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  • EXAME NACIONALDO ENSINO MDIO (ENEM)Fundamentao Terico-Metodolgica

  • Diretoria de Avaliao para Certificao de Competncias (DACC)Diretoria de Avaliao para Certificao de Competncias (DACC)Diretoria de Avaliao para Certificao de Competncias (DACC)Diretoria de Avaliao para Certificao de Competncias (DACC)Diretoria de Avaliao para Certificao de Competncias (DACC)

    Equipe TcnicaEquipe TcnicaEquipe TcnicaEquipe TcnicaEquipe TcnicaAtade Alves Diretor de Avaliao para Certificao de CompetnciasDorivan Ferreira Gomes Coordenador-Geral de ExamesDavid de Lima Simes Coordenador-Geral de Instrumentos e Medidas EducacionaisAlberto Gustavo Brusa GonzalezAlessandra Regina Ferreira AbadioClia Maria Rey de CarvalhoFtima Deyse Sacramento PorcidnioFrank Ney Sousa LimaGilberto Edinaldo MouraIrene Aparecida BragaKelly Cristina Naves PaixoJane Hudson de AbranchesMarcio Andrade MonteiroMaria Cndida Muniz TrigoMariana Ribeiro Bastos MigliariMaria Vilma Valente de AguiarMilena Castro AmorimSuely Alves WanderleyTereza Maria Abath Pereira

  • EXAME NACIONALDO ENSINO MDIO (ENEM)Fundamentao Terico-Metodolgica

    InepBraslia | DF | 2005

    INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISASEDUCACIONAIS ANSIO TEIXEIRA

  • COORDENADORA-GERAL DE LINHA EDITORIAL E PUBLICAES (CGLEP)Lia Scholze

    COORDENADORA DE PRODUO EDITORIALRosa dos Anjos Oliveira

    COORDENADOR DE PROGRAMAO VISUALF. Secchin

    EDITOR EXECUTIVOJair Santana Moraes

    REVISOSocorro BarbosaEveline de Assis

    NORMALIZAO BIBLIOGRFICARegina Helena Azevedo de Mello

    DIAGRAMAO E ARTE-FINALRaphael Caron Freitas

    TIRAGEM26.000 exemplares

    EDITORIAInep/MEC Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Ansio TeixeiraEsplanada dos Ministrios, Bloco L, Anexo I, 4 Andar, Sala 418CEP 70047-900 Braslia-DF BrasilFones: (61) 2104-8438, (61) 2104-8042Fax: (61) [email protected]

    DISTRIBUIOInep/MEC Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Ansio TeixeiraEsplanada dos Ministrios, Bloco L, Anexo II, 4 Andar, Sala 414CEP 70047-900 Braslia-DF BrasilFone: (61) [email protected]://www.inep.gov.br/publicacoes

    A exatido das informaes e os conceitos e opinies emitidos so de exclusiva responsabilidade dos autores.

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Ansio Teixeira

    Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Ansio Teixeira.Exame Nacional do Ensino Mdio (Enem): fundamentao terico-metodolgica /

    Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Ansio Teixeira. Braslia : O Instituto,2005.

    121 p. : il.

    1. Ensino mdio. 2. Avaliao da educao. I. Ttulo.CDU 373.2

  • Sumrio

    APRESENTAO ............................................................................................. 7

    1 EIXOS TERICOS QUE ESTRUTURAM O ENEM.............................. 11111111111.1 Competncias e habilidades: Elementos para

    uma reflexo pedaggica ........................................................... 1313131313Lino de Macedo

    1.2 A situao-problema como avaliaoe como aprendizagem ................................................................. 2929292929Lino de Macedo

    1.3 Propostas para pensar sobre situaes-problemaa partir do Enem............................................................................ 3737373737Lino de Macedo

    1.4 Interdisciplinaridade e contextuao ...................................... 4141414141Nlson Jos Machado

    2 ARTICULAO DO ENEM COM AS REASDE CONHECIMENTO CONTEMPLADAS NA REFORMADO ENSINO MDIO ................................................................................ 55555555552.1 A rea de Linguagens e Cdigos e suas Tecnologias

    no Enem .......................................................................................... 5757575757Zuleika de Felice Murrie

  • 2.2 O Enem e os objetivos educacionais da rea das Cincias da Natureza,Matemtica e suas Tecnologias no ensino mdio ......................................................... 6161616161Luiz Carlos de Menezes

    2.3 O Enem, as Cincias Humanas e suas Tecnologias ........................................................ 6565656565Raul Borges Guimares

    3 AS COMPETNCIAS DO ENEM....................................................................................................... 69696969693.1 Competncia I .......................................................................................................................... 7171717171

    Maria Ceclia Guedes CondeixaZuleika de Felice MurrieMaria da Graa Bompastor Borges DiasReginaldo Pinto de Carvalho

    3.2 Competncia II ......................................................................................................................... 7575757575Luiz Carlos de MenezesRegina Cndida Ellero GualtieriRaul Borges GuimaresJlio Csar Foschini LisboaMaria Regina Dubeaux Kawamura

    3.3 Competncia III ........................................................................................................................ 7979797979Lino de MacedoLeny Rodrigues TeixeiraEduardo Sebastiani FerreiraDalton Francisco de Andrade

    3.4 Competncia IV ........................................................................................................................ 8989898989Nlson Jos Machado

    3.5 Competncia V ......................................................................................................................... 9393939393Mrcio Constantino MartinoAngela Correa KrajewskiValdir Quintana Gomes JniorFortunato Pastore

    4 EIXOS METODOLGICOS DO ENEM ............................................................................................ 99999999994.1 Erros e acertos na elaborao de itens para a prova do Enem................................. 101101101101101

    Maria Eliza Fini4.2 Aspectos quantitativos da anlise dos itens da prova do Enem.............................. 107107107107107

    Dalton F. AndradeRuben Klein

    4.3 Metodologia de correo da Redao do Enem .......................................................... 113113113113113Reginaldo Pinto de Carvalho

    NOTA SOBRE OS AUTORES ............................................................................................................. 119119119119119

  • 7ENEM Fundamentao Terico-Metodolgica

    O Exame Nacional do Ensino Mdio (Enem), criado em 1998 peloInstituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Ansio Teixeira(Inep), do Ministrio da Educao, um exame individual e de cartervoluntrio, oferecido anualmente aos concluintes e egressos do ensinomdio, com o objetivo principal de possibilitar uma referncia paraauto-avaliao, a partir das competncias e habilidades que oestruturam. Alm disso, ele serve como modalidade alternativa ou com-plementar aos processos de seleo para o acesso ao ensino superior eao mercado de trabalho. Realizado anualmente, ele se constitui umvalioso instrumento de avaliao, fornecendo uma imagem realista esempre atualizada da educao no Brasil.

    O modelo de avaliao do Enem foi desenvolvido com nfasena aferio das estruturas mentais com as quais construmoscontinuamente o conhecimento e no apenas na memria, que,importantssima na constituio dessas estruturas, sozinha noconsegue fazer-nos capazes de compreender o mundo em que vive-mos. H uma dinmica social que nos desafia, apresentando novosproblemas, questiona a adequao de nossas antigas solues e exi-ge um posicionamento rpido e adequado ao cenrio de transforma-es imposto pelas mudanas sociais, econmicas e tecnolgicas comas quais nos deparamos nas ltimas dcadas. Este cenrio permeiatodas as esferas de nossa vida pessoal, mobilizando continuamentenossa reflexo acerca dos valores, atitudes e conhecimentos quepautam a vida em sociedade.

    Apresentao

  • ENEM Fundamentao Terico-Metodolgica8

    O objetivo do Enem medir e qualificar as estruturas responsveis por essas interaes.Tais estruturas se desenvolvem e so fortalecidas em todas as dimenses de nossa vida, pelaquantidade e qualidade das relaes que estabelecemos com o mundo fsico e social desde onascimento. O Enem focaliza, especificamente, as competncias e habilidades bsicas desen-volvidas, transformadas e fortalecidas com a mediao da escola.

    Para uma melhor compreenso desse processo, importante ressaltar que, conformedefinido no texto das Matrizes Curriculares de Referncias do Saeb, de 1998, entende-mos por

    [...] competncias cognitivas as modalidades estruturais da inteligncia aes e operaes que o sujeitoutiliza para estabelecer relaes com e entre os objetos, situaes, fenmenos e pessoas que deseja conhe-cer. As habilidades instrumentais referem-se, especificamente, ao plano do saber fazer e decorrem, direta-mente do nvel estrutural das competncias j adquiridas e que se transformam em habilidades (p. 9).

    Desta forma, e segundo consta do documento Enem 2002 Relatrio Pedaggico,

    [...] o Enem estruturado a partir de uma matriz que indica a associao entre contedos, competncias ehabilidades bsicas prprias ao jovem e jovem adulto, na fase de desenvolvimento cognitivo e socialcorrespondente ao trmino da escolaridade bsica. [...] Cada uma das cinco competncias que estruturamo exame, embora correspondam a domnios especficos da estrutura mental, funcionam de forma orgnicae integrada. E elas expressam-se, especificamente no caso do Enem, em vinte e uma habilidades (p. 14).

    [...]

    A concepo de conhecimento subjacente a essa Matriz pressupe colaborao, complementaridade eintegrao entre os contedos das diversas reas do conhecimento presentes nas propostas curriculares dasescolas brasileiras de ensino fundamental e mdio [...].O Enem busca verificar como o conhecimento assim construdo pode ser efetivado pelo participante pormeio da demonstrao de sua autonomia de julgamento e de ao, de atitudes, valores e procedimentosdiante de situaes-problema que se aproximem, o mximo possvel, das condies reais de convvio sociale de trabalho individual e coletivo (idem, p. 17).

    A anlise dos resultados do desempenho dos participantes do Enem permite a identifi-cao de lacunas em seu aprendizado e, tambm, das potencialidades que ele apresenta aofinal da escolaridade bsica.

    A mobilizao de conhecimentos requerida pelo exame manifesta-se por meio da estrutura de competn-cias e habilidades do participante que o possibilita ler (perceber) o mundo que o cerca, simbolicamenterepresentado pelas situaes-problema; interpret-lo (decodificando-o, atribuindo-lhe sentido) e, sentin-do-se provocado, agir, ainda que em pensamento (atribui valores, julga, escolhe, decide, entre outrasoperaes mentais) (idem, p. 38).

    Desde sua primeira edio, o exame conta com a parceria das Secretarias Estaduais deEducao, Secretarias de Segurana Pblica e, em especial, com Instituio de Educao Supe-rior que, desde ento, vm utilizando seus resultados como forma alternativa ou complemen-tar aos seus processo de seleo. Inicialmente teve 150 mil participantes e, atualmente, contacom mais de um milho e meio de jovens realizando a prova. Neste ano, com a instituio doPrograma Universidade para Todos (Prouni) e a determinao da utilizao do Enem comoinstrumento de seleo dos jovens que desejem concorrer s bolsas, a abrangncia do examedeve aumentar ainda mais.

    O Enem tem, ainda, papel fundamental na implementao da Reforma do Ensino M-dio, ao apresentar, nos itens da prova, os conceitos de situao-problema,interdisciplinaridade e contextualizao, que so, ainda, mal compreendidos e pouco habi-tuais na comunidade escolar. A prova do Enem, ao entrar na escola, possibilita a discussoentre professores e alunos dessa nova concepo de ensino preconizada pela LDB, pelosParmetros Curriculares Nacionais e pela Reforma do Ensino Mdio, norteadores da concep-o do exame.

    Assim, ao publicarmos os textos elaborados pelos autores da Matriz do Enem, com aconcepo terico-metodolgica do exame, esperamos contribuir para uma melhor compreenso

  • 9ENEM Fundamentao Terico-Metodolgica

    dos eixos cognitivos que o estruturam e, mais do que isso, na medida em que professores,educadores, pesquisadores e o pblico em geral a eles tenham acesso, possam discutir e melhorrefletir sobre o significado de seus resultados ao longo desses oito anos de avaliao.

    Atade AlvesDiretor de Avaliao de Certificao de Competncia

  • 1 EIXOS TERICOS QUEESTRUTURAM O ENEM

  • 13ENEM Fundamentao Terico-Metodolgica

    1.1 Competncias e habilidades:Elementos para uma reflexo pedaggica

    Lino de Macedo

    Em textos sobre Educao freqente, hoje, o uso dos termos com-petncias e habilidades. Por isso, o propsito aqui ser analisar, na pri-meira parte, algumas razes para a importncia atual dessas noes eoferecer, quem sabe, elementos para uma reflexo pedaggica sobre osignificado de considerarmos a educao na perspectiva desses dois dom-nios. Na segunda parte do texto, o objetivo ser analisar um pouco odesenvolvimento de competncias e habilidades em relao autonomia,diversidade, disponibilidade para aprendizagem, interao e cooperao,organizao do espao, organizao do tempo e seleo de material.

    Por que competncias e habilidades, hoje?

    Para situar o tema, consideremos, por exemplo, um jogo de per-curso em que uma criana convidada a movimentar uma pea de umponto de partida at um ponto de chegada. O percurso compartimentado, ou seja, dividido em unidades, sendo que em algu-mas delas inscrevem-se tarefas como voltar casa 10, perder a vez,etc. Os dados definem o nmero de passos a seguir. Nesse tipo de jogo,

  • ENEM Fundamentao Terico-Metodolgica14

    ento, prope-se um problema a ser resolvido: realizar um percurso, seguindo as regras, en-frentando e superando os obstculos propostos.

    Por analogia, podemos pensar a educao fundamental, hoje, como um jogo de percur-so em que a todas as crianas foi atribudo o direito de o fazerem. Algumas faro o percurso,isto , cursaro as oito sries de modo fcil, rpido e sem muitos problemas. Outras experimen-taro muitas idas e vindas, e os dados, ou seja, as contingncias para a realizao do percurso,s vezes ajudaro muito, s vezes ajudaro pouco, alm disso, as tomadas de deciso, as estra-tgias, as tticas, as regras, etc. No contexto desse jogo, sofrero toda a sorte de variao oumanipulao, algumas vezes, a favor do jogo, outras vezes, contra.

    O direito de todas as crianas percorrerem os ciclos que compem a escola fundamental uma conquista recente e importante. Est expresso, por exemplo, na Declarao dos DireitosHumanos (1948), no Estatuto da Criana e do Adolescente (1990), em nossa atual ConstituioBrasileira (1988) e, mais recentemente, na Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional (1996).Com isso, pretende-se que a escola seja para todos e que nela as crianas possam formarvalores, normas e atitudes favorveis sua cidadania e dominarem competncias e habilidadespara o mundo do trabalho e da vida social, nos termos em que hoje se expressam.

    Nem sempre a escola foi aberta para todos. Tnhamos antes, como ainda temos agora,uma escola da excelncia que seleciona, orienta, ensina e certifica apenas as pessoas que con-seguem realizar tarefas e que apresentam uma conduta condizente com o alto nvel exigidopor elas. Essa escola da excelncia, no sem razo, ainda que pouco acessvel maioria de ns,tornou-se nossa referncia principal, o sonho ou a aspirao de pais e crianas. Muitos pro-fessores, igualmente, gostariam de trabalhar nesse tipo de escola ou que seus alunos tivessemum comportamento compatvel com as exigncias dela. Mas a realidade nos diz que na escolada excelncia poucas crianas tm condies de entrar, menos ainda de permanecerem nela oude serem bem-sucedidas nas muitas provas e desafios que tero que enfrentar.

    Na escola da excelncia, certos domnios no plano da conduta ou convivncia social(educao, respeito, disciplina, limites, etc.) e no plano intelectual (estudo, compreenso, rea-lizao das tarefas) so condies prvias ou pr-requisitos fundamentais. Espera-se que osalunos tenham isso de partida e que continuem assim durante toda a trajetria escolar. Se nocaminho alguns se desviam ou perdem tais virtudes tero que se recuperar logo, ao preo deserem excludos e virem fracassados seus objetivos. Por suposto, a escola da excelncia fazmuito bem sua parte: oferece bons professores, utiliza os melhores livros ou materiais, orienta,aconselha, d oportunidades, enfim exigente, mas generosa nos recursos a serem aproveita-dos pelos alunos.

    Na escola para todos, por definio, as qualidades selecionadas e valorizadas na escolada excelncia so referncias ou qualidades desejadas, mas no definem o ponto de partida,nem a condio para a realizao do percurso. Na escola para todos, podem entrar crianascom toda a sorte de limitaes ou dificuldades. Seus pais, sua condio de vida, podem tertodas as combinaes ou formas de expresso, no importando se isso ser favorvel ou no aotrabalho escolar. Na escola para todos, as dificuldades em realizar o percurso motivo deinvestigao das estratgias, que complementam o ensino no horrio regular das aulas, dereviso das condies que dificultam o aproveitamento escolar das crianas.

    Na escola da excelncia, competncias e habilidades, nos termos em que analisaremosmais adiante, so meios para outros fins: a erudio, o aperfeioamento, o domnio das mat-rias ou disciplinas, a realizao de metas ou trabalhos de ponta. Na escola para todos, compe-tncias e habilidades so o prprio fim e, nela, as matrias ou atividades escolares so os meiosque possibilitam sua realizao.

    Assim, podemos concluir que a escola da excelncia melhor do que escola para todos?Penso que essa no uma boa pergunta, porque pressupe a ausncia da excelncia na escolapara todos ou a ausncia de problemas ou dificuldades na escola da excelncia. Alm disso,no uma boa pergunta porque compara, pedindo escolha, dois valores a excelncia e aequanimidade igualmente fundamentais. O primeiro, porque nos d o direito de sermosmelhores do que j somos, como expresso de nossa necessidade e possibilidade de aperfeio-amento na luta da vida contra a morte (injusta e sem sentido), doena, misria, sofrimento ouignorncia. Em outros termos, temos o direito de viver em favor da sade, do conforto, daalegria, da liberdade e do amor ao conhecimento. O segundo, porque abre, sem privilgio ou

  • 15ENEM Fundamentao Terico-Metodolgica

    condies, a possibilidade de todos freqentarem a escola e nela realizarem, por direito, suaformao. Alm disso, a escola para todos pode revelar ou formar, por certo, muitos alunos quepossuem ou aprendem as qualidades da excelncia. Ser excelente ou continuar assim, mor-mente em uma sociedade competitiva e tecnolgica, como a nossa, muito difcil e muitosperdero essa condio, muitos no suportaro o peso da concorrncia, mesmo na escola.

    Exerccio ou problema?

    Aproveitemos a situao para uma reflexo sobre a diferena entre exerccio e proble-ma. O jogo, acima proposto, um jogo de exerccio ou de problemas? E o que exatamentesignifica exerccio? Consideremos o ato de caminhar. Caminhar um exerccio quando jadquirimos essa habilidade. O exerccio supe, ento, a repetio de uma aquisio motora,no caso de uma habilidade que, para aquele que a executa, no constitui um problema. Oexerccio, nesse caso, corresponde a um meio para outra finalidade, por exemplo, fazer o cora-o trabalhar mais, do ponto de vista cardiovascular. Com isso, o exerccio ajuda a combaterproblemas cardacos, obesidade, estresse, etc.

    O caminhar, no caso indicado acima, no um problema em si, pois se trata de repetirum padro, um esquema ou hbito j aprendido. Porm, no decorrer do percurso, podem-seenfrentar problemas. Por exemplo: ter de atravessar uma rua movimentada e obrigar-se a estaratento aos veculos, para no se acidentar; evitar o possvel ataque de um cachorro, no sedeixar distrair pelas coisas interessantes vistas ao longo do caminho, etc. Esses so exemplos deproblemas porque implicam situaes inesperadas, implicam resolver ou decidir sobre vari-veis no-previstas no esquema do caminhar. Esses problemas, como no jogo que lembramosacima, so obstculos ao longo do percurso, que pedem, como usual em situaes problem-ticas, interpretao do desafio proposto no contexto, planejamento da soluo ou das solu-es possveis, execuo da soluo planejada e avaliao dos resultados. Tudo isso no mo-mento em que se realiza a atividade. Ou seja, problema aquilo que se enfrenta e cuja soluo,j conhecida ou incorporada, no suficiente, ao menos como contedo. Explico: h proble-mas que nos desafiam no pela forma, porque essa j conhecida, mas pelo seu contedo, que novo, inusitado, singular, original. No assim, na resoluo de palavras cruzadas? Sabemos,por experincia prvia, em que consiste o problema e como se deve resolv-lo, mas no conhe-cemos a soluo para aquele problema particular, com cujo contedo estamos entrando emcontato nesse momento.

    Penso que vale a pena insistir na distino entre exerccio e problema porque, algumasvezes, nas escolas e nos livros didticos, problemas e exerccios so tratados como se fossemequivalentes. Voltemos ao jogo de percurso. Uma coisa seu uso como recurso para exercitarclculos que a criana j aprendeu e que pode fortalecer por intermdio desse jogo. Outra,so os problemas propostos no contexto do jogo ou mesmo de certos tipos de clculos queimplicam tomadas de deciso, correr riscos, etc. importante termos em conta que o clculopode no ser o problema, ainda que faa parte de sua soluo ou corrobore para ela. Em outraspalavras, o exerccio fazer contas; o problema realizar uma conta para a qual no se estavasuficientemente preparado, porque de um outro tipo, tem uma estrutura mais complexa,coloca uma dificuldade a mais, etc.

    Em sntese, exerccio o repetir, como meio para uma outra finalidade: por exemplo,caminhar para promover um trabalho cardiovascular. Problema o que surpreende nesse exer-ccio, o novo, o que supe inveno, criatividade, astcia. certo, tambm, que, dependendoda forma como proposto, o exerccio pode configurar um problema.

    Seria, ento, possvel perguntar se as questes so formas de exerccio ou de problema,alis, uma boa pergunta. H questes que tm sentido de questo, mas h outras, por exemplo,que propem cpia ou algo no desafiador. Ou seja, uma pergunta pode ter vrias intenes:pedir conselho, falar mais sobre o assunto, suspender um juzo sobre o que est sendo analisa-do, fazer comparaes. Certas questes sugerem bons problemas, outras no. Por exemplo, hquestes que propem bons problemas para o professor, mas no necessariamente para osalunos a quem so dirigidas. O importante que a questo faa gerar um desejo ou umanecessidade que s o trabalho de encontrar uma soluo possa satisfazer. fundamental, ainda,

  • ENEM Fundamentao Terico-Metodolgica16

    que a questo proponha um desafio que possa proporcionar ao sujeito que o experimentaalgo no mnimo original, criativo ou surpreendente. Convenhamos, na escola nem sempresabemos fazer isso.

    Um comentrio freqente dos professores que, muitas vezes, o aluno no consegueler um problema de matemtica como um problema, ou seja, a pergunta ou tarefa propos-ta no implica um desafio. A criana, no caso, no sabe interpretar o que est sendoproposto, pois lhe falta, s vezes, perspiccia para captar o sutil, o fator problemtico daquesto. certo, tambm, que professores no investem, s vezes, muito tempo na leitura,discusso e anlise do problema proposto, deixando que o aluno faa isso por si mesmo.Outras vezes, o problema est mal formulado, o que dificulta sua proposio como tal. Porisso, penso que poderia ser proveitoso, em uma reunio de professores, discutir, por exem-plo, uma prova que foi dada aos alunos. As tarefas estavam bem propostas? O texto estavaclaro, interessante, bem escrito? Por que certos erros aconteceram nas respostas ou inter-pretao dos alunos?

    Ter sede pode ser uma questo, mas pode no constituir um obstculo, pois h guadisponvel, o sujeito sabe pr gua no copo, sabe lev-lo boca, sabe beber. H um caminhoa percorrer (como no jogo de percurso), mas para o qual todos os passos esto j, de certaforma, resolvidos por antecipao, basta execut-los. Em outras palavras, uma questo podeimplicar obstculos ou no.

    Durante uma aula sobre esse tema, uma aluna mostrou-me o seguinte exemplo: seusobrinho fazia uma lio de matemtica, que tinha o seguinte enunciado: Fulano tem 17 selosa mais que Beltrano. Juntando-se os selos de ambos, quantos selos haver no total? Lendo oproblema, ele conclui rapidamente que era tudo continha de mais. A questo : isso pro-blema ou no? Penso que um problema na perspectiva do professor e na perspectiva do queest proposto no texto. Mas, suponho que no seja na perspectiva do aluno, a julgar pelaforma imediata e irrefletida com que concluiu tratar-se apenas de fazer continhas de mais.Um problema supe um projeto mais complexo, que envolve, para seguir o esquema clssicode Polya, interpretao da questo proposta, planejamento, execuo e avaliao. Envolvetambm ateno, malcia, esprito crtico e reflexo. Essas atitudes aparentemente no estavampresentes na resposta imediata e fcil da criana citada por minha aluna.

    Um dos problemas mais difceis hoje para os professores o que se tem chamado degesto da sala de aula. Ou seja, a organizao temporal e espacial das atividades, a seleo emanipulao dos materiais didticos e a coordenao das atividades que dizem respeito aosalunos e professores, visando ao ensino e aprendizagem. Os professores queixam-se de queos alunos no aprendem, fazem baguna, so mal-educados, irreverentes. Queixam-se, tam-bm, da insuficincia de recursos para resolver esses problemas. Sentem-se impotentes e de-samparados. Como transformar tudo isso em um problema no sentido legtimo do termo? Taisdificuldades se converteriam em objeto de discusso se, conversando com o orientador oudiscutindo a questo com colegas, fosse possvel planejar, no sentido de projeto pedaggico,um trabalho visando superao dessas dificuldades: discutindo estratgias, compartilhandosituaes comparveis, planejando formas de soluo, avaliando o sucesso ou fracasso dasiniciativas j tomadas, refletindo sobre os fatores que produzem tais dificuldades, lendo umtexto ou ouvindo uma palestra relacionada ao tema em discusso. Lamentos e queixas no soproblemas no sentido que queremos aqui valorizar. Uma queixa tem cara de problema, masno um problema. s uma queixa, algo muito desagradvel, apenas isso. Existe um proble-ma quando se transforma a queixa em um desafio a ser superado. s vezes, um bom problemacomea com uma queixa. Ento, o desafio o de transform-la em um problema. E isso tam-bm problemtico! Transformar uma queixa ou dificuldade em problema sair de uma posi-o em que esses fatores funcionam como adversrios ou competidores de nossos objetivospara uma posio em que se tornam cooperativos e participativos, ou seja, adquiram umafuno construtiva.

    Penso ser til essa reflexo, porque usualmente na escola associamos a palavra problemaapenas disciplina de Matemtica. A Editora Artes Mdicas publicou recentemente a traduode um livro organizado por Juan Ignazio Pozo, que se chama Soluo de Problemas. H nessetrabalho captulos sobre problemas em outras reas: nas Cincias Sociais, Biologia, Histria,Geografia. Muitos de meus comentrios, alis, foram inspirados pela leitura desse livro.

  • 17ENEM Fundamentao Terico-Metodolgica

    Competncias e Habilidades

    Por que decidi, em um texto sobre competncias e habilidades, iniciar comentando so-bre soluo de problemas? Para responder a essa questo talvez valha a pena mais uma peque-na digresso.

    At pouco tempo, a grande questo escolar era a aprendizagem exclusiva ou preferen-cial de conceitos. Estvamos dominados pela viso de que conhecer acumular conceitos; serinteligente implicava articular logicamente grandes idias, estar informado sobre grandes co-nhecimentos, enfim, adquirir como discurso questes presentes principalmente em textos eru-ditos e importantes. Nesses termos, dar aula podia ser para muitos professores um exercciointelectual muito interessante. O problema que muitos alunos no conseguem aprendernesse contexto, nem se sentem estimulados a pensar, pois sua participao nesse tipo de aulano to ativa quanto poderia ser.

    Hoje, essa forma de competncia continua sendo valorizada, principalmente, no meiouniversitrio. Mas, com todas as transformaes tecnolgicas, sociais e culturais, uma questoprtica, relacional, comea a impor-se com grande evidncia. Temos muitos problemas a resol-ver, muitas decises a tomar, muitos procedimentos a aprender. Isso no significa, obviamente,que dominar conceitos deixou de ser importante.

    Esse tipo de aula, insisto, continua tendo um lugar, mas cada vez mais torna-se neces-srio tambm o domnio de um contedo chamado de procedimental, ou seja, da ordemdo saber como fazer. Vivemos em uma sociedade cada vez mais tecnolgica, em que oproblema nem sempre est na falta de informaes, pois o computador tem, cada vez mais, opoder de process-las, guard-las ou atualiz-las. A questo est em encontrar, interpretaressas informaes, na busca da soluo de nossos problemas ou daquilo que temos vontadede saber.

    Se queremos escrever um texto no computador, o programa, isto , o processador detextos est preparado para realizar muitas operaes e nos oferece muitas possibilidades desoluo. Alm disso, como usual atualmente, antes que tenhamos explorado todos os recur-sos de um programa, surge uma nova verso. Como nem sempre possvel dispor de um pro-fessor que nos ensine, pois tambm novidade para ele e, como fica muito caro contratar umprofessor, temos de aprender, sozinhos, ajudados pelo manual. Hoje, temos, de aprender aaprender. Hoje, competncias e habilidades que as expressam so mais fundamentais do quea excelncia na realizao de algo sempre superado ou atualizado por uma nova verso ou pornova necessidade ou problema.

    No tempo em que a escola - mesmo as pblicas - no era para todos, manter adisciplina, como problema de gesto de sala de aula, talvez no tivesse a dimenso quetem hoje. Rigor, expulso (ou sua ameaa), castigos fsicos, cumplicidade da famlia com asestratgias usadas pelo professor garantiam, talvez de forma mais imediata e eficaz, queos alunos se mantivessem quietos enquanto o professor dava as lies. Hoje, que a escolafundamental obrigatria para todas as crianas, manter a classe interessada nas propos-tas do professor concorre com e, muitas vezes, perde para tudo o que em contraposio osalunos insistem em fazer. No por acaso, sabe-se que freqentemente os professores gas-tam mais da metade do tempo da aula tentando manter um nvel de disciplina favorvel aprendizagem. Ou seja, ensinar conceitos ou clculos concorre com conversas paralelas,risadas e brincadeiras. O professor, alm do compromisso de ensinar fatos e conceitos,deve saber manter a disciplina na sala de aula, envolver os alunos e conseguir que sejamcooperativos e faam as tarefas. Ora, uma coisa a competncia do professor para exporum tema, outra sua habilidade ou competncia para conquistar o interesse das crianase envolv-las nas propostas de sala de aula. Por isso, esse contedo gesto da sala deaula hoje considerado to importante.

    Um outro exemplo: um aluno pode no se sair bem em geografia porque no aprendeuos conceitos dessa disciplina, mas tambm porque no sabe estudar, nem se organizar emtermos de espao, tempo ou outros aspectos materiais.

    O que resulta dos comentrios acima que, na perspectiva do professor, o desafio, hoje, coordenar o ensino de conceitos e gesto de sala de aula - a compreendidas aprendizagensde procedimentos, valores, normas e atitudes.

  • ENEM Fundamentao Terico-Metodolgica18

    As trs formas de competncia

    Passemos agora ao objetivo principal desse texto: fornecer elementos para uma reflexopedaggica sobre significados de competncias e habilidades.

    Para isso, lembro um pedido feito a uma orientadora pedaggica: que se lembrasse dealgum considerado como bom professor. Que competncias ela lhe atribua? Diante dessapergunta, a orientadora indicou uma colega, justificando sua escolha pelas seguintes razes:sua capacidade de desenvolver os contedos escolares, de saber desafiar seus alunos; por sercomprometida, responsvel e por saber manejar bem a sala de aula. Em resumo, ela era umexemplo de professora que enfrentava e superava os desafios, para que assim pudesse ensinare aprender; era uma pessoa culta, estudiosa e que investia em sua formao.

    Perguntando a professores sobre palavras associadas competncia, deles ouvi as se-guintes: capacidade, desempenho, domnio. Perguntando a uma professora se era competentecomo cozinheira, essa disse que no, porque no tinha pacincia com fogo.

    Proponho que competncia seja entendida de trs modos, muito interessantes e comuns.Competncia como condio prvia do sujeito, herdada ou adquirida. comum definir

    competncia como capacidade de um organismo. Saber respirar, mamar, por exemplo, socapacidades herdadas. Nascemos com competncia comunicativa, isto , herdamos nossa apti-do para a linguagem. Ao mesmo tempo, temos de adquirir competncia em uma ou maislnguas, pois essas no so herdadas, mas aprendidas e se constituem patrimnio de nossacultura e de nossa possibilidade de comunicao.

    Nesse caso, competncia e desempenho so dimenses diferentes. O caminhar concreto,em uma determinada situao e em funo de certa necessidade, no comparvel capacida-de de caminhar, independentemente de que o desempenho dessa capacidade esteja ocorrendoou no, ou seja: ter capacidade de caminhar no caminhar.

    Competncia, nesse primeiro sentido, significa, muitas vezes, o que se chama de talento,dom ou extrema facilidade para alguma atividade. H professores cuja competncia para ensi-nar decorre dessa facilidade. como se fosse uma condio prvia, herdada ou aprendida.Aprendida porque, uma vez que algum consegue um diploma ou declarado formado ouhabilitado para certa funo como se, imediatamente, isso se tornasse um patrimnio seu.

    Esse primeiro sentido de competncia implica uma idia de dependncia ou condio.Qualquer criana que nasa em nosso Pas tem de adquirir competncia para ler e escrever,caso contrrio, ser excluda de muitas situaes. Quando uma escola contrata um novo pro-fessor, avalia se esse tem competncia para ensinar, ou seja, leva em conta seu currculo paracontrat-lo. De preferncia, seleciona um professor com essa competncia j adquirida emoutras escolas, porque, nesse caso, interessa algum j experiente.

    Essa primeira forma de competncia no significa apenas formas de aquisio, mas tam-bm pode se referir a uma perda - permanente ou transitria - de competncia. Por exemplo,podemos perder ou diminuir nossa capacidade respiratria ou condio para realizar certatarefa. Em caso de acidente, podemos perder nossa possibilidade de locomoo. Da mesmaforma, um professor pode, por diversos fatores, perder sua competncia didtica.

    Competncia como condio do objeto, independente do sujeito que o utiliza. Refere-se competncia da mquina ou do objeto. Por exemplo, a competncia ou habilidade de ummotorista no tem relao direta com a potncia de seu automvel. O mesmo acontece comrelao aos computadores e seus usurios. Uma coisa nossa condio de operar certo progra-ma. Outra a potncia do computador, sua velocidade de processar informaes, memria.

    Na escola, essa forma de competncia est presente, por exemplo, quando julgamos umprofessor pela competncia do livro que adota, da escola em que leciona, do bairro onde mora.

    muito comum, julgarmos uma criana tomando por base a escola em que estuda. Nessecaso tambm, trata-se de uma competncia do objeto, pois esse que independente do sujei-to, ainda que possa dar uma informao a respeito daquele que o utiliza. O mesmo vale, parao livro que o professor usa em sala de aula, como um dos indicadores da qualidade de seuensino. Para citar um outro exemplo, a qualidade que se atribui aos itens de uma prova no serelaciona, necessariamente, com competncia ou habilidade dos que a respondem.

    Competncia relacional. Essa terceira forma de competncia interdependente, ou seja,no basta ser muito entendido em uma matria, no basta possuir objetos potentes e adequados,

  • 19ENEM Fundamentao Terico-Metodolgica

    pois o importante aqui como esses fatores interagem. A competncia relacional expressaesse jogo de interaes. comum na escola um professor saber relatar bem um problema queest acontecendo em sala de aula, mas na prpria aula no saber resolver situaes relaciona-das com a indisciplina, espao ou tempo.

    Numa partida de futebol, para fazer gol, no basta que o jogador saiba chutar a gol,fazer embaixadas, correr com a bola no p, necessrio que saiba coordenar tudo isso nomomento da partida.

    No caso de uma conferncia, a qualidade do texto (competncia do objeto) no condi-o suficiente para que ela atinja os objetivos do conferencista, necessrio fazer uma boaleitura (competncia do sujeito), considerando as reaes da platia, o ritmo, as pausas, etc.(competncia relacional).

    A situao de jogo um bom exemplo de competncia relacional, pois essa forma sem-pre se expressa em um contexto de interdependncia. No se ganha o jogo na vspera, comose diz usualmente. Na vspera, h muitas aes que se podem realizar (treinar, estudar outraspartidas, etc.), mas so as leituras ou interpretaes, no momento do jogo propriamente dito,as tomadas de deciso, as coordenaes entre ataque e defesa que definiro as possibilidadesde ganhar ou perder. Por isso, o jogo uma boa metfora para tantas outras situaes que,como ele, dependem de competncia relacional. A sala de aula um bom exemplo disso. Muitose pode e deve fazer previamente: estudar, preparar e selecionar materiais, escrever o texto oudefinir o esquema a ser seguido. Mas h outros fatores que s podem e devem ser definidos nomomento da aula, em funo de outros que no se podem antecipar, justamente porque soconstrudos no jogo das interaes entre o professor, seus alunos e os materiais de ensino.Como desenvolver competncia relacional? Como articular as trs formas de competncia?

    As trs formas de competncia, acima descritas, na prtica no se anulam necessariamen-te, pois se referem a dimenses diferentes e complementares de uma mesma realidade.

    O elemento surpresa, que caracteriza um dos aspectos da competncia relacional, no deveser confundido com improvisao ou impossibilidade de antecipao; indica, apenas, que certosaspectos s acontecem em contexto interativo: so produes coletivas, que no esto nesse ounaquele termo em particular, mas que correspondem coordenao de perspectivas ou a algo que resultante da multiplicidade constitutiva dos objetos produzidos em um contexto de construo.

    A formao do professor, essa necessidade to legitimamente valorizada hoje em dia,pode ser um bom exemplo desse tipo de competncia. Que aspectos de sua formaocorrespondem ao desenvolvimento de uma competncia do sujeito? Quais aspectos so com-petncia do objeto? Quais so da relao sujeito-objeto? Quanto a essa ltima forma, o pro-blema que s podemos dar coordenadas, discutir, a posteriori, casos ilustrativos, confiandoque o professor, beneficiado por essas reflexes, ir melhorar sua competncia em outras situ-aes. Por isso, insuficiente, como formao apenas, fornecer elementos tericos ao professorou lhes indicar boas leituras. importante, tambm, analisar situaes prticas em que o as-pecto relacional possa ser analisado.

    Competncia e habilidade

    A diferena entre competncia e habilidade, em uma primeira aproximao, depende dorecorte. Resolver problemas, por exemplo, uma competncia que supe o domnio de vriashabilidades. Calcular, ler, interpretar, tomar decises, responder por escrito, etc., so exemplosde habilidades requeridas para a soluo de problemas de aritmtica. Mas, se samos do con-texto de problema e se consideramos a complexidade envolvida no desenvolvimento de cadauma dessas habilidades, podemos valoriz-las como competncias que, por sua vez, requeremoutras tantas habilidades.

    Qual a diferena entre competncia e habilidade de ler? Saber ler, como habilidade, no o mesmo que saber ler como competncia relacional. Em muitas situaes (quando temos deler em pblico, por exemplo), ou no sabemos ler, ou temos dificuldades para isso. Comocoordenar as perspectivas do texto, dos ouvintes e do leitor? Todos conhecemos escritoresbrilhantes, mas que no so bons conferencistas. Na escola ocorre algo semelhante quando setrata de ler poesias ou contar histrias: nem todos os professores sabem como faz-lo.

  • ENEM Fundamentao Terico-Metodolgica20

    O mesmo ocorre na transmisso de um contedo no contexto da sala de aula. H profes-sores que sabem faz-lo de forma agradvel, comunicativa, com entusiasmo e competncia. Osalunos, certamente, participam, envolvem-se, sentem-se includos, encantados (e, a seu modo,agradecem).

    Para dizer de um outro modo, a competncia uma habilidade de ordem geral, enquan-to a habilidade uma competncia de ordem particular, especfica. A soluo de um problema,por exemplo, no se reduz especificamente aos clculos que implica, o que no significa dizerque o clculo no seja uma condio importante. Igualmente, ainda que escrever a respostano corresponda a tudo que est envolvido na soluo de um problema, uma habilidadeessencial. O mesmo se pode dizer do tempo entre a leitura e a proposio da resposta, porexemplo.

    Voltando ao jogo de percurso. H muitas habilidades envolvidas em sua soluo: ficarno caminho, jogar os dados, ler os nmeros do dado, caminhar em funo dos pontos, etc.Quanto tomada de deciso (o que melhor fazer em face das circunstncias, de que momen-to do jogo e seu objetivo) penso que se refere a uma competncia relacional. Ou seja, ashabilidades so necessrias, mas no suficientes, ao menos na perspectiva relacional.

    Para comunicar-se bem em uma palestra, apenas saber ler uma condio insuficiente,pois h uma conjuno de fatores que so de outra ordem. O que no quer dizer que compe-tncia seja apenas um conjunto de habilidades: mais do que isso, pois supe algo que no sereduz soma das partes.

    Na viso relacional de competncia aqui proposta, se os alunos no aprenderam por-que o professor no ensinou, independentemente de sua competncia pessoal no domnio doscontedos e do valor, de verdade, de sua exposio.

    Competio, competncia e concorrncia

    Como analisar os termos competncia, competio e concorrncia, em uma perspectivarelacional?

    Competio. Competir quer dizer com-petir, isto , pedir junto. O prefixo com sig-nifica ao mesmo tempo, simultaneamente. O radical petir significa pedir. Filhos, marido, tele-fone, etc., muitas vezes pedem ao mesmo tempo a ateno da mesma pessoa (a me, a esposa,a filha, sintetizadas numa nica mulher). No lhe possvel atender igualmente a todos. Numasala de aula, por exemplo, alunos, diretora, orientadora, horrio, agenda de trabalho referem-se s mltiplas tarefas de que a professora deve cuidar de preferncia, ao mesmo tempo.Ento, ao que dar prioridade; que decises tomar? Jogadores, adversrios em uma mesmapartida, pedem igualmente a vitria, mesmo sabendo que ela caber a apenas um deles.

    Concorrncia. Competio refere-se a um contexto de escassez, de limitao, quanto aofim buscado e ao de multiplicidade ou diversidade quanto aos que pretendem esse fim ou aosnecessitados dele. Concorrer quer dizer correr junto dirigir-se para o mesmo ponto. Comocuidar, simultaneamente, (porque tudo importante, esperado, desejado) da vida pessoal,profissional, familiar, etc.? Ou seja, em termos de concorrncia, no se trata de optar ou con-quistar um aspecto em detrimento de outros (como ocorre na situao de competio), mas deresponder adequadamente multiplicidade das tarefas, de atender a tudo, pois tudo tem deser atendido. o caso, por exemplo, da situao de sala de aula. O professor espera-se devecuidar adequadamente da multiplicidade de aspectos importantes (contedo a ser ensinado,interesses e necessidades de cada aluno, horrio, etc.). Lembro esses exemplos para dizer que,na perspectiva da concorrncia, muitos fatores, cada qual com sua importncia particular,correm juntos. No correto dizer que competem, nos termos lembrados acima, mas que con-correm, porque todos necessitam ser atendidos e considerados.

    Competncia. Como coordenar competio com concorrncia? Com competncia. Com-petncia, em sua perspectiva relacional, uma equao que expressa o equilbrio entre doisopostos complementares. A competio como fim buscado (necessidade), e a concorrncia comorepertrio (disponibilidade) de coisas independentes quanto a um fim particular, mas que, naperspectiva do sujeito, qualificam os meios de certa realizao. Habilidades, nesse sentido, soconjuntos de possibilidades, repertrios que expressam nossas mltiplas, desejadas e esperadas

  • 21ENEM Fundamentao Terico-Metodolgica

    conquistas. Competncia o modo como fazemos convergir nossas necessidades e articulamosnossas habilidades em favor de um objetivo ou soluo de um problema, que se expressa numdesafio, no redutvel s habilidades, nem s contingncias em que certa competncia requerida.

    Competncia, como sntese de uma situao plena de concorrncias, pode serexemplificada em situaes como as que ocorrem no dia-a-dia das salas de aula, quando oprofessor deve ao mesmo tempo, considerar a disciplina dos alunos, a programao, o baru-lho, o horrio, a seqncia dos contedos a serem ensinados, etc., em um contexto de concor-rncia (cada fator importante) e competio (muitos sero chamados, poucos os escolhidos) realizar bem seu compromisso pedaggico.

    Algumas pessoas, nesse contexto de concorrncia e competio, saem-se bem: adminis-tram a escassez de recursos e condies, do uma fora para os pais e amigos, sustentam acasa, so boas mes ou pais, etc., isto , so competentes. Outras pessoas no sobrevivem;muitas crianas no suportam a concorrncia, nem a competio.

    O mesmo ocorre na soluo de um problema, muitos fatores competem, isto , disputamentre si; pois esto disposio do sujeito, j existem para ele. Competncia a habilidade,uma qualidade geral, uma estrutura que coordena, articula de modo interdependente todos esses fatores.

    Competncia a qualidade relacional de coordenar a multiplicidade (concorrncia) unicidade (competio). Para isso, supe habilidade de tratar ao mesmo tempo diferentesfatores em diferentes nveis. o que acontece com uma me, que enquanto amamenta o filhopequeno, ajuda (verbalmente) o filho maior a fazer a lio. Ou seja, cumpre tarefas, ao mesmotempo, em nveis diferentes (um fsico e prximo, outro verbal e distante).

    O mesmo vale para o professor, que deve ter um repertrio de estratgias para lidar aomesmo tempo com muitos desafios, lidar com os recursos didticos, ter perspiccia e mantertranqilidade, o que admirvel! Aos olhos de um observador inexperiente, a situao de salade aula pode parecer um caos; mas alguns professores conseguem lidar com a situao deforma competente e eficiente. Por qu? Porque dispem de estratgias, recursos variados. Umoutro exemplo o da criana hiperativa. s vezes, o problema no est apenas nela, mastambm no professor que no consegue acompanhar seu ritmo, que no tem estratgias paratransform-la em colaboradora na sala de aula. Ento, ela transforma-se em um inimigo,quando na verdade poderia ser um bom companheiro, um bom parceiro.

    Infelizmente, a maioria dos professores no sentem que dispem dos recursos acimamencionados para gerirem as situaes de sala de aula. Queixam-se da deficincia de suastcnicas e estratgias e da insuficincia dos cursos de formao.

    Por isso, acho interessante a imagem da competncia relacional como a de um jogo emque no se ganha na vspera, mas durante o prprio ato de jogar e que dependente defatores que no podem ser criados antes ou depois do jogo. Malcia, domnio de si mesmo,poder interpretar e tomar decises no contexto da situao-problema, coordenar os mltiplosaspectos que concorrem simultaneamente, etc. so fatores importantes para o que se analisacomo competncia relacional.

    Concorrncia, competio, competncia sempre foram interdependentes e presentes nasrelaes humanas e entre os elementos da natureza. As plantas, por exemplo, competem portempo, espao, gua, sol, e isso no bom nem ruim, enquanto juzo de valor em si. O impor-tante a tomada de conscincia, refletir sobre as implicaes disso.

    Assim tambm no jogo. Nele, muitos aspectos concorrem e competem. Por isso, o jogo um desafio para o desenvolvimento da competncia. Um jogador competente o que conse-gue administrar a favor de seus interesses e objetivos e os mltiplos aspectos que devem sercoordenados numa tomada de deciso.

    Mas, consideremos que um jogo sempre supe um desejo, um querer, um vencer. svezes, ficamos muito do lado do perdedor, ou seja, do que desagradvel, perigoso e incom-petente no jogo. O interessante, ao contrrio, perguntar-se como um jogador pode, tambm,ter experincias construtivas, ou seja, construir recursos que o fortaleam para enfrentar ojogo, que lhe possibilitem a vitria, ou, pelo menos, perceber que esteve perto dela na medidaem que demonstrou possuir muito dos fatores que concorriam para o sucesso, mas no todos,ou no com a coordenao necessria para vencer o desafio.

  • ENEM Fundamentao Terico-Metodolgica22

    Autonomia como princpio didtico

    No livro introdutrio dos Parmetros Curriculares Nacionais (de 1 a 4 srie), h umcaptulo sobre orientaes didticas. Os ttulos que encabeam as diferentes partes dessecaptulo so: autonomia, diversidade, disponibilidade para aprendizagem, interao, coopera-o, organizao do espao e do tempo e seleo de material.

    Por que autonomia est em um captulo sobre orientao didtica? O que significa au-tonomia como princpio didtico, se nosso costume mais freqente ler sobre esse termo comoum princpio moral ou tico? A importncia da autonomia como princpio didtico sempre foivalorizada por Piaget.

    Para explicar por que autonomia , de fato, um princpio didtico, pensemos no exem-plo do que ocorre com as lombadas das vias pblicas e das estradas. Pode-se analisar nossarelao com esse obstculo de trs modos distintos. O primeiro nos lembra que a lombada umredutor de velocidade que deve ser respeitado como limite fsico. Caso contrrio, nosso auto-mvel pode ser danificado. Ou seja, a lombada nos impe um limite que temos de respeitar,para no arcar com prejuzos. O segundo aspecto corresponde ao que pensamos, julgamos,sentimos, sobre lombada. Podemos ser contra e achar que isso controle de pases de TerceiroMundo. Ou seja, na prtica, respeita-se a lombada, no pensamento, critica-se a estratgia an-tiquada e desagradvel. Um terceiro aspecto o de se fazer gestes para a mudana dessaregra com a qual no concordamos. As gestes, dentro de nossos limites, podem ser de muitasformas: fazer crticas verbais, escrever cartas, etc. O importante que se faa algo para a mu-dana de uma lei com a qual no se concorda.

    Assim, tambm acontece no jogo. Nele tambm h um jogar concreto, que implicatomar decises no contexto das regras e do objetivo a ser alcanado, resolver os problemaspropostos, etc. Por outro lado, h uma teoria das melhores jogadas, as explicaes ou inter-pretaes que se d para o ganho ou perda, enfim, todo um conjunto de idias sobre o jogo.E h, tal como no exemplo da lombada, o que se faz para aperfeioar o jogo, ou a forma dejogar, o estudo, etc., tudo aquilo que se faz para tornar-se um melhor jogador, ou paramelhorar a forma de ser de um jogo. As trs dimenses esto interligadas, mas expressamdimenses diferentes.

    Mas, de que forma isso tudo se relaciona com autonomia? Piaget valorizava autonomiacomo mtodo didtico. Durante 30 anos, aproximadamente, ele foi diretor do BureauInternational de lducation da Unesco. Para comentar e analisar os diferentes mtodos peda-ggicos que se usavam em muitos lugares do mundo, Piaget utilizava trs princpiosmetodolgicos: 1) ativo, 2) de autonomia ou autogoverno e 3) de trabalho em equipe ou decooperao.

    O construtivismo de Piaget no um mtodo, mas refere-se, justamente, a esses trsprincpios metodolgicos. Muitos mtodos diferentes adotam princpios construtivistas.

    Autonomia como mtodo pedaggico refere-se a permitir, despertar, favorecer,promover, valorizar, exercitar o poder de pensar da criana. O pensamento como uma possi-bilidade ou necessidade diferente da realizao ou do aperfeioamento propriamente ditodaquilo a respeito do qual se pensa. Quando uma professora valoriza, em sala de aula,discusses sobre os diferentes resultados de uma conta, ela est praticando o princpio daautonomia como um princpio metodolgico. Argumentar, descrever, ter idias diferentessobre uma mesma coisa, etc., em um contexto de iguais, so aes que contribuem para odesenvolvimento da autonomia. Autonomia uma disciplina de poder pensar a realidade demodo interdependente com ela.

    Autonomia nos ajuda a compreender porque mesmo que no se possa decidir sobrecertos temas importante discutir sobre eles. Ou seja, h temas que no se votam na sala deaula, mas que importante discutir sobre eles. Por exemplo, h uma lei que probe que se fumeem espaos pblicos como a sala de aula. Do ponto de vista do primeiro aspecto, acima men-cionado, essa restrio terrvel para um dependente de nicotina. Mas, h, igualmente, o fatode que uma lei biolgica prova cientificamente que fumar prejudica a sade, pois pode provo-car vrias doenas, dentre elas o cncer. H tambm uma lei social que diz que ser multado,ou preso, quem a ela desobedecer. Portanto, no se trata de votar, ou de decidir, sobre apossibilidade, ou no, de se fumar em sala de aula. Do ponto de vista do segundo aspecto,

  • 23ENEM Fundamentao Terico-Metodolgica

    acima mencionado, talvez fosse bom analisar o sofrimento de um viciado em nicotina quedeve permanecer em um local onde no possa fumar por mais de uma hora. Talvez fosse bomanalisar, tambm, o direito de no-contaminao dos que no fumam e permanecem em am-bientes comuns aos fumantes como, por exemplo, a sala de aula.

    Autonomia, ento, o mtodo que autoriza e fornece estratgias para promover umpensamento sobre uma realidade, mas em condies independentes de sua realizao ou limi-tes. Autonomia aprender a pensar, argumentar, defender, criticar, concluir, antecipar.

    Sabemos que h mtodos mais econmicos e melhores para fazer clculos. Por esse lado, tolice perder tempo com tcnicas pobres e limitadas. Mas, na perspectiva da autonomia,deve-se permitir que a criana repita, s vezes de forma at mais precria, a evoluo social deum desenvolvimento matemtico. Por isso, interessante analisar as solues apresentadaspelas crianas, promover a discusso dessas solues, permitir que aquelas enfrentem suaspseudo-solues, contradies e que, na diversidade das formas apresentadas, a forma melhorpossa, pouco a pouco, ser vitoriosa. Para isso, necessrio que o professor tenha conhecimento(da histria sociocultural de uma noo, no caso), confiana e pacincia. Por isso, na perspec-tiva do desenvolvimento da autonomia, o professor, alm de dar informaes, funciona comoum coordenador das discusses sobre as diferentes solues; ele quem formula as boas per-guntas e que, como um pesquisador, coleciona as diferentes respostas produzidas por seusalunos, que as compara, aprofunda, etc.

    No fcil ser coordenador desse tipo de discusso. Como promover, liderar, convivercom os impasses de tantas diferenas e discordncias? Autonomia como princpio pedaggicotem o valor educacional de promover, nos limites da idade das crianas, dos temas, de suaspossibilidades cognitivas, o argumentar, pensar, formular hipteses, dizer sim, dizer no, apre-sentar argumentos, justificar, etc. Pois essa qualidade de pensamento que nos vai libertandodo real para que possamos, inclusive, ser bons parceiros.

    Dessa forma, independentemente de no se poderem votar certos temas, no estamosproibidos de pensar a respeito deles. Se no podemos vot-los, que gestes ou decises pode-mos tomar para administrar essa impossibilidade? Quem sabe liberar a cada 45 minutos oprofessor e os alunos fumantes para que eles cultivem seu vcio longe da sala de aula? Quemsabe encontrar solues alternativas para esses viciados? Autonomia, como mtodo, ou seja,disciplina, cria um espao social e mental para recriar regras, discutir, negociar pensamentosdiferentes, encontrar sadas para uma realidade difcil e limitadora.

    Ser autnomo no ser independente. Ser autnomo ser responsvel pelo que se fazou pensa. Se pensamos algo, devemos aprender a defender essa opinio, e isso de nossaresponsabilidade.

    Autonomia no sinnimo de independncia, porque nenhum de ns independente.Ser autnomo ser responsvel pelos prprios atos e pensamentos como mtodo. Uma crianarecm-nascida, s vezes com problemas de sade, tem aspectos que so unicamente de suaresponsabilidade. responsvel pelo seu mamar, por exemplo; sua me no pode fazer isso porela. Essa criana j tem autonomia, pois tem responsabilidades: respirar, vomitar, defecar, rea-gir dor, ou seja, a autonomia comea nesse plano de aes que somente o sujeito pode fazerpor ele e que termina no plano do pensamento formal, ou hipottico dedutivo, em que osujeito responsvel por suas produes, pelo que faz em contexto social e profissional.

    Autonomia no independncia porque se expressa em um contexto relacional. A cri-ana responsvel pelo seu mamar, mas no tem mamas nem leite. Ser autnomo ser parte etodo ao mesmo tempo, por isso no se independente. Por que ser parte? O mamar umaao do sujeito, algo de sua responsabilidade, conquistado pelo dever sociocultural de seralimentado e cuidado pelos mais velhos e pelo poder biolgico em sua condio de mamfero.Mas mamfero que depende de uma mama, que depende de certas condies sociais que favo-recem esse ato.

    O mesmo acontece num contexto de jogo: quando chega a vez de algum jogar, eletorna-se o nico responsvel por suas decises. Ter autonomia para decidir ainda no significaser independente. Por exemplo, a autonomia, como gesto que possibilita o engatinhar, signi-fica construo de uma coordenao motora em que braos e pernas articulam-se de modointerdependente. Braos e pernas tm movimentos independentes, mas o engatinhar, comoautonomia, implica que agora ambos so simultaneamente parte e todo ao mesmo tempo.

  • ENEM Fundamentao Terico-Metodolgica24

    Autonomia no independncia porque expressa sempre um contexto relacional. Porisso, autonomia um exerccio de interdependncia.

    Refletir supe discutir, como gostava de dizer Piaget, recordando uma frase de PierreJanet: discutir refletir com os outros; refletir discutir consigo mesmo.

    A competncia do sujeito e a do objeto, cedo ou tarde, h de resultar em uma compe-tncia relacional, sob pena de uma ou outra se perderem. A competncia conceptual, porexemplo, de uma professora e a competncia do livro que utiliza como apoio para suas aulasdevem incorporar, no contexto de sala de aula, a competncia dos alunos. A competnciadesses supe descobrir ou inventar novamente (reinventar) o que no plano da professora oude seu livro j estavam presentes. A competncia relacional corresponde, por isso, a uma hip-tese fundamental do conhecimento como coordenao de perspectivas, de uma dupla refern-cia (a do sujeito e a do objeto) que ao interagirem criam uma terceira forma de conhecimentodelas resultante. Em outras palavras, o objeto (o conhecimento organizado como objeto, disci-plina, como corpo conceptual, agora independente dos sujeitos que o produziram) e o sujeito(as pessoas ou aes das pessoas que agindo sobre os objetos produziram um conhecimentosobre ele), considerados independentes um do outro, devem agora operar como parte e todoao mesmo tempo, em um contexto de interdependncia.

    A autonomia, na perspectiva de uma competncia do sujeito ou do objeto, pode serpensada em sua condio independente, livre, como um todo, que opera por si mesmo. Aautonomia, na perspectiva da competncia relacional, deve ser pensada em sua condiointerdependente, em que parte e todo formam um sistema. Autonomia, nessa perspectiva,supe responsabilidade (compromisso de uma parte com outras) e reciprocidade (interagir deforma mtua, em que a melhoria de uma parte supe a de outras partes). Nesse sentido quevale a frase: se as crianas no aprenderam, o professor no ensinou. Por isso, agora hpesquisas para o desenvolvimento de tcnicas e estratgias de como promover uma discussoem matemtica, histria, geografia, etc.

    Autonomia mais do que uma questo tica ou moral, um princpio didtico quesupe o desenvolvimento de uma competncia para ensinar com essa qualidade construtiva.Piaget dizia que a lgica da ao corresponde a uma moral do pensamento. A autonomia uma forma de moral do pensamento que, livre, reflete sobre o objeto, mas que, responsvel,no confunde esse pensamento com a prpria realidade sobre a qual reflete. Essa moral dopensamento, para ser assim, h de exibir, pouco a pouco, propriedades reversveis, antecipatrias,argumentativas, etc. No jogo, por exemplo, o jogador desafiado para conquistar autonomia,planejar as jogadas, avaliar, no sentido de regular suas aes em cada momento da partida emfuno do objetivo, das jogadas do adversrio, etc.

    Esse o sentido de considerar-se a autonomia como uma orientao didtica, como umadisciplina que promove uma competncia relacional nos alunos, que os educa para uma interaocom qualidade interdependente. Para isso, sem dvida, no basta dominar tcnicas que pro-movam essa forma de autonomia, preciso tambm que o professor disponha-se a construiressa forma de pensamento e relao como algo que vale tambm para ele.

    Aprendizagem significativa e competncia relacional

    Outro termo presente nas orientaes didticas a aprendizagem significativa. Estaexpressa certa qualidade de disponibilidade para a aprendizagem escolar. Piaget consideraessa forma de aprendizagem como mtodo ativo. A hiptese que se uma aprendizagem nofor significativa, sua aquisio estar, cedo ou tarde, comprometida. Lembremo-nos do primei-ro momento de uma situao de jogo: sempre comea com a pergunta: Vamos jogar?, Querjogar?. Ao longo da partida, a condio positiva da resposta a essa pergunta estar presente,apesar dos desafios, frustraes, problemas que se possam enfrentar.

    A aprendizagem significativa instaura novamente na escola uma condio fundamentalde nossa busca de conhecimento. Essa condio a do desejo, ou seja, do conhecimento comonecessidade, algo que falta ser, que ainda no nos termos pretendidos ou aceitos pelosujeito. No contexto da competncia relacional, isso interessante porque o desejo instaura-secomo busca e como complementaridade. A busca supe a devoo daquele que deseja, isto ,

  • 25ENEM Fundamentao Terico-Metodolgica

    trabalho, compromisso, responsabilidade. Complementaridade supe sair dos limites de ondese encontra e incluir um outro todo como parte. Maras analisa essa questo no plano do jogo,como forma de iluso. Ou seja, o que anima os adversrios em um jogo a mesma iluso:vencer. Essa iluso corresponde ao que se chama de desejo com argumento, ou seja, comofalta traduzida em aes de busca, dirigidas por um objetivo ou finalidade, aes que soreguladas por essa meta a ser alcanada. Da a dupla condio para competncia relacional:desejo e devoo. Desejo como fim ou direo. Devoo como meio ou instrumento. Ou, comoquer a sabedoria popular: quem ama, cuida.

    Desejo e devoo so cognitivos e afetivos ao mesmo tempo. Cognitivos porque supemuma formulao, uma pergunta, hiptese ou proposio. Porque supem construo de recur-sos, tomadas de deciso, avaliao reguladora, etc. Afetivos porque supem um querer, su-pem a atribuio de uma significao pessoal, no sentido de que algo ainda no para umsujeito, mas deve ser.

    A aprendizagem significativa supe que se encontre eco no sujeito a quem proposta.Da sua vinculao com uma forma relacional de competncia. A aprendizagem significativa uma das condies defendidas por Piaget para um mtodo pedaggico ser construtivo. Signi-ficativa porque expressa essa categoria da paixo: deixar-se, como sujeito a ser atravessadopor um objeto; por isso, estar envolvido, interessado, ativo, em tudo o que corresponde a suaassimilao. Por isso, Piaget, ao menos com as crianas, era muito crtico ao que chamava deverbalismo da sala de aula. O verbalismo refere-se s exposies orais (explicaes) paracrianas sobre temas que as excluem por sua natureza formal, conceptual, adulta. A conseq-ncia disso, no raro, a presena de crianas apticas, desinteressadas, passivas, ou, ento,agitadas, indisciplinadas e pouco cooperativas. As mesmas exposies com adultos podem serpositivas, pois esses possuem mais recursos cognitivos para relacionarem-se com essa forma delinguagem. Ou seja, um adulto, mesmo que s escutando, tem recursos de pensamento paramanter um dilogo ativo (anota, faz associaes, concorda, etc.) com o assunto que estsendo exposto.

    O construtivismo no se reduz a um mtodo pedaggico em particular, ao menos naperspectiva de Piaget. Caracteriza-se por princpios ou propriedades que diferentes mtodospodem ter. A disponibilidade para a aprendizagem, ou seja, a condio ativa, significativa, uma dessas propriedades, como mencionado. H mtodos de ensino que so envolventes, queformulam projetos e que do sentido ao que se faz na escola. O mesmo aplica-se a certosprofessores. Alguns possuem caractersticas pessoais muito positivas, so envolventes, tm auto-estima, so instigantes, esto comprometidos com seu trabalho, gostam de crianas, sabemmobiliz-las, sabem dar sentido s atividades propostas. Em uma palavra, so competentes. Hmtodos competentes. H professores competentes.

    O mtodo da cooperao e a competncia relacional

    Valoriza-se, atualmente, uma forma de trabalhar em equipe em que todos esto envol-vidos, de forma interdependente, por mais diferentes que sejam o nvel de participao e acomplexidade das tarefas de cada um. Essa forma difere, por exemplo, daquelas em que asparticipaes so tomadas de modo independente, linear e aditivo. Independente porque umaparte no se relaciona com as outras. Linear porque o processo expressa-se por uma seqncia,em geral fixa, definida. Aditivo porque o todo (por exemplo, o objeto que se quer produzir) montado por um conjunto de partes em uma relao de dependncia/independncia. No pri-meiro caso, a forma de competncia mais importante a relacional. No segundo, a compe-tncia do sujeito ou do objeto.

    O jogo possui as caractersticas acima mencionadas. Como instrumento de relao de umsujeito com certo problema ou desafio, o jogo tem uma fora sedutora e implica uma aoatravessada pelo desejo e pela devoo.

    A competncia relacional supe uma abertura para a diversidade. Diversidade de pontosde vista, para as mltiplas formas de algo expressar-se, de variabilidade de contextos. o casode uma discusso com essas caractersticas. Pode-se argumentar de diferentes modos, h aber-tura para solues divergentes, h espao para diferenas.

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    Valoriza-se, muitas vezes, no jogo apenas sua dimenso competitiva, ou seja, seu limite,imposto pela regra de que s haver um ganhador, quando todos querem ao mesmo tempoe nas mesmas condies a vitria. Essa condio de escassez ou de restrio cria um contextode competio por um resultado, desejado por todos, mas que ser obtido, em uma dadapartida, para uma das partes, apenas. Mas, na perspectiva da competncia relacional, maisimportante o processo de jogar, a qualidade do modo como se joga. Ora, essa dimenso dojogo cooperativa, no competitiva. marcada pela interdependncia. No jogo, cada partedepende da outra. Se um jogador no movimenta sua pea, o outro, na vez seguinte, nopoder fazer sua jogada. Todos esto submetidos s mesmas regras, ao mesmo tabuleiro, etc.Por isso, o jogo, como processo, um exerccio de interdependncia, de cooperao, no decompetio, mesmo em jogos competitivos.

    Tomemos, como exemplo, o jogo de futebol. Este um jogo competitivo se o considera-mos apenas na perspectiva do resultado. Como processo, trata-se de um trabalho de equipe.Por isso mesmo, s vezes ocorrem desentendimentos, brigas, porque um jogador foi individu-alista, no passou a bola, etc.

    Cooperao um mtodo de trabalhar com essa qualidade. O bedel coopera com a metaeducacional da escola. Certas informaes, certas oportunidades de interveno ele tem me-lhor do que o professor, (***). Nos cantos da escola, nos banheiros, nos momentos em que oaluno no est visvel para professores, orientadores ou diretores. Eles fazem parte do sistema,fazem parte da equipe pedaggica. Por isso, a cooperao no s uma filosofia, uma tica,mas igualmente um mtodo que supe competncia relacional. Por isso, segundo Piaget, omtodo pedaggico que promove a cooperao mais construtivo do que um mtodo queno a promove. Sem cooperao muito difcil construir alguma coisa.

    Um tabuleiro chamado escola

    No tabuleiro chamado escola, a organizao espacial das atividades pedaggicas fun-damental. Onde esto os materiais? Onde acontecem as atividades? Como que um aconteci-mento relaciona-se com outro do ponto de vista espacial? Quais so os deslocamentos proibi-dos e permitidos? Como se organizam os deslocamentos dos alunos na escola? Como que sedelibera sobre isso? Como que se constroem e se administram as regras na escola?

    As questes formuladas acima e tantas outras que se poderia fazer encaixam-se no temagesto da sala de aula. Infelizmente, h professores que so maus gerentes na sala de aula,apesar de seu conhecimento dos contedos. No sabem administrar o tempo, nem o espao dasatividades, selecionam mal os objetos. Gastam muito tempo em uma atividade, depois no tmtempo para uma outra, igualmente importante. No sabem dosar o contedo. Falta-lhes com-petncia relacional. Hoje, espera-se que o professor seja um gerente, um gestor da sala de aula.E uma das grandes queixas dos professores que no se sentem competentes para isso. Dizemno saber administrar o tempo da aula, os ritmos dos alunos, a narrativa desse acontecimento,com suas paradas, obstculos, com seu desenrolar, com seus imprevistos. Falta-lhes, insisto,competncia relacional.

    De fato, localizar a questo espacial e temporal, bem como a seleo de materiais comoorientao didtica reconhecer que a gesto de sala de aula to importante quanto odomnio dos contedos que se ensinam, porque a aprendizagem desses contedos depende daqualidade dessa gesto. Por isso, hoje, a avaliao tornou-se tambm relacional, no sentido deque se refere a um instrumento que possibilita qualificar, regular para mais ou para menos, osdiferentes aspectos a serem considerados na dinmica da sala de aula.

    A competncia relacional muito importante em uma viso construtivista do processode aprendizagem escolar. Para essa viso, a interao caracteriza-se por trocas que podemgerar, por sua prpria realizao, uma tenso, uma perturbao. Voltando ao tema comentado,a administrao do tempo na sala de aula um bom adversrio da transmisso de contedo.Como explicar em 20 minutos certo tema, incluindo a questes ou dificuldades dos alunos emacompanhar a explicao? Na viso construtivista, como em termos de competncia relacional,no interessa o que marca as diferenas, mas o que as coordena. H outras formas de interaoem que o interessante o que afasta, dificulta. No o que, reconhecendo o impasse, constri

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    formas de convivncia ou superao. Por isso, justificar que faltou tempo para dar uma aulaeficiente no uma boa razo, pois os limites do tempo j estavam l. Como dar uma mesmaaula em cinco minutos, cinco meses, cinco anos? O desafio, do ponto de vista relacional, como comunicar, em um desses tempos, algo que seja pertinente e interessante sobre o assun-to. Esse o desafio em uma perspectiva relacional.

    Quando s se dispe de dez minutos para expressar algo significativo em uma relao,como bem aproveitar esse tempo? Se algum significativo ou representa algo significativopara ns e se esse algum est para morrer nos prximos dois meses, o que pode ser feito? Nemsempre se tem 20 anos para estar com algum, s vezes so apenas vinte minutos. O que fazerou dizer que seja significativo do ponto de vista humano, relacional? Uma coisa valorizar oque falta, aquilo que no se dispe, outra valorizar o que pertence a ela, possvel, pois,estar dentro da relao.

    Competncia relacional um convite para considerar a multiplicidade dos aspectos quepossibilitam o ser, ou no, de algo. Penso que somos ainda muito marcados pelas duas outrasformas de competncia (a relativa ao sujeito e ao objeto). Ainda nos difcil, mormente paracertos contedos e em certos contextos, considerar o que comum, o que respeita mutuamen-te os diferentes aspectos de uma situao. Ainda nos difcil aceitar o melhor argumento,aquele que produzido em um contexto relacional resulta da contribuio de todos, ainda queem diferentes propores ou formas, e que no decorre da competncia expressa de um nicosujeito ou nico objeto.

    Tomemos, como exemplo, uma discusso em sala de aula sobre os diferentes resultadospara uma mesma conta e os argumentos ou procedimentos que as crianas utilizam para justi-ficar ou produzir tais resultados. O melhor argumento, o melhor procedimento (no sentidoaritmtico), mesmo que produzido por um nico aluno, h de ser considerado como produocoletiva, como acordo tirado de uma discusso em que todos, de algum modo, contriburampara ela.

    O que comum a diferentes formas de calcular? Como decidir pela melhor forma etornar seu argumento ou procedimento compreensvel, aceitvel, para aqueles que utili-zaram outras formas? Como reunir as diferenas em favor de algo comum? Ou seja, hdiferenas que separam, h diferenas que aproximam. Na competncia relacional, so asdiferenas possveis de serem integradas, coordenadas, no importa em que nvel, queinteressam.

    Em uma sala de aula, todos podem, de algum modo, contribuir. Mesmo aquele que falaou realiza algo muito discrepante ou sem sentido pode ajudar. O problema, de natureza relacional, como incluir sua participao. Ou seja, a questo como aproveitar uma expresso humanaem favor de algo que superior a ela. Insisto, o melhor argumento nunca vem s de um lado,nunca exclusivo das qualidades excepcionais de um sujeito ou objeto. A competnciarelacional , por isso, um convite para esquecermos nossa arrogncia, para deixarmos de igno-rar os ignorantes, os excludos, os que muitas vezes s podem contribuir de uma forma nega-tiva, perturbadora, desajeitada.

    Mas, essa qualidade de pensar de forma relacional supe autonomia, cooperao, supea coordenao de valores que exigem tempo para sua construo.

    Referncias bibliogrficas

    INHELDER, B.; GARCIA, R.; VONCHE, J. Epistemologia gentica e equilibrao. Traduo deJorge Correia Jesuno. Lisboa: Livros Horizonte, 1976.

    INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS. ENEM (Exame Nacional doEnsino Mdio): Documento Bsico. Braslia: MEC/Inep, 1998.

    MACEDO, L. de. Ensaios construtivistas. 4. ed. So Paulo: Casa do Psiclogo, 1999. 170 p.

    . Piaget e a nossa inteligncia. Ptio: Revista Pedaggica, v. 1, n. 1, p. 10-13, maio/jul.1997.

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    MACEDO, L. Competncias e habilidades: elementos para uma reflexo pedaggica. Manuscri-to no publicado. So Paulo: Instituto de Psicologia, USP, 1999. 48 p.

    MEIRIEU, P. Aprender... Sim, mas como? Traduo de Vanise Pereira Dresch. Porto Alegre: Artmed,1998.

    PERRENOUD, P. Construir as competncias desde a escola. Traduo de Bruno Charles Magne.Porto Alegre: Artmed Editora, 1999.

    . Avaliao entre duas lgicas: da excelncia regulao das aprendizagens. Tradu-o de Patrcia Chittoni Ramos. Porto Alegre: Artmed, 1999.

    PIAGET, J. A equilibrao das estruturas cognitivas: problema central do desenvolvimento.Traduo de Marion Merlone dos Santos Penna. Rio de Janeiro: Zahar, 1976.

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    1.2 A situao-problema como avaliao e comoaprendizagem

    Lino de Macedo

    O objetivo do texto defender o enfrentamento de situaes-problema como um desafio fundamental em nossas relaes com pes-soas, objetos ou tarefas, hoje. Buscar-se-, igualmente, analisar como epor que situaes-problema expressam uma concepo de aprendiza-gem ou forma de conhecimento, sem a qual tais relaes ficam preju-dicadas ou insuficientes seja no plano dos objetivos, seja dos resulta-dos esperados. Visa, igualmente, argumentar em favor da situao-pro-blema como uma tcnica de avaliao em um contexto em que se querverificar competncias e habilidades das pessoas no s em frente desituaes-problema, no sentido estrito, mas de outras formas de com-petncias e habilidades.

    Competncia X situao-problema

    Mobilizar recursos

    Uma das caractersticas importantes da noo de competncia,segundo Perrenoud, desafiar o sujeito a mobilizar os recursos no

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    contexto de situao-problema para tomar decises favorveis ao seu objetivo ou metas. Sa-bemos, e muitas vezes lamentamos, o quanto em uma determinada situao no nos permiti-mos recorrer a tudo que sabemos em favor de sua soluo. Esquecemos, no articulamos umainformao com outra, no consideramos um elemento da situao, que depois julgamos fun-damental, etc. assim que acontece, por exemplo, em uma prova. Na hora de sua realizao,travamos, esquecemos, damos respostas apressadas, simplificamos, no damos suficiente atenopara uma srie de detalhes que, mais tarde, com a cabea fresca, lamentamos.

    Na viso de Piaget, mobilizar recursos , de fato, uma propriedade fundamental aosesquemas de ao. Penso que, na perspectiva de Piaget, mobilizar recursos corresponda ao quechama de coordenar meios e fins, sendo essa a prpria funo da inteligncia (Macedo, textopublicado no Ptio e Ensaios Construtivistas).

    Julgar em funo dos indicadores

    Uma situao-problema, em um contexto de avaliao, define-se por uma questo quecoloca um problema, ou seja, faz uma pergunta e oferece alternativas, das quais apenas umacorresponde ao que certo quanto ao que foi enunciado. Para isso, a pessoa deve analisar ocontedo proposto na situao-problema e recorrendo s habilidades (ler, comparar, interpre-tar, etc.) decidir sobre a alternativa que melhor expressa o que foi proposto. Quais so osindicadores ou observveis que dispomos ou que podemos construir em favor de uma boaresoluo dessa tarefa? Os observveis podem provir seja do objeto ou do sujeito. Os observveisdo objeto referem-se ao que o enunciado da questo formula, ou ao que recorre, sobre ocontedo a ser avaliado. O proponente da questo, no caso, apoiado em seus conhecimentossobre o assunto a ser avaliado, e tendo em vista os objetivos da prova (avaliar competncias ehabilidades de um sujeito sobre algo) e recorrendo aos meios que lhe so disponveis (avaliarem um contexto de situao-problema) estrutura um texto que expressa observaes sobre oassunto a ser testado. A pessoa, que est sendo avaliada, de sua parte, l o enunciado e ointerpreta. Para isso, necessita raciocinar, ou seja, coordenar as informaes em favor do obje-tivo visado: o que est sendo perguntado? Quais as informaes disponveis no enunciado?Deve tambm realizar operaes que produzem novas informaes, confirmam ou resolvem oque est sendo proposto. Essas operaes, ou competncias transversais, so principalmente asseguintes: interpretar, analisar, comparar, etc. Uma outra atividade importante a ser realizada comparar entre as alternativas oferecidas a que melhor corresponde ao que foi perguntadoe ao que o avaliado sabe ou concluiu sobre o que se perguntou. Articulando e dando sentidoa tudo isso, h, igualmente, o que podemos chamar de circunstncia ou contexto da prova,com tudo o que representa para o aluno, sua famlia ou sociedade.

    Os indicadores correspondem, portanto, ao conjunto de sinais, marcas, informaes, as-pectos destacveis no texto do enunciado e, igualmente, ao conjunto de pensamentos, idias,representaes, lembranas, raciocnios, sentimentos, etc. do sujeito que est respondendo questo. Esses indicadores relativos ao objeto, que o sujeito pode observar, e os indicadoresrelativos ao prprio sujeito, juntos, produzem os elementos, cujo julgamento permitir a to-mada de deciso sobre o que est sendo perguntado e as alternativas disponveis, das quaisapenas uma delas a correta.

    Inferncia o que possibilita a concluso ou tomada de deciso, em um contexto dejulgamentos, raciocnios, interpretao de informaes, em favor de uma das alternativaspropostas.

    Uma boa questo, nesse sentido, implica simultaneamente trs tipos de interao. Pri-meiro, construir ou considerar as diferentes partes que correspondem aos elementos constitu-intes da situao-problema como um todo. Segundo, articular ou coordenar cada uma daspartes ou elementos disponveis com o prprio todo. Terceiro, tomar o todo como o que estru-tura, d sentido e, por isso, regula toda a situao. O enunciado cria um contexto ou circuns-tncia que d ao item uma autonomia, no sentido de ser um bom recorte ou situao-proble-ma? A tarefa a ser realizada (especificada, principalmente, nas competncias transversas quedefinem o que se espera do trabalho proposto) est bem caracterizada e torna (a tarefa) pos-svel de ser realizada nos limites (espaciais e temporais)? As alternativas esto bem formuladase criam obstculos (no sentido de Meirieu), que convidam reflexo do aluno e expressam

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    diferentes graus de articulao entre o enunciado e a alternativa que melhor define a resolu-o do problema proposto? o conjunto do item que regula e d direo ao trabalho?

    Uma boa questo deve propor um percurso entre uma situao de partida, quecorresponde proposio do enunciado, at um ponto de chegada, que corresponde escolhada alternativa, suposta pelo avaliado, como a que melhor representa a resposta correta.

    As situaes-problema propem uma tarefa para a qual o sujeito deve mobilizar seusrecursos ou esquemas e tomar decises. Mas, h uma diferena, por exemplo, entre essa tarefae a realizada pelas mquinas. As mquinas ou tecnologias resolvem problemas, realizam tare-fas. Elas possuem, pelos modos de sua produo, competncia reprodutiva ou processual. Osobjetivos em uma mquina correspondem ao comando, desencadeado por algum ou algumacoisa que provoca uma cadeia de respostas ou realizao de aes com durao e seqnciasprogramadas. Os meios e recursos em uma mquina expressam sua constituio fsica ou sin-ttica preparada para reagir. Os resultados so a culminao daquilo que foi decidido fazerou produzir. Ou seja, uma mquina sabe fazer, mas no compreende, nem reflete sobre o quefaz. No avalia as conseqncias de suas aes. No se compromete, nem se responsabiliza peloque faz. No gosta, nem se alegra, nem fica triste, nem se sente realizada com o que faz. Seuprojeto executivo reflete as intenes de seu programador ou construtor, reflete as possibili-dades mecnicas de sua composio, define os limites de seu programa. Mas, organizar ummundo, tecnologicamente, corresponde a decises polticas, a interesses (econmicos, etc.)humanos que definem o sucesso e o fracasso de outros seres humanos em sua vida. As mqui-nas agem em um contexto uniforme, no-crtico, que realiza o que est programado para serfeito, sem se importar com as conseqncias de sua ao. Por isso, nesse texto no estamosanalisando as competncias das mquinas, mas sim as competncias dos sujeitos, das pessoasque vivem em um mundo tecnolgico. Alm das competncias das pessoas, estaremos, igual-mente, analisando sua competncia relacional. Em outro texto, analiso, de modo maisaprofundado, a distino que proponho entre essas trs formas de competncias: a do objeto,a do sujeito e a da relao.

    A competncia mais importante para ns , sem dvida, a relacional, at porque elaexpressa a dimenso indissocivel e interdependente das competncias relativas ao sujeito eao objeto. Relacional em suas trs verses ou possibilidades de expresso. H uma relaointerpessoal que solicita o desenvolvimento de competncias transversais muito importantes.Autonomia, respeito, tolerncia, responsabilidade, construo e respeito a regras sociais, ami-zade, compromisso, etc. so qualidades que regulam, em sua direo positiva, as relaes entreas pessoas. Mas sabemos o quanto a inveja, o cime, a rivalidade, a competio, os interessespessoais e mesquinhos podem regular, igualmente, nossas tomadas de deciso. A segundaforma de competncia relacional a relativa aos objetos. Temos destrudo a natureza, intoxi-cado os rios, a atmosfera, depredado bens pblicos, maltratado nossos corpos e abandonadoregras e princpios que a humanidade e a natureza levaram sculos e sculos para construrem.Quantos outros sculos necessitaro para reconstru-los? Ignoramos as leis fsicas, qumicas,sociais e polticas que explicam a regularidade dos fenmenos e qualificam formas de inter-veno ou gerenciamento melhores do que outros. No temos sabido cuidar dos objetos quenos so mais caros. Temos cedido ao apelo tecnolgico que, em nome da globalizao, unifor-miza, simplifica e define um padro nico que, pouco a pouco, haver de descaracterizar omultifrio das expresses e formas humanas e sociais de resolverem problemas de nossa sobre-vivncia nos distintos lugares de nossa terra. Em uma palavra, no temos sabido definir eaplicar as competncias transversais que expressam cuidado e respeito com os objetos que nosso importantes. A terceira forma de competncia relacional diz respeito s tarefas ou aotrabalho humano diante das pessoas e dos objetos. No presente texto, e na perspectiva daprova do Enem, analisamos as competncias transversais requeridas para as tarefas a seremavaliadas. E quanto s outras tarefas ou s outras competncias transversais ligadas a nossarelao com tarefas: concentrao, disciplina, respeito, cooperao, autonomia, cumprimentode metas, prazos, etc.?

    O ser humano toma decises, formula julgamentos, compromete-se com uma resposta.Tomar decises mais do que resolver um problema, pois implica valores, raciocnio, enfrentarum dilema e decidir-se pelo que se acha melhor, mais justo, mais condizente para ele e para asociedade a que pertence. As mquinas apenas resolvem os problemas ou realizam tarefas para

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    as quais j estavam preparadas para resolver. Se lhes propomos algo fora desse esquema, elasno resolvem, paralisam-se, quebram, informam, por exemplo, ter ocorrido erro de sintaxe. Aspessoas resolvem problemas em um contexto de tomada de decises, de dilemas ou situaesque admitem vrias alternativas, sendo algumas incorretas, outras melhores e uma outra quecorresponde melhor soluo no contexto da pergunta ou do problema que se est enfren-tando. As mquinas no julgam sobre o que realizam, por isso podem ser manipuladas pormotivos muito diferentes. As pessoas julgam o que realizam, devem saber se o que fazem estcerto ou errado, se digno ou no para a sua vida ou para a vida de seus semelhantes. Aspessoas comprometem-se e responsabilizam-se pelo que fazem e pelas circunstncias, aindaque aleatrias, que caracterizam os seus afazeres.

    Essas consideraes so importantes porque se pode fazer uma questo na perspectivado modo como as mquinas funcionam e no no modo como as pessoas funcionam ou que seespera que elas funcionem. Por isso, para avaliar se uma situao-problema boa ou no,temos que julgar se a questo pede soluo de problemas, na perspectiva das pessoas ou dasmquinas. Tratar algum como mquina exigir ou esperar que ela seja ou aja como umamquina, tenha memria de mquina, trate o conhecimento como jogo de informaes, trateos clculos como forma de processar e no como meios para outros fins. Alm disso, temos queobservar se a questo expressa-se em um contexto de dilemas, ou seja, em que a pessoa deve seposicionar, julgar, interpretar? Para isso, temos que verificar se as alternativas coordenam-secom o enunciado e expressam esse esprito de responsabilizar-se pela resposta, julgar e inter-pretar, diante dos indicadores disponveis (seja no plano da questo, seja no plano das refle-xes ou raciocnio da pessoa que est respondendo questo). Temos que verificar se a ques-to nos compromete com uma resposta. E se essa resposta, mesmo que em um contexto artifi-cial, de simulao, como o caso de uma avaliao escolar, nos projeta para uma situao devida real em que suas conseqncias seriam prejudiciais para a natureza, para a vida.

    Uma boa situao-problema, como tcnica de avaliao e como concepo de aprendi-zagem, portanto, deve compor um sistema, ao mesmo tempo, fechado (como um ciclo) e aber-to. Fechado como ciclo no sentido de que convida o aluno a percorrer o seguinte percurso nocontexto de cada questo: 1) alterao, 2) perturbao, 3) regulao e 4) tomada de deciso(ou formas de compensao). Aberto, no sentido de que prope trocas ou elementos de refle-xo que transcendem os limites da prova e ilustram, ainda que como fragmentos ou lampejos,algo que ser sempre maior e mais importante do que as circunstncias de uma prova, comtodos os seus limites e com toda a precariedade de sua realizao.

    Alterao

    Como mencionado, a situao-problema prope uma forma de interao do aluno comuma questo a ser resolvida, no como se ele fosse uma mquina, mas uma pessoa. A situao-problema, por seu enunciado, cria um contexto que formula uma alterao a ser examinadapelo aluno. O contexto do enunciado expressa-se pela forma e contedos de sua proposio.Alterao diz respeito a uma modificao a ser considerada pelo sujeito. As alteraes propos-tas em uma situao-problema, por suposto