse laço de vassalagem que o amorimpossível de Tristão e Isolda se inseria nas lendas arturianas. Entretanto Chrétien, em Érecet Énide, já associara Tristão à Távola Redonda, o que seria repetido na Post-Vulgata e naobra de Malory.

Creio que as maiores mudanças em relação ao que Geoffrey de Monmouth escreveu emHistória dos reis da Bretanha e em Vida de Merlin estão nos personagens de Morgana e

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Mordred, embora sejam mudanças ocorridas ao longo dos séculos, que Barr apenasaproveitou e soube explorar muito bem.

O Mordred de Geoffrey de Monmouth era sobrinho do rei, filho de uma de suas irmãs,assim como Gawain. Ele se tornava o terrível usurpador ao se aproveitar da condição deregente, enquanto Arthur estava fora desafiando o Império Romano, para se apoderar dotrono e da rainha. Morgana aparecia na Vida de Merlin como uma das nove irmãs quegovernam em Avalon, aquela “sábia nas artes de curar” e primeira em formosura. Morganateria levado o nobre monarca para seu quarto, “em áureo leito, com mão prudente lhedescobre a chaga, a contempla e por fim diz ao rei que, se quiser os filtros seus provar, emuito tempo lá ficar com ela, salvo haverá de ser”.1 Lembra um pouco o caso de Hércules;ao morrer, foi levado ao Olimpo e ganhou a deusa da juventude como esposa, uma justarecompensa por sua vida de aventuras e batalhas. A bela fada Morgana, nessa primeiraversão, era a amante-recompensa de Arthur, que ficaria usufruindo dos seus favores até odia de retornar à Inglaterra.

Em Camelot 3000, como em outras versões anteriores, inclusive o já citado filmeExcalibur, Morgana é uma feiticeira, irmã de Arthur por parte de mãe, e odeia o meio-irmão a ponto de ter com ele um filho, Mordred, para que esse filho maldito seja o causadorda ruína do pai. Sendo assim, quem cuidou do rei durante sua estada em Avalon? E comoArthur saiu de Avalon para a cripta na mais profunda das cavernas é um mistério, nem elesabe.

Ah, Mike Barr nada diz sobre Mordred ter tomado a rainha Guinevere para si durante aausência do rei. Os dois personagens, reencarnados, e com as memórias da vida anterior járestauradas, só se encontram uma única vez, na cena em que Arthur chega para salvarLancelot e matar o filho pela segunda vez; Guinevere está acompanhando o marido eassiste à luta sem ter chance de trocar uma palavra sequer com o vilão. O ódio insano comque Lancelot enfrenta Mordred, porém, talvez não fosse só por causa do roubo do Graal... A mais interessante das invenções de Barr, com certeza, em meio a tantas reencarnações,é a idéia de que os heróis e vilões da saga estão presos a um destino comum; eles morrem,mas não se extinguem, porque, de um jeito ou de outro, eles sempre voltam. Eles e o SantoGraal. Então, um novo ciclo se inicia, e a lenda recomeça, era após era.

E, de fato, tem sido assim desde Geoffrey of Monmouth, Chrétien de Troyes, Robert deBoron, Sir Thomas Malory e tantos autores anônimos. Das crônicas em latim aos romancesem francês, as muitas e variadas narrativas sobre Arthur começaram e recomeçaram, foramcopiadas, adaptadas, transformadas, evoluíram. Elementos como Excalibur, a TávolaRedonda e o Graal foram acrescentados aos poucos e hoje são partes indissolúveis da lendado rei.

Enfim, poderia ter escolhido cinema, música, teatro ou literatura para comentar apermanência e as transformações da Matéria da Bretanha nas narrativas contemporâneas,pois a força da mística arturiana se espalha em múltiplas atividades culturais. Se Arthurnunca voltou é porque, na verdade, ele jamais deixou de estar conosco. E não pertence maisaos bretões, nem aos ingleses, pois sua lenda tornou-se universal. Mas, de qualquermaneira, com ou sem loucas aventuras de ficção-científica, aquele que foi rei na IdadeMédia continuou rei nos tempos futuros. Cumpriu-se a profecia:

Rex quondam rexque futurus!

1 FURTADO, 1985, págs. 90 e 91.

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Obs: Optei por grafar os nomes dos personagens arturianos tal como eles aparecem nas páginas de Camelot3000, por se tratar da principal narrativa (adaptação para quadrinhos) comentada neste trabalho.

Bibliografia:

FEIJÓ, Mário. Quadrinhos em ação: um século de história. São Paulo, Moderna, 1997.FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo, Edições Loyola, 1996.FURTADO, Antonio. Artur e Alexandre: crônica de dois reis. São Paulo, Ática, 1995.FURTADO, Antonio. Aventuras da Távola Redonda. Petrópolis, Vozes, 2003.RÓNAI, Paulo. A tradução vivida. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1981.ZINK, Michel (org.). Lancelot du Lac. Paris, Collection Lettres Gothiques, Le Livre de

Poche, 1991.

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Leir e Rei Lear

Renata Christovão Bottino

1. Introdução

O objetivo deste trabalho é comparar “Leir”, crônica que faz parte da Historia RegumBritanniae de Geoffrey of Monmouth (século XII) e Rei Lear, tragédia de WilliamShakespeare (século XVII). Estima-se que a história do rei Leir (da qual existem muitasversões, sendo a primeira delas a de Geoffrey) tenha sido uma das fontes de Shakespeare aoelaborar Rei Lear (Fraser, 1963, p.191). É mais provável, porém, segundo Fraser, queShakespeare tenha tido acesso à versão do livro The chronicles of England, Scotland andIreland, de Raphael Holinshed – mais resumida que a de Geoffrey, acabando, por exemplo,quando Leir reassume o trono com a ajuda da filha mais nova e do genro, um dos reis dosfrancos – transformando-a em tragédia com um final bem mais dramático e estrutura maiscomplexa que as versões da crônica sobre o rei bretão Leir.

O presente trabalho será organizado da seguinte forma: na seção 2, será analisada acrônica de Geoffrey; levando em conta a definição de crônica no seu sentido medieval e arelação entre o texto do bispo e o momento histórico da Inglaterra; na seção 3, será feitauma análise de Rei Lear, levando-se em conta o tema da ingratidão dos filhos com os pais;na seção 4, serão resumidas as diferenças e semelhanças entre as narrativas dos dois autorese, na seção 5, serão apresentadas as conclusões.

Passemos então a estudar a crônica de Geoffrey of Monmouth.

2. Leir, a crônica de Geoffrey of Monmouth

2.1 O conceito de crônica na Idade Média

Antes de analisarmos a crônica de Geoffrey sobre Leir, convém esclarecer qual era osentido de crônica antes do século XIX. Segue abaixo a definição de Massaud Moisés, nolivro A criação literária: Prosa II (p 101):

O vocábulo crônica designava, no início da era cristã, uma lista de acontecimentos ordenadossegundo a marcha do tempo, isto é, em seqüência cronológica. Situada entre os anais e a história,limitava-se a registrar os eventos sem aprofundar-lhes as causas ou tentar interpretá-los. Em talacepção, atingiu seu ápice depois do século XII quando (...) se aproximou estritamente dahistoriografia, não sem ostentar traços de ficção literária.

Vale notar que, apesar de situar esse conceito de crônica um pouquinho depois da épocade Geoffrey, essa definição parece se aplicar à estória de Leir, já que Geoffrey escreveu suahistória dos reis da Bretanha de forma linear (se bem que ele não situe muito as datas) e nãose sabe o que ele inventou e o que realmente ocorreu.

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2.2 A crônica de Geoffrey of Monmouth sobre Leir propriamente dita

Na crônica de Geoffrey, que se passa antes da era cristã, o rei Leir, ao envelhecer, nãotendo descendência masculina, decide dividir o reino entre suas três filhas – Gonorilla,Regau, Cordeilla – e casá-las com homens que ele considerasse aptos a governar seusdomínios. Para saber qual delas deve ficar com a maior parte do reino decide submetê-las auma prova: perguntar qual mais o ama. Gonorilla responde: mais que a própria alma eRegau diz: mais que qualquer outro. Leir fica feliz e promete casá-las com quem quiserem,com toda a pompa, e dá um terço do reino a cada uma. (No entanto, após a partilha final éele quem escolhe os maridos das filhas, casando a mais velha com o Duque de Albânia e ado meio com o Duque da Cornualha). Cordeilla, a filha mais nova e a mais amada pelo pai,decide questionar as irmãs, afirmando que ninguém pode dizer que ama um pai tanto assima não ser que esteja mentindo e que ela sempre o amou como pai na justa medida do que elevale. Leir fica furioso com a resposta da filha, a considera ingrata e não percebe suasinceridade, excluindo-a da partilha, e declara: “Não digo porém, já que és minha filha, quenão te daria a algum estrangeiro que a sorte te oferecesse” (Tradução de Antonio Furtado).Vale notar a ambigüidade dessa frase, dada pela dupla negativa, e que parece ser um indíciode que o pai não queria que a filha casasse (Furtado, 1999, p.11). Cordeilla acaba secasando com Aganippus, que possui um terço da Gália e a aceita mesmo sem dote porque aama.O rei Leir muda a divisão do reino, ficando com metade das terras e repartindo a outrametade entre Gonorilla e Regau e seus maridos. Vale notar que essa prova de amor a queLeir submete as filhas e a resposta de Cordeilla, que destoa da das irmãs por ser maisprosaica, são recorrentes em estórias folclóricas como no conto do Punjabi de nome O rei esuas filhas em que a filha mais nova diz que ama o pai tanto quanto o sal, enquanto asoutras dizem ama-lo “como mel” ou “como sorvete” (Furtado, 1999, p.10) – daí Thompsonclassificar esse motivo como o do“ amor como sal”. Isso enriquece a crônica em termos deconteúdo. Depois dessa observação vejamos como a crônica prossegue.

Depois de um tempo, os duques tomam do rei a parte do reino que lhe cabia e o Duquede Albânia passa a sustentá-lo. No entanto, dois anos depois ocorrem brigas entre osquarenta soldados do rei – cuja companhia lhe confere dignidade – e os empregados dafilha, e esta decide que o pai deve-se contentar em reduzi-los à metade. Leir se enfurece evai para a casa de Regau; só que lá também ocorrem brigas entre os criados, e a filha domeio ordena que Leir fique com cinco soldados, o que o entristece e o faz procurarnovamente a filha mais velha. Gonorilla o trata com crueldade e ingratidão, dizendo que elesó pode ficar na casa dela com um soldado e que não vê razão para que ele, velho e sempoder, queira muitos cavaleiros acompanhando-o.

O rei Leir se entristece e, ao lembrar as glórias do passado, pensa se não é melhorprocurar a filha mais nova na Gália, embora tema que ela não o ajude por ele não tê-latratado dignamente. Durante a viagem, o rei Leir cai em pranto ao perceber que é apenas oterceiro em importância entre os príncipes a bordo. Lamenta seu destino e numa lindotrecho relembra o tempo glorioso em que destroçava os inimigos acompanhado de milharesde homens, e reconhece a sinceridade de Cordeilla e a falsidade das filhas mais velhas, que,só estando interessadas na riqueza do pai, o deixam na miséria depois que ele lhes dá seureino.

Leir chega à Karitia (onde está Cordeilla) e manda um mensageiro contar à filha sobresua situação, ficando fora da cidade. Cordeilla chora e manda que o mensageiro alimente earrume o pai com roupas dignas de um rei em outra cidade e providencia quarenta

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cavaleiros, que devem acompanhar o pai à presença do rei Aganippus. Essa atitude deCordeilla é oposta à das irmãs, pois demonstra o respeito que ela tem por Leir, devolvendo-lhe a dignidade. Ao saber que o sogro foi expulso da Bretanha, o rei dos francos arma umexército para ajudá-lo a reconquistar seu reino. Leir leva a filha mais nova à Bretanha evence os genros traidores, reinando por mais três anos até falecer, quando Cordeilla oenterra num local subterrâneo consagrado a Janus bifronte e assume o trono bretão – bemcomo o franco, já que seu marido morre.

Cordeilla governa por cinco anos até que seus sobrinhos Marganus e Cunedagius –filhos dos duques de Albânia e da Cornualha, respectivamente – , indignados com o fato dea Bretanha ser governada por uma mulher, guerreiam contra a tia e a capturam, levando-aao suicídio. A princípio os dois passam a dividir a ilha, mas Marganus se rebela e lutacontra o primo sendo derrotado e morto. Cunedagius reina por trinta e cinco anos.

É interessante notar que a trama da crônica de Geoffrey – simples em termos formais –pode ter sido motivada pelo contexto histórico inglês. O século em que o bispo viveu foimarcado por uma guerra civil na Inglaterra, causada pelo problema da sucessão deHenrique I. Morto o herdeiro do trono num naufrágio em 1120, havia possibilidade deMatilda, casada com o conde de Anjou e filha de Henrique I, assumir o trono, já que ooutro filho do rei, Roberto de Gloucester, era ilegítimo. Henrique I faleceu em 1135, apósreconhecer a filha como sucessora. Só que dois fatores complicaram a situação: ocasamento de Matilda com o conde não era muito bem visto pelos nobres, pois temiam queum estrangeiro assumisse o trono; Estevão, um sobrinho de Henrique I, correu para sercoroado rei em 1136, abrindo guerra contra a arrogante Matilda. Foi justamente nessaépoca que o livro de Geoffrey foi escrito, sendo dedicado a Estevão numa primeira versão etambém a Roberto (Furtado,1999, p.3).

É possível perceber algumas semelhanças entre Leir e Henrique I, bem como entre oscasais Matilda e conde de Anjou e Cordeilla e Aganippus. Assim como Leir, Henrique Item três filhos. A sucessão dos dois reis também se complica com a intervenção de outraspessoas da família (a de Estevão no caso de Henrique I; e a dos genros – e depois dos filhosdestes no reinado de Cordeilla – no caso de Leir). A ligação entre o marido de Matilda e ode Cordeilla é óbvia: os dois possuem terras na Bretanha francesa e de alguma forma seenvolvem na sucessão dos reis – Aganippus ajuda Leir a conquistar o trono e o conde deAnjou ajuda Matilda a invadir a Inglaterra para tentar combater Estevão (só que não obtémsucesso, devido à prepotência da mulher), além de ser o pai daquele que sucederá Estevão eporá fim ao conflito sucessório em 1153: Henrique II. A associação entre Matilda eCordeilla também parece nítida, embora a caçula de Leir não seja prepotente como Matilda.Ambas foram casadas com nobres da Bretanha francesa e impedidas de governarplenamente por alguém da família.Vale ressaltar que Geoffrey, apesar de afirmar asqualidades do caráter de Cordeilla, não faz com que ela tenha um final feliz, como se talvezquisesse deixar em aberto a seguinte questão: será que, mesmo que Matilda fosse comoCordeilla, não a deixariam governar? Deixar essa questão em aberto pode ter sido umaestratégia de Geoffrey para manter-se neutro, construindo uma personagem feminina capazde governar e ao mesmo tempo fazendo com que as forças conservadoras a impeçam dereinar em paz.

Vale ressaltar que a estória do rei Leir não chega a ser tão trágica – mesmo com osuicídio de Cordeilla – porque Leir de certa forma triunfa sobre a ingratidão de Gonorilla,Regau e seus maridos.

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3. Rei Lear, a tragédia de William Shakespeare

Rei Lear, escrita por Shakespeare, por volta de 1606-1607, é uma tragédia com duastramas: uma principal, que gira em torno do Rei Lear e suas filhas – Goneril, Regane eCordélia – e uma secundária centrada no conde de Gloucester e seus filhos Edgar eEdmundo (ilegítimo). As duas tramas têm o mesmo tema: a ingratidão dos filhos para comos pais, e muitas vezes se misturam, não sendo necessariamente intercaladas na peça deSkakespeare. Segundo Bradley, a trama secundária serve para mostrar que a tragédia deLear não é fortuita, mas fruto de uma “influência malévola no mundo” (1971, p.262).Analisando as duas tramas, pretendemos mostrar que o texto de Shakespeare é mais denso ecomplexo que a crônica de Geoffrey sobre Leir.

3.1 Lear e a ingratidão das filhas

A tragédia de Shakespeare começa com o condes de Kent e de Gloucester comentando adivisão do reino que o Rei Lear está prestes a fazer e ressaltando que a partilha serárigorosamente igual. A divisão do reino de Lear é similar a de Leir: Goneril e Regane, jácasadas, bajulam o pai, dizendo que o amam mais que tudo, assim logrando ficar com umterço do reino cada uma. Cordélia, antes mesmo de ser chamada a falar, ironiza a fala dasirmãs, pensando que é melhor ficar calada. Ao ser interrogada pelo pai sobre o que poderiafalar para ter uma parte maior que a das irmãs, Cordélia diz que não tem nada a declarar edepois fala que o ama como uma filha deve amar a um pai e enfatiza que tanto ela – queestá prestes a casar-se – quanto as irmãs não podem amar só o pai, tendo que amar osmaridos também. Lear se enfurece e a deserda, o que leva um de seus pretendentes, o condede Borgonha, a desistir do casamento, fazendo com que ela se torne esposa do Rei deFrança que a aceita mesmo assim, o que revela a nobreza deste em detrimento do caráter doconde, cujo desejo de casamento estava vinculado à riqueza da noiva. É importanteressaltar que o Conde de Kent percebe a sinceridade de Cordélia e a falsidade das outras etenta defender a filha mais nova do rei, só que acaba sendo expulso do reino, sendo alvotambém da fúria do rei Lear. O conde de Kent, entretanto, terá um papel importante naseqüência da tragédia, quando o rei será vítima da ingratidão e da perversidade de Goneril ede Regane. A má intenção das duas filhas com o pai já começa se desenhar bem no final daprimeira cena do primeiro ato quando, ao fim da divisão do reino, as duas conversam echegam à conclusão de que precisam dar um jeito de se beneficiar da situação antes mesmode o rei Lear ir morar com uma delas.

Lear vai morar com Goneril, que se aborrece porque o pai bateu num empregado dopalácio, e manda que os empregados do pai sejam tratados com frieza. A seguir, o conde deKent aparece disfarçado no palácio do Duque de Albânia para ajudar o rei Lear a sedefender de Oswaldo, o empregado obediente de Goneril, que se recusa a aceitar suasordens, dizendo que o rei é apenas o pai de Goneril. Entra em cena também o bobo do rei,que, com ironia, critica o rei por ter dado tudo às filhas. Goneril fica fria com o pai, oinsulta e diz que ele deve reduzir o número de soldados à metade. O rei a chama dedesnaturada, a amaldiçoa pra que ela não tenha filhos, diz que quer ficar com Regane epercebe que Cordélia não estava tão errada. Vale ressaltar que Goneril esconde do marido o

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motivo da revolta do rei, não parecendo que Albânia tenha culpa da situação. Tudo isso sepassa em quinze dias.

Goneril escreve uma carta à irmã para convencê-la a não permitir que o pai tenha onúmero de empregados que quer, mandando que Oswaldo a entregue depressa. Ao mesmotempo, Kent vai entregar cartas de Lear a Gloucester. Como Regane está no castelo deGloucester, os dois mensageiros se encontram e brigam asperamente chegando às vias defato. Kent é punido pelo marido de Regane e o rei Lear fica furioso ao ver seu empregadoultrajado, considerando o castigo um desrespeito a ele próprio. Para piorar a situaçãoRegane demora a receber o pai, dá razão à irmã e diz que só aceita hospedar o pai se eleficar sem nenhum acompanhante e sugere que o rei peça perdão a Goneril. Regane eGoneril dizem que, por estar velho, Lear não precisa de seus próprios serviçais e o rei semagoa profundamente, começando a enlouquecer. Mas as duas filhas de Lear ainda sãocapazes de mais uma crueldade: não deixam o conde de Gloucester abrigar Rei Lear emmeio a uma terrível tempestade e ele acaba indo parar na floresta completamentedesarvorado, como veremos mais adiante.

É importante notar que a atitude das filhas de Lear em abandonar e injuriar o pai diasdepois da partilha, chegando a deixá-lo ao relento e à pura sorte e levando-o a loucura,acentua o teor trágico da narrativa (em comparação com o da de Leir).

3.2 O conde de Gloucester e seus filhos Edgar e Edmundo: a armadilha do filhoilegítimo

Desde o início da tragédia, o conde de Gloucester se mostra preocupado com o afeto quedeve dedicar aos filhos Edgar e Edmundo e que herança lhes deixar. Só que Edmundo,sendo bastardo, quer arrumar um jeito de usufruir e herdar a riqueza do pai. Com tal fim,conspira contra o próprio irmão mostrando ao pai uma carta falsa em que Edgar teria ditoque os dois precisam matar o pai, que, estando velho, não precisa desfrutar de nada, paraque pudessem aproveitar a herança. Ao mesmo tempo, avisa a Edgar que o pai estádesgostoso com ele e o aconselha a evitá-lo e sair de casa. É interessante perceber queEdmundo atribui ao irmão a opinião que tem do pai. Dando seqüência ao plano, Edmundopede para falar com Edgar e simula que o irmão mandou-lhe matar o pai e o feriu. Edgarpassa a ser considerado foragido e vai viver na floresta.

3.3 O terceiro e o quarto atos: dois pais vagam pelo mundo e os bons filhos tentamprotegê-los

Depois de abandonado pelas filhas, o Rei Lear vaga pela floresta, vociferando contra anatureza e contra a ingratidão das filhas em belos trechos, acompanhado do bobo e de Kent,que, mesmo disfarçado, tenta proteger o rei. Num de seus lamentos, o rei diz : “Sou umhomem que foi mais ofendido do que ofendeu” (ato III, cena 2), o que resume bem o quesente. Na floresta, Lear encontra Edgar, também expulso de casa, que se finge de loucopara escapar da perseguição imposta pelo pai e o irmão traidor.

O conde de Gloucester fica com pena de Lear e, sentindo-se injuriado por não ter podidodecidir quem entraria em sua própria casa, resolve ajudá-lo indo até a floresta. Antes desair, conta a Edmundo sua intenção e ainda lhe revela que o exército francês deve

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desembarcar na Inglaterra para ajudar o rei. Pede ao filho que não conte nada a Cornualha,mas Edmundo o trai e revela tudo às filhas de Lear. Quando volta da floresta depois de terabrigado Lear num quarto em separado do palácio e o mandar para Dover, Gloucester éinterpelado por Regane e Cornualha. Quando o conde revela que mandou Rei Lear paraDover, para livrá-lo das garras das filhas, e que ainda chegará o dia em que o Rei serávingado, Regane lhe arranca um dos olhos. Um criado do conde tenta ajudá-lo, feremortalmente o marido de Regane, mas também morre. Regane arranca o outro olho doconde e ele diz que Edmundo o vingará. Regane conta que o filho bastardo o odeia e odelatou. Só neste momento, Gloucester percebe a falsidade de Edmundo e que Edgar éinocente (ato III, cena 6).Vale ressaltar que as atitudes de Regane e do marido revelam que,além da crueldade para com o pai dela, eles também não respeitam outros em condiçõescomparáveis às dele, pois quem cega um homem entrado em anos em sua própria casa éuma pessoa extremamente má e insensível.

Depois de ficar cego, o conde começa a vagar pelo mundo e quer até matar-se, jogando-se de um precipício. Edgar vê o pai e o salva, fazendo-o acreditar que se jogou doprecipício, mas sobreviveu. Edgar passa a tomar conta do pai sem revelar quem é, numaatitude oposta à de Edmundo. Em suas andanças, o conde e o filho encontram Lear, louco,com uma coroa de flores na cabeça, dizendo que ainda é rei (Ato IV, cena 6). Durante essascaminhadas, Gloucester lamenta a sorte de Edgar e diz que o ama sem saber que o filho estáa seu lado.

Na cena seguinte, os emissários de Cordélia – que volta para o reino do pai sem omarido, para ajudar na guerra contra Albânia – encontram o rei Lear e o levam para umacampamento francês para tratá-lo. (A essa altura, os preparativos para a batalha jácomeçaram, sendo as tropas francesas comandas pelo marechal de França – já que o reifrancês está ausente – e as tropas inglesas comandadas por Albânia, que, apesar de nãoconcordar com o tratamento dado a Lear, luta para defender seu território. Cordélia choraao saber que as irmãs expuseram o pai à tempestade e as reprova. Uma das mais belas cenasda tragédia é o reencontro do rei com a filha mais nova. Ele custa a reconhecê-la quando elalhe pede a bênção, mas depois percebe que se trata de Cordélia, dizendo-lhe que as outrasfilhas o trataram mal, e pensa que ela também o fará por ter motivos para isso. Ela,chorando, responde que não quer se vingar.

A esta altura, é possível traçar um paralelo entre Lear e Gloucester. Os dois pais sãotraídos pelos filhos sendo cuidados por alguém (Kent e Cordélia no caso de Lear – tantoque Cordélia chega a dizer que não sabe como agradecer tudo que ele fez pelo pai. Nessesentido, Kent pode ser considerado análogo a Favônio na história de Roma, que ajudaPompeu após a derrota, mesmo sendo inimigo deste, assim como Kent, que, apesar de tersido banido do reino por Lear, o ajuda de forma incansável, presumivelmente contando aCordélia a situação do pai, tendo também a ajuda de Gloucester.) A única diferença entre osdois pais é que Lear enlouquece e Gloucester não. Cordélia e Edgar também tem algo emcomum: os dois são expulsos de casa sob a acusação de terem conspirado contra os pais,quando na verdade os irmãos é que são falsos e traem os pais.

3.4 A ligação entre Edmundo, Goneril e Regane

Durante os preparativos para a guerra, começa a se desenhar um interesse de Goneril porEdmundo, já que Albânia tem uma personalidade diferente da mulher e a recrimina por ter

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renegado o pai, chamando-a de “tigre” e culpando-a pela loucura do pai. Goneril, por suavez, considera o marido um homem sem iniciativa e admira a impetuosidade do filhomaquiavélico do conde de Gloucester. Mas Regane, estando viúva e querendo se casar, nãovê com bons olhos os sentimentos da irmã por Edmundo. Isso fica claro quando Reganeinsiste com Oswaldo para que ele lhe entregue uma carta dirigida pela irmã ao rapaz. Acarta não chega a ser entregue, porque o empregado de Goneril encontra o conde deGloucester e Edgar, no meio do caminho, e tenta assassinar o velho conde. Edgar defende opai e mata o mensageiro, ficando com a carta, e descobre que Goneril quer que Edmundoacabe com a vida do marido. Esse triângulo de interesses terá enorme importância nodesfecho trágico da narrativa, como veremos a seguir.

3.5 O desfecho

No início do quinto ato, Regane pergunta a Edmundo se ele ama Goneril e ele disfarça. (Emmonólogo, Edmundo confessa que se comprometeu com as duas, com todo seu cinismo).Goneril não gosta de ver os dois juntos e diz que prefere perder a batalha a perdê-lo para airmã. Ao fim da primeira cena, Edgar entrega a carta a Albânia.

Ocorre a batalha, mas esta não é descrita. Só sabemos do resultado por Edgar, que avisao pai que o rei perdeu e que Lear e Cordélia são prisioneiros. Edmundo, orgulhoso, mandaque os dois sejam postos em local seguro e sejam mortos rapidamente. O rei, em sualoucura, acha bom ficar preso com a filha e considera que “cantarão como passarinhosnuma gaiola”. Ela percebe a gravidade da situação e se preocupa.

A seguir, Regane começa a passar mal. Albânia declara que Edmundo está preso portraição e acusa também a mulher. O arauto toca a corneta e Edgar desafia o irmão sem seidentificar e o fere gravemente. Revela quem é, conta suas peregrinações com o pai,dizendo que este morreu há pouco tempo depois de saber quem era seu “guia”. Goneril saidesarvorada. Entra um gentil-homem com um punhal na mão e diz que Goneril confessouque envenenou a irmã e se matou.

Edmundo se comove e tenta revogar suas ordens. Mas é tarde demais: Lear aparece comCordélia morta nos braços, lamentando que ela tenha sido enforcada e praguejando contratodos pela morte da filha, mas se vangloria de ter matado o soldado que tirou a vida deCordélia.

Edmundo morre. Kent revela sua identidade ao rei e reafirma sua lealdade a ele ao dizerque foi o homem que sempre o acompanhou. O Rei Lear morre falando ainda em Cordélia.Albânia convida Kent e Edgar a ficar com ele no reino, mas o primeiro diz que deve partir.

Vale notar que a derrota de Lear e Cordélia para Edmundo e seus comparsas, bem comoo envenenamento de Regane pela irmã, o suicídio de Goneril e o assassinato de Cordélia,aumentam o teor trágico do texto de Skakespeare. Já a pluralidade de temas tratados – aingratidão dos filhos, a perversidade humana, a loucura, a generosidade de uns poucoshomens e o ciúme – e a duplicidade de tramas – dão maior complexidade à tragédia e aomesmo tempo lhe conferem um forte pessimismo e universalidade (Bradley, 1971, p. 262-273).

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4. Diferenças e semelhanças entre Rei Lear e “Leir”

Existem semelhanças e diferenças claras entre a crônica de Geoffrey of Monmouth sobreLeir e a tragédia de Shakespeare.

A primeira semelhança é o tema principal: a ingratidão dos filhos em face dos reis, seuspais, que lhes dão um reino na velhice e que pagam pela generosidade e ingenuidade deseus próprios atos ao enfrentar privações e humilhações: perda do poder (ainda quetemporária no caso de Leir), perda de acompanhantes, saudade das glórias passadas. Outra semelhança é a prova de amor a que o rei submete as filhas antes da divisão doreino, com a resposta mais sincera da filha mais nova e predileta, sua conseqüente exclusãoda partilha e seu casamento com um rei da região da França (equivalente à Gália deGeoffrey), existindo nas tramas o motivo folclórico do amor como sal.

Há ainda um traço comum entre a trama de Leir, a de Lear e a de Gloucester: os três paissó percebem a sinceridade dos filhos injustiçados ao sofrerem as privações que os filhosdesnaturados lhes impõem.

Já uma diferença marcante entre as estórias de Leir e Lear é o tempo decorrido entre adivisão do reino e a ocorrência das exigências degradantes feitas pelas filhas mais velhas,bem como a maneira como tais imposições acontecem e suas conseqüências. Na crônica deGeoffrey, Leir só perde o trono dois anos depois da divisão do reino enquanto mora com afilha mais velha, perdendo também gradativamente seus soldados e chegando a morar coma filha do meio por um ano. Toma iniciativa de procurar a filha mais nova e reconquista oreino. Já Lear é obrigado a abdicar de seus soldados quinze dias após a divisão do reino enem chega a morar com Regane, sendo logo exposto à tempestade, vítima da extremacrueldade das filhas – que parecem ser mais perversas que as de Leir – , o que o leva aperder a razão. Também não é ele que vai ao encontro de Cordelia. É ela que vem ajudá-lo,já que seu estado não lhe permitiria viajar até a França. Para piorar a situação, ele perde aguerra, não reconquista o reino e sua dignidade e ainda enfrenta a morte das três filhas,sendo que a mais velha envenena a do meio e manda enforcar a mais nova.Conseqüentemente, Leir morre sereno e não nos inspira tanta pena enquanto que Learmorre atormentado e pesaroso e nos inspira compaixão. Neste aspecto, o personagem deShakespeare parece análogo ao rei Artaxerxes que, segundo Plutarco, também entrega seutrono ao filho ainda em vida e vê os filhos se matarem pelo poder e morre de desgosto. Sebem que Artaxerxes consegue sufocar a primeira rebelião contra ele (como Leir) aocontrário de Lear (Furtado,1999, p.6). Essas distinções também se refletem no teor detragédia das narrativas: o texto de Geoffrey acaba sendo menos trágico que o deShakespeare, por dar ao rei a possibilidade de recuperar seu prestígio e não passar portantos infortúnios.

Outra diferença é que a Cordélia de Shakespeare não tem a mesma trajetória que aCordeilla de Geoffrey. Enquanto que a primeira perde a guerra com o pai e é assassinada, aoutra chega a reinar e só se suicida quando capturada pelos sobrinhos. As duas parecem terem comum: a dignidade, a coragem e o amor ao pai (tanto que ambas saem do país ondesão rainhas para cuidar e ajudar o pai).

O Duque de Albânia de Shakespeare também parece não ter tanta participação nashumilhações impostas ao rei quanto o de Geoffrey (que efetivamente tira o reino de Leir econcorda em diminuir os soldados do sogro), já que critica duramente a mulher por terabandonado o pai e luta na guerra um tanto contrariado.

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Quanto aos aspectos formais, as diferenças entre as duas narrativas são enormes: acrônica de Geoffrey é simples e curta (análoga a um registro histórico no estilo, emborapossua elementos ficcionais) contendo uma única trama e dois temas – a ingratidão dosfilhos para com os pais (o principal) e a possibilidade de uma mulher reinar – enquanto quea tragédia de Shakespeare é longa, complexa e abarca vários temas além do principal – aloucura, a perversidade e o cinismo da humanidade, o ciúme entre irmãs – e contém duastramas e, ainda, trechos irônicos como as falas do bobo de Lear que ataca Goneril eEdmundo, ironia essa que não aparece na crônica sobre Leir.

5. Conclusão

Assim, podemos concluir que Shakespeare utiliza elementos da estória de Leir em Rei Lear– uma de suas peças mais complexas – e lhes dá uma roupagem trágica e pessimista, o queaumenta mais ainda a importância da crônica de Geoffrey. A vida de Leir, por si só jáfundamental para o folclore, também o é para a nacionalidade bretã, por fazer parte de umaamplamente divulgada história dos reis bretões, sejam eles verídicos ou míticos. Acomparação entre as duas narrativas mostra como estórias parecidas podem ser recontadasde maneiras alternativas, com o uso de outros elementos históricos, folclóricos e formais.

Bibliografia

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Ritmo e Descrição:A marca anônima do estilo nas crônicas arturianas

Roberto Dutra Junior

Artur triunfou. Ferido de morte, no santuário místico em Avalon, Artur retornará quandomais for preciso e nos guiará para a vitória. É bem verdade que seu exílio nunca o fez tãopresente. Desde que Artur e seus porta-vozes expandiram o reino de Logres por todo ouniverso do imaginário cavaleiresco seu triunfo é notável. Do seu aparecimento na Históriados Reis da Bretanha até os dias de hoje. Impossível pensar em Idade Média sem pensarem cavaleiros e castelos e simultaneamente pensar em Artur e seus cavaleiros em demanda.Artur triunfa no imaginário de todos, o que faz pensar um pouco sobre a riqueza dos textosda Matéria da Bretanha e sua capacidade atemporal de cativar. Que filtro druídico manteriaunida tal fluência por séculos e línguas e prosa e verso e traduções e adaptações?

A leveza da poesia narrativa medieval é talvez o traço que mais profundas marcas deixanaqueles que percorrem o legado de seus textos. A beleza permeada nessas composiçõesestá fortemente relacionada ao conteúdo ricamente imagético, capaz de invocar emoçõesprofundas e grandiosas – que outras mesmo não caberiam para traduzir o curso dasaventuras de cavalaria que marcaram a produção literária européia dos séculos XII e XIII.Mesmo com vilanias, traições, sangue e batalhas, a Matéria da Bretanha deixa em nós umaimpressão lúdica de que o melhor ainda está por vir e o seu triunfo ou o desfecho é feitomesmo em nossas próprias vidas, como se participássemos das cortes e justas. Vamos nesteestudo em busca de alguns traços que formam essa leveza que marca.

O objetivo deste ensaio é se debruçar sobre algum material da poesia narrativa medievaldos séculos XII e XIII compondo a Matéria Arturiana e esboçar uma análise de algumas desuas características de estilo, ressaltando alguns traços que enriquecem o valor estético deseus textos e atestam a genialidade de seus autores. É preciso atentar, porém, para aslimitações que os séculos nos impõem e que aqui, no corpo deste texto, são relevantes paratornar claro o escopo do estudo. Trabalhamos aqui com traduções, que foram escolhidaspor apresentar um cuidado lapidar dos tradutores em preservar em quaisquer das formas detextos originadas a maior fidelidade possível com os originais.

Este ensaio não busca uma análise profunda e que esgote o tema, é antes um intróito, umpanorama seguido de uma breve exposição e análise de algumas das características quepermeiam a poesia narrativa medieval nos textos da tradição arturiana.

Em seu apanhado sobre a produção literária medieval, Segismundo Spina faz umadivisão de critério estético para a produção literária medieval111. De acordo com este autoros três tipos fundamentais do material literário medieval podem ser classificados comosendo: uma literatura empenhada, uma literatura semi-empenhada e uma literatura deficção, os dois primeiros tipos estando relacionados a características pedagógicas,alegóricas, políticas e satíricas. Uma vez que nosso objetivo aqui é abordar alguns aspectosda produção no que concerne à Matéria da Bretanha e à produção lírica francesa (os lais,para ser mais preciso), iremos concentrar-nos deste ponto em diante na última tipificação.

A literatura de ficção medieval tem evidentes intuitos estéticos e é claro o seu caráter deentretenimento, seja ela do gênero da poesia épica, lírica e do romance ou conto (novela)

1 Consultar SPINA, S. (1973) p: 17-19, para detalhes a respeito dessa classificação.

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cortês. Aqui podemos situar, a guisa de classificação apenas, o romance de cavalaria bretão– seja em prosa ou verso – e o lai francês. Ainda frisando o caráter de entretenimento, épreciso lembrar que a literatura da época era totalmente inserida numa tradição oral.Romances, gestas e lais eram feitos para a voz e instrumentos. Poetas (muitas vezesanônimos, que vivem pelo que suas obras nos encantam até hoje), trovadores, troubairitz(no caso de Maria de França) e menestréis compunham para alegrar e encher de música asnoites de cortes de nobres medievais. Eis então que faziam com que as canções tivessemem seu conteúdo uma propriedade narrativa, que, aliada à musicalidade tanto do seuacompanhamento quanto da escolha de palavras, acabava em resultar numa “poesia queconta”1. Sobre isso também nos lembra o estudioso Brian Stone:

But besides being the best medium for writers of genious, narrative poetry, in a society largely subsistingon an oral tradition, often meant no more than story set up in rhyme and rhythm for declaiming orchanting. It was an accepted critical dictum of the time that, if something was well expressed in prose, itmust be better expressed in verse.2

Por outro lado, não podemos perder de vista outro agente ontogênico da literatura daIdade Média, como nos mostra S. Spina, referindo-se a fatores intrínsecos da variação doromance bretão e da gênese do ciclo do Graal:

A estrutura social é em boa parte, responsável pelas grandes divisões da produção literária medieval.Dado o caráter internacional, mecenático da literatura laica, que vive em grande parte à mercê da classearistocrática, há um tipo de produção culta que se distancia das formas burguesas e populares. Aliás,certas denominações das formas literárias medievais não escondem a sua procedência social: romancecortês, novela cavaleiresca, conto burguês as próprias denominações trovador e jogral correspondem aformas literárias de execução culta, palaciana, popular e burguesa (burguesa no sentido em querepresenta a cultura da cidade).

Claro que este contexto3, envolvendo todo o processo de criação, deixou marcasprofundas de estilo em todas as composições. Mesmo onde essas composições nada maisfaziam que imprimir ritmo e rima a uma história, alguma genialidade prevalecia para deixaruma marca de valor a cada peça. Sobre algumas dessas ferramentas retóricas é quequeremos abordar mais adiante neste ensaio. O elemento de imposição de técnica ànarrativa, seu estilo, em muito ajudou para que tais textos se tornassem algo que mágicos,alcançando o valor de obra de arte e fazendo seus autores inconfundíveis mesmo dentro daobscuridade do anonimato.

Duas das características estilísticas que aqui colocamos em evidência são a aliteração e amodalidade de descrição peculiar encontrada nos romances de cavalaria, a primeira sendouma característica que reforça a qualidade musical dos romances cavaleirescos. Aaliteração é um recurso que não apenas marca toda a literatura britânica em versos doperíodo, mas o faz de maneira distintiva, particular da língua inglesa, remontando a umatradicão praticada antes da adoção de modelos clássicos, a uma marca de estilo que remetea textos escritos em inglês antigo (Old English) 4. A descrição, por sua vez, aparece comouma força-motriz da narrativa, seu elemento fundamental e fundador. Dentro das narrativas

1 Assim como nos mostra Marina Colasanti no prefácio para MARIE, de F. (2001).2 STONE, B. (1964) p: 11.3 STONE, B. (1964) fornece uma introdução às suas traduções de poesia medieval que situa brevemente o contexto sociale histórico, assim como o prefácio de Marina Colasanti, já citado aqui em nota anterior.4 Tome os textos de Beowulf e The Seafarer, como exemplos de obras anteriores que utilizam o recurso aliterativo.

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arturianas a descrição tem uma riqueza de pormenores bem particular à época, exercendoum papel que não apenas serve à necessidade de criar uma imagem, mas exagera e fantasiao que é descrito, introduzindo elementos fantásticos e promovendo hipérboles brilhantespela natureza do que atribuem aos seus elementos. Tais qualidades, encontradas no modelode descrição dentro da literatura arturiana, é que marcam o elemento descritivo de umacaracterística original e única do gênero praticado pelos autores de romances de cavalaria.

É fazer notar que aliteração e descrição atuam juntas para criar um efeito. A primeirarealça a segunda e, pela musicalidade inerente que faz-se notar pela repetição de certos sonsdas consoantes iniciais de certas palavras, assim aumenta o efeito da impressão que se querpassar. Por ser um efeito obtido dos sons das letras do início das palavras e pelaproximidade natural (porém relativa, claro) entre o inglês médio (Middle English) e o inglêselizabetano (incluindo a língua inglesa atual), este recurso pôde ser mantido na sua maiorparte ao longo das traduções consultadas.

O “poeta da pérola” produziu o primeiro dos romances arturianos que aqui serve deexemplo. Além de Dom Galvão e o Cavaleiro Verde (Sir Gawain and the Green Knight), aeste poeta anônimo é atribuída a autoria dos poemas “Purity”, “Patience” e “Pearl”(“Pérola”; daí a alcunha), por terem sido encontrados todos no mesmo manuscrito.Utilizando as palavras de Brian Stone, o tradutor, para uma síntese, eis que : “ ‘Pearl’ is agreater achievement than the same poet’s romance, Sir Gawain and the Green Knight, andjust as Sir Gawain must be considered one of the best narrative poems in English, so his‘Pearl’ ranks among our finest elegies.”1

Duas passagens foram selecionadas para demonstrar o efeito criado pelo poeta, aprimeira descrevendo o Cavaleiro Verde e depois uma descrevendo Galvão. Estas, porém,não se encontram transcritas na íntegra, por serem relativamente longas; logo,concentramo-nos nos versos que acreditamos cerne de suas relevâncias que aquiprocuramos mostrar.

O romance de Dom Galvão e o Cavaleiro Verde conta de como, na corte do Rei Artur, oCavaleiro Verde adentrando na comemoração do ano-novo, desafia os presentes a atacá-locom um machado sob a condição de que este, ao sair vivo do golpe, dentro de um anorecorreria ao direito de reverter o golpe a seu agressor. Não havendo quem aceitasse taldesafio, prontificou-se Galvão, e eis que desenrola-se aventura. Ao penetrar na corte, aprimeira descrição do Cavaleiro Verde é feita em relação à sua estatura, tão alto era queassim é descrito: “Who in height outstripped all earthly man. / From throat to thigh he wasso thickset and square, / His loins and limbs were so long and so great, /That he was half agiant on earth, I believe;”2. O papel da aliteração ultrapassa o efeito sonoro e cria umgrupamento semântico envolvendo palavras com o mesmo som inicial e remetendo-as auma proximidade de significação. Assim para descrever o quão robusto o Cavaleiro Verdeé temos que: throat to thigh => thickset. Por sua vez, seus membros podem serconcisamente visualizados quando unimos as semelhanças sonoras no verso3 em que: loinsand limbs => long. Configura-se então, o gigante, que logo adiante no poema também édito sério e sobrenaturalmente esverdeado: “A fellow fiercelly grim, / And all a glitteringgreen.” (149, 150).

1 STONE, B. (1964), p. 136.2 STONE, B. (1974), l: 137-140, por serem de uma mesma edição, as referêcias a esse mesmo texto aparecem daqui emdiante indicadas ao longo deste estudo pelas linhas dos versos, entre parênteses.3 No original em Middle English: "and his lyndes and his lymes so longe and so grete"

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Logo adiante no romance, o poeta vale-se de uma outra passagem e complementa adescrição do cavaleiro sobrenatural:

And a great bushy beard on his breast flowing down,With the heavy hair hanging from his head,Was shorn below the shoulder, sheared right round,So that half his arms were under the encircling hair,Covered by a king’s cape, that closes at the neck,The mane of that mighty horse, much like the beard,Well crisped and combed, was copiously plaitedWith twists of twining gold, twinkling in the green,First a gossamer, a golden one next. (182 – 190)

Neste trecho entretanto, o efeito produzido pela aliteração e a repetição das consoantesnas tônicas iniciais inseridos na descrição do Cavaleiro Verde (sublinhados não constam dooriginal) parece querer realçar o avanço desse ser poderoso pela corte do rei. O ritmointensifica-se de tal forma devido à tônica (stress, sempre na primeira sílaba) aliterativa decada palavra que, como em um poema sinfônico, praticamente podemos visualizar cadapassada do gigante. Nunca fora visto tão imponente cavaleiro-e-montaria pelos nobres dacorte de Camelot. E no ápice desta caracterização, coroando a visão ameaçadora de suapresença com um último exagero na sua descrição, como sempre há nas narrativas da ficçãomedieval: “His dreadful blows, men deemed, / Once dealt, meant death was done.” (201,202).

Galvão por sua vez é primeiramente percebido pela visão daqueles que o rodeiam,primeiro ao mostrar sua alegria e descontração frente ao inevitável: “Gawain was glad tobegin the games in hall,” (495). Mas a desgraça anunciada ao corajoso sobrinho de Arturcomove a todos: “The gallant lords and gay ladies grieved for Gawain,” (539). E, como senão bastasse, Galvão, pleno de si ainda profere sua fortaleza: “Said Gawain, gay of cheer, /‘ Whether fate be foul or fair, / Why falter I or fear? / What should man do but dare?” (562-565). Mas é na descrição de Galvão vestindo sua armadura que podemos verificarnovamente o efeito de aliteração aumentar nossa percepção da cena através do emprego deelementos sonoros no verso. Até poderíamos dizer que cada som nos remete a uma novapeça encaixada no corpo do cavaleiro. Palavra e som alteram a percepção da riqueza de suaindumentária. Uma escolha estilística que produz um forte efeito na declamação, marcandopara o ouvinte não apenas o ritmo mas os elementos da cena com um grande poderimagético. Eis como Galvão prepara-se:

The doublet he dressed in was dear Turkestan stuff;Then came the courtly cape, cut with skill,Finely lined with fur, and fastened close.Then they set the steel shoes on the strong man’s feet[…]Which rested on rich material, wrapped the warrior round.He had polished armour on arms and elbows,Glinting and gay, and gloves of metal,And all the goodly gear to give help whateverBetide;[…]The least lace or loop was lustrous with gold. (572-591)

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Mas a composição de Galvão só se completa quando, finalmente paramentado de seuescudo com o emblema do pentagrama, nos é fornecida a justificativa – beirando ometafísico – dos motivos para portar tal emblema: “First he was found faultless in the fivewits. / Next, his five fingers never failed the knight, / And all his trust on earth was in thefive wounds / Which came to Christ on the Cross, as the Creed tells.” (640-643). Onde oefeito causado pela consoância de first/found/faultless ilustra perfeitamente o lugar queGalvão ocupa em muitas narrativas como o cavaleiro mais destemido dentre tantos e dentrode diversas das narrativas, embora com papel menor no ciclo do Graal. Temos aí umarepresentação muito significativa, no contexto subjacente ao estilo da composição, dadimensão do tipo de paladino que é Galvão.

Elementos característicos do verso, como o que colocamos acima, são praticamenteimpossíveis de serem mantidos quando a tradução do texto original concebe um texto emprosa. Neste caso vemos que o estilo como expressão dele mesmo ainda assim sobrevivecom algumas de suas marcas até mais fortes que outras. Exemplo disso encontramos no lai“Lanval”, de Maria de França, única de suas narrativas poéticas marcadamente arturiana,uma bela peça a compor as narrativas da crônica arturiana. Traduzido em prosa pelamaioria de seus tradutores, “Lanval”, assim como os demais, preserva justamente no caráterdescritivo uma das principais características da produção literária medieval de ficção. Naspalavras de Furtado no intróito à sua tradução dos Lais: “As descrições de edificações,roupas, e de toda sorte de bens buscam mostrar-nos como cada objeto é incrivelmente rico,um reflexo, por certo, de como era importante, tanto para as mulheres como para oshomens, comprovar ter nascido de família nobre.”1 O tradutor também reafirma acaracterística de exagero que permeia os Lais, assim como vimos estar presente nos versosde Galvão. Cada dama é descrita como sendo a mais bela do mundo, sem par quanto a suabeleza entre os seres viventes, da mesma forma que o Cavaleiro Verde é o mais alto que jáse viu e Galvão é perfeito em seus cinco sentidos.

“Lanval” de Maria de França – apesar do nome, não menos anônima que o poeta dapérola – conta a história de como Lanval, querido por muitos, foi traído e viu-se frente auma condenação diante do falso testemunho da rainha, só podendo ser salvo por sua amiga.

Mas, vamos nos deter um pouco na amiga de Lanval. Ela possui riquezas tais quesuperam as de um império! Quando Lanval cai em suas graças, a maneira com que estedistribui presentes a todos nos faz crer que seus recursos sejam mágicos ou mesmoinesgotáveis. Até suas criadas parecem de uma opulência e beleza inconfundíveis:“…nunca vira mais belas! Estavam vestidas ricamente em túnicas muito justas de púrpuraescura; tinham rostos muitos lindos.”(83) Entretanto, como nos exemplos tomadosanteriormente, é do primeiro encontro com a amiga, sob uma riquíssima tenda, uma dasmais fortes impressões que temos, através dos olhos do próprio Lanval:

“Nem a rainha Semíramis, no auge de sua riqueza, poder e saber, nem o imperador Otaviano, teriam obastante para comprar sequer o lado direito da tela. […] sob o céu não havia rei que as pudesse comprar,por nada que tivesse que dar em troca. Dentro da tenda estava a donzela. À flor-de-lis e à rosa nova,quando se abrem em pleno verão, ela ultrapassa em beleza. Reclinava-se sobre um leito muito bonito – ascobertas valiam um castelo – em camisa apenas. Tinha o corpo muito bem feito e gracioso. […] Era maisalva que a flor do espinheiro.” (83)

1 Na introdução de MARIE, de F. (2001), p: 31. Por serem de uma mesma edição, as referêcias futuras a esse mesmo textoaparecem indicadas no corpo do ensaio pela página, entre parênteses.

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Também o narrador do lai adiante acrescenta, da beleza da dama misteriosa que amaLanval, adentrando a cidade: “Em todo o século não haveria mais bela! […] Não houve noburgo nem pobre, nem poderoso, nem ancião, nem criança que não viesse vê-la passar. […]não houve quem a contemplasse que não se inflamasse de verdadeiro gozo.” (92) Riqueza ebeleza se equivalem como valores dentro da realidade dos Lais e essa união mostra quecada um dos pólos pode ser usado para definir o outro. Uma beleza que não subsiste sem ariqueza e esta, por sua vez, emoldurando a beleza e a colocando em um nível de certa formamaravilhoso; onde falham os adjetivos e qualificativos humanos, estes são logo substituídospor outros, mais altivos e fabulosos.

A verdade é que ela “Era mais alva que a flor do espinheiro.” (83) Poderíamos até ficarestupefatos, não fosse descobrir que a amiga de Lanval reside na ilha de Avalon. O exagerocom que o belo é descrito então passa a ter uma conotação também de um elementomaravilhoso. Além de marcadamente amorosos, os Lais também estão impregnados dosobrenatural mágico, que poderíamos chamar mais precisamente de elementos feéricos. Oexagero justamente descortina o maravilhoso, dando-nos uma pista do que está por vir arespeito dessa mulher tão especial.

Os trechos selecionados do lai demonstram a sobrecarga de significados de uma imagemcomo recurso de narração/descrição com objetivo de maximizar a nossa impressão sobre ariqueza da amiga de Lanval. Além de destacar a importância de uma posição de nobreza,exemplifica um efeito, usado para marcar o receptor/leitor com uma imagem que se quercriar. Quem não se lembrará de dama mais rica que uma rainha? Quem não vai semaravilhar por descobrir sobre seu exílio final junto com seu amor, Lanval, na ilha deAvalon? Claro que não busco respostas para estas perguntas. As respostas estão noconteúdo estético do lai, assim como no conteúdo do poema narrativo de Galvão. Tambémnão se quer afirmar aqui que estas são as razões da perenidade da poesia e da MatériaArturiana, mas sim pontos de força, evidências de estilo que colaboram para que nósmergulhemos no universo mítico e feérico das crônicas cavaleirescas.

O rei que foi, o rei que é. Tudo que rodeia Artur permanece como seu nome. Assimtambém é a crônica que foi, a crônica que ainda é. Foi pretendido mostrar aqui umaintrodução às questões de estilo e algumas técnicas empregadas na poesia narrativa daMatéria da Bretanha. Como exemplos representativos dessa produção, tomamos astraduções de dois poemas significativos pela sua inserção no período medieval. As marcasdeixadas em nós pela leitura de tais poemas são realçadas pelo emprego de recursosestilísticos, como a aliteração e o modo hiperbólico da descrição. Dom Galvão e oCavaleiro Verde e “Lanval”, valendo-se destes recursos, vêm durante os séculos mantendoa mesma força para fascinar e para manter-se como obras de arte. Os valores da sociedadeou de um grupo de leitores, mesmo que alterados com o passar dos anos, não modificam opoder da técnica textual contida nessas obras. Mesmo se pensarmos numa superação doestilo, ainda assim resta–nos o fascínio de um leitura sincrônica, como foi pretendida aqui,que ponha em evidência as suas características como marcas da época. Por isso mesmo, – epor ainda circularem com força constante pelos círculos de apaixonados e acadêmicos – suapresença atemporal se dá de modo muito vivo, sinal de uma lírica que foi e, muito mais, deuma lírica que é.

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Bibliografia consultada:

BALDWIN, C.S. An Introduction to English Medieval Literature. London: Longmans,Green, and Co, 1914.

FURTADO, A.L. Artur e Alexandre – Crônica de dois reis. São Paulo: Ática, 1995.FURTADO, A.L. Aventuras da Távola Redonda – Estórias medievais do rei Artur e seus

cavaleiros. Petrópolis: Vozes, 2003.MARIE, de França. Lais de Maria de França. FURTADO, A.L. (trad.). Petrópolis:

Vozes, 2001.SPINA, S. Iniciação na cultura literária medieval. Rio de Janeiro: Grifo, 1973.STONE, B. (trad.). Medieval English Verse. Middlesex: Penguin, 1964.STONE, B. (trad.). Sir Gawain and the Green Knight. 2º ed. Middlesex: Penguin, 1974.

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Do motivo da Falsa Noiva ao Tema da Inveja:Um percurso de leitura comparada de três contos de Grimm

ao episódio de “A Falsa Genevra”

Sylvia Maria Trusen

- Eu já li essa história em Andersen – disse Emília – e agora estou vendo bem claro como onosso povo faz nelas os seus arranjos. Foi Andersen quem a inventou.- Não – disse D. Benta. Andersen nada mais fez do que colhê-las da boca do povo e arranjá-las aseu modo, com as modificações que quis. Essas histórias são todas velhíssimas, e correm todosos países em cada terra contada de um jeito. Os escritores o que fazem é fixar as suas versões,isto é, o modo como eles entendem que as histórias devem ser contadas. (Lobato, 1960: 67)

1- Introdução

Embora o escritor do conto referido em epígrafe, Hansel e Gretel, não seja odinamarquês, mas os alemães Wilhelm e Jacob Grimm, a asserção nem por isso deixa deser pertinente. Principiou-se com ela este estudo, pois concentra duas informações cruciais:

a) as histórias são velhíssimas e correm todos os países;b) os escritores fixam as suas versões, isto é, o modo como eles entendem que as histórias

devem ser contadas.

Esses são os dois aspectos centrais para a pesquisa aqui proposta. O primeiro deles atestaa longa circulação literária entre diferentes áreas geográficas dos objetos de estudo destetrabalho. Há pois que delimitar o campo sobre o qual irá se deter o olhar do pesquisador,fixá-lo num ponto, pois, como fragmentos de espelhos coloridos que se rearranjamininterruptamente, as narrativas configuram espécie de calidoscópio feito por motivos emconstantes e diferentes mutações.1 Cumpre, portanto, interromper o fluxo constante denarrativas sempre recompostas, recortar um aspecto, centrar a mirada sobre um vidrilho eexaminá-lo.

Propõe-se, assim, que o olhar se deixe cativar pela imagem, ou motivo, da falsa noiva.Dada, porém, sua recorrência em muitos acervos – não é fortuita a perspicácia dapersonagem-leitora Emília, “mas eu noto uma coisa: as histórias populares parecem uma só,contadas de mil maneiras diferentes (Lobato, 1960 : 40) – vamos limitar a observação a trêscontos compilados pelos Irmãos Grimm em duas edições, bem como a episódio narrado noLancelot do Lac. 2

Contudo, logo se verificará, sua recorrência vem plasmada por outro tema, o da inveja,constituindo, portanto, esta também objeto de exame deste trabalho. Refletir acerca desseelemento como tema que constitui o solo sobre o qual se erige o da falsa noiva teria aindaoutra vantagem, além de garantir unicidade ao estudo. Considerar o modo como as

1 Por motivo, entende-se um repertório de unidades recorrentes na ficção, articuladas entre si, e passível de migrar entrenarrativas, sejam elas de cunho popular ou não. Como unidades menores do enredo, prendem-se ao tema, que as envolve.(Cf. Reis e Lopes: 1988). Embora reconhecendo a importância da lei de permutabilidade, definida por Propp (1984), bemcomo da descrição das ações como partes constitutivas dos contos maravilhosos, não será empregada aqui sua teoria, poisafasta-se dos objetivos propostos.2 Ilustra a migração de motivos artúricos o ensaio de A. Furtado (2001), acerca da imagem alegórica da Besta Ladradora.

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narrativas fundamentais, isto é aquelas sobre as quais se calcaram os valores morais dacivilização ocidental-cristã, vem aterrando a ética desta cultura, implica pensar sobre apermanência da literatura ancorada no maravilhoso. Importa indagar-se a respeito davigência, senão o recrudescimento do interesse por tais narrativas (basta verificar oaumento de traduções do gênero), num tempo de fragmentação de valores – eindiferenciação de sujeitos assistidos pelo processo de homogeneização. Importa,sobretudo, se levado em conta o fato de que foram, como é o caso dos Grimm, adaptadas aum público cujo gosto distancia-se do nosso por mais de dois séculos.

E chega-se aqui ao segundo aspecto apontado por D. Benta. De fato, todo escritor lê etraduz o modo como eles entendem que as histórias devem ser contadas. A tradução, emsua acepção mais ampla, isto é como leitura e criação (Larrosa,1996; Paz, 1991) não apenasde um idioma, mas de uma linguagem, comporta uma imagem, ou uma certa concepção depúblico leitor para o qual se dirige. O estudo da primeira e última edição do acervocompilado pelos irmãos Grimm, bem como dos apontamentos feitos, é nesse sentidorevelador. Mas fica ainda a questão: se constituído o acervo para um dado público leitor,adaptado e traduzido para tal destinatário, como explicar sua permanência em plena pós-modernidade? Mais instigante é ainda o caso das narrativas da matéria da Bretanha, seconsiderados os quase oito séculos que a separam do atual. O caminho a ser trilhado será,portanto, o da literatura comparada. (Brunel; Pichois; Rousseau : 1990; Carvalhal : 1991)

O trabalho que se segue, ao fixar o olhar sobre o motivo da falsa noiva e as imbricaçõespossíveis com um dos chamados pecados capitais, a inveja, pretende construir um rumo,provisória senda dentre tantas possíveis, para compreender a inquietante vigência dessasnarrativas sobre eles edificada.

2 – Alguns pressupostos teóricos

Antes de enveredar pelas trilhas que deverão levar ao estudo proposto, convém prepararcom prudência o terreno, pois a complexidade dos contos maravilhosos tem provocado umagama tal de interpretações que nos obriga a uma exposição sumária de seus fundamentos.Com isso, esperamos esclarecer nossa opção teórica.

O primeiro grupo de intérpretes que cumpre citar orienta-se pelo método deinterpretação psicanalítica e tem nas figuras de Bettelheim (1980) e de Erich Fromm (1981)alguns de seus principais expoentes. A grosso modo, pode-se dizer que sustentam a tesesegundo a qual o conto de fadas manifestaria a expressão de um desejo face a umarealidade de carências. Ainda no campo da psicanálise, mas seguindo desta vez o rastrojunguiano, encontramos a tese de Marie-Louise von Franz, para quem a simbologia de taisnarrativas expressariam resíduos arquetípicos, presentes no inconsciente coletivo. A suaorigem estaria, portanto, no mito.

Um segundo método interpretativo tem por base a escola finlandesa, fundada por AnttiAarne (1910), posteriormente desenvolvida por Stith Thompson (1987). Mais do que umaanálise, persegue um inventário das variantes de um mesmo conto, classificando-ossegundo índices numéricos que possibilitem a posterior comparação.

Não obstante a importância prática do trabalho, que indubitavelmente facilitou acomunicação nas discussões científicas (verificável em quase todo arquivo de classificaçãode contos), não lhe foi poupada a pertinente crítica de Propp, ao constatar que Aarnedesconsidera a lei da permutabilidade (Propp, 1984 : 16), em função da qual as partes

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constitutivas de um dado conto podem migrar de uma variante à outra, sem que o todoorgânico fosse alterado.

O problema, de fato, revela-se ao afirmar que “em muitos lugares foram deixadosespaços livres para novos tipos, de modo que estes possam receber a numeração adequada.”(Aarne, 1910 : IV). E mais adiante:

Havendo a necessidade de, ao longo do tempo, ajuntar aqui ou acolá novos tipos além dos números paratanto estipulados, permanece sempre a possibilidade de multiplicá-los, por exemplo mediante oacréscimo de um pequeno algarismo romano. (1910 :IV) 1

A afirmação, de fato, aponta para a inexistência de uma descrição que abarque osprocessos formais de composição a partir da combinação de diferentes unidades quetrasladam de uma narrativa a outra. Em outros termos, falta uma compreensão do lugar detais narrativas no sistema literário como um todo, ou, mais especificamente, do gênero aque pertencem.

Propp, em contrapartida, propõe o estudo das relações funcionais entre os componentesda narrativa, estratégia esta que lhe viabilizaria pesquisa etno-histórica posteriormentedesenvolvida em bases, acredita, mais científicas:

O estudo da estrutura de todos os aspectos do conto maravilhoso é a condição prévia absolutamenteindispensável para seu estudo histórico. O estudo das leis formais pressupõe o estudo das leis históricas.(1984: 20)

Como material de pesquisa dispõe da coletânea de Afasanev, com base na qual logroudefinir trinta e uma funções como unidades morfológicas estáveis e constantes, princípioeste que permitiria a subordinação de cada conto a um grupo funcional.

Em pesquisa posterior, expande a sistematização feita por meio da pesquisa formal epersegue, a partir de pesquisa etnográfica do folclore russo, a recorrência e transformaçãohistórica de elementos arcaicos nas narrativas. Embora afirme, portanto, que “o contoconservou vestígios de numerosos ritos e costumes” (1997: 10), alerta para o fato de que érara a correspondência direta entre um e outro, verificando-se, mais freqüentemente, areinterpretação de um dado costume ou rito pelo conto que substitui elementos caídos emdesuso, em razão de transformações históricas.

De qualquer modo, é de se indagar se, malgrado a prudência do pesquisador, ainterpretação quanto à substituição de certas passagens por outras - em função demodificações históricas -, não permanece algo mecânica. Por outro lado, a tentativa derastrear as alterações parece guiar a pesquisa em direção ao terreno arenoso das suposições.É, pois, nesse sentido que explica a defloração da noiva por auxiliares do noivo, nos contosrussos, como reflexo da fusão do ritual de defloração, anterior ao casamento nas sociedadesarcaicas, e que passou a ocorrer, pelo marido, após o matrimônio:

A defloração não mais acontece antes do casamento, e sim depois. Assim, o personagem que realiza esseato deve agir imediatamente após a cerimônia, isto é, durante a primeira noite. A noite de núpciashumana confunde-se com o defloramento totêmico. O defloramento é obra do “espírito da floresta”, ouseja, no conto, do auxiliar do herói, de cujas mãos o herói recebe a noiva. (Propp, 1997 : 406)

1 Trad. nossa. Optou-se por verter para o português apenas os textos em alemão.

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Todavia, nenhuma das linhas de investigação até agora apresentadas observa o fatode que tais narrativas sofreram uma adulteração em virtude da mudança do receptor. OKinder–und Hausmärchen assinado pelos Irmãos Grimm leva no título a intencionalidadede adaptar uma narrativa pré-existente ao gosto e capacidade do pequeno leitor do séculoXIX. Não se trata, pois, de negar a pertinência das afirmações de Propp e de Aarne, mas deconsiderar que estas se referem, ao menos no que tange ao acervo alemão, a um materialretrabalhado.

De fato, como observam Richter e Merkel (1974), o Kinder-und Hausmärchen é umaescrita histórica e culturalmente delimitada, marcada pelo ajustamento de uma narrativapopular às necessidades da criança burguesa, cujos traços são perceptíveis ao longo dasedições.

O fato tem efetivamente sérias implicações para o estudo das narrativas. A leitura doscontos publicados em momentos diversos, marcados por intenções diferentes, atesta oquanto interpretações que se aplicam a uma certa edição, - mais recorrentemente à de 1857-, pouco ou nada se justificam quando se lê a primeira publicação do acervo.

Em trabalho anterior (Dissertação de Mestrado) já se verificou a importância do públicoreceptor e a conseqüente mudança do horizonte de expectativa na elaboração gradual doacervo1. Trata-se agora de perceber a permanência de elementos que, malgrado asalterações já reconhecidas, atravessam não apenas as edições, mas outras narrativas quedelas se aproximam pela ocorrência de temas e/ou motivos similares. Pode-se, pois, daíinferir que a pesquisa aqui proposta, movimentando-se no âmbito da literatura comparada,deverá recorrer para tanto às teorias literárias, mas sem negligenciar as contribuição deoutras disciplinas.

Nesse sentido, é importante notar, no que concerne à economia interna dos contos e dahistória retirada da matéria da Bretanha, aquilo que os peculiariza, situando-os no amplouniverso da literatura.

Assim, no que concerne ao conto maravilhoso, tradução próxima ao Märchen, Hetmanexplora as muitas possíveis definições:

Com o termo Märchen entendemos, desde Herder e os Irmãos Grimm, uma narrativa desenvolvida comfantasia poética, e em especial as do universo mágico, histórias maravilhosas não ancoradas nascondições da vida real, e que ouvimos, com maior ou menor prazer, embora as consideremosinacreditáveis.” (Polivka e Bolte apud Hetmann, 1982 : 12) 2

Lüthi, outro estudioso do gênero, embora lembre, assim como Propp, que a questão nãoé tanto o quê, mas como se narra, afirma:

O Märchen, porém, permanece para nós enigmático porque mescla, como se fora lógico, o extraordináriocom o natural, o distante com o próximo, o compreensível com o incompreensível. (Lüthi, 1992 : 6) 3

Em seu clássico estudo do fantástico, gênero narrativo fronteiriço entre o estranho e omaravilhoso, Todorov assevera:

1 Referências teóricas importantes foram então as teses da estética da recepção e do efeito de Jauss e Iser.2 Trad. nossa3 Trad. nossa.

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No caso do maravilhoso, os elementos sobrenaturais não provocam qualquer reação particular nem naspersonagens, nem no leitor implícito. Não é uma atitude para com os acontecimentos narrados quecaracteriza o maravilhoso, mas a própria natureza desses acontecimentos. (Todorov, 1975 : 59-60)

Malgrado as diferentes orientações metodológicas, percebe-se um fulcro comum. Arecorrência do termo maravilhoso e sua associação ao mundo do sobrenatural, do que fogeà lógica da experiência empírica, merece atenção, sobretudo se recordado que a naturezados romances de cavalaria reside na singular organização espaço-temporal, ou, na felizexpressão de Bakhtin, “um mundo maravilhoso num tempo maravilhoso” (1990, 270). Sediferentes orientações metodológicas apontam para sua contumaz repetição, observar asalterações de cunho histórico em função da mudança do público receptor no corpus danarrativa dos Grimm talvez possa indicar que, a despeito delas, permanece latente apotência dos mirabilia, termo que se encontra na origem do maravilhoso, presente noacervo dos Grimm e no episódio a ser investigado.

Talvez fosse, pois, de bom alvitre dirigir o olhar para a origem etimológica da palavra.De fato, mirabilis era termo empregado no ocidente medieval no âmbito da cultura eruditapara referir-se a uma coleção de objetos extraordinários 1. (Le Goff, 1994). Em mirabilisestá a raiz do verbo mirari (mir), que permite remissão para o terreno visual, evidenciadano verbo mirar. De mirar, chega-se ao miroir, traduzido pelo português por espelho, dada acontaminação do latim speculum. Em ambos, contudo, tem-se a miragem do que não é real– a inversão em imagem outra do que reproduz especularmente.

O leitor aqui já poderá estar supondo o destino da argumentação sugerida. Contudo, paraque a idéia adquira força de convencimento, cumpre ainda um passo: aliar a miragemespecular e o maravilhoso à alteridade. Seguindo o rastro da etimologia, afirmou-se até aquio estreito parentesco entre o campo de significações sugerido pelo termo mirabilis (mirar,miroir, miragem) e o termo maravilhoso. Agora o que se quer é abarcar a alteridade comoinstância estética, capaz de articular o maravilhoso à literatura erigida sobre os mirabilia.Valiosas são aqui as teses do venezuelano Victor Bravo sobre a literatura fantástica e outrascircunvizinhas:

El drama que vive el acontecimiento literario – y que vive como consciencia sobre todo a partir delromanticismo – es justamente esa tensión entre lo Mismo y la alteridad, entre subordinarse al peso de losreferentes del mundo, o hacer sentir su respiración y sus territorios como otro de los horizontes delmundo. (Bravo, 1987: 21)

Se, por linguagem poética, Bravo entende uma linguagem constituída como outra face àcomunicacional, espécie de “perturbação de águas tranqüilas” (Bravo, 1987: 24), é lógica aconseqüência que daí retira: a alteridade é o centro gerador do acontecimento literário. 2

Desse modo, a narrativa fantástica sobrevive, ainda segundo Bravo, da situação limiar entreas leis da verossimilhança e as ilimitadas possibilidades da ficção, encenando, porconseguinte, como nenhuma outra, a alteridade. 3

1 É importante, todavia, lembrar com Le Goff (1994) que, na Idade Média, o quadro conceitual que servia de referência aosmirabilia era radicalmente distinto do moderno, uma vez que inexistia a dúvida face à (im)possibilidade do evento.2 Por outro viés, mas chegando a conclusão semelhante, Yunes (2002) afirma o espaço da alteridade na literatura e suaimportância na construção de um mundo erigido sobre o valor das diferenças.3 V. também, a respeito do fantástico, do estranho e do conto de fadas, estudo de Freud (1996) sobre novela de Hoffmann,que serve de referência às pesquisas posteriores de Todorov e Bravo.

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No outro extremo, na aniquilação do limite e do assombro diante do inusitado, está oterritório do absurdo: o reino da Coconha: 1

Cuando el límite persiste y un ámbito ‘otro’ se pone en escena sin atender a las verosimilitudes de lascertezas de lo real, y sin penetrar estas certezas y cuestionarlas, cuando el límite persiste deslindando elámbito otro del ámbito de lo real, estamos en presencia de lo maravilloso. Podría decirse que, en lofantástico, lo ‘otro’ es una irrupción y, en lo maravilloso, un espectáculo. (Bravo: 1987, 244)

A asserção de Bravo, se é eficaz para entender os contos alemães, ela o é igualmentepara a compreensão do texto do Lancelot, uma vez que é fluido o trânsito nos romances decavalaria, e na obra precursora de Chrétien, entre as experiências empíricas e as do mundosobrenatural (Bakhtin, 1990; Cirlot, 1987). Ademais, sob o prisma da literatura comparada,o próprio comércio não apenas material entre Ocidente e Oriente, intensificando a livrecirculação da produção artística (Hauser : 1993), também viabilizou o diálogo com oscontos maravilhosos orientais, os quais, por sua vez, enlaçam-se com o acervo dos Grimm.(Coelho : 1982)

Se há objeção à pesquisa comparada de objetos tão particulares como o são os contoscompilados pelos irmãos Grimm e literatura retirada da matéria da Bretanha, refuta-a, comoprocurou-se demonstrar, a potência dos mirabilia que transita entre eles. Para os maiscéticos há ainda a manifestação do motivo comum, a falsa noiva.

3 – O motivo da falsa noiva

Até o momento orientamo-nos pela preocupação em explicitar o gênero sob o qual seinscreve o conto de fadas, o gênero maravilhoso, bem como seu caráter literário, no qualmanifesta-se a alteridade.

Cumpre agora reduzir o foco do nosso olhar circunscrevendo um motivo cuja circulaçãopossa ser identificada nos contos de Grimm e no Lancelot do Lac. Em primeiro lugar, a umacervo. Os contos reunidos pelos irmãos Grimm oferecem diversas vantagens. A primeiradelas diz respeito à existência de registro escrito das anotações, além das diferentes ediçõese manuscritos, o que evidentemente facilita o trabalho comparativo, evitando atribuiçõessimbólicas generalizadas. Outro mérito da compilação é ter servido, além dasdinamarquesas e finlandesas, à primeira classificação realizada por Aarne, (1910)constituindo, pois, a base dos trabalhos de Stith Thompson:

Serviram como base para a mesma [para a pesquisa] a coleção manuscrita finlandesa, a coleçãodinamarquesa S. Grundvigs, além da já conhecida alemã, Kinder-und Hausmärchen dos irmãos Grimm.2

É nesse sentido que optou-se por trabalhar com o motivo da noiva-substituta, K 1911,que aparece nos contos do tipo Aa 403, Aa 408, Aa 450, Aa 533. 3 Tais motivoscorrespondem, no acervo dos irmãos Grimm, aos contos número 13 (“Die drei Männlein imWalde”), nº 11 (“Brüderchen und Schwesterchen”) e nº 89 (“Die Gänsemagd”),

1 Referência ao conto dos Grimm, "Das Märchen vom Schlauraffenland", que parece reportar-se ao mito do Pays deCocaigne, lugar idílico e simultaneamente às avessas, retratado nas narrativas medievais do século XIII. V. Também arespeito Goff (1994)2 Trad. nossa3 A classificação aqui serve apenas como guia voltado a orientar o leitor, e não significa uma orientação metodológica.

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respectivamente. 1 Fundamental será ainda a leitura comparada com o episódio intitulado“A Falsa Genevra”, que, parte integrante do Lancelot do Lac, tem seu enredo centradosobre o motivo aqui abordado.

Principiar-se-á o itinerário pela leitura dos Grimm, para concluí-lo com “A falsaGenevra.”

3.1 – Die drei Männlein im Walde (KHM nº 13)

O conto que seria traduzido, no Brasil, por Monteiro Lobato com o título “As enteadas e osanões” 2 foi publicado pelos irmãos já na primeira edição do acervo, no primeiro tomo, como título “Die drei Männlein im Walde”. Prosseguiu na reedição da coletânea em 1819, paradesaparecer nas subseqüentes (1837, 1840, 1843, 1850) e ressurgir na última (1857), emsua versão definitiva.

Na brochura que sai a público em 1922, contendo os apontamentos dos irmãos relativosà origem das narrativas, o leitor é esclarecido quanto aos narradores das versões publicadas.Sabe-se desse modo que o conto provém de duas variantes:

Segundo duas narrativas, ambas de Hessen, que se completam. Em uma, proveniente da região deZwehrn, falta o início com a prova da bota; o nome homenzinhos da caverna [Höhlenwaldmännlein],para o nome homenzinhos do bosque [Waldmännlein], com o qual, na região baixa de Hessem, sãodesignados os pequenos que moram nas cavernas da floresta e que roubam as crianças que ainda nãoforam batizadas. 3 (Grimm, 1982, V. 3 : p. 22-3)

A leitura da edição de 1819/22, com anotações de próprio punho dos autores (1996),revela ainda o nome do narrador e a data - após a linha 29 (p.46), o nome Dortchen,acompanhado de “09 oct. 1812” e na página seguinte, ao final da narrativa, novamente onome da narradora. E de fato, a pesquisa laboriosa de Rölleke dos manuscritos 4 atestaprovir a narrativa de duas versões narradas por Dortchen Wild 5 e publicada naquele mesmoano. Posteriormente, porém, foi contaminada por variantes narradas por DorotheaViehmann, de Zwehrn, e por outra, relatada por Amalie Hassenpflug..

Essa informação é especialmente relevante se lembrarmos que a família Hassenpflugprovinha de huguenotes foragidos da França. Explica-se assim que o motivo das tartarugasque saltam da boca da filha da madrasta, inexistente na versão de 1812, apareça na seguinte(1819). E de fato é esta que encontramos no conto, bastante similar, “Les Fées”, dacoletânea Histoires ou contes du temps passé, avec des moralités, de Charles Perrault,publicado no século anterior e igualmente difundido.

Em linhas gerais, o conto narra, na última versão escrita pelos irmãos, as agruras de umajovem, criada pela madrasta e sua filha. Como fora obrigada em pleno inverno a colherfrutos silvestres sob a neve, encontra três homenzinhos que, certificando-se de suas

1 Poder-se-ia ainda incluir o nº 49, “ Die weisse und Schwarzbraut”, dentre os contos do tipo Aa Th 403 mas para efeito deanálise consideramos que três contos constituem um número significativo, dentro dos limites deste trabalho, para ilustrar omotivo da falsa noiva2 Conferir ainda tradução de David Jr, mais recente, a qual, embora menos criativa que a de Lobato, está bastante próximaà edição de 18573 Trad. nossa4 Trata-se do manuscrito de Ölenberg, pois encontrado em convento homônimo, contendo as cópias enviadas a ClemensBrentano, colega e autor do Des Knaben Wuderhorn.5 Trata-se na realidade de Dorothea Grimm, cujo nome de solteira era Wild, mãe dos autores. Rölleke tem interessanteestudo acerca dos mitos criados em torno de seus narradores, em sua maioria burgueses.

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virtudes, tais como humildade e generosidade, concedem-lhe três dons: ouro jorrando daboca ao falar, beleza, e casamento com rei. Invejosa, vai a filha da madrasta ao mesmobosque, mas ocorre-lhe o inverso. Constatando o mau-caráter da menina, os trêshomenzinhos lhe concedem três maldições: tartarugas ao falar, feiúra, morte infeliz. Apóscasamento com rei, de quem concebe uma criança, a heroína é raptada pela madrasta esubstituída na cama pela filha. A trama é descoberta e as duas são punidas O trechoconcernente à substituição é descrito em detalhes, de modo inclusive a garantirverossimilhança ao leitor moderno, mais atento à lógica interna do texto:

Em seguida, a filha feia deitou-se na cama, e a velha cobriu-a dos pés à cabeça. Quando o rei voltou equeria falar com sua mulher, gritou a velha: “Silêncio, silêncio! Que agora não pode ser; ela está acamadapois tomou um suadouro. Vossa Excelência precisa deixá-la repousar por hoje."O rei não pensou nada de mal e voltou na manhã seguinte, mas ao falar com sua mulher recebeu comoresposta cágados que saltaram de sua boca a cada palavra pronunciada – embora dela habitualmentejorrassem moedas de ouro.Então ele perguntou o que significava aquilo, mas a velha disse que vinha dos suores e que logo passaria.(Grimm, 1982 : 95) 1

Com efeito, se comparado com o primeiro registro (1812), destacam-se os acréscimosfeitos, inclusive os que apontam para a substituição da noiva, uma vez que lá a únicainformação que se tem a respeito é um lacônico “No dia seguinte, disseram ao rei que arainha morrera durante à noite.”:

Tempos depois a rainha concebeu um príncipe, e quando ela estava só à noite, doente e fraca, então acriatura má, com sua filha, levantou-a da cama e levaram-na para fora até o rio e a jogaram nele. No diaseguinte, disseram ao rei que a rainha morrera durante a noite. (Grimm, 1999 : 88) 2

Poder-sei-a pensar que o trecho relativo à noiva substituta provém da versão francesanarrada, como visto, por Marie Hassenpflug. A hipótese, todavia, não parece provável – aomenos se tomarmos como referência a leitura do “Les Fées” de Perrault 3. Resta ainda apossibilidade de provir da versão de Dorothea Viehmann, mas o território de suposiçõestornar-se-ia demasiadamente arenoso. De certo apenas uma recriação a partir de narrativasque os irmãos anotaram. A versão original, esta, permanece exercendo a atração própria doshorizontes inacessíveis.

3.2 – Brüderchen und Schwesterchen (KHM nº 11)

O segundo conto eleito neste itinerário de leituras é o igualmente já traduzido no Brasilcom os títulos “Os dois irmãozinhos” (Lobato), ou “O irmão e a irmã” (David Jardim Jr.).

Como no relato anterior, o enredo da última versão elaborada pelos irmãos, gira emtorno das aflições de duas crianças, criadas pela madrasta, que decidem abandonar o lar. Orapaz logo será encantado em corço ao tomar água de uma fonte enfeitiçada pela perversamulher e ambos convivem, assim, em choupana na floresta, até serem descobertos por um

1 Trad. nossa da vesão publicada em 1857 (Grimm, 1982 : 95)2 Tradução nossa da versão publicada em 1812 (Grimm, 1999: 88)3 Aqui, afora o fato de as fadas substituírem os homenzinhos da floresta, o primeiro segmento narrativo é praticamenteidêntico. Mas a segunda parte – do casamento ao trecho em que o animal é desencantado - inexiste na versão francesa (cf.Perrault, 1981)

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jovem príncipe que por ali caçava. Após o esperado matrimônio, a princesa concebe umacriança, e, como se leu no conto nº 13, a madrasta mata a heroína substituindo-a por suafilha - a quem lhe falta um olho -, que aparece inesperadamente na narrativa:

Quando tudo terminou, a velha pegou sua filha, colocou-lhe uma touca, e a estendeu sobre o leito nolugar da rainha. Também lhe deu a fisionomia e forma da rainha, mas aquele olho que tinha a menos, esteela não podia lhe dar. Para que o rei, porém, não se desse conta, fez com que se deitasse sobre o lado emque lhe faltava o olho. De noitinha, ao chegar em casa e saber que tinha tido um filho, alegrou-se de todoo coração, e quis se aproximar da cama de sua mulher e ver o que ela fazia. Aí gritou a velha: “De modoalgum! Deixa a cortina fechada porque a rainha não pode ver luz e precisa ter muita tranqüilidade!” ORei voltou e ficou sem saber que em sua cama dormia uma falsa rainha. (Grimm, 1982 : 84) 1

O crime é descoberto e punido.Contudo, o motivo da falsa noiva, ver-se-á, também foi introduzido posteriormente. A

trajetória da sua publicação principia no manuscrito de Öllenberg de Jacob Grimm, mas édois anos depois que se converte em narrativa apta a ser publicada no Kinder-undHausmärchen. Sai portanto a lume logo no 1º volume da 1ª edição (1812), reaparece na 2ª(1819) e ressurge na última (1857).

Segundo os irmãos, o conto resulta da fusão de duas narrativas da região de Main. Defato, o leitor tem a nítida impressão, como aliás também no nº 13, de que ele encerra duasnarrativas agrupadas – especialmente ao se deparar com o novo rumo narrativo logo após ohappy end que paradigmaticamente encerra o conto de fadas:

O rei ajudou a linda jovem a montar em seu cavalo e dirigiu-se com ela para seu palácio, onde a festarealizou-se com grande pompa. Assim ela tornou-se uma rainha e viveram muito tempo felizes (Grimm,1984 : 84) 2

Entretanto, há outro aspecto que não deve passar despercebido. Se aqui, vale dizer naversão de 1857, o rei é um jovem solteiro que galantemente oferece sua mão à futura noiva– “O rei fitou-a com olhos amigáveis, estendeu-lhe a mão e perguntou, ‘Você não quer meacompanhar até meu reino e casar-se comigo?’ ” (1984: 83) – lá, na edição de 1812, o quese lê é:

Na corte do rei todas as honras lhe foram feitas - jovens e bonitas mulheres lhe serviam, mas, entre todas,ela era a mais bela. O pequeno corço, este, ela não perdia de vista e lhe fazia todas as vontades. Logodepois a rainha morreu, e assim a irmãzinha casou-se com o rei e viveram em completa felicidade. (1999:82) 3

Não parece precipitado afirmar que um rei casado que traz para casa uma linda jovemsinaliza um triângulo pouco adequado à leitura nos sólidos lares burgueses... Logo, aalteração nos remete ao afirmado anteriormente – as gradativas adaptações, que visavam onovo receptor, foram de tal ordem que não devem ser menosprezadas. Outrossim, valeressaltar que todo o trecho concernente à caça do animal – do entusiasmo pelo som dostrompetes à sua ferida e conseqüente perseguição, bem como o decorrente encontro com a

1 Trad. nossa da versão de 1857 (Grimm, 1982: 84)2 Versão de 1857. A de 1812 também anuncia um final feliz após o qual a narrativa toma nova direção.3 Trad. nossa da versão de 1812. (Grimm, 1999: 82)

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heroína – inexiste na versão de 1812. Aqui o leitor deve-se contentar com a descriçãosumária do encontro:

Passado um tempo, o rei, caçando, perdeu-se por ali. Foi então que encontrou a jovem com o animalzinhona floresta e surpreendeu-se com sua beleza. Ele a ergueu para que montassem em seu cavalo e a levouconsigo, e o corço foi correndo ao lado, preso pelo cordão. (1999, 82)1

Ademais, observada ainda a brochura publicada em anexo à edição de 1812, contendoanotações dos irmãos (Grimm, 1996), se lêem não apenas correções, mas o processo defusão das versões logo atrás apontadas. Um trecho de 14 linhas narrando a inveja, não darainha, mas de outra personagem, a sogra – “A mãe do rei, porém, sentiu inveja e quisdestruir a menina” -, bem como a condenação à morte da heroína, – aparece com riscosverticais indicando a supressão que, de fato, mais tarde se verificaria na publicação doconto. A versão da madrasta, asfixiando a noiva e substituindo-a pela filha, suplanta asanteriores, pois se mostra mais ajustada ao novo público a que se endereça.

Donde, no que concerne ao motivo estudado, o aparecimento durante o processo deelaboração do conto “Brüderchen und Schwesterchen” de um fragmento inicial no qual nãohá menção ao motivo da falsa noiva. Na edição de 1812, tem-se a complementação danarrativa pela versão contada por Marie de Hassenpflug em 1811 2, na qual aparece a morteda rainha, bem como a menção à substituição da noiva pela filha da madrasta, e,finalmente, na de 1857, ocorre o acréscimo de novos elementos – o rei casado torna-sesolteiro, a jovem heroína esposa legítima.

Observação similar pôde ser feita, como visto, no “Die drei Männlein im Walde”, noqual se constatou a posterior inclusão do trecho referente à substituição da noiva pela filhada madrasta. Logo se constatará, na leitura do Lancelot, que o motivo tem entretanto largatrajetória na história literária do gênero. Por enquanto, cumpre ainda examinar aspecto que,embora menos evidente, não é menos significante, sobretudo porque cinge várias narrativasdedicadas ao motivo, em especial as duas aqui apresentadas

A figura da madrasta, com efeito, chama a atenção, uma vez que cabe à personagem aação estudada (a substituição da noiva). A literatura de cunho psicanalítico já fez muitasincursões neste terreno, mas talvez não seja má idéia tomar outro rumo e averiguar aetimologia da palavra. Diferentemente do português, o termo em alemão deriva daformação do substantivo mutter (mãe) antecedido pelo prefixo stief (stiefmutter) - o mesmoque encontramos para padrasto (stiefvater), enteado(a) (stiefkind), meia-irmã(stiefschwester) ou meio-irmão (stiefbruder). E, como os irmãos celebrizaram-se tambémcomo dedicados gramáticos, além de folcloristas, publicando um volumoso dicionário, é debom alvitre ir a essa fonte. Nela se lê sob o verbete, além do significado esperado parastiefmutter - “maternidade não natural, obtida mediante segundo casamento do pai”(Grimm, 1960 : 2804) –, o esclarecimento de que a “associação da imagem de perversidadee crueldade da madrasta em sua relação com os enteados manifesta-se com significativafreqüência desde tempos antigos.” (2804)

Citam diferentes crônicas, mas lembram também “especialmente os contos de fadas;‘desde que mamãe morreu, não temos uma boa hora sequer. A madrasta nos bate todos osdias, ...e pra comer, só crostas de pão velho.’ ” 3

1 Trad. nossa da versão de 1812 (loc. cit).2 Cf. anotações de próprio punho dos autores no fecho da narrativa, (Grimm, 1996 : 38, l. 24)3 Trata-se, pois, do conto aqui reproduzido na versão de 1812.

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Se a informação dos Grimm atesta a importância do termo na economia dos contos, ela,entretanto, não diz muita coisa no que concerne à etimologia do prefixo. Cumpre pois abriras páginas de um léxico de alemão medieval. No dicionário editado por Köbler (1993)revela-se provir o termo stiefmutter de stiofmuoter, cujo prefixo provavelmente resultariado indo-germânico steupa, mesma origem do que fora o verbo stiufen. Consultado poiseste último verbete, lê-se que ele constitui “verbo regular do alemão medieval”. É traduzidopara o alemão contemporâneo por “verweist werden, berauben” Ora, o verbo verweisen,aponta para dois significados, admoestar, repreender, mas também desterrar. E por fim,berauben, roubar. (Duden, 1989). Não é portanto difícil depreender que a palavra mesmastiefmutter abriga as ações que o leitor/ouvinte espera da personagem. Inclusive aquela pornós estudada. Substituir a noiva legítima por outra implica, em última instância, desterrá-la(em ambas as versões dos dois contos ) e/ou roubar-lhe o lugar no leito nupcial (versão de1857).

3.3 – Die Gänsemagd (KHM nº 89)

O conto, também já traduzido no Brasil 1, veio a público pela primeira vez no II tomo daedição do Kinder- und Hausmärchen, em 1815. (Rölleke, 1980). Diferentemente, do contoanterior, após a primeira publicação ressurge já na 3ª edição (1819), desaparece das quatroedições seguintes para voltar a ser incluído na última, em 1857. No que concerne ainda asua publicação, é curioso notar que também se distingue de muitos do acervo por jáencontrar, desde a primeira vez, sua versão praticamente definitiva. De fato, se feita aleitura da primeira e última, ver-se-á que as poucas alterações restringiram-se a uma ououtra pontuação, de modo, talvez, a conferir maior dinamicidade ao texto, agora escrito.

Sua narração deve-se, todavia, à costureira, amiga da família, Dorothea Viehmann, donade vasto repertório (contribuiu para 37 dos 200 contos compilados). (Rölleke, 1980)

Segundo opinião dos irmãos, o tema central da narrativa seria “a realeza em suasprofundas raízes garantida pelo nascimento e mantida ainda que sob a forma daescravidão.”

De fato, o conto relata a história de uma jovem princesa prometida ao príncipe de umreino distante que leva em seu enxoval preparado pela rainha, além de ricos adornos, umcavalo que fala e um lenço cuja insígnia são três gotas do sangue da mãe:

Ao se aproximar a hora da despedida, a velha mãe dirigiu-se ao seu aposento, pegou uma faquinha e fezcom ela um corte num dedo, que começou a sangrar. Então deixou que três gotas de sangue pingassemsobre um lenço branco e entregou-o à filha, dizendo: “Querida, guarde este lenço pois ele te será degrande valia durante a viagem.” (Grimm, 1999 : 355) 2

A observação dos irmãos legitima-se, com efeito, pela imagem do lenço com o sanguematerno. Para Propp (1997), certos motivos do conto maravilhoso tendem a relatar aaceitação do marido no clã da mulher, refletindo desse modo arcaicas relações matriarcais,mas Rölleke (1982), por sua vez, aponta o parentesco com as narrativas do tipo Aa Th403a, 403b, 450. Donde o motivo da noiva substituta apresentar-se igualmente aqui:

1 V. as seguintes traduções de Lobato, Monteiro. “A pastorinha de gansos” (1960); Jardim Jr., David. “A moça dos gansos”(2000); Maldonado , Zaida. (2002). “A guardadora de gansos”2 Trad. nossa da versão de 1815 (Grimm, 1999: 355)

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Então a criada montou no Falada e a verdadeira noiva no pangaré, e assim cavalgaram adiante, atéfinalmente chegarem ao palácio real, onde houve grande alegria com a chegada delas. O filho do rei foiligeiro em sua direção, ergueu a criada do cavalo, pensando ser ela sua noiva, e subiu com ela as escadasdo palácio, enquanto a princesa teve que ficar lá embaixo sozinha de pé. 1

Todavia, o texto nº 89 do acervo constitui caso excepcional, pois apresenta desde aprimeira publicação sua forma definitiva e, conseqüentemente, encena sem surpresas naprimeira versão o mesmo motivo que aparecerá na última. Desperta ainda a atenção o fatode ser a criada quem substitui a noiva2, e não a filha da madrasta como nos outros dois.Seria, pois, tentador retirar de cena o que dela destoa e em seu lugar propor outra narrativa3,de modo a garantir a uniformidade das asserções. Mas, não raramente, é a diferença quepropicia a compreensão do que dela se aparta. E de fato é neste conto que se encontra demodo mais expressivo o motivo que tem servido de fio condutor ao estudo – o que semanifesta inclusive na linguagem empregada, como se depreende dos trechos, “A criadamontou sobre o Falada e a noiva verdadeira sobre o velho pangaré” (p. 26); “Mas logo emseguida disse a falsa noiva ao jovem rei...” (loc. cit). “O jovem chamava-se Conradinho, e averdadeira noiva tinha que ajudá-lo a pastorear os gansos.”(loc.cit).

Com efeito, como nenhum outro, a narrativa põe frente a frente as noções de falsa e delegítima noiva. É possível supor que o fato derive de o conto encenar, como argutamenteobservaram os irmãos Grimm, a realeza transmitida pelos ancestrais. De fato, noivado econseqüente casamento entre clãs da nobreza encontram, na simbologia do lenço, otestemunho do direito adquirido hereditariamente – e, na contraposição de quem o usurpa,ostenta-se a imobilidade social.

Entre o último conto e os dois primeiros, a frágil distância que separa dois sentimentoscruciais da civilização, a cobiça e a inveja, fundadas na literatura que sobre eles seedificou4. Dela faz parte a próxima narrativa deste percurso.

3.4 – A falsa Genevra

Cumpre agora deter-se sobre o motivo em outra narrativa, cujos traços remontam aoperíodo medieval. Conforme logo se verificará, o episódio de “A Falsa Genevra” apresentatraços em comum com os contos abordados, mas também, ver-se-á, diferenças.

Integra o Lancelot do Lac, embora também esteja presente, com diferenças, na VulgataArturiana, mais especificamente no Livre de Lancelot del Lac (Furtado : 2003) e constituiportanto parte importante da matéria da Bretanha.5

A respeito desta cumpre notar certos aspectos que a distanciam dos contos dos Grimm.A matéria da Bretanha vem emoldurada pela história do roman, o que marca o início de

uma sorte de escrita denunciadora de seu caráter ficcional. Conforme nota Cirlot (1987), o

1 Trad. nossa da versão de 1815 (Grimm, 1999, 356)2 No conhecido conto tradicional brasileiro da "Moura Torta", do tipo Aa 408, a impostora é "uma escrava negra, cega deum olho" (Cascudo : 2002).3 V. por exemplo “Die weisse und die schwarze Braut” (“A noiva branca e a preta”), que apresenta o mesmo tema. A noiva éaqui também substituída pela meia-irmã (v. 1857).4 Emprega-se o termo fundamental em referência às narrativas sobre as quais se erigiu a cultura judaico-cristã5 Como esclarece o tradutor, a Vulgata Arturiana provém de autor anônimo, tendo sido escrita, acredita-se, entre os anosde 1215 – 1235. (Furtado : 2003; Cirlot : 1987)

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próprio deslocamento do uso do termo indica uma significativa mudança na elaboração eprocesso de construção do gênero:

El cámbio semântico del concepto roman es prueba de ello: una primera utilización adverbializada en laexpression mettre em roman (traducir a la lengua românica) fue sustituída por outra sustantivizada,emprendre um roman, manifestándose asi esa transformación segun lo que el roman dejó de sertraducción para convertirse em novela.

Com efeito, observa a Autora, a distância que separa as traduções de Wace para ofrancês da Historia Regum Britanniae de Geoffrey de Monmouth – feita para serapresentada à corte de Leonor de Aquitânia – da obra de Chrétien de Troyes delineia oprogressivo surgimento do ficcional, mesclado às noções de realidade:

En pocos años, el roman que habia nacido a la sombra de la historia, se vio invadido por un plano deconstrucción de la realidad absolutamente novedoso: la ficcionalidad. Casi de modo imperceptible, lafigura del rey Arturo tratada de una perspectiva histórica fue absorvida por el plano de la ficción.

Não é pois fortuito que a figura central de boa parte da matéria da Bretanha, o Rei Artur,situe-se no limiar entre ficção e realidade (Gilberto Mendonça Teles : 2003).

Se tal processo aponta para uma gradual mudança no labor criativo, também atesta umamodificação significativa na atitude do público receptor. Concebidas inicialmente comocrônicas que dão testemunho da genealogia das casas, forjavam um passado gloriosovoltado a notabilizar os feitos de seus senhores. Eram portanto erigidas sobre a égide domecenato (Hauser : 1993) que contratava clérigos ou egressos dos âmbitos eclesiásticospara integrá-los ao círculo laico cortesão. Tal inclusão, associada à difusão da prática de tradução dos clássicos latinos ou daelaboração de crônicas, prepararam o terreno para a transformação do gênero.

E é pois nesse sentido que será examinado o episódio que faz parte do Lancelot do Lac.A história relata as aventuras desencadeadas após a chegada à corte do Rei Artur de

impostora que se intitula a verdadeira Genevra, afirmando haver sido raptada do leito esubstituída por outra dama, aquela que injustamente trazia a coroa.

Percebe-se pois na argúcia da impostora o feito idêntico ao que se leu nas versões de1857 dos contos de Grimm. No entanto, a aparência não deve iludir e logo será objeto deanálise. Por enquanto, o foco incidirá sobre as coincidências.

A narrativa abre sinalizando dois espaços – um público e outro privado. Na corte, o rei,sentado enquanto faz suas refeições, recebe o estranho mensageiro:

Um dia, sentava-se o rei à mesa para o desjejum. Ao final da refeição, entrou uma donzela muitoformosa, acompanhada de um cavaleiro de idade avançada, de aparência envelhecida e cabeça branca.Apresentaram-se ambos diante do rei Artur, e o cavaleiro falou em voz tão alta que o escutaram por todaa sala, dizendo ao rei (...). (p. 111)

Se as refeições servem de moldura ao momento de sociabilidade (Régnier-Bohler1991), a acusação feita reveste a gravidade da denúncia, pois a contamina pelo testemunhocoletivo.

No outro extremo do início da narrativa, o espaço da solidão, por vezes também dosjogos amorosos ou de divertimentos, o lugar que escapa ao olhar de outrem. Embora possaconfigurar-se como sítio seguro e de recolhimento, é anunciada aqui como lugar propício às

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ciladas, o que não difere do que se leu nos contos abordados. Também lá os quartosrevelam sua face sombria, onde as manobras e vilanias se manifestam:

Mas o leito também pode ser um símbolo da culpa: com efeito, pode ser o lugar das sombras, do crime, olugar que marca para sempre a impossibilidade de esclarecer o que realmente se passou ali. (Régnier-Bohler : 1991, 328)

Tampouco a floresta oferece sítio seguro. São inúmeros os contos de Grimm, além dosabordados (Hansel e Gretel, Rotkäpchen são apenas os mais célebres) que fazem das suassombras espaço de perigo e destruição. Em “A falsa Genevra” mostra-se como sítioindicado para o rapto do rei, imprudente mas sensível às atrações da caçada. Da floresta àabadia e dela ao dormitório, a narrativa recupera o papel central dado à esfera privada.“Com isso dissimulou seus pensamentos enquanto surgia o novo dia (p. 117)”, informa onarrador.

Lugar portanto de engenhosidades amorosas, de pensamentos secretos, mas também decalúnias. A sentença destacada, se aponta para esse espaço que serve de elo entre asnarrativas tratadas, pois é nele que ocorre o crime, também começa a revelar o que asaparta. A dissimulação do pensamento de Genevra, a falsa, mas também do Rei – “econtudo voltava a lembrar-se daquela que por longo tempo fora sua companheira” (p. 117)– testemunha o incipiente mas lento surgimento da noção de indivíduo, da qual não temostraço nos contos coletados e retrabalhados pelos Grimm (são personagens planas,configurando tipos desprovidos de nomes, Lüthi, 1992).

Tal processo se dá num cenário situado entre a imobilidade social da estrutura feudal e olento surgimento de uma classe entre a nobreza hereditária e os servos. (Hauser). Anarrativa de “A falsa Genevra” indica justamente os contratos feitos sob o signo do abismo,da cobiça e inveja daí decorrentes, e há deles variados testemunhos:

- E sabei bem, falou Bertelai, que, se consentirdes em agir como aconselho, arranjarei para que tenhais orei sob o vosso domínio. Mas é preciso que antes me jureis, em nome dos santos, que fareis o que eurecomendar e não deixareis que me desmascarem.Ela se disse pronta a jurar:- Sabei ainda, ajuntou ela, que se fordes capaz de fazer com que o rei Artur me queira tomar, farei de vóshomem de alta posição, coberto de honrarias, por todos os dias de vossa vida. (p. 113)

Outrossim, note-se a súbita mudança de conduta dos vinte cavaleiros que se prontificam,não sem a ironia do narrador, a honrar e zelar por sua senhora.

No âmbito dos contos dos Grimm, verificou-se no “Gänsemagd” a marca dos laçossangüíneos e o engenho como forma única de ludibriar o rígido estamento social. Se aqui olenço continha as insígnias da legítima nobreza, na “falsa Genevra” serve de signonotabilizador o anel que seria falsificado.

Contudo, o simulacro de um anel, de um lado, e a imagem forjada de uma noiva real, poroutro, encenam a tênue fronteira que separa as narrativas dos Grimm do episódio doLancelot estudado.

A respeito da obra de Chrétien, notou com perspicácia Cirlot (1987) que esta revela apreparação de terreno fértil sobre o qual germinaria a ficção moderna 1 e o mesmo pode-se

1 Cf. especialmente capítulo Difusión y persistência de la matéria artúrica. A Autora embora se refira especialmente à obrado escritor que trabalhara para a corte de Marie de Champagne, bem como ao ciclo de Lancelot em prosa da Vulgata,demonstra as possibilidades abertas pelo gênero ficcional. Bahktin (1990), por sua vez, examina a originalidade do

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depreender do episódio de “A falsa Genevra”. São vários os sinais desse processo mas aquiserá ressaltada a emblemática substituição da noiva e o que abriga de testemunho do jogoficcional.

Viu-se, nas edições enxertadas pelos Grimm, a usurpação do posto de rainha encetadapelas madrastas e suas filhas. Note-se, ademais, que as recorrentes substituições sãofreqüentemente maquinadas por personagem mais idosa – conquanto não seja esta a regra,v. “Gänsemagd” – que conduz e inicia o jovem nas armadilhas do poder. 1 Não é diferente asituação encenada na narrativa que faz parte do Lancelot do Lac, uma vez que couberam aovelho Bertelai as diferentes etapas do plano traçado – da descoberta da linda donzela depassado desconhecido, da mensagem e fabricação do falso anel, à poção empregada paraque o rei se encantasse pela donzela. E como bem nota seu tradutor (Furtado : 2003), seesta versão difere da encontrada na Vulgata , na qual a premência pelas leis daverossimilhança obrigam ao narrador reportar-se à imagem das meias-irmãs para justificaro engodo, nesta última serve e mostra-se como lógica a maravilha da poção. No queconcerne ainda ao diálogo entre as narrativas dos Grimm e a “Falsa Genevra”, é importanterecordar que foi apenas na edição de 57 que se deu a adaptação da substituição da noiva porversão mais verossímel ao leitor moderno. Infere-se daí que o episódio tratado reveste-se deuma proposição na qual as noções de verdade e mentira deslizam de seus campossemânticos. O que aqui se afirma é corroborado também pela complicação da trama, que,nesse sentido, difere em larga medida dos contos dos Grimm:

E então aquela – disse ele, apontando a rainha – que se faz chamar de Genevra, foi trazida e os quehaviam confabulado a cilada a deitaram no lugar de minha dama. Voltando-se contra Genevra, levaram-na para fora da terra e a aprisionaram em uma abadia (...). Mas, graças a Deus, agora está livre e vos fazsaber que essa Genevra que ali está não tem direito a portar coroa, antes merece morrervergonhosamente.

Ao simular a impostura, o trecho aponta para duas direções: de um lado para asexpectativas do seu público, edificada sobre os códigos de punição – merece morrervergonhosamente – mas simultaneamente para um corpo de narrativa, a exemplo dosestudados, edificado sobre a exemplaridade das punições. 2 Mais especificadamente,significa isso afirmar que, se o enunciado encerra aspectos extratextuais capitais para seusdestinatários, pois funda seu horizonte de expectativas em relação aos acontecimentosvindouros na narrativa, também volta-se sobre um conjunto de textos nos quais adescoberta da falsa noiva e a decorrente punição são emblemáticas.

Percebe-se aí o início da dobra. E ela encarna-se na figura da “Falsa Genevra”,simulacro que se corporifica como tal pela conversão da imagem real, a legítima esposa, emsimulacro de si mesma. Ao invés da eliminação, como nos contos de Grimm, asuperposição de imagens. A fórmula é tão mais genial na medida que não apenas superpõe,mas antepõe uma face à outra, inserindo uma dúvida fundamental: afinal qual é imagemverdadeira - o que implica também indagar, afinal o que é verdadeiro, a ficção ou o real? Aadvertência de um como se que a peculiariza aponta desde o início da narrativa para os

cronotopo dos romances de cavalaria, as deformações fabulosas do tempo e do espaço, e o comércio que estabelece coma história ulterior do romance, a exemplo dos românticos, simbolistas, surrealistas e expressionistas.1 No caso dos Grimm, notou-se ademais a particularidade do substantivo stiefmutter, cujo campo semântico abriga eenuncia a ação a ser perpetrada.2 A respeito das condenações e suplícios praticados e o processo de transformação até seu extermínio nos quadros daEuropa moderna, cf. Vigiar e Punir (Foucault : 1991)

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sinais de um jogo especular – converter em imagem outra o que aparenta ser real – própriodo ficcional. (v. Iser : 1996).

Conquanto a matéria histórica não tenha sido suprimida -, e sua importância, já seafirmou, reside inclusive na conformação dos horizontes de expectativas – a própriaorganização do tempo, possível sobretudo a partir da obra de Chrétien (Cirlot : 1987;Bakhtin : 1990), permite perceber a abertura para um corte radical com o tempo histórico.Assim, o princípio do episódio abordado – um dia sentava-se o rei à mesa ...- mais do queoutorgar o factual, desliza para um valor de origem, isto é, não desencadeador do relatohistórico, mas do ficcional. Isso torna-se mais cabal na construção do duplo plano de ação,introduzido pela estratégia do enquanto isso e/ou conjunções adversativas associadas aoescalonamento de tempos verbais indicadoras da simultaneidade temporal – enquanto issodiscutiam o incidente.... (p. 113); mas a rainha, que ele deixara na Bretanha, nenhumadisposição tinha (....) (p. 119).

Verifica-se assim que o episódio da “Falsa Genevra” recobre-se de um sentidoimpensável na economia dos contos maravilhosos estudados. Se o motivo da falsa noivanestes são símbolos que plasmam o pecado movido pela inveja, lá ultrapassa a dimensãoexemplar e utilitária para instaurar o lugar da ficção.

O verbo empregado – ultrapassar – quer, todavia, indicar que, se há um processo deinovação, ele radica a partir do que excede, mas não o elimina do campo de visão de seusleitores. O motivo da falsa noiva, portanto, permanece, bem como o tema sobre o qual seerige.

4 – Conclusão: o motivo da falsa noiva e o tema da inveja

O percurso traçado até agora deteve o olhar sobre as narrativas em busca de traços comunse distintivos: algo que permitisse enlaçá-las, mas simultaneamente percebê-las em suassingularidades. A eleição de um dado motivo permitiu que saltasse à vista um aspecto quecumpre, pois, de agora em diante perseguir.

Verificou-se que, embora o tema da falsa noiva estivesse efetivamente presente nas duasedições do Gänsemagd, uma vez que não houve alterações significativas entre uma e outra,não se pôde afirmar o mesmo em relação ao “Die drei Männlein im Walde”, e menos aindaao “Brüderchen und Schwesterchen”. Contudo, se pôde ler seu aparecimento nas versões de1857 e, de maneira especial, no “A falsa Genevra”. Todavia, há outro tema de largatrajetória na literatura que enlaça as narrativas em ambas versões, bem como o episódio doLancelot. De fato, se lê logo no primeiro parágrafo de “Die drei Männlein im Walde¨”(1812) que a madrasta “ao ver que sua enteada era linda e que dela todos gostavam, masque sua filha era feia, sentiu então inveja, passando a desprezá-la, e a pensar nos meiospara maltratá-la.” (Grimm, 1999 : 87)

Eleita como pecado destruidor (Hortal, 2001 : 68), a inveja faz parte da lista dos pecadoscapitais, uma vez que sua maior vileza reside não no desejo de obter o que não lhe pertence,mas na profunda tristeza gerada pela alegria do outro (Mendonça, 2001). Não é poisfortuito que o texto de “Brüderchen und Schwesterchen” descreva esta amargura provocadapela felicidade alheia .

A madrasta, porém, soube da ventura da irmãzinha. Acreditava que a menina há muitofora devorada pelas feras da floresta e ei-la agora coroada rainha do Reino. A bruxazangou-se tanto que só podia pensar nos meios de arruinar sua alegria. (Grimm, 1999 : 82).

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Cumpre, pois, examinar mais de perto a elaboração desse sentimento nas narrativasestudadas e para tanto serão úteis as reflexões do psicanalista Renato Mezan. Deve-se, noentanto, salientar que não se trata de servir-se das narrativas visando explicaçõespsicanalíticas – pelas mesmas razões apontadas inicialmente, afora ser este estudo de índolediversa –, mas de recorrer aos instrumentos mais adequados para entender a complexaorganização desse sentimento e facilitar a compreensão de sua configuração nos textosliterários. Estes, portanto, deverão permanecer – espera-se – como ponto de partida e dechegada deste trabalho.

E para tanto é de bom alvitre principiar pelo texto já citado por Mezan, e com o qual oAutor desenvolve com argúcia sua tese, mas ao qual daremos rumo um pouco diverso. 1

Trata-se de fragmento do Metamorfoses que aqui será citado na tradução de Bocage(Ovídio, 2000 : 65):

A gruta da Inveja

É a estância da Inveja em gruta enorme,Lá nuns profundos vales escondida,Aonde o Sol não vai, nem vai Favônio.Reinam ali rigoroso, eterno frio,De úmidas, grossas névoas sempre abunda.O monstro vive de vipéreas carnes,Dos seus tartáreos vícios alimento.Da morte a palidez lhe está no aspecto,Magreza, e corrupção nos membros todos;Olha sempre ao revés; ferrugem torpeNos asquerosos dentes lhe negreja;Vê-se o fel verdejar no peito imundo,Espumoso veneno a língua verte:Longa o riso lhe jaz dos negros lábios,Só se nos mais há pranto há nela riso,Em não vendo chorar lhe acode o choro:Não goza de repouso um só momento,Os cuidados que a roem não sofrem sono:Mirra-se de pesar, ao ver nos homensQualquer bem; rala, e rala-se a maligna,É verdugo de si, ódio de todos.

Logo nos primeiros versos se lê o desterro da inveja em sítio apartado dos homens e dosdeuses, bem como o veneno que a alimenta. Com efeito, a literatura é pródiga notestemunho de sua ação destruidora. Pela inveja, germinada na rivalidade entre irmãos,Caim matou Abel (Gn 4), Jacó roubou do irmão Esaú a primogenitura (Gn 27), José foitraído e vendido pelos irmãos (Gn 37,11). Os exemplos do Gênesis testemunham, porém,que muito próxima à inveja está a cobiça, e fartos são os exemplos que oferecem a falsaGenevra e o engenhoso Bertelai:

1 Não nos cabe investigar hipótese do Autor, para quem há na inveja uma faceta que serve de mecanismo de proteçãocontra impulsos narcísicos do Ego Ideal em retornar ao ventre materno.

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Já a donzela que levava o rei não estava nem um pouco contrariada, antes alegre, acima de todas as quejamais provaram a felicidade, porque contava ter agora como arranjar para tornar-se a rainha coroada daBretanha, de vez que tinha o rei em seu poder. (p. 116) 1

O frágil liame que a separa da cobiça é explicado por Hortal (p. 76):

A cobiça tem uma potência, é produtiva, comporta um desejo e pode até mesmo comportar uma dose desaúde, se o preço da conquista não implicar no apagamento de princípios éticos fundamentais.(Mendonça, 2001 : 76)

De fato, o que se lê na “Falsa Genevra”, para além da cobiça que mobiliza o desejo paraobter algo análogo, é a força destruidora voltada a eliminar o possuidor do alvo de desejo.Em outros termos, o que se lê é a inveja em sua ação de eliminar a alteridade, a imagemoutra consubstanciada na legítima noiva de Artur.

Contudo, alerta ainda o poema, a inveja é sinuosa, espia pelas frestas, “olha sempre aorevés.” Vem associada à visão, como se depreende, observa Mezan, da etimologia dapalavra resultante do latim invidia cujo radical vedere (ved-) é o mesmo presente emvedere.

O desejo que move um tal olhar secreto e certeiro assemelha-se ao da rapina – apoderar-se e simultaneamente furtar, isto é, privar do outro a ventura imaginariamente abrigada noobjeto. Implica isso dizer que aquilo que atrai o olhar do invejoso comporta certos traçosque o tornam únicos. De fato, como alerta Mezan (1987), o objeto anelado contém algo deindefinido que extrapola seu próprio âmbito. Serve tão-somente de veículo em que sedeposita o anseio.

A meu ver, convém distinguir o que chamei de suporte da inveja do que proponhodenominar objeto da inveja. O objeto da inveja é um objeto imaginário ou fantasmático,algo que se supõe assegurar ao seu detentor um estado de felicidade e que, se estivesse emmãos do invejoso, asseguraria a este último uma felicidade igual. O suporte da inveja é umacoisa empírica que encarna esse objeto imaginário (...)”(123)

Afora as implicações clínicas que a diferenciação entre suporte e objeto possa ter,interessa aqui marcar o caráter idealizado, para além de sua realidade material, no qual seaninha a idéia de completude.2

O objeto invejado encarna assim a idéia de que a carência será doravante impossível.Mais além do cavalo que fala, do lenço com o sangue materno (“Gänsemagd”), das moedasde ouro jorrando da boca (“Drei Männlein im Walde”), da condição de rainha (“Brüderchenund Schwesterchen”; “A falsa Genevra”), as narrativas testemunham um desejo deinesgotável felicidade – o happy end consagrado nos contos de fadas.

Conquanto circunde o objeto da inveja uma áurea fantasmagórica e imaginária,testemunhada em todas as narrativas investigadas, há também nesse aspecto algo que marcaa fronteira entre os contos de Grimm e as aventuras do Lancelot do Lac. O relato de “AFalsa Genevra” sugere a indelével marca deixada pela tristeza da inveja, cujos traços nemas cinzas da fogueira eliminam.

Se a narrativa dos Grimm sinaliza, como no “Brüderchen und Schwesterchen”, afelicidade eterna – “A perversa madrasta foi queimada viva, e quando o fogo a consumiu, o

1 Cf. também na pág. 113 e passim. “E sabei bem, falou Bertelai, que, se consentirdes em agir como aconselho, arranjareipara que tenhais o rei sob o vosso domínio".2 Mezan, a partir de estudo de Melanie Klein, associa a idéia de tal estado à imagem guardada do seio materno.

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corço transformou-se, e Irmãozinho e Irmãzinha ficaram reunidos e viveram juntos e felizestoda a vida (Grimm, 1999) - , a do Lancelot atesta os sinais do que não se pode exterminar:

E houve muitos deles que partiram do local antes que o fogo fosse aceso, pois não encontraram coragempara vê-la morrer. Muito foi a donzela chorada e lamentada.

O feito depois de concretizado não pode mais ser anulado, os traços não se apagam.Permanece no episódio um lastro de tristeza que faz da heroína entidade mais complexa queas personagens dos Grimm. Próxima a seus leitores, torna legível um fado que bem poderiacomungar com seu público.

Outrossim, o episódio encena de modo contundente o que há de virulento na inveja. Ofinal feliz, abrandado como se vê hoje em muitas adaptações dos contos, é impossível nalógica desse sentimento corrosivo, pois a amargura que lhe é peculiar tem doisdestinatários. Algoz de si e de quem inveja, “não goza de repouso um só momento,/oscuidados que roem não sofrem sono.”

Também aqui souberam os irmãos examinar a sinuosidade do sentimento, encenandonas páginas da última versão do conto ”Die drei Männlein im Walde” o destino sombrio dainveja:

E quando chegou o batizado, indagou à velha presente: “qual castigo deve ser aplicado a aqueles quearrancam alguém da cama para arremessá-lo na água?” “Nada melhor”, respondeu a velha, “do quecolocar o malfeitor num barril atravessado por pregos e deixá-lo rolar montanha abaixo até a água.”Disse, pois, o rei: “Acabaste de proferir tua própria sentença” - e ordenou que trouxessem um barrildaquele modo e que lá metessem a velha com sua filha. Então martelaram a tampa, fechando-a bem, ejogaram o barril morro abaixo, que foi rolando pelo barranco até o rio.

O seu suplício tem formato similar à serpente que morde a própria cauda, consumindo asi própria em seu veneno. A fórmula "o feitiço volta-se contra o feiticeiro", encontrada,aliás, em outras narrativas que encenam o mesmo tema e motivo, mais do que admoestar,explicita o martírio da inveja, pois “é verdugo de si, ódio de todos.”:

E os barões declararam que, portanto, a farão matar segundo o mesmo julgamento que fora imposto àrainha, pois eram de opinião que ela deveria perecer de igual morte, tendo sido provada culpada dessemesmo crime, assim como Bertelai e ela haviam reconhecido por suas próprias bocas. Declarou o rei queisso lhe parecia justo e razoável. (p. 129)

Se algoz de si própria, explica-se que seu veredicto tenha como destinatário quem opronuncia. A recorrente imagem, nos contos, bem como em “A falsa Genevra”, de oinvejoso pronunciar sua própria sentença de morte serve como metáfora desta sorte de auto-corrosão.

Cumpre agora retornar ao princípio, reler o trajeto traçado, para finalmente concluí-lo.Partiu-se do exame do motivo da falsa noiva em três contos dos Irmãos Grimm e no

episódio intitulado “A falsa Genevra”, para esquadrinhar sua encenação na primeira eúltima edições dos Grimm, e compará-lo com o relato do Lancelot do Lac. Acompanhou opercurso a compreensão da noção de alteridade como centro gerador do texto literário que,verificada nas narrativas abordadas, permite inseri-las neste vasto domínio. Por outro lado,o procedimento possibilitou enxergar a imbricação entre inveja e a usurpação do lugar danoiva, constituindo a primeira tema gerador do segundo. Com base ainda nas reflexões de

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Mezan, calcadas em textos sobre os quais erigiu-se a cultura ocidental, enfocou-se odestacado lugar ocupado pela inveja como tema central da civilização judaico-cristã,estabelecendo-se, assim, possível elo que explique a permanência das narrativas dosGrimm, bem como o relato retirado da matéria da Bretanha. Mas isso, é claro, não passa de uma versão, pois como lembra sabiamente D. Benta:

“Os escritores o que fazem é fixar as suas versões, isto é, o modo como eles entendem que as históriasdevem ser contadas.”

Certamente há outras maneiras de contar este mesmo enredo. Esta foi uma delas.

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O Eterno Retorno do Cavaleiro ao Reino do Caos:Apontamentos quanto à leitura das intertextualidades

nas ficções arturianas

Alex Jesus de Souza

Enunciando a tese

Enfeitiçado pelo tempo, o agente do FBI Fox Mulder despertara no mesmo dia da semana.Ininterruptamente. Às 8h30m o relógio disparara o alarme e Mulder ingressara em mais uma segunda-feira. Os cenários, as circunstâncias, os diálogos reprisaram-se com pequenas variações, enfim ocotidiano fora revisitado obsessivamente. À revelia do protagonista.

Recorro a "Monday", título de um capítulo do seriado norte-americano de televisão ArquivoX, descrito acima, para operar como esteio deste ensaio, a ser desenvolvido em seguida.

Numa segunda-feira do ano 2543, relatam-se aventuras intergaláticas movidas a capa eespada. E temperadas com generosas doses de amor cortês. Aprisionada por arquétipossedimentados, a produção ficcional contemporânea experimenta novas roupagens estéticas.Contudo, as texturas elementares permanecem intactas, depositadas no inconscientecoletivo da Humanidade.

O caso é que os romances de cavalaria integram o extrato literário permanentementerevisitado pelos ficcionistas da atualidade. À revelia deles ou não.

Diante desse painel difuso, no qual camadas literárias se intercambiam e se nutremindiscriminadamente, os desafios propostos pelas leituras intertextuais potencializam-se.Com efeito, emprego para apoiar esta tese, ao abordar o tema da intertextualidadeespecificamente na literatura arturiana, o mito do Eterno Retorno e a Teoria do Caos, a fimde articular as ficções arturianas aos arquétipos narrativos reeditados ad eternum nashistórias contemporâneas. Modelos estes que emulam novas estéticas – no caso, obras deficção científica – e orientam a apropriação e transgressão das narrativas, atitudespraticadas por autores filiados ao pós-modernismo.

Recordo-me de que o professor Antonio Furtado, à ocasião da primeira aula dadisciplina Formação e Transformação da Narrativa, encaminhou aos alunos duasquestões temáticas do curso, a serem respondidas nos nossos últimos encontros. Num dostópicos, pedia-se assinalar os aspectos das lendas arturianas passíveis ou não deincorporação às narrativas contemporâneas.

Creio que este trabalho abrange a pergunta formulada pelo professor, pois a absorção e acomunicação de textos literários integram o núcleo dos estudos de leituras intertextuais.

Talvez o termo “incorporar” suponha uma relação hierárquica entre as narrativas, umjogo de forças no qual quem sofre a ação encontra-se subordinado ao sujeito. Em virtude dahorizontalidade das camadas literárias – no caso, as histórias medievais e as ficçõescontemporâneas –, sugiro uma comunicação amistosa e nutritiva entre esses universos, coma prevalência do verbo “dialogar”.

Um diálogo travado numa eterna segunda-feira.

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Anaxágoras, autor da Teoria do Big Bang

El universo (que otros llaman la Biblioteca) se compone de um número indefinido, y talvez infinito, degalerias hexagonales, com vastos pozos de ventilación em el medio, cercados por barandas bajísimas.Desde cualquier hexágono, se ven los pisos inferiores y superiores: interminablemente. /.../ También sabemos de otra superstición de aquel tiempo: la del Hombre del Libro. En algún anaquel delalgún hexágono (razonaram los hombres) debe existir un libro que sea la cifra y el compendio perfecto detodos los demás: algún bibliotecario lo há recorrido y és análogo a un dios.

Jorge Luis Borges

Era uma vez um reino muito, muito distante – em cifras cronológicas, cerca de 12 a 15bilhões de anos atrás –, um ponto no qual estava concentrada toda a matéria existente, e,por isso mesmo, apresentava uma densidade altíssima. Em um momento qualquer houveuma explosão, e a matéria concentrada nesse ponto se expandiu e se misturou.

Assim formaram-se todas as coisas, conforme crêem os cientistas partidários do BigBang, a teoria mais aceita até agora para descrever a origem e evolução do Universo. E, porextensão, vítima de refutações e açoites provenientes das chibatas religiosas, filosóficas e,sobretudo, da autoflagelação do campo científico.

Revisito a notória e polêmica explicação acerca da origem de todas as coisas parailustrar as reflexões do fenômeno da intertextualidade nas narrativas medievais. Pois, comodiscorre Michel Schneider no ensaio Ladrões de Palavras:

“O texto literário é um palimpsesto. O autor antigo escreveu uma ‘primeira’ vez, depois sua escritura foiapagada por algum copista que recobriu a página com um novo texto, e assim por diante. Textosprimeiros inexistem tanto quanto as puras cópias; o apagar não é nunca tão acabado que não deixevestígios, a invenção nunca tão nova que não se apoie sobre o já-escrito.”

Descrito o conceito de Schneider, a teoria do Big Bang se aprisionaria às redes deconexões textuais, pois o ineditismo da idéia seria demolido pela Filosofia, que vislumbranuma passagem do pensador pré-socrático Anaxágoras a descrição da origem de todas ascoisas:

"Todas as coisas estavam juntas, ilimitadas em número e pequenez; pois o pequeno era ilimitado. Eenquanto todas elas estavam juntas, nenhuma delas podia ser reconhecida devido sua pequenez. Pois o are o éter prevaleciam sobre todas as coisas, ambos ilimitados. Pois no conjunto de todas as coisas, estassão as maiores, tanto em quantidade como em grandeza."

Avancemos na linha temporal do instante da Criação à Idade Média, mais precisamentena Bretanha Insular – a Grã-Bretanha ou Inglaterra da atualidade –, sucessivamenteocupada por bretões, saxões e normandos. Segundo observa Furtado em Aventuras daTávola Redonda,

“... no século XI os bretões ainda dominavam a ilha, mas resistiam com dificuldade cada vez maior aosataques dos saxões. Um dos líderes dos bretões teria sido Artur, rei segundo alguns, chefe militar ou‘senhor da guerra’ segundo outros. Ou talvez pura ficção, na opinião de muitos. Seja como for, depois daépoca em que ele teria vivido, os saxões (junto com outros povos de origem germânica, tais como osanglos e os jutos) acabaram prevalecendo.”

E, mais adiante:

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“... no século XII, quando os normandos já haviam por sua vez subjugado os saxões, o bretão Geoffrey ofMonmouth propôs em sua História dos Reis da Bretanha a primeira biografia detalhada de Artur, rei semdúvida alguma sendo ele. Escrito por Geoffrey em latim (Historia Regum Britanniae), o livro foi logotraduzido em diversas línguas, destacando-se a tradução francesa em versos de Wace, concluída em 1155,intitulada Roman de Brut. E outros autores vieram acrescentar novas narrativas sobre o já famoso rei eseus bravos homens, inaugurando-se assim uma rica tradição literária conhecida como Matéria daBretanha.”

A fim de traçar as coordenadas do fenômeno da intertextualidade nas narrativasarturianas, empreguei a Teoria do Big Bang para investigar o fio que tece o emaranhado deconexões entre os textos literários, pois creio que, assim como todas as coisas, a expressãoliterária principiou num núcleo extremamente denso, atomizado a partir da GrandeExplosão Cósmica.

Cabe a nós identificar esses fragmentos, na esperança de reconstituir a Biblioteca deBabel imaginada por Borges. Por isso, retrocedi até o instante inicial da formação eevolução do Universo no presente ensaio para avançar no território da intertextualidade.

O eterno retorno opera.

E o passado visita o futuro

A linguagem poética surge como um diálogo de textos: toda a seqüência se constrói em relação a umaoutra, provinda de um outro corpus, /.../ O livro remete a outros livros e pelo modo de intimar (aplicaçãoem termos matemáticos), confere a esses livros um novo modo de ser, elaborando assim sua própriasignificação.

Julia Kristeva

Visto o extenso corpus das romances de cavalaria, recortemos exemplos de analogiasliterárias nas quais contemplamos conexões entre textos arturianos e histórias de As Mil eUma Noites de Sherazade:

a) cotejo do episódio de Galvão em Escavalon (Perceval de Chrétien de Troyes) eo Cavaleiro da Espada (anônimo) com um episódio do Tale Of King Omar BinAl-Nu'uman And His Sons Sharrkan And Zau Al-Makan.

b) similitudes do episódio do Leito da Maravilha (Perceval de Chrétien de Troyes)e a Mula sem Freio (anônimo) com Judar And His Brethren;

c) comparação entre a Mula sem Freio (anônimo) e Julnar The Sea-Born And HerSon King Badr Basim Of Persia.

Consideremos em mais detalhe o estudo das semelhanças entre trechos do Perceval deChrétien de Troyes e da narrativa The Fisherman and the Jini, de As Mil e Uma Noites (emThe Arabian Nights: Yet another source of the Grail stories?):

“Most critics have attempted to understand Chrétien by looking at other works within the limits of theCeltic and French literature of this period. I did the same but could find no convincing answer to thequestions above (Why is the Mained King also called the Rich Fisher King? What is the relationship ofthe many secondary ‘adventures’ to the main Grail theme?). So let us drop such limits, basing ourselveson the recognized existence of recurring themes in the folk literature of different countries. If we find a

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similar pattern, its study may help us understand the topic at hand. Is there in some folk literature anexample of a rich fisherman?”

Mais adiante, o artigo citado tenta identificar a disposição da mesma estrutura narrativaem fragmentos das duas histórias:

1. A Voyager starts a trip across the desert.2. In a a montainous region, he finds a course of water.3. A Fisherman is there, somehow serving as a guide.4. Continuing the trip, the Voyager sees a castle built of dark stone.5. He enters and stays for some time in a vestibule.6. Next, he is attracted to a room where he finds his Host sitting on a couch.7. The Host is wearing rich clothes and his head is covered.8. The Host apologizes to the Voyager for not being able to get up to salute him.9. They seem uncertain about the distance covered by the Voyager to reach the castle.10. The Voyager draws a sword.11. A Princess passes by bearing a cup; another object is also brought.12. The Princess goes into a secluded room.13. The Fisherman is said to be very rich.14. Its revealed that in the secluded room is hidden a Semidead man, who cannot leave the room and

lives on whatever is brought to him in the cup.

Calca-se o cotejo da espinha dorsal das duas histórias na metodologia desenvolvida porVladimir Propp em Morfologia do conto maravilhoso, pedra angular das pesquisashistórico-genéticas do folclore.

As análises empreendidas por Propp nos fornecem a dimensão da complexidade dosestudos do folclore:

“No Ocidente predomina até hoje o princípio do simples estudo cronológico, e não do estadial. Ummaterial da Antigüidade clássica será considerado ali mais antigo do que o material anotado em nossosdias. No entanto, do ponto de vista estadial, um material da Antigüidade clássica pode refletir um estágiorelativamente tardio do Estado agrícola e, um texto contemporâneo, relações totêmicas muito maisprimevas.”

E prossegue:

“/.../ o caso está em que o folclore, tal como outras manifestações da cultura espiritual, não registra deimediato e conserva por muito tempo, nas novas condições, as velhas formas. Visto que todo povosempre passa por alguns estágios de seu desenvolvimento, e todos eles encontram reflexo no folclore,depositam-se nele, o folclore de todo povo é sempre poliestadial, e isto constitui uma de suascaracterísticas.O problema da ciência consiste em decompor as camadas deste conglomerado complexo, e deste modoconhecê-lo e explicá-lo.”

As camadas narrativas contaminaram-se nos sedimentos da memória da Humanidade. Opassado se transmuda na pré-configuração do futuro. Nenhum acontecimento é irreversívele nenhuma transformação é definitiva. Em certo sentido, pode-se dizer que nada novo seproduz no mundo, pois tudo não é mais que a repetição dos mesmos arquétipos primordiais.No caso deste estudo, nos restringiremos aos arquétipos fincados nos romances decavalaria, os quais emulam novas produções estéticas na cinematografia e nas letras.

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Os modelos cimentados nas narrativas medievais nos obrigam a palmilhar trilhas pormeio de diferentes concepções temporais. Visitemos, então, O Mito do Eterno Retorno,conforme Mircea Eliade:

“Así como los griegos, en el mito del eterno retorno, buscaban satisfacer su sed metafísica de lo ‘óntico’y lo estático (pues, desde el punto de vista de lo infinito, el devenir de las cosas que vuelven sin cesar enel mismo estado es por consiguiente implícitamente anulado y hasta puede afirmarse que ‘el mundoqueda en su lugar’), del mismo modo el ‘primitivo’, al conferir al tiempo una dirección cíclica, anula suirreversibilidad.”

O filósofo alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel afirmava que a natureza das coisas serepete ao infinito e que “não havia nada de novo sob o sol”. Todavia, a repetição conservaum sentido: conferir uma “realidade” aos acontecimentos, que se reeditam por imitarem umAcontecimento Exemplar.

O efeito-borboleta

Os Acontecimentos Exemplares – amor cortês, lealdade, generosidade... – mencionados nociclo arturiano se estendem à estética da modernidade, fato que ressoa no labirinto propostopela ficção de Borges, na qual textos literários se refletem e se intercambiam num jogo deespelhos infinito. A atmosfera exala um odor de desorganização, desestabilidade. Eis quesurge para nos auxiliar a idéia de caos.

Desde que surgiu como uma estrutura de idéias articuladas, na década de 60, a teoria doCaos tem suscitado novos, amplos e formidáveis debates sobre as relações de causa e efeitoque regem o Universo. Durante séculos, os cientistas analisaram os fenômenosexclusivamente à luz da leis da física clássica.

Nas últimas décadas, no entanto, novas experiências indicaram que pequenos desviosnas condições iniciais de um processo são capazes de alterá-lo radicalmente com o decorrerdo tempo. Trata-se do já famoso “efeito-borboleta”.

De acordo com essa fórmula-provérbio, o bater de asas do inseto, na Ásia, podedeterminar ou impedir a ocorrência de uma terrível tempestade nos Estados Unidos. Combase em novos estudos, percebe-se que uma sutil ordem microscópica de relações estápresente onde antes presumia-se que houvesse apenas o caos.

Os eventos atinentes ao universo literário, segundo os conceitos da teoria descrita acima,também obedecem a esse fantástico sistema anônimo de organização. Especialistasvinculados às ciências humanas identificam a ação do Caos em revoluções políticas, emtransformações econômicas e na modificação de costumes e regras morais.

Portanto, com o advento da Teoria do Caos, as leituras intertextuais se nutrem de umaporte científico. Potencializam-se. Os labirintos borgianos se bifurcam em infindáveisramos. Sem começo, sem fim.

Os romances de cavalaria, assim, se espraiam na modernidade. Diluem-se nas batalhasintergaláticas, esgueiram-se nas obras de ficção científica.A palavra “incorporação”, nesse sentido, é pontuada por novos extratos semânticos. Todosos textos dispõem-se numa mesma camada literária, híbridos estão, a pureza é demolida. Oque existe são cópias, simulacros, simulações, em eterno diálogo.

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O futuro, esse eterno passado

Os autores brasileiros, por ocasião da eclosão do movimento modernista, rejeitavam osmodelos tradicionais de narrativas. Mário de Andrade qualificou Macunaíma de rapsódia,ao passo que Clarice Lispector nomeava a própria criação literária de pulsação.

Numa posição clara de vanguarda artística, a recusa aos formatos tradicionais denarração pelos escritores modernistas representava uma tentativa de instalar o novo, aoabolir os modelos literários calcificados.

Transpostos mais de 80 anos da efervescência modernista, e com a crise pela qualpassam os conceitos da modernidade, os autores contemporâneos resgatam os modelosclássicos e estabelecem diálogos férteis com estes, como nos casos de Borges, Ítalo Calvinoe Ricardo Piglia.

No panorama cinematográfico atual, estúdios empenham milhões de dólares emproduções épicas preenchidas por magia, ideais românticos, amores corteses – O Senhordos Anéis e Harry Potter. E cineastas permanecem a vislumbrar o futuro impulsionado aembates de capa e espada – a saga de Guerra nas Estrelas configura-se no exemplo maisemblemático do redimensionamento das aventuras medievias.

E não menos emblemática é a constatação do diretor George Lucas, que certa vez numaentrevista afirmou existirem apenas dez tipos de histórias a serem narradas. Cabe a nósreinventarmos a forma de contá-las.

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Caradoc do Braço Inchadoe o Desafio do Auto-conhecimento

Terezinha de Fátima Sanches Bussad

Introdução

Esta pesquisa versará sobre a luta do herói Caradoc pela liberdade e auto-conhecimento,envolvendo a questão arquetípica da anima, refletida nos conflitos familiares e afetivos, emanifestada pela linguagem simbólica.

Com o propósito de situar o Feminino na narrativa, será apresentada a mulher nocontexto da Idade Média e o sistema medieval de valores, onde a misoginia não apaga opapel fundamental que ocupava, de fato, numa sociedade masculina e militar.

No caminho para essa leitura, a seção Um parêntese para a História procura situar oprocesso de iniciação de um cavaleiro e a participação efetiva da mulher na sociedademedieval. O poder transformador da paixão trata do motivo que desencadeou a trama: apaixão proibida. Os papéis femininos na narrativa apresenta a mulher protagonista e suasfunções. Está explícito na Criação do herói quem foi Caradoc, sua valentia, força ecoragem. Em O trágico destino de Caradoc tem-se a abordagem da vingança dos pais e osofrimento, que levam ao Processo de individuação e à busca do auto-conhecimento,analisando a trajetória do herói para libertar-se e enfrentar uma nova vida, já senhor de si.

Um parêntese para a História

A título de fundamentar as considerações teóricas desta pesquisa, relata-se, a seguir,informações históricas sobre a iniciação de um cavaleiro e sobre o decisivo papel damulher no plano afetivo, familiar, político, social e cultural no sistema medieval de valores.

A sociedade na Idade Média era organizada por homens educados para o combate, viade regra misóginos, e por clérigos celibatários, portanto, masculina e militar. No planoafetivo, o futuro cavaleiro sempre mantinha fortes laços com a mãe, ainda que afastado deladesde criança para servir a um senhor e fazer seu aprendizado das coisas da guerra. O paitransformava-se num estranho, podendo, mais tarde, ser um rival, quando o filho crescia efortalecia os vínculos com seu senhor. Ao contrário, guardava grandes saudades da mãe, dequem fora separado muito cedo, e a quem muito respeitava e venerava.

No que se refere às família nobres, em muitos casais a mulher tinha origem maiselevada, o que levava a um grande mercado matrimonial, pois, no plano político, eraimportante casar as filhas para expandir as alianças da família e gerar prole masculinanumerosa. Era importante não deixar de casar os cavaleiros, pois a troca de mulheres entreos feudos, entre os reinos, criava laços de parentesco e mantinha a paz social. No planocultural, a influência delas se acentuava; quando não morriam de parto, sobreviviam aosmaridos, que iam para as guerras ou se envolviam em grandes aventuras. As mulherestransformavam-se, então, na grande memória familiar, o esteio da nobreza feudal (Duby:1997).

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Nos ritos de iniciação que marcam a idade adulta, "o preço de tornar-se homem é arenúncia ao mundo feminino" (Duby: 1997) – onde está o espaço lúdico da criança e apresença materna. Freud destaca a importância da permanência da alma de criança noadulto, para o bem viver. Constituir-se homem significava aceitar essa separação.

Nas cerimônias finais, o jovem cavaleiro, após vigília, orações, confissões e comunhão,devia trazer sua espada para ser benta pelo sacerdote. O poder da espada tem um duplosentido: o destruidor, aplicada contra a injustiça, a maleficência e a ignorância, que a tornapositiva; e o construtor porque estabelece e mantém a paz e a justiça.

Há uma oposição evidente entre os sentimentos de proteção e comunhão, próprios damaternidade, e o imperativo de separação na iniciação masculina. Subverte-se, assim, arelação mãe-filho, resultando nos homens um sentimento de temor ao Feminino.

Várias leituras podem ser feitas do fenômeno da iniciação. Mas quer ela exorcise a partedo feminino que cada jovem traz em si para confirmá-lo na virilidade, quer represente parao iniciado um segundo nascimento social depois do nascimento biológico, quer marque orecalque dos desejos proibidos na infância e sua inserção na sociedade com a aceitação desuas leis e obrigações, a iniciação reafirma sempre uma polaridade fundamental: o femininoé o infantil e o natural, o masculino é o adulto e o social.

Enquanto as mulheres são excluídas do mundo adulto, sendo confundidas com ascrianças, num espaço em que o Feminino se infantiliza, os homens organizam-se nos papéisde chefes, guerreiros, caçadores e sacerdotes, produzindo as regras e os valores da cultura eda sociedade.

O poder transformador da paixão

Numa das genealogias do Amor, Hesíodo descreveu que

... antes de tudo existiu o Abismo; depois a Terra de flancos amplos, assentada firmemente, oferendaperene a todos os vivos, e o Amor, o mais belo dentre os deuses imortais, aquele que derreia os membrose que, no peito de todo deus como de todo homem, doma o coração e a vontade prudente.(citado porChevalier)

O amor de Eliavrés por Ysaive desencadeou a trama e delineou as atitudes do mago parasatisfazer seus desejos com a mulher amada. As conseqüências dessa paixão determinarama luta de nosso herói Caradoc para resolver seus conflitos.

A natureza mágica da narrativa transparece na construção da trama inicial, com atransformação de animais que assumem a aparência de um ser humano – a bela Ysaive.Eliavrés substituiu a mulher por animais assinalados com símbolos positivos na culturapagã. Com os escolhidos – a cadela, a porca e a jumenta – tinha o propósito e o cuidado deenviar ao rei uma mulher completa, feminina e bela, como Ysaive: que o satisfizessesexualmente, conforme o simbolismo da cadela; que tivesse o domínio do conhecimento,humildade, paciência e coragem como a jumenta – símbolo da paz; e que fosse fértil, comoa porca. Com estas alegorias o mago enganou o rei e realizou seu sonho, e Ysaive cumpriuo destino das mulheres medievais de sempre serem tomadas para satisfazer o desejomasculino.

Estudando Georges Duby, no seu livro Damas do século XII – a lembrança dasancestrais, descobre-se o mundo feminino, o sistema medieval de valores e o lugar nele

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reservado às mulheres. Nesse universo, segundo Thomas de Chobham, a mulher tem opoder de "amolecer" o coração de um homem com seus abraços e carícias, tendo como umadas funções "dar serenidade ao exercício do poder". (Duby: 1997)

Os papéis femininos na narrativa

Centraremos o estudo nas manifestações conflituosas recorrentes da anima, arquétipo dafeminilidade na caracterização de Jung (Silveira), uma vez que podemos considerar comoestáveis as relações de Caradoc com todos os personagens masculinos que circulam nanarrativa. Estas relações são comprovadas nas manifestações de amor, amizade e apreçoque recebeu quando o rei Artur reconheceu sua bravura e sagrou-o cavaleiro precocemente,chegando a desfalecer ao sentir-se impotente diante do destino do sobrinho amado. Etambém se comprovaram em outras ocasiões: quando seu pai biológico contou-lhe a tramaque envolveu seu nascimento; nos carinhos demonstrados pelo rei Caradoc – consideradoseu pai, até então; e na atitude de Cador da Cornualha – seu companheiro de armas, quesaiu à procura do amigo, para ajudá-lo. Entretanto, Caradoc tem um relacionamento semafetividade com a mãe.

A mitologia grega apresenta o caráter viperino da mulher ao mostrar Zeus anunciando onascimento da primeira mulher – Pandora – simbolizando a origem dos males dahumanidade (cf. Chevalier e Geerbrant, citando Hesíodo, no Dicionário de Símbolos):

Eu presenteei os homens com um mal, e todos, no fundo do coração desejarão cercar de amor sua própriainfelicidade (...) Atena lhe ensinará seus trabalhos, o ofício que tece mil cores; Afrodite de ouro sobre suafronte espalhará a graça, o desejo doloroso, as preocupações que despedaçam os membros, enquanto queum espírito imprudente e um coração artificioso serão, por ordem de Zeus, colocados nela. E, emseu seio, criará mentiras, palavras enganadoras, coração manhoso, assim como o quer Zeus. Depois(...) põe nela a palavra e a essa mulher ele dá o nome de Pandora, porque são todos os habitantes doOlimpo que, com esse presente, fazem da desgraça um presente para os homens.

Duas mulheres circulam nesta lenda desempenhando papéis importantes: a mãe deCaradoc, Ysaive, e Guignier, a amada que o salvou.

A primeira, que naturalmente deveria exercer seu papel materno, protegendo o filho,trama contra sua vida. Mais tarde, num momento em que se encontra sem forças parapraticar o mal, talvez com a fraqueza e a doença a tomar-lhe o corpo e o espírito, ressurgena narrativa para ajudar a salvar o filho. Até então, comportamento desta mãe destoava dasnormas sociais da Idade Média, quando o poder da mulher estava relacionado àmaternidade – eram poderosas por meio de seus filhos. A mulher naquele tempo não tinhautilidade nem verdadeira existência social enquanto não era mãe.

Ao saber a verdade sobre seu pai, Caradoc não deixou de reconhecer sua mãe, mas não aperdoou, e indicou ao pai o castigo que deveria impor-lhe – aprisionamento na torre docastelo – mas a rainha transformou a torre em Torre da Promiscuidade. Cabe lembrar quena Idade Média a torre servia para observar os inimigos, e, quando associada à cultura,significava a elevação das idéias.

Guignier participa diferentemente na estória: ama, protege, ajuda e salva o herói. Agecomo anima médica (Salles), ajudando a curar o mal. Quando aceitou participar doprocesso de ajuda para livrar seu amado do sofrimento, sabia que podia receber atransferência deste mal para seu corpo.

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A criação do herói

O recém-nascido Caradoc era a alegria do rei. Quando completou quatro anos, puseram-no a estudar;logo que aprendeu a distinguir as letras e entender o que lia, foi mandado ao tio que se maravilhou comele, pois o donzel era de coração gentil e belo corpo. (trad. por Furtado)

O precoce desenvolvimento de Caradoc e sua reconhecida bravura levaram-no a sersagrado cavaleiro numa grande festa, organizada pelo tio Artur.

Ser cavaleiro era uma condição de grande requinte, nos termos da cultura daqueletempo. O cavaleiro era o senhor de sua montaria, o que metaforicamente poderiarepresentar o domínio de seu próprio eu, o devotamento à dama eleita, o exercício de umafunção como, entre outras, a liderança de uma guerra. Porém o cavaleiro não chegava a serum soberano, era um chevalier servant, que se realizava na luta por uma grande causa.Caradoc passou a ser um paladino. Inserido no grupo de cavaleiros, respeitava as ordens dacavalaria e identificava-se com os valores coletivos de um cavaleiro.

Analisando a cerimônia do dia de Pentecostes no palácio do rei Artur, percebe-se que odesafio lançado pelo estranho cavaleiro – um golpe de espada na sua cabeça – não agradoua nenhum cavaleiro. E no entanto esse costume de cortar cabeças já era comum entre osceltas. Nas guerras, os gauleses carregavam em seus cavalos as cabeças dos inimigosvencidos. Chevalier e Geerbrant, no Dicionário dos Símbolos, relatam que a cabeçaabrange a autoridade de governar, de ordenar e instruir, enquanto Platão compara sua formaesférica a um microcosmo. E, lembrando que uma espada seria usada para a decapitação,um elemento interessante relacionado também nessa obra é a espada individualizada, comum nome próprio como se fosse um ser dotado de vida e vontade – tal como a de CarlosMagno, chamada Joyeuse (Alegre) nas canções de gesta.

Mas Caradoc, para livrar a corte da desonra, aceitou a proposta. Suas demonstrações devalentia e falta de temor eram condizentes com os ideais da cavalaria, cujos seguidoresviviam em busca de aventuras.

O trágico destino de Caradoc

Quando Eliavrés, já envergonhado com a vingança do rei Caradoc, que obrigou-o a lidarcom os mesmos animais que enviou ao seu leito nupcial, procurou a rainha na torre, foisurpreendido pela privação de suas carícias até que se consumasse uma vingança contra opróprio filho. Sob a influência e domínio desta mulher perversa, seduzido por seus encantose seus enfeites, Eliavrés arquitetou o violento plano que resultou numa serpente de naturezamaligna enroscada no braço de Caradoc, para sugar seu sangue e alimentar-se de sua carne.

À semelhança do homem, a serpente também distingue-se de todas as espécies deanimais. Quando se faz feminina, enrosca-se, beija, abraça, sufoca, engole, digere e dorme.

A serpente, escreve Bachelard, "é um dos mais importantes arquétipos da alma humana".No tantrismo, é Kundalini, que, enroscada na base da coluna vertebral sobre o chacra doestado de sono, "fecha com a boca o canal do pênis". Quando desperta, a serpente sibila ese enrijece; opera-se, então, a ascensão sucessiva dos chacras; é a subida da libido, a

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manifestação renovada da vida, em contraste com o propósito do enroscar da serpente nobraço de Caradoc: sugar-lhe a vida.

O processo de individuação e auto-conhecimento O momento da cura

Após ser vitimado pela vingança de seus pais, Caradoc vive um período de profundasolidão, vai caminhando pelo reino à procura de algum eremitério para se confessar. Umtraço importante a ser abordado é a mudança radical na vida do herói, quando abandona osvalores coletivos da cavalaria e entra num processo de individuação – nisso seguindo deperto as etapas definidas por Jung (Silveira, Salles) –, na busca de valores interiores paradescobrir a si mesmo.

Desde os primórdios, o homem busca compreender a si, a seu destino e às manifestaçõesde seu inconsciente, cercado por um mundo de símbolos que, inconscientemente ou não,utiliza através da linguagem, dos gestos e dos sonhos.

Para ajudar Caradoc, Cador precisaria contar com

Uma donzela tão nobre quanto ele e igualmente bela, e ela o amasse tão lealmente que fizesse tudo queele rogasse, essa o poderia curar. Cumpriria que ele fizesse encher duas cubas, uma com leite e a outracom o mais fino vinagre que pudesse achar. Faria a jovem entrar no leite e ele próprio no vinagre. Elamostraria o seio sobre a borda da cuba à serpente felã – e, se a donzela então a conjurasse, por Deus quenão falha nem engana, a largar Caradoc imediatamente, a serpente o deixaria de pronto, pois não poderiasuportar o vinagre. Farejaria a doçura do leite e o odor da carne alva. Abandonando de uma vez o braçodele, seco e descorado como está, em que nada resta senão nervos e ossos, saltaria para o seio. Assimpoderia ainda sarar aquele que o diabo faz enlanguescer. (trad. por Furtado)

Guignier, sua irmã, atendia a todas as exigências que o mago relatou para a cura. Paraajudar Caradoc, teria de sofrer por ele, recebendo em seu corpo a serpente destruidora casoseu irmão não conseguisse matá-la. O plano para salvar Caradoc de sua sina estava repletode simbolismo. Seu primeiro relacionamento com o Feminino, na figura da mãe, foramarcado por grandes conflitos, diferentemente das relações satisfatórias que nossopersonagem manteve com o elemento masculino.

A presença de Guignier nesta estória representa a salvação plena para o herói, pois eleprecisa livrar-se da serpente e buscar o conhecimento de si, para ter o arquétipo da animaresolvido, e desfrutar de uma existência feliz ao lado de sua amada. No processo de cura,Guignier exerce o papel maternal, dando-lhe metaforicamente o seio – símbolo damaternidade, fonte de suavidade e segurança, e associado às imagens de intimidade, deoferenda, de dádiva, de refúgio – para curá-lo do mal. Aceitando este papel que Caradoc lheadjudica, Guignier assumirá o papel arquetípico de mãe.

Colocada dentro de uma cuba com leite, a virgem oferece o seio direito – um convite aobote da serpente para desfrutar de sua carne. O seio, marca do feminino e símbolo maior damulher, é o elemento diferenciador citado por Freud. Distingue fisiologicamente a mulherdo homem e tem o valor de alimentar uma nova vida continuando a espécie.

Um dos significados simbólicos do leite, entre os celtas, é o caminho de iniciação, olugar da imortalidade. Não sendo só bebida, possui virtudes curativas. O leite é o símbololunar, feminino por excelência e está ligado à renovação da primavera.

É muito oportuno pesquisarmos o leite e o seio como símbolos, para compreendermos olugar destas alegorias na única oportunidade de salvação para Caradoc, que só irá encontrar

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a cura arremessando o seu mal em direção à pessoa amada, aquela que para o cavaleiroencarna a anima, soma de todas as virtudes maternais de que carece.

Ao transferir a imagem materna para a mulher amada, Caradoc espera, ao menosinconscientemente, um comportamento maternal de Guignier. Quando isto ocorre com umhomem, ele geralmente passa a ter atitudes e exigências pueris, perturbando profundamentea relação e resultando em complicações amorosas e decepções causadas pelas idealizações.As manifestações da anima, costumam ocorrer numa primeira fase da vida centrada noexterior, nos seres reais, nos problemas amorosos, nas ilusões e desilusões experimentadas.Já na segunda fase, com o esgotamento das primeiras projeções, aflora a mulher dentro dohomem, depois de reprimida durante anos pelo senso comum, por imposição do qual asexpressões emocionais devem ficar restritas ao sexo feminino.

Neste universo simbólico entrará Caradoc para lutar pela cura e continuar a busca de simesmo, iniciada após sofrer a vingança dos pais, quando saiu vagando, completamente só,reencontrando seus valores interiores e despertando para a compreensão dos conflitos danão-aceitação da anima em sua vida. O encontro com Guignier é a solução analógica paraseus problemas. Mas, para curar-se integralmente, livrando-se da serpente e dos conflitosde seu inconsciente, necessitará da atuação infalível de Cador, o grande mediador, para quea vingança não reverta contra Guignier. Cador acreditava estar apto para lidar com aserpente, mas também estará ameaçado quando o animal deixar o corpo de Caradoc. Opapel de Cador foi acertadamente comparado ao do analista, presidindo, não sem risco paraele próprio, ao processo de cura; participaria como elemento mediador da trama, ondemesclam-se o seu mundo, o de Caradoc e o de Guignier, numa relação acima de tudohumana (Salles).

Esconjurando a vingança dos pais com magia feminina, Caradoc estará libertando-se dosconflitos inconscientes que o impediam de aceitar e conviver com a anima. O corte naserpente é uma ruptura na predominância do princípio masculino, para que Caradoc possaenxergar e compreender o lado feminino e despertar para uma nova vida.

Conclusão

Há quem considere que "o importante hoje não é descobrir, mas recusar o que nós somos( ... ) É preciso promover novas formas de subjetividade recusando o tipo deindividualidade que nos foi imposto durante muitos séculos". (Foucault)

Se usarmos estes parâmetros para um olhar na trajetória de nosso herói, Caradoc,verificamos que sua luta pela liberdade e auto-conhecimento resultou no maior domínio desi próprio, de sua psique e do mundo. Combatendo os vestígios do passado, simbolizadopela relação doentia com a anima, superou um presente conflitante, revelado na luta paralivrar-se da vingança dos pais e, redimido, pôde buscar um futuro a realizar.

A leitura linear desta lenda permitiu concluir uma trajetória de des-construção danarrativa para, paulatinamente, desvendar uma estratégia reveladora dos conflitos latentesdo personagem. Com efeito, a partir do momento em que se viu sozinho, o herói passou acaminhar pelo reino, em trajetória repleta de significado:

"A simbologia da estrada real fala de uma estrada direta, sem possibilidade de desvio. Foi aplicada naIdade Média e na vida monástica como via régia: aquela que evita os desvios, os atalhos – tudo o quepode dissipar a alma e reter a atenção " (Chevalier)

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Levado a distanciar-se dos ideais coletivos da cavalaria ao ser dominado pela peçonhada serpente, pôde olhar para dentro de si, perceber o caos e descobrir-se multifacetado para,só então, buscar e aceitar a redenção – somente possível através da mulher amada, que,simbolicamente, revelou o sentido de sua projeção.

Com esta análise, procuramos encontrar subsídios para uma reflexão sobre os conflitosinconscientes que fazem parte da composição do ser humano. Dentro deste contexto,percebemos que a estória é sobre alguém que, levado por seus infortúnios a desvincular-sede formas externas de dominação, de exploração, tem finalmente de apurar como se liga osujeito a ele mesmo.

Enfim, como lembra Foucault, são lutas que "giram em torno da mesma questão: quemsomos nós?"

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A Última Nau para Avalon –D. Sebastião: A história, o mito, a lenda

Claudio de Sá Capuano

Introdução

A história cultural portuguesa guarda histórias muito curiosas que são capazes de encerrarem si caracteres ao mesmo tempo instigantes e contraditórios. 0 amor de Inês de Castro eD. Pedro é um dos mais fortes exemplos de narrativa em que todos os ingredientesromanescos são ali postos a reagir, gerando um produto emblemático da cultura portuguesa.

Dentre os reis daquele país, certamente é D. Sebastião o que teve em torno de si umaconstrução de histórias e lendas que, mais que simplesmente retratar ou fixar sua passagempela história, produziram uma gama de idéias que permearam o imaginário popular durantealguns séculos, sendo até hoje alvo do interesse de pesquisadores diversos. Este trabalhonão foge à regra.

0 que me interessa fixar neste texto são alguns aspectos relativos à figura de D.Sebastião, principalmente no que diz respeito ao seu perfil anacronicamente medieval,construído não apenas por uma tradição popular, mas também pela literatura e pelo ensaioportuguês.

Não é de se admirar que dois dos maiores expoentes literários do século XX emPortugal, Fernando Pessoa e José Saramago, tenham tratado, seja no sentido de reler atradição, seja no de criticá-la, da figura do rei que nasceu sob os auspícios de uma lendaligada ao messianismo.

Pretendo destacar as semelhanças entre a trajetória de D. Sebastião e a de outrospersonagens. Entre eles, Artur, o cavaleiro medieval lendário cujo cicio narrativo circulouamplamente pela península ibérica, abrindo caminho para a gesta sebástica, numamanifestação tardia do espírito da aventura medieval num Portugal que entrava nos temposmodernos.

Aspectos do mito sebástico na Mensagem de Fernando Pessoa

0 poema Mensagem, reunião em três partes de uma sucessão de poemas de tamanho eforma variáveis, procura traçar, numa visão ao gosto modernista da primeira metade doséculo XX, um panorama dos quase dez séculos da história de Portugal. Entretanto, aestratégia do poeta Fernando Pessoa passa pelo trato da história, sem contudo esquecer oque há e o que pode ali haver de lenda. Talvez o "Mysterio", assim grafado algumas vezesnesses versos, seja o mote mais forte para se entrar no espírito do poema. A mensagem emsi nos chega de forma fragmentária e cifrada. 0 próprio nome contém o mesmo número deletras que há na palavra "Portugal", título primeiro dado ao poema.

Na primeira parte de Mensagem, chamada "Brasão", Pessoa traça um panorama daprimeira parte da história de Portugal, os momentos iniciais de luta pela fixação na terra.Parte porém da localização idealizada de Portugal na Europa, percorre a idéia de mitoproduzindo-lhe uma bela definição poética, para só então abordar as figuras históricas dos

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primeiros tempos do reino.No primeiro poema, a Europa aparece humanizada: é uma figura feminina, com cabelos

"romanticos" (romanos) e olhos gregos. Não há qualquer referência direta a Luís deCamões na Mensagem, mas já ali, no primeiro poema, surge a "mais ocidental praialusitana" (e européia).

Europa está deitada, como uma esfinge, com um cotovelo na Itália e outro na Inglaterra,o rosto a olhar o ocidente:

Fita com olhar sphyngico e fatal,0 Occidente, futuro do passado

0 rosto que fita é Portugal(Pessoa, 1972:73)1

Apresentado o rosto "mysterioso" da Europa, o poeta define o mito, a partir do Odisseu,mítico fundador de Lisboa:

0 mito é o nada que é tudo.0 mesmo sol que abre os céusÉ um mito brilhante e mudo0 corpo morto de Deus,Vivo e desnudo.

Este, que aqui aportou,Foi por não ser existindo.Sem existir nos bastou.Por não ter vindo foi vindoE nos creou.

A origem está portanto no mito, na lenda:

Assim a lenda se escorreA entrar na realidade.E a fecundal-a decorre.Em baixo, a vida, metadeDe nada, morre.

Autorizada pelos poemas iniciais, haverá na Mensagem uma liberdade de tratar história elenda, personagens históricos e lendas a eles associados sem qualquer preocupação, umavez que a lenda se remete ao que não necessariamente foi, mas, parafraseando os versosacima, justamente por não ser é que foi existindo e compondo o imaginário que se pretenderetratar na Mensagem.

0 primeiro personagem 'português' propriamente dito que surge na Mensagem é o condeD. Henrique, francês de nascimento, marido de D. Tareja, pai do primeiro rei D. AfonsoHenriques. Pessoa o coloca no poema como uma espécie de barão assinalado, revestido damissão de iniciar o processo histórico português. 0 poema a ele dedicado é uma saborosareferência ao momento em que Artur se encontra com Excalibur:

1 A partir daqui omitirei a referência, de vez que estes poemas podem ser lidos na íntegra no final do texto em anexo.

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Todo começo é involuntario.Deus é o agente.0 heroe a si assiste, varioE inconsciente.

À espada em tuas mãos achadaTeu olhar desce."Que farei eu com esta espada?"

Ergueste-a, e fez-se.

0 primeiro homem a lutar no que seria Portugal é portanto um braço que conduz aespada que, por sua vez, abre o caminho para a formação de Portugal. 0 poema dedicado aoprimeiro rei faz forte referência à sua condição de cavaleiro medieval, modelo de retidão eforça que deve servir de exemplo aos que o sucedem, tendo na espada símbolo de força, davirilidade necessária à fixação territorial do reino:

Pae, foste cavaleiro.Hoje a vigília é nossa.Dá-nos o exemplo inteiroE a tua inteira força!

Dá, contra a hora em que, errada,Novos infieis vençam,A benção como espada,A espada como benção!

Uma última referência associada à Matéria da Bretanha presente na primeira parte daMensagem é o poema dedicado a D. Filipa de Lencastre, esposa de D. João I, o Mestre deAvis, o nobre que na revolução de mesmo nome conseguiu, por aclamação popular,ascender ao trono e manter a integridade do reino. D. Filipa aparece no poema como umventre assinaldo, capaz de gerar vários filhos, todos altamente dotados. Pessoa a eleva àcondição de princesa-madrinha de Portugal.

Que ENIGMA havia em teu seioQue só genios concebia?Que archanjo teus sonhos veioVellar, maternos, um dia?

Volve a sós teu rosto serio,Princesa do Santo Gral,Humano ventre do Imperio,Madrinha de Portugal!

A primeira referência a D. Sebastião aparece ainda na primeira das três partes daMensagem. Encontra-se no terceiro grupo de poemas chamado "As quinas", querepresentam, na linguagem simbólica do poema, os sacrifícios e os sofrimentos. Ali D.Sebastião fala em primeira pessoa e se assume como louco por ter desejado grandeza. Aidéia do mito também ali se encontra. A idéia de que, uma vez morto o corpo, sobrevive aidéia.

É importante observar dois aspectos fundamentais. Apesar de assumi-lo como mito,

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Pessoa não deixa de reconhecer sua morte enquanto homem, o que não impede que haja aexpectativa de seu retomo. Afinal, o que há de voltar não é o "ser que houve", mas "o quehá". 0 segundo aspecto é o contundente apoio à ousadia de espírito que o poeta enxerga norei, o que fica patente no questionamento feito nos três últimos versos do poema:

Louco, sim, louco, porque quiz grandezaQual a Sorte a não dá.Não coube em mim minha certeza,Por isso onde o areal estáFicou meu ser que houve, não o que há.

Minha loucura, outros que me a tomemCom o que nella ia.Sem a loucura que é o homemMais que a besta sadia,Cadáver adiado que procria?

0 posicionamento de D. Sebastião como quinto representante das quinas poderia ser lidocomo mera representação de sua morte. Entretanto, o sofrimento aponta tanto para opassado quanto para o futuro. 0 passado de Portugal é todo feito de sacrificios sucessivospara a conquista do território, fixação do homem na estreita faixa de terra no extremoocidente da Península Ibérica. 0 sofrimento é também o próprio da família real portuguesa,que se extingue, ao menos na sucessão direta, com D. Sebastião. 0 Mestre de Avis e D.Filipa de Lencastre iniciaram uma dinastia, que teve seu ápice talvez com D. João II, opríncipe perfeito, um dos maiores entusiastas das conquistas portuguesas de além mar.Entretanto, talvez devido aos sucessivos casamentos em família, a partir de D. Manuel, ochamado 'venturoso', a sucessão portuguesa se viu ameaçada e de fato não se concretizou.Todos os filhos de D. João III (filho de Manuel I) morreram jovens. D. João, pai de D.Sebastião, sempre teve a saúde fraca, tendo morrido em tomo dos 20 anos, ainda durante agestação de D. Sebastião. Sem pai e afastado da mãe logo após o nascimento, o príncipeque seria rei aos 14 anos foi educado por jesuítas, educação esta que era alvo de grandescríticas na época. Também sempre doente, o rei parecia acreditar que era o representante deuma suposta glória portuguesa, ainda maior que a conquista do oriente, e que seria coroadapela vitória de Portugal contra os infiéis da África, em batalhas em que o próprio rei seria oprimeiro cavaleiro.

Fernando Pessoa repete o procedimento português dos primeiros tempos após a morte deD. Sebastião de silenciar o dramático perecimento do monarca, mas apresenta, nopenúltimo poema da segunda parte da Mensagem, a partida de D. Sebastião, que coincidecom o início do sebastianismo propriamente dito. Há imagens interessantíssimas ali criadas.0 título do poema, "A última nau", é sintomático. Aponta o fim de um ciclo de expansãopara o mar. Por outro lado, fixa, na partida pela água, aquele que será a encarnação do mito.0 mar é concreto, mas a nau aporta numa "ilha indescoberta" que passará a ser a moradamítica do rei, de onde um dia ele ressurgirá. A imagem é metafórica e alusiva à partida deArtur para Avalon.

A ausência do rei, a sua falta e a falta de tudo o que se encerrou com o seudesaparecimento, é o que vai justamente alimentar a alma atlântica do povo português. Umsol muito particular é posto no início e no final do poema. Inicialmente, o sol é aziago,presságio dos infortúnios da expedição. Seria paradoxal a ligação entre o sol e a má sorte

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quando se fala de navegação – afinal bom tempo é sinal de sucesso – não fosse Portugallutar nas areias do deserto contra aqueles que tinham no sol um correligionário. Morto o rei,surge a névoa, que só se dissipará quando o rei retornar, agora sim sob um sol aliado,trazendo ainda os símbolos do 'Império'.

Levando a bordo El-Rei D. Sebastião,E erguendo, como um nome, alto o pendãoDo Império,Foi-se a última nau, ao sol aziagoErma, e entre choros de ancia e de presagoMysterio.

Não voltou mais. A que ilha indescobertaAportou? Voltará da sorte incertaQue teve?Deus guarda o corpo e a fórma do futuro,Mas Sua luz projecta-o, sonho escuroE breve.

Ali, quanto mais ao povo a alma falta,Mais a minha alma atlantica se exaltaE entorna,E em mim, num mar que não tem tempo ou spaço,Vejo entre a cerração teu vulto baçoQue torna.

Não sei a hora, mas sei que há a hora,Demore-a Deus, chame-lhe a alma emboraMysterio.Surges ao sol em mim, e a nevoa finda:A mesma, e trazes o pendão aindaDo Imperio.

Na terceira e última parte da Mensagem, chamada "O Encoberto", D. Sebastião aparecenão apenas como mito, mas também como possibilidade de representar a reconquista de umrumo, seja ele na direção do mar ou não. É certamente a mais enigmática das três partes.

No primeiro dos cinco poemas do grupo "Os symbolos", mais uma vez D. Sebastião falaem primeira pessoa, afirmando que é o que há nele em sonho o que regressará:

Que importa o areal e a morte e a desventuraSe com Deus me guardei?É O que eu me sonhei que eterno dura,É Esse que regressarei.

No terceiro poema-símbolo, o rei é o próprio desejado. Esta é na verdade uma referênciahistórica, que se reporta à época da dificil gestação de um herdeiro para Portugal. QuandoD. Sebastião nasce, depois da morte do próprio pai e de todos os seus tios, dá-se a ele aalcunha de Desejado, aquele que enfim seria capaz de perpetuar a soberania e a glória, noentender do povo, de Portugal. Porém, sua saúde era frágil e sua trajetória apontoujustamente para outro lado. Uma vez morto, D. Sebastião passa a ser o Desejado que nãohá. No poema, sua figura é associada à de um cavaleiro puro, um Galaaz, que irá redimir apátria de todos os seus males.

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Onde quer que, entre sombras e dizeres,Jazas, remoto, sente-te sonhado,E ergue-te do fundo de não-seresPara teu novo fado!

Vem, Galaaz com pátria, erguer de novo,Mas já no auge da suprema prova,A alma penitente do teu povoÀ Eucharistia Nova.

Mestre da Paz, ergue teu gladio ungido,Excalibur do Fim, em geito talQue sua Luz ao mundo divididoRevele o Santo Gral!

Ainda na última parte da Mensagem, Fernando Pessoa apresenta todos os elementos quecompuseram o imaginário mítico em torno de D. Sebastião. Estão ali o Bandarra, e aassociação das profecias anteriores ao nascimento do rei e ele próprio, o padre Vieira,mentor da idéia de um Quinto Império a partir de Portugal, e a saudade (enquanto metáforado saudosismo tão caro a Pessoa), e a necessidade da crença no presente.

Alguns aspectos históricos e pensamentos teóricos em torno do mito sebástico

0 surgimento da mitologia em tomo de D. Sebastião tem um suporte histórico que de certaforma se reporta ao surgimento de lendas medievais, como as relacionadas ao cicloarturiano. Os momentos de incerteza política e principalmente os de real ameaça àsoberania ou independência de um povo são momentos propícios para o surgimento delendas.

É o que parece ter ocorrido em tomo da figura de Artur. Justamente quando a derrota dopovo bretão era a mais estrondosa, começa a formação dos elementos que desembocariamna criação das lendas que formariam o ciclo arturiano. (Furtado, 1995:17). 0 mistério queenvolve a figura de Artur é uma marca importante na composição da lenda.

Vimos que o poeta Femando Pessoa, ao reler na Mensagem toda a tradição de seu povo,parece fazer questão de associar algumas imagens à de D. Sebastião. Está ali o mistérioenvolvendo o seu desaparecimento. Pessoa trata também de uma névoa que se abate sobrePortugal devido ao desaparecimento do rei. Os dois elementos, mistério e névoa, tambémfazem parte do imaginário das lendas arturianas. Conhecedor que era da cultura inglesa,não deve ter sido gratuita a incorporação que Pessoa fez de tais elementos para compor asua visão de Portugal e de D. Sebastião.

A névoa passa a ser inclusive objeto de reflexão, 0 rei, muito provavelmente devido àsua educação religiosa, tinha algumas obstinações, como a guerra em África, na qual elepróprio seria o primeiro cavaleiro, e cujo objetivo maior era a derrota dos "infiéis". Aensaísta Maria Alzira Seixo (1999:33), por exemplo, relaciona o nevoeiro à mentalidadeconfusa do rei e a uma enevoada obstinação por aquilo que o faria perecer. Consultando abibliografia dos que escreveram sobre aquele momento político em Portugal, percebe-seque as disputas político-religiosas parecem ter criado um verdadeiro clima de equívoco, quese transformou prontamente em comoção depois da morte do rei.

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Também os elementos que giram em tomo do mistério associado ao desaparecimento deD. Sebastião é fruto de construção. No seu trabalho a respeito do Sebastianismo, LucetteValensi nos traz aspectos fundamentais para a compreensão do surgimento da mitologia emtorno de D. Sebastião. A primeira marca que a autora aponta como desencadeadora de umnão esclarecimento que propiciaria a formação de uma mitologia em torno do caso foi acensura às primeiras informações sobre o acontecido em Alcácer-Quibir:

As "noticias da África" tiveram dificuldade em abrir caminho até a capital. De início foram retardadaspela distância e pela dificuldade das comunicações. De resto, poucos portugueses sobreviveram ao campode batalha. Os mortos contavamse aos milhares, assim como os prisioneiros, que permaneceram cativosno Marrocos, esperando ser resgatados. Apenas um pequeno número - menos de cem / ... / - conseguiuchegar a Arzila. Dali, de Ceuta e de Tânger, onde se encontrava a frota, o relato dos acontecimentoschegou a Lisboa, ao que parece, em 12 de agosto. Exerceu-se então uma censura oficial sobre aspalavras e os escritos. (Valensi, 1994:17, grifo meu)

Após a censura dos momentos iniciais, os portugueses, nas palavras de Valensi, "seenlutam e emparedam no silêncio" e por "mais de vinte anos os relatos impressos dabatalha foram feitos em línguas estrangeiras." (ibidem, p.20). Para isto também colaborou ofato de que a união com a Espanha era do interesse dos espanhóis, mas era também algomuito delicado. Lucette afirma então que aos espanhóis não "teria sido muito proveitosohumilhar os portugueses sublinhando a responsabilidade de Sebastião no desastre de seuexército". (ibidem, p. 26)

No capítulo inicial de seu estudo sobre o Sebastianismo, Antônio Machado Pires cita aconhecida obra de 1810, de autoria de José Agostinho de Macedo, intitulada O ssebastianistas, Reflexões sobre esta ridícula seita. Partindo justamente de um texto que seconstitui numa das primeiras tentativas de desconstruir a validade da crença no mito, oautor constata que "a crença sebástica, que ainda podia ter alguma desculpa nos anosseguintes ao início da dominação filipina, é agora motivo de vergonha para os portuguesesdo começo do século XIX, fazendo-os passar por estúpidos e semibárbaros aos olhos dasoutras nações." (Pires, 1980:13)

Ao longo do século XIX, surgem obras de análise do sebastianismo, que se alternamentre ferrenhas críticas à crença no mito sebástico e tentativas de compreensão doSebastianismo enquanto fenômeno cultural português. Já no século XX, porém, o ensaístaAntônio Sérgio publicou uma importante crítica ao Sebastianismo. Para ele, D. Sebastiãonada mais foi que um "inexcedível pedaço de asno" e muito o surpreende o tanto de retóricaque "tem ele inspirado à literatura." (Sérgio, 1980:241). Esse texto é na verdade uma críticaao estudo de Oliveira Martins, presente na História de Portugal, em que o historiador tentaextrair do mito sebástico algo de inconsciente, característico da raça. Antônio Sérgiodiscorda veemente disto e afirma que

o bandarrismo, longe de ser o produto, ou o efeito, de um espírito rácico português, foi uma das causasou factores da imaginação portuguesa da decadência, graças à confluência de ideias alheias, da educaçãoprofetista dos eclesiásticos e de factos históricos supervenientes: fenómeno social e intelectual, portanto,independente da raça em que se manifestou. (Sérgio, 1980: 24 1)

Acrescenta ainda que as idéias alheias reportam-se ao messianismo hebraico presentesem trovas do Bandarra. Na citação acima, no entanto, importa-nos a referência a umadecadência, colocada como efeito que o messianismo profético causou no imaginário

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português em função de uma situação de decadência. Ao incorporar o medievalismo aospoemas da Mensagem, Femando Pessoa consegue atenuar as críticas apaixonadas, porquedesloca o que é histórico para o plano mítico. Assim, o que pode parecer ridículo no planoconcreto, quando lido no plano simbólico toma-se expressivo.

Um último aspecto em comum a ser tratado é a idéia de profecia que facilmente se ligaaos ciclos lendários. Na apresentação que faz à História do Futuro de António Vieira,Maria Leonor Carvalhão Buescu trata da associação do Sebastianismo a ideologiasproféticas. 0 profético tem como função não meramente adivinhar, mas reconhecer, atravésde sinais. Trata-se da "revelação e da interrupção correcta e 'iluminada' dos sinais".(Buescu, 1992:20). Assim, as alegorias presentes nas narrativas de ciclos lendários são ricafonte simbólica. Pessoa parece estar consciente disto ao transportar a discussão a respeitode uma crença atribuída ao primitivismo popular para o plano de uma mitologia, que, deforma inversa, enriquece a reflexão que se pode fazer a respeito do mito.

Últimas aproximações: Artur, Alexandre da Macedônia, Frederico I e D. Sebastião

Ao poema de Pessoa que inspirou o título deste texto, cabe ainda uma última observação.Uma última nau poderia sugerir a idéia de última viagem. De certa forma sugere mesmo,uma vez que se pode entender que a viagem de D. Sebastião marcou o fim do ciclo daexpansão territorial portuguesa. Entretanto, se pensarmos em termos simbólicos, a nãomenção, no poema, de uma última viagem recobre-se de um significado interessante.

Uma viagem só tem seu sentido completo se, além da ida, realiza-se também o percursoda volta. Qual é o sentido da Odisséia senão a própria demanda do retorno feita por partedo Odisseu? Há ali o desenvolvimento do sentimento do nostos, conceito grego que apontapara a vontade, para a necessidade de voltar, sentimento este que está no étimo da palavraportuguesa 'nostalgia'. O viajante parte justamente para retornar, uma vez que é no retornoque a viagem de fato se efetiva.

A viagem sem volta de D. Sebastião gera no imaginário português uma permanentenostalgia, transformando o rei desaparecido numa constante "presença ausente". A negaçãoda morte, o não reconhecimento de um cadáver ou a idéia do desaparecimento sesobrepondo à da própria morte fazem com que se forje a idéia do retorno, que, com o passardo tempo, torna-se nostálgica e se transforma na promessa de recuperação de algo que seperdeu.

Esta não é uma imagem incomum, muito menos associada apenas a personagenshistóricos. O fim de Artur na lenda, por exemplo, não é exatamente a sua morte, mas acondução de seu corpo ferido para Avalon para que, depois de muito tempo, seja curado.Permanece, portanto, a possibilidade de que volte a reinar.

Algo semelhante acontece com outros personagens, entre eles Alexandre da Macedônia.No livro Artur e Alexandre – crônica de dois reis, a tese desenvolvida pelo autor é a de queas lendas do ciclo arturiano, a partir da versão de Geoffrey de Monmouth, tenham tidocomo fonte textos dos três primeiro séculos da era cristã a respeito de Alexandre. (Furtado,1995:207) Segundo o autor, a lenda do desaparecimento de Artur é muito semelhante à datentativa de desaparecimento de Alexandre, o Grande. Aqui nos interessa destacar apenas aidéia de que, tendo um rei sobrevivido a um ferimento de morte, torna-se possível aconstrução de uma mitologia que nutre a idéia de um retorno redentor.

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Outro personagem que tem ligado ao seu desaparecimento a construção de uma lendasemelhante é o chefe medieval germânico Frederico I, o Barbarossa. Apesar de ascondições de sua morte serem historicamente conhecidas – o rei se afogou em um riodurante uma campanha onde hoje está a Turquia – há a lenda de que ele esteja adormecidono monte germânico de Kyffhäuser, numa caverna de calcário, esperando o momento doretorno para restaurar a antiga glória de seu povo.

A visão que o poeta Fernando Pessoa destaca no poema "A última nau" é muitosemelhante às lendas em torno de Alexandre, Artur ou Barbarossa. O rei não morreu,sequer se feriu. Apenas aportou em uma ilha indescoberta, para dali ressurgir trazendo ossímbolos da glória imperial portuguesa. Esta é uma tradução poética da simples crença doretorno do rei, nutrida pela crença sebástica ao longo dos séculos que se seguiram à batalhade Alcácer-Quibir.

Na própria Mensagem, porém, Pessoa trata de racionalizar a lenda. Representa a mortedo corpo, mas a sobrevivência de uma essência, essa sim, porque abstrata, capazefetivamente de retornar. É o que se lê nos poemas "Quinta / D. Sebastião, Rei dePortugal"...

Por isso onde o areal estáFicou meu ser que houve, não o que há.

... e "Primeiro/D. Sebastião":

Que importa o areal e a morte e a desventuraSe com Deus me guardei?É O que eu me sonhei que eterno duraÉ Esse que regressarei.

Da mesma forma, no poema "Quarto / As ilhas afortunadas", o não lugar que serve demorada para o rei que espera o momento do retorno é fixado pelo poeta:

/.../São ilhas afortunadasSão terras sem ter lugar,

Onde o Rei mora esperando.Mas, se vamos despertandoCala a voz. e há só o mar.

A semelhança entre o mito construído em torno de D. Sebastião e figuras puramentelendárias como Artur, ou históricas como Alexandre e Frederico I, é evidente, mas guardauma diferença contundente. Todos os personagens são alvo de uma construção em funçãode uma história de bravura, de conquistas, de grandes feitos que conseguiram pôr emprática. No caso de Sebastião, a lenda precede a glória, já que ele é lembrado pelo queseria, após as grandes conquistas na África, não pelo que já tinha realizado quando partiu.

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Derradeiros ecos

As lendas em torno de D. Sebastião transcenderam as fronteiras de Portugal devidoobviamente ao processo de colonização iniciado no século XVI. Assim, são bastanteconhecidas no âmbito da literatura brasileira exemplos de textos que tratam do tema. Entreeles estão o romance Pedra Bonita, de José Lins do Rego, e o tratado de Euclides da Cunhasobre a Guerra de Canudos: Os Sertões.

O caso de Euclides da Cunha é curioso, pois o jornalista viu no Conselheiro um seguidordo sebastianismo1, idéia esta que se disseminou em função da popularidade do livro.Estudos mais recentes, entretanto, tendem a desfazer esta idéia.

No texto "Canudos como cidade iletrada: Euclides na urbs monstruosa", RobertoVentura baseia sua reflexão na observação do fato de que Euclides da Cunha atribui aAntônio Conselheiro profecias com tom apocalíptico que, somadas a fontes orais e aoscadernos encontrados nas ruínas de Canudos, permitiram-lhe traçar "um perfil sombrio dolíder da comunidade." (Ventura, 1997:89)

Assim, Euclides formou uma visão de Canudos como um movimento sebastianista emessiânico, pautado na crença do retorno de D. Sebastião, que viria derrotar as forçasrepublicanas e restaurar a Monarquia. Ventura afirma ainda que Euclides da Cunha, em OsSertões, criou "uma imagem de Canudos como cidade iletrada, dominada por fanatismos esuperstições transmitidos de forma oral." (Ventura, 1997:93) Seu raciocínio avança nosentido de afirmar que o escritor buscou elaborar uma via para a compreensão lógica doepisódio de Canudos:

Construiu um modelo interpretativo para dar conta das relações e conflitos entre a sua própria cultura,letrada e urbana, e a cultura oral sertaneja, marcada por mitos messiânicos e pela tradição católica.Procurou dar voz ao outro, objeto de seu discurso e inimigo de suas concepções políticas, ao incorporartextos destinados à oralização, produzidos segundo uma lógica mítica e religiosa que lhe era estranha.(ibidem, p. 93)

Entretanto, como observa o próprio Ventura, Euclides da Cunha tendia a desqualificar odiscurso religioso (idem, p. 96), que nada mais era que o discurso do outro, em função desuas convicções pré-conceituadas.

Isto estaria em profunda dissonância com os manuscrito de Antônio Conselheiro, textosestes que Euclides da Cunha só conheceu meses antes de morrer, sete anos depois depublicados Os Sertões:

Os sermões de Antônio Vicente Mendes Maciel, o Conselheiro, recolhidos em dois volumes manuscritosa que Euclides não teve acesso, mostram um líder religioso muito diferente do fanático místico ou doprofeta milenarista retratado em Os Sertões. Revelam um sertanejo letrado, capaz de exprimir, de formaarticulada, suas concepções políticas e religiosas, que se vinculavam a um catolicismo tradicional,corrente na Igreja do século XIX. (ibidem, p. 90)

O fato é que os dois livros manuscritos que Antonio Conselheiro deixou escritos sãoobras em que apenas temas religiosos, em consonância com os preceitos do catolicismo daépoca, são tratados. Em apenas um deles trata propriamente de assunto político. Condena a 1 Euclides da Cunha atribui a seguidores de Antonio Conselheiro no movimento de Canudos, "rudes poetas rimando-lhe osdesvarios", versos reveladores de suas "tendências messiânicas" na linha do Sebastianismo, na intenção de atacar arepública que era para ele obra do Anti-Cristo: "D. Sebastião já chegou / ... / Visita nos vem fazer / Nosso rei D. Sebastião. /Coitado daquele pobre / Que estiver na lei do cão!" (Cunha, 1985:250)

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República e suas leis seculares, muito provavelmente por ver nelas a negação dos preceitosreligiosos em que se pautavam seus pensamentos.

O tema final tratado por Roberto Ventura nesse texto reporta-se à avaliação das crençassebastianistas, messiânicas e milenaristas associados ao Conselheiro e aos sertanejos deCanudos, como quis fazer crer Euclides da Cunha ao ler as profecias atribuídas a AntônioMaciel. Hoje, tais idéias não são consensuais entre os historiadores, que não vêem naquelacomunidade predomínio da crença milenarista. Esta seria apenas um dos elementos dodiscurso religioso presente na tradição oral que circulou entre os habitantes de Canudos:

Ao contrário dos poemas e profecias citados por Euclides, os sermões de Antônio Conselheiro nãocontêm referências a dom Sebastião nem revelam expectativas na vinda de um messias capaz de trazer avitória do Bem sobre o Mal ou esperanças milenaristas na criação do paraíso na Terra. (ibidem, p. 97)

Conclui, portanto, o texto, reafirmando a hipótese de que Euclides da Cunha pode tersupervalorizado a crença sebástica em meio à gente de Antônio Conselheiro.

O fato é que, de uma maneira ou de outra, a crença de que um cavalheiro medieval(ainda que tardio) poderia retornar de um exílio nebuloso para restaurar o passadoconseguiu circular por quatrocentos anos em Portugal e também no Brasil. Ajudado talvezpor mais uma lenda, a que Euclides da Cunha ajudou a disseminar, D. Sebastião pôdepermanecer no imaginário popular, como se sua nau estivesse pronta para o retorno, paraaportar no lugar de onde saiu, ou mais além, por aqui, talvez.

Bibliografia:

BUESCU, Maria Leonor Carvalhão. "Apresentação à História do Futuro". In VIEIRA,António. História do Futuro. Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 2a ed, 1992.

CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo, Editora Brasiliense, 1985.FURTADO, Antonio L. Artur e Alexandre - crônica de dois reis. São Paulo: Ática, 1995.PESSOA, Fernando. Obra Poética. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1972.PIRES, António Machado. D. Sebastião e o encoberto. 2a ed. Lisboa, Fundação Calouste

Gulbekian, 1980.SÉRGIO, António. Breve Interpretação da História de Portugal. Lisboa: Sá da Costa,

1978.SEIXO, Maria Alzira. "0 essencial sobre José Saramago." In: Lugares da Ficção em José

Saramago. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1999.VALENSI, Lucette. Fábulas da Memória - a batalha de Alcácer-Quibir e o mito do

sebastianismo. Trad. de Maria Helena Franco Martins. Rio de Janeiro, Nova Fronteira,1994.

VENTURA, Roberto. "Canudos como cidade iletrada: Euclides na urbs monstruosa ". InABDALA Jr., B. & ALEXANDRE, Isabel. Canudos, palavra de Deus, sonho da Terra.São Paulo: Editora SENAC: Boitempo, 1997.

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Anexo: Poemas da Mensagem citados no texto

PRIMEIRO / OS CASTELOS À espada em tuas mãos achadaTeu olhar desce.

A Europa jaz, posta nos cotovelos: "Que farei eu com esta espada?"De Oriente a Ocidente jaz, fitando,E toldam-lhe românticos cabelos Ergueste-a, e fez-se.Olhos gregos, lembrando.

QUINTO / D. AFONSO HENRIQUES0 cotovelo esquerdo é recuado;0 direito é em ângulo disposto. Pae, foste cavaleiro.Aquele diz Itália onde é pousado; Hoje a vigilia é nossa.Este diz Inglaterra onde, afastado, Dá-nos o exemplo inteiro

E a tua inteira força!A mão sustenta, em que se apoia o rosto.Fita, com olhar sphyngico e fatal, Dá, contra a hora em que, errada,0 Ocidente, futuro do passado. Novos infieis vençam,0 rosto com que fita é Portugal. A benção como espada,

A espada como benção!

PRIMEIRO / ULISSESSÉTIMO (II) / D. FILIPA DE LENCASTRE

0 mito é o nada que é tudo.0 mesmo sol que abre os céus Que ENIGMA havia em teu seioÉ um mito brilhante e mudo Que só genios concebia?0 corpo morto de Deus, Que archanjo teus sonhos veio

Vellar, maternos, um dia?Vivo e desnudo.

Volve a sós teu rosto serio,Este, que aqui aportou, Princesa do Santo Gral,Foi por não ser existindo. Humano ventre do Imperio,Sem existir nos bastou. Madrinha de Portugal!Por não ter vindo foi vindoE nos creou.

QUINTA / D. SEBASTIÃO, REI DEAssim a lenda se escorre PORTUGALA entrar na realidade,

Louco, sim, louco, porque quiz grandezaE a fecundal-a decorre. Qual a Sorte a não dá.Em baixo, a vida, metade Não coube em mim minha certeza;De nada, morre. Por isso onde o areal está

Ficou meu ser que houve, não o que há.

TERCEIRO / O CONDE D. HENRIOUE Minha loucura, outros que me a tomemCom o que nella ia.

Todo começo é involuntario. Sem a loucura que é o homemDeus é o agente. Mais que a besta sadia,0 heroe a si assiste, vario Cadáver adiado que procria?E inconsciente.

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XI. A ULTIMA NAUVem, Galaaz com pátria, erguer de novo,

Levando a bordo El-Rei D. Sebastião, Mas já no auge da suprema prova,E erguendo, como um nome, alto o pendão A alma penitente do teu povoDo Império, À Eucharistia Nova.Foi-se a última nau, ao sol aziagoErma, e entre choros de ancia e de presago Mestre da Paz, ergue teu gladio ungido,Mysterio. Excalibur do Fim, em geito tal

Que sua Luz ao mundo divididoNão voltou mais. A que ilha indescoberta Revele o Santo Gral!Aportou? Voltará da sorte incertaQue teve?Deus guarda o corpo e a fórma do futuro, QUARTO / AS ILHAS AFORTUNADASMas Sua luz projecta-o, sonho escuroE breve. Que voz vem no som das ondas

Que não é a voz do mar?Ah, quanto mais ao povo a alma falta, É a voz de alguém que nos fala,Mais a minha alma atlantica. se exalta Mas que, se escutarmos, cala,E entorna,E em mim, num mar que não tem tempo ou spaço, Por ter havido escutar.Vejo entre a cerração teu vulto baço E só se, meio dormindo,Que torna. Sem saber de ouvir ouvimosNão sei a hora, mas sei que há a hora, Que ela nos diz a esperançaDemore-a Deus, chame-lhe a alma emboraMysterio. A que, como uma criançaSurges ao sol em mim, e a nevoa finda: Dormente, a dormir sorrimos.A mesma, e trazes o pendão ainda São ilhas afortunadasDo Imperio. São terras sem ter lugar,

PRIMEIRO / D. SEBASTIÃO Onde o Rei mora esperando.Mas, se vamos despertando

'Sperai! Cai no areal e na hora adversa Cala a voz e há só o mar.Que Deus concede aos seusPara o intervalo em que esteja a alma imersa QUINTO / O ENCOBERTOEm sonhos que são Deus.

Que símbolo fecundoQue importa o areal e a morte e a desventura Vem na aurora ansiosa?Se com Deus me guardei? Na Cruz Morta do MundoÉ O que eu me sonhei que eterno dura A Vida, que é a Rosa.É Esse que regressarei.

Que símbolo divinoTraz o dia já visto?

TERCEIRO / O DESEJADO Na Cruz, que é o Destino,A Rosa que é o Cristo.

Onde quer que, entre sombras e dizeres,Jazas, remoto, sente-te sonhado, Que símbolo finalE ergue-te do fundo de não-seres Mostra o sol já desperto?Para teu novo fado! Na Cruz morta e fatal

A Rosa do Encoberto.