em estado de sÍtio

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INTRODUÇÃO A proposta dessa pesquisa é explicitar a relativização propositiva de um processo artístico, contextualizando a prática de trabalho com a sua reflexão teórica. Estudo aprofundado que se configurou no presente projeto, de título Em estado de sítio, que trata da relação entre objeto artístico e o lugar de sua instalação; e objetiva a instauração de uma interferência na Pinacoteca Barão do Santo Ângelo, estabelecendo uma relação entre o entorno do lugar e a estrutura intervencionista. O texto é construído pela própria pesquisa prática suportada por referenciais artísticos e teóricos, que são entrecruzados do desenvolvimento do processo à reflexão da sua apreensão no trabalho. O entendimento do processo é descrito através de experiências pessoais substanciadas por um aporte histórico, delineando uma linha de pensamento que vai conduzindo a prática do trabalho. O processo iniciou-se com o desejo de materializar o ar no espaço, mas a contingência do lugar de montagem foi subvertendo esse ideal, transformando a relação do lugar com o objeto artístico no grande potencial da pesquisa. A construção do meu processo artístico é articulada pela relação entre a prática e a proposição, uma discordando da outra num embate que vai configurando todo o meu trabalho. Através de pensamentos, lembranças e dúvidas vou descrevendo a trajetória que configurou-se na atual proposição de trabalho. Estabeleço uma reflexão teórica simultaneamente à experiência prática, comparando-as e relativizando o que cada uma contribuiu para o desenvolvimento conjunto do processo. Também, ressalto a divisão que o trabalho foi recebendo, sendo cada etapa fundamental na construção da sua totalidade. Ao longo do processo o interesse em materializar o ar no espaço foi descoberto; e depois de alguns experimentos na tentativa de amarrar o ar, foram surgindo novas problemáticas. A conformação do trabalho em relação ao seu local de instalação, a rearticulação do espaço diante do objeto, a participação do espectador no seu meio, a operação crítica que um trabalho infere ao lugar; implicações essas que foram transformando o objetivo inicial, de amarrar o ar, numa contextualização mais potente da prática de trabalho. A proposição passou a ser delineada por essa prática; de um trabalho a outro significações foram 8

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INTRODUÇÃO

A proposta dessa pesquisa é explicitar a relativização propositiva de um

processo artístico, contextualizando a prática de trabalho com a sua reflexão

teórica. Estudo aprofundado que se configurou no presente projeto, de título Em

estado de sítio, que trata da relação entre objeto artístico e o lugar de sua

instalação; e objetiva a instauração de uma interferência na Pinacoteca Barão do

Santo Ângelo, estabelecendo uma relação entre o entorno do lugar e a estrutura

intervencionista. O texto é construído pela própria pesquisa prática suportada por

referenciais artísticos e teóricos, que são entrecruzados do desenvolvimento do

processo à reflexão da sua apreensão no trabalho. O entendimento do processo é

descrito através de experiências pessoais substanciadas por um aporte histórico,

delineando uma linha de pensamento que vai conduzindo a prática do trabalho. O

processo iniciou-se com o desejo de materializar o ar no espaço, mas a

contingência do lugar de montagem foi subvertendo esse ideal, transformando a

relação do lugar com o objeto artístico no grande potencial da pesquisa.

A construção do meu processo artístico é articulada pela relação entre a

prática e a proposição, uma discordando da outra num embate que vai

configurando todo o meu trabalho. Através de pensamentos, lembranças e

dúvidas vou descrevendo a trajetória que configurou-se na atual proposição de

trabalho. Estabeleço uma reflexão teórica simultaneamente à experiência prática,

comparando-as e relativizando o que cada uma contribuiu para o

desenvolvimento conjunto do processo. Também, ressalto a divisão que o

trabalho foi recebendo, sendo cada etapa fundamental na construção da sua

totalidade.

Ao longo do processo o interesse em materializar o ar no espaço foi

descoberto; e depois de alguns experimentos na tentativa de amarrar o ar, foram

surgindo novas problemáticas. A conformação do trabalho em relação ao seu local

de instalação, a rearticulação do espaço diante do objeto, a participação do

espectador no seu meio, a operação crítica que um trabalho infere ao lugar;

implicações essas que foram transformando o objetivo inicial, de amarrar o ar,

numa contextualização mais potente da prática de trabalho. A proposição passou

a ser delineada por essa prática; de um trabalho a outro significações foram

8

surgindo, confluindo num ideal ainda mais forte.

A progressão do processo vai rearticulando-se, desde a ideia inicial de

amarrar o ar, passando pelas adaptações ocorridas diante da contingência do

espaço, até alcançar as proposições específicas para cada lugar; tornando-se a

proposta principal do trabalho essa relação intrincada entre a intervenção e o seu

ambiente físico. O interesse não é somente a apreensão da arquitetura do

ambiente, nem se detém no olhar para o objeto; e sim concentra a significação do

trabalho no conjunto dessa relação criada: objeto visual + entorno do lugar, seja

um ambiente interior ou exterior; estabelecendo um instrumento visual que busca

evidenciar o espaço “entre” esses dois elementos. Configura-se numa situação

que desconcerta tanto o lugar como o projeto do trabalho, estabelecendo uma

correspondência entre algo permanente e algo provisório, uma tensão que coloca

o lugar em estado de sítio. Um evento que acorda o lugar revelando nele um

território artístico.

Em estado de sítio é a relação provisória entre as estruturas de um

ambiente (no caso a Pinacoteca Barão do Santo Ângelo) e o objeto artístico (a

amarração de fita adesiva); uma relação que acontece no lugar, para o lugar, é o

próprio lugar.

É possível um acontecimento ser capaz de reestruturar um lugar a ponto

de ampliar a sua percepção? Como uma intervenção pode apreender novos

olhares para um ambiente esquecido, subjugado? De que maneira essa situação

temporária pode suscitar questionamentos, implica experimentações? Que

possibilidades distintas essa interferência pode causar após a sua retirada? E

essa intromissão, foi importante para quê?

9

1. A CONSTRUÇÃO PRÁTICA DO PROCESSO

Compreender o meu processo de trabalho a ponto de explicitá-lo em uma

pesquisa é uma tarefa árdua. Eu o percebo instintivamente, porém colocá-lo em

discussão é uma ação que me desperta questionamentos. Isso se deve ao fato de

que, enquanto agente do trabalho, faz-se difícil alcançar o distanciamento

necessário para a visualização de toda a sua articulação no processo; o

envolvimento com a prática domina-me de maneira a direcionar todos os meus

procedimentos nesse sentido, sendo impossível apreender toda a

contextualização do processo. Enfim, meu intuito neste texto é pensar as minhas

ideias a respeito do meu processo de trabalho. Por meio de ideais, lembranças, e

inquietações, que foram surgindo ao longo da minha trajetória; busquei

estabelecer uma linha de pensamento que descrevesse o que eu desejo

desenvolver com o trabalho, e o que o trabalho pode oferecer. Sei que neste

momento não atinjo todas as respostas à minha pesquisa prática, mas continuarei

buscando-as e a questionando sempre.

1.1 RAÍZES DE UM PROCESSO

Em 2005, durante um exercício de aula na faculdade, foi proposta a

escolha de dois objetos e/ou materiais para se desenvolver, a partir deles, uma

série de trabalhos. O termo “série” logo me remeteu às progressões matemáticas;

e, como em uma progressão, tratava-se de um trabalho após o outro, que

mudava, mas estabelecia uma dependência entre seus elementos. Os eleitos

nessa empreitada foram dois velhos conhecidos meus, a caixa de papelão e o

arame. Lembro claramente minha escolha imediata pelo papelão; dita a proposta,

olhei para o lado e lá estava a minha boa companheira, a caixa de papelão.

Grande parte da minha infância foi vivida enquanto eu entrava e saía de

caixas de papelão, empacotando alguma coisa ou a mim mesmo. Debruçava-me

à noite sobre as minhas cartolinas e fazia projetos de armaduras inspirados em

meus heróis japoneses (Jaspion, Jiraya, Jiban, Cybercops...) e durante o dia eu

colocava os planos em prática. Fixava o papelão com fitas e revestia as

“armaduras” com papel alumínio. Era um tormento para minha família, pois eu

empregava a fita isolante do meu pai, os adesivos da minha irmã [aliás, ela fazia o

10

papel dos meus inimigos, o monstro com quem eu lutava nas brincadeiras], os

rolos de lã da minha mãe; enfim, todo o aparato que estivesse ao alcance dos

meus olhos, e o de menos era eu me empoleirar nos móveis e estruturas da casa.

Voltando ao exercício da faculdade. Cheguei em casa (com uma caixa de

baixo do braço) pensando no outro objeto, quando vejo meu pai de pé, em cima

da mesa, com um rolo de arame no braço arrumando o lustre. Aí estava decidido,

o bendito arame, elemento que tanto presenciei ao longo de inúmeras gambiarras

que meu pai fazia nos consertos da nossa casa; meu pai sempre resolveu/resolve

tudo com um pedaço de arame e uma tira de fita isolante.

Escolhidos os dois elementos, iniciei uma série de desenhos de

representação, estabelecendo relações entre os dois; essas composições traziam

tanto aspectos formais como dinâmicos dos materiais. No dia da apresentação,

trouxe todos os desenhos, e eram muitos, juntamente com os seus modelos: a

caixa de papelão e o rolo de arame. Ocupei o chão da sala quase por inteiro com

a disposição dos desenhos e acima deles, no teto, enrolei o arame pendurando

nele a caixa de papelão (fig. 1). Até então eu não havia me conscientizado sobre a

importância do modelo e da representação colocados juntos, mas quando eu os

dispus daquele modo parecia que um estalo norteou-me para os objetos, o

interesse na hora voltou-se para os modelos e não para os seus desenhos. Na

minha defesa do trabalho, inclusive, eu subjuguei os desenhos e me detive na

caixa e no arame, salientando aquela arrumação dos materiais, tornando-se esse

fato o mais importante do exercício.

Desse experimento em diante, passei a trabalhar com os materiais:

papelão e arame. Desenvolveram-se vários trabalhos misturando os dois

elementos; rasgando e costurando o papelão com o arame, exercícios e mais

exercícios que exploravam uma relação dinâmica entre os materiais (fig. 2). Pouco

a pouco o arame foi sendo encolhido nos trabalhos, até que o interesse se firmou

apenas no papelão. Nos trabalhos seguintes explorei diversas possibilidades do

material, tanto nas suas características formais como nas suas aplicações no dia

a dia. Foram representações da matéria, jogos com os signos das embalagens,

inserções do material em contextos inapropriados ao seu uso, chegando a

registros fotográficos da atuação do material dentro do seu ciclo de importância

11

(fig. 3, 4, 5).

Dos muitos experimentos dedicados ao papelão, eu comecei a me

interessar pela fita que empacotava as caixas. E esse novo interesse foi

modificando o meu processo de trabalho; uma mudança que transformaria a

simples representação de objetos numa relação entre forma e conteúdo. As

descolagens e colagens das fitas nas caixas produziram alguns trabalhos que

ultrapassaram a forma do material, explorando uma interação minha mais

sensorial com a matéria das caixas. O ruído da descolagem da fita, o rasgo do

papel, as dobraduras das caixas foram me influenciando na prática de

representações formais desses experimentos (fig. 6, 7, 8). Era um novo interesse,

mas a sua realização parecia conformá-los como meros exercícios de percepção

do material. Não conseguia compreender os experimentos como parte, ou como o

próprio trabalho, e continuava tratando-os como estudos para um plano de

representação.

Nessa etapa, parecia que eu encontrava um bloqueio no entendimento

das minhas intenções de trabalho. Tudo aquilo que eu pensava em relação a ele

acabava se estabelecendo, conformado, no plano do papel. Produzi

representações em série, do papelão e seus “derivados”. Esses procedimentos de

estetização das ideias dentro do trabalho estavam me incomodando. Não

conseguia tratar com seriedade as minhas proposições e não era mais possível

artificializá-las em exercícios estéticos ineficazes; apenas em aplicações

decorativas à ideia proposital.

Do conflito assim estabelecido, resolvi medir o que estava fazendo,

comparar os resultados obtidos aos meus pensamentos propositivos. Dessa

maneira, busquei compreender o que me interessava realmente no trabalho, o

que a sua realização implicaria em soluções satisfatórias para essa compreensão

e o que construiria trabalhos que não perdessem seus ideais ao longo de sua

formalização. Desde o exercício da caixa de papelão e do arame eu pude

identificar um interesse, não pela representação formal, e sim pelo seu potencial

de contribuição às formulações de minhas ideias, sobre o modo como a própria

matéria poderia concentrar as proposições do trabalho. Dessa constatação, a

minha prática de trabalho passou a ser conformada por uma certa disciplina, um

13

cuidado constante para não desviar-se do propósito central. E por muitas vezes

eu encontrava-me “decorando” as propostas de trabalho. Uma etapa bem

conflitante, mas fundamental para o entendimento do meu processo.

Em junho de 2008, retornei aos testes com a fita e a caixa de papelão.

Repeti mais uma vez os procedimentos de descolagem da fita no papelão, de

novo o ruído e a conformação desse experimento. Gravei todos os testes e,

depois, visualizando-os fiquei intrigado com a forma da caixa e a amarração da

fita, reduzi o volume e repetidamente percebi a fita contornando a caixa, indo e

voltando o vídeo, colando e descolando a fita na superfície da caixa. Esse

momento foi mágico para mim e imediatamente pensei na experiência esdrúxula

que tive com a obra O ar mais próximo1 (fig. 9), do Waltercio Caldas.

Lembro caminhar entre os fios de lã suspensos no espaço da exposição,

da minha ironia ao assoprar os fios; eu estava irritado com aquilo que vira. Na

saída li a etiqueta com o título O ar mais próximo e, ao me virar, enquadrei a obra

pelo recorte da porta; tive a impressão nesse exato momento como se os fios de

lã amarrassem o ar. Visualizei este como um “queijo provolone”, amarrado por fios

de barbante. Essa situação estranha incomodou-me por dias, passei de um

irônico sopro a uma admiração pela obra do Waltercio Caldas.

O episódio do ar/queijo amarrado ficou fixado em minha mente e, no

exato momento da gravação da fita envolvendo a caixa, fez todo o sentido; a

experiência elucidou-me um novo interesse. A caixa sumiu como o queijo e, assim

como os fios, as fitas adesivas ficaram sozinhas contornando o ar, amarrando

aquele paralelepípedo construído de ar, de um vazio que para mim transbordava

de cheio.

Daí em diante, o ar, o vazio que é cheio, e a fita adesiva transparente

passaram a ser meus objetos de desejo. Fiquei alguns dias perdido pensando

como tornar esse desejo realizável, colocá-lo em prática. Mais uma vez recorri

aos planos de representação da ideia, mais uma vez estava estetizando um

1 Experiência ocorrida durante a 6ª Bienal do Mercosul (2007); é importante comentar o formato da mostra Conversas na qual essa obra estava exposta: as salas eram divididas em “cubos brancos” instalados no armazém do cais do porto (Porto Alegre); cada sala tinha a obra de um artista âncora juntamente a outros trabalhos que dialogassem entre si. Essa configuração da sala proporcionou o único recorte, a porta, e da diferença entre o espaço expositivo e o lugar da mostra pude estabelecer esse enquadramento.

17

resultado frustrado de concretizar o propósito do trabalho (fig. 10, 11). Encorajado

pelas palavras do professor Flávio, durante a disciplina de Criativo I (setembro de

2008), a pensar o que me interessava de fato no trabalho, a desprender-me

desses exercícios decorativos da proposta, a repensar o que realmente faz o

trabalho.

Com esse propósito voltei a repensar o objeto de desejo que eu havia

descoberto, no ar acima de tudo. Pensando nisso, lembrei minha infância, a

primeira série na escola; os primeiros exercícios de matemática, nos quais,

durante as avaliações, eu costumava tracejar no ar os pauzinhos correspondentes

às operações de soma e subtração. Recordo-me perfeitamente quando eu riscava

dez pauzinhos e passava o traço por cima de todos fechando a dezena, abaixo eu

fazia uma nova sequência, conforme a necessidade da operação, tudo no ar.

Lembro a professora Olga a me perguntar o que eu estava fazendo. Eu respondi

que contava as carreiras desta maneira. Ela perguntou por que eu não fazia na

folha de papel. E eu respondi que não gostava de sujar o papel e que, além disso,

eu enxergava melhor. Sorrindo ela perguntou se eu não me perdia nas contas, se

não esquecia as carreiras de pauzinhos. Eu prontamente respondi que não e

mostrei a ela como eu fazia as contagens do exercício no ar. Agora, agradeço

muito à professora Olga por ter respeitado a maneira como eu resolvia o

problema, pela atenção dedicada e pela compreensão do meu perfil diferenciado

de aprender.

1.2 DO IDEAL NA PRÁTICA

Reunindo essas lembranças, a indicação do professor Flávio e o episódio

da caixa de papelão pendurada, iniciei a tarefa de construir esses contornos para

o ar. O propósito do trabalho parecia estabelecido, o ideal de contornar o ar

tornar-se-ia meu objetivo central. No entanto, colocar em prática esse ideal

transformaria toda a sua importância dentro do processo; a conformação concreta

da ideia perderia a sua potencialidade diante do seu entorno. O lugar de

montagem e o trabalho passariam a interpenetrar-se, e o contorno do ar acabaria

se tornando matéria dessa relação. Nessa pesquisa prática cito alguns

referenciais artísticos e teóricos, referências que são cruzadas entre o

desenvolvimento do processo e a reflexão da sua apreensão no trabalho.

19

Iniciei uma sequência de experimentos com fita adesiva transparente de

empacotamento, a mesma das caixas de papelão, agora sozinha no trabalho,

buscando uma configuração que se aproximasse do ideal de amarrar o ar. Nesse

período, tomei conhecimento da obra de Fred Sandback (fig. 12, 13), que aliada à

obra e aos escritos do Waltercio Caldas, proporcionaram uma ampliação do meu

entendimento a respeito do espaço atmosférico como possibilidade material do

trabalho. Aliás, as minhas intenções em materializar o ar de algum modo são bem

elucidadas nas palavras do artista Waltercio Caldas:

Cada artista tem uma maneira diferente de “ver” o ar e de dar-lhe uma

forma. Minha expectativa poética em relação ao ar é que ele reverbere e

tilinte como um corpo sólido. Minha intenção é fazer com que o ar seja o

mais visível possível, quase um som que necessita de um corpo

transparente, fundamental. Um ar óptico. (HONÓRIO, 2006, p. 29)

As construções geométricas, inicialmente paralelepípedos em função da

forma da caixa de papelão, foram se desenvolvendo no espaço. Eu esticava fios

de poliamida para servirem de estrutura do revestimento feito com a fita, material

todo transparente, uma regra na construção do trabalho. O primeiro experimento

tinha a estrutura toda coberta pela fita, mas perdia a noção de ar amarrado,

tornando-se um sólido pseudo transparente. A transparência não ficava tão

evidente, e o brilho do material intensificava a solidez da forma. Para tanto, resolvi

fragmentar o revestimento da forma, operando sempre com uma camada de fita e

outra de vazio/ar; solução inspirada num trabalho anterior, Ó em metro1 (fig. 14).

Essas amarrações escultóricas pareciam concentrar o ar numa área marcada, ora

o contorno da fita como o positivo da matéria e o ar como o negativo, ora vice-

versa (fig. 15).

Durante esses experimentos foi surgindo uma nova problemática, a

conformação do trabalho em relação ao seu local de instalação. Do esboço inicial

à sua concretização, a proposta sofria alterações muitas vezes drásticas. Um

tamanho era proposto, mas a altura do ambiente dificultava a fixação da sua

estrutura, alterando a escala do trabalho. A própria materialidade foi sofrendo

adequações dependendo de vários fatores do ambiente de sua montagem, como

1 “Ó em metro”, instalação de desenhos, feitos em bobina de calculadora e bobina de fax, com projeção de imagem; a montagem é feita intercalando paralelamente as faixas de desenho e as faixas de vazio.

21

a iluminação, a ventilação; a fita, por ser um material frágil, foi recebendo

diferentes readaptações em sua fixação. Além disso, é fundamental mencionar os

aspectos cinestésicos ao redor do trabalho. Enfim, a complexidade da realização

formal estava instaurada, dificultada, necessitando de uma solução que

viabilizasse, não somente o processo de instalação, mas o conjunto do trabalho,

que deveria ser todo repensado e reconfigurado. Segundo Danto, “[...] algumas

vezes mudamos o mundo para que ele se encaixe em nossas representações; e

outras vezes mudamos nossas representações para que elas se encaixem no

mundo” (2006, p. 12).

A solução para as dificuldades foi sendo resolvida quando eu comecei a

me preocupar com todas as etapas do trabalho, a colocar em perspectiva todo o

seu processo de viabilização, desde sua ideia inicial até a sua configuração real.

Essa solução encontrou na projeção2 algo que pudesse medir todas essas

possibilidades de desvio, uma organização que pudesse estruturar melhor todos

os procedimentos de sua possível realização. O conjunto do trabalho passava a

depender de um roteiro traçado pelo seu projeto.

Desse modo, as primeiras esculturas efêmeras de fita adesiva foram

projetadas, testadas e finalmente instaladas. No entanto, poucas dessas

construções escultóricas não sofreram alterações em relação ao ambiente em

que foram montadas. E dessa relação inconstante do projeto à sua instalação

física foram surgindo novas conformações. O projeto sempre sofria alterações por

uma coluna no meio da sala, por aberturas que desconsertavam a sua

visibilidade, pela iluminação pendente, ventilação excessiva, pelo trânsito do local;

ou seja, do conflito do trabalho no espaço e do espaço no trabalho. Um projeto

estrutural não dava conta das especificidades do lugar em que seria instalado.

Toda essa problemática se criou em torno da instauração do trabalho em

determinado espaço expositivo. A relação de uma proposta com a sua

configuração física no local de montagem foi se tornando insustentável. Eu

passava mais tempo entretido com as adaptações ao espaço de montagem do

que com a idealização da proposta inicial. O projeto inicial passou a ser como um

rascunho, visto que, não ordenava o trabalho, e a sua montagem assumiu o papel

2 No sentido de colocar as ideias no plano do papel, em projetos de trabalho.

23

de ordenar, de reestruturar o projeto conforme as necessidades do lugar no qual a

construção se instalava.

Assim, o que era uma escultura efêmera transacional passou a ser

conformado como instalação irrepetível de sua primeira montagem/adaptação ao

espaço expositivo (fig. 16, 17, 18). Ainda que possa ser instalada em outros lugares,

tanto sua estruturação na arquitetura do lugar como a contextualização ambiental

não se repetirão, transformando o projeto inicial a cada montagem específica.

Essa adaptação, de um mesmo projeto, a diferentes lugares e contextos no início

me agradava, era uma maneira de confrontar essas conformações com a

proposta central do trabalho; uma possibilidade que foi se distanciando dos

objetivos iniciais e da configuração que a minha pesquisa necessitava

experimentar. É importante, nessa fase, citar a obra (fig. 19) e o posicionamento

político do artista Daniel Buren, referencial que me proporcionou um

aprofundamento das questões centrais do meu processo; problematizando o

trabalho além das implicações formais, apontando para a sua importância

ideológica dentro de um contexto social e artístico.

O interesse, a partir daí, voltou-se para uma conexão entre o projeto do

trabalho e o seu local de montagem. Eu comecei a buscar estratégias que

relacionassem a minha proposição central à contingência do seu lugar de

instalação. Da insatisfação anterior com trabalhos que brigavam com seus

espaços de montagem, que acabavam indiferentes à sua proposta central em

detrimento de uma maior acomodação ao lugar da sua instalação; desse embate

que eu cheguei às proposições específicas para cada lugar. Uma nova

configuração do meu processo de trabalho passou a investir na capacidade

espacial de um lugar específico, seja o lugar um ambiente urbano ou rural, seja

uma clausura arquitetural (fig. 20) ou uma paisagem exterior (fig. 21); tanto no

ambiente tradicional da arte como em lugares não comuns a prática artística. A

conformação física da interferência era agora construída a partir do entorno do

seu lugar, e sua espacialização se transformou numa situação que opera

criticamente a condição segregada e/ou inativa desse lugar. Para esses trabalhos

gosto do termo “cerimônia de exposição” trazido por Stéphane Huchet e

explicitado por Jennifer Licht:

24

O espaço é agora considerado como um ingrediente ativo, a ser não apenas representado mas conformado (shaped) e tornado característico pelo artista, capaz de envolver e mergulhar o observador e a arte numa situação de maior porte (of greater scope) e escala. De fato, o espectador agora entra no espaço interior da obra de arte […] e se lhe é apresentado um conjunto de condições em vez de um objeto acabado. […] o artista é livre para influenciar, determinar e inclusive governar as sensações do observador. A presença humana e a percepção do contexto espacial tornaram-se materiais da arte. (LICHT. In: HUCHET, 2006, p. 31)

Huchet cita dois aspectos que possibilitam essa “cerimônia de exposição”: o

primeiro da genialidade espacial, o desvendar das potencialidades dinâmicas do

espaço; e o segundo da invenção do ato de expor moderno, desde Marcel

Duchamp com suas provocações lançadas às instituições artísticas no início do

século XX. (op. cit. p. 21).

As adaptações do trabalho encontram suporte no próprio entendimento da

linguagem “instalação”. Segundo Leprun: “A instalação é uma resposta adaptada,

efêmera, frequentemente transformável, que ordena exibe e constrói uma

verdadeira sociabilidade plástica” (1999, p. 21). Considero esse conceito

amplamente discutido por mim ao longo da minha prática de trabalho, visto que a

configuração final de um trabalho meu sempre sofreu alguma adaptação ao seu

lugar de montagem, sendo este muitas vezes transformador da proposta (fig. 22,

23, 24). Para James Elkins (s/d, p. 8), uma instalação bem sucedida controla o

espaço, assim como responde às suas peculiaridades, e uma mal resolvida torna-

se “perdida” no espaço, ou é “indiferente” ao seu entorno. Isso se confirmou com

maior impacto quando resolvi pensar o espaço do lugar relacionado ao trabalho;

não continuaria a construir trabalhos que fossem indiferentes ao seu ambiente de

instalação.

A função do trabalho não se detém apenas da amarração do espaço

atmosférico, mas também está comprometida na reconfiguração física de um

lugar, em estabelecer outro contexto socioambiental. O trabalho passa a implicar,

além de fatores propositivos, aspectos físicos e sociais num estado provisório que

transforma determinado lugar por um período. A sua interferência torna-se uma

operação crítica na conformação estável de um lugar, configurando-se numa

situação que desestabiliza a percepção e a funcionalidade desse ambiente. Como

a intervenção da artista Ana Maria Tavares (fig. 25, 26), no Projeto Arte/Cidade Zona

28

Leste (2002):

A proposta visa romper esta sistemática do acesso e da percepção. Trata-se da instalação de um conjunto de passarelas e escadas que interliguem as diversas áreas existentes nos andares e, através de aberturas feitas nas lajes, os diferentes pisos entre si. Instaurando um dispositivo de circulação inteiramente distinto daquele imposto pela estrutura arquitetônica. O percurso criado não pretende oferecer acesso aos locais. Pelo contrário, trata de evidenciar a impossibilidade de acesso físico a lugares específicos e, ao mesmo tempo, proporcionar uma visão ampliada da arquitetura. O conjunto deve criar uma rede ilógica de tráfego, deslocando o visitante de seu ponto de vista usual e proporcionando-lhe uma distinta experiência espacial. (s/d, s/p.)

Espaços com usos segregados são reestruturados recebendo novas

possibilidades de fluxo; o trabalho se faz nesse espaço articulando diferentes

maneiras de interação e visualização do seu entorno. “Trabalho e lugar não se

diferenciam, se interpenetram.” (NAVAS, 2009, p. 61) Áreas inativas de

determinado lugar são reanimadas recebendo por imposição alguma visibilidade

dentro do contexto espacial do trabalho. Como escreveu Ligia Canongia:

O sentido do objeto nasce no e do espaço público, instituindo uma interdependência notável entre o objeto e o lugar. O próprio conceito de “instalação” que temos hoje parte do pressuposto dessa relação necessária entre o acontecimento formal propriamente dito e o lugar de sua apresentação. (2005, p. 65)

Com o espaço do lugar integrando formal e propositalmente o trabalho,

uma nova questão insurgiu-se no processo de construção: a experiência do

espectador em relação à situação imposta no determinado lugar. Das questões de

Régis Durand3: “Qual a relação com o espectador tal obra induz? Qual mundo,

qual ‘espaço mental’ ela constitui, e quais procedimentos ela coloca em jogo para

regular a percepção que temos dela?” (In: HUCHET, op. cit. p. 27); à procura de

respostas, busquei repensar minhas proposições. Sendo um lugar ocupado por

uma interrupção provisória é necessário que o conjunto do trabalho considere a

interação dos seus visitantes com essa situação imposta. Portanto, a

reestruturação do espaço não poderia apenas levar em conta os limites

arquitetônicos e/ou paisagísticos do lugar específico, mas também deveria

considerar os padrões de fluxo, as necessidades de trânsito dos visitantes;

3 Durante a leitura dessas questões, em 2009, que me conscientizei da importância do espectador interagindo com o trabalho.

30

reconfigurando de modo que transforme, mas não impossibilite a experiência com

o estado temporário do lugar. Preocupação que vai além da interação física, que

possibilita uma relação dialética entre o trabalho e o espectador. Didi-Huberman

trata essa relação como a aura de uma situação, a distância espacial entre o

objeto artístico e o seu experienciador, na qual um olha para o outro.

Só pode ser compreendida na dinâmica de um lugar constantemente inquieto […] que tendem a produzir visualmente o efeito de uma ilimitação do objeto, quando este capta e recolhe nele as imagens de um espaço e mesmo corpos espectadores, que se acham em torno dele. (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 139/141)

Robert Morris fala de uma maior consciência do espectador diante de uma obra

em contexto espacial:

O espectador torna-se mais consciente do que antes do fato de estar ele mesmo estabelecendo relações, uma vez que apreende o objeto a parte de posições variadas e sob condições variáveis de luz e contextualização espacial. (apud. FRIED, 1993, p. 135)

O meu trabalho, assim, passou a configurar-se no lugar, para o lugar; é o

próprio lugar [numa espécie de] em estado de sítio. Uma situação que abala as

estruturas do ambiente que ali se inaugura, como escreveu Paulo Sérgio Duarte:

“Ali é ‘o’ lugar da escultura, não poderia ser outro, pois ela fundou esse lugar, e,

ali instalada, praticamente o inaugurou” (2001, p. 44). O conjunto provisório

instaurado se transforma em instrumento visual à experiência do visitante, ativa

um campo de ação dando à percepção o presságio de uma reconfiguração

iminente. Um evento que demarca o espaço de um determinado lugar durante um

intervalo de tempo, que amarra o ar desse ambiente. E é desse ponto que eu

venho operacionalizando toda a minha prática propositiva de trabalho.

32

2. PROPOSIÇÃO EM PERSPECTIVA

Ou seja, coisas a ver de longe e a tocar de perto coisas que se quer ou não se podem acariciar. Obstáculos, mas também coisas de onde sair e onde reentrar. Ou seja, volumes dotados de vazios. Precisemos ainda a questão: o que seria portanto um volume – um volume, um corpo já – que mostrasse a perda de um corpo? O que é um volume portador, mostrador de vazio? Como mostrar um vazio? E como fazer desse ato uma forma – uma forma que nos olha? (DIDI-HUBERMAN, op. cit. p. 35)

O conjunto provisório que o trabalho formaliza leva em consideração o

seu lugar de instauração, depende em primeiro passo da escolha desse lugar. A

proposição do trabalho parte das especificidades do ambiente no qual pretende

interferir. Do cruzamento do meu desejo em amarrar o ar, torná-lo visível no

espaço, com as implicações específicas do lugar da interferência; dessa tensão

que o trabalho insurge criticamente, materializa-se no lugar. E, da proposição à

interferência, uma série de levantamentos são confrontados numa pesquisa sobre

o trabalho; pesquisa que vai articulando todo o processo dentro de uma produção

documental, documentos que roteirizam os procedimentos e arquivo que

comprova a existência da intervenção. Material constituinte de um evento com

lugar e tempo marcados; uma das partes da totalidade do trabalho. Para tanto,

explico a divisão de todo o processo relacionando as questões propositivas às

suas demandas em cada etapa.

2.1 DAS ETAPAS DO PROCESSO

O processo do trabalho é dividido de maneira sistemática, e isso é

imposto por mim de modo que cada etapa objetive uma demanda própria dentro

do processo. Cada etapa seguida da outra de modo a operacionalizar todo o

conjunto do trabalho. A divisão é feita em quatro etapas:

I. LUGAR – a escolha do lugar, o levantamento do seu potencial de

espacialidade, a referência topográfica específica

II. ARQUIVO – a elaboração de uma documentação do trabalho: os

esboços, os projetos/croquis, as vistas partidas, a maquete

III. MONTAGEM – a experiência de instalar o trabalho, os dados de

33

desvio com as adaptações ocorridas do projeto à sua estruturação

física

IV. SITUAÇÃO – a interferência no lugar, o lugar na interferência; uma

análise dessa conformação do conjunto diante da situação

estabelecida

2.2. OPERAÇÃO CRÍTICA

A intenção do conjunto do trabalho opera na desestabilização do lugar,

criando uma nova configuração física para o ambiente, com outras possibilidades

perceptivas para esse determinado lugar. A interferência serve como um

dispositivo de reanimação do espaço inativo ou subjugado do lugar, rearticulando

suas necessidades físicas e sociais diante de uma situação temporária. Acima de

tudo, serve como uma crítica à acomodação perceptiva de determinados lugares.

Segundo Rosalyn Deutsche (apud. KWON, 1997, p.184), existem dois modelos

distintos de sítio específico: o assimilativo e o intervencionista; sendo o primeiro

uma integração do trabalho ao ambiente físico, e o segundo como uma

intervenção crítica na ordem existente do local. Dessa distinção, estabeleço uma

relação: o trabalho é integrado ao ambiente ao mesmo tempo em que interfere na

sua dinâmica comum; sua operação crítica se apoia nas estruturas existentes,

transformando-as de maneira a romper com a ordem do lugar; um modelo, desse

modo, assimilativo intervencionista.

Segundo Miwon Kwon, a garantia de uma relação específica entre o

trabalho artístico e o seu lugar (site) está no reconhecimento da sua

impermanência móvel, na sua experimentação como uma situação irrepetível e

evanescente. “O trabalho não quer mais ser um substantivo/objeto, mas um

verbo/processo, provocando a acuidade crítica (não somente física) do

espectador no que concerne às condições ideológicas dessa experiência”

(KWON, op. cit. p.170/171). Dessa análise e para que essa situação se configure

no meu trabalho, é necessário um conhecimento preestabelecido do lugar

específico por parte dos espectadores, do contrário duas possibilidades de

apreensão do trabalho serão colocadas em questão: a primeira como apropriação

do lugar, a relação da intervenção com o seu entorno; e a segunda como uma

34

adaptação ao ambiente de sua instalação.

O potencial de ativação do espaço, através da situação imposta pela

interferência, passado um tempo acaba sendo incorporado ao lugar; isso ocorre

porque a visualização contínua de um acontecimento acaba retirando a sua

importância, tornando-o, como o seu lugar anterior à intervenção, indiferente a

percepção cotidiana. Para a apreensão da capacidade de ativação do lugar é

necessária a retirada da materialidade instalada, assimilando características

próprias do lugar que o trabalho tornou a aparecer. Desse modo, estabelece-se

uma relevância crítica entre um estado inativo e/ou segregado anterior e o estado

que o determinado lugar esteve durante a situação imposta pela interferência,

dessa comparação insurge outros olhares para esse lugar.

2.3. DO LUGAR

A procura de um lugar específico para cada situação de trabalho vai além

de razões estéticas, como as arquitetônicas ou paisagísticas. Essa busca de um

lugar próprio é irrelevante, pois todo lugar possui um potencial de espacialização

contido no seu entorno. E a sua procura deve se pautar na delimitação dessa

potencialidade, que posta à prova, materializará a intervenção; conciliar os

contornos particulares desse lugar para definir uma estrutura que faça o espaço

do ar, o espaço atmosférico, apresentar-se no ambiente. Nessa conciliação as

necessidades contextuais do lugar devem ser consideradas. E o trabalho se

instaura, na medida em que a intervenção se articula dentro desse contexto do

lugar e na maneira como essa situação interruptiva se transforma em um novo, e

próprio, contexto para o lugar.

A relação da interferência com a arquitetura do lugar poderia ser

aprofundada diante das muitas aproximações interdisciplinares da arte com outras

ciências humanas, mas o objetivo do trabalho não se detém às possibilidades

arquitetônicas ou é configurado para a arquitetura; isso não é o mais relevante no

conjunto do trabalho, visto que a articulação é voltada para “lugares”, sejam

ambientes internos ou externos. O conjunto do trabalho não se propõe a construir

um novo espaço ou uma nova funcionalidade para o lugar, mas atenta-se ao seu

despertar perceptivo, a um reaparecimento e uma rearticulação no mundo. A

35

relação com a arquitetura pode acontecer e acontece, mas em detrimento da

potencialidade espacial do lugar, da dimensão transformadora que a situação

temporária causará no ambiente através de uma multiplicidade de apreensões do

estado de sítio do lugar. O interesse está voltado para um desconforto usual,

arquitetônico ou paisagístico, operando uma certa instabilidade desconcertante.

Enfim, o objetivo da interferência é a dinamização do espaço do lugar, ampliando

o foco a qualquer lugar que um trabalho venha a conectar-se. Posso interferir

numa praça, numa cozinha qualquer, numa montanha, num poste de iluminação,

num lago; o que importa nessa possível intervenção não é o lugar em si, mas

como essa interrupção pode reanimá-lo, recontextualizá-lo ao seu meio

coexistente.

O fazer espaço num determinado lugar implica em conferir-lhe uma

parcela de vida, visto que um espaço só existe mediante um conjunto de relações

entre um ambiente físico e seus habitantes; fazer espaço é acordar o lugar, com

as palavras Heidegger:

Na palavra espaço, está contido o fazer – e deixar – espaço. Isso significa desmatar, preparar o terreno. Fazer espaço é livre doação de lugares. No fazer espaços se expressa e se esconde ao mesmo tempo um acontecer. Como se dá o fazer e deixar espaço? É um dispor e pôr em ordem, e isso, por sua vez, no dúplice modo do acordar [harmonizar] o acesso e do instalar. Fazer-espaço é o evento que acorda os lugares. (1998, p. 27).

À medida que um lugar tem seu espaço obliterado de função, de percepção, esse

espaço passa a não existir, invisível, um território de ninguém. Escreveu Merleau-

Ponty: “o espaço não é um ambiente (real ou lógico) em que as coisas se

dispõem, mas o meio pelo qual a posição das coisas se torna possível” (1996, p.

328). E é essa estagnação espacial que o trabalho se propõe a transformar,

mexendo com o espaço atmosférico do lugar através do seu entorno apagado

e/ou subjugado; estabelecendo uma relação entre o espaço atmosférico e a sua

estrutura arquitetural anulada, despercebida, configurando uma forma geométrica

capaz de lidar com essa tensão despertada.

36

2.4. ESPAÇO ENTRE

Na amarração proposta em determinado espaço, constrói-se um outro

tipo de volume, um volume vazio do visível. Para Aristóteles, “a teoria de que o

vazio existe envolve a existência de lugar: poder-se-ia definir o vazio como o lugar

desprovido de corpo” (ARISTÓTELES, Livro 4, Parte 1). O ar do ambiente parece

embaçar contornos através das múltiplas espacializações que as faixas de fita

produzem. Esses contornos levemente construídos pelo olhar diante da situação

do lugar vão criando infinitas espacialidades do vazio. Vão propondo uma

possível visibilidade, ainda que virtual1, do ar do ambiente. A alternância entre

uma faixa de fita e uma faixa de vazio, e de sua reverberação pelo espaço

atmosférico, faz do espaço entre uma tensão entre o real e o virtual. Uma relação

entre o visto e o proposto a ver; matéria da situação:

O ar que as cerca ou que as atravessa parece expressivo, como os intervalos de silêncio numa composição musical. Como se o trabalho também se construísse ao lado, e não só onde ele se encontra. O ar e o vazio, ao contrário de “representações” do nada, adquirem o estatuto de material da obra, muitas vezes o mais abundante.(DUARTE, 2001,p. 76)2

2.5. ARQUIVO

A projeção de um trabalho, para mim, já é conformada na sua idealização,

na sua concepção, na importância que o objeto desempenhará quando intervier

no mundo. E, desde o primeiro esboço (fig. 27), o trabalho já começa a medir essa

necessidade em tornar-se um acontecimento concreto, tangível à realidade do

mundo. Os esboços, os croquis, a maquete, as vistas partidas, entre outras

maneiras de representar um projeto são para mim como pensamentos práticos do

trabalho. São ideias concretas que vão estabelecendo relações entre a primeira

idealização até uma possível realização. Estudos que vão além de um roteiro do

trabalho, tornando-se agentes esmiuçadores das possibilidades de uma

interferência. São o peso e a medida de um processo que configura o produto

final. Documentos que comprovam a existência de uma ideia, e que depois da

realização, tornam-se arquivos do trabalho, comprovantes de todo o processo.

O arquivo do trabalho acaba configurando uma documentação do

1 Em meu trabalho entendo por virtual a possibilidade de visualizar algo suscetível a materialização.2 Comentário de Paulo Sérgio Duarte a respeito da obra “O ar mais próximo”do Waltercio Caldas.

37

processo, articulando desde o seu roteiro até a sua dimensão técnica. A etapa

final, do estabelecimento físico, muitas vezes não consegue apreender toda a sua

dimensão estrutural, seja pela exacerbação da interferência que se impõe diante

do lugar, seja pelo caráter fenomenológico da situação imposta diante do

visualizador; sendo um desenho do projeto capaz de orientar uma visão ampla de

sua conformação física e propositiva. Todos os desenhos que acompanham o

projeto, depois do término da intervenção, acabam colaborando para a

preservação do seu acontecimento físico (fig. 28); são como certidões de

nascimento e óbito da situação gerada pela intervenção. Enquanto os registros

fotográficos se detêm na forma e na interação da interferência com o lugar e

desse conjunto com o espectador, os desenhos do projeto se ocupam da

materialização das ideias contidas no programa de construção do trabalho.

As fotografias, assim como a experiência do visitante, são rapidamente

desviadas pelo poder de sedução da intervenção. Os recortes visuais que a forma

produz são múltiplos, de um lado a outro se perde a noção da totalidade, cada

parte parece derrubar a outra, formando um jogo de ângulos percorridos visual e

fisicamente. E essa experiência fragmentada faz da compreensão do trabalho

algo desconcertante, sendo necessário um material de apoio que concentre mais

objetivamente o eixo central da intervenção no lugar (fig. 29, 30); função que a

fotografia documental única não oferece, sendo a sua capacidade limitada a

exatidão do recorte visual da forma instalada.

Não considero a instalação física como um trabalho em si, e sim a

conformação final de um processo que se iniciou com o primeiro esboço, tornando

cada etapa importante para a instauração do trabalho. Essa compartição do

processo deve ser contabilizada, a cada procedimento, como um todo e o todo

como o próprio trabalho. Como a própria interferência, os desenhos são sim

ilustrações, mas ilustrações da ideia, do pensamento que a proposição do

trabalho carrega. Já, o conjunto de todos esses meios de ilustração, concentra um

consenso decorrente do próprio processo, todas as mudanças, os desvios, os

avanços que evoluíram na conformação final da intervenção.

Os diferentes modos de visualização do processo são dispostos com

proveito, de maneira hierarquizada, organizando os documentos conforme a

39

operacionalização do projeto. A linha do tempo, detalhada pela documentação,

passa a dar conta do andamento e da espacialização da interferência no lugar. Os

desenhos são como um glossário bem resolvido do processo de instauração do

trabalho. Conforme Sylviane Leprun:

Croquis, esboço e desenho preparatório, são outros vocábulos profissionais que introduzem/imiscuem-se no espaço da instalação, permitindo medir a parte de aleatório do projeto, mas também a necessidade de dominar o espaço, a fim de alcançar o efeito convencionado e desejado. (1999, op. cit. p. 22)

A produção dos documentos arquivísticos é um período de pesquisa que

estrutura toda a produção do trabalho, que põe em prova todo o caráter aleatório.

Daniel Buren ressalta o caráter de incerteza do projeto, “o que é decisivo só a

realização virá indicar visualmente (praticamente) o que esse trabalho quer dizer

(teoricamente), ressaltando então, as distâncias entre uma hipótese de trabalho e

sua realização” (In: LEPRUN, op. cit. p. 23). Ultrapassa a maneira convencional

de uma projeção representativa para se enquadrar como absoluto do trabalho.

Material arquivístico que dá a sua dimensão antropológica; tanto na produção

(antes) e na instauração (durante), como depois, sendo a memória, a

comprovação documental dessa determinada situação. Escrituras de um

acontecimento social artístico.

2.6 A MATERIALIDADE

A construção material do meu trabalho é, acima de tudo, proposta pelo

seu local de instalação, e essa relação com lugar é possível pela própria matéria

empregada. A sua configuração se dá através dos componentes estruturais do

lugar, seja um ambiente interno ou externo, opera numa conformação com o

determinado lugar. A dimensão exacerbada está contida na própria proposição do

trabalho. Dentro dessa conformação, é claro, existe um interesse meu pelas

formas geométricas contidas e estruturadas pela arquitetura e/ou paisagem

urbana, um interesse que busca desdobrar-se na apreensão do vazio contido no

espaço. No entanto, é preciso considerar o modo como idealizo essa

materialização física, os meus interesses reais na sua operacionalização. Fecho

essas considerações dedicando-me à visualidade da interferência.

41

A dimensão, primeiramente, é estabelecida na quase totalidade do

espaço do lugar em função do meu estado exagerado de ser. Em segundo, pela

imposição da presença, não pensaria em fazer um trabalho que não fosse notado,

faço-o presente obrigando a sua visualização. Numa atitude crítica em relação ao

desapego perceptivo que a velocidade da informação carrega, uma

inconformação minha de um universo abarrotado dessas informações e vazio de

significados. Como se a vertigem da velocidade estivesse substituindo a ideia! Da

música Aprendiz de feiticeiro1, do compositor Itamar Assumpção: “Aprendi da

importância de não dar muita importância/ Ficar com os meus pés no chão […].”

Esse trecho resume bem a atual condição de desapego ao diferente, a tudo que

modifica ou causa um estranhamento, parece mesmo uma atitude de

esvaziamento das ideias e da capacidade de assimilação. Eu tento contrariar

esse contexto com a configuração do trabalho, amplio o seu tamanho a

capacidade de envolver o visitante, não sendo esse capaz de fugir da experiência.

De certo modo, essa atitude de imposição é drástica, mas nesse momento eu

penso ser uma alternativa interruptiva necessária. Quando tudo aparece com a

mesma importância, então tudo passa a ter importância nenhuma. Emprego as

palavras de Waltercio Caldas para resumir a grande dimensão da presença:

“Tendo a acreditar que o significado é a capacidade que o objeto tem de preservar

sua capacidade de aparecer; capacidade que ele próprio produz com uma energia

inventada de presença.” (HONÓRIO, op. cit. p. 30)

A relação entre o lugar e a sua interferência só é possível através da

matéria da fita adesiva. A transparência do material deixa revelar o seu entorno,

forma uma camada que não segura o olhar, faz ultrapassá-lo além da sua

conformação física. O brilho revelado pela iluminação do ambiente acaba

contribuindo para uma inebriante percepção da matéria, deixando as fitas presas

às estruturas do espaço, mas livres a espacialidades visuais. A tensão gerada

pelo esticamento das fitas, de um ponto ao outro do ambiente, contrasta com a

sua fragilidade. O aspecto fragmentado sequencial das faixas de fita materializa o

1 Interpretada por Cássia Eller, álbum “Com você... meu mundo ficaria completo”(1998). Letra completa: Aprendiz de feiticeiro [refrão]/ [refrão](3x)/ Aprendi quando criança que além de tudo/ Balança/ Esse nosso mundo cão/ Aprendi que quem não dança, já dançou na sua infância/ Senão rock foi baião/ Aprendi da importância de não dar muita importância/ Ficar com os meus pés no chão/ Aprendi que viver cansa, mesmo vivendo na França/ Mesmo indo de avião/ Aprendi que a desavença é porque sempre/ Alguém pensa/ Que ninguém mais tem razão/ [refrão](2x)/ Aprendi que tudo passa, tomando chá ou cachaça/ Tomando champanhe ou não/ Aprendi que a descrença, a desconfiança e a doença/ São partes da maldição/ Aprendi que a ignorância, a sordidez e a ganância/ São lavas desse vulcão/ Aprendi que essa fumaça a minha janela embaça/ Por fora, por dentro, não/ Aprendi tetra depressa que a taça do mundo é nossa/ E que São Paulo é meu sertão/ [refrão]

42

espaço interior da amarração, e nesses recortes de fita e vazio o ar circula,

agregando-se na cola das faixas adesivas; condensando a matéria da

interferência numa relação espaçotemporal. A trama das faixas é como um respiro

do lugar em relação à interferência e da interferência em relação ao lugar; ambos

pulsando juntos, movimentando esse estado temporário.

O meu interesse pelas formas geométricas, delimitadas pelas estruturas

do ambiente, está mais relacionado à vontade de materializar o espaço entre do

lugar, o espaço atmosférico, do ar. As formas criam uma tensão entre o que posso

realizar com os elementos que tenho do lugar e a quantidade de formas que elas

logram produzir apesar da minha deliberação. Eu as conduzo, não as comando.

Mesmo assim é importante ressaltar o meu interesse pela matemática, como

ciência capaz de elucidar ideias, pô-las em cheque fazendo a prova dos nove.

Desde os desenhos, de todo o material do arquivo, já está implicada uma

perspectiva do trabalho, algo que configura o processo contabilizando as suas

partes, mas que se ocupa primeiramente em medir o vazio do espaço, a sua

atmosfera. Sobre a perspectiva (do vazio):

Esse sistema, estruturado a partir da descoberta da perspectiva, permitiu a medição dos objetos no espaço, mas a grande inovação foi que ele servia à medição dos vazios. Era impossível medi-los anteriormente e provavelmente muito difícil de entendê-los para um indivíduo anterior ao Renascimento, ainda baseado e influenciado pelas percepções e medos da Antiguidade. No Renascimento, os indivíduos estavam, pelo contrário, prontos para desbravar novos mundos e cobrir as áreas vazias dos mapas e do conhecimento. (KIRSCHBAUM. In: CATTANI, 2004, P.194/195)2

Ainda, sobre a forma que o trabalho assume, eu poderia abraçar estudos

aprofundados de geometria descritiva, também fazer comparações com os ideais

construtivistas, ou ainda pontuar os princípios da Gestalt. No entanto, considero

essas aproximações demasiadamente redundantes e inapropriadas. Vejo, tanto

as operações geométricas como a suposta correspondência construtivista, como

sendo configurações trabalhadas por mim, mas acima de tudo impostas por

componentes exclusivos de um material, de um objeto ou da própria estrutura do

lugar; e não posso traçar significações que para mim são coadjuvantes do

2 Nesse texto, Michal Kirschbaum faz importante estudo sobre a representação espacial na arte contemporânea, desde uma análise do espaço bidimensional até os sistemas técnicos empregados em projetos artísticos, o que ele chama “arte no processo”(p. 196).

43

trabalho, conhecimento agregado, de orelhada3. Afinal, ao longo dos últimos

noventa anos, qual paisagem urbana ou ambiente interno não: Influenciou-se ou

se estruturou nos moldes do construtivismo? Guiou-se pelas leis da Gestalt? Que

para tanto usaram a geometria? Eu respondo, todos e tudo. Por isso, não

considero a forma do trabalho uma recorrência de algum movimento, escola, ou

conhecimento científico aprofundado; esse tipo de relação chega ao mais simples

do descritível. O que a configura são influências contaminadas no próprio

contexto, tanto do meu processo de criação como do ambiente que o trabalho se

insere; parte de uma linguagem que, por assim dizer, pertence ao mundo. Não

quero com esse trabalho ensinar a ordem das coisas, expressar os meus ideais

de alguma coisa interior; quero sim é reordenar o fluxo existente, desestabilizar as

estruturas estagnadas, amarrar os extremos jogando-os ao meio, sacudir o

espaço “entre” dessa amarração, configurar uma situação própria para se

perceber além dessa relação provisória. Conforme Didi-Huberman:

Eis, em todo caso, o que permanece difícil de pensar: que um volume geométrico possa inquietar nosso ver e nos olhar desde seu fundo de humanidade fugaz; desde sua estatura e desde sua dessemelhança visual que opera uma perda e faz o visível voar em pedaços. Eis a dupla distância que devemos tentar compreender. (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 146)

Sobre a visualidade do trabalho, ressalto a sua relevância na experiência

com o visitante, na sedução que a forma infere ao seu experimentador. Em

estado de chamar a atenção, a configuração física instiga a sua percepção. A sua

beleza cambiante entra como matéria da interferência, como possibilidade de sua

fruição. Resumo minha intenção a respeito da visualidade nas palavras de Daniel

Buren:

Se é bonito, tanto melhor. Como todo mundo sabe, o que cria a beleza eminentemente misteriosa, pode ajudar a compreensão. Isto não pode ser negativo. O que é negativo é a beleza por ela, mas neste caso, trata-se ainda de beleza? Não acredito. Dito isso, tanto melhor se o produto ainda por cima é bonito, isso faz parte do luxo e da generosidade. A beleza, como “instrumento visual”, não é o objetivo do trabalho, mas um dos seus meios. (2001, p. 141)

3 Expressão popular (bras.) dada a todo conhecimento que é ensinado por fontes inapropriadas, ou ainda, através de terceiros. Exemplo: O que é hostil? Ah! Hostil é um comprimido que se dá na igreja.

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3. PROJETO PINACOTECA

Contemplando o local, ele reverberava para os horizontes sugerindo um ciclone imóvel, enquanto a luz bruxuleante fazia com que a paisagem inteira parecesse sacudir. Um terremoto dormente propagava-se por uma imensa circularidade. Desse espaço giratório surgiu a possibilidade do Quebra-mar espiral. Nenhuma ideia, conceito, sistema, estrutura ou abstração podiam sustentar-se diante da realidade daquela prova fenomenológica. (SMITHSON. In: KRAUSS, 1998, p. 336)1

Com o relato de Smithson, inicio a proposta de intervenção na

Pinacoteca Barão de Santo Ângelo, e comento que uma proposição específica a

um determinado lugar sempre é guiada por uma experiência com esse lugar, uma

correspondência dialética entre o lugar e o seu interventor.

Para o projeto de interferência na pinacoteca me detive, primeiramente,

em dois elementos presentes na sua arquitetura: as barras para sustentação e a

coluna. A coluna por sempre me parecer a atriz principal do ambiente, e as barras

pelo seu esquecimento visual e funcional. Esses dois elementos são unidos de

modo que configurem um novo contexto para o ambiente da pinacoteca. É

necessário também distinguir um trabalho feito em território da arte de um

trabalho que demarque um território artístico dentro de um contexto que não lhe é

comum, nas implicações críticas que essa interrupção traz. Ainda mais, explicar a

construção de um território artístico dentro de um contexto que é da arte.

A pinacoteca, no contexto de um espaço de exposição, prima por uma

neutralidade sensorial do seu ambiente. Implicada em suportar o significante, a

obra de arte, sendo na maioria das vezes um receptáculo neutro que se restringe

diante de algo maior. Confesso que essa implicação não me faz diferenciar esse

trabalho de uma interferência, por exemplo, em uma praça; apenas a pontuo por

fazer parte do contexto do lugar2; questionamentos que eu levantaria em

“qualquer” outro lugar que eu venha a inferir um trabalho. Considerando que no

âmbito da arte já passamos a fase do “cubo branco”3, respiro as palavras de

1 Escrito de Robert Smithson sobre o seu primeiro contato com o lugar do trabalho, experiência que originou a obra “Quebra-mar espiral”.

2 O termo “lugar” aqui é empregado além da função de localização específica, estende-se ao contexto de território artístico, de espaço da arte.

3 Modelo museológico moderno que neutraliza o espaço arquitetônico em função de uma melhor exposição dos objetos artísticos.

45

Miwon Kwon:

Depois da arte site specific, […] o espaço estéril e idealista puro dos modernismos dominantes foi radicalmente deslocado pela materialidade da paisagem natural ou do espaço impuro e ordinário do cotidiano. O espaço de arte não era mais percebido como lacuna, tabula rasa, mas como espaço real. (op. cit. p. 86)

Embora seja um ambiente artístico, considero a sua arquitetura uma ousadia a

esse conceito de espaço neutro; sua estrutura física é bem marcante e, para mim,

às vezes, sobrepõe-se aos objetos expostos. A sala vazia, de objetos, por si já se

mostra um espaço atrativo à percepção, é só olhar o desenho do piso, o gradil do

teto e sua iluminação, a forma em L, a coluna onipresente; enfim, aí já reside boa

parte do meu interesse em mexer com esse lugar.

Tudo é reordenado no espaço do lugar. Transforma-se a compreensão de

altura, largura, profundidade; o teto torna-se inatingível e o fluxo ganha uma nova

circulação. A coluna, peça única de destaque dentro da pinacoteca, na

sustentação do prédio; pelas implicações físicas e funcionais ela é uma peça

adversa no âmbito artístico, sendo um bloqueio ao espaço neutral que a galeria

supostamente se propõe. Confesso que ao entrar na pinacoteca o que vejo

primeiro e, aliás, ao pensar, é o que primeiro visualizo. Ou seja, para mim, a

coluna é um elemento arquitetural que por si só desestabiliza a compreensão da

funcionalidade do espaço. Já as barras, que um dia serviram como sustentação a

obras penduráveis, parecem anuladas a meros elementos constituintes das

paredes da pinacoteca. Passaram de funcionais a adereços por vezes nem vistos,

segregados a não utilidade e a não percepção; estando ali apagados na

configuração atual do espaço da pinacoteca. Dessa dualidade entre aparecido e

apagado que se configura a forma do trabalho.

Com a interferência, o trânsito no espaço da pinacoteca passa a ter uma

nova dinâmica, possibilitando novas percepções do próprio lugar. Das diferentes

visitas a exposições e eventos na pinacoteca, pude perceber que o fluxo de

visitantes e profissionais atuantes se desloca nas áreas centrais do espaço. Na

maioria das vezes, é esse o deslocamento do circulante, notadamente uma

atitude de zelo e/ou afastamento diante dos objetos artísticos ali expostos. E,

nesse modo de circulação, o trabalho também se ocupa de desarticular, fazendo a

46

forma da interferência preencher o centro, os meios do espaço, obliterando um

percurso pelos contornos quase rente às paredes. A nova configuração distorce o

fluxo, a estrutura amarrada impõe uma disciplina no percurso dos visitantes,

restringindo caminhos usuais e obrigando novas possibilidades de visualização do

próprio ambiente. A interferência não limita os passos do visitante, o limite é

apenas ao fluxo usual, estando o espaço todo articulado para inúmeras maneiras

de interação.

Para a montagem da interferência, divido as respectivas barras das

paredes da pinacoteca em sete partes, o mesmo número de paredes do

ambiente. A coluna, com seus quatro lados que são divididos em sete partes,

cada parte de acordo com a sua respectiva barra/parede. O revestimento com as

fitas faz a correspondência entre essas sete retas reversas, as horizontais das

barras nas paredes e as verticais das barras na coluna. Saindo da primeira barra

em direção ao seu respectivo ponto na coluna, repetindo o mesmo procedimento

até completar a forma da intervenção. (fig. 31, 32, 33, 34, 35, 36)

Portanto, determinei a construção desse trabalho na pinacoteca de modo

que ele reestruturasse toda a dinâmica visual e física do lugar. E isso não limita

um interesse apenas pelos aspectos arquiteturais do ambiente ao invés de um

olhar para o objeto, mas sim objetiva a compreensão/função do trabalho no

conjunto dessa relação criada: objeto visual + arquitetura do lugar; estabelecendo

um instrumento visual que busca evidenciar o espaço “entre” dois elementos. A

correspondência entre algo estabelecido e algo provisório, configurando uma

situação que desestabiliza tanto o lugar como o projeto do trabalho, uma tensão

que põe o lugar em estado de sítio. Um evento que acorda o lugar revelando um

território artístico.

47

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo do trabalho foi rearticular a dinâmica visual e física da

Pinacoteca Barão do Santo Ângelo. Ainda que eu não tenha realizado a

montagem da interferência, saliento a importância da construção do arquivo

desse trabalho, que possibilitou toda a sua operacionalização formal e conceitual

e que, de certo modo, tranquiliza-me dos possíveis resultados do trabalho.

Também considero a pesquisa muito relevante para o entendimento do meu

próprio processo artístico, a problematização que esse estudo gerou dentro da

minha prática de trabalho e de que maneira isso foi indispensável para o

fortalecimento das minhas ideias. Finalizo direcionando os próximos passos da

pesquisa, quais questionamentos já tenho em mente e quais estratégias buscarei

para respondê-los.

A interferência que se realizará na Pinacoteca Barão do Santo Ângelo, no

que concerne a sua exequibilidade, já está toda articulada por seus projetos

gráficos. O arquivo, assim, desempenha (além de comprovante da situação ali

instalada) um papel controlador de sua montagem. Claro que a execução da

montagem acarretará outras insurgências (dados de desvio que eu faço questão

de registrar), mas na grande maioria está tudo controlado pelo projeto. Nesse

estágio sobrepõem-se três apreensões: a suposta certeza da projeção, o encontro

real do trabalho na situação e a minha própria relativização desse contexto; dessa

confluência de estados o acontecimento se instaura.

A importância da pesquisa vai além do desenvolvimento da minha prática

artística, e torna-se mais relevante para o crescimento dos meus propósitos de

trabalho, para o entendimento do meu próprio processo artístico. Durante o

estudo pude perceber novos interesses e demandas de trabalho que a prática

instintiva não oportunizara. Surgiram várias questões que o trabalho necessitava

responder, tanto na proposição das ideias como na sua materialização.

Discordâncias e constatações que imbricaram-se na atual proposta do meu

trabalho, no meu interesse pelo potencial de espacialização de lugares

específicos. Nesse sentido, a pesquisa foi fundamental e transformadora.

Do processo de entendimento do meu trabalho, pude compreender a

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dinâmica de uma pesquisa artística. Para mim, o desenvolvimento antes era

realizado através dos trabalhos prontos, que se sucediam estabelecendo relações

ou discordando completamente. E através dessa pesquisa pude perceber uma

linha de conexão não entre trabalhos materiais, e sim questões de trabalho,

propósitos principais que encontram-se na totalidade do processo. Passei a ver o

meu trabalho como um processo, prático nas resultantes materializadas e

ideológico nos questionamentos propositivos.

O meu processo artístico foi configurando-se através de novas demandas

que o trabalho necessitava experimentar. Iniciei com exercícios aleatórios de

representação, constatei um ideal maior e tentei colocá-lo em prática, construí

alguns experimentos geométricos espaciais e na ampliação desses para trabalhos

físicos surgiram alguns problemas; passei um período tentando conformar isso

nos espaços de montagem, algumas vezes consegui, outras não. E nesse

caminho um interesse norteador conferiu-se ao trabalho: o lugar. Acima de

qualquer outro desejo meu o lugar se impunha, manifestava-se de maneira

potencial no trabalho; dessa constatação não tive outra alternativa que não fosse

trabalhar, mexer com lugares, de construir trabalhos que já foram, são e serão

lugares. Interferências provisórias que se propõem a explicitar esse jogo entre o

antes, o durante e o depois.

Da apreensão do meu propósito principal de trabalho, estabeleço outras

direções para o processo. Divido a atual conformação do meu trabalho em dois

interesses que continuarei explorando: a construção do espaço entre, numa

preocupação com a materialização desse ideal; e o lugar, as possibilidades que

diferentes lugares podem proporcionar como matéria do trabalho. Desse último,

buscarei um desenvolvimento que supere a interação espacial com uma clausura

arquitetural ou uma paisagem exterior; que possibilite uma investigação mais

geográfica, antropológica dos lugares. Talvez uma dimensão ainda mais

exacerbada, na escala pública, como as mega interferências de Janet Echelman1

(fig. 37, 38). Trabalhos que extravasem lugares, que se enriqueçam do próprio

1 Artista americana. Trabalha com grandes instalações em ambientes internos, mas sobretudo na paisagem urbana. A materialidade de suas interferências são repetidas, as formas e o material (rede de nylon) são recorrências na sua trajetória, e o que as diferencia são as características locais, o seu contexto sociológico; pesquisa de especifidades do lugar que Echelman aprofunda e converte nas cores, no posicionamento e nos títulos de seus trabalhos.

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ambiente para se materializarem, mas que acima de tudo proporcionem uma

reviravolta no contexto do lugar (fig. 39). Minha intenção aponta para um

deslocamento entre lugares distintos, um itinerário de estudo que vá descobrindo

potenciais específicos de trabalho em cada local; uma busca e uma postura que

poderia ser chamada de “arqueologia poética”. Materializar esses mapeamentos

eu ainda não sei como, mas o processo está lançado. De fazer espaço num lugar

eu passarei a pensar lugares, discutir seus espaços. Enfim, a matéria do meu

trabalho agora é o lugar, e dele nada ambiciono apenas recebo.

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