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ISSN 0102-0625 Indígena se posiciona de costas para a Tropa de Choque durante manifestação indígena às portas do Riocentro, sede da Rio+20 Foto: Renato Santana/Cimi Ano XXXV • N 0 346 • Brasília-DF • Junho/Julho 2012 – R$ 5,00 ENCARTE ESPECIAL - CIMI 40 ANOS A HISTÓRIA DO CIMI REGIONAL MATO GROSSO Acampamento Terra Livre 2012 O exercício da desobediência Povo Xukuru Kariri tem na Justiça direito de posse garantido sobre área retomada Página 10 Em plena Cúpula dos Povos das Américas, evento paralelo à Rio+20, entre 13 e 22 de junho, o Acampamento Terra Livre 2012 dos povos indígenas parte dos debates e discussões para ações de enfrentamento à política de desenvolvimento do governo federal. Como resultado, duas mobilizações que escancararam o aparente consenso de que o Brasil está no rumo certo. Páginas 8 e 9 Portaria 303: o golpe da AGU e governo federal contra as comunidades indígenas Páginas 2, 6 e 7 Indigenismo perde Antonio Brand Páginas 14 e 15

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Em defesa da causa indígenaAno XXXV • N0 346 • Brasília-DF • Junho/Julho 2012 – R$ 5,00

EnCaRTE ESpECIal - CIMI 40 anoS A hIStórIA do CImI regIoNAl mAto groSSo

Acampamento Terra Livre 2012O exercício da desobediência

povo Xukuru Kariri tem na Justiça direito de posse garantido sobre área retomada

Página 10

em plena Cúpula dos Povos das Américas, evento paralelo à rio+20, entre 13 e 22 de junho, o Acampamento terra livre 2012 dos povos indígenas parte dos debates e discussões para ações de enfrentamento à política de desenvolvimento do governo federal. Como resultado, duas mobilizações que escancararam o aparente consenso de que o Brasil está no rumo certo. Páginas 8 e 9

portaria 303: o golpe da aGU e governo federal contra as comunidades indígenas

Páginas 2, 6 e 7

Indigenismo perde antonio Brand

Páginas 14 e 15

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2Jun/Jul – 2012

Nem só com pistoleiros se faz a violência contra os índios

Porantinadas

edição fechada em 14/09/2012

Permitimos a reprodução de nossas matérias e artigos, desde que citada a fonte. As matérias assinadas são de responsabilidade de seus autores.

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APOIADORES

Publicação do Conselho Indigenista missionário (Cimi), organismo vinculado à Conferência

Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).

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Na língua da nação indígena sateré-Mawé, PorANTIM

significa remo, arma, memória.

dom erwin Kräutler Presidente do Cimi

emília AltiniVice-Presidente do Cimi

Cleber César Buzattosecretário executivo do Cimi

AdMINIsTrAção:Marline dassoler Buzatto

seleção de FoTos:Aida Cruz

edITorAção eleTrôNICA:licurgo s. Botelho

(61) 3034-6279

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registro nº 4, Port. 48.920, Cartório do 2º ofício

de registro Civil - Brasília

renato SantanaedITor - rP 57074/sPluana luizy - estagiária

CoNselho de redAçãoAntônio C. Queiroz, Benedito Prezia, egon d. heck, Nello ruffaldi, Paulo guimarães,

Paulo Suess, marcy Picanço, Saulo Feitosa, roberto liebgot, elizabeth Amarante rondon e

lúcia helena rangel

Editorial

decreto de extermínio contra os povos indígenas parece tão obstinado na atual conjuntura quanto em tempos de Estado

mínimo. Quando a violência contra os povos indígenas não parte de pistoleiros, a mando de fazendeiros invasores de terras de ocupação tradicional, emerge de proposições legislativas no Congresso Nacional e de medidas administrativas oriundas do próprio governo brasileiro.

A tramitação do Projeto de Lei 1610/96 e das Propostas de Emendas Constitucionais 215/00 e 038/99, na Câmara dos Deputados e no Senado Fe-deral respectivamente, e a Portaria 303 publicada pela Advocacia Geral da União (AGU), no último dia 16 de julho e com previsão de entrar em vigor no próximo dia 24 de setembro, coadunam com esta perspectiva crítica. Tais iniciativas são reflexos da política de desenvolvimento que beneficia diretamente os interesses de terceiros sobre as terras indígenas, das comunidades tradicionais e cam-ponesas.

A Portaria 303 traz insegurança jurídica, social e cultural aos povos e comunidades indígenas. Com ela, a AGU pretende desfolhar o artigo 231 da Constituição Federal e a Convenção 169

O da Organização Internacional do Traba-lho (OIT), dificultando os processos de reconhecimento e demarcação das terras tradicionais, facilitando a exploração das terras já demarcadas e desrespeitando o direito de consulta aos povos. Com a Portaria, busca-se desconstruir a legali-dade dos direitos dos povos indígenas e legitimar a ilegalidade do esbulho das suas terras.

É importante ressaltar que a AGU tenta respaldar a referida portaria nas “Condicionantes” estabelecidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) ao jul-gar a Petição 3388, que trata sobre a Terra Indígena Raposa Serra do Sol, de Roraima. É de conhecimento público, no entanto, que o processo em questão ainda não transitou em julgado, restan-do aos ministros da Corte Suprema a apreciação de Embargos de Declaração, ocasião na qual terão a oportunidade de esclarecer diferentes questões sobre o tema, inclusive o alcance geográfico e temporal da aplicabilidade das ditas “condicionantes”.

Nesse sentido, respaldamos o enten-dimento de que tais “condicionantes” não possuem efeito vinculante e, por-tanto, não se aplicam às demais terras indígenas do país, nem tão pouco, pode a

sua aplicação ser retroativa. Os ministros do STF não podem confirmar tal equívo-co ao julgarem a Petição 3388.

Isso porque não se trata apenas de vilipêndio ao direito irreparável dos indígenas, posto que quando o Estado Nacional foi instituído essas populações nas terras brasileiras já viviam, mas também porque a interpretação cunhada na Portaria 303 tem forte potencial para ampliar ainda mais a violência contra os povos indígenas no país. Dados do Cimi mostram que 30 indígenas foram assas-sinados no Brasil de janeiro a agosto de 2012, sendo 19 apenas no Mato Grosso do Sul. Em 2011, foram 51 indígenas assassinados - de acordo com o Cimi.

Casos como o do cacique Jeusivan Silva de Lima Potiguara, que levou dois tiros na cabeça, no último dia 31 de julho, depois de sofrer ameaças por retomar terra já homologada, mas ainda invadida por usineiros e fazendeiros plantadores de cana-de-açúcar na Paraíba. Ou então da liderança João Oliveira da Silva Kaxa-rari, morto depois de sofrer emboscada, no último dia 26 de agosto, no município de Lábrea, sul do Amazonas. O que dizer então do calvário enfrentado há décadas pelo povo Guarani Kaiowá, no Mato Grosso do Sul?

E dizem ainda que o governo está em disputa...

Justificam os defensores do governo federal que algumas pos-turas do Palácio do Planalto, como se aliar aos ruralistas e publicar a Portaria 303, são fruto da disputa que existe envolvendo forças an-tagônicas de direita e esquerda no seio do governo. O problema é que o setor dito de esquerda só tem perdido de goleada: enquanto a presidenta não recebe os mo-vimentos sociais, desfila com a representação dos assassinos de índios, camponeses e quilombolas para todos os lados.

O que de fato precisa ser esclarecido

A Frente Parlamentar da Agro-pecuária, onde se organizam os deputados e senadores latifun-diários, vez ou outra pede clareza ao Ministério da Justiça sobre a demarcação de terras indígenas. Demarcação de terra indígena é um processo administrativo, técnico. A aquisição de terras por parte de políticos e latifundiários, ou as duas coisas, não; aconteceu e acontece à bala, à força, com portarias de ministros capachos e interesseiros. Está aí o que de fato precisa ser esclarecido.

Desabafo oportuno, ministra

“Tem certas licenças ambien-tais que demoram tanto que o animal em extinção vira o em-preendedor”, disse a ministra Ideli Salvati, da Secretaria das Relações Institucionais, referindo-se aos problemas judiciais enfrentados para o licenciamento da usina de Baixo Iguaçu, no Paraná. O desa-bafo é revelador em se tratando do atual governo.

MARIOSAN

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3 Jun/Jul – 2012

A situação dos acampamentos indígenas às margens das rodovias brasileiras perpassam décadas: o que se imaginava acabar com o governo Lula não acabou. Na página, crianças estudam à beira da rodovia no acampamento Mato Castelhano, do povo Kaingang. Na outra imagem, indígenas Guarani Mbyá mostram a água que bebem

“A

Conjuntura

Roberto Antonio LiebgottCimi Sul - Equipe Porto Alegre

esperança venceu o medo”. Essa foi a afirmação mais con-tundente pós-primeira eleição de Lula à Presidência da Repú-

blica, em 2002. A que medo se referia esse bordão? Era uma resposta ao temor que as oligarquias espalhavam, década após década, de que um gover-no popular produzisse uma guinada do país em direção ao comunismo, à falta de liberdade, ao autoritarismo. A esperança, que mobilizava os militan-tes e todos os segmentos sociais que acreditaram na plataforma de governo encabeçada por Lula, era de que as de-sigualdades gradativamente pudessem ser superadas, e que o país pudesse respirar enfim uma atmosfera menos coronelista e elitista.

Uma promessa mobilizava a espe-rança de quem elegeu o então pre-sidente da República: estruturar um novo modo de governar, tendo como eixo fundamental a justiça social. Mas rapidamente o ar se tornou carregado, as alianças feitas para garantir a eleição e posteriormente a chamada governa-bilidade foram conduzindo para uma política de cunho desenvolvimentista, alicerçada por grandes empreendimen-tos que, ao fim e ao cabo, beneficiaram e beneficiam as mesmas elites e oligar-quias que o governo petista prometia deslocar do poder. Lula seguiu os passos de Fernando Henrique Cardoso, honrando cada compromisso assumido por este e levando adiante o ajustamen-to do país à racionalidade neoliberal.

A esperança de quem apostou em mudanças foi vencida pelo medo das elites, pelo desejo de contemplar os interesses de todos os partidos e to-das as tendências políticas. O diálogo proposto pelo então presidente se con-cretizou, do lado do poder constituído, mas não na direção da população, não na direção dos movimentos sociais, ávi-dos por assegurar aquele conjunto de direitos consolidados na Constituição Federal, mas muito longe de se tornar realidade.

As referências para a governa-bilidade petista foram forjadas sob bases tucanas no tocante às demandas políticas e partidárias (composição de governo) e nos ditames neoliberais de gerir e administrar a economia. Com

isso, o governo que prometia ter um viés democrático e popular tornou-se populista, elitista e fisiológico.

Populista porque a política de go-verno foi amparada em medidas com-pensatórias, ações que visavam mitigar os impactos do desemprego, da misé-ria, da falta de expectativas da maioria da população. O governo criou, por exemplo, o programa “Fome Zero” e as “bolsas” adjetivadas de muitas formas, além de linhas de financiamentos e em-préstimos consignados (especialmente para os aposentados de baixa renda). Desse conjunto de medidas, podemos nos perguntar se produziram uma alte-ração substancial nas condições de vida e, principalmente, nas possibilidades de exercício da cidadania.

Governo elitistaAliado a este pacote de medidas,

sempre esteve o discurso de que era preciso fazer mais do que matar a fome dos esfomeados, era preciso gerar

empregos e reduzir as desigualdades estruturais. Na prática, porém, as ações conduzidas pelos dois governos suces-sivos de Lula não geraram mudanças nas condições que produzem as desi-gualdades. Ao contrário, “nunca na his-tória desse país” os bancos ganharam tanto, as grandes empresas cresceram tanto, o capitalismo respirou ares tão favoráveis. Não é à toa que grandes eventos mundiais se deslocaram para o país: Copa do Mundo, Olimpíadas e por aí afora.

E assim o governo assumiu e in-tensificou um viés elitista, já que para as grandes corporações da iniciativa privada – empreiteiras, agronegócio, mineradoras – ofereceu a estrutura e os recursos financeiros do BNDES. O Pro-grama de Aceleração do Crescimento (PAC) também se constituiu como flanco aberto à exploração da agricultura, da pecuária, dos minérios, do meio am-biente e dos recursos hídricos, e o cará-ter desenvolvimentista de corte elitista

não pode mais ser negado nem mesmo pelos mais esperançosos, que ainda vislumbram neste modelo algum tipo de ganho para as pessoas que vivem nas áreas impactadas pelas grandes obras. Basta uma breve pesquisa nos sites de busca da internet para ter acesso a uma avalanche de notícias sobre os danos ambientais e sociais do PAC.

Por fim, o governo petista também se mostrou fisiológico porque consoli-dou uma base de sustentação para os seus propósitos de poder e de gover-nabilidade com partidos e políticos que representam o coronelismo e as oligarquias que sempre se locupleta-ram com o Estado. Ou seja, o petismo se aliou ao malufismo, sarneyismo e outros “ismos” da corrupção, tendo em vista a consolidação de um pro-jeto de poder pensado não para um ou dois mandatos, mas para décadas. Exemplos evidentes disso foram as de-núncias e as comprovações de crimes de corrupção praticadas por políticos e seus apadrinhados nas esferas dos governos federal e estaduais (mensa-lão do PT, corrupção no DNIT, caso Carlinhos Cachoeira).

O quadro da dor, esboçado até aqui, seguiu pelos dois mandatos de Lula, e o governo da presidenta Dilma segue no mesmo desenho, sem gran-des alterações quanto à estrutura da governabilidade e ambições do partido em se manter no poder conquistado nas eleições de 2002. Há, no modo de governar, diferenças de estilo entre Lula e Dilma. Ele assumiu um perfil mais popular – e populista -, ela um estilo mais contido e autoritário. Mas tudo indica que os rumos e as políti-cas de governo são essencialmente as mesmas.

Para os setores mais favorecidos da sociedade destinam-se recursos e ações estratégicas que possibilitam lucratividade, expansão dos negócios e crescimento econômico, viabilizados por investimentos públicos, recursos ambientais e territoriais, incentivos fiscais e perdão de dívidas. Para os po-bres destinam-se o amparo social das bolsas, a inserção periférica na vida para consumo, através de financiamentos e de créditos para aquisição de bens, de eletroeletrônicos, de eletrodomésticos, até porque o crescimento desses seto-res depende do incremento de novos consumidores. Também se destinam

Dez anos De PT no PoDerGovernos populistas, elitistas e fisiológicos

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4Jun/Jul – 2012

De dezembro do ano

passado até março deste ano,

24 crianças dos povos

Madja e Huni Kui morreram

de diarreia e vômito na

Terra Indígena do Alto Rio

Purus. A reportagem do Porantim

flagrou, inclusive,

criança em avançado

estágio de desnutrição.

Na foto, sepultura de

criança morta em janeiro deste ano

Conjunturaaos pobres programas como o Minha Casa Minha Vida (um endividamento de décadas para as famílias que aderirem ao financiamento), tudo isso coroado por uma espécie de “título de nobreza” outorgado pelo governo a mais de 65% da população do país, que deixa de ser chamada de miserável e se converte em uma “nova classe média”, bastando para isso uma renda per capita de R$ 289 mensais.

No tocante às políticas públicas como a assistência à saúde, se estabe-leceu o caos. Não foram adotadas me-didas que pudessem assegurar o acesso à assistência hospitalar para todos os doentes que precisam de atendimento e que merecem um tratamento digno. Não existem ações preventivas eficazes, que ajudem a diminuir a vulnerabilidade das pessoas a doenças que facilmente podem ser combatidas e tratadas. Quanto à educação os problemas se avolumam, embora o governo tenha in-vestido na ampliação das universidades públicas e liberado verbas para linhas de financiamento aos estudantes de cursos superiores como o Fies (e aí os alunos também se tornam devedores) ou ainda o Pró-Uni que possibilita o ingresso de estudantes de escolas públicas em uni-versidades e faculdades. Entretanto, a realidade demonstra que estas medidas e incentivos não respondem a neces-sidade de uma maior democratização do ensino e, muito menos, asseguram aos professores remuneração digna e condições adequadas (infraestrutura, equipamentos, pesquisa) para a prática do ensino.

Indígenas e quilombolasCabe ainda uma reflexão sobre as

formas como o governo tem respon-dido às demandas das populações quilombolas e indígenas, uma questão que envolve as mais variadas forças e interesses e que requer uma atitude firme na defesa dos direitos estabele-cidos na Constituição Federal. Trata-se de colocar em exercício uma política justa e transformar as garantias legais em ações concretas que possibilitem a estes povos uma vida digna e as-segurem ao restante da sociedade a certeza da existência da democracia e da justiça.

E estas questões também se ligam ao pequeno produtor rural, o agricultor familiar, aquele que tem na terra sua fonte de sustento e vida. Há urgências a serem assumidas em relação a estes três segmentos sociais: os pequenos agricultores necessitam de incentivo e subsidio para a pequena produção; os que estão sem terra e que dela neces-sitam para sobreviver necessitam de uma verdadeira reforma agrária, aliada

a políticas de manutenção e fortaleci-mento das pequenas propriedades; os povos indígenas e quilombolas, que historicamente tiveram suas terras usur-padas, vendidas, loteadas, franqueadas para empreendimentos, necessitam de urgente demarcação e garantia de suas terras.

Os governos petistas, ao longo de mais de dez anos na administração do Brasil, foram relapsos e negligentes com os pobres do campo e com os povos indígenas e quilombolas. Isso porque um modelo alternativo de produção e uma vida em comunidade não parecem interessar quando o foco é um projeto desenvolvimentista que projeta megain-vestimentos e acomoda interesses de grandes corporações. Neste contexto, índios, quilombolas, trabalhadores rurais são tratados como estorvos e penduricalhos, como algo obsoleto e sem serventia para o sistema.

Na pauta de prioridades dos pode-res públicos que devem organizar e ela-borar o orçamento anual da União não há espaço para ações e serviços junto aos povos indígenas e quilombolas que não sejam aquelas indispensáveis para que se cumpra (de forma protocolar) exigências de declarações e convenções internacionais de que o país é signatá-rio. Nos discursos e nos documentos oficiais os povos indígenas são referidos como parte da riqueza cultural de que o Brasil deve se orgulhar, mas, na prática, acabam sendo lembrados não como portadores de direitos, mas como um estorvo ou como aqueles que merecem, dos administradores do Estado, o olhar da indiferença.

Um olhar retrospectivo mostra que a tônica da política indigenista destas décadas é a omissão. Verifica-se a morosidade por parte do órgão indige-nista, a Funai, em realizar demarcações das terras indígenas – os dois manda-tos de Lula e os dois anos de Dilma, somados, perdem até mesmo para o governo de Fernando Collor de Mello. Além de não demarcar, se observa também várias tentativas de redução de áreas tradicionais indígenas, ou de negociações em torno da compra e não do efetivo reconhecimento das terras, sendo esta medida inconstitucional e desrespeitosa à vida e dignidade destes povos.

Verifica-se ainda uma assustadora onda de violências praticadas contra os índios, que se espalha por todo o território nacional, mas tem expres-sões mais contundentes em estados como o Mato Grosso do Sul, que lidera o ranking de assassinatos, suicídios e agressões à pessoa registradas nos últimos relatórios de violências orga-nizados pelo Cimi. Outro exemplo é o que ocorre no Maranhão, estado em que madeireiros invadem, exploram e

desmatam territórios indíge-nas, levando também terror a comunidades, inclusive povos com pouco ou nenhum contato.

Os dados orçamentários disponíveis dão conta de que, ano a ano, os recursos voltados para atender as demandas indígenas são dimi-nuídos e contingenciados. Em 2012, para as ações e serviços junto aos povos indígenas, a Funai gastou, até o mês de junho, pífios 17% de todos os recursos previstos para o ano inteiro. Na rubrica demar-cações de terras, atribuição primeira do órgão indigenista e que mereceria atenção e os investimentos necessários

para iniciar ou dar andamento aos procedimentos demarcatórios foi uti-lizado apenas 2,55% dos já minguados R$ 20 milhões previstos para o ano. Na área de saúde a situação parece ser igual ou pior. Na rubrica estruturação de unidades de saúde ao atendimen-to à população indígena, dos R$ 26 milhões, gastou-se 0,01%; na rubrica promoção da saúde indígena, gastou-se apenas 23% dos quase R$ 600 milhões previstos; e para saneamento básico nas aldeias os dados demonstram o descaso absoluto, ou seja, a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) não gastou um centavo sequer dos recursos previstos para o ano.

A execução orçamentária para a política indigenista é o demonstrativo do descaso e do preconceito do gover-no com relação aos povos indígenas. Também é o demonstrativo de que os interesses econômicos se sobrepõem a vida de pessoas, a sobrevivência e pers-pectiva de futuro de povos e culturas. As iniciativas e os programas vinculados ao PAC são os demonstrativos irrefutá-veis desta verdade. Lembramos aqui a transposição do Rio São Francisco, os complexos hidrelétricos executados ou em execução em todas as regiões do Brasil, com destaque para o complexo hidrelétrico do Rio Madeira, Jirau, Belo Monte e tantos outros.

Foram, portanto, as escolhas feitas em 2002 que conduziram os governos petistas pelos caminhos das elites para com elas se fazer também elite. Lá, naquele contexto, o povo brasileiro foi submetido ao continuísmo de um simulacro da democracia. Cabe inda-gar se é este o caminho político que a sociedade e os movimentos populares querem que se constitua no país. Não é chegada a hora de romper com este modelo e iniciar efetivamente as bases para o BEM VIVER? n

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5 Jun/Jul – 2012

A retomada do território era alvo de disputa judicial, embora seja uma área dentro do perímetro da terra indígena já declarada como de ocupação tradicional pelo Ministério da Justiça

Nisio Gomes (à esquerda) participa de edição do Acampamento Terra Livre, em Brasília, ao lado de seu filho Valmir (à direita)

Luta pela Terra

Renato SantanaEditor do Porantim

hegou a 20 o número de de-tidos pela Polícia Federal de Ponta Porã, Mato Grosso do Sul, acusados da morte e de-

saparecimento do corpo do cacique Nisio Gomes Guarani Kaiowá, do tekoha Guaivyry, município de Amambai. Entre os presos, seis ‘produtores rurais’. A Fazenda Modelo dos ruralistas cai por terra e o agronegócio mostra o que de fato é – uma imagem com homens algemados e escondendo o rosto.

Chico Buarque de Holanda, em plena ditadura militar (1964-1985), escreveu de forma cifrada nas entreli-nhas da peça teatral ‘Fazenda Modelo: novela pecuária’: amputar do indivíduo a possibilidade de assumir o próprio destino é uma das formas mais radi-cais de abuso e perversidade. Falando de bois e vacas, o autor constrói uma alegoria da própria sociedade: na Fa-zenda Modelo as diferenças entre os grupos eram suplantadas em nome da produção e do desenvolvimento. A peça parece escrita neste início de século XXI e, ao que parece oportuna referência ao Brasil do campo.

Entre os presos está o presidente do Sindicato Rural de Aral Moreira, Osvin Mittanck, franco atirador de impropérios e mentiras contra os Guarani Kaiowá e organizações de apoio aos indígenas, caso do Cimi, e do órgão indigenista do Estado, a Funai. Mittanck teria se reuni-do, de acordo com a Polícia Federal, com outros acusados de no dia 18 de novem-bro de 2011 terem arquitetado, financia-do e executado a invasão ao Guaivyry, o que culminou na morte do cacique Nisio e no subsequente desaparecimento do corpo. Na Fazenda Modelo, tal prática é mais comum do que as investigações policiais descobrem.

A prisão preventiva do ruralista, porém, é apenas parte de organização criminosa investigada pelos federais. Uma empresa de segurança privada contratada pelos fazendeiros teria arregimentado os pistoleiros, que fi-zeram ‘o trabalho’. Os acusados serão

indiciados por formação de quadrilha, homicídio qualificado, corrupção ativa de testemunhas e fraude processual. Por sua vez, a Polícia Federal mudou de posição e trabalha com a certeza de que Nisio está morto, tendo pistas da localização do corpo.

Tais prisões muito têm a dizer. Este é o Brasil real submerso nos números de um desenvolvimento para poucos e tingido de sangue indígena, quilombola e camponês. Eis como tudo acontece na Fazenda Modelo da senadora Kátia Abreu (PSD/TO), também presidente da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA). Na Fazenda Modelo dos ruralistas, empresa de segurança é, na verdade, balcão para a contratação de pistoleiros; se antes esses assassinos ficavam pelos bares e praças de cidades ermas e afastadas dos grandes centros, hoje até carteira assinada possuem.

Tal realidade se verifica por todo o Brasil: amiúde grupos de extermínio e milícias se relacionam com tais empre-sas, tal como é possível constatar em São Paulo e no Rio de Janeiro. Não basta apenas o órgãos de opressão do Estado e a tradicional defesa das elites; é preci-so mais para garantir os desmandos e a fachada de ‘gente séria’ dessa elite rural que leva dor e sofrimento a centenas de brasileiros. Mesmo que alguns já tenham conseguido habeas corpus, estão expostos os respectivos atos macabros sempre abafados.

Não obstante, a Fazenda Modelo se expande e chega ao Palácio do

Planalto com seus bois, soja, cana de açúcar e pistoleiros; basta checar a aproximação da presidenta Dilma com o setor. E quem no Palácio do Planalto pode dizer que uma coisa não guarda relação com a outra? No Mato Grosso do Sul, por exemplo, a Fazenda Modelo está instalada há tempos: o cacique Nisio Gomes entrou para as estatísticas escandalosas que contabiliza mais de 200 assassinatos de Guarani Kaiowá desde 2003.

Afinal, quem matou os irmãos Vera, Marçal Tupã, Dorvalino, Xureti e tantos outros Guarani Kaiowá? O próprio ex--presidente Luiz Inácio Lula da Silva, quando era um crítico ferrenho do latifúndio, compareceu a enterros de indígenas, caso da morte de cacique Xi-kão Xukuru, em 1998, assassinado por pistoleiros contratados por fazendeiros.

Os Kaiowá não mentiramNo início das investigações, a Polícia

Federal pouco deu ouvidos aos indíge-nas do Guaivyry. Chegou ao cúmulo de, em nota, dizer que o indígena Valmir Guarani Kaiowá, filho de Nisio, seria indiciado por falso testemunho aos delegados. Conforme Valmir relatou, ele e o primo, testemunhas oculares do crime contra Nisio, eram interrogados por horas seguidas, de forma repetida, sem alimentação.

Nessa mesma linha, boatos passa-ram a correr dizendo que Nisio estava vivo e escondido pelos apoiadores não-índios dos Guarani Kaiowá. Um

interdito proibitório impetrado pelos fazendeiros passou a impedir o Cimi de entrar no tekoha Guaivyry. Na Fa-zenda Modelo, até mesmo a circulação de representantes da Presidência da República foi impedida por ruralistas em áreas reivindicadas pelos indígenas e tomadas por fazendas.

Isso ocorreu porque o governo federal sempre se portou como mero caseiro da Fazenda Modelo. Na história, presidentes que buscaram romper com o atraso do latifúndio foram retirados do poder de forma covarde. Por mais que o projeto popular do governo fe-deral tenha fracassado e o projeto de poder petista se mostrado vitorioso, e hoje a prioridade seja estreitar alianças com o latifúndio, se faz urgente a identi-ficação e demarcação das terras Guarani Kaiowá. Só com as terras garantidas e livres da praga atrasada do latifúndio e suas ervas daninhas os indígenas poderão ser plenos.

Os fatos mostram que os indígenas precisam ser ouvidos. Valmir e os de-mais Guarani Kaiowá do Guaivyry não mentiram e a Polícia Federal e veículos de imprensa devem desculpas a eles. Para o Guarani, a palavra está acima de tudo. Como senhores do próprio destino, os indígenas possuem não só uma sabedoria especial desprezada pela sociedade dita ‘civilizada’, mas também pleno conhecimento de suas próprias máculas e necessidades. Acima de tudo, compromisso com os valores humanos determinados por suas culturas.

A Polícia Federal, todavia, agiu e isso é essencial para coibir novas ações covardes perpetradas pelos fazendei-ros. O que é difícil sem os fazendeiros invasores fora das terras indígenas. Des-se modo, agora se espera que a Funai faça a sua parte – mesmo que depois de uma greve de servidores que expõe não só angústias de técnicos compro-metidos os direitos indígenas, mas o que de fato o governo federal reserva para a questão: inquéritos policiais para a investigação de mortes. n

Fazenda Modelo é desmascarada no Mato Grosso do SulSeis ‘produtores rurais’ são presos por envolvimento na morte do cacique Nisio Gomes

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Adelar CupsinskiAssessor jurídico do Cimi

Advocacia Geral da União (AGU) publicou a Portaria 303, de 16 de julho de 2012, que “dispõe sobre as salvaguardas institu-

cionais às terras indígenas conforme entendimento fixado pelo Supremo Tribunal Federal na Petição 3.388/RR”. Entretanto a AGU nada menciona em sua Portaria sobre o entendimento fixado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na Ação Cível Originária nº 312, referente à Terra Indígena (TI) Caramuru-Catarina Paraguaçu do Povo Pataxó Hã Hã Hãe, situada no Estado da Bahia, processo que tramitou por 30 anos na Suprema Corte, julgado no dia 2 de maio de 2012.

Do mesmo modo, a instituição que representa a União, judicial e extrajudicial-mente1, também não faz referência – na portaria – sobre outros julgamentos dos Tribunais, caso dos processos da TI Marãiwatsédé, dos índios Xavante de Mato Grosso, e da TI Guarani Araçá’i, dos índios Guarani de Santa Catarina.

O acórdão proferido pelo STF na Petição 3.388/RR julgou parcialmente procedente pedido formulado em ação popular, declarando a constitucionalidade da demarcação contínua da TI Raposa Serra do Sol e de seu respectivo proce-dimento administrativo demarcatório consubstanciado no Decreto 1.775/96, desde que observadas dezenove con-

6Jun/Jul – 2012

Portaria 303

Dalmo de Abreu DallariJurista

ma portaria publicada recen-temente, com a assinatura do advogado-geral da União, Luiz Inácio Adams, contém eviden-

tes inconstitucionalidades e ilegalida-des, pretendendo revogar dispositivos constitucionais relativos aos direitos dos índios, além de afrontar disposições legais. Trata-se da Portaria nº 303, de 16 de julho de 2012, que em sua ementa diz que “dispõe sobre as salvaguardas institucionais às terras indígenas”.

Antes de tudo, para que fique bem evidente a impropriedade da portaria aqui examinada, é oportuno lembrar o que é uma portaria, na conceituação jurídica. Em linguagem simples e obje-tiva Hely Lopes Meirelles, uma das mais

notáveis figuras do direito brasileiro, dá a conceituação: “Portarias são atos administrativos internos, pelos quais o chefe do Executivo (ou do Legislativo e do Judiciário, em funções administrati-vas), ou os chefes de órgãos, repartições ou serviços, expedem determinações gerais ou especiais a seus subordinados, ou nomeiam servidores para funções e cargos secundários” (Direito administra-tivo brasileiro, São Paulo, Ed. Rev.Trib., 1966, pág. 192).

Como fica evidente, a portaria não tem a força da lei nem da jurisprudên-cia, não obrigando os que não forem subordinados da autoridade que faz sua edição. No entanto, a Portaria nº 303, de 16 de julho de 2012, do advogado-geral da União, diz que o advogado-geral da União, no uso de suas atribuições, re-solve: “artigo 1º. Fixar a interpretação

das salvaguardas das terras indígenas, a ser uniformemente seguida pelos ór-gãos jurídicos da Administração Pública Federal direta e indireta...”.

É evidente a exorbitância, pois o advogado-geral da União não tem com-petência para impor sua interpretação a quem não é seu subordinado. Essa é uma das impropriedades jurídicas da referida portaria.

Para dar uma aparência de suporte jurídico aos dispositivos da portaria, nela foram inseridas, literalmente, restrições aos direitos constitucionais dos índios constantes de argumenta-ção expendida pelo ministro Menezes Direito no julgamento recente do caso reserva Raposa Serra do Sol, dos índios ianomâmi. A questão jurídica pendente do julgamento do Supremo Tribunal Federal naquele caso era o sentido da

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dições ou salvaguardas institucionais, “visando traçar as diretivas para a própria execução da decisão por parte da União”. Da decisão estão pendentes recursos de Embargos de Declaração que questionam justamente as chamadas condicionantes.

No julgamento da ACO 312 estava em discussão à nulidade de títulos inci-dentes sobre a TI do povo Pataxó Hã Hã Hãe. Neste processo, analisado cuidado-samente pelos ministros do Supremo, os títulos concedidos a particulares entre os anos de 1940 e 1980 pelos sucessivos governos do Estado da Bahia foram con-siderados nulos. No julgamento em que não foram estabelecidas condições ou salvaguardas institucionais, destacam-se os votos de pelo menos três ministros.

Os votos

Analisemos o voto do ex-ministro Eros Grau. Para o Relator “não há títulos de propriedades válidos no interior da reserva e a terra indígena abrange toda a área habitada, utilizada para o sustento dos índios, necessária à preservação de sua identidade cultural”.

Em seu voto, o ministro Celso de Mello fez referência ao instituto do indi-genato, com origem no período do Brasil Colônia, quando no Alvará Régio de 1º de abril de 1680, Portugal determinava a reserva de terras aos índios “primários e naturaes senhores dellas”. Na sequência, Celso de Melo discorre sobre os direitos indígenas nas diferentes Constituições

Republicanas, especialmente de 1988, onde os direitos indígenas foram re-conhecidos em sua plenitude. Finaliza seus argumentos favoráveis aos índios mencionando a Convenção 169 da Orga-nização Internacional do Trabalho (OIT).

Para o Presidente do STF, ministro Carlos Ayres Britto, a terra não é um bem mercantil, passível de transação: “Para o índio, a terra é um totem horizontal, é um espírito protetor, é um ente com o qual ele mantém uma relação umbilical”. Por conse-guinte, os Tribunais Regionais Federais, em julgamentos diversos, têm seguido o entendimento do STF, nos processos sobre terras indígenas.

O TRF-1, de Brasília, ao analisar recurso de apelação2 de pretensos proprietários de terras incidentes na área tradicional do povo Xavante de Marãiwatséde, deu ganho de causa aos indígenas, com base nas decisões do STF. Para os desembargadores da 6ª Turma, “a demarcação administrativa, homolo-gada pelo Presidente da República, é ato estatal que se reveste de presunção juris tantum de legitimidade e veracidade, possuindo natureza declaratória e força

A AGU contra a Justiça e os direitos

disposição constante do artigo 231 da Constituição, segundo o qual “são reconhecidos aos índios os direitos originários sobre as terras que tradicio-nalmente ocupam”.

Esclarecendo o alcance dessa dis-posição, diz o parágrafo 1º do mesmo artigo: “São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produ-tivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”.

Apesar da clareza desse dispositi-vo, ricos invasores de terras indígenas pretendiam que só fosse assegurado aos índios o direito sobre os locais de residência, as malocas, propondo que

Portaria AGU 303: advocacia e ilegalidade anti-índio

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7 Jun/Jul – 2012

Povos indígenas passaram a se mobilizar em todo país contra a Portaria 303, caso das ocupações ao prédio da AGU e mobilizações às portas do STF, em Brasília. As comunidades exigem a revogação imediata da portaria

autoexecutória (RE 183.188, Rel. Min. Celso de Mello e PET n. 3.388-4 RR, Rel. Min. Carlos Britto)”.

No acórdão prolatado, ao enfrentar questão controvertida sobre o marco temporal, mais uma vez os Desem-bargadores fundam-se no julgamento da Raposa Serra do Sol: “Talvez não houvesse índios naquelas terras no ano de 1988, mas decerto que ainda havia a memória de seus antepassados, tra-duzida no ‘sentido anímico e psíquico de continuidade etnográfica’, no dizer do Min. Carlos Britto, no julgamento do caso que ficou conhecido como ‘Raposa Serra do Sol’ [PET n. 3.388/RR]”.

Terras tradicionalmente ocupadas

Nesta esteira se deu o entendi-mento da 4ª Turma do TRF-4, de Porto Alegre, ao analisar Ação Anulatória de Ato Administrativo do Movimento de Defesa da Propriedade Privada e Digni-dade (DPD) e outros3 contra a União e a Funai, tendo por objeto a suspensão dos efeitos de Portaria do ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, que

a demarcação da área ianomâmi só se limitasse a esses espaços, formando uma espécie de ilhas ianomâmi. O escla-recimento desse ponto era o objeto da ação, e o Supremo Tribunal Federal deu ganho de causa aos índios, consideran-do legalmente válida a demarcação de toda a área tradicionalmente ocupada pela comunidade.

Numa tentativa de reduzir o alcance da ocupação, o ministro Menezes Di-reito declarou que reconhecia o direito dos índios, mas que eles deveriam ser interpretados com restrições, exter-nando tais limitações em dezenove itens, que denominou condicionantes. Estas não integraram a decisão, que foi exclusivamente sobre o ponto ques-tionado, a demarcação integral ou em ilhas. E agora a portaria assinada pelo advogado-geral da União tenta ressus-

citar as condicionantes, além de acres-centar outras pretensas restrições aos direitos indígenas. Assim, por exemplo, a portaria diz que “é vedada a ampliação da terra indígena já demarcada”.

Ora, bem recentemente o Supremo Tribunal, julgando o questionamento da doação de terras dos índios pataxós a particulares, feita pelo governo do estado da Bahia, concluiu pela nulida-de de tais doações, o que terá como consequência a ampliação da área até agora demarcada como sendo o limite do território pataxó. E nenhuma portaria pode proibir isso.

Outro absurdo da portaria aqui questionada é a atribuição de compe-tência ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, autar-quia vinculada ao Ministério do Meio Ambiente, para regular o usufruto dos índios dentro de suas terras, direito expressamente assegurado pela Cons-tituição e que não pode ser regulado por uma portaria do advogado-geral da União.

Pelo que já foi exposto, é evidente absurdo pretender atribuir novas com-petências a uma autarquia federal por meio de uma portaria da Advocacia Geral da União. Coroando as improprie-dades jurídicas, a portaria em questão diz que é assegurada a participação dos entes federados no procedimento administrativo de demarcação das áreas indígenas, afrontando a dispo-

sição expressa e clara do artigo 67 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, segundo o qual “A União concluirá a demarcação das terras indí-genas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição”. Como é bem evidente, a competência para a demarcação é da União, somente dela, sendo inconstitucional a atribuição de competência aos estados federados como pretendeu a portaria.

Por tudo o que foi aqui exposto, a Portaria nº 303/2012 da Advocacia Geral da União não tem validade jurí-dica, e qualquer tentativa de lhe dar aplicação poderá e deverá ser bloque-ada por via da ação judicial própria, a fim de que prevaleça a supremacia jurídica da Constituição, respeitados os direitos que ela assegurou aos índios brasileiros. n

declarou como terras tradicionalmen-te ocupadas por índios Guarani. Os autores argumentaram, no processo, que a interpretação que o STF deu à expressão “tradicionalmente ocupadas por indígenas” do artigo 231 da Consti-tuição Federal refere à necessidade de ocupação atual da área pelos indígenas, não englobando as terras ocupadas por agricultores desde 1920.

Entretanto, o colegiado entendeu da seguinte forma: “os requisitos para a demarcação de áreas indígenas são a ocupação atual dos índios e a tradicio-nalidade, entendida esta como o ânimo de permanecer no local, com o escopo de manutenção da cultura indígena. Consoante o inciso 1º do artigo 231 do texto constitucional, as terras tra-dicionalmente ocupadas pelos índios não são apenas as áreas ocupadas pelos indígenas no dia 5 de outubro de

1988, mas também todas aquelas que sejam imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários ao seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultura”.

Pretensos proprietários também têm recorrido ao STF contra atos da Presi-dência da Funai por ter constituído gru-po técnico para a realização de estudos complementares de natureza cartorial e fundiária necessários à revisão dos limi-tes de T. I., alegando substancialmente descumprimento da decisão da Suprema Corte na Petição 3.388/RR, isto porque a ampliação de terras indígenas estaria expressamente proibida.

Em uma das decisões4, o ministro Ayres Britto negou o pedido informan-do que há dúvida quanto ao próprio cabimento da ação, “uma vez que ação popular não é meio de controle abstrato de normas, nem iguala a uma súmula vinculante”.

Em caso similar, o ministro Ricar-do Lewandowski, ao analisar recurso envolvendo a revisão de limites da TI Governador, negou Reclamação do mu-nicípio de Amarante, no Maranhão, por

“manifesta inadmissibilidade” da ação. Para Lewandowski, o acórdão invoca-do – Petição 3.388/RR – nas razões da reclamação “apreciou, especificamente, o procedimento de demarcação da Reserva Indígena Raposa Serra do Sol, não podendo, por isso mesmo, ter sua autoridade afrontada por atos e deci-sões que digam respeito a qualquer outra área indígena demarcada, como o caso narrado nos autos”. Lewandowski, com base em decisão5 da ministra Cármen Lúcia, nega o chamado efeito vinculante.

Por fim, a interpretação da AGU sobre o julgamento da Petição 3.388/RR é equivocada e não se sustenta, pois se mostra, entre outros fatores, contrária a jurisprudência consolidada dos tribu-nais, que tem reconhecido o direito ori-ginário sobre as terras e demais direitos constitucionais dos povos indígenas em sua plenitude. n

1 Art. 131 da Constituição Federal2 Processo 0053468-64.2007.4.01.0000/MT3 Processo 5000201-60.2012.404.7202/SC4 Reclamação 80705 Reclamação 4.708/GO

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Renato Santanado Rio de Janeiro

urante a Cúpula dos Povos, even-to paralelo à Rio+20 ocorrido entre o movimento indígena as-sumiu a vanguarda da defesa dos direitos da sociedade brasileira e do mundo. Um protagonismo

anunciado por um primeiro semestre do ano de muita mobilização em todo o país e pelo senso de oportunidade de transfor-mar o Acampamento Terra Livre e a Cúpula dos Povos em instrumento de articulação política.

A avaliação dos indígenas sobre o Acampamento Terra Livre (ATL), ocorrido entre os dias 15 e 22 de junho na Cúpula dos Povos, instalada no Aterro do Fla-mengo, Rio de Janeiro, era nítida desde o primeiro dia: “Temos uma oportunidade ímpar para mostrar ao país e ao mundo o que queremos. Existe um pauta que não está dentro da Rio+20, mas que fala sobre as necessidades e reivindicações dos povos indígenas”, afirmou Narubia Karajá, da Ilha do Bananal, Tocantins.

Se por um lado o primeiro semestre foi marcado por diversos episódios de resistência dos indígenas, com destaque à Proposta de Emenda à Constituição 215, por outro se revelou reflexo de múltiplas problemáticas vivenciadas nas comunida-des. Nos primeiros cinco meses desse ano, dez jovens Karajá, entre 15 e 20 anos, se suicidaram na Ilha do Bananal. Na terra indígena vivem dois mil indivíduos, o que torna ainda mais alarmante o quadro. Entre os Karajá, a prática do suicídio nunca foi registrada, tal como a prática de ceifar a própria vida está na história recente de povos como os Guarani Kaiowá e outras nações indígenas da Amazônia.

“Então estamos vendo os jovens se matando em sequência. Falta perspectiva de vida num período delicado da vida, de afirmação da identidade; não se pode ser índio como antes, mas também não somos aceitos pela sociedade envolvente em nossos direitos e diferenças”, analisa a indígena. Para Narubia, consequência di-reta do atual modelo de desenvolvimento. 8Jun/Jul – 2012

Entre as reivindicações

levadas pelos povos,

demarcação e homologação de terras, melhorias

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Entre as reivindicações levadas pelos povos, demarcação e homologação de terras, melhorias na situação da saúde, fim dos grandes empreendimentos em terras indígenas, aprovação do Estatuto do Índio, políticas públicas na perspectiva das comunidades. “Tudo isso já foi debatido nas outras edições do ATL. Aqui no Rio de Janeiro temos de tirar uma carta e ir à luta”, apontou de forma taxativa a indígena.

A opinião parecia tomar força entre os povos presentes. “Pergunto aos parentes: como podemos discutir desenvolvimento sustentável, meio ambiente e tudo mais sem nossas terras demarcadas e desintrusadas? Da Eco 92 surgiram promessas nunca cum-pridas, como o caso da devolução da Terra Indígena Marãiwatsédé, dos Xavante. Da Rio+20 não vai sair nada que preste para a gente, então temos de ir para as ruas”, disse Neguinho Truká, de Pernambuco.

E foram. Do Aterro do Flamengo, no dia 18 de junho, uma marcha com mais de 1.500 indígenas rumou para o Banco Nacional de Desenvolvimento Social e Econômico (BNDES), no centro do Rio de Janeiro. As reivindicações eram pelo fim de financia-mentos de obras que causam impactos em terras indígenas, caso da UHE Belo Monte, Transposição do Rio São Francisco e do IIRSA (Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana).

O BNDES por pouco não foi ocupa-do, mas os indígenas deram um abraço simbólico no prédio e permaneceram na porta do banco, até serem recebidos pela presidência da instituição. Uma comissão indígena foi formada para nos próximos meses realizar um levantamento das obras financiadas pelo BNDES que impactam terras indígenas.

“Isso acontece com a Transposição do rio São Francisco, a hidrelétrica de Belo Monte e estradas federais, como também em obras menores, como aquelas que são resultado do pedido de financiamento de governadores ao BNDES”, reafirma Negui-nho Truká.

Os indígenas mostraram como o di-nheiro do BNDES acaba alimentando uma cadeia de destruição, desrespeito a consti-tuição e a tratados internacionais, caso da

consulta prévia estipulada pela Convenção 169, da Organização Internacional do Tra-balho (OIT).

A presidência do BNDES afirmou des-conhecer os relatos e as denúncias. Além disso, explicou que não possui nenhum mecanismo para rastrear se os recursos liberados para grandes ou médios empre-endimentos e seus efeitos em áreas indí-genas ou reivindicadas pelos povos como de coupação tradicional.

Riocentro: enfrentamento temido pelo governo

A mobilização no BNDES, por si só, re-presentava até aquele momento o ato mais radical da Cúpula, que concentrava orga-nizações sociais do país e do mundo. Pelo centro do Rio de Janeiro, outras marchas foram feitas, mas nenhuma proporcionou enfrentamento real ao governo federal ou aos representantes de países presentes na Rio+20, que discutiam uma carta longe de atender os anseios populares e de comu-nidades tradicionais ao redor do planeta.

Para os indígenas, em interface com a conjuntura específica enfrentada pelos povos nas regiões, a postura estratégica rumava ao enfrentamento. “O governo bra-sileiro vai para outros países e fala que tem programa para os povos indígenas, mas não é verdade e não gostamos de mentira”, atacou Aguinaldo Xavante, do Mato Grosso, também integrante da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab). Desse modo, as condições estavam oferecidas para que os indígenas rumassem para a sede da Rio+20 - o que acabou acontecendo durante ato público em defesa da co-munidade de Vila Autódromo, ao lado do Riocentro.

Por terra e vida,povos indígenas transformam Acampamento em foco de mobilização e resistência

Durante o primeiro semestre des-te ano, os povos indígenas brasileiros realizaram mobilizações, retomadas de terras de ocupação tradicional e toda a sorte de luta pelos direitos que os resguardam – amiúde desrespeita-dos. Na bagagem dos representantes que chegavam ao Rio de Janeiro para a Cúpula dos Povos, entre os dias 15 e

23 de junho, uma lista de reivindicações a serem enviadas para as autoridades reunidas na Rio+20 e motivação para protestos.

Na Bahia, os Pataxó Hã-Hã-Hãe reocu-param 95% das áreas de invasão da Terra Indígena Caramuru-Paraguaçu antes dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) votarem pela anulação dos títulos

Um semestre de mobilizações e lutas

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9 Jun/Jul – 2012

O governo brasileiro vai para outros países e fala que tem programa para os povos indígenas, mas não é verdade e não gostamos de mentira”, atacou Aguinaldo Xavante, do Mato Grosso

tanto por defensores, quanto por críticos às propostas que rondam as comunidades indígenas por todo o país. Na carta final da Rio+20, os temas não foram tão aprofun-dados conforme o esperado.

Para o indígena, “esses projetos pos-suem falas enganosas e estão tentando impor ideias, dizendo que resolvem a vida dos indígenas. Não entendemos assim e vemos que beneficia mesmo as grandes empresas, as multinacionais, transnacio-nais”. O indígena Bororo afirmou que “o jogo tem sido pesado” para convencer as comunidades sobre os projetos, o que gera conflitos e divisões internas.

“O REDD tira a autonomia dos povos indígenas sobre as terras de ocupação tradicional e as empresas querem saber é de comprar o crédito de carbono e ter o direito de poluir”, analisou Félix Rondon. No Acre a situação é tão escandalosa que o próprio governo se encarrega de ir atrás dos contratos de REDD e depois procurar os povos indígenas para convencê-los do mecanismo.

Nas comunidades estão as posições mais críticas ao REDD, disse Félix Bororo. “O progresso que estamos vendo na ver-dade é a dizimação dos povos indígenas. A Rio+20 é um local de decisões onde os indígenas, quilombolas e demais povos não participam”, atacou Ninawá Huni Kuĩ. Ele afirma que em seu estado existe “uma grande mentira” ao redor do desenvolvi-mento sustentável apregoado pelo governo Tião Viana.

“Tem muita madeira ilegal retirada de área indígena. No Acre, os gados dos fazendeiros são vacinados e os indígenas não, que seguem morrendo de doenças simples”. Um documento intitulado Dossiê Acre foi divulgado durante a Cúpula, com lançamento durante evento envolvendo a questão ambiental e organizado pelo governo do Acre.

Luta pela terraO cacique Augusto Kaingang, do Rio

Grande do Sul, frisou a questão da terra: “Estamos no meio do ano e a FUNAI exe-cutou apenas 2% dos recursos destinados para a retirada de ocupantes das terras indígenas demarcadas. Isso não podemos aceitar.

Por outro lado, Augusto mostrou pre-ocupação com a tramitação da PEC 215, aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara Federal. “Chamo isso de projeto genocida. Querem as terras dos índios. O governo não cumpriu com a palavra e nossos direitos constitucionais ainda não são cumpridos”, afirmou.

Maurício Guarani Mbyá, também do Rio Grande do Sul, ressaltou que não é mera coincidência acontecer o ATL na Cúpula, de forma paralela à Rio+20: “Aqui temos ideias diferentes das apresentadas lá, além de direitos violados. Temos que discutir esses ataques e como vamos nos mobilizar por aquilo que a Constituição diz que temos. O governo precisa tomar vergonha na cara”.

Durante o Dia Mundial do Meio Am-biente, a presidenta Dilma Rousseff assinou alguns decretos envolvendo a questão in-dígena; para o bem e para o mal. Uma das medidas foi a oficialização e ampliação do Parque do Descobrimento, no extremo sul baiano. O problema é que o território de 22.678 hectares é reivindicado pelo povo Pataxó como área de ocupação tradicional. A Fundação Nacional do Índio (Funai), inclusive, está com procedimento de iden-tificação em andamento. Dentro das terras existem cinco comunidades indígenas.

“Cabral invadiu essas terras e nos-sos antepassados sofreram. Não mudou muita coisa, porque retiram os direitos e destroem a natureza. Sentimos na alma, como se fosse em nosso corpo”, declarou Karuan Pataxó. n

de fazendeiros. Em outra terra já homo-logada, Marãiwatsédé, no Mato Grosso, os Xavante intensificam as mobilizações para a retirada dos invasores – que ocu-pam a área a duas décadas, desde a Rio Eco 92.

Povos do Tocantins, Rio Grande do Sul e Mato Grosso do Sul trancaram rodovias contra a Proposta de Emenda à Consti-

tuição (PEC) 215, que visa transferir do Executivo para o Legislativo o procedi-mento administrativo de demarcação e homologação de territórios indígenas, além de exigirem a demarcação de terras e melhorias no atendimento a saúde.

Em Brasília, foram protestos no Con-gresso Nacional, ocupação da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), no

Ministério da Saúde. No Acre, Pará e Maranhão as sedes regionais da FUNAI e SESAI foram ocupadas, bem como um dos canteiros de obra da Usina Hidrelétrica de Belo Monte. No sertão nordestino, indí-genas marcharam contra a Transposição do Rio São Francisco.

Sob o recente histórico de ações dire-tas, o movimento indígena se organizou

para a 9ª edição do Acampamento Terra Livre (ATL), que ocorreu duran-te a Cúpula dos Povos, instalada no Aterro do Flamengo. Organizada para pautar as demandas populares que não estariam na Rio+20, a Cúpula, porém, colidiu estrategicamente com a postura do movimento indígena de enfrentamento e resistência (RS).

Um semestre de mobilizações e lutas

A manifestação na Vila Autódromo corria de forma alheia aos verdadeiros anseios de mobilização almejados pelos povos indígenas. Liderados por Raoni Metutire, líder Kayapó, os indígenas seguiram para o Riocentro. Quem tentasse pará-los era desmotiva-do pelas bordunadas de Raoni. Como se já estivessem presentes no ato, ime-diatamente representantes do governo tentavam dissuadir os indígenas. Em vão: o grupo só foi parado por policias da Tropa de Choque, Força Nacional, tanques e soldados do Exército forte-mente armados.

“Fomos lá para chamar a atenção das autoridades presentes e ver se eles respei-

tam mais os indígenas. Precisam nos ouvir, não pode ser assim como eles querem. Acham que não somos importantes”, decla-rou Raoni ao Porantim. O clima de tensão prevaleceu até que o ministro-chefe da Secretaria Geral da Presidência da Repú-blica Gilberto Carvalho foi pessoalmente negociar com os indígenas e prometer que uma comissão seria recebida na Rio+20, o que aconteceu no dia seguinte.

REDD e economia verde Félix Rondon Bororo veio do Mato

Grosso com uma carta nas mãos assinada pelos povos indígenas do estado contra o mecanismo REDD e a economia verde, temas levantados na Cúpula dos Povos –

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10Jun/Jul – 2012

“Todos estão conscientes da luta pela

terra. As sete aldeias espalhadas

já não comportam

toda população. Dos 3.300

índios, grande parte está na

periferia, mas continuam

tendo vínculo com nossa

cultura”, afirma

Gecilnaldo Queiroz

Xukuru Kariri. Nas fotos,

ritual Praiá

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Direitos indígenas

Luana Luizyde Brasília

epois de intensa luta e resistên-cia, os Xukuru Kariri consegui-ram anular a decisão liminar do Tribunal Regional Federal da 5ª

Região (TRF-5), de Recife, Pernambuco, que concedia reintegração de posse a favor dos latifundiários. Desde outubro de 2011, os indígenas estão em uma área de retomada no município de Pal-meira dos Índios, Alagoas, que possui 184 hectares.

A retomada do território era alvo de disputa judicial, embora seja uma área dentro do perímetro da terra indígena já declarada como de ocupação tradi-cional pelo Ministério da Justiça. Por conta disso, os fazendeiros reclamavam sua reintegração.

Em audiência conciliatória entre os indígenas e os fazendeiros ficou esclarecida a permanência dos indíge-nas, e levantamento fundiário da área pela Funai, porém uma nova liminar do (TRF-5), publicada no último dia 26 de julho, determinava aos Xukuru Kariri a desocupação com possibilidade até mesmo de uso de força policial. O Mi-nistério Público Federal (MPF) interveio no processo e impetrou recurso contra o pedido de reintegração.

Lideranças do povo Xukuru Kariri estiveram na primeira metade do mês de julho em Brasília para cobrar da Fundação Nacional do Índio (Funai) agilidade na demarcação do território indígena. O procedimento administra-tivo corre há 32 anos.

A Procuradoria da República, em Ação Civil Pública, condenou à multa a Funai e a União pela morosidade na de-marcação das terras, que acarreta pre-juízos diversos à integridade do povo. “O objetivo da nossa vinda a Brasília é relatar a morosidade da Funai. Temos terras retomadas desde 2008, mas o processo não avança. Há terras em que a Funai avaliou só por avaliar; a terra indígena atualmente virou negócio”, la-menta Antonio Celestino Xukuru Kariri.

Ameaças são corriqueiras contra os Xukuru Kariri. De 1994 até 2012,

ocorreram 10 episódios de violência, com casos de desaparecimentos e as-sassinatos. “Já não andamos na cidade para vender nossos materiais porque as lideranças são constantemente ame-açadas”, afirma o pajé Celso Celestino Xukuru Kariri.

Já foram realizados três levanta-mentos da área dos Xukuru Kariri, mas a cada levantamento a área só diminui. Os 36 mil hectares iniciais de terras de ocupação tradicional caíram para sete mil, declarados pelo Ministério da Justiça.

A revogação da liminar representa uma vitória para a comunidade indíge-na, pois garante a permanência do povo dentro do território tradicional. Agora resta a homologação da terra pela pre-sidenta Dilma Rousseff, a desintrusão dos não índios na área que pode ser realizada a qualquer momento, registro em cartório imobiliário e na Secretaria do Patrimônio da União, pela Funai.

Na área da retomada já há cultivo de hortas, casas e uma escola. “Direito não se pede, mas estamos aqui para reivindicá-lo, pois hoje ele está sendo extirpado. Essa história só nos trouxe extermínio”, afirma Antonio Ricardo da Silva Xukuru-Kariri.

A população indígena Xukuru-Kariri conta atualmente com mais de três mil indígenas, e menos da metade deles está presente nas aldeias; o restante vive na periferia do município de Pal-

meira dos Índios por falta da demarca-ção do território.

“Todos estão conscientes da luta pela terra. As sete aldeias espalhadas já não comportam toda população. Dos 3.300 índios, grande parte está na periferia, mas continuam tendo vínculo com nossa cultura”, afirma Gecilnaldo Queiroz Xukuru Kariri.

Educação, saúde e PEC 215Outra reivindicação é a educação:

não há infraestrutura e professores preparados. A falta de uma categoria es-pecífica para professores em concursos corrobora com a fragilidade no sistema educacional. Segundo os indígenas Xukuru Kariri, o Ministério da Educação liberou recursos para construção de escolas, mas as localizadas nas comuni-dades indígenas não foram concluídas.

“Não temos educação indígena para o nosso povo. São professores mal re-munerados e despreparados. Temos que sim estudar as questões do branco, mas e as nossas próprias questões? Para mim o terrorismo que o Estado faz é com as minorias, mas se todas essas minorias se unissem daria uma maioria, outro Brasil”, comenta Idyarony Xukuru Kariri.

A carência de uma saúde pública que dê assistência necessária aos indí-genas também foi pauta das reivindi-cações. “A Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena) contratou uma empre-sa terceirizada para prestar serviço. O descaso é latente e não há a assistência devida”, afirma Celso Xukuru Kariri.

Em audiência com representantes da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, os indígenas saíram com o compro-metimento da pasta em articular uma reunião com os ministérios da Saúde e Educação para tratar dos problemas, além de encaminhar um ofício ao Minis-tério Público Federal e a Funai sobre a demarcação do território.

A Proposta de Emenda à Constitui-ção (PEC) 215, que propõe a transfe-rência da demarcação e homologação das terras indígenas do Executivo para o Legislativo, também foi tratada pelos indígenas. “Essa PEC é inconstitucional; retira nossos direitos, vai destruir nosso povo”, pontua o pajé Celso Celestino Xukuru Kariri. n

Ouça o Potyrõ Todos os sábados e domingos, às 12h35,dentro do Programa Caminhos da Fé, na rádio Aparecida. A transmissão é para todo o Brasil.

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Justiça reconhece direito dos Xukuru Kariri sobre território há 32 anos em processo de demarcação

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11 Jun/Jul – 2012

As audiências foram motivadas por conta da velocidade com que grandes obras de infraestrutura são implantadas na região amazônica. Na foto, moradias de comunidades indígenas isoladas são encontradas na Amazônia acreana

M

Povos isolados

Equipe Povos IsoladosCimi

embros da Equipe dos Povos Isolados do Conselho Indigenis-ta Missionário (Cimi) discutiram, durante audiência realizada

em Brasília no final de julho, com inte-grantes da Fundação Nacional do Índio (Funai), Ministério Público Federal e Secretaria Nacional de Articulação Social a atenção específica às invasões que os territórios dos povos indígenas isolados vêm sofrendo na Amazônia.

Entre os assuntos debatidos, ganhou destaque a aplicação da consulta prévia, livre e informada da Convenção 169 da Organização Internacional do Traba-lho (OIT) no caso de áreas destinadas aos povos indígenas em situação de isolamento. Com o avanço de grandes obras, a discussão ganha importância e urgência.

Uma análise da realidade histórica e atual dos povos indígenas isolados desnudou as raízes mais profundas da contradição do capitalismo, que repro-duz a sua essência (exploração, acumu-lação e dominação), mediante o ataque sistemático a todas as formas de vida no planeta. Por isso, sempre existe uma justificativa para desrespeitar e perse-guir esses povos que já foram acusados de selvagens, traiçoeiros, preguiçosos, incapazes ou então de obstáculos ao desenvolvimento, além de ameaças a se-gurança nacional e até de privilegiados.

As audiências foram motivadas por conta da velocidade com que grandes obras de infraestrutura são implantadas na região amazônica. Os empreendi-mentos se estendem para além das fronteiras brasileiras, transformando a

região num grande canteiro de obras. A presença de povos isolados nessas áreas é ignorada ou esquecida. Em ou-tras situações, o governo federal chega a agir na má-fé.

A existência de grupos isolados na área de construção das hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau, no rio Madeira, Rondônia, só foi reconhecida oficial-mente pelo governo depois que todas as licenças de instalação desses empre-endimentos tinham sido concedidas. Em função dessas obras, os grupos isolados foram obrigados a fugir para áreas mais distantes, sem que ninguém tenha a

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Formas de Pagamento:

Aplicação da Convenção 169 em áreas de índios isolados é discutida em audiência

mínima condição de avaliar a extensão dos impactos que estão sofrendo, além de serem desrespeitados frente ao direi-to constitucional às terras que ocupam. Outros empreendimentos e obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) afetam os povos isolados em nos raios de impacto.

Em determinadas situações, as informações sobre a existência desses povos vêm de relatos testemunhais de ribeirinhos, extrativistas e outros indígenas. Tais relatos não são devida-mente considerados, dependendo das conveniências políticas e econômicas intrínsecas.

Com o objetivo de aprofundar a realidade dos povos isolados, foram firmados os seguintes compromissos:

1. Realizar uma conversa com a procuradora do Mato Grosso para mais informações sobre a construção da estrada que cortará a Ilha do Ba-nanal, área de isolados que também abarca o estado do Tocantins;

2. Organizar uma conversa com os órgãos governamentais sobre a situação do Vale do Javari, estado do Amazonas, durante o mês de agosto e indicar as lideranças indígenas para reunião;

3. Organizar um seminário para discutir a situação dos índios isola-dos;

4. Levantar processos sobre a questão dos Suruwahá que estão na Justiça no Distrito Federal;

5. Incluir os Avá Canoeiro, da Mata Azul, região da Ilha do bananal, no programa de segurança alimentar do governo federal, para ajudar na

Compromissossustentabilidade desse povo;

6. Realizar uma conversa entre os órgãos governamentais sobre a situa-ção de invasão dos territórios onde se encontram os povos isolados;

7. Uma ação em conjunto com os órgãos para encaminhar a situação do Maranhão em defesa dos territórios indígenas e retiradas das madeireiras;

8. Realização de um seminário junto com o MPF, órgãos e entidades para troca de informações;

9. Que os documentos apresentados pelos indígenas no Acampamento Terra Livre, ocorrido durante a Cúpula dos Povos, no Rio de Janeiro, sejam acres-centados à situação dos povos indígenas Isolados;

10. Discussão sobre a consulta prévia – a Convenção 169 da OIT - em relação aos povos isolados e demarcação dos territórios e área de restrição perma-nente.

Pelas audiências, nota-se que o governo necessita urgentemente es-

truturar políticas específicas para os povos isolados na Amazônia. As políticas devem ser mais audaciosas e alicerçadas nas formas de relacio-namento com a natureza e o desejo das comunidades de permanecer vivendo tradicionalmente, tal como as gerações anteriores. Valorizando sempre a riqueza que os índios iso-lados possuem e que lhes fornece vida: a floresta.

Em ralação aos povos isolados na Amazônia, destaca-se a relação intrínseca que os grupos estabelecem com a floresta. Esses povos originá-rios usam os recursos naturais con-servando a biodiversidade de modo, indiscutivelmente, sustentável. Num momento em que o mundo busca entender as mudanças climáticas e demais alterações pelas quais o planeta está passando, também é indiscutível entender que os povos isolados prestam um serviço ambien-tal real para a humanidade. n

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12Jun/Jul – 2012

“A elite ainda está lá em Pesqueira.

Matando não conseguiram

dominar os Xukuru, então

criminaliza para tentar

impor o medo. Mesmo assim, o povo

continua unido e trabalhando

pela comunidade na perspectiva da

descolonização e uso coletivo do território”, aponta Zé de

Santa

O

Criminalização

Renato SantanaEditor do Porantim

vice-cacique Xukuru do Ororubá José Barbosa dos Santos, mais conhecido como Zé de Santa, foi inocentado no início do mês

de julho da acusação de ser o mandante do assassinato da liderança indígena Chico Quelé, em agosto de 2001. Por quatro votos a três, depois de 15 horas de julgamento, o Tribunal do Júri da 28ª Vara Federal da Subseção de Arcoverde, município do sertão pernambucano, ab-solveu Zé de Santa. Depois de enfrentar o aparato do Estado durante 11 anos, o vice-cacique é um homem livre.

“Tivemos um julgamento tenso e duro, mas o resultado derrota mais uma tentativa de criminalização do povo Xukuru”, comemora o assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Adelar Cupsinski. O advogado, que ao lado de Guilherme Madi Rezende fez a defesa do indígena, ressalta um de-talhe importante: as investigações para descobrir os reais assassinos de Chico Quelé serão retomadas de acordo com o procedimento da Justiça.

A defesa trabalhou para desconstruir cada ponto em que a acusação, composta pela Polícia Federal e Ministério Público Federal buscou respaldo para caracte-rizar Zé de Santa como assassino. Pela manhã, apresentou duas testemunhas de defesa, que trouxeram ao júri a in-consistência das duas principais provas de acusação: o que teria levado Zé de Santa a arquitetar a morte de Quelé e o testemunho do momento em que a vítima foi morta.

Conforme a acusação, o vice-cacique teria programado o assassinato porque Chico Quelé iria denunciá-lo por desvio dos recursos de um projeto educacional implementado junto ao povo. Eliene Amorim, indigenista e desde 1994 com atuação junto aos Xukuru, comprovou em seu testemunho que os recursos deste projeto, o qual coordenava, eram administrados pelo Centro de Cultura Luiz Freire (CCLF), com sede em Olinda (PE), e não passavam pelas mãos dos indígenas.

A outra prova trazia depoimentos de uma dita testemunha ocular do crime, que apontava o indígena João Campos como o executor dos disparos desferidos contra Quelé na região de Pedra D’água, área ritual na Terra Indígena Xukuru, em Pesqueira. “Levamos uma indígena que apresentou as contradições desse ponto, pois a testemunha da prova de acusação pediu a ela que mentisse sobre o crime com fatos que não aconteceram. Ela tes-

temunhou isso ao júri”, explica Rezende, advogado que sustentou a defesa oral de Zé de Santa.

Inquérito policialO inquérito da Polícia Federal foi a

base de toda acusação feita pela Justiça Federal e Ministério Público Federal, que rejeitou até a posição favorável a Zé de Santa da 6ª Câmara de Revisão e Coordenação da Procuradoria Geral da República (PGR). Porém, os advogados de defesa mostraram que pelo inquérito a polícia percebeu que o povo Xukuru esta-va dividido entra a construção ou não de um santuário religioso na terra indígena, interesse dos fazendeiros invasores do território. O santuário seria o motivo da morte de Quelé, criminalização de Zé de Santa e do posterior ataque ao cacique Marcos Xukuru (ver quadro).

“Notamos que as provas colhidas pelo delegado Federal eram apenas do grupo favorável ao santuário. Foram cerca de 40 depoimentos e todos de indígenas ligados à defesa do empreen-dimento. Há fortes indícios de que esses indígenas viam em Quelé e Zé de Santa dois empecilhos ao projeto”, afirma Cupsinski.

Em seu depoimento, Zé de Santa lembrou que entre a morte de Xikão e a nomeação do cacique Marcos Xukuru, Quelé e ele passaram a cumprir o papel de Xikão e não deixaram que a ausência

do grande líder Xukuru desmobilizasse o povo. O vice-cacique disse aos jurados que o principal desafio naquele mo-mento era a recuperação do território tradicional, motivo de conflitos e mortes.

O caso desde o inícioA morte de Chico Quelé ocorreu

numa emboscada. “Tínhamos uma reu-nião com a Funai no posto do órgão que fica dentro da terra Xukuru. Um dia antes a administração do órgão desmarcou, marcando para outra data. Na manhã da nova data, eu estava na aldeia São José esperando as lideranças para a reunião quando um irmão de Chico chegou dizendo que ele tinha sido assassinado perto de Pedra D’água. Eu estava distante uns quatro quilômetros do corpo já sem vida de Chico”, conta Zé de Santa.

De acordo com a acusação, baseada na investigação da Polícia Federal, con-cluída 15 dias depois do assassinato, o indígena arregimentou outro Xukuru, João Campos, para executar Quelé. Campos morreu no ano passado, víti-ma de um câncer no estômago. Com a homologação do território, em 2001, os fazendeiros invasores mudaram de tática e para manter a obtenção de lucros com a terra buscaram convencer os indí-genas a construírem nela um santuário destinado a Nossa Senhora das Graças, supostamente vista por duas meninas na aldeia Guarda 70 anos antes.

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Zé de Santa Xukuru: um homem inocente perseguido pela Justiça durante 11 anos

Histórico de criminalização contra os Xukuru do Ororubá

Do processo de lutas iniciado por cacique Xikão ainda nos anos 1980 até a retirada completa dos não-indígenas do território, os Xuku-ru sofreram e ainda sofrem com a criminalização da Polícia Federal e Poder Judiciário. No Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF-5), com sede em Recife, corre processo contra 34 indígenas acusados dos mais diversos crimes durante retomada da Vila de Cimbres, logo após o atentado sofrido pelo cacique Marcos, que configura entre os acusados. Se condenados pegarão dez anos de prisão.

Zé de Santa lista os Xukuru já apontados como assassinos em processos de criminalização: dona Zenilda, Toinho e Augusto Pereira, cacique Marcos e ele. A criminalização é tão latente que o então mi-nistro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, chegou a intervir e em 2003 impedir que Zé de Santa fosse preso pela morte de Quelé alegando que não existiam provas capazes de condenar o vice-cacique. Todavia mais casos condenam o povo Xukuru.

No posto da Funai situado dentro do território, dois outros indí-genas pagam pena acusados de matar o filho de Chico Quelé. Rinaldo Feitoza Vieira e Edmilson Guimarães foram apontados como os culpa-dos pela morte depois de dois meses do assassinato. Provaram que não estavam no local e na hora do crime, mas não foi o suficiente para inocentá-los. Nem mesmo o fato do crime ter ocorrido numa madruga-da de intenso nevoeiro dissuadiu as autoridades do entendimento de que uma testemunha os identificou; tampouco que ambos não sabem pilotar motocicleta, transporte usado pelos assassinos.

Uma pequena parcela dos Xukuru concordou com a ideia, que envolvia a construção de hotéis, estacionamento para cinco mil carros e demais estruturas para a recepção aos romeiros. Porém, Chi-co Quelé, Zé de Santa, dona Zenilda, Pajé Zequinha e a ampla maioria das lideranças disseram que o território seria ocupado pelos índios, apenas; Quelé, inclusive, dizia que o santuário só sairia sobre o seu cadáver. A divisão do povo, explicada do ponto de vista antropológico pela pro-fessora Vânia Fialho nos autos de defesa, culminou no assassinato de Chico Quelé.

Dois anos depois, em 2003, cacique Marcos, filho de Xikão e recém alçado à função de cacique Xukuru, sofre um atentado na estrada que corta a terra indígena. Dois indígenas, um Atikum e outro Xukuru que faziam a segurança de Marcos, já ameaçado, acabaram mortos no conflito direto com os pistoleiros; o cacique escapou e buscou proteção nos rochedos típicos do agreste. A constru-ção do santuário serviu de motivação ao atentado, pois Marcos manteve a posição contra o empreendimento.

“A elite ainda está lá em Pesqueira. Matando não conseguiram dominar os Xukuru, então criminaliza para tentar impor o medo. Mesmo assim, o povo continua unido e trabalhando pela comu-nidade na perspectiva da descolonização e uso coletivo do território”, aponta Zé de Santa. n

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13 Jun/Jul – 2012

A obra O Massacre (na imagem) traz parte da imersão que padre Silvano Sabatini fez junto aos Yanomami e que agora revisita sob em novo livro publicado na Itália

Leda BosiSetor de Documentação – Cimi

ilvano Sabatini é missionário do Instituto Missão da Consolata. Trabalhou 40 anos no Brasil e, após vários tratamentos por

conta dos graves problemas de visão, vol-tou para a Itália onde mora desde 2002. Publicou vários livros: Entre os índios do Apiaú, Retorno à maloca; Yanomami: vida e morte de um povo, Massacre.

Conforme se lê no prefácio, de Ste-fano Camerlengo, superior geral dos missionários da Consolata, este é um livro-testemunho do autor, da vida que passou entre os indígenas da Amazônia, os Yanomami, Makuxi, Desana, Wai-Wai.

Como o título sugere, o livro harmoni-za os dois espaços de pesquisa, a que todo missionário deve referir-se, ao homem e a Deus. A viagem na memória empreendida pelo padre Sabatini parte dele mesmo e

do mundo em que cresceu amadurecen-do a vocação missionária e o sacerdócio. O encontro com o índio da Amazônia o ajuda a compreender-se, a encontrar uma definição mais verdadeira em relação a ele e ao seu percurso humano e cristão.

Um dos livros mais importantes escritos pelo padre Sabatini e acima ci-

tado, é Massacre (Editora Loyola, 1998) que procura deslindar o que aconteceu com a expedição do padre Calleri, que partira em 1968 em missão de paz para o encontro com os Waimiri-Atroari, povo de pouco contato à época.

Na base de uma pesquisa que durou anos, desde 1987, fundamentada em

depoimentos dos próprios índios, padre Sabatini apurou responsabilidades de pes-soas e instituições envolvidas no massa-cre da missão pacificadora. A necessidade de saber o que de fato acontecera, visto a existência de relatos contraditórios, motivou padre Sabatini que dedicou um detalhado capítulo no livro Il prete e l’antropologo esclarecendo dúvidas e ana-lisando a expedição que culminou com o assassinato do padre Calleri e dos que o acompanhavam.

Os livros de padre Sabatini se cons-tituem numa colaboração valiosa para a reconstrução de nossa história, em par-ticular no que se refere à Amazônia e aos povos indígenas que lá vivem ameaçados na sua sobrevivência com a construção de estradas que cortam seus territórios, hidrelétricas que alagam suas terras, in-vasões de madeireiros e garimpeiros que devastam e levam doenças às populações. Completa o volume uma série de apêndi-ces sobre os povos indígenas do Brasil, sua organização religiosa na Amazônia, e imagens inéditas dos povos com os quais padre Sabatini conviveu. n

O padre e o antropólogo entre os índios da Amazônia(Il prete e l’antropologo Tra gli índios dell’Amazzonia)

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Resenha

PaísAfora

PNUD e Cimi apóiam oficinas voltadas para identidade indígena no Brasil e Paraguai

uatro comunidades indígenas da etnia Kaiowá Guarani situadas na fronteira entre o Brasil e o Paraguai participam de uma iniciativa que busca proporcionar às aldeias

o reconhecimento mútuo e o fortalecimento de suas identidades. Através de oficinas de fotografia, reda-ção e desenho, crianças e adolescentes das comuni-dades Panambizinho, Kurusu Ambá, Teyi’Kue, e Reko Pavẽ são incentivadas a conhecer sua própria história, trocar experiências e, dessa forma, contribuir para reorganizar e fortalecer a luta pelos seus direitos.

A ação foi concebida e realizada pelo projeto “Olhares Cruzados”, desenvolvido pela OSCIP (Or-ganização da Sociedade Civil de Interesse Público) Imagem da Vida, com financiamento e execução conjunta do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e apoio do Conselho Indi-genista Missionário (Cimi).

“Ao contrário dos outros projetos cujo intercâm-bio realizou-se entre crianças de países diferentes, neste o foco são quatro aldeias de uma mesma região”, explica Dirce Carrion, coordenadora do projeto. “A situação dos povos guarani na América do Sul, e especialmente no Brasil, é tremendamente frágil – há problemas de alcoolismo, uso de drogas, suicídios”, destaca ela.

As três aldeias localizadas em território brasi-leiro – Panambizinho, Kurusu Amba e Teyi’Kue – e a comunidade Reko Pave, no Paraguai, já receberam as oficinas. O projeto Olhares Cruzados foi realizado em outros nove países além do Brasil e os registros são sempre publicados em livros. n

Cimi Regional Mato Grosso do Sul

urante o último mês de julho ocorreu o 4º FIDA (Fórum de Discussão so-bre Inclusão Digital nas

Aldeias), que ocorreu na aldeia de Panambizinho com a presença de 25 realizadores indígenas e mais de 50 participantes no total. O evento também contou com a con-tribuição do cineasta Quechua Iván Molina, que há cerca de 20 anos trabalha com a produção de docu-mentários com os povos indígenas da América do Sul. Foram quatro dias intensos, de atividades e dis-cussão sobre a presença e o uso das ferramentas midiáticas nas aldeias indígenas. Além disso, o espaço possibilitou a elaboração de proje-tos audiovisuais das comunidades presentes e a projeção de filmes e documentários produzidos pelos realizadores indígenas de MS.

A partir da questão da produ-ção audiovisual nas aldeias (como o indígena se vê e se traduz na atu-alidade, através das novas mídias), a reflexão trouxe à tona o papel do jovem no fortalecimento de sua cultura, quando se apropria das ferramentas e aparelhos da con-temporaneidade para lançar um novo olhar sobre os conhecimen-

4º FIDA: uma câmera na mão e uma ideia na cabeça

DQ

tos tradicionais. É essa a atitude que define um pouco a figura do “realizador indígena”. Dessa forma, temas como medicina tradicional, soberania alimentar, recuperação ambiental, sustentabilidade e, principalmente, a construção da liderança jovem, foram o foco das discussões.

O FIDA surgiu da preocupação dos próprios realizadores indí-genas em prosseguir de maneira autônoma com as discussões e trabalhos sobre a mídia nas aldeias iniciada a partir de projetos como o Ava Marandu e Vídeo Índio Brasil. Agora, em sua quarta edição, o evento toma proporções maiores e coloca em debate a necessidade

de construção de políticas públicas voltadas para a inclusão digital nas aldeias, o que não existe hoje no Brasil.

Para o futuro, seus organiza-dores vislumbram a criação de um curso de formação para os realiza-dores indígenas, que contemple tanto a instrumentalização técnica (em linguagens audiovisuais, ar-tísticas, jornalismo, webdesign), quanto a formação política sobre o movimento indígena. A expec-tativa é que se desencadeie uma produção audiovisual permanente nas aldeias protagonizada pelos próprios realizadores indígenas, como porta vozes da luta e da cultura de seus povos. n

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Os Guarani Kaiowá

abençoaram um cocar e

o colocaram sobre o corpo

de Antonio, em sinal de

respeito, reconhecimento

e gratidão. Gesto que simboliza

também a fé e a esperança

em tempos mais amenos

e que une, num mesmo sentimento, aqueles que

acreditam na justiça e por

ela lutam

14Jun/Jul – 2012

Homenagem

historiador e professor Antonio Jacó Brand faleceu na manhã do último dia 3 de julho, em Porto Alegre (RS), em decorrência de um infarto no pós-

-operatório de uma cirurgia cardíaca. Deixou uma filha, alunos, amigos e uma história irre-parável ao lado dos povos indígenas brasileiros, com destaque aos Guarani Kaiowá do Mato Grosso do Sul.

Brand, que tinha 62 anos, era mestre e dou-tor em história e atuava como coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas das Populações Indígenas (Neppi) da Universidade Católica Dom Bosco (UCDB) desde março de 1996. Brand dedicou sua tese de doutorado ao estudo do impacto da perda da terra sobre a tradição do povo Guarani Kaiowá.

No Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Brand teve destacada participação. No Secre-tariado Nacional teve participação atuante nas lutas pela contemplação da questão indígenas na Constituinte de 1987/88. Chegou a ser acusado de conspirar, ao lado de outros companheiros do Cimi, como dom Erwin Kräutler e Paulo Suess, uma nação indígena para beneficiar a exploração do território por nações estrangeiras.

anTonio BranDO doce radical

José Ribamar Bessa Freire*Jornalista

eixeirão Bobalhão”. Esse foi o título que dei para uma nota publicada, em agosto de 1979, no jornal mensal Porantim do

qual era redator-chefe. Teixeirão, no caso, era o coronel Jorge Teixeira, ex-prefeito biônico de Manaus. O “bobalhão” tinha uma razão de ser. Imaginem que o dito--cujo, na ocasião governador nomeado de Rondônia, pretendia realizar umas obras e decidiu, para isso, invadir terras indígenas, o que era ilegal.

Os índios resistiram e ele agiu como um office-boy de luxo da construtora An-drade Gutierrez, declarando aos jornais:

“Os índios são uns bobalhões, uns parasitas que estão me dando um pou-quinho de preocupação. Mas venço a parada e vou empurrá-los para a outra margem do rio”.

Indignado com tanto desrespeito, o nosso valente tabloide partiu pra cima do governador, dando o troco na hora. Devolvemos-lhe o epíteto de bobalhão. O dito-cujo não gostou e se queixou ao bispo, afinal o Porantim era um jornal do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), que por sua vez estava subordinado à Conferência Nacional dos Bispos do

Brasil (CNBB). A CNBB Regional escalou para puxar minha orelha o bispo-prelado de Parintins, Dom Arcângelo Cerqua, da ala mais conservadora da igreja. Sua barbinha-de-bode esvoaçava quando falou com voz abemolada:

– Meu filho, um jornal da igreja não pode tratar uma autoridade desta forma.

– Pode sim – me tranquilizou Antônio Brand, quando soube do ocorrido. – Deixa o bispo falar. Bispos, às vezes, erram – acrescentou, totalmente cúmplice na in-dignação, mas sugeriu que eu não desse o desmentido que pretendia dar, o que seria pura provocação. Já havia até escolhido o título: Teixeirão, ex-bobalhão.

Muitos anos depois lembramos dessa história, Antônio Brand e eu. Nós nos conhecemos, em julho de 1978, em Goi-ânia, durante a III Assembleia Nacional do CIMI, que foi uma escola para todos nós. No episódio do Teixeirão, as palavras de Brand foram tão reconfortantes quanto o apoio do teólogo Paulo Suess, secretário do CIMI, com quem eu convivia mais de perto. Conto o caso aqui porque ajuda a definir o nosso personagem.

O doce radicalAntônio Brand desenvolveu uma

virtude invejável. Conseguia ser radical na defesa dos índios, sem jamais ser “fun-

damentalista” e dogmático. Mantinha, ao lado dessa radicalidade e dessa coerência com os postulados básicos, uma incrível capacidade de negociação política, basea-da na análise de correlação de forças. Sabia ouvir, ceder, negociar, para poder avançar. Cutucava a onça, mas com vara comprida. Talvez tenha aprendido essa arte de dosar na convivência com Dom Thomaz Balduí-no, outro doce radical, que consegue ser afável sem transigir com os princípios.

Essa virtude, com certeza, foi muito útil durante os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988, quando Antonio Brand, então residindo em Brasília, desempenhou um papel decisivo na luta pelos direitos indígenas, articulando com deputados e senadores, argumentando, explicando, convencendo. Ele deu uma grande contribuição para que o novo texto constitucional de 1988 afirmasse o direito à diferença e definisse o papel do Estado não mais como agente promotor da integração dos índios, mas como protetor da diferença.

Quem chama a atenção para esse tra-balho discreto, mas eficiente de Antonio Brand é Dom Erwin Krautler, presidente do CIMI, ele também um doce radical, incansável na batalha contra os estragos previstos na construção da Usina Hidre-létrica de Belo Monte.

Nessa luta sem trégua, o CIMI fez escola, uma escola de militância na qual tivemos o privilégio de conviver com as principais lideranças indígenas e com figuras como Thomas Balduíno, Pedro Casaldaliga, Moacir Grechi, Egydio Schwa-de, Antonio Iasi, Bartomé Meliá, Paulo Suess. Muitos de nós saímos de lá para a academia: Antônio Brand, Renato Athias, Egon Heck, Wilmar D’Angelis, Ademir Ramos, todos vinculando seu trabalho no magistério à temática indígena. Dentro das universidades, abrimos outras frentes de luta.

Foi lá, dentro da Universidade, que Antonio Brand atuou nas duas últimas décadas. Fundador do CIMI no Mato Grosso do Sul e secretário executivo nacional no período da Constituinte, ele, que era graduado em História pela Unisinos, defendeu tese de doutorado na PUC-RS, intitulada “O Impacto da perda da terra sobre a tradição Kaiowá/Guarani: os difíceis caminhos da Palavra”. Ali, ele reconstitui os processos históricos que levaram a usurpação das terras indígenas em Mato Grosso do Sul e o confinamento dos índios que lá vivem.

Antonio Brand passou a lecionar no Departamento de História da Universi-dade Católica Dom Bosco (UCDB), em Campo Grande (MS), orientando alunos

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Antonio Brand – amigo dos índios

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15 Jun/Jul – 2012

A morte de Antonio Brand foi pranteada em muitas aldeias indígenas do Brasil, onde era conhecido, no norte e no sul, entre os tuyuka do rio Tiquié (AM), em comunidades Kaingang e Guarani do Rio Grande do Sul, mas também fora do país

Equipe Porto Alegre Cimi Regional Sul

despedida de nosso compa-nheiro Antonio foi marcada por uma tristeza profunda diante da irreparável perda, mas também

por um sentimento compartilhado de ternura. Familiares, líderes indígenas, missionários, amigos do Cimi de longa data, alunos, todos os que estavam ali re-afirmavam a mesma coisa – Antonio tinha um cuidado especial com as pessoas com quem partilhava a vida e uma dedicação incondicional à causa indígena, à causa da vida em plenitude.

E foi assim, com lágrimas nos olhos e com uma dor aguda que cada pessoa ali presente se despediu do pai, compa-nheiro, missionário, amigo, lutador, his-toriador, esse homem tão imensamente humano, e tão divinamente dedicado.

Os Guarani Kaiowá saíram de Mato Grosso do Sul e vieram também prestar uma última homenagem ao amigo e companheiro de tantas jornadas. Lide-ranças jovens – estudantes e professores indígenas que com ele compartilhavam espaços acadêmicos – e também alguns Nhanderu (líderes religiosos) viajaram toda a noite, cruzando estados e cidades,

no mestrado e doutorado. Criou o Centro de Documentação Kaiowá-Guarani, res-ponsável pelo levantamento, catalogação e divulgação da documentação primária. Tive a sorte de participar deste projeto, convidado por ele para identificar a do-cumentação sobre índios do Mato Grosso do Sul em arquivos do Rio de Janeiro e que contou com a valiosa colaboração do historiador Neimar Machado.

Na UCDB, Brand coordenava o Nú-cleo de Estudos e Pesquisas das Popu-lações Indigenas (NEPPI) e a Rede de Saberes, sendo responsável, junto com a doutora Adir Casaro, pela formação de jovens pesquisadores, indígenas e não-indígenas. Recentemente, fizemos parte de uma banca de mestrado na UNIRIO, quando ele compartilhou seus conhecimentos sobre história indígena. O legado

Antonio Brand conseguiu aliar a mili-tância em favor dos índios com o rigor nas pesquisas acadêmicas e na formação de pesquisadores. Quem chama atenção para esse fato é o historiador John Monteiro, professor titular do Departamento de An-tropologia da UNICAMP e ex-professor visi-tante da Harvard University, que escreveu:

- Brand foi uma das pessoas mais dedi-cadas à defesa dos direitos indígenas que já conheci. Conseguiu, de uma maneira

Rio Grande do Sul, abençoaram um cocar e colocaram sobre seu corpo, em sinal de respeito, reconhecimento e gratidão. Ce-lebraram um ritual no qual agradeceram, com cantos sagrados, a presença dele, por mais de 40 anos, na luta indígena, conforme informa nota do CIMI.

Os líderes religiosos Guarani-Kaiowá lembraram, no final da cerimônia, toda a luta em defesa da terra, da cultura, da língua, que teve em Antônio Brand um aliado devotado e sempre presente. Pediram a palavra para reafirmar que a melhor forma de honrar a memória do amigo é continuar a resistência.

A morte de Antonio Brand foi pran-teada em muitas aldeias indígenas do Brasil, onde era conhecido, no norte e no sul, entre os tuyuka do rio Tiquié (AM), em comunidades Kaingang e Guarani do Rio Grande do Sul, mas também fora do país. Mensagens chegaram do Paraguai, do México, da França, de Portugal, da Itá-lia, dos Estados Unidos, de várias partes do mundo, por parte de antropólogos, linguistas, historiadores, educadores, missionários, indigenistas e pesquisado-res de diferentes áreas do saber.

expressiva, trazer essa dedicação para dentro da academia, reunindo um núcleo de alunos e pesquisadores na UCDB volta-dos para o avanço do conhecimento sobre povos indígenas em vários campos do saber. Não foram poucos os meus alunos que se valeram dos conhecimentos e dos contatos que ele partilhava com entusias-mo, sempre incentivando o engajamento com a temática. Vai fazer falta, porém deixou um legado significativo.

Esta falta já estamos sentindo to-dos nós: sua companheira de todos os momentos, Valéria Calderoni, sua filha Luciana, seus familiares, seus parceiros, os membros de sua equipe na UCDB e os índios que vivem no Brasil, especialmente os Kaiowá e Guarani de Mato Grosso do Sul, que perderam um grande amigo. Na manhã de terça-feira, 3 de julho, o professor Antonio Jacó Brand, 62 anos, faleceu em Porto Alegre (RS), vítima de um infarto. No dia seguinte, foi sepultado em sua terra natal, São José do Sul (RS), no cemitério junto à Igreja de Dom Diogo.

Quando souberam da morte do amigo fiel, vários Nhanderu – líderes religiosos indígenas – junto com estudantes e professores guarani e kaiowá saíram de Mato Grosso do Sul e viajaram a noite toda, atravessando municípios, cidades e estados, para um último adeus. Lá, no

No dia 4, foi realizada missa em sua homenagem, num anfiteatro da Univer-sidade Católica Dom Bosco, em Campo Grande (MS), reunindo alunos, professo-res e funcionários, que ouviram a leitura de uma carta escrita pelo tuyuka Justino Sarmento Rezende, padre salesiano e ex-aluno de Brand no Mestrado em Edu-cação na UCDB. Nesta segunda-feira, dia 9, a UCDB realiza a missa de sétimo dia às 10 horas da manhã.

Com Antônio Brand aprendemos muitas coisas, além de tomar chimarrão, primeiro nas reuniões do CIMI, depois nos eventos acadêmicos. Aprendemos também a tratar os “bobalhões” pre-conceituosos. No momento em que sentimos uma falta danada dele, cabe lembrar aqui Dom Pedro Casaldaliga, bispo de São Felix do Araguaia que numa entrevista publicada no Porantim, reci-tou um poema de sua autoria – Profecia Extrema, com o qual nos despedimos do fiel amigo dos índios:

- Com a morte se fará verdade a minha vida, por fim terei amado. n

*José Ribamar Bessa Freire é professor, co-ordena o Programa de Estudos dos Povos Indígenas (UERJ) e pesquisa no Programa de Pós-Graduação em Memória Social (UNIRIO). Foi redator-chefe do jornal Porantim nos anos 1970 e início dos anos 1980.

para encontrá-lo uma vez mais. Na chega-da, realizaram um ritual e, entre cantos e palavras sagradas, agradecerem a pre-sença de Antonio, por mais de 40 anos, entre os povos indígenas e a dedicação à luta do povo Guarani Kaiowá. Um líder religioso afirmou que tudo o que Antonio construiu, ao lado deles é estímulo para que continuem lutando pela conquista e garantia de seus tekohas (territórios).

Na celebração eucarística as palavras ditas expressavam a emoção, a gratidão, o reconhecimento e a estima de tantos companheiros que tiveram o privilégio de conviver com ele. Mensagens diversas foram enviadas aos familiares e algumas foram lidas na cerimônia. A canção suave entoada pelo coral da cidade acalentou o coração da gente; canção que nos fez sentir que a despedida era também mo-mento de dizer: “Vai com Deus, amigo,

O adeus de familiares, amigos e do povo Guarani Kaiowá a Antonio Brand

colher os frutos desse trabalho árduo, realizado com amor e doação”.

Na bênção final, novamente os líderes religiosos Guarani-Kaiowá pe-diram a palavra para, então, abençoar os familiares e confiar-lhes a força de Nhanderu, força vital para continuar ca-minhando. Num breve pronunciamento, lembraram momentos da trajetória de dor e sofrimento dos índios no estado de Mato Grosso do Sul, nos quais puderam contar com a presença solidária, com as palavras de sabedoria, com o apoio des-se querido amigo. Agradeceram a Deus a oportunidade de ter Antonio como aliado e companheiro nas intermináveis lutas travadas até aqui. Vão continuar lutando, pois a conquista dos direitos que lhes tem sido negados será um modo de honrar a memória de todos os que lutaram e lutam juntos pela causa indígena, concluíram.

Um gesto significativo finalizou esse ritual: os Guarani Kaiowá abençoaram um cocar e o colocaram sobre o corpo de Antonio, em sinal de respeito, reconhe-cimento e gratidão. Gesto que simboliza também a fé e a esperança em tempos mais amenos e que une, num mesmo sentimento, aqueles que acreditam na justiça e por ela lutam.  

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16Jun/Jul – 2012

APOIADORES

Benedito PreziaHistoriador

epois da invasão e conquista da Paraíba, que terminou em 1599, os portugueses decidiram ocupar a região norte, come-çando pelo Ceará, que era controlada pelos franceses. Por isso em maio de 1603, partiu da vila de Olinda, atual

estado de Pernambuco, Pero Coelho de Sousa com um grupo de 80 homens, com a missão de criar um posto avançado na região e de descobrir um caminho terrestre para o Maranhão, já que a comunicação marítima era muito difícil, devido às correntes marítimas.

Essa expedição, ao chegar à foz do rio Jaguaribe, no atual Ceará, recebeu o apoio de 800 guerreiros Potiguara. Era uma ajuda necessária, pois sem eles o capitão não conseguiria alcançar seu real objetivo: a captura de escravos na serra de Ibiapaba, (Terra Ta-lhada, nome dado pelo tipo da formação geológica), que ali viviam sob a liderança do cacique Irapuá, o Mel Redondo. Os Potiguara sempre foram inimigos desse povo. Se o caminho para o Maranhão não

se efetivou, Pero Coelho retornou ao litoral com muitos escravos, fundando a vila Nova Lusitânia, de localização incerta.

Animado a fertilidade da serra e de seu bom cli-ma que lembrava o europeu, o capitão decidiu voltar com sua família e outros portugueses. Essa nova tentativa resultou, entretanto, num grande fracasso. Melhor aparelhado, o cacique Irapuá pôde vingar seus parentes, impedindo a criação desse assenta-mento português. Sem apoio do governador, que afirmava não ter recursos para socorrê-lo, o capitão foi obrigado a retornar ao litoral, numa jornada em que ele, sua família e seus homens sofreram mais pela fome e sede do que pelos ataques indígenas. Muitos morreram pelo caminho, inclusive alguns de seus filhos pequenos.

Anos depois, em 1607, os jesuítas retomaram a ideia da ligação terrestre para o Maranhão, que começava a ser ocupado pelos franceses. Foram enviados os padres Francisco Pinto e Luís Figueira com o objetivo de fundar na serra uma missão, que poderia não só irradiar a fé católica, como também ser importante ponto de apoio no sertão.

Querendo mostrar aos indígenas que iam em missão religiosa, os missionários partiram acompa-nhados de 60 indígenas, sem nenhum português.

a resisTÊnCia inDÍGena na serra De iBiaPaBa

No caminho encontraram vários povos, como os Jaguariguara, de língua tupi, que os acolheram como grandes karaíba. Depois de longa viagem, chegaram à serra de Ibiapaba, onde tiveram também boa acolhida dos Tobajara.

Como o objetivo era alcançar o Maranhão, fica-ram pouco mais de um mês, seguindo viagem. Logo alcançaram o território dos Karariju, povo tupi que não aceitava a presença portuguesa, sobretudo pela amizade que tinham com os franceses. Ao chegar à aldeia principal, não foram bem recebidos, tendo que fazer dois ranchos nas imediações.

Pouco tempo levou para que as lideranças tra-çassem um plano para eliminá-los. Certa manhã, um grupo indígena apareceu repentinamente na cabana dos padres, encontrando apenas padre Francisco, já que padre Luís encontrava-se no rancho de Antônio Karaipuku, chefe dos Potiguara que os acompanhavam. Sem mostrar resistência, o religioso foi levado para fora da cabana. Enquanto Karaipuku tentava dissuadi-los da violência, padre Luís conseguiu esconder-se no mato, enquanto que seu colega era morto, junto com o líder indígena.

Com essa morte, os missionários voltaram para Pernambuco, retomando a missão bem mais tarde. Com a ocupação holandesa, a serra tornou-se refú-gio do cacique Amyniju (Algodão), do povo Tobaja-ra, que com seus guerreiros haviam se aliado aos holandeses. Após sua expulsão, em 1654, Ibiapaba tornou-se refúgio de muitos que preferiram ficar na terra, como holandeses reformados, franceses calvinistas e judeus. Por essa tal diversidade religio-sa, padre Antônio Vieira chamou-a de “Genebra dos sertões do Brasil”. n

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