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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO CAMPUS II ALAGOINHAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CRÍTICA CULTURAL ELIZIA DE SOUZA ALCÂNTARA TIRAS EM QUADRINHOS DA TURMA DO XAXADO: imagens desviantes Alagoinhas-BA 2015

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA

DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO – CAMPUS II – ALAGOINHAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CRÍTICA CULTURAL

ELIZIA DE SOUZA ALCÂNTARA

TIRAS EM QUADRINHOS DA TURMA DO XAXADO:

imagens desviantes

Alagoinhas-BA

2015

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA

DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO – CAMPUS II - ALAGOINHAS/

BAHIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CRÍTICA CULTURAL

ELIZIA DE SOUZA ALCÂNTARA

TIRAS EM QUADRINHOS DA TURMA DO XAXADO:

imagens desviantes

Alagoinhas-BA

2015

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ELIZIA DE SOUZA ALCÂNTARA

TIRAS EM QUADRINHOS DA TURMA DO XAXADO:

imagens desviantes

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação

em Crítica Cultural do Departamento de Educação –

DEDC II da UNEB como requisito à obtenção do título

de mestre em Crítica Cultural.

Orientador: Prof. Dr. Roberto Henrique Seidel.

Alagoinhas-BA

2015

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TIRAS EM QUADRINHOS DA TURMA DO XAXADO:

imagens desviantes

ELIZIA DE SOUZA ALCÂNTARA

Esta dissertação foi julgada para obtenção do título Mestre em Crítica Cultural. Área de

concentração em Letras e aprovada em sua forma final pelo curso de Pós-Graduação em

Crítica Cultural da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) Campus II.

_____________________________________

Prof.ª Dr.ª Edil Silva Costa

Coordenadora do Pós-Crítica/

BANCA EXAMINADORA

______________________________________

Prof.º Dr.º Roberto Henrique Seidel

Presidente da Banca

______________________________________

Prof.ª Dr.ª Patrícia Kátia da Costa Pina

Examinador interno (UNEB)

______________________________________

Prof.ª Dr.ª Flávia Aninger de Barros Rocha

Examinador Externo (UEFS)

SUPLENTES

______________________________________

Washington Drummond (UNEB)

______________________________________

Claudio Cledson Novaes(UESF)

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DEDICATÓRIA

Á minha mãe Maria Dulce que me ensinou a ler a vida.

Saber ler é a pessoa que sabe fazer alguma coisa na vida.

Entra e sai adonde chegar.

Sem a leitura num tem nada na vida.

Primeiro Deus.

Depois a leitura.

A sabedoria.

Tudo é depois.

O que importa é Jesus.

O resto é que se lenhe.

Na minha terra se falava assim:

Que num sabe ler é um tapado. (risos... tudo no nordestino é errado!)

A vontade de ser gente é que fazia o esforço pra ir até a escola.

(79 anos, nascida em Santa Terezinha, Pernambuco em 1936)

Ao meu pai Antonio (in memoriam) que carinhosamente me chamava de “minha índia” e

“meu cheiro”. Obrigada por me mostrar o lado lúdico da vida.

Ao amigo Antonio Cedraz (in memoriam) pelo acolhimento, força e vontade de viver.

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AGRADECIMENTOS

À João Assis meu amigo, compadre e parceiro de sonhos pelas altas gargalhadas e incentivo

sempre. (in memoriam)

Ao meu esposo e companheiro Ubiratan por compreender as ausências e se tornar presença

nas horas mais difíceis.

Á minha filha Elis Marcela pela paciência e apoio nas horas de formatar as tiras em

quadrinhos. Sua parceria me fez caminhar com mais entusiasmo.

Ao meu filho Everton Marcel pela confiança no meu trabalho e pelo abraço na hora em que

mais precisava.

Ás minhas irmãs Janaina, Tânia e Leda pelo incentivo.

Á minha sobrinha Mara, minha “pró” das regras da ABNT. Sua disponibilidade na construção

dessa pesquisa foi de extrema importância. Sem ela, teria naufragado...

Ao meu sobrinho Betão pela alegria contagiante.

Ao meu sobrinho Antonio Leonardo pelos “papos” filosóficos sobre a vida e a educação.

Á minha amiga Eluísa pelo companheirismo e cumplicidade.

Á minha amiga Cleonice pela dedicação e carinho.

Á Alice por me mostra a língua francesa de forma prazerosa e significativa.

Á minha apoiadora Sandra. A sua pergunta diária “E aí, pró? Já terminou o texto? indicava-

me que precisava escrever.

Á minha amiga Cristina pelos encontros terapêuticos em sua casa e pela calmaria que me

proporciona.

Ao meu sobrinho Thiago pela paciência em compreender as minhas dúvidas e inquietações.

À amiga Claudia, companheira de lutas e sonhos.

À amiga Jeane por me apoiar na construção desse tecido de pesquisa.

À minha turma do tirocínio pelo respeito e acolhimento.

Á Evanildes por ter-me “adotado” durante todo o curso. A sua presença me fortaleceu nessa

caminhada.

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Á Gislene pela alegria, doses de humor e apoio nas horas tão necessárias.

Á Leila por me proporcionar momentos de escuta sensível e pela solidariedade.

À minha turma do mestrado, guerreiros e guerreias na e pela resistência.

Aos professores e professoras do Programa de Pós-Graduação em Crítica cultural pelas

contribuições ao longo dessa jornada acadêmica.

Aos funcionários da Secretaria do Mestrado pela forma acolhedora e atenciosa.

Em especial à Neila pelas orientações sempre nas horas decisivas.

À minha professora regente Dulciene pelo encantamento e responsabilidade como trata a

educação.

Á professora Anória que numa fala conseguiu desatar os meus nós.

Á professora Jailma pelo compromisso com a afirmação da vida.

Ao professor Osmar, meu incentivador. (DES) orientou-me a fazer revoluções pelo

conhecimento.

Ao meu professor orientador Roberto Seidel pelo apoio e tranqüilidade durante todo o meu

processo de escrita. A sua frase célebre “vai dá tudo certo” me acalentou nas horas de

angústia e dúvida.

Á professora Patrícia Pina pela sensibilidade e compromisso com a educação,

Á professora Flávia Aninger pela disponibilidade e atenção.

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RESUMO

Na contemporaneidade, novas formações discursivas se instalam no campo estético-cultural e

engendram novos significados à textualidade. Nesse sentido, a linguagem dos quadrinhos se

apresenta como uma “máquina narrativa” em que o jogo combinatório entre palavra e imagem

dramatiza múltiplas histórias, configurando-se dessa forma, como um local de representação e

resistência. Esta Dissertação de Mestrado, apresentada ao programa de Pós- Graduação em

Crítica Cultural propõe analisar em que medida o discurso dos quadrinhos problematiza as

relações entre a linguagem, a cultura e o signo do capital na sociedade contemporânea. Diante

disso, alguns questionamentos foram levantados: Quais os sentidos fixos atribuídos aos

quadrinhos? Como o livro didático reconhece os quadrinhos? De que forma o leitor

contemporâneo recepciona as narrativas imagéticas? É possível criar alternativas para

potencializar um novo leitor de imagens nas escolas brasileiras? Para tanto, o percurso

metodológico tem como referência a pesquisa qualitativa, articulada com a análise

documental das tiras em quadrinhos editadas nas revistas da Turma do Xaxado produzidas

pelo quadrinista baiano Antonio Cedraz entre os anos de 1999 a 2006 e na coleção do livro

didático Lendo e Interferindo elaborada pelas autoras Anna Frascolla, Aracy S. Fér e Naura S.

Paes no ano de 1999 destinado aos estudantes do Ensino Fundamental II. Assim, espera-se

ampliar o debate em torno da potência narrativa dos quadrinhos no cenário contemporâneo

trazendo a produção de imagens para o campo da “leitura desviante”

PALAVRAS – CHAVE: Tiras em quadrinhos; Imagens; Histórias; Leitura; Discurso;

Desvio.

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RESUMÉ

Il existe dans la contemporanéité des nouvelles formations discursives qui sont installées

dans le domaine esthétique-culturelle. Elles engendrent des nouvelles singnifications à la

textualité. Ainsi, la langage des bandes dessinneés y montre comme une « machine narrative »

dans laquelle, le jeux conbinatoire entre le mot et l‟image mis en scéne des plusieurs histoires

en configurant de cette façon, ; comme un lieu de représentation et résistance.Ce memoire de

master présenté au programme des études superiéurs en Critique Culturelle propose

d‟analyser la musere dans lequelle le discours de la bande desinné discute le lien entre la

langage, la culture et le signe du capital dans la société contemporaine. Donc, certaines

questions sont soulevées: Quelles sont les sens fixes attribués aux bandes dissinées ?

Comment le livre didactique reconnaît les bandes dessinées ? De quelle manière le lecteur

contemporain réceptionne les narratives d‟imageries? C „est possible créer des alternatives

pour renforcer un nouveau lecteur d‟images dans les écoles brésiliennes ? Partant, la voie

méthodologique a comme référence la recherche quantitative qui est articulé avec la recherche

documentaire des histoires de la bandes dessinées publiées dans les revues « TURMA DE

XAXADO » creés par l‟ecrivain de Bahia, Antonio Cedraz entre 1999 a 2006 et dans la

collection des livres didactiques « Lendo et Interferindo » élaborée par Anna Frascolla, Aracy

S. Fér e Naura S. Paes en 1999 qui sont destinés au éleves de l‟école élémentaire. Alors, il est

prévu d‟élargir le débat autour de la puissance narrative de la bande dessinée dans le scénario

contemporain qui porte la production d'images pour le domaine de la «lecture déviante."

MOTS - CLÉS: Bandes Dessinées; Images; Histoires; Lecture; Discours; Déviation.

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INTRODUÇÃO...................................................................................................................10

CAPÍTULO I: A (IN) PRESENÇA DOS QUADRINHOS NOS PARÂMETROS

CURRICULARES NACIONAIS E NO LIVRO DIDÁTICO.........................................19

1.1 O campo do texto imagético nos Parâmetros Curriculares Nacionais: um fim em si

mesmo?..................................................................................................................................21

1.2 As Tiras em Quadrinhos da Turma do Xaxado no livro didático Lendo e Interferindo:

mas, afinal, para que lemos quadrinhos?...............................................................................29

1.3 O discurso dos quadrinhos: uma metáfora de transformação quadro a quadro...............41

CAPÍTULO II: AS NARRATIVAS QUADRINIZADAS DA TURMA DO XAXADO:

DA INDÚSTRIA CULTURAL AO LEITOR

DESVIANTE......................................................................................................................49

2.1 Estratégias da Indústria Cultural X leitor de quadrinhos: a ordem é automatizar!.........51

2.2 O leitor de imagens na contemporaneidade: resistência à homogeneização da indústria

cultural..................................................................................................................................61

2.3 Quadrinhos: histórias de uma literatura menor...............................................................69

CAPÍTULO III: OS ESTEREÓTIPOS HABITAM A TURMA DO XAXADO.........74

3.1 Cada personagem, uma representação............................................................................76

3.2 Produzir quadrinhos é decalcar ou

mapear?.................................................................................................................................95

3.3 Como potencializar um novo leitor de imagens no Ensino Fundamental II (6º ao 9º

ano)?...................................................................................................................................108

3.3.1 As memórias de leitura do sujeito-leitora-

pesquisadora.......................................................................................................................108

3.3.2 Crise na leitura: colapso ou

revolução?...........................................................................................................................116

3.3.3 O uso das tiras em quadrinhos no Ensino Fundamental de 09 anos: remédio para

todos os males?....................................................................................................................125

CONSIDERAÇÕES (IN)FINITAS.................................................................................144

REFERÊNCIAS...............................................................................................................148

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INTRODUÇÃO

“Porque escrever é já organizar o mundo, é já pensar... È pois inútil pedir ao outro

que se re-escreva, se não está disposto a re-pensar-se”.

(Roland Barthes)

Foi ao repensar a minha vida que decidi, depois de 12 anos afastada, regressar ao

ambiente acadêmico. Recordo com propriedade o curso que fiz de Especialização em Estudos

Literários, em 1999 , na Universidade Estadual da Bahia/UNEB, campus II, em Alagoinhas.

De lá pra cá, tantas outras narrativas e histórias transitaram no meu caminho como sujeito do

conhecimento, inquieta e desejosa por novos (re) encontros. E foi o que aconteceu...

No ano de 2012, busquei coragem e decidi: prestarei seleção para aluna especial no

mestrado em Crítica Cultural, curso que já namorava há muito tempo. Fui aprovada na

disciplina Literatura, Cultura e Modos de Produção. Nesse período, fui me apropriando da

proposta pedagógica e já articulava conexões entre os conhecimentos adquiridos e meu objeto

de estudo, definido antes mesmo de me tornar aluna regular. Com o apoio de alguns

professores e incentivo dos estudantes da turma regular, cheguei à conclusão de que não

ficaria de fora do processo seletivo.

Comprei livros, debrucei-me sobre as leituras, reaprendi a elaborar roteiro de estudo e

construí um horizonte de expectativas em torno de uma possível aprovação no curso.

Realizada todas as etapas do processo seletivo, o resultado final “aprovada” veio com um

gosto de desafio cumprido. A professora de Língua Portuguesa, do ensino fundamental II e do

ensino médio na rede municipal (Pojuca) e estadual, respectivamente, era agora mestranda da

Linha 1 (um), Literatura, Produção Cultural e Modos de Vida.

Após o estado de euforia, surgiu uma série de questionamentos, como: e agora? Como

enfrentar as disciplinas e atividades se não vivenciei o processo de iniciação científica, a

construção e publicação de artigos, a participação mais efetiva em congressos e anais? De que

forma cumprirei a creditação total se não me vejo embasada nas leituras que fundamentam as

análises teóricas do curso? Enfim, como me posicionar diante de um curso que tem como

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finalidade preparar “pessoal de alta qualificação e capacidade crítica, criadora e inovadora”,

conforme diz o regimento do programa?

Inicialmente, o apoio da turma foi decisivo para superar as dificuldades. A

cumplicidade e troca de experiências foram os pilares para um crescimento analítico-reflexivo

de cada mestrando. O que não sabia, perguntava. O que sabia, compartilhava. Assim, me senti

mais fortalecida para encarar as disciplinas obrigatórias e eletivas da estrutura curricular do

curso. Da primeira a última disciplina experienciamos legítimos “desmontes” na construção

do conhecimento. A cada encontro, novas pistas e atalhos eram reelaborados. Foram

travessias algumas vezes abruptas, mas significativas para a formação do crítico cultural.

Na disciplina Teorias e Críticas Culturais, a minha reflexão sobre o que é cultura foi

expandida a partir do instante em que desnaturalizamos noções sobre a prática da linguagem,

as produções culturais e os modos de produção capitalista. A problematização em torno de

que “nada é evidente, nada é gratuito, tudo é construído” (BACHELAR, 1966) nos fez

ressignificar a maneira de percebermos as relações sociais e questionarmos o que há por trás

das representações forjadas pela ideologia dominante. Sair do campo de uma visão natural e

linear dos acontecimentos para uma posição analítico-reflexiva diante da produção do saber.

No âmbito do estético, refletimos sobre o percurso da teoria literária e abrimos o debate em

torno importância da teoria como práxis na formação do pesquisador em Crítica Cultural.

Nesse sentido, a teoria nos faz pensar sobre o mundo e reposicionar noções, valores e atitudes.

O encontro com a disciplina Metodologia da Pesquisa em Crítica Cultural nos deu a

impressão que iríamos “fundir a cuca” diante de tantos questionamentos. Para reavaliar a

elaboração do anteprojeto buscou-se partir de algumas linhas de pensamento, tais como:

Qual o problema da minha pesquisa?

Como o problema está sendo colocado?

Como descrever o processo de repensar o problema?

Em que medida é possível alocar o problema no campo da Crítica Cultural?

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O debate desses aspectos foi ampliado com base no roteiro de análise organizado a

partir das seguintes perguntas: o que é? Como é? Por que é? Para que é? Quando é? Quem é

que é? O propósito desse mapa era engendrar uma revolução do pensamento considerando

que o primeiro passo para se tornar um crítico cultural é desconstruir a noção de signo e as

fronteiras binárias. Assim, o meu anteprojeto sofreu deslocamentos necessários e

significativos. Pensar sobre as produções culturais exige de nós, estudantes, uma releitura

frente às representações do significante forjadas como essência pura das palavras, com

sentidos fixados arbitrariamente e normatizadas pelas relações de força.

O percurso de desmontagem da escrita do anteprojeto veio como um enorme desafio

para mim. No primeiro momento de reescritura, alguns pontos foram observados no que diz

respeito ao processo de investigação tais como: delineamento da pesquisa de acordo com as

estratégias, métodos de coleta de dados, tratamento analítico dos dados e construção e

emancipação dos sujeitos do estudo – elementos importantes para a clareza e ordenação do

projeto. Na organização do campo epistemológico – segundo momento de reelaboração – o

contato com uma caixa de ferramenta enriquecida de operadores como: desconstruir,

inconsciente, mapa, platôs, dispositivos, máquina de guerra, estética da existência, política da

amizade, desejos, ruptura, différance, ontológico, etc., me impulsionou a repensar sobre a

lógica linear sedimentada nos conceitos assimilados por mim. Aprendi a criar “linhas de

fuga” e ativar a produção do conhecimento como um mapa aberto e rizomático, conectável

em todas as direções, reversível, suscetível de receber alterações, segundo as posições de

Gilles Deleuze e Féliz Guattari em Rizoma (1995).

Diante disso, ao redefinir o meu anteprojeto descobri (escapar das sombras é preciso!)

que o deslocamento não se deu apenas no campo de investigação, mas principalmente na

minha posição como sujeito/leitor. Confesso que por diversas vezes considerei as trilhas

escolhidas como perigosas, violentas e inquietantes. Mas o que fazer? Estava lançada a

viagem e não podia regressar.

Segui a próxima trilha: Literatura Comparada. Nessa disciplina, ampliei o meu

horizonte de expectativas ao recepcionar as práticas discursivas como construções dialógicas,

intertextuais e híbridas. Problematizamos as condições implicadas na formação de um leitor

cultural e como potencializar esse leitor nos espaços públicos e privados. E quem é o leitor na

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contemporaneidade? Ele é visto como um mero consumidor de textos? Automatizado e

fabricado pelas estratégias do mercado editorial? Ou um sujeito/leitor que articula táticas para

irromper com a homogeneização imposta pelo consumismo? Em meio a uma sociedade

marcada pela fragmentação, esvaziamento das singularidades e dominada pelo signo do

capital como resistir à máquina de opressão capitalista?

Foi na tessitura da disciplina Literatura, Cultura e Modos de Produção que me vi

diante de uma fala profícua: “diante de qualquer situação, precisamos afirmar a vida!”. E

pensei: de que adianta questionar sobre a vida, se apropriar de um aporte teórico rico e

diversificado, pesquisar um objeto, defender uma tese e depois arquivar? É necessário ir além

do que prega a instituição acadêmica. Se teorizar é ação, o que faremos depois de defendida a

tese? E o meu local? A minha comunidade escolar? Como retornarei para a minha sala de

aula? Com um título de mestra e pronto? E sigo (in) quieta.

O conflito estava instalado. E se acentuou durante as aulas da disciplina Cultura

Popular e de Massa. E agora? Em quem (des) acreditar? Indústria cultural, sujeito serializado,

sociedade do espetáculo, alienação, mercantilização da vida, coisificação dos sentimentos, etc.

Por outro lado, resistência, enfrentamento, modos alternativos de produção, ações libertárias,

etc. No final (já sabia disso!) compactuei com a postura do professor quando dizia: “podemos

subverter a lógica do signo capital, basta criar táticas para minar o que foi instituído como

caráter totalizante da vida.”.

No final da creditação das disciplinas me senti mais encorajada. Havia composto um

arcabouço teórico e metodológico que subsidiaram as etapas do meu trabalho de pesquisa.

Quanto à realização dos seminários interlinhas, considerei bastante enriquecedora.

Fora alguns entraves na organização do evento, o momento era de trocar experiências,

identificar os avanços na pesquisa, pontuar as limitações, ouvir as contribuições do público,

avaliar as fragilidades no trânsito das “escrevivências”, enfim, um laboratório de linguagem

pós-crítica.

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E o tirocínio docente? Do meu ponto de vista, a atividade mais envolvente e produtiva.

Ressalto a necessidade de reavaliação dos trâmites legais a fim de tornar mais claro e coeso as

fases de participação nessa atividade. Assim, fiquei responsável em realizar o tirocínio na

disciplina O Estético e o Lúdico na Literatura Infanto-Juvenil, com carga horária de 60 horas,

na turma do 3º semestre, sob a orientação da Professora Regente Dulciene A. de Andrade.

Numa conversa bastante produtiva traçamos as etapas de trabalho a partir da temática

Múltiplas Linguagens, estabelecendo com isso, uma relação de interface entre o estético, o

lúdico e o político na Literatura Infanto-Juvenil e na linguagem dos quadrinhos,

especificamente nas tiras em quadrinhos da Turma do Xaxado do quadrinista baiano Antonio

Cedraz. De resultados qualitativos, o tirocínio me oportunizou inúmeras experiências. Desde

o início até o final, fomos convidadas a repensar o nosso papel como sujeitos de linguagem e

buscar novas formas de atuação na escola, na universidade, enfim, na vida.

Chegamos, dessa forma, a etapa de construção do material para o exame de

qualificação. É a hora de estabelecer os diálogos entre o aporte teórico-metodológico e o seu

objeto de investigação. Nessa fase, ainda persistiam as dúvidas e inseguranças: até que ponto

o meu objeto não foi sucumbido pelas teorias? Consegui mobilizar as contribuições teóricas

sem encapsular o meu material de pesquisa? Com isso, o movimento de reescritura não cessa,

nem após a conclusão dessa fase.

O resultado do exame de qualificação foi bastante significativo. No processo

participaram as professoras doutoras Flávia Aninger de Barros Rocha, do corpo docente da

Universidade Estadual de Feira de Santana (examinadora externa) e Patrícia Kátia da Costa

Pina (examinadora interna), representando a Universidade Estadual da Bahia. As duas

profissionais – com compromisso e responsabilidade – pontuaram alguns aspectos que não

transitaram no corpus da pesquisa, principalmente no que se refere aos trabalhos dos

pesquisadores nacionais e internacionais sobre as narrativas quadrinizadas. Era necessário

fortalecer as referências sobre as histórias em quadrinhos. Foi o que fiz. Adquiri as obras dos

autores citados, fiz as leituras e estabeleci um diálogo com a área de concentração do

programa em Crítica Cultural. Quanto à leitura da tese de mestrado de Claúdio José Menezes

de Oliveira, intitulada Uma história em quadrinhos: representações do sertão nordestino

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brasileiro em A turma do Xaxado, de 2007 (Letras e Linguìstica da Universidade Federal da

Bahia) não tive condições de realizar. Empenhei-me na busca, mas não obtive sucesso.

Acessei o banco de teses da CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível

Superior) e não encontrei. Reconheço que a leitura do material seria de extrema relevância

para a minha pesquisa.

E assim, as rotas do meu percurso acadêmico foram delineadas. Germinou o que agora

apresento como título da minha pesquisa: As tiras em quadrinhos da Turma do Xaxado:

imagens desviantes. Esse encontro com os quadrinhos floresceu há muito tempo, na minha

infância em Pojuca. Meus pais foram os meus incentivadores. Com eles aprendi duas

máximas: viver intensamente tudo o que me proponho a fazer e não perder o lado

“brincalhão” da vida.

A minha mãe Maria Dulce, nordestina, infância e adolescência vividas no sertão

pernambucano, “analfabeta”, corajosa e destemida, hoje com 79 anos, me ensinou a valorizar

a vida. Ela sempre diz: “não sei por que esses meninus, tão jovens querem morrer. Eu não, eu

quero é viver!” Toda vez que a “desesperança” quer se alojar lembro-me dessas sábias

palavras. Não sabe ler nem escrever, mas a sua presença, seu texto-vida é que dá sentido às

minhas conquistas e sonhos.

Meu pai Antonio (in memoriam) despertou em mim o prazer pelas imagens. Recordo-

me de uma coleção – de capa dura esverdeada – de contos de fadas que ele comprou quando

tinha por volta de 4 a 5 anos. Nesse tempo, não sabia ler, mas isso não foi impedimento. Meus

finais de tarde eram destinados a ler os desenhos das histórias. Uma personagem me

fascinava: a sereia, do conto A Pequena Sereia, de Hans Christian. O colorido das imagens, o

fantástico ser parte mulher, parte peixe, as aventuras no mar e em terra, etc., tudo era lido com

os olhos e muito entusiasmo. Comecei a ler o mundo por meio das imagens, antes mesmo de

aprender o alfabeto, as palavras, etc.

Assim, falar dos quadrinhos é, indubitavelmente, refletir sobre a minha vivência com a

leitura e o meu papel como professora da área de Língua Portuguesa. Ler para mim sempre foi

desde a infância, uma prática prazerosa e instigante. E durante a minha trajetória como leitora,

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fui seduzida pelas imagens. Elas me contavam narrativas e davam múltiplos sentidos às

minhas experiências com o ato de ler. Ao mesmo tempo em que me convidavam a reinventar

a minha relação com e no mundo. Da leitora à professora, os quadrinhos sempre transitaram

nos espaços da minha casa, nas horas de leitura com os filhos e nas escolas em que trabalho.

De fato, o meu contato com as histórias em quadrinhos da Turma do Xaxado

aconteceu no ano de 2005, durante a Bienal do Livro em Salvador. Na oportunidade, conheci

o quadrinista Antonio Cedraz e adquiri algumas edições do seu trabalho. Foi a partir desse

encontro que descobri o potencial artístico e crítico das suas produções. Comecei assim, a

utilizar os quadrinhos da sua “turma” nas minhas aulas. E no tocante ao uso dos quadrinhos

nos ambientes escolares, algumas posições me inquietavam: por que alguns profissionais da

minha área demonstravam um olha excludente quanto a utilizar as histórias em quadrinhos

(HQs) nas aulas? E quando empregadas, serviam apenas como suporte para estudar a

gramática normativa além de limitar o estudante a contar e aprender os tipos de balões e

decorar as onomatopeias mais comuns na composição das narrativas. Sem contar que a

linguagem dos quadrinhos era vista puramente como meio de diversão e entretenimento. Ler

quadrinhos é passatempo, não há espaço para eles no ambiente normativo e disciplinar da

escola.

Diante dessas provocações, o problema da pesquisa ficou assim organizado: em que

medida as tiras em quadrinhos problematizam as relações entre a linguagem, a cultura e o

signo do capital na sociedade contemporânea? Nesse sentido, os objetivos da pesquisa ficaram

assim estabelecidos:

Tensionar os significados fixos atribuídos aos quadrinhos;

Refletir sobre o discurso das narrativas quadrinizadas na perspectiva sócio-simbólica-

cultural;

Analisar o papel dos quadrinhos na formação do leitor cultural;

Propor alternativas para potencializar um novo leitor de imagens no Ensino

Fundamental II (6ª ao 9º anos).

O percurso metodológico tem como referência a pesquisa qualitativa, articulada com a

análise documental das tiras em quadrinhos editadas nas revistas da Turma do Xaxado,

produzidas entre os anos de 1999 a 2006 pelo quadrinista baiano Antonio Cedraz e na coleção

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do livro didático Lendo e Interferindo elaborada pelas autoras Anna Frascolla, Aracy S. Fér e

Naura S. Paes, em 1999, destinada aos estudantes do Ensino Fundamental II e publicado pela

Editora Moderna, recurso pedagógico utilizado durante os 3(três) anos em que trabalhei no

Colégio Municipal Presidente Castelo Branco, em Pojuca, de 1999 a 2001, nas 5ª e 6ª séries.

Nesse período, já me preocupava a maneira como as tiras em quadrinhos se apresentavam no

ambiente educativo.

Para tecer reflexões sobre o problema formulado, a pesquisa foi sistematizada em três

capítulos.

O primeiro capítulo intitulado A (in) presença dos quadrinhos nos Parâmetros

Curriculares Nacionais e no Livro Didático discute como se apresentam as tiras em

quadrinhos nessas categorias pedagógicas e as contradições entre o que propõem e a real

função conferida à linguagem dos quadrinhos, assim como analisar o discurso dos quadrinhos

sob a perspectiva da “metáfora de transformação”. O suporte teórico está embasado nas

contribuições de Stuart Hall, Mikhail Bakthin, Rolan Barthes, Reinaldo Marques, dentre

outros.

No segundo capítulo As narrativas quadrinizadas da Turma do Xaxado: da indústria

cultural ao leitor desviante a abordagem se volta para as artimanhas da indústria cultural no

propósito de automatizar o sujeito/leitor. Nesse contexto, são analisadas também as táticas

empregadas pelo sujeito/leitor no combate ao processo de homogeneização empreendido pela

massificação dos produtos culturais. Aliado a essas reflexões, debate-se a relação entre os

quadrinhos e noção de literatura menor. As argumentações estão ancoradas no pensamento

dos seguintes teóricos: Theodor Adorno, Guy Debor, Walter Benjamin, Félix Guattari, Gilles

Deleuze, etc.

O terceiro capítulo denominado Os estereótipos habitam os quadrinhos da Turma do

Xaxado mobiliza os personagens que participam das histórias e suas respectivas

representações sociais, a relação dos quadrinhos com as noções de decalque e mapa

constituintes do rizoma, além de propor alternativas para potencializar um novo leitor de

imagens no cenário contemporâneo perpassando pelas memórias de leitura da pesquisadora e

a “crise” no ensino de leitura no país e o movimento de interdisciplinaridade e

intertextualidade. A crítica - reflexiva decorre do aporte teórico de Homi Bahabha, Félix

Guattari, Gilles Deleuze, Regina Zilbermam, Marisa Lajolo, etc.

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No espaço destinado às considerações finais, analiso os resultados obtidos sobre o

trabalho com a linguagem das tiras em quadrinhos no ensino fundamental II e estabeleço

relações entre as situações reais que prevalecem nas práticas pedagógicas e as possibilidades

de ampliação dos estudos sobre quadrinhos na perspectiva da Crítica Cultural.

Assim, espera-se ampliar o debate em torno da potência narrativa dos quadrinhos no

cenário contemporâneo trazendo a produção de imagens para o campo da “leitura desviante”,

problematizando dessa forma, o espaço e a maneira como o texto imagético é recepcionado na

Educação Básica e a minha própria atuação como docente.

Pesquisadora e pesquisa reescrevendo-se!

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CAPÍTULO I

A (IN) PRESENÇA DOS QUADRINHOS NOS PARÂMETROS

CURRICULARES NACIONAIS E NO LIVRO DIDÁTICO

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1.1 O campo do texto imagético nos Parâmetros Curriculares Nacionais: um fim em si

mesmo?

A práxis do ensino de Língua Portuguesa adquiriu novos contornos com a

implementação dos Parâmetros Curriculares Nacionais, sobretudo no que tange ao trabalho

com o texto em sala de aula. De uma prática educativa tradicional, à reconfiguração do que é

linguagem, como é produzida e o seu papel na dinâmica das relações em sociedade. Dessa

forma, o processo de leitura e escrita foi reconfigurado a partir da perspectiva da linguagem

como prática social, afirmando-se como local de enunciação e de produção de sentido. É o ato

de ler e escrever reivindicando o caráter discursivo do trabalho com a língua.

É preciso considerar que no início da década de 80, as estratégias metodológicas

empregadas para ensinar Português foram expressivamente criticadas pelo teor conteudístico

atribuído ao ensino da língua no ensino fundamental II (da 5ª á 8ª séries), hoje, correspondente

ao ensino fundamental de 09 anos, do 6º ao 9º anos, respectivamente.

Sob a perspectiva tradicional, o texto verbal era unicamente valorizado ocupando o

centro das atividades escolares e com uma finalidade demarcada: instrumento para ensinar a

ler. Concomitantemente, o texto era utilizado como disfarce para analisar o funcionamento dos

aspectos gramaticais da língua de forma categorizada e sistematizada. Leitor competente é

aquele que domina as classes gramaticais, emprega corretamente as regras ortográficas,

elabora e organiza um período dentro do que é estabelecido pela sintaxe, tudo isso dentro de

uma prática pedagógica em que o sentido do texto é sequestrado pela análise linguística. Vale

mais a estrutura da língua do que a sua construção discursiva. Nesse sentido, a função do texto

no cotidiano escolar se resumia a levar os estudantes a aprender a ler, interpretar as ideias do

autor e aprender gramática. Negava-se com isso, a força simbólica da linguagem e novas

possibilidades de recepção entre o texto, o autor e o leitor.

Nesse ambiente pragmático de análise e estudo da língua, não havia espaço para outras

produções textuais. Aos leitores- estudantes eram oferecidas as consagradas modalidades

textuais como narração, descrição e dissertação. Cabia aprender e assimilar as características

de cada texto e produzi-los a partir dos modelos delimitados pelo professor e disciplinados

conforme a norma padrão da língua culta. Nas atividades escolares, o texto dissertativo ainda

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levava vantagem sobre os outros por ser exigido na prova do vestibular. Preparava-se o

estudante para ser aprovado desde que demonstrasse as habilidades necessárias para dissertar,

como dominar a estrutura padrão – introdução (relevância do tópico frasal), desenvolvimento

(argumentação – tese 1, 2,3 ) e conclusão ( conectivos adequados, capacidade de síntese),etc.

Assim, a abordagem da didática tradicional cumpria bem a sua lição: tratar a linguagem como

um instrumento trivial de ensino. Mas, até que ponto os Parâmetros Curriculares Nacionais

ressignificam a atividade com o texto em sala de aula?

No que se referem aos objetivos gerais do ensino fundamental propostos pelos PCNs,

percebemos mudanças na forma de conceber o texto e a abertura para as múltiplas linguagens

quando diz que os alunos devem ser capazes de:

Utilizar as diferentes linguagens – verbais, matemática, gráfica, plástica e corporal –

como meio para produzir, expressar e comunicar suas ideias, interpretar e usufruir das

produções culturais, em contextos públicos e privados, atendendo a diferentes

intenções e situações de comunicação. (PCNs, 1998, p.97)

Nessa perspectiva, anuncia-se uma prática pedagógica em que a noção de textualidade

é deslocada. O texto não se constitui mais como um aglomerado de palavras, afastado do

leitor e dissociado de um contexto sócio-político-cultural. Agora, é pertinente a análise e

reflexão do texto como um espaço de inter-relação entre as diversas linguagens presentes nas

dinâmicas de comunicação, além da dialética estabelecida com outras áreas do conhecimento.

É o texto como construção discursiva, produzido nas esferas culturais e articulado com os

mecanismos de consumo da sociedade capitalista. A palavra oral ou escrita, os números, as

imagens, os traços da arquitetura, o corpo, as relações inter e intrapessoais, etc., são recursos

expressivos e, sobretudo, locais de construção de vivências, subjetividades, lutas, resistência,

empoderamento, mas também, de manipulação e homogeneização do indivíduo.

Partindo desse ponto, o encontro com as aulas de Língua Portuguesa não se torna

confinado ao texto verbal. A prática de produção de textos orais e escritos para o terceiro e

quarto ciclos (5ª a 8º séries) rompe com a hierarquização das formações discursivas e com

isso, expande o trabalho com todos os gêneros textuais. O exercício da linguagem não é uma

atividade fechada, dicotômica e arbitrária. Pelo contrário, considerando a pluralidade de

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enunciados, imagens e vozes que marcam as produções contemporâneas, nos defrontamos

com a abertura de fronteiras textuais e consequentemente com um novo olhar sobre a

linguagem. É o texto que fala de culturas, de identificações, gênero, etnias, etc.

Sendo assim, o texto é legitimado como “fonte de significado”, em que questões de

ordem política, histórica, social são colocadas sob tensão objetivando com isso, engendrar

novas alternativas de ação para discutir as relações de força impregnadas no processo saber-

poder que marcam o cotidiano do indivíduo em sociedade.

No contexto dessa multiplicidade de textos trazido pelos PCNs e a proposta “de dar ao

aluno condições de ampliar o domínio da língua e da linguagem, aprendizagem fundamental

para o exercício da cidadania” (PCNs,1998 p. 58,), encontramos a linguagem das tiras em

quadrinhos como sugestão de gênero para trabalhar a prática de escuta e leitura de textos.

Cabe, agora, perguntar: de que maneira as tiras em quadrinhos são apresentadas nos PCNs?

Qual sentido é atribuído às narrativas quadrinizadas? As respostas transitam pela prática

atribuída ao uso da língua se reduzida a uma formalização dos elementos que a compõem ou

se compreendida como enunciado, produtora de discurso.

Mikhail Bakhtin analisa o diferencial de trabalho entre o artista e o lingüista quanto ao

uso da língua e propõe um redimensionamento para o significado do texto ao afirmar que:

Seria ingênuo imaginar que o artista necessite apenas de uma língua e do

conhecimento dos procedimentos de tratamento dessa língua, mas ele a recebe

precisamente e apenas como língua, isto é, recebe-a do lingüista (porque só o

linguista opera com a língua enquanto língua); essa língua é o que inspira o artista, e

ele realiza nela toda sorte de desígnios sem ir além dos seus limites como língua

apenas, de certo modo: desígnio semasiológico, fonético, sintático, etc. De fato, o

artista trabalha a língua mas não como língua: como língua ele a supera, pois ela não

pode ser interpretada como língua em sua determinidade linguística ( morfológica,

sintática, léxica, etc), mas apenas na medida em que ela venha a tornar-se meio de

expressão artística ( a palavra deve deixar de ser sentida como palavra). (BAKHTIN,

2011, p. 178).

Para o artista/autor, a língua não é concebida como um fim no processo de construções

comunicativas. Ela não tem uma finalidade acabada e fixa. Ao se produzir um texto, a língua

não é aprisionada aos ditames do material linguístico. O texto modelo defendido pelos

linguistas, aquele que privilegia a forma verbalizada e mantém os elementos intrínsecos da

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língua como base para compreender o processo de criação, experimenta a língua dissociada

das relações dialógicas entre a realidade, as vivências do autor, o posicionamento do leitor e

os múltiplos sentidos que são operados nas situações comunicativas, sejam por via dos textos

verbais, literários, imagéticos e eletrônicos.

Em contrapartida, o texto enunciativo recorre à língua como meio para produzir

discursos. Linguisticamente, o artista/autor no ato de criação textual, sugere outros elementos

para a construção de sentidos, indo além do uso puro da palavra. Transita por caminhos não

lineares. A sua tessitura é organizada a partir das conexões intersemióticas entre a ideia do

texto e como se realiza essa idéia. Cada texto é produzido por homens, sujeitos sociais e

históricos, situados em relações humanas que não podem ser resumidas a um único ponto de

vista. A saber, a vida contemporânea suscita a presença de pluralidade de vozes e por isso, a

comunicação discursiva não assume verdades absolutas até porque não é interesse para a

linguagem prescrever juízos de valor. Não há verdades fixadas quando a linguagem se propõe

a expandir as relações de sentido entre o mundo, as obras, os autores, os leitores e os

mecanismos de poder.

Tal perspectiva defendida por Bakhtin nos remete ao descompasso entre o que se

propõe na reformulação do ensino da Língua Portuguesa no tocante ao texto como unidade

básica de estudo e o tratamento dado ao texto imagético nos PCNs. O procedimento didático

utilizado para caracterizar as tiras em quadrinhos parte de três elementos que são: conteúdo

temático, construção composicional e estilo. Tais especificidades, ainda restringem a potência

das narrativas quadrinizadas.

No que diz respeito ao conteúdo temático, busca-se identificar o que pode ser dito pela

sequência narrativa das tiras em quadrinhos. O jogo combinatório das imagens e das palavras

opera com as práticas culturais e a partir delas, monta o seu repertório de enunciados. No

processo sígnico dos quadrinhos, não há definição de um assunto, de um sentido fixo para a

leitura. Ainda é possível, em sala de aula, nos deparamos com a tradicional atividade de

compreensão do texto imagético subsidiada na pergunta que não quer calar: qual o assunto da

tira? Por conseguinte, o exercício de leitura é visto como uma ação capaz de exaurir todos os

significados do texto. Nem sempre o que o autor quer dizer é dito. O próprio sentido proposto

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pelo artista é colocado sob suspeita por ele mesmo e pelo leitor. A obra é um texto aberto tanto

para o criador como para o leitor. E nos diversos diálogos com as narrativas, o sentido é

multiplicado e inesgotável.

Quanto à estrutura organizacional das tiras, o esforço nas atividades escolares é a

tentativa de que os estudantes aprendam como se constrói a composição da linguagem

quadrinística. A leitura do texto visual se restringe ao nível pragmático da narratividade.

Pretende-se que o aluno domine os tipos de balão e onomatopeias, o ritmo gráfico-visual, os

blocos significacionais e os cortes gráficos para que o estudo linguístico dos quadrinhos seja

eficiente. A prioridade nesse caso, não é a tira em quadrinhos como uma prática social e suas

interfaces com as questões políticas, históricas e culturais imbricadas nos modos de produção

do sistema capitalista. Tira em quadrinhos é linguagem carregada de sentidos sociais e

subjetivos. Não há como estipular uma análise rígida e sistemática para o discurso

quadrinizado. Palavras e imagens se relacionam com a vida, o mundo, os indivíduos, interroga

as representações arbitrárias, desloca a produção do conhecimento como um processo natural,

ingênuo, marcado por “verdades” indiscutíveis e destituídas de poder como ocorre no “texto

imagem” do mundo – construção humana - correspondente ao reflexo de uma realidade fixa e

unitária, em que o signo é reconhecido como algo fechado, mero decalque de pensamentos,

formas, corpos e imagens.

O último elemento caracterizador das tiras em quadrinhos é o estilo do autor. O

objetivo é explicar como se posiciona o autor frente ao seu fazer artístico e quais as marcas

definidoras da sua linguagem no processo de criação. O trabalho visa particularizar os

mecanismos de produção do autor, atribuindo-lhes apenas um sentido. Nem o próprio autor

pode legitimar o sentido da sua escrita, pois o leitor desdobra o que a obra quer dizer, o que o

autor pretendia declarar e se institui como criador de novos sentidos para o texto.

Baseando-se nas referências dadas pelos PCNs ao processo de leitura dos quadrinhos,

vejamos como se configura o ato de ler imagens a partir da tira em quadrinhos da Turma do

Xaxado:

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Fig:1

Fonte: Editora e Estúdio Cedraz(2008)

A presença da linguagem dos quadrinhos nos PCNs apresenta-se como um gênero

“privilegiado” para a prática de escuta e leitura de texto. O ato de ler é demarcado por meio de

estratégias como: leitura integral, inspecional, tópica, de revisão, item a item.

Na leitura integral, cabe ao estudante leitor decodificar a sequência narrativa dos

quadrinhos. Ler é compreender a totalidade da mensagem, no caso identificar o que é a seca e

as consequências para o nordestino. A leitura inspecional exige a verificação dos elementos

de escolha do texto quadrinístico para seguir de orientação na escolha de outros textos. Nesse

caso, o estudante\leitor pode se perguntar: por que ler tiras em quadrinhos? Há alguma

utilidade em ler esse texto? O que posso aprender com essa leitura? É importante conhecer o

que diz os quadrinhos? Outros textos como cartum, histórias em quadrinhos são interessantes?

Quanto à leitura tópica, o objetivo é reconhecer aspectos frequentes no texto, como

por exemplo, buscar no dicionário o significado da palavra verde e o sentido mais adequado

nas frases “tá tudo verde...”, “tá tudo verde... de fome...”. No que se refere à leitura de revisão,

cabe no texto, detectar e corrigir os desvios em relação a um modelo estabelecido. Assim, as

frases “Óia só”... tá tudo verde”...” e “ Meus fios tá... “ seriam reorganizadas a partir do

português padrão: “Olha só... está tudo verde “ e “Meus filhos estão”.

O último procedimento de leitura, denominado item a item, se baseia na realização de

atividades que obedeçam a uma disposição ordenada. Aqui, a tira em quadrinhos é analisada a

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partir do tema tratado, elementos constituintes (articulação da narrativa, ritmo gráfico-visual,

tipo de balão, uso ou não de onomatopeias, etc) e as características de estilo do autor.

Como decorrência dessa tipologia de leitura, a proposta de oferecer ao estudante/leitor

habilidades e competências necessárias para o “domínio” da língua e da linguagem, além do

pleno exercício da cidadania defendida nos PCNs ainda se apresenta desvinculada da prática

linguística quando pede a:

Observação da língua em uso de maneira a dar conta da variação intrínseca ao

processo linguístico, no que diz respeito: aos fatores geográficos (variedades

regionais, variedades urbanas e rurais), históricas (linguagem do passado e do

presente), sociológicos (gênero, gerações, classe social), técnicos (diferentes

domínios da ciência e da tecnologia).(PCNs, 1998, p.60)

Tal perspectiva nos remete ao papel do leitor na contemporaneidade e a forma como

recepciona a multiplicidade de textos, dentre eles, os quadrinhos. E desse modo, fica evidente

a ausência de uma prática de leitura politizada em que o estudante/leitor opere com outros

procedimentos de análise e reflexão ao se relacionar com o texto seja ele verbal, literário

imagético e eletrônico.

Na primeira tira que trata da seca, as modalidades de leitura não problematizam as

condições e modos de vida do sertanejo. Cabe ao aluno dominar as palavras de uma língua em

estado puro e mecanizado ou interrogar as representações arbitrárias nas construções estético-

politico-culturais? Para não encarcerar a linguagem na dimensão meramente linguística, é

preciso notar a tira em quadrinhos como intertexto, onde os fatores geográficos, históricos e

sociológicos tenham relevância nas discussões em torno de como são construídos os

processos comunicativos e como as relações de força perpassam o campo da linguagem.

A tira em quadrinhos ao falar do sertanejo levanta questões sociais significativas e que

não podem ser excluídas do debate em sala de aula. Os conhecimentos em trânsitos

necessitam ser mediados pelo educador no instante em que propõe uma leitura desviante,

aquela na qual o leitor foge da homogeneização imposta pela didática da língua e empreende

alternativas para ler o que a sistematização das palavras encobre. É a atividade do

questionamento: por que o nordestino sofre preconceito linguístico? Quem determinou o uso

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da língua padrão como legítima? A que se deve o fato da segregação entre o homem\mulher

do campo e o homem\mulher da cidade? O que mudou no falar do nordestino frente às

ferramentas tecnológicas? Quais os esforços da ciência para fomentar uma vida sustentável

para todos? Por que tantas vidas severinas, marginalizadas e excluídas? O trabalho com a

leitura crítica requer primeiramente, um redimensionamento da noção de texto. O texto além

de ser um artefato estético, é também, cultural. Segundo, pensar como os textos chegam às

escolas e como construir atividades que não determinem um fim para as linguagens

engendradas nos ambientes sociais.

Isso implica em reconhecer que o enfoque dado aos cinco níveis de leitura (integral,

inspecional, tópica, de revisão e item a item) corrobora a ideia de que a presença das tiras em

quadrinhos nos PCNs contempla o texto modelo como referência para as práticas pedagógicas

nas escolas. Em primeiro plano, valoriza-se o material linguístico em detrimento do texto

enunciativo, aquele que valida às relações entre imagem e palavra como discurso. A

significação da imagem vai além do uso puro e definitivo da língua. Os signos verbais e

visuais articuladores do discurso quadrinístico reivindicam o seu lócus de sentido e

significação nos espaços contemporâneos de análise e discussão da linguagem, cultura e

educação. Sobre a linguagem e suas conexões com a realidade, Foucault afirma:

Mas, por isso mesmo, a linguagem não será nada mais que um caso particular da

representação (para os clássicos) ou da significação (para nós). A profunda

interdependência da linguagem e do mundo se acha desfeita. O primado da escrita

está suspenso. Desaparece então essa camada uniforme onde se entrecruzavam

indefinidamente o visto e o lido, o visível e o enunciável. As coisas e as palavras vão

separar-se. O olho será destinado a ver e somente a ver; o ouvido somente a ouvir. O

discurso terá realmente por tarefa dizer o que é, mas não será nada mais que o que

ele diz. (FOUCAULT, 2008, p. 59)

Na contemporaneidade, o quadrinista se apropria da linguagem não com o interesse de

formalizá-la como um código que só pode ser explicado pelos meios linguísticos. Nesta ótica,

uma tira em quadrinhos não é um texto objeto, limitado apenas a usar os signos como

representantes fieis de uma determinada realidade visto que a produção humana é dotada de

sentidos constituídos a partir de formas simbólicas e da inter-relação com o mundo histórico-

social. Por sua vez, o processo sígnico não denota mais a semelhança entre o nomeado e o

contexto exterior. Com isso, desestabiliza-se a noção do signo como algo fixo e

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arbitrariamente fabricado. Partindo desse ponto, o texto adquire um caráter analítico, pois

questiona a representação do real, desnaturaliza as opiniões cristalizadas, a normatividade, as

ideias mais comuns. Por esse viés, o homem ressignifica a recepção dos acontecimentos e

consequentemente, potencializa o papel da linguagem como prática de significação.

No tocante às tiras em quadrinhos, o autor realiza um agenciamento de imagens por

via da densidade histórico-discursiva envolvendo os territórios dos signos e os diversos

saberes, abrindo assim, a possibilidade de “pensar por imagens”. Não um pensar que promova

a homogeneização do saber, mas sim, que visibilize as diversas formas de discursos e a

pluralidade de sentidos.

Partindo dessas reflexões, notamos que as orientações previstas nos PCNs para o

trabalho com o texto imagético ainda se distancia da perspectiva de um leitor de imagens

autônomo, competente e politizado. Os quadrinhos têm o seu espaço garantido nos encontros

com a língua, embora com uma metodologia encapsulada: contar e identificar os tipos de

balões, reconhecer onomatopeias, figuras cinéticas, enfim aprender a gramática normativa é

mais profícuo do que ler as metáforas dos quadrinhos.

1.2 As Tiras em Quadrinhos da Turma do Xaxado no livro didático Lendo e

Interferindo: mas, afinal, para que lemos quadrinhos?

Nas escolas brasileiras, o livro didático é um dos suportes pedagógicos utilizados

pelos professores e estudantes seja nos encontros de Língua Portuguesa ou nas demais áreas

do conhecimento. A sua presença é importante no processo ensino aprendizagem, embora

reconheçamos o quanto é preciso questioná-lo, saber o que é, como é e por que é. Entre o seu

significado, organização e utilização em sala de aula existem alguns problemas que são

visíveis durante as práticas educativas desenvolvidas nas comunidades escolares definindo-o

ora como de má qualidade ora de boa qualidade. Ás vezes empregamos com tanta frequência

o livro didático que nos “acostumamos” a receber todas as suas informações sem desconfiar

das estratégias empregadas na construção da sua linguagem. Faz-se necessário interrogá-lo,

pois “todo conhecimento é resposta a uma pergunta. Se não há pergunta, não pode haver

conhecimento científico” conforme nos alerta Bachelar (1996, p. 18).

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Defender que o livro didático não é uma construção social, é negar as relações

estabelecidas entre o processo comunicativo, as práticas culturais e os valores capitalistas. Ser

um livro consumível ou não, mercadoria vendida pela indústria cultural, objeto de trabalho

dos autores, editores e livreiros, com finalidade didática, referência para o ensino dos

conteúdos e como instrumento legitimado também para o trabalho com a leitura e escrita nos

espaços educativos, características típicas do livro didático trazem “pistas” significativas para

a análise de qual contexto surge à produção do corpus desse recurso pedagógico. Diante disso,

a equipe escolar deve acompanhar o tratamento dado aos conhecimentos veiculados nos livros

didáticos e de que forma conduzem a uma aprendizagem significativa. Na introdução dos

PCNs temos a seguinte orientação:

No entanto, para que a aprendizagem possa ser significativa é preciso que os

conteúdos sejam analisados e abordados de modo a formarem uma rede de

significação. Se a premissa de que compreender é apreender o significado, e de que

para apreender o significado de um objeto ou de um conhecimento é preciso vê-lo

em suas relações com outros objetos ou acontecimentos, é possível dizer que a ideia

de conhecer assemelha-se à de tecer teia. Tal fato evidencia os limites dos modelos

lineares de organização curricular que se baseiam na concepção de conhecimentos

como “acúmulo” e indica a necessidade de romper essa linearidade. (1998, p. 75).

Problematizar os conhecimentos esboçados pelos livros didáticos requer uma análise

crítica e apurada a fim de levantar as possíveis incoerências epistemológicas, sobretudo no

que diz respeito a como são operadas algumas noções como linguagem, textualidade, cultura,

signo, sentido, etc.

Na contemporaneidade, as situações de comunicação abarcam uma multiplicidade de

textos que são apresentados aos nossos estudantes por intermédio da obra didática. No âmbito

da linguagem imagética, as tiras em quadrinhos possuem o seu lugar garantido no livro que

acompanha professores e alunos. A maneira como a narrativa quadrinística circula no livro

didático é um aspecto relevante para o debate em torno da potência estético-político-cultural

dos quadrinhos e o seu papel na formação de leitores de imagens. Sendo assim, é valioso

investigar o estudo atribuído às tiras em quadrinhos da Turma do Xaxado do quadrinista

baiano Antonio Cedraz dentro do que propõem os encadeamentos metodológicos do livro

didático de Língua Portuguesa e, além disso, refletir sobre a recepção do leitor frente ao

contato com a linguagem dos quadrinhos.

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Para tanto, foi escolhida a coleção Lendo e Interferindo, destinada aos estudantes da 5ª

a 8ª séries do Ensino Fundamental II, lançada em 1999 pela Editora Moderna. O trabalho de

elaboração contou com a participação de três autoras Anna Frascolla, licenciada em Letras

Vernáculas e Inglês, Naura S. Paes, licenciada em Letras Vernáculas, ambas pela

Universidade Federal da Bahia e Aracy S. Fér, licenciada em Letras Vernáculas pela

Universidade Católica de Salvador.

Num primeiro momento, foi realizada a análise de quantas tiras transitavam na

coleção. O quadro abaixo revela os dados obtidos.

Série Quantidade

5ª 1

6ª 2

7ª 4

8ª 8

Figura 1.

Fonte: Coleção Lendo e Interferindo (1999)

O resultado quantitativo aqui esboçado tem uma forte relação com a finalidade

atribuída às tiras em quadrinhos na coleção em estudo e decorre da proposta pedagógica

defendida pelas autoras. A análise desses números já nos conduz a reconhecer os interstícios

entre o que se pretende “ensinar”, o que é “ensinado” e como deveria ser abordado o discurso

das tiras em quadrinhos nas páginas do livro didático. Vejamos a finalidade da coleção Lendo

e Interferindo quanto ao uso da Língua Portuguesa:

O objetivo da coleção Lendo e Interferindo é habilitar o aluno a utilizar a Língua

Portuguesa, preparando-o para que se torne um cidadão consciente. Por meio da

explicação dos mecanismos internos da língua, pretende formar alunos capazes de

ler a realidade que os cerca e nela interferir.

Moderna e dinâmica, esta coleção apresenta uma grande diversidade de textos e

mostra a língua como um mecanismo vivo, presente no cotidiano dos alunos, os

módulos são organizados de forma a ampliar o conhecimento de mundo dos alunos.

(1999, p. 2)

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Com respeito à relação entre o aluno-leitor e a linguagem, notamos que o centro da

proposta pedagógica é, portanto, fixar a noção de que ensinar os elementos internos da língua

assegura a leitura de mundo, da realidade e por consequência, torna o estudante apto a

resolver conflitos sociais.

Na página 02 (dois) do livro didático (5ª a 8ª séries), espaço destinado aos objetivos do

trabalho, as autoras perguntam: Mas como tornar o aluno capaz de ler o mundo? As respostas

dadas apresentam uma série de contradições dentre elas:

É preciso fazer algo para que a leitura deixe de ser um ato passivo, repetitivo,

baseado na mera reprodução de sons e imagens, ou seja, para que deixe de ser uma

leitura alienante. (...) Por isso é necessário apresentar a ele textos interessantes, bem

escritos, capazes de ir ao encontro de suas ansiedades e expectativas. (...)

Entendemos o conhecimento explícito do fato gramatical como um meio para a

leitura e/ou a produção de textos de qualidade que utilizam a língua padrão. (1999,

p.2-3)

A concepção acima explicitada traz a marca de conceitos lineares e sedimentados

quanto ao papel da leitura e da escrita na vida social dos indivíduos. Em decorrência disso,

percebemos que embora haja uma abertura para diversos textos, ainda persiste a noção de que

o texto qualificado para formar leitores e escritores é aquele bem escrito. Tal posição nos

remete a dicotomia entre os textos consagrados pela tradição e aqueles considerados

“menores” e/ou “desqualificados” para serem empregados em sala de aula. Nesse processo, o

trabalho com a linguagem se restringe aos textos que utilizam a língua padrão/oficial, como

parâmetro para o estudante “ler” e “escrever” corretamente. Se a elaboração textual obedece

aos padrões determinantes para o uso da língua, como coerência e coesão, a produção é de

qualidade. Caso não apresente tais critérios de organização linguística, é estigmatizado como

texto inferior, “errado” por não atender às prescrições da gramática normativa que preza pela

organização e sequência da mensagem baseada nos dados intrínsecos da palavra em estado

puro, negando com isso, as relações extralinguísticas que permeiam os textos.

Ainda segundo as autoras, é preciso redimensionar o trabalho com a leitura no

ambiente escolar e fora dele. Não se quer uma prática alienante de leitura. Assim, é

imprescindível habilitar o aluno-leitor de “competências básicas” para que possa “bastar-se”

como leitor ativo diante do ato de ler. E pode algum leitor bastar-se a si mesmo? Considerar-

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se satisfeito com os textos e as leituras que chegam até ele? Isso implica em não reconhecer a

leitura como um espaço aberto ao sentido plural. A leitura é uma linguagem simbólica, por

isso não pode ser esgotada. O aluno-leitor encontra dentro e fora dela, múltiplos

acontecimentos, num movimento coletivo em que autor e leitor reescrevem outras histórias.

No que se refere às competências básicas, o conceito de leitura se volta sobre três tipos

de análise: do conteúdo, da estrutura e do discurso. Iniciemos, então, a leitura das tiras

selecionadas para fins de reflexão sobre a maneira como as narrativas quadrinizadas são

delineadas no livro didático Lendo e Interferindo, nas seções “Sistematizando” e “Aplicando”

e suas respectivas funções. São elas:

Fig: 02. Classifique os termos em destaque nas tiras com objeto direto ou indireto:

Fonte: Coleção Lendo e Interferindo (1999)

Fig: 03. Classifique o predicado das frases destacadas nas tiras a seguir:

Fonte: Coleção Lendo e Interferindo (1999)

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Fig: 04. Classifique o pronome presente nas orações a seguir como índice de indeterminação do

artícula apassivadora ou pronome reflexivo (Abaixe-se):

Fonte: Coleção Lendo e Interferindo (1999)

Fig: 05. Destaque, das tiras a seguir, a oração coordenada e classifique-a Fonte: Coleção Lendo e Interferindo (1999)

Fig: 06. Destaque das tiras a seguir as orações solicitadas (uma oração subordinada substantiva

subjetiva):

Fonte: Coleção Lendo e Interferindo (1999)

Como pode ser observado, as tiras em quadrinhos da Turma do Xaxado são utilizadas

como pretexto para trabalhar os mecanismos linguísticos com ênfase no estudo da sintaxe e da

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morfologia. A língua é concebida como um sistema ordenado com base em normas

gramaticais que são “analisadas, questionadas e aplicadas em diversos contextos, de forma

gradativa e acumulativa” (1999, p. 03). Entretanto, sabemos que no cotidiano escolar a

aprendizagem dos estudos sintáticos e morfológicos se dá de forma estanque e fragmentada.

Nota-se o desespero do professor para “transmitir” as informações fixadas no guia de

orientações pedagógicas - o livro didático- e a angústia dos alunos na busca pela memorização

das regras gramaticais, completamente dissociado de um olhar interdisciplinar e politizado

dos agenciamentos das imagens. Coloca-se a narrativa das tiras em quadrinhos numa esfera

mecanizada de leitura e destituída de potencial analítico e reflexivo. Está instituída a leitura

do conteúdo.

Destarte, o discurso das tiras em quadrinhos se automatiza na identificação dos termos

sintáticos de uma oração ou período ou na classificação morfológica das palavras. Dominar os

conceitos linguísticos não define a formação de um leitor competente, até porque o estudo

apenas do conteúdo e estrutura de um texto não abre espaço para outras dimensões da leitura

tensionada, aquela que encontra as contradições, assimetrias e instabilidade que o texto pode

oferecer. É necessário desmecanizar o estudo da linguagem imagética.

Na utilização das tiras em quadrinhos, percebemos a inexistência de uma proposta de

trabalho com os elementos constituintes da criação quadrinística assegurada no livro didático.

Neste caso, a dimensão estética das tiras é descartada. Propaga-se a noção de que parece fácil

quadrinizar. O autor de quadrinhos só desenha e pronto. É a forma pela forma. Está modelada

a tira, sem quaisquer recursos narrativo-gráfico-visuais. Criar tiras não requer um fazer-

estético. Palavras e imagens agrupadas aleatoriamente. Os recursos expressivos como balões,

onomatopeias, ritmo sequencial dos quadrinhos, cortes espaciais e temporais não têm

funcionalidade. Assim, a leitura da análise estrutural não acontece como foi planejada, mas

vale salientar que o estudo da forma pela forma esvazia a potência expressiva das tiras.

Outro conteúdo também explorado nas tiras diz respeito às funções da linguagem

desenvolvidas pelo formalista russo Ramon Jakobson, assim apresentadas no livro didático:

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As funções da linguagem são estudadas a partir da análise de textos para que o aluno

perceba as características próprias da linguagem quando utilizada nas mais variadas

situações. Ressalta-se a importância de se identificar o processo de comunicação

para se conhecer essas características. (8ª série, 1999, p. 169).

Mais uma vez, a linguagem é tratada como conteúdo a ser ensinado, com funções

definidas e marcada como fenômeno que pode ser estudado com base nos procedimentos

intrínsecos da sua criação sob os pressupostos do formalismo russo, no século XX. O texto

para ser compreendido basta analisar a sua organicidade estrutural, seus traços lingüísticos,

retóricos e sua funcionalidade. É o texto pelo texto. Valoriza-se a forma sobre o contéudo. A

sua criação é explicada dentro da própria obra através de uma lógica rigorosa de análise. No

caso do texto literário, o que define a sua qualidade é a literariedade, meio que distingue a

linguagem poética de outras narrativas. A exemplo de outro texto temos a tira em quadrinhos

a seguir:

Fig: 07. Identifique as funções da linguagem nos texto(s) a seguir:

Fonte: Coleção Lendo e Interferindo (1999)

No livro didático, a resposta dada como correta é a função poética com base nas

características desenvolvidas tais como: palavras artisticamente selecionadas pelo poeta com

fins de produzir o belo, o original; predomínio da conotação e figuras de linguagem. O

mecanismo de seleção e combinação dos recursos linguísticos tem como eixo norteador a

mensagem.

Ao mesmo tempo, as autoras enfatizam que a função poética é mais presente nos

textos literários, especificamente nos poemas, contudo, outros textos podem apresentar essa

função. Percebe-se aqui, uma pseudo-valorização da tira em quadrinhos. O propósito é

evidenciar que há poeticidade na linguagem dos quadrinhos, embora se estabeleça um fim

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didático para a leitura da narrativa. Diante disso, notamos que as linguagens dos quadrinhos e

de outras modalidades textuais não apresentam interfaces com as questões sociais. Os fatores

extrínsecos são isolados do processo de criação, ou seja, o que está fora não interessa. As

relações humanas, o cotidiano, os conflitos sociais, os movimentos históricos, as formas de

saber-poder não entram nas cenas narrativas. O que está dentro do texto (aspectos

fonológicos, morfológicos, sintáticos e semânticos) determina a sistematização do que é

narrado verbal ou imageticamente.

Compreender dessa forma o processo de criação significa priorizar o texto-objeto e

negar a sua discursividade. No texto-discurso, há espaço para o acolhimento das

subjetividades do autor e leitor, desalojam-se os conceitos forjados pelo ideal de

homogeneização das relações humanas, bem como questiona a noção de obra como um

produto fechado e completo em si mesmo.

Abre-se, portanto, um novo espaço para a linguagem em que os textos verbais e

imagéticos não podem ser classificados nem pela função e nem pelo grau de literariedade

considerando que os sentidos dos signos não podem ser exauridos e tão pouco hierarquizados

em maior ou menor potência discursiva. A ação e a força da linguagem não cabem para

designar puramente a realidade exterior, ao contrário, mobilizam novas configurações nos

territórios sociais e simbólicos.

No âmbito do território das múltiplas discursividades seja no plano da oralidade ou da

escrita, vejamos como a coleção Lendo e Interferindo trata a próxima tira em quadrinhos:

Fig: 08. Identifique uma marca regionalista na fala da personagem Xaxado e em que região do Brasil

costuma-se verificar o uso desse termo.

Fonte: Coleção Lendo e Interferindo (1999)

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Na seção Produzindo, do módulo um, a tira em quadrinhos da Turma do Xaxado

apresenta-se como ferramenta para estudar a diversidade linguística do nosso país. O

tratamento dado ao assunto é bastante simplificado e reducionista, limitando-se apenas a

identificar a marca regionalista “Vixe!” e a região em que é falada a expressão. Para entender

o porquê dessa posição, cabe analisar a assertiva levantada pelas autoras quando declaram

que:

No Brasil, devido principalmente à sua grande extensão territorial, as diferenças de

linguagem ocorrem também dentro do território nacional, dependendo da região de

origem do falante. Além da questão geográfica, há outras razões que justificam as

diferenças dialetais como faixa etária, nível de escolaridade, profissão. (1999.p. 20).

A explicitação dos fatores determinantes para as diferenças de linguagem no Brasil

possibilita identificar uma noção ingênua e naturalizada a respeito das variações linguísticas

presentes nas regiões brasileiras. Assim, não foram analisadas as relações saber-poder

instituídas nos espaços culturais públicos ou privados, bem como as estratégias para segregar

aqueles que falam “bem” o português daqueles que falam “errado” a nossa língua. O debate

em torno do preconceito linguístico sofrido pelos nordestinos foi silenciado. Listar as

expressões típicas do falar de cada região é mais significativo do que inquietar-se com as

práticas discriminatórias que marcam as fronteiras entre os detentores da língua oficial,

elitizada e correta daqueles considerados analfabetos na sua própria língua.

A abordagem dada á diversidade linguística parte do princípio de que os modos

operantes do sistema capitalista não interferem nas condições de vida dos falantes brasileiros

e nas relações com a sua língua. Num “país de todos”, os indivíduos têm suas identificações

linguísticas respeitadas e legitimadas nas situações de comunicação. Esta, contudo, não é a

lógica empreendida pelas relações de força impostas pelo signo do capital ao sujeito, língua e

saber. Faz-se necessário romper com os modelos fabricados da linguagem e valorizar a

singularidade de cada falante brasileiro.

No sentido da hierarquização entre o texto verbal e demais formações discursivas, a

tira em quadrinhos quando selecionada para fazer parte dos conteúdos no livro didático ocupa

um espaço reduzido e apresenta pouca visibilidade no transcorrer das atividades com a

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linguagem. No livro da 5ª série, módulo dois, na seção Construindo Expectativas – momento

em que se pretende valorizar a expressão oral e os conhecimentos prévios dos alunos - a

linguagem verbal e visual é apresentada como meio de comunicação, acompanhada de

perguntas que oportunizam reflexões sobre o respeito ás diferenças. Segue a tira em

quadrinhos:

Fig: 09.

Fonte: Coleção Lendo e Interferindo (1999)

As perguntas elaboradas para os alunos são: Além do humor que a atitude ingênua da

personagem provoca, que mensagem a tira transmite? Você considera importante ter amigos?

Que qualidade um amigo deve ter? Pessoas com maneiras diferentes de pensar, sentir ou agir

podem ser amigas?

Ressalta-se que do ponto de vista da leitura como análise discursiva, as diretrizes

pedagógicas evidenciadas na coleção sustentam uma prática linear e conteudística frente à

pluralidade de sentidos gerado pelo movimento dos signos icônicos que constituem a

linguagem da tira. Além disso, a ênfase do estudo recai primeiramente nos aspectos

humorísticos da narrativa e em seguida, na visão de que existe interpretação acabada para a

mensagem. O sentido da mensagem é decodificada pelo aluno sob a perspectiva da

mecanização das informações transmitidas pelo quadrinista Antonio Cedraz.

E desse modo, ao refletir sobre o respeito às diferenças na sociedade contemporânea,

não se pode descartar que o sentido é multirreferencial tanto para o autor como para o leitor.

Partindo da premissa de que o texto imagético assim como o verbal, literário, etc articula as

diferenças sociais produzidas no cenário cultural e ideológico do nosso país, deve-se

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ressignificar a maneira como o processo comunicativo é discutido nas salas de aula. O ato de

ler não pode ser estigmatizado como um processo com fim determinado. A leitura é uma

prática significativa em que a cultura segundo Reinaldo Marques (1999, p.112) não pode ser

conceituada como “algo já dado e acabado, mas como algo marcado por uma heterogeneidade

radical, que está sempre se fazendo e se refazendo, incessante e continuamente, por meio da

ação de diversos e diferenciados atores culturais, com suas leituras e escrituras.”.

Por isso, o processo comunicativo entre os quadrinhos, o quadrinista e os leitores de

imagens é produção de significados constituídos de valores socioculturais recepcionados não

de forma unilateral, mas aberta às contradições e conflitos que atravessam o uso da

linguagem.

Quanto à introdução de uma temática no livro didático, a tira em quadrinhos serve

apenas para introduzir o módulo. Depois, cai na invisibilidade. Os textos que seguem são

verbais, qualificados com especificidades privilegiadas para explorar os temas transversais

contemplados nas referências pedagógicas. As demais imagens que aparecem funcionam

apenas como meras ilustrações das narrativas. A partir dessa análise, a função das tiras em

quadrinhos da Turma do Xaxado na Coleção Lendo e Interferindo é subsidiar o estudo morfo-

sintático sistematizado pela gramática normativa. Por sua vez, a leitura de imagens é

sucumbida pelo ensino tradicional, categorizado e mecânico da língua. Sobre os objetivos das

questões criadas para “entender” a mensagem dos textos, as autoras assim se posicionam:

As questões que acompanham o texto levarão o aluno a perceber, ao mesmo tempo,

o que está dito e como foi dito, conduzindo-o a um ato de ler reflexivo, ou seja, à

apropriação de novos conhecimentos para uma posterior tomada de posição. Assim,

ele terá condições de se tornar sujeito ativo na busca da verdade, renovar o seu

próprio acervo cultural e da sociedade em que está inserido. (1999, p.2)

Finalmente, ler imagens é excluir o “não-dito” do processo de criação? É buscar a

“verdade” contida na experiência humana? Portanto, ao contrário de uma visão de leitura que

aposta na previsibilidade e estabilidade dos signos verbais e visuais, o ato de ler imagens

propõe uma desestabilização conceitual do significante e do significado objetivando com isso,

um novo agenciamento para o processo de leitura em sala de aula. Da simplista aula de

interpretação textual a novos encontros com a linguagem desviante e em suspense.

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1.3 O discurso dos quadrinhos: uma metáfora de transformação quadro a quadro.

Texto e cultura. Foi essa intersecção que marcou a virada linguística e cultural

engendrada pelos Estudos Culturais ao propor novas configurações ao estudo analítico da

linguagem no cenário contemporâneo. Nesse sentido, a noção de textualidade é reposicionada

quando o texto passa a reivindicar a sua atuação enquanto prática discursiva no momento em

que interroga as relações entre o processo de significação, as produções culturais e as formas

de poder imbricadas na dinâmica da vida social.

Fora do campo dos Estudos Culturais, o texto era concebido a partir de uma visão

simplista e fechado. Os fatos narrados eram elaborados como se estivessem desvinculados das

experiências, conflitos e contradições que marcam as condições da vivência humana. Por

conta disso, a utilização do signo limitava-se apenas a nomear as “coisas” fixando a língua

como algo pronto, mera representação da realidade exterior. Assim, o processo sígnico trazia

o significante preso a um significado, ou seja, entre a palavra e o conceito havia uma relação

objetiva e automática sem estabelecer ligações de sentido com outras dimensões além da

linguística. Há, portanto, a valorização do signo abstrato.

No contexto dos Estudos Culturais, a união do significante e do significado para

explicar o sistema de significação passa a ser questionada. Percebe-se a existência de uma

lacuna na combinação dos dois elementos ao privilegiar o significado como referência para

compreender sentido “total” e homogêneo da realidade. A partir de uma releitura do signo

linguístico, o significante é reconhecido como gerador de sentidos multirreferenciais. O

próprio texto é um significante produzido por um autor e recepcionado por um leitor, ambos

posicionados diante de uma escrita potencialmente atravessada pelas dimensões sociais,

ideológicas e políticas que os acompanham.

Deste modo, o conceito de texto é reconfigurado sob o viés da prática discursiva,

dotada de signos relativizantes, enfim um lócus de produção de sentidos. A dinâmica de

construção do texto fomenta a heterogeneidade implicada nas questões sociais e, portanto,

supera a ideia da linguagem difundida como fenômeno totalizante, estabilizada e contínua.

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O projeto dos Estudos Culturais também questionou o caráter hierárquico empregado

para classificar se o texto era de “maior” ou “menor” qualidade de acordo com os padrões de

uma crítica tradicional que prestigiava o cânone literário em detrimento de outras

modalidades textuais, princípio herdado do modelo social em que a relação binária determina

a divisão de classes entre os indivíduos da “alta” sociedade e os da “baixa” sociedade.

Por defender a produção do conhecimento como ação aberta e instaurar a ruptura de

fronteiras entre as diversas formações discursivas, os Estudos Culturais expande a

importância da linguagem e da textualidade no estudo das práticas culturais. Para isso, Hall

propõe a instauração de novas metáforas com objetivos bem definidos.

As metáforas de transformação devem fazer pelo menos duas coisas. Elas nos

permitem imaginar o que aconteceria se os valores culturais predominantes fossem

questionados e transformados, se as velhas hierarquias sociais fossem derrubadas, se

os velhos padrões e normas desaparecessem ou fossem consumidos em um “festival

de revolução”, e novos significados e valores, novas configurações socioculturais,

começassem a surgir. (2003, p. 204)

A proposta de Hall é deslocar as noções simplificadas que permeiam as relações entre

o conhecimento elaborado pelo sujeito em comunidade e os acontecimentos históricos. No

tocante ás formações discursivas, é necessário repensar sobre como é gerenciada a inter-

relação das esferas sociais, simbólicas e culturais no tecido das narrativas orais, escritas ou

imagéticas. Sendo o texto uma atividade discursiva, ele pode ser articulado a serviço das

estratégias excludentes do capitalismo que modela o sujeito conforme as leis do poder ou

como uma força mobilizadora de alternativas de vida capaz de fazê-lo romper com as

representações forjadas pela ideologia do grupo dominante.

Na visão clássica de texto, predomina a lógica de que o cânone literário é considerado

como discurso legítimo. Supera qualquer outra categoria textual por sua excelência literária.

O que importa é como ele se apresenta esteticamente, ou seja, quanto mais belo e original,

melhor para qualificá-lo como um texto superior.

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Esta consideração a respeito da hegemonia do texto literário permite formular a

seguinte pergunta: até que ponto, no âmbito dos Estudos Culturais, novas produções textuais

podem ser reconhecidas como práticas de significação e ter seu lugar legitimado como textos

culturais?

Em primeiro lugar, a proposta não é de rejeição aos estudos literários. Os estudos

culturais aprenderam a ler os objetos culturais como textos a partir do diálogo com a

Literatura, embora o corpus literário não tenha obrigatoriedade de enveredar pelas trilhas das

culturas. Segundo, que os demais textos não pretendem aniquilar o literário. O que se almeja é

desmontar o limite fechado entre o que é literário e o que é cultural.

Ao mesmo tempo, os Estudos Culturais investe na ideia de que tanto a Literatura

quanto outras categorias textuais são mecanismos que lidam com as culturas, suas diferenças

e organizações. Dessa forma, o texto abarca as experiências humanas, falando de questões até

então apagadas no processo de criação como a relação entre o social e o simbólico, os

estereótipos fabricados, as relações saber-poder, o devir dos grupos minoritários, movimentos

reivindicatórios, gênero, etnias, etc.

Tomando como referência as proposições de Stuart Hall, podemos identificar na tira

quadrinizada dois aspectos que legitimam o seu estudo na contemporaneidade. O primeiro diz

respeito ao novo contexto de valorização atribuído a textos que não fazem parte dos clássicos

da literatura mundial. O segundo equivale a dizer que além das produções literárias, outras

ordens textuais são construções culturais e, portanto, neles são travadas relações de força que

controlam a vida em sociedade.

Nesse caso, a linguagem dos quadrinhos não pode ser avaliada como ingênua e

desvinculada dos problemas sociais, com a função apenas de entreter e divertir o leitor. O

discurso das tiras em quadrinhos produz um agenciamento de imagens que nos impulsiona a

ler os acontecimentos históricos se pelo parâmetro da história oficial que privilegia os

interesses da classe dominante e silencia outras vozes ou se pelo olhar da história como uma

construção a serviço da vida promovendo movimentos alternativos de resistência visando

desestabilizar os discursos institucionalizados, ao criar táticas de enfrentamento aos

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dispositivos de poder entranhados nas ações humanas e assim, trazer a produção de imagens

para o campo da “politização” da arte.

Na cena cultural contemporânea, o jogo dos signos da cadeia comunicativa das tiras

em quadrinhos abraça as questões estéticas, culturas e políticas. Assim declara Nelly Richard

quanto ao cruzamento desses aspectos na análise das formações discursivas:

Ao dizer “estética”, falo dos gestos e das marcas que atravessam as práticas

significantes com sua vontade de forma: seu desejo de incisão e de modelagem

expressivos. Ao dizer “cultura”, falo das figurações simbólicas em cujo teatro

sujeitos e linguagens vão desenvolvendo variantes interpretativas, que abrem o real a

deslizamentos plurais. Ao dizer “política”, falo das codificações de poder, das lutas

e dos antagonismos em torno da definição – violenta ou contratual – do social. Ao

dizer “estética”, “cultura‟ e “ política”, não falo de séries isoladas e nem de regiões

separadas, que o ir e o vir de uma certa reflexão crítica poderia, eventualmente,

juntar para completar o marco de leitura requerido por seus objetos, mas da

intercalação destes planos em constante jogo de atrações e refrações, no interior de

um mesmo olhar confuso e perturbado por essa tensão. ( 2002, p.175 – 176)

A tira em quadrinhos como metáfora de transformação traz um novo espaço para a

linguagem quadrinizada ao passo em que desafia a unilateralidade imposta aos sentidos pela

análise epistemológica demarcada nos territórios linguísticos. Das palavras às imagens

marcadas pelos lugares comuns, ao discurso artístico e cultural que não se acomoda a uma

interpretação finita. Mosaico de palavras e imagens disposto a revelar a heterogeneidade,

fluidez e a incompletude dos sujeitos sociais.

Posto isso, vamos acompanhar o convite de leitura proposto pela próxima tira em

quadrinhos da Turma do Xaxado:

Fig: 10. Fonte Editora e Estúdio Cedraz (2008)

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Se pensarmos no uso da narrativa visual da tira em quadrinhos em sala de aula

teríamos no plano estético, uma valorização da forma acrítica. O ato de criação se voltaria

basicamente para o trabalho técnico do quadrinista Antonio Cedraz. Quais os recursos

estilísticos empregados por ele na composição da tira? Dessa maneira, a leitura dos

quadrinhos estaria sujeitada e reduzida à forma. A tira diz mais pela forma do que pelas

interfaces entre a percepção do quadrinista, os sentidos recepcionados pelo leitor e o contexto

social. Desativa-se o processo semântico em prol da análise dos elementos caracterizadores da

tira.

Trabalhar a dimensão crítica da forma é reconhecer a sua potência expressiva quando

as palavras e imagens operam com sentidos que se desviam da rota meramente estrutural do

texto-imagem. Por ser uma linguagem simbólica, a tira não pretende conduzir o leitor a

encontrar certezas e definições para a sua vida ou a vida coletiva, mas colocar sob suspeita os

conflitos e contradições da vida social.

Para ler a tira em quadrinhos sob o olhar cultural, o leitor deve se apropriar dos

conhecimentos prévios sobre o que é nação, democracia, respeito ás subjetividades, exclusão

social,etc. Saberes culturais e históricos ativados, o leitor estabelece conexões entre o Brasil

fabricado pelas representações simbólicas e o Brasil real, que não “ é uma país de todos”.

O leitor, ao se deparar com a sequência gráfico-visual da tira pode partir de três níveis

para o entendimento do que pretende dizer as imagens: o informativo, o simbólico e o obtuso

conforme nos indica os estudos de Roland Barthes sobre a semiologia (1984).

A despeito do nível informativo, a tira se apresenta como um texto que informa,

comunica algo. A situação comunicativa se dá pela interlocução entre o que diz o autor e

como a mensagem é recebida pelo leitor. Expõem-se, dessa forma, dois enunciados: o hino

nacional como uma música mais “bunita” do mundo e o sonho\vontade da personagem

feminina de “mudá” para o Brasil.

Quanto ao nível simbólico, o que predomina é o significado, o conceito. No processo

de significação, o leitor capta a mensagem através do óbvio, do que está evidente a sua frente.

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É o sentido naturalizado do signo icônico. Nesse caso, explicitamente, o hino nacional é um

dos símbolos oficiais da República Federativa do Brasil, representante do sentimento

patriótico dos brasileiros, um canto à grandeza do Brasil. É a pátria “mãe gentil” que acolhe e

protege o cidadão brasileiro e também o “estrangeiro”.

No terceiro nível, denominado obtuso, a produção de sentido adquire uma nova

abordagem. Interessa-se agora, não pelo “dito” e sim, pelo “não dito”. É o caráter relativizante

do signo que se faz múltiplo, móvel, dinâmico. Ao subverter a linearidade do significado e a

essencialização dos fatos, o leitor codifica as relações políticas, ideológicas e culturais

articuladas no texto. A propósito, Barthes afirma:

Sentido óbvio é aquele que se apresenta muito naturalmente ao espírito (...). Quanto

ao outro sentido, o terceiro, aquele que vem a mais, como um suplemento que a

minha intelecção não consegue absorver bem, ao mesmo tempo teimoso e fugidio,

liso e esquivo, proponho chamar-lhe o sentido obtuso (...) o sentido obtuso parece

estender-se para lá da cultura, do saber da informação (2009, p.45).

É por este viés que o leitor desconfia dos significados óbvios. Assim sendo, na tira em

análise temos duas realidades distintas e contraditórias: de um lado, um Brasil “fabricado”

dentro de uma ótica ufanista e de outro, um Brasil “real” , construído em bases sólidas de

exclusão, injustiça social e desrespeito aos direitos humanos.

O Brasil cantado no hino nacional é a “terra adorada”, a “mãe gentil”, a pátria amada

de aproximadamente 16 milhões de brasileiros que vivem em estado total de abandono e

miséria. São os “exilados” dentro do seu próprio país, mas que sonham em mudar para o

Brasil “quimérico” cordial e companheiro. Silviano Santiago nos alerta quanto aos cuidados

com a suposta ideia de um país multicultural que respeita às diferenças

“Pela persuasão de cunho patriótico, os multiculturalistas da comunidade imaginada

desobrigaram a elite dominante de exigências sociais, políticas e culturais, que

transbordam do círculo da nacionalidade econômica. Se se quiser lavar a roupa

sujas, terá de ser em casa. As diferenças étnicas, lingüísticas, religiosas e

econômicas, raízes de conflitos intestinos ou de possíveis conflitos no futuro, foram

escamoteadas a favor de um todo nacional íntegro, patriarcal e fraterno, republicano

e disciplinado, aparentemente coeso e, às vezes, democrático”. (2004, p. 58).

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Retomando as finalidades pedagógicas da coleção Lendo e Interferindo, as autoras

questionam: como fazer uma leitura que não aliene o aluno? A resposta é assim organizada:

“É necessário que o aluno entre em contato com diversos tipos de texto, produzidos

por pessoas diferentes, com diferentes visões de mundo e opiniões, a fim de que ele

perceba com clareza que textos não apresentam verdades absolutas, mesmo porque

um único texto admite tantas leituras quantas forem as pessoas que a lerem” (1999,

p.3)

De modo diferente, as estratégias metodológicas para o exercício da prática de leitura

ratificam as incoerências entre a resposta dada e o trabalho com a linguagem nos encontros

com o português nas salas de aula do ensino fundamental II.

Para as autoras, ler criticamente é quando o leitor apreende o que está dito e como foi

dito no texto. A ênfase dada ao conteúdo e estrutura da tira em quadrinhos neutraliza a análise

do discurso – atividade proposta e negligenciada no livro didático. Sem a realização da leitura

como análise discursiva, não há lugar para o não-dito na mensagem. Isso porque a mensagem

só apresenta uma variante interpretativa. Lê-se para decodificar a informação e de que forma

foi construída. Aqui, o que é dito se torna verdade. Mas há verdade absoluta no texto verbal

ou imagético?

É preciso considerar que no texto seja qual for o gênero, o real social é escamoteado

pelas representações dramatizadas nas narrativas. Assim, o não-dito perpassa pelos territórios

das formas simbólicas, em que as cadeias semióticas ultrapassam o cruzamento entre o real e

o imaginário, abrindo espaço para outra conexão: a do inconsciente.

Esta via possibilita construir um “entre-lugar”, uma alternativa em que se possa

questionar a essencialização da linguagem, a linearidade dos acontecimentos históricos e os

modelos da realidade natural e espiritual.

O não dito significa, portanto, perceber que a realidade é um emaranhado de relações

incompletas, processos de dominação, barbáries, etc., mas que é possível construir ações

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politizadas em que a soberania do Estado- nação seja questionada. Quem elabora as leis? Com

quais interesses? Para atender a quem? Tais perguntas nos remetem ao discurso da elite

intelectual e governamental do país que nega aos grupos minoritários o direito de ter a sua

dignidade e qualidade de vidas garantidas. Este é o desafio: criar linhas de fugas para

desmontar os saberes instituídos arbitrariamente. Para isso, experimentamos o movimento de

que qualquer significante apresenta uma multiplicidade de sentidos e histórias, buscando

assim, problematizar como as marcas do real-imaginário-simbólico operam nas construções

discursivas e como estabelecer “rasuras” contra as posições dicotômicas e metafísicas

impregnadas nas construções da realidade social.

Portanto, a tira em quadrinhos como metáfora de transformação na contemporaneidade

é uma produção analítico-reflexiva que nos remete aos processos de significação em que o ser

humano é provocado a inquietar-se diante das estratégias articuladas do fazer cultura numa

sociedade marcada por relações de saber-poder excludentes e violentas. Nas vivências

humanas, na relação com o outro, nas esferas públicas e privadas, na escola, nos bairros, na

comunidade local, em cada texto quadrinizado ou não, que a grande narrativa da vida seja

afirmada como potência da linguagem. Ler e interferir no mundo é isso: reinventar histórias.

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CAPÍTULO II

AS NARRATIVAS QUADRINIZADAS DA TURMA DO XAXADO:

da indústria cultural ao leitor desviante

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2.1 Estratégias da Indústria Cultural X leitor de quadrinhos: a ordem é automatizar!

Fig: 11.

Fonte: Editora e Estúdio Cedraz (2008)

A tira em quadrinhos que abre esse primeiro tópico do segundo capítulo nos remete às

inter-relações entre a linguagem, a indústria cultural, o signo do capital e os bens de cultura na

contemporaneidade e suas implicações para quem produz e para quem consome os produtos

massificados pelo mercado.

Nisso está implicado a forma como são produzidos os objetos culturais seja a

televisão, o cinema, o rádio ou revista e de que maneira eles são usados pelos indivíduos. Para

isso, é importante problematizar como se caracteriza a cultura diante de uma práxis social

sujeitada a economia e ao mundo do mercado e da publicidade.

Analisar a linguagem dos quadrinhos produzida na cena contemporânea abre-nos a

possibilidade de olhar criticamente para as engrenagens capitalistas que transformam textos

culturais em aparatos mercadológicos. É através da técnica da padronização e seriação que a

indústria cultural classifica o que deve ser vendido, além de despertar no consumidor a

“sensação” de que pode ter acesso a todos os produtos, forjando assim, a idéia da

universalização. Tudo é bom. Todos compram. Todos são iguais perante o que é

comercializado na sociedade. Em virtude disso, os usuários sentem um pseudo-prazer na

aquisição da mercadoria.

Assim, a produção das tiras em quadrinhos como cultura de massa também é

domesticada pela indústria cultural. Nesse contexto, o consumidor \ leitor é o maior alvo da

dinâmica conservadora da tríade do signo capital: Estado, mercado e técnica.

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No âmbito da linguagem, as tiras em quadrinhos são constituídas de signos e de

discursos, mas segundo a gramática da indústria cultural que prescreve e modela os objetos

culturais, a tira apresenta uma forma que só passa a existir como técnica a partir do momento

em que o seu conteúdo serve para massificar os leitores de quadrinhos. Mas como a técnica de

produzir quadrinhos pode uniformizar quem ler imagens?

Sob o poder da indústria cultural, instaura-se a mercantilização dos artefatos culturais.

A cultura passa a ser subjugada pelo capital e pela mercadoria. Vender cultura é negócio. E

quanto mais próxima do consumidor, melhor para a lógica do mercado que é atingir o

popular, a massa consumista. Com isso, consagra-se a ideia de que todos têm acesso aos bens

culturais, embora saibamos que no cotidiano o que se nota é um pseudo-acesso ao que é

produzido na realidade social uma vez que é negado também o desejo de pertencimento a

outros setores da sociedade contemporânea como educação, saúde, segurança, etc.

No caso da tira, a ordem da indústria cultural é reproduzir a técnica dos quadrinhos

com base na construção do conhecimento com fins de entreter e divertir todos os

leitores\consumidores. Como consequência, a homogeneização e a padronização modelam o

perfil de quem ler. Com isso, a função da leitura por imagens e a fabricação dos quadrinhos

passam a ser ancoradas pelo repertório coercitivo da indústria cultural.

Nesse contexto, a concepção de que as tiras em quadrinhos servem apenas para a

diversão e entretenimento foi forjada pela indústria cultural. Com efeito, as narrativas

quadrinizadas como produção de massa adquirem o rótulo de linguagem para divertir. É um

passatempo. Enfim, o leitor \ consumidor é persuadido a comprar diversão. Theodor

Adorno acrescenta:

Divertir-se significa estar de acordo. Isso só é possível se isso se isola do processo

social em seu todo, se idiotiza e abandona desde o início a pretensão inescapável de

toda obra, mesmo da mais insignificante, de refletir em sua limitação o todo.

Divertir-se significa sempre: não ter que pensar, esquecer o sofrimento até mesmo

onde ele é mostrado. A impotência é a sua própria base. É na verdade uma fuga, mas

não, como afirma, uma fuga da realidade ruim, mas da última idéia de resistência

que essa realidade ainda deixa subsistir. (1985, p. 119).

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Se atentarmos para a assertiva defendida por Adorno, veremos que a produção de

quadrinhos circula como uma técnica limitada a fazer o leitor\consumidor a divertir-se frente

àquilo que lê, reforçando assim, que o ato de pensar é dispensável porque exige um árduo

trabalho cognitivo. Ora, entre divertir-se e pensar, o mais conveniente é a diversão, um

exercício fácil e que faz os leitores/consumidores se distanciarem da dinâmica social

fragmentada, violenta e excludente. Tal posição condiciona o sujeito social a não resistir aos

problemas sociais. Portanto, limitar a leitura de imagens à diversão e entretenimento é seguir

fielmente a tarefa imposta pelo esquema industrial: formar leitores lineares, adestrados e

submissos ao capitalismo.

Nessa perspectiva, há que se considerar, também, a técnica do fazer quadrinhos como

um dispositivo que determina a relação de força nas ações humanas, sujeitando o indivíduo às

regras do poder. Sendo assim, de acordo com Agamben (2009, p.72) “o dispositivo passa a

ser qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar,

interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos

dos seres viventes.” O enfoque no entretenimento como função básica da leitura das tiras em

quadrinhos determina a ação manipuladora da indústria cultural que transforma os meios de

comunicação de massa em “ópios do povo”. Entreter-se lendo quadrinhos é uma forma de

esquecer os problemas sociais e desviar a atenção para o que seguramente acontece no

cotidiano.

Dessa maneira, retomando a tira em quadrinhos da Turma do Xaxado, encontramos

algumas trilhas que nos fornecem subsídios para analisar de que forma os modos de produção

capitalista media a circulação dos quadrinhos na contemporaneidade. Por ser uma cultura de

massa, acreditamos que muitas pessoas têm acesso às revistas produzidas por Antonio Cedraz.

Tais leitores/consumidores compram os quadrinhos e iniciam assim, o processo de leitura das

imagens. Em primeiro lugar, já temos materializado o processo que caracteriza o cardápio da

indústria cultural: produto, venda e lucro.

Em segundo lugar, o fazer artístico do autor e a recepção do leitor frente á tira. Nesta

ótica, a tira em quadrinhos é apresentada como um “pacote pronto e acabado” tanto para o

autor como para o leitor. Anula-se o papel do criador, além de fixar o sentido da criação em

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apenas um aspecto: promover o riso. No que diz respeito ao leitor, cabe a ele somente

entreter-se. Fugir das barbáries da vida. Aqui, é negado ao leitor expandir os múltiplos

sentidos que a tira em quadrinhos proporciona. O único sentido já foi disciplinado: a

necessidade de diversão.

Em terceiro lugar, a tira como dispositivo evidencia as estratégias da relação de força

presentes na técnica da narrativa quadrinizada, bem como no que é dito ou não dito pelas

narrativas quadrinizadas.

Na tira em análise, o personagem Xaxado nos apresenta duas cenas, duas

representações sociais. No primeiro quadro, temos o jogo do consumismo na sociedade do

espetáculo. Pessoas que gastam entre trezentos reais a um mil e quatrocentos e noventa reais

por um abadá. Na máquina do carnaval, um trio elétrico completo custa aproximadamente

seiscentos mil reais. Os foliões querem se divertir. Para isso, investem na aquisição das

mercadorias. O que se pode comprar é a medida do prazer. É prioridade ter o que o outro tem,

mesmo que seja caro. Sentir-se dominante ao ter o produto dos sonhos. No jogo ilusório do

consumo massificado, o indivíduo é domado pelo desejo. Para Debor:

A alienação do espectador em proveito do objeto contemplado ( que é o resultado da

sua própria atividade inconsciente) exprime-se assim: quanto mais ele contempla,

menos vive; quanto mais aceita reconhecer-se nas imagens dominantes das

necessidade, menos ele compreende a sua existência e o seu próprio desejo. (1992,

p.25-26)

Considerando-se a realidade social apresentada na segunda cena e a pseudo-vida

promovida pela sociedade do consumo, a pergunta a ser feita é: o que interessa para o

leitor\consumidor de imagens? A aparência de que tudo o que é consumido é bom ou pensar

sobre como reagir à espetacularização da vida?

Na ordem da indústria cultural, o que prevalece é o desejo de consumo. A

subjetividade do leitor/consumidor/cidadão é modelada pelo modo de produção capitalista.

Padronizam-se valores, atitudes, comportamentos e vontades. O poder do capital não atinge

apenas o setor econômico, mas também a vida do sujeito, sua singularidade, experiência e

vontades.

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No segundo quadro, o cenário é bastante diferente. Visibilizamos a indústria da seca.

Carro-pipa, barragens, açudes, empresas construtoras, investimento de 22,2 bilhões em 2013

em ações contra os efeitos da estiagem, enfim, a mercantilização da seca não é ficção. Ao

invés de pessoas correndo atrás de um trio-elétrico, temos pessoas correndo desesperadamente

atrás de um carro-pipa. Na zona rural ou nas cidades pequenas a corrida é pela água tão

escassa nas regiões afetadas pela seca. Corre-se para assegurar a vida e a esperança. E pode a

indústria cultural assegurar uma vida de qualidade e sustentável ao consumidor? Pode-se

esperar que a promessa seja cumprida? Adorno assim se coloca:

“A indústria cultural não cessa de lograr seus consumidores quanto àquilo que está

continuamente a lhes prometer. A promissória sobre o prazer, emitida pelo enredo e

pela encenação, é prorrogada indefinidamente: maldosamente, a promessa a que

afinal se reduz o espetáculo significa que jamais chegaremos à coisa mesma, que o

convidado deve se contentar com a leitura do cardápio. Ao desejo, excitado por

nomes e imagens cheios de brilho, o que enfim se serve é o simples encômio do

quotidiano cinzento ao qual ele queria escapar.” (1985, p.115).

Na contemporaneidade, a indústria cultural vive do processo de homogeneização. Seja

na produção social, seja na material, o que predomina é o pensamento fabricado e modelado

pelo poder do signo capital. Assim como as mercadorias, o indivíduo também é visto como

suporte de valor. O pensamento, os territórios subjetivos, as perspectivas de vida, os

enfrentamentos, os modos de afirmação da vida, a vontade de empoderar-se não são

reconhecidos pela ideologia capitalística. Ao criar a ilusão de que todos são tratados da

mesma maneira pela indústria cultural, o leitor\consumidor é forçado a cair na armadilha do

“acesso universal” ao prazer. Os consumidores digerem o cardápio enganador servido pelo

esquema industrial. Desse modo, o contexto social marcado pelas contradições de classe,

exclusão social e relações de força e coisificação do sujeito permanece inalterado. E os

leitores\consumidores? Controlados. Sem meios para escapar da serialização do pensamento e

da ação normatizada pela indústria cultural.

No caso das produções artísticas, nos defrontamos com uma reconfiguração do

conceito de arte operada pela indústria cultural e o seu mecanismo de reprodutibilidade

técnica. O que é produzido acompanha o ritmo serial. Não há circulação de um produto único,

original e autêntico. Em contrapartida, a arte se torna mais próxima dos consumidores.

Ampliam-se os espaços para exposição dos produtos artísticos e também, o acesso ao que é

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produzido. Assim, com a reprodução técnica os artefatos entram no ciclo massificado em que

o que era singular passa a ser múltiplo.

É a partir dessa reprodutibilidade em série que a arte se liberta do arquétipo aurático.

Na análise da obra de arte, o foco principal era dado ao seu caráter espiritualizado. Buscava-se

o sentido metafísico do fazer artístico, o seu ponto de origem, além da genialidade do artista.

A legitimidade da arte estava e permanecia na sua aura, elemento contemplativo constituído por um

espaço e tempo bem demarcados: o aqui-agora. Se antes, de acordo com a tradição, a arte era

concebida (dentro da esfera da autenticidade) como verdade e beleza, ritual mágico e

religiosa, na contemporaneidade a produção artística conquista um novo espaço fundado na

autonomia, multiplicidade e reprodutibilidade.

O movimento de desauratização da arte no panorama contemporâneo desloca o aqui-

agora. Não há como se estabelecer uma unidade de lugar e tempo quando o movimento

acelerado de reprodução e consumo massificado dos objetos culturais altera a recepção do

usuário. O aqui-agora do consumidor pode ser em qualquer lugar e em qualquer ocasião, pois

é ele quem reposiciona o produto copiado.

A referida relação entre o consumidor e o produto reproduzido se reveste do desejo de

romper com a experiência contemplativa atribuída a arte. Com a reprodutibilidade técnica,

uma nova recepção ocorre entre o leitor\consumidor e a obra de arte. Benjamin afirma que:

A reprodutibilidade técnica da obra de arte modifica a relação da massa com a arte.

(...) Quanto mais se reduz a significação social de uma arte, maior fica a distância,

no público, entre a atitude de fruição e a atitude crítica, como se evidencia com o

exemplo da pintura. (1994, p.187-188)

No âmbito da comunicação de massa, é importante considerar como o

leitor\consumidor percebe as narrativas quadrinizadas no processo de reprodução ditada pela

indústria cultural e até que ponto ler quadrinhos funciona apena como objeto de prazer ou se é

uma prática discursiva a serviço de um olhar politizado sobre a vida, as construções culturais

destinadas a afirmar a subjetividade do indivíduo ou a catalogar o comportamento do homem

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contemporâneo segundo o caráter padronizado pela indústria cultural. A próxima tira em

quadrinhos da Turma do Xaxado nos oferece algumas pistas para analisarmos como se dá o

encontro mediatizado pelas imagens produzidas por Antonio Cedraz.

Como ponto de partida, é preciso notificar que o trabalho de produção das revistas em

quadrinhos da Turma do Xaxado acontece no Estúdio Cedraz criado e dirigido por Antonio

Luiz Ramos Cedraz, localizado em Salvador. A empresa é assim organizada conforme

informações do site:

O estúdio Cedraz é uma empresa especializada na criação de ilustrações e revistas

com histórias em quadrinhos. Com um know-how de mais de 15 anos prestando

serviços de qualidade, tem produzido trabalhos para empresas e órgãos do setor

público e privado, como Petrobrás, Detran, Postos tvl, Hospital São Rafael, Escola

Módulo Criarte, etc. A equipe do estúdio é formada por ilustradores, redatores,

coloristas e arte-finalistas capazes de criar de uma simples ilustração para cartaz,

jornal ou revista, até elaboradas revistas em quadrinhos (texto e ilustrações) para

treinamentos de funcionários ou promoção de produtos, entidades, idéias e

personalidades.

O espaço de difusão das revistas da Turma do Xaxado abarca jornais e suplementos

semanais da Bahia, outros Estados e Portugal, sites na internet e um projeto de animação com

a TVE iniciado em 2013, ano em que foi lançada a vinheta de chamada do São João na Bahia

com a Turma do Xaxado. Além disso, Cedraz participa de eventos literários e feiras de livros

como palestrante e expositor. Realiza também visitas às escolas públicas e particulares de

ensino fundamental I e II e universidades objetivando a interação com o público leitor, além

de dar visibilidade à sua produção artística.

Vale enfatizar que no dia 28 de novembro de 2013, Cedraz participou do V Colóquio

Modos de Produção e Circulação Cultural realizado pelo Programa de Pós-graduação em

Crítica Cultural, na UNEB – Campus II, em Alagoinhas, com carga horária de 04 horas sob a

coordenação da Professora Doutora Jailma dos Santos Pedreira Moreira. A sua presença foi

bastante significativa, considerando os aspectos explanados por ele, como: memórias e

narrativas da sua caminhada profissional, as referências para compor os personagens da

Turma do Xaxado, as dificuldades encontradas no mercado editorial das histórias em

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quadrinhos e sua determinação em manter viva a potência dos quadrinhos no cenário

brasileiro.

Esboçado o espaço de trabalho e atuação de Antonio Cedraz, podemos nos encaminhar

para a tessitura imagética da tira da Turma do Xaxado a seguir:

Fig: 12.

Fonte Editora e Estúdio Cedraz (2008)

No contexto de criação dos quadrinhos, temos a presença do quadrinista, o

acontecimento narrado e a percepção do leitor. No instante em que Antonio Cedraz cria,

desenvolve e publica a tira, atinge o mercado editorial das revistas em quadrinhos e o público

leitor, o sentido de originalidade foi perdido. Multiplicam-se as revistas, as imagens e a

grande massa passa a consumir a linguagem dos quadrinhos. Mas que tipo de imagem é

consumida? A imagem reificada? Ou a imagem com teor político ideológico? Que tipo de

leitor a tira quer seduzir? O leitor linear ou aquele que ressignifica o que já foi articulado por

alguém?

Estas perguntas podem ser analisadas a partir dos múltiplos sentidos veiculados na tira

em questão. Desse modo, transitemos por uma possível recepção do que nos diz a narrativa da

Turma do Xaxado.

A título de esclarecimento, a tira em análise faz referência a um dos amigos do

personagem Xaxado, o Arturzinho. Filho de um abastado fazendeiro defende que o dinheiro é

o mais importante na vida de uma pessoa. Sente-se o “dono do mundo”. Por isso, mostra-se

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avarento, egoísta e extremamente ostentador. Não perde a chance de explorar e humilhar os

peões que manejam as cabeças de gado da fazenda.

No contexto da tira, verificamos que nela são travadas relações de força que controlam

a dimensão social. O modelo de sistema capitalista fabrica as relações humanas na sociedade,

ora serializando-o, ora condicionando-o a viver de acordo com os parâmetros do capital, do

lucro. Uma das conseqüências mais significativas do modo de produção capitalista é a

concepção de que é natural existir divisão de classes, de pessoas, etc. Nesse processo violento

de naturalização dos fatos sociais, a subjetividade humana também é sucumbida,

considerando que o sujeito social é adestrado a não reagir. Perpetua-se, dessa forma, o lado

passivo e subserviente do ser humano frente ás mazelas de um espaço social construído em

bases sólidas de exclusão, injustiça social e desrespeito aos direitos humanos.

Remetendo-nos a sequência narrativa dos quadrinhos, apreendemos que as diferenças

e desigualdades sociais se constituem a base das práticas discriminatórias em nosso país. De

um lado, temos o grupo dos fazendeiros, detentores de poder, de terras e de “pessoas”. Do

outro, os peões que a muito custo tentam “sobreviver” em meio às péssimas e injustas

condições de trabalho. Mercantilizam-se terras, gados e o próprio homem. Os peões tornam-se

suporte de valor para os ricos fazendeiros. Gados e homens são marcados como se pertencesse

a mesma categoria. São, pois, mercadorias que trazem na pele a marca tatuada do seu dono,

do seu patrão. De fato, o mercado do poder “coisifica” o homem, a vida.

No que se refere aos direitos trabalhistas, ainda são poucos ou quase inexistentes os

locais de trabalho que valorizem a vida do peão, embora o Plenário do Senado já tenha

aprovado o Projeto de Lei da Câmara (PCL) 83\2011 que assegura o direito à carteira de

trabalho assinada, seguro de vida e de acidentes, salário mínimo, equipamentos de proteção

individual, reconhecendo e regulamentando a profissão de vaqueiro. Espera-se ainda que o

projeto seja sancionado pela presidenta do nosso país. Até lá, o peão continuará trabalhando,

recebendo bem menos do que necessita, além de serem descontados gastos com alimentação e

habitação, etc. no seu mísero pagamento. Diz Guattari sobre como se dá a relação entre a vida

humana e a ordem do capital:

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A ordem capitalística produz os modos das relações humanas até suas

representações inconscientes: os modos como se trabalha, como se é ensinado, como

se ama, como se trepa, como se fala, etc.Ela fabrica a relação com a produção, com a

natureza, com os fatos, com o movimento, com o corpo, com a alimentação, com o

presente, com o passado e com o futuro – em suma, ela fabrica a relação do homem

com o mundo e consigo mesmo. Aceitamos tudo isso porque partimos do

pressuposto de que está é a ordem do mundo, ordem que não pode ser tocada sem

que se comprometa a própria idéia de vida social organizada. (2005, p.42).

Entender os efeitos e conseqüências da fabricação do indivíduo pela ordem

capitalística instiga-nos a refletir sobre como o sujeito contemporâneo pode romper com a

automatização imposta pelos aparatos culturais e quais as alternativas possíveis para

reinventar a sua subjetividade, afirmando os seus desejos, vontades e perspectivas de uma

vida melhor, mais justa e igualitária. Ainda que o capitalismo modele a subjetividade humana,

utilize a indústria cultural, o Estado e o mercado da publicidade para homogeneizarem

condutas e valores cabe sim, engendrar um movimento de resistência capaz de empoderar

aqueles que tiveram suas vidas excluídas e dominadas pela ideologia capitalista. Mas o que

significa ter empoderamento na vida social? Como redefinir o modo de produção da

subjetividade diante de um capitalismo que padroniza desejos e bloqueia os processos de

singularização dos indivíduos?

Quando pensamos no empoderamento dos grupos minoritários, não nos referimos ao

“poder” atribuído às autoridades, nem às estratégias do Estado-Nação para manter o controle

social. Empoderar-se é participar de forma política e cidadã dos movimentos sociais, é fazer

valer nossos interesses, é fortalecer as nossas identificações. Para tanto, é de extrema

relevância conhecer e tomarmos parte das ações realizadas pelos mecanismos institucionais.

Não queremos ser representados por um Estado que nos impede de decidir sobre a vida, os

rumos da educação, saúde, segurança e da gestão dos recursos econômicos. Se votamos no

processo eleitoral, devemos também avaliar e responsabilizar o poder público pela omissão

diante das causas sociais. Vale salientar que construir uma cidadania ativa não significa

apenas votar num candidato, mas exige de nós participação – institucionalizada ou

movimentalista – visando atingir interesses gerais e coletivos. Elenaldo Celso Teixeira assim

se manifesta:

A existência de uma sociedade civil organizada e autônoma em relação ao Estado e

ao mercado constitui elemento importante para efetivação da participação política.

Isto requer a constituição de espaços públicos autônomos em que as diversas

organizações sociais e os indivíduos possam exercer os direitos de informação, de

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opinião e possam articular-se numa ação coletiva que questione as decisões políticas

do Estado e, ao mesmo tempo, possa oferecer fundamentos e alternativas para novas

decisões e um processo de accountability avaliar os métodos e resultados. (1997,

p.190).

De modo diferente, a leitura da tira em quadrinho pode provocar outras sugestões de

sentido aos diversos leitores\consumidores de textos imagéticos capturados pelas estratégias

de manipulação da indústria cultural, uma delas a de oferecer entretenimento, lazer e diversão

através das produções artísticas massificadas. O ato de comprar a revista em quadrinhos

preenche imediatamente à necessidade de distração. Refletir sobre os efeitos do consumo

massificado e adestrador não é uma necessidade para o consumidor. O que importa é a

satisfação de prazer proporcionada pelo produto.

No caso do leitor/consumidor de quadrinhos, a indústria cultural investe em padronizá-

lo. Todos são seus objetos. Fabricados para não resistirem á produção capitalista. Estão presos

ao poder da imagem coisificada. E tudo parece natural para o leitor\consumidor: a distância

social entre os grandes latifundiários e os “sem terra”, as marcas da exclusão e o esmaecer dos

desejos e vontades. E pode a indústria cultural liquidar o sujeito/leitor pensante?

2.2 O leitor de imagens na contemporaneidade: resistência à homogeneização da

indústria cultural.

“É preciso que cada um se afirme na posição singular que ocupa; que a faça viver,

que articule com outros processos de singularização...; e que resista a todos os

empreendimentos de nivelação da subjetividade.” (Félix Guattari)

Linguagens, culturas, textos, narrativas, memórias, multiplicidade, fragmentação,

poder, consumo, serialização, resistência, liberdade são operadores discursivos que

constituem uma caixa de ferramenta indispensável para questionar como se organiza o

circuito sociocultural e o papel do sujeito do conhecimento na contemporaneidade.

No plano da linguagem, é profícuo refletir sobre as relações construídas entre o capital

cultural e o leitor dentro das situações comunicativas, além de identificar e caracterizar as

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técnicas empreendidas pela indústria cultural para modelar a subjetividade do indivíduo social

e histórico que lê e consome os produtos massificados pelo sistema econômico capitalista.

Nesse processo, o próprio leitor é um texto capturado pelo regime prescritivo da produção

cultural também subordinada ao mercado e ao lucro.

A partir do que afirma Bakhtin (2012, p. 312) “a atitude humana é um texto em

potencial e pode ser compreendido unicamente no contexto dialógico da própria época” nos

remetemos ao que é feito com o nosso texto-sujeito numa sociedade múltipla de discursos,

fragmentada, desigual e híbrida social e culturalmente. Cabe interpelar: até que ponto a

cultura é capaz de potencializar a liberdade e autonomia do sujeito/leitor? Ou é uma forma

simbólica a serviço da bárbarie e da alienação? A organização da vida contemporânea e seus

agenciamentos sociais, históricos e políticos nos dão pistas para percebermos como as formas

de sentir o mundo, de viver, de expressão e de criação do sujeito/leitor são apreendidas pela

produção da subjetividade capitalista que marca a relação saber-poder em todos os campos da

experiência humana.

No que diz respeito ao processo de leitura, o sujeito/leitor tem acesso a uma

multiplicidade de textos. Lê texto verbal, cinematográfico, imagético, virtual, etc. Seja nos

espaços públicos ou privados, as práticas discursivas são suportes ativos para pensarmos

como são engendradas as relações sociais, com quais finalidades e a quem interessa excluir ou

incluir o sujeito/leitor.

Para tanto, a leitura pode ser sustentada com base em duas perspectivas: a primeira, ler

para adestrar. Nesse caso, o sujeito/leitor é modelado conforme as estratégias da indústria

cultural. A segunda, ler para politizar. Aqui, ao invés de submeter-se a uma leitura linear, o

sujeito\leitor assume uma posição ativa frente ao processo de comunicação discursiva.

Vejamos o que nos diz a seguinte tira em quadrinhos:

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Fig: 13.

Fonte Editora e Estúdio Cedraz (2008)

Na sociedade contemporânea, as novas ordens textuais se configuram como

dispositivos providos do que é dito e do não dito numa rede de saber-poder presente na

conjuntura social. Dessa forma, é importante questionar como se caracteriza o processo de

leitura considerando que o significante apresenta uma multiplicidade de sentidos e histórias e

como o leitor se relaciona com a narrativa dos quadrinhos.

Na sequência da narrativa quadrinizada em análise, podemos nos remeter a dois tipos

de leitor: aquele que decodifica a mensagem a partir dos traços engraçados e divertidos da

história. Dessa maneira, não apreende a produção de sentido da imagem do “boi dormindo” e

da sua relação com a expressão popular “conversa para boi dormir”. Nesse caso, ler é rir. E rir

é esquecer os conflitos sociais, é não pensar. É a leitura para “adormecer” leitores.

O outro leitor se apropriará de uma leitura crítica. E desta perspectiva, o ato de ler

passa a ter um significado diferente. Ler também é uma ação política e se configura como

espaço para questionar as representações sociais, além das relações de força imbricadas na

estrutura de uma sociedade contemporânea excludente e desigual. Aqui, ler é resistir.

Problematiza-se sobre a vida. Assim, a construção dos significados assume um caráter

relacional e contextual. As formas simbólicas presentes no texto quadrinizado sempre dizem

algo, mas não podem ter o seu “sentido” fixado definitivamente. Ao contrário, devem ser

desestabilizadas no processo de codificação da mensagem.

Ao pensar sobre o papel desse leitor politizado na vida social, nos defrontamos com as

estratégias da indústria cultural para aprisionar aquele que ousa reagir á classificação de uso

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do texto como mera mercadoria. E o que pode fazer o leitor para desviar-se do que é dito

arbitrariamente pela mercantilização cultural?

O desafio é desviar-se. Para isso, o leitor constrói a sua tática. Diz como e para quê ler.

Desta tomada de posição, produz-se uma nova prática de leitura: a heterológica. Washington

Drummond nos esclarece a partir das ideias de Bataille:

Seja no campo de nossas ações ou no da crítica, a excreção excessiva desses

procedimentos apontam para a decomposição das formas e anatemizam a tentativa

de reduzir tudo ao pensável. Instauram a heterogeneidade no seio do que se quer

homogêneo, forçando o aparecimento de singularidades que longe de afirmarem

algo preciso, metem-se em jogo, sem reservas, longe de qualquer positividade ou

negatividade. É o deslocamento pelo esgotamento das formas assimiladas, para o

impossível das práticas e da crítica, pondo-as em suspensão. Nenhum sistema ou

modelos apriorísticos podem evocar: as heterogeneidades se movem nas artimanhas

das singularidades, do gasto sem recuperação e do informe. (DRUMMOND, 2013,

p. 30).

Trazendo o conceito de heterologia para o campo da leitura, podemos refletir sobre a

potência do ato de ler na vida social. O processo de leitura não pode ser analisado como se

estivesse distante dos acontecimentos históricos, desconsiderando as experiências de quem

escreve e de quem ler. Ambos declaram as suas experiências ao se lançar sobre a leitura como

uma prática veiculada com os conflitos humanos, as desigualdades sociais, as intempéries do

cotidiano marcado pelas ações discriminatórias e excludentes, etc. A leitura é o espaço em

que o poder encontra-se instalado sistematicamente. É o espaço da presença do

conservadorismo da dinâmica cultural como suporte de valor e a automatização do

sujeito\leitor sucumbido pela trilogia Estado, mercado e técnica, vendedora da falsa

propaganda de que todos os desejos são satisfeitos pela indústria cultural. O slogan da

pretensa universalização corrobora a normatividade dos modos de produzir e consumir.

Se o ato de ler fomenta o enfraquecimento do texto-homem, encapsulando a sua

singularidade e reproduzindo a homogeneização das massas, em contrapartida a leitura pode e

deve ser um local de desvios. Provocando-se novas posições para a noção de leitura, por

conseguinte teremos um movimento de afirmação do sujeito\leitor, valorizando assim, o seu

devir, seu modo de pensar, sentir e agir. Nessa linha, a leitura traz a presença do não dito, do

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insólito no sentido de desvio do previsível e das normas linguísticas já sedimentadas nas

representações sociais.

Nessa perspectiva, a leitura heterológica deseja instituir o heterogêneo. Convida o

leitor a potencializar uma leitura diferente, aquela que não acomoda o sujeito diante das

interdições arraigadas nas situações de produção do conhecimento, ora alienando, ora

serializando os comportamentos humanos. No contexto de ressiginificação do ato de leitura,

ler é reagir. É resistir. É produção de sentido mobilizando ações micropolíticas para que a

singularidade de cada indivíduo possa ser reconhecida. Instaura-se assim, a leitura que

“acorda” o leitor e o faz afirmar a vida.

Nesse processo de afirmação da vida, o leitor é visto como diferente pelas estratégias

de poder do Estado, da indústria cultural e da publicidade. Quanto mais domesticá-lo, melhor

para as vendas e o lucro. Não se quer um leitor, ativista cultural, manifestante ou “rebelde sem

causa”, promovendo transformações sociais sejam elas no plano individual ou coletivo. Ao

mesmo tempo em que convive com os modos operantes do capital, o leitor busca “linhas de

fuga” para problematizar sobre a vida. Seja o leitor consumidor, trabalhador, operário,

militante, “intelectual da academia”, manifestante, etc, cada um se constitui de identificações

que traduzem seu modo de vida, sua posição diante do mundo. Guattari afirma:

O traço comum entre os diferentes processos de singularização é um devir

diferencial que recusa a subjetivação capitalística. Isso se sente por um calor nas

relações, por determinada maneira de desejar, por uma afirmação positiva da

criatividade, por uma vontade de amar, por uma vontade de simplesmente viver ou

sobreviver, pela multiplicidade dessas vontades. É preciso abrir espaço para que isso

aconteça. O desejo só pode ser vivido em vetores de singularidades. (2005, p. 47).

É, portanto, nessa busca pelo agenciamento da singularidade que reside o devir da

afirmação e do reconhecimento do sujeito/leitor revestido por uma tomada de atitude ético-

analítica diante do discurso alienante e serializado dos modos de produção capitalista. Por

fim, sentir-se texto-homem passivo ou desviante expressa se queremos uma pseudo-vida,

marcada pela barbárie da indústria cultural ou uma vida verdadeira, melhor, possível, potente.

Na organização social contemporânea, a esfera das produções culturais traz as marcas

concretas das interdições infligidas pelo saber-poder. Sob essa perspectiva, torna-se relevante

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lançar um olhar crítico sobre as angústias do sujeito\leitor no tocante aos efeitos da

mercantilização da vida. Se as práticas textuais que circulam no ambiente estético-político-

cultural são capturadas pela lógica do poder, como pode o leitor afirmar a sua “vontade de

potência” ativa ao ler criticamente a narrativa dos quadrinhos?

Para que se possa mobilizar um novo perfil de sujeito/leitor de imagens na

contemporaneidade, se faz necessário engendrar um novo movimento de leitura nos espaços

públicos e privados. Posto isso, é significativo à abertura do debate sobre como se organizam

as estratégias de leitura nos ambientes escolares e com isso, analisar as questões

socioculturais implicadas no processo de construção do ato de ler, além de operar ações

alternativas para que a leitura dos múltiplos textos difundidos nas práticas pedagógicas

ultrapasse a concepção formalista do texto, que o reduz a um mero suporte para análises

linguísticas.

Nos termos do trabalho com a tira em dos quadrinhos ainda presenciamos uma prática

condicionada ao princípio de que o sentido é uniforme e totalizante. O uso da linguagem

quadrinística aparece como recurso didático para explicar o que quer dizer cada imagem e a

intenção do quadrinista ao criar a sua produção. Nesse caso, a leitura está acorrentada ao

domínio da unilateralidade do signo. Ao sujeito/leitor só resta reproduzir o que vê, sem

espaço para declarar a sua percepção diante da imagem dada e a exercitar sua capacidade de

criar novas rotas de sentido para os quadrinhos. Ler sem a ambição de esgotar a imagem. Os

quadrinhos não querem sem decifrados. Querem estar em suspense. Provocar o sujeito/leitor a

construir os (des) sentidos de cada tira em quadrinhos.

Além dessa perspectiva, há o exercício desenfreado de sustentar os quadrinhos para

fins meramente estruturais. Contar e aprender os tipos de balões, memorizar as onomatopeias

mais comuns, decalcar as figuras cinéticas, etc são algumas atividades permanentes quando se

utilizam os quadrinhos em sala de aula. “Porque, tanto do sentido que a leitura dá à obra como

do significado, nada se sabe, talvez porque esse sentido, sendo o desejo, se estabelece para

além do código da língua”, nos diz Bakhthin (2012, p.76). Como ler a tira em quadrinhos a

seguir partindo da proposta de uma leitura imagética além do pragmatismo enrijecido tão

comum nas escolas?

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Fig: 14.

Fonte Editora e Estúdio Cedraz (2008)

É pelo viés do projeto dos Estudos Culturais que a leitura dos quadrinhos passa a se

constituir um espaço de cruzamento entre a linguagem e os campos sócio-político-culturais.

No texto, as representações simbólicas “como local de poder e de regulamentação” (HALL,

2003, p. 198) são reconhecidas pelo sujeito/leitor como construções calcadas a partir das

contradições da experiência humana.

O texto – como elemento cultural – diz sobre o tempo e o espaço dos autores e

leitores, esboça o momento histórico em que se dá a produção textual e problematiza sobre os

territórios demarcados entre as relações de força e o sujeito produtor de conhecimento. O

texto-discurso não escamoteia os conflitos da vida em sociedade, contrariamente a isso, fala

dos intercâmbios entre culturas, das múltiplas formas de produzir saberes, do poder do

Estado-Nação, das lutas dos grupos minoritários, da vida, dos desejos e da esperança que

sustenta o texto-homem. Nesse sentido, Carlos Magno esclarece quanto o lugar do leitor

cultural na contemporaneidade:

Com a aplicação de conceitos referentes ao leitor e à leitura, articulamos um método

de leitura que valorize a experiência do leitor como cidadão. A recepção crítica deve

ser desenvolvida a partir de uma consciência crítica que reconheça as fronteiras

identitárias e passe a produzir o saber de um lugar atual. Ela deve deixar para trás as

velhas performances preconceituosas de identificação social para legitimar a

diferença como prática de aprendizagem contínua. Assim, o lugar da leitura é um

espaço para formação conscientes da diferença como uma possibilidade cultural de

relacionamento. (GOMES, 2011, p.15).

Como o leitor cultural recepciona a tira anterior? De que maneira a linguagem dos

quadrinhos chega até o sujeito/leitor na sala de aula e em outros espaços culturais?

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Tais questionamentos perpassam por um reposicionamento da noção de textualidade e

de ações que afirmem o papel ativo do sujeito/leitor nos processos de interlocução

vivenciados no meio social.

No contexto da tira, a palavra esperança apresenta sentidos distintos para os

personagens. Diante das consequências da seca para o nordestino, Zé Pequeno afirma que a

“esperança é a última que morre”, porque outros desejos e necessidades já foram mortos. Na

sequencia de perdas, a própria esperança também é aniquilada. Em contrapartida, Xaxado

defende que é possível acreditar naquilo que se quer e sugere outra possibilidade de sentido

para a esperança. Não uma esperança para a morte, mas para a resistência. São as “vidas

severinas” reagindo às mazelas deixadas pelo déficit de chuvas no sertão nordestino.

Esperançar para sobreviver!

No processo de leitura da narrativa quadrinística, o sujeito/leitor é provocado a refletir

sobre as condições de vida do sertanejo, as marcas da exclusão sofrida, a ineficiência das

políticas públicas e programas de combate à seca e a pobreza, conhecimento dos repasses

financeiros pelo governo para minimizar os entraves causados pela seca severa e modos

alternativos para não deixar a vida se esvair. Assim, o aspecto conceitualizador da leitura

como algo inerente aos estudos da linguística é revisto. O ato de ler é provocação. Ao ler, o

sujeito/leitor produz sentidos e reivindica que as suas histórias e narrativas de vida sejam

respeitadas. Por isso, desconsiderar os conhecimentos prévios de quem ler é negar a sua

singularidade.

Em decorrência disso, a leitura conforme os Estudos Culturais é práxis que se liberta

da noção de leitura coisificada e “permite que as questões políticas e teóricas se irritem, se

perturbem e se incomodem reciprocamente, sem insistir numa clausura teórica final” (HALL,

2003, p. 200). E como articular a leitura das tiras em quadrinhos como prática significativa

nas escolas, bibliotecas, universidades, etc.?

È necessário refletir sobre o que sabemos sobre leitura, o que fazemos com ela e o que

esperamos para a comunidade de leitores em nosso país. Nesse sentido, criar espaços de

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analise e reflexão sobre a aplicabilidade dos Parâmetros Curriculares Nacionais, do livro

didático, das grades curriculares e das metodologias do ensino de Língua Portuguesa nas

escolas brasileiras é o caminho para ações mais libertárias do sujeito/leitor.

2.3 Quadrinhos: histórias de uma literatura menor

“Eu era ousado. Onde eu via que tinha jornal, revista, editora, eu mandava meu

material”.

(Antonio Cedraz, in memoriam)

Durante muito tempo, a linguagem dos quadrinhos foi estigmatizada sob uma série de

preconceitos fomentados por pais, professores, pesquisadores na área de Educação e

Linguagem e críticos de arte. Com isso, o texto imagético permaneceu fora do campo de

estudo dos textos considerados “maiores” e legitimados pela tradição literária, pautada em

padrões hierárquicos e classificatórios.

Nesta ótica, formulada com base em juízo de valor, as narrativas quadrinizadas eram

consideradas como textos “menores”, inferiores e marginais. Mensagem infantilizada e

inocente, mera forma de entretenimento e diversão, conteúdo destituído de informação,

produto massificado e sem qualidade, são alguns dos rótulos aplicados aos quadrinhos. Nas

escolas quando utilizados eram tratados como recurso didático para as aulas de Língua

Portuguesa, com ênfase no ensino da gramática normativa, sem desconsiderar ainda, algumas

falas dos professores, como: ler é coisa séria, quadrinhos não trazem nada de interessante para

o aluno. Se os estudantes não sabem interpretar o texto verbal, imagina se conseguem

entender o que quer dizer cada imagem? E tem mais, não podemos perder tempo com esse

tipo de leitura, nossos alunos devem aprender o que é útil para a prova, etc. E assim, os

quadrinhos eram repudiados no contexto escolar.

Nas universidades, o espaço de pesquisa era destinado aos grandes cânones literários.

Não havia lugar para os quadrinhos. Pesquisar o texto imagético nos espaços acadêmicos

interrompia os parâmetros normativos instituídos para qualificar se o texto é literário ou não

literário, legítimo ou não na sua potência estético-literária. Mais uma vez, os quadrinhos

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estavam fora da cena de pesquisa e estudo. Cirne, no seu livro Uma Introdução Política aos

Quadrinhos, declara a sua posição quanto ao tratamento dado aos quadrinhos:

“Por outro lado, nada mais reacionário, nada mais elitista, do que afirmar que os

quadrinhos não merecem uma análise “respeitosa”, como a que se faz com um Joyce

(ou Faulkner, Kafka, Mann, Borges, Pound, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, e

assim por diante). Trata-se de um preconceito instituído entre aqueles que “cultuam” as

formas dominantes da (s) ideologias – de igual modo – dominantes (s).” (CIRNE, 1982,

p. 12).

A posição de Moacy Cirne, reconhecido como pioneiro na pesquisa das histórias em

quadrinhos no Brasil evidencia a sua preocupação com a postura de alguns pesquisadores ao

excluírem o discurso dos quadrinhos dos espaços acadêmicos. Aqueles denominados

“intelectuais do saber” defendem a hegemonia dos textos sublimados pelo sistema literário

tradicional em detrimento de outros textos que fogem do modelo de escrita aplicado como

norma para balizar o que pode chegar até o público leitor.

Ainda na contemporaneidade, encontramos professores que valorizam os cânones

literários e seguem fielmente os conteúdos estabelecidos nos programas educacionais. Não se

quer aqui, dicotomizar a relação entre o texto de alta excelência literária ou texto sem

excelência literária, em contrapartida, busca-se subverter a lógica hierarquizante que favorece

a inserção dos textos oficiais e abrir as fronteiras das produções literárias e culturais.

É importante notar que a produção do sentido e do prazer não se restringe apenas ao

fazer literário. A literatura o faz com potencialidade e mantém interfaces com outros saberes,

no entanto, outras práticas discursivas também operam com essa produção. Com isso,

assegura-se a circulação de múltiplos textos – como prática de significação – além de

mobilizar novas perspectivas de análise crítica reflexiva no que diz respeito às conexões entre

o texto e as suas afiliações no campo do estético-político-cultural. Reinaldo Marques nos

esclarece :

Os estudos literários, em particular os da literatura comparada, e os estudos culturais

evidenciam o caráter fluido e esgarçado das fronteiras que delimitam os espaços

disciplinares, que se apresentam não mais como territórios onde se fixar e enrijecer,

dentro da lógica de um pensamento identitário substancialista, mas como territórios a

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serem atravessados, cruzados e rasurados por novos sujeitos do conhecimento.

(MARQUES, 1999, p.67)

Nesse sentido, abrir as fronteiras discursivas é fazer ressoar o diálogo e o cruzamento

entre as novas formações discursivas sem negligenciar aquelas estabelecidas como maiores,

positivando assim, o lugar de produção, consumo e distribuição dos textos subalternizados

pelas interdições do controle dominante.

Portanto, na dinâmica contemporânea, a linguagem dos quadrinhos sai do anonimato e

alcança visibilidade ao ter o seu lugar de fala legitimado como significação social, embora

ainda existam limitações e obstáculos no modo como os quadrinhos chegam até o

sujeito/leitor.

Na cena cultural baiana, os quadrinhos têm uma força bastante expressiva por meio

das produções do artista Antonio Cedraz, nascido em Miguel Calmon, distrito de Jacobina,

cidade onde foi criado. Iniciou os seus trabalhos com desenhos e histórias em quadrinhos com

16 anos e atualmente é considerado o Mestre do Quadrinho Nacional pela Associação dos

Quadrinistas e Caricaturistas do Estado de São Paulo. “É, muito provavelmente, o mais

importante e premiado quadrinista da região nordeste” afirmação de Chico Castro Júnior,

jornalista da Revista Mundo/A Tarde, na reportagem” A volta do Xaxado.

Em 2008 as tiras em quadrinhos da Turma do Xaxado, volume 2 (dois) participaram

da relação de títulos da PNBE ( Programa Nacional Biblioteca na Escola) que tem como

objetivo “permitir aos estudantes o acesso à cultura e à informação e estimular o hábito

“(VERGUIERO; RAMOS, 2009,p.12).

Ao longo da sua trajetória profissional, criou diversos personagens reunidos nas

histórias em quadrinhos da Turma do Xaxado. No universo gráfico de Cedraz, há também a

produção das tiras do Xaxado criada em 1998 e lançada a primeira coletânea em 1999, na

Bienal do livro da Bahia tendo como personagem principal o Xaxado, neto de cangaceiro,

com perfil alegre, justiceiro e atento ao sofrimento do povo nordestino. Segundo o próprio

Cedraz o seu trabalho “é um quadrinho tipicamente brasileiro. Um dos poucos, acredita.” Para

Claúdio Oliveira, a Turma do Xaxado:

Mergulha sobre as lendas e sobre a dura realidade do sertão, sem descuidar da crítica

social, e produz um resultado eclético que às vezes é difícil precisar a que faixa

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etária se destinam as histórias. Xaxado agrada igualmente a criança e o adulto.

Diverte, ensina e chama à reflexão. Num mercado editorial saturado de criaturas

super-qualquer-coisa, que só falam inglês, é um colírio encontrar uma publicação

que fale de nossas raízes e dá voz aos que passam por inaceitável desamparo em

pleno século XXI. (OLIVEIRA, 2008, p.4)

E para continuarmos na rota do quadrinho cedraziano, sigamos ao encontro de mais

uma tira em quadrinhos da Turma do Xaxado.

Fig: 15.

Fonte: www.turmadoxaxado.com.br

Os quadrinhos cedraziano se articulam como um movimento de produção “menor”,

no sentido empregado por Gilles Deleuze e Félix Guattari no texto Kafka: por uma literatura

menor. Ser menor é validar a potência das imagens. É transformar espaços comunicativos

com a mesma força ativa das ordens textuais proclamadas como maiores.

Nesta perspectiva, o discurso dos quadrinhos antes silenciado, conquista o direito de

voz e “compartilha uma visão sociodiscursiva da linguagem, em que, em vez de sistemas e

falantes abstratos e idealizados, existem usuários e interlocutor sempre sócio- historicamente

situados e contextualizados”. (SOUZA, 2004, p. 118).

O lócus de enunciação das tiras em quadrinhos agencia imagens que falam sobre o

sujeito/autor e sujeito/leitor, suas incompletudes, suas experiência de vida e devires de

resistência. Para tanto, as três características da literatura menos transitam na linguagem das

narrativas quadrinizadas, são elas: desterritorialização da língua, a ramificação do individual

no imediato-político e o agenciamento coletivo de enunciação.

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Quanto ao uso da língua, Antonio Cedraz realiza o processo de desterrotorialização ao

trazer a fala do sertanejo para a cena dos quadrinhos e como operacionaliza a sua potência

linguística dentro dos espaços da língua oficial.Assim, a fala do sertanejo torna-se

territorializada, ou seja, se antes excluída, agora emerge como discurso próprio, sem a

submissão à língua maior.

Concernente à posição de que “tudo é político”, percebemos que o fato de ser

escolhido para mesário nas eleições, é uma ação implicada em questões de ordem histórica e

cultural. É democrática uma convocação obrigatória para mesário? Na ocorrência de um

segundo turno, o convocado tem a liberdade para não participar? Como explicar para o

mesário que o domingo não passa a ser um dia perdido? Os questionamentos marcam as

contradições do pleito eleitoral no que diz respeito ao caráter forçoso da chamada para

mesário.

O plano do agenciamento coletivo de enunciação trata do que diz o quadrinista

Antonio Cedraz e como o coletivo recepciona as suas posições. Os leitores podem se

manifestar a favor do que é dito, mas também podem refutar. Quadrinistas, imagens e leitores

compartilham posições através da “máquina” de expressão dos quadrinhos.

Portanto, ser um quadrinho menor é ser maior na sua potencia ativa como linguagem.

È na e pela linguagem do menor que o devir da imagem/sujeito e do sujeito/imagem busca

linhas de fuga para questionar as representações sociais construídas pelos modos de produção

capitalista. “Grande e revolucionário, somente o menor” (DELEUZE e GUATARRI, 1977,

p.40).

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CAPÍTULO III

OS ESTEREÓTIPOS HABITAM OS QUADRINHOS DA TURMA DO XAXADO

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3.1 Cada personagem, uma representação

“Quadrinhos: uma embarcação capaz de conter um número ilimitado de idéias e

imagens”

(ScottMcCloud)

O leitor\consumidor do século XXI navega por uma multiplicidade de textos que

circulam nos ambientes sociais. Cada suporte textual é um veículo produtor de sentido. Na

esfera quadrinística, os cartuns, as charges, as tiras em quadrinhos e as HQs apresentam

configurações distintas, mas possuem um recurso expressivo comum: imagens que narram

histórias.

As imagens intensificam a significação de tudo o que representam, trazendo

sentidos que extrapolam as fronteiras da própria representação. Palavras e

imagens são meios de reinvenção do mundo, os quais configuram

perspectivas particulares: são significantes que articulam as informações,

sensações, os saberes com que interagimos com o mundo a nossa volta.

(PINA, 2014, p.76)

Na linguagem dos quadrinhos, a imagem – acompanhada ou não da palavra escrita - se

apresenta como uma “contadora de história”. Nesse exercício de narrar histórias, as

experiências humanas são encenadas através de uma sequência organizada de imagens que

seduz o leitor a viajar nos variados caminhos proporcionados pela leitura do texto imagético.

Há histórias para entreter leitores. Histórias para ensinar de forma técnica e objetiva algum

tipo de informação. Algumas meramente contemplativas e outras, destinadas à fruição. E

existem também àquelas que conduzem o leitor a questionar sobre os signos sociais e

culturais empregados na construção das ações narradas. Desse modo, os quadrinhos oferecem

narrativas de vida e abrem um campo vasto de possibilidades de leituras. Uma mesma

realidade pode ser contada por diversas embarcações textuais e lida de formas diferentes pelos

leitores. Não há uma leitura de imagens. Há leituras e leitores numa contínua travessia de

sentidos. Will Eisner nos chama a atenção para a importância das histórias quadrinizadas:

Apesar da grande visibilidade e da atenção compelida pelo trabalho artístico, insisto

em afirmar que a história é o componente crítico de uma revista em quadrinhos. Não

é somente a estrutura intelectual na qual se baseia toda a arte. É mais do que

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qualquer outro elemento, é aquilo que faz o trabalho perdurar. Este é um grandioso

desafio para um meio que sempre foi considerado coisa de criança. A tarefa é trazer

à tona a reação do leitor através das imagens (2005, p.6)

Considerando o campo das produções do texto imagético, as tiras em quadrinhos

ocupam um espaço relevante e legítimo no processo de interlocução entre as imagens e o

leitor. Constitui-se como um gênero textual que utiliza elementos da linguagem dos

quadrinhos para montar a sua arquitetura discursiva com base na interação de signos visuais e

verbais podendo se apresentar sob o formato de tira cômica, tira cômica seriada e a tira

seriada (também conhecidas como tiras de aventuras). Vale dizer que, nesta pesquisa, os

quadrinhos são analisados como hipergênero, um grande rótulo que dá a direção a outros

diferentes gêneros cada um com suas especificidades. Quanto à conceituação do gênero tira

cômica, vejamos o que nos diz Ramos (2007):

A temática atrelada ao humor é uma das principais características do gênero tira

cômica. Mas há outras: trata-se de um texto curto (dada a restrição do formato

regular, que é fixo), construído em um ou mais quadrinhos, com presença de

personagens fixos ou não, que cria uma narrativa com desfecho inesperados no final.

A tira cômica seriada fica na exata fronteira que separa a tira cômica da tira seriada.

Trata-se de um texto que usa elementos próprios às tiras cômicas, como o desfecho

inesperado da narrativa, que leva ao efeito de humor, mas, ao mesmo tempo, a

história é produzida em capítulos, assim como ocorre com a tira de aventuras.

As tiras seriadas estão centradas numa história narrada em partes. É um mecanismo

parecido com o efeito nas telenovelas. Cada tira traz um capítulo diário interligado a

uma trama maior. (p.24-28)

É importante salientar que essa abordagem teórica sobre a tipologia da tira não é fixa.

Outras nomenclaturas coexistem com base na linha de estudo de outros pesquisadores sobre

quadrinhos, como é o caso de VERGUEIRO (2009) que recorre ao termo tira de humor para

caracterizar o início e desfecho de uma história contada numa única tira com dois ou três

quadrinhos. No âmbito dessa pesquisa sobre a Turma do Xaxado adotou-se o termo tira(s) em

quadrinhos em consonância com a proposta de trabalho da Editora e Estúdio Cedraz quando

organiza a coleção Xaxado ano 4 365 Tiras em Quadrinhos.

Para iniciar uma viagem ao processo de criação das tiras em quadrinhos de Antonio

Cedraz é preciso conhecer o porquê da embarcação imagética se chamar A Turma do Xaxado,

quais os personagens que compõem as tramas narrativas, como se organiza a relação entre o

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plano ficcional, os estereótipos e a recepção das imagens pelo leitor, além das temáticas

sociais que permeiam as cenas de cada tira em quadrinhos.

No depoimento dado à webtvuneb, em 28 de novembro de 2012, na cidade de

Jacobina, Antonio Cedraz nos conta como tudo começou.

Miguel Calmon. Jacobina. Salvador. Três locais de memórias e narrativas. Arquivos

vivos das minhas experiências.

Até os dez anos não conhecia o significado de ler. Miguel Calmon, cidade pobre, não

me oferecia acesso aos livros e nem a Literatura. Aprendi a ler e a escrever utilizando apenas

um livro: o escolar.

Foi em Jacobina que descobri o mundo fantástico da leitura aos doze anos

aproximadamente. Sentia-me como um tabaréu do interior no seu primeiro encontro com as

palavras, as figuras. As histórias em quadrinhos e o cordel me fascinaram. A leitura ganhou

fôlego e não quis mais parar. A leitura me transformou. Aos quinze e dezesseis anos ainda

não desenhava. Um dia, ao passar numa livraria, vi um rapaz desenhando e perguntei: será

que eu também consigo desenhar? Peguei uma caneta, lápis e comecei a desenhar. Gostei do

resultado. Mostrei o desenho ao meu amigo e ele disse que estava até melhor do que o dele.

Não deu outra: botei na cabeça que queria ser autor, um desenhista como aqueles que tanto

gostava de ler. E não parei mais!

Formei-me em professor. Fui também bancário, mas o meu desejo era publicar meus

trabalhos em jornais, revistas e ter meus próprios livros.

Em Salvador, cursei durante dois anos a faculdade de Belas Artes. Trabalhando como

bancário, família já estruturada, sem tempo de estudar (a faculdade era de dia!), não pude

finalizar os trabalhos acadêmicos, contudo sempre busquei as redações dos jornais para

publicarem os meus desenhos.

O meu sonho era fazer um trabalho que tivesse alguma coisa do Brasil, alguma

coisinha do nordeste, do meu sertão lindo que tanto amo. Assim, tive a ideia de estudar e ler

sobre o nordeste, sua gente, sua fala, etc. Comecei a imaginar como seria...

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O chapéu de Lampião, daquele de cangaceiro, foi a minha inspiração. Procurei criar

um personagem com a cara do nordeste e usando um chapéu de couro bem estilizado. Nada

melhor do que um chapéu para representar o nordeste. Em qualquer lugar do mundo que

encontrar alguém usando um chapéu como o de Luiz Gonzaga, você sabe que aquela pessoa é

nordestina! Passei a construir a figura de um menino e coloquei nela as minhas características:

pé no chão gostava de acordar cedo, ajudava meu pai a tirar leite da vaca, ia pra escola, enfim,

um garoto que trabalhava, mas era feliz. Eu fiz um menino caipira, lá bem do nordeste com as

referências daquele sertão mesmo de Jacobina. Faltava um nome. Resolvi colocar Xaxado.

Por que Xaxado?

Ora, porque tem tudo a ver como nordeste, com o cangaço. Quando os cangaceiros

conquistavam uma vitória na batalha, eles dançavam o xaxado com muita alegria. O garoto

Xaxado alcançou um sucesso que jamais imaginava. Os personagens anteriores Joinha e

Pipoca não tiverem o mesmo destino. O matuto, o tabaréu Xaxado ganhou o mundo: Portugal,

Itália e França. No Brasil, ganhou reconhecimento em diversos estados, como Rio Grande do

Sul, São Paulo, Minas Gerais, etc. Mas Xaxado viveria sozinho as aventuras no sertão

nordestino? Não, era preciso uma turma animada para encantar os leitores do mundo, do

Brasil e da Bahia.

Minha preocupação com o novo personagem era criar um tipo matuto, um cara que

falasse errado, com uma linguagem estereotipada.

Em algumas idas à Jacobina, costumava fazer pesquisa de “falas erradas”, aquela fala

típica do interior. Anotava tudo para depois, criar um dicionário. Daí veio a ideia de criar um

garoto que usasse a fala típica do interior. Nasceu Zé Pequeno, o mais preguiçoso e

“descansado” da turma. É o que os leitores mais gostam. Roubou a cena.

A turma estava se formando. Como ainda não tinha uma menina, criei um personagem

oposto a Zé Pequeno. Dei-lhe o nome de Marieta, uma garota que falava tudo certinho. Só

anda com um livro debaixo do braço. Incentivadora da leitura quer que todos aprendam a ler.

Zé Pequeno tem orelhas grandes de tanto ela puxá-lo para ir á escola.

Ao lembrar o ambiente da seca, dos grandes fazendeiros e latifundiários, dos peões e

matutos, da desigualdade de classes, etc esbocei a imagem de um garoto riquinho, metido a

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besta, borsal, que adorava espezinhar o mais fraco, o famoso dono da rua, do pedaço, da

cidade. Da turma é o único que tem nome de poderoso, de rei. Nascia “em berço esplêndido, o

Artuzinho.

Para colocar a turma no ritmo musical do nordeste, criei o personagem Capiba. Toca

violão e adora cantar, principalmente as músicas de Luis Gonzaga, o Rei do Baião. Quer ser

um cantador nordestino.

A turma estava quase formada. Já tínhamos quatro garotos e apenas uma garota. Eis

que chega Marinês para completar o grupo. Ama a Natureza e se preocupa em protegê-la.

Sente-se uma ecologista e aproveita todo o tempo para falar sobre a importância da

preservação, do cuidado com as nossas plantas, animais, etc. É irmã de Capiba.

Xaxado, Zé Pequeno, Marieta, Capiba, Artuzinho e Marinês formaram a turma mais

brasileira das histórias em quadrinhos. Mas há outros personagens que também aparecem nas

histórias, como: os roceiros Tião e Genuíno Gabola, o brincalhão Saci, o Padre guloso, os pais

das crianças, o jumento Veneta, o cachorro Rompe-Ferro, e outros.

Em 1998, as primeiras tiras em quadrinhos da Turma do Xaxado surgiram no Jornal A

Tarde, no caderno Municípios, lido mais por adultos. Decidi criar um humor sério que

agradasse ao pai e a criança também. Humor tem que ser alegre. O povo nordestino é

sofredor, mas não deixa de ser alegre e feliz. Está no cabo da enxada, mas canta para a vida.

Por outro lado, busquei criar tiras que não fossem alienadas. Humor e crítica social transitam

pelas histórias. Falo de política, cidadania, da problemática da seca, do rico que tem água e o

pobre não, dos grandes latifundiários e das terras ociosas.

No início das minhas produções, fazia tudo sozinho. Criava a história, desenhava,

escrevia, pintava e bordava. Hoje, conto com uma equipe formada por desenhista,

argumentista e colorista. Gente que acreditou no meu trabalho e não abriu mão de me

acompanhar nessa aventura pelo universo dos quadrinhos.

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No mercado dos quadrinhos, nenhuma editora quis apostar no meu trabalho. Acreditavam que

não teria sucesso porque visava à discriminação do nordeste. Só depois de algum tempo

entenderam a minha proposta: compor o mundo do Xaxado com tipos nordestinos e minhas

lembranças quando morava no interior, valorizando dessa forma, a cultura da região nordeste.

Eu sou o Xaxado!!!!

Eis a minha turma:

Fig: 17.

Fonte: www.turmadoxaxado.com.br

Em Homenagear Cedraz é garantir que sua obra não será esquecida, Chico Castro Jr.,

assim se reporta ao seu trabalho:

Em suas tiras aparentemente infantis, Cedraz e a valorosa equipe do seu estúdio

fizeram todas as perguntas que não ainda cansamos de fazer: por que nosso povo

vive na miséria, na fome e na ignorância enquanto a classe política goza de todas as

benesses? Por que a seca? Por que o racismo? Por que a igreja? Por que os coronéis?

Por que você isso? Por que aquilo? Tudo sem abrir mão da leveza, do humor, da

inteligência. Isso, definitivamente, não é pouco.

Talvez por tudo isso eu, inconscientemente, tenha tido o impulso de pedir a ele para

posar com o mandacaru. Era óbvio que se tratava de semelhantes: sertanejos fortes,

talhados, para prosperar na adversidade. Nunca o esqueceremos. (Jornal A Tarde,

2014 p. 3)

As imagens da Turma do Xaxado nos contam histórias. O teor ficcional emerge

articulado com as construções histórico-sociais representadas nas tramas da narrativa.

Quadrinhos é linguagem. É uma produção cultural. Experiências reais de vida e

comportamentos humanos são identificadas quando o narrador monta a “fisionomia

intelectual da personagem”. Para essa montagem artística e estética, o narrador modela o

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perfil, caracterizando os traços individuais da personagem: expressões corporais e faciais,

personalidade, postura frente à vida, sentimentos, percepção de mundo, caráter, etc.

Para representar graficamente os personagens, as tiras em quadrinhos recorrem ao

uso do personagem típico. A sua relação com a personagem é de categorização geral. O tipo

generaliza o personagem por meio de traço convencional comum a todos os indivíduos seja

pelos comportamentos, ocupação, grupo social, virtude ou defeito. As imagens que seguem

explicitam a elaboração de uma personagem tipo:

Fig: 18. Fonte: Eisner, Will. Narrativas Gráficas, 2005

As imagens produzidas por Eisner (2005) denotam a função da personagem típica:

convencer o leitor a aceitar o modelo de representação criado pelo quadrinista. As

características físicas, a expressão facial, a vestimenta e o chocalho são pistas que guiam o

leitor a identificar o curandeiro no período pré-histórico. Delimitam-se todos os médicos a um

conceito abstrato único. Assim, todos os médicos são parecidos. Surge daí, as imagens

estereotipadas, outro recurso utilizado pela linguagem da narrativa gráfica para representar a

realidade, os indivíduos, as ideologias, etc. Conforme assertiva de Eisner:

No dicionário, “estereótipo” é definido como uma ideia ou um personagem que é

padronizado numa forma convencional, sem individualidade. Como um adjetivo,

“estereotipado” se aplica àquilo que é vulgarizado. O estereótipo tem uma reputação

ruim não apenas porque implica banalidade, mas também por causa do seu uso como

uma arma de propaganda ou racismo. Quando simplifica e categoriza uma

generalização imprecisa, ele pode ser prejudicial ou, no mínimo, ofensivo. A própria

palavra vem do método usado para moldar e duplicar as placas na impressão

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tipográfica. Apesar dessas definições, o estereótipo é bastante comum nos

quadrinhos. Ele é uma necessidade maldita – uma ferramenta de comunicação da

qual a maioria dos cartuns não consegue fugir. Dada a função narrativa do meio, isso

não é de se surpreender. (EISNER, 2005, p.21)

Para o produtor de histórias, a construção de imagens estereotipadas é um “mal

necessário”. As tiras em quadrinhos para atender ao seu papel de comunicação de massa,

recorrem ao estereótipo como ferramenta indispensável na composição das personagens.

Busca-se com isso, estabelecer uma relação de familiaridade entre o leitor e o personagem.

Ao ler uma narrativa, o leitor precisa identificar a personagem representada a partir dos

modelos de referência firmados pelo autor. O estereótipo torna a personagem mais próxima

do leitor e o conduz a uma compreensão entre as suas características, o enredo narrativo e o

contexto sócio-político-cultural. Esteticamente, é preciso estereotipar, contudo outras questões

discursivas devem ser problematizadas ao se analisar o efeito do estereótipo no plano

ideológico. A que e a quem serve o estereótipo?

Para Bhabha (2005, p. 105), “o estereótipo é uma forma de conhecimento e

identificação que vacila entre o que está “sempre no lugar”, já conhecido, é algo que deve ser

ansiosamente repetido”. Nesse sentido, o mecanismo de fixação do estereótipo nas formações

discursivas é ambivalente, ou seja, apresenta dois significados que ratificam a sua

funcionalidade. Primeiro, a subjetividade do sujeito social é reduzida a falsos padrões de

comportamentos e atitudes. Segundo, esse mesmo sujeito social é marginalizado pelo sistema

de poder e relação de força. Há uma montagem de representação sócio-histórica que não pode

ser encarada como uma mera ilusão ou mentira.

“Todo nordestino é preguiçoso”. “Não conheço um nordestino que goste de trabalhar”.

“Quem mora na roça, não sabe falar o português correto.” “Nordestino nasceu pra sofrer”.

“Nordeste: sinônimo de fome, miséria e morte”. A leitura dessas expressões nos remete aos

diferentes estereótipos elaborados na definição do que é ser nordestino no Brasil. Pretende-se,

através de imagens falsas, simplificar arbitrariamente o nordestino de forma rígida e imutável.

Nesse caso, o nordestino está determinado a ser o que o outro quer que ele seja. Nega-se a sua

identificação, a sua linguagem, seus saberes, interesses e vontades. Estereotipar o nordestino é

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uma operação ideológica que engendra a exclusão não só no plano da textualidade como no

plano da vida.

Como sabemos, a ideologia não é apenas a representação imaginária do real para

servir ao exercício da dominação em uma sociedade fundada na luta de classes,

como não é apenas a inversão imaginária do processo histórico na qual as ideias

ocupariam o lugar dos agentes históricos reais. A ideologia, forma específica do

imaginário social moderno, é a maneira necessária pelo qual os agentes sociais

representam para si mesmo o aparecer social, econômico e político, de tal sorte que

essa aparência ( que não devemos simplesmente tomar como sinônimo de ilusão ou

falsidade), por ser o modo imediato e abstrato de manifestação do processo

histórico, é o ocultamento ou dissimulação do real. Fundamentalmente, a ideologia é

um corpo sistemático de representações e de normas que nos “ensinam” a conhecer e

a agir. A sistematicidade e a coerência ideológicas nascem de uma determinação,

muito precisa: o discurso ideológico é aquele que pretende coincidir com as coisas,

anular a diferença entre o pensar, o que dizer e o ser e, destarte, engendrar uma

lógica da identificação, que unifique pensamento, linguagem e realidade para,

através dessa lógica, obter a identificação de todos os sujeitos sociais com uma

imagem particular universalizada, isto é, a imagem da classe dominante. (CHAUI,

2011, p. 15)

A imagem estereotipada do nordestino implica numa posição ideológica. É uma

prática discursiva que normatiza a produção do conhecimento em sociedade. Aprende-se a

conhecer o nordestino como um segmento social desqualificado e age-se de forma excludente

ao estigmatizar a região nordeste como um local atrasado, pobre, de pessoas analfabetas e sem

visibilidade. O estereótipo tem um propósito bem definido: fabricar o nordestino com base

numa relação de poder construída historicamente e marcada por um processo dicotômico

violento e massacrante. Sulistas x nordestinos, letrados x iletrados, rico x pobre, forte x fraco,

dominantes x dominados são construções que ratificam uma visão separatista da vida

contemporânea sob a perspectiva dos detentores do poder.

Nessa vertente, a identificação do sujeito histórico-social é modelada pelos diferentes

estereótipos. Em qualquer ambiente social, os nordestinos são iguais seja na sua forma de ser,

sua percepção de mundo e sua relação com as situações comunicativas. Na tentativa de

universalizar o ser nordestino sob o olhar do “dominante”, os modos de vida são descartados,

inferiorizados, reforçando a produção de estereótipos não somente no que diz respeito ao

sujeito social como no campo da linguagem.

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Na perspectiva das produções quadrinísticas, as tiras em quadrinhos criadas por

Antonio Cedraz trazem à tona uma gama de imagens estereotipadas do nordestino, sua

linguagem, aparência física, suas ideias, valores, inquietações, etc. A fala do próprio

quadrinista e a representação gráfica das personagens são sinalizadores do processo de

estereotipização que permeia as narrativas da Turma do Xaxado.

Dos seis principais personagens – de Xaxado à Capiba – temos um vasto campo de

significados sociais. Cada personagem, uma representação. O tipo físico, a maneira de falar, a

vestimenta, os olhares, os gostos, as virtudes, os defeitos, os conflitos, as dificuldades, os

sonhos que o ficcional projeta, reproduzem a composição serializada do nordestino e

consequentemente, o ocultamento da sua subjetividade.

Do ficcional ao real. Do texto imagem ao texto vida. Zé Pequeno, Marieta, Artuzinho,

Xaxado, Marinês e Capiba nos contam histórias de nordestinos. Histórias montadas. Histórias

que podem ser deslocadas. Tudo depende da forma como se olha. Do sentido que se extrai das

imagens. Ou quem sabe da sua incompletude de (des) sentidos?

Naveguemos agora pela tessitura imagética das personagens cedrazianas.

Fig. 19.

Fonte: 365 tiras em quadrinhos. Xaxado ano 4

A tira em quadrinhos nos traz as personagens Xaxado e Zé Pequeno numa situação de

vida marcada por posições bem distintas. Por um lado, temos Xaxado animado e disposto para

o trabalho, no caso a pesca. Nota-se que ele acordou muito cedo para iniciar a atividade

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pesqueira e convida Zé Pequeno para ir com ele. Entretanto, percebemos o “jogo mole” de Zé

Pequeno para atender ao chamado do amigo, insinuando que está preparando a pesca, não na

prática, mas no sono como indica a última vinheta através do balão pensamento e da

onomatopeia “zzz”. Temos ainda, a presença de uma rede, local de descanso preferido pela

personagem e que denota a sua marca registrada: a preguiça, sua companheira inseparável.

No tocante à composição do nome Zé Pequeno, notamos a junção da abreviatura do

nome José e do adjetivo pequeno. Zé é um nome comum, popular, simples, associado àquele

pessoa desprovida de prestígio social, visto como um anônimo nas relações sociais. O termo

pequeno caracteriza alguém inferior, baixo seja no aspecto físico quanto na questão de classe

social.

Assim, é possível reconhecer – na constituição da personagem – determinadas

representações sociais que classificam o que é ser nordestino especificamente baiano.

Naturalizou-se a idéia de que todo baiano é festeiro. São 365 e\ou 366 dias de festa, folia e

animação. Por conta disso, o baiano não dispõe de vontade para trabalhar. A imagem do

baiano é de preguiçoso. Sempre cansado.

É necessário destacar que a personagem Xaxado foge à regra. E fica a pergunta: todos

os baianos são preguiçosos? A quem interessa a manipulação desses estereótipos?

Na embarcação em quadrinhos da Turma do Xaxado, ao lermos as impressões da

personagem Marieta encontraremos outros estereótipos sociais associados ao que é ser baiano.

Agora, é na e pela linguagem que o saber oficial se sobrepõe ao popular. Existe o português

errado? É a linguagem um instrumento de opressão?

Na Turma do Xaxado, Marieta é a personagem que faz uso da língua culta, formal,

dentro dos padrões normativos impostos pela escola ao ensinar uma língua sistematizada e

pragmática. É a defensora da Língua Portuguesa. Não admite “erros” e exige dos amigos o

emprego correto das construções linguísticas.

Marieta considera o livro como “alimento da alma” e não perde a chance de participar

de feiras de livro, de ler histórias para a turma, de exigir do outro o emprego correto e oficial

da nossa língua materna.

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Marieta assim se posiciona:

Fig: 20.

Fonte: 365 tiras em quadrinhos. Xaxado ano 4

A forma como Marieta emprega a língua expressa à preocupação com as regras

gramaticais. É visto a fidelidade à concordância verbal e ao emprego do pronome tu. Tais

marcas caracterizam a norma socialmente prestigiada. Quanto a Zé Pequeno, ele é

apresentado como aquele que fala “errado” o português, não aplica a gramática da norma

culta. Seu personagem reduz e simplifica o repertório linguístico do nordestino. Todo

sertanejo fala “errado”. E quem disse que o sertanejo não pode usar a língua culta?

A leitura das imagens traz a reflexão sobre a uniformidade linguística. Todos os

usuários da língua portuguesa devem falar da mesma forma, restringindo a língua ao mero

fato linguístico, homogêneo e estanque, desconsiderando outros elementos sócio-político-

culturais imprescindíveis na construção da fala humana.

Ainda sobre Marieta, a sua descrição valida à construção simbólica frente a uma

conduta sistemática e metódica diante da vida: cabelo liso, vestimenta discreta, óculos e papel

nas mãos. Nota-se que a composição de Marieta destoa dos outros personagens da turma

assim como afirma uma exclusão ao exigir que Zé Pequeno alcance notas altas, isso só sendo

possível utilizando a gramática conforme é ensinada na escola. Numa turma que divide as

experiências no sertão nordestino, com falares diversos, que sentem na pele o preconceito

lingüístico do “pessoal” da cidade, há Marieta com um lugar de fala dotado de juízo de valor,

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de julgamento. E é possível, dentro de um grupo minoritário, existir exclusão? Sim, dentro da

diferença há exclusão!

E o que nos fala Arturzinho?

O personagem Arturzinho, filho de fazendeiro, se considera o maior e melhor da turma

por ter dinheiro, empregados, vasta área de terra, etc. O que mais lhe dá prazer é humilhar e

explorar todos ao seu redor. É o mandão da turma. Com a sua riqueza, quer comprar

sentimentos, amizades, produtos, terras, pessoas, etc.

As imagens seguintes nos contam quem é Arturzinho:

Fig: 21. Fonte: 365 tiras em quadrinhos. Xaxado ano 4

No enredo, temos a presença de Marieta ressaltando a importância do ato de ler para

os empregados de Arturzinho. Caso eles soubessem ler e tivessem acesso a livros, não seriam

explorados. Arturzinho, dissimulado e sarcástico convence os peões a declarar que preferem

comida ao invés de livro.

Marieta revela-se decepcionada conforme denuncia a sua expressão fisionômica. Se

houvesse um balão pensamento, sua fala seria traduzida em: “não acredito no que estou vendo

e ouvindo”. O comportamento de Arturzinho reforça a incapacidade intelectual atribuída ao

nordestino. O homem da cidade pensa. O homem do campo trabalha. Com isso, o sertanejo é,

antes de tudo, um fraco, Arturzinho parafraseando Euclides da Cunha. Vemos, pois, que o

discurso de Arturzinho decorre de uma articulada relação entre saber e poder. O “letrado”

subjuga o “iletrado”. Quanto mais conhecimento, mais poder. Desse modo, cristaliza-se a

ideia de que a relação de força é estabelecida de cima para baixo. Do maior para o menor.

Está oficializada a divisão de classe e como consequência, a estigmatização das

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subjetividades, das identificações sociais. A próxima tira em quadrinhos nos conta sobre o

personagem Xaxado:

Fig: 22.

Fonte: www.turmadoxaxado.com.br

A sequência narrativa traz o personagem Xaxado numa possível galeria em que há

uma exposição de quadro de três personalidades conhecidas mundialmente: Sylvester

Stallone, Arnold Schwarzenegger e Lampião. Os dois atores de filmes americanos atuam

como heróis no gênero de ação. Ambos conquistaram fama e fortuna na área cinematográfica,

além de impressionar o público feminino com o porte físico musculoso, viril, espírito

aventureiro, capaz de vencer grandes lutas e batalhas.

A terceira personalidade corresponde a Virgulino Ferreira da Silva, o popular

Lampião, cangaceiro brasileiro, nascido em Pernambuco. É reconhecido por muito como

herói porque roubava dos ricos –fazendeiros e comerciantes – e dividia os produtos furtados

com os pobres e para outros, como bandido sanguinário devido à violência como tratava os

seus adversários.

A expressão fisionômica de Xaxado nos dois primeiros quadros expressa a ideia de

que não (re) conhece os atores, não há afinidade, familiaridade com o que eles são ou

representam. No último quadro, ao olhar para Lampião, todo o seu corpo reage com euforia.

Os olhos parecem pular de contentamento. Se pudesse falar, no balão fala teria: Ah!Encontrei

alguém parecido comigo!

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Há várias representações sociais veiculadas nessa imagem. Nesse momento, podemos

destacar a identificação de Xaxado com Lampião com base nos seguintes aspectos: o avô de

Xaxado foi cangaceiro do bando de Lampião, a indumentária – chapéu e sandália de couro e a

esperteza típica dos dois. Stallone e Schwarzenegger não representam Xaxado e sua

subjetividade. O seu herói não é americano. Ele é brasileiro e nordestino. O rei do cangaço!

Em algum momento, a identificação de Xaxado pode sofrer mudança? É legítimo

unificar as identificações do nordestino numa única identidade de Lampião? Parte daí, o

estereótipo de que Lampião representa todos os sertanejos, ou seja, a cultura do nordeste, suas

subjetividades, modos de resistência, etc. E não existiram outros “heróis” ou anti-heróis?

Nas narrativas da Turma do Xaxado, Capiba – irmão de Marinês – se identifica com

outro rei, não do cangaço, mas do baião: Luis Gonzaga. O sonho dele é se tornar um cantor

nordestino tão popular quanto “Gonzagão”.

Fig. 23

Fonte: www.turmadoxaxado.com.br

O instrumento musical utilizado por Capiba difere daquele usado por Luiz Gonzaga.

Ao invés de tocar sanfona, toca violão. Na musicalidade, o estereótipo recai na limitação de

alguns ritmos definidos como os únicos que devem ser aprendidos pelos nordestinos como é

o caso do baião, do forró e do xaxado. Legitima-se a concepção de que os nordestinos não

podem aprender, ouvir e tocar outros estilos musicais. Nasceram para ouvir as cançoes de

Gonzagão que falam do nordestino emigrando para o Sul , fugindo da seca, do sol inclemente,

do sertão seco e infértil , a saudade e lembranças da terra natal.Inventou-se que o ouvido do

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nordestino não está aberto para outros ritmos típicos da camada social do eixo Rio\São Paulo:

mpb, bossa nova, samba, etc.

As imagens estereotipadas do nordestino é realidade fixada e simplificadora. Os

rótulos são incorporados sem problematização.O nordestino não se explica.Ele é explicado

pelo olhar excludente e discriminatório. O nordestino é apresentado como vítima da seca e do

destino.O outro é quem define a sua presença scoial. Esse outro é celebrado como referência

de soberania, intelectualidade, progresso e civilidade. E o nordestino está acomodado diante

dos problemas sociais e condições desfavoráveis que o atingem?

Vejamos o que a personagem Marinês nos diz sobre a relação do nordestino com a

natureza. Da turma, ela é a defensora e a amiga número um da natureza. Tem toda uma

preocupação com a preservação do meio ambiente, fauna, flora, etc e aproveita toda a

oportunidade para conscientizar a turma sobre a importância de valorizar os recursos naturais.

Quer ser bióloga. Considera-se ecologista. Quer ver as sementes brotarem em cada pedacinho

de chão. Pensa no seu local embora haja toda uma carga de flagelo por conta das intempéries

climáticas. A natureza para ela é vida!

Fig: 24.

Fonte: www.turmadoxaxado.com.br

Nessa narrativa quadrinística, Zé Pequeno pensa em esculpir na árvore o seu nome e o

de Marinês. Por sua vez, Marinês repreende a sua ação. De forma veemente, diz que a arvore

tem sentimentos, por que machucá-la? Zé Pequeno desconfia e diz que é invenção dela. Onde

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já se viu árvore ter emoção? Sentir dor. Chorar. Sofrer. As metáforas visuais mostram a

declaração de amor através dos corações pulsando.

Desse modo, o sentimento de preservação de Marieta nos alerta para o fato de que a

imagem do sertão brasileiro ultrapassa as demarcações físicas e goegráfias. Existem “sertões”

com sertanejos preocupados com o meio ambiente, a sustentabilidade e importância da

natureza para a vida no planeta. Para os nordestinos, a natureza não é má. Quem produz e

ramifica a maldade é a “indústria da seca”, a omissão dos órgãos competentes, o desvio de

verbas, o descaso com a vida no sertão, etc.

No tecido imagético engendrado por Antonio Cedraz, as personagens típicas e

estereotipadas reforçam o discurso ideológico que constrói a imagem do nordestino de uma

forma pejorativa e com base no olhar, na percepção da classe dominante, dos detentores do

poder, aquela que unifica todos os nordestinos a partir de práticas discriminatórias e

excludente. Ser nordestino é vê o seu pensamento (marcado para ser iletrado, incapaz,

inculto), linguagem (sempre errada , desarticulada, inconsistente) e realidade (infértil,

miserável, desfavorável) forjadas a partir do lugar de fala de quem ler o sertão como um

espaço geográfico e físico vitimado pela seca, migração, fome e morte. Essa representação

descarta a leitura dos sertões como um construção sócio-político-cultural.

Nas tiras em quadrinhos da Turma do Xaxado, o quadrinísta traz nas suas imagens o

contraste social, o modo de vida dos nordestinos e dos sulistas, a intenção política de dividir

os sujeitos sociais em fortes e fracos, cultos e incultos e os mecanismos culturais que também

marginalizam os que estão fora do eixo, fora da “nata da sociedade”, dificultando a criação de

modos alternativos de fazer cultura, promover o saber, democratizar os espaços públicos,etc.

De Xaxado à Capiba, todas as personagens representam problemas sociais da

contemporaneidade. Imagens fictícias que falam da (in)visiblidade das minorias, da

fragmentação do sujeito contemporâneo, da precaridade de vida individual e coletiva, dos

conflitos sociais, da fluidez da experiência humana. As imagens leem o mundo e o revelam

ora na perspectiva da inclusão, da afirmação da vida humana ora como local de opressão e

desigualdade social por via do fazer imagético-discursivo que fala das angústias de ser

“gente”. Umberto Eco em Apocalípticos e Integrados assim coloca:

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O enredo torna-se, assim, uma síntese de ações complexas, e através do conflito

narrativo, toma forma uma paixão, uma atitude mental. Sem mais, é agora legítimo

afirmar que a personagem artística é significativa e típica “quando o autor consegue

revelar os múltiplos nexos que coligam os traços individuais dos seus heróis aos

problemas gerais da época, os problemas gerias do seu tempo, mesmo os mais

abstratos, como problemas individualmente seus, que tenham para ela uma

importância vital. ( ECO, 2011, p.219-220)

Assim, no momento de construção das personagens é possível indagar sobre as

prováveis posições do quadrinista Antonio Cedraz ao produzir as suas narrativas e com quais

perspectivas: seria ele um quadrinista ingênuo e acrítico? Estaria apenas pormenorizando a

estrutura da dinâmica social, sem instigar o leitor a problematizar os quadros imageticos? O

objetivo é provocar? Trazer para a discussão o emaranhado de preconceitos que afetam o

sujeito em sociedade? O próprio Cedraz afirma que “o humor e crítica social transitam pelas

histórias” da Turma do Xaxado. Mais do que propõe o criador, não podemos esquecer do

leitor-consumidor. Como ele recepciona os estereótipos? Está habilitado para saber o que eles

representam? Como analisá-los ? A partir de que olhar? É salutar conhecer o perfil desse

leitor-consumidor, sua relação com o texto, etc.

Na linguagem dos quadrinhos – prática discursiva – o movimento de estereotipar

atinge a todos indistintamente. O quadrinista é visto como autor menor, produtor de sub-

cultura. O gênero das tiras em quadrinhos ainda é concebido por muitos como material que

atrai somente pelo colorido, destinado mais às crianças, mero suporte de entretenimento, não

educa, etc. O leitor de imagens apenas se diverte, não reflete sobre o que diz as imagens O

consumidor de quadrinhos é alienado.

Na discussão sobre os estereótipo especificamente nas tiras em quadrinhos da Turma

do Xaxado é preciso que os interlocutores (autor e leitor) questionem os modos de

representação discursiva e como cada um dentro do seu espaço social de atuação pode recusar

o processo de estereotipização que é “ao mesmo tempo um substituto e uma sobra”, como

discute Bhabha ( 2005).

Sob esse viés, o mais importante ainda é refletir sobre o que é ser substituto e sobra na

constituição da realidade social, construída simbolicamente e com interesses históricos bem

posicionados.

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Quando um grupo social hegemônico no plano do saber e do poder ocupa o lugar de

condutores da vida social, está instalado a substituição. Haverá sempre o subtituto e o

substituído, numa relação de força e poder. As minoriais, os conhecidos dominados e

subservientes, aqueles marcados pelo estigma da inferioridade têm a sua subjetividade

domesticada pelo lugar de fala da autoridade profícua e manipuladora. Aquela que pensa pelo

outro e diz quem ele é, referendando uma verdade inquestionável. Os substituídos não

merecem gerir suas próprias vidas. São banidos do processo de tomada de decisões. Da

substituição à sobra, o sujeito marginalizado passa a ser o resto, o excedente. De

indispensável, apenas os substitutos. O homem-sobra é homem-objeto, condiconado a ser uma

mentira forjada pela classe dominante, sem direito a legitimar a sua identificação, saberes, etc.

A tira em quadrinhos a seguir revela a cisão entre os dominadores e dominados, “assim,

representar é estar no lugar de, falar por e agir por”, diz CHAUÍ (2011, p.290).

Fig: 25.

Fonte: 365 tiras em quadrinhos. Xaxado ano 4

No campo da leitura em sala de aula, como seria lida essa tira em quadrinhos pelos

estudantes do Ensino Fundamental de 09 anos? Se ler é produzir sentido, nos resta saber:

Para o professor\professora, o sentido está no dito ou no não-dito?

O trabalho com a linguagem dos quadrinhos se limita apenas a estudar a “gramática “

dos quadrinhos? Ou ler é visto como uma atividade discursiva?

E o estudante-leitor-consumidor? Prende-se a um sentido pronto ou reelaborado?

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Percebemos, enfim, que analisar as representações sociais seja por meio da palavra

(oral ou escrita) ou imagens, exige um posicionamento crítico frente a significação do

estereótipo e acima de tudo, quanto aos efeitos da fabricação dos sujeitos sociais e históricos.

Na Turma do Xaxado, em outras turmas, em outros gêneros presentes na narrativa

contemporânea, os quadrinhos dramatizam as experiências reais e veiculam modelos fixados.

E possível ler os estereótipos criticamente? Uma pergunta inquietante e desafiadora. E pode, o

professor e estudante provocar “desvios” na leitura dos esteréotipos?

3.2 Produzir quadrinhos é decalcar ou mapear?

“O rizoma procede por variação, expansão, conquista, captura, picada. O rizoma

não é objeto de reprodução.”

(Gilles Deleuze e Félix Guattari)

A noção de linguagem e mundo adquiriu novos sentidos quando Gilles Deleuze e

Félix Guattari engendraram o rizoma como metáfora para refletir sobre a maneira como a

produção de conceitos circula na dinâmica da realidade social recorrendo para isso, à

migração conceitual da área de botânica para a filosofia. Desde 1980, ano em que lançaram a

obra Mil Platôs – Capitalismo e Esquizofrenia, volume 1, as contribuições desses teóricos

influenciam o pensamento contemporâneo. Releituras são feitas em diversas áreas do

conhecimento ratificando que a obra não envelheceu, ao contrário, se mantém como um

manancial capaz de problematizar a constituição da realidade social, fixada por uma

linearidade histórica alicerçada em conceitos “naturalmente” já dados ao sujeito social sem

oferecer-lhe nenhuma condição para interrogá-los.

Para o presente tópico, os conceitos de livro-raiz, livro sistema-radícula e rizoma

subsidiaram a reflexão de como a narrativa dos quadrinhos se organizam na

contemporaneidade. São as tirinhas em quadrinhos da Turma do Xaxado reflexo de imagens

fixas e totalizantes? Ou são elas veículos propagadores de múltiplas conexões semióticas?

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Para problematizar essas questões, vejamos como se manifestam os conceitos elaborados por

Deleuze e Guattari .

No livro-raiz, a árvore é decalque do mundo. A raiz não se ramifica, permanece a

mesma. Uma cópia que se sustenta na normatização do conhecimento, no fechamento de

noções dicotômicas e binárias, cópia x original. O centro dos fenômenos sociais representa a

visão essencialista dos fatos sociais, nomeado pelos sentidos produzidos pela religião e pela

natureza. Nessa abordagem, descarta-se a presença do sujeito histórico na explicação da

realidade exterior. O uso da linguagem e suas múltiplas formas de expressão, as experiências

humanas, as desigualdades sociais, a castração dos direitos humanos, a negação do desejo

individual e coletivo são frutos de um processo de naturalização sem que tivesse a

participação dos movimentos históricos, dos mecanismos ideológicos, do uso do poder e da

autoridade na marcação do ritmo da vida, dos grupos sociais, etc. Com isso, prevalece uma

única linha de representação do real, do mundo. Não há espaço para a multiplicidade.

Ramificar novas posições, descentralizar as ideias cristalizadas, valorizar outras histórias não

encontra significado na árvore raiz. O crescimento da raiz é limitado e segue apenas uma

horizontalidade sem conexões com outros pontos.

O livro-raiz é linear. Sua constituição é rígida: início, meio e fim. Não permite

rupturas. Tudo é estrutural, rigorosamente definido dentro de um caráter homogêneo dos

signos sociais e culturais.

Por outro lado, no livro sistema-radícula já há uma pretensa ramificação da raiz

rompendo com a fixidez típica do livro-raiz. Ocorre uma multiplicidade, embora ainda presa à

realidade natural sem conexões com outros fenômenos sejam eles sociais, políticos,

históricos, culturais, etc. Não havendo a quebra do fracionamento da unidade-raiz, prevalece a

pseudo-multiplicidade. Desse modo, é mantido o reflexo do mundo. Tanto o livro-raiz quanto

o livro sistema-radícula nomeiam o mundo através do decalque, da imitação. Em ambos os

livros, a construção sígnica é unilateral, com sentidos cristalizados e restritos ao caráter

estrutural da linguagem. Operam com o decalque, a cópia da vida, da linguagem, dos contatos

sociais, da produção do conhecimento.

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Diferentemente dos fundamentos epistemológicos dos livros raiz e sistema-radícula, o

livro rizoma se organiza baseado em seis princípios, são eles: conexão, heterogeneidade,

multiplicidade, ruptura de a- significante, cartografia e decalcomania que vão ao encontro da

concepção do discurso fechado e rigoroso.

O livro rizoma constrói discursos. Não está condicionado a uma linha de pensamento

única, centralizadora e delimitada num começo e num fim. A proposta é de estabelecer novas

conexões com as formações enunciativas. De um discurso a outro, surgem novos ligamentos e

se instaura a heterogeneidade das produções humanas. As formações discursivas perdem a

condição essencialista e ganha novo devir. Agora, conceito é ação, é ato, é movimento, é

desejo. É também contradição, ruptura, desvio. A produção e recepção do conhecimento

perpassam pela relação entre a enunciação e o enunciado. Seja quem for o autor, ele está

inserido num contexto construído historicamente e a sua fala e\ou produção revela as tensões

sociais, as múltiplas identificações, os conflitos da vida em sociedade.

No livro rizoma, a conexão e a heterogeneidade puxam outro princípio importante: a

multiplicidade. O movimento rizomático é divisível. A produção do saber faz emergir uma

pluralidade de histórias, experiências, narrativas, performances, linhas de fuga, etc. Sendo

assim, não há hierarquização do conhecimento.

No livro rizoma, as cadeias semióticas não trabalham com a previsibilidade do signo

lingüístico. O caráter social e político perpassam a construção simbólica da linguagem, das

narrativas de vida e textuais, dos corpos, dos dramas do cotidiano, etc. O significante existe,

mas não submete o rizoma a um único significado. Os agenciamentos são heterogêneos,

rompendo a análise pragmática da vida em sociedade. No processo de significação, o

significante pode nem apresentar sentido para quem o ler. Entre o significante e o significado

há linhas de fuga que desterritorializam os espaços recusando o modelo estrutural, pronto,

homogêneo e fechado. O livro rizoma engendra novas direções, destitui o princípio da

hierarquização do fazer humano. O início, meio e fim compartimentalizado cede espaço para

a leitura de outras dimensões da experiência social, no campo simbólico, político, histórico,

cultural, etc.

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Os dois últimos princípios correspondem à cartografia e a decalcomania. Livro-raiz e

o livro sistema radícula operam com o decalque da realidade exterior e racionalizada, por sua

vez pautados em conceitos centralizadores que classificam e nomeiam o sentido no processo

de significação. Por outro lado, o livro-rizoma é mapa. Desmonta a naturalização das idéias

que aprisiona o conhecimento humano ao fazer uso de múltiplas entradas e saídas de

dimensões diferenciadas, suscita a produção de novos enunciados, porque “um rizoma não

começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-ser, intermezzo

(DELLEUZE E GUATTARI, 1995, p.36).

Refletir na produção do rizoma como mapa significa deslocar o sentido puro e

unilateral do signo. Nesse sentido, movimentos rizomáticos implicam em construir linhas de

fuga, isto é, operar com novas conexões trazendo as contradições e conflitos do sujeito que é

simultaneamente elemento da linguagem e da cultura. Do sujeito-histórico à produção das

narrativas contemporâneas, uma série de enunciação e enunciados são construídos de forma a

opor conceitos e engendrar novos olhares sobre o que é pensar a vida sobre o efeito do verbo

“ser”. Rizomatizar é eclodir a intensidade da experiência humana sem projetar a falsa noção

de que a “vida é”, ao contrário tensiona e pergunta: e se a “vida não fosse”? E quem nomeou

essa vida? E por que se manifesta? E seu significado? Quem o produz? Com isso, o livro-

rizoma que pode ser também o livro-vida, o corpo, a subjetividade, a forma de atuar frente aos

mecanismos socioculturais, construídos por segmentos sociais, denùncia das representações

dos sujeitos, e dos objetos, enfim, quebra com o modelo estrutural impositivo e hierarquizado,

instituindo múltiplas entradas capazes de cartografar o que foi excluído da vida social. É

espaço de experimentação ativa e dinâmica.

Ele pode ser rasgado, revertido, adaptar-se a montagens de qualquer natureza, ser

preparado por um indivíduo, um grupo, uma formação social. Pode-se desenhá-lo

numa parede, concebê-lo como obra de arte, construí-lo como uma ação política ou

como uma meditação. Um mapa tem múltiplas entradas contrariamente ao decalque

que volta sempre "ao mesmo". Um mapa é uma questão de performance.(Deleuze e

Guattari, 1995, p.20-21)

Tomando como referência a metáfora do rizoma e sem querer esgotar as múltiplas

possibilidades de análise desse termo, pretende-se pensar as tiras em quadrinhos como uma

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narrativa rizomática. Nesse percurso, busca-se, sobretudo, problematizar a relação dos

quadrinhos com as noções de mapa e decalque além de refletir sobre como é operacionalizado

o processo de produção de sentido das narrativas quadrinizadas. Quanto à estrutura das

histórias contadas pelos quadrinhos, Will Eisner assim se pronuncia:

Todas as histórias têm uma estrutura. Uma história tem um início, um fim, e uma

linha de eventos colocados sobre uma estrutura que os mantêm juntos. Não importa

se o meio é um texto, um filme ou quadrinhos. O esqueleto é o mesmo. O estilo e a

maneira de se contar pode ser influenciado pelo meio, mas a história em si não

muda. A estrutura de uma história pode ser diagramada com muitas variações

porque ela está sujeita a diferentes padrões entre o início e o fim. A estrutura é útil

como um guia para manter controle sobre a forma de contar. (2005, p.10)

E explicita também a seguinte imagem para esboçar a estrutura das histórias:

Fig: 26.

Fonte: Will Eisner, Narrativas Gráficas, 2005

Observemos que Will Eisner destaca a estrutura narrativa – início, meio e fim – como

recurso relevante no processo de diagramação das histórias. Entretanto, mesmo ocorrendo à

variação na diagramação, não descarta a função controladora que a estrutura exerce sobre a

maneira como a história deve ser contada. Assim, toda história tem a mesma disposição, um

mesmo modelo estruturante que o autor de quadrinhos deve seguir. Para o leitor-consumidor,

o que é mais significativo? Reconhecer a estrutura da narrativa e decodificar os seus

elementos ou desobedecer à construção dos acontecimentos narrados pelas imagens e

palavras? O trabalho destinado aos quadrinhos nos dá caminhos para identificarmos qual ação

prevalece: se a de mapear ou decalcar a arte seqüencial das imagens.

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A partir destas considerações podemos ler a próxima tira em quadrinhos da Turma do

Xaxado a partir das posições de Will Eisner e o princípio do decalque, visando com isso,

analisar o processo de construção dos quadrinhos sob a perspectiva do livro-raiz e do sistema-

radícula.

Fig: 27.

Fonte: WWW.turmadoxaxado.com.br

No que diz respeito á estrutura da narrativa defendida por Will Eisner, podemos

atribuir os seguintes significados a cada aspecto proposto no gráfico já apresentado:

Quanto aos recursos mais básicos da linguagem das tiras em quadrinhos podemos

identificar os seguintes recursos gráfico-expressivos:

Gênero: Tira cômica. Temática atrelada ao humor, uma

das principais características, mas há outras.

Construída em um ou mais quadrinhos, com

presença de personagens fixos ou não, que cria

Introdução ao cenário: Sertão nordestino. Aridez da terra. Solo seco e

infértil. Presença de mandacaru.

Problema: A carência e/ou distância do trabalho, da escola,

da água e da própria solução.

Lidando com o problema: Reconhecimento de que não há solução para os

problemas e caso haja, está muito distante da

realidade sertaneja.

Fim: Solução dos problemas em longo prazo.

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uma narrativa com desfecho inesperado no final.

RAMOS (2014)

Composição: Quatro quadrinhos ou vinhetas “que constituem a

representação, por meio de uma imagem fixa, de

um instante específico ou de uma sequência

interligada de instantes, que são essenciais para a

compreensão de uma determinada ação ou

acontecimento”. VERGUEIRO (2006)

Formato dos quadrinhos: Retangular ou quadrada. “As tiras cômicas, por

terem um formato menor e limitado, tendem a

usar as vinhetas de uma maneira mais

convencional”. RAMOS (2014)

Uso da linha demarcatória nos

quadrinhos:

Reta linear (mais evidentes no 3º e 4º

quadrinhos). “A linha demarcatória possui dupla

função: marca graficamente a área da narrativa

(que ocorre dentro da vinheta) e indica o

momento em que se passa aquele trecho da

história”. RAMOS (2014)

Tipo de balão: Balão-fala e do apêndice “trata-se de uma

extensão do balão, que se projeta na direção do

personagem”. RAMOS (2014)

Legenda: Ausência. “Aparece no canto superior do

quadrinho, antes da fala dos personagens, para

representar a voz do narrador onisciente”.

VERGUEIRO (2006)

Tipo de letra: “Tradicional, linear, sem negrito, geralmente em

cor preta. Ela indica uma expressividade

“neutra”, uma espécie de grau zero, do qual

outros irão derivar .RAMOS (2014)

Utilização do negrito: Nas expressões “ver solução” e “vê”. “O negrito

pode sugerir tom de uma fala mais emocional

RAMOS (2014) ou para dar destaque a

determinado termo ou expressão, não

necessariamente indicando volume de voz mais

elevado. EGUTI (2001)

Plano de visão: Geral ou panorâmico (1º e 4º quadrinhos). “Vê-

se a figura humana por completo. Na prática, é

amplo o bastante para englobar o cenário e os

personagens representados. No 2º e 3º

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quadrinhos, predomina o plano médio ou

aproximado de primeiro plano “dos ombros para

cima. Neste caso, o foco está nas expressões

faciais. RAMOS (2014)

Ângulo de visão: Médio. A “cena é observada como se ocorre à

altura dos olhos do leitor”. VERGUEIRO (2006)

Metáfora visual: Duas nuvens sugerindo que as personagens

andaram bastante. A escola é longe. Metáfora

visual, “uma forma de expressar idéias ou

sentimentos por meio de imagens”

VERGUIERO (2006), “atreladas também ao

contexto situacional” RAMOS (2014).

Estilo de desenho: Personagens caricatas que representam o tipo

social sertanejo com distorções propositais para

acentuar o humor, etc. “A imagem do

personagem, independentemente do estilo do

desenho, possui uma gama de informações. A

roupa, o cabelo, os detalhes e o formato do rosto,

o tamanho do corpo, tudo é informação visual.

RAMOS (2014).

Niveís de fala: Língua culta e coloquial. “A variedade de usos

da língua está vinculada a aspectos geográficos e

socioculturais (idade, sexo, profissão, posição

social, escolaridade, situação em que a fala é

produzida. PRETI (2000).

Figuras cinéticas: Ausência. “Indicação de movimento”. RAMOS

(2014)

Onomatopeias: Ausência. “São signos convencionais que

representam ou imitam um som por meio de

caracteres alfabéticos.” O ruído, nos quadrinhos,

mais do que sonoro, é visual. VERGUEIRO

(2014)

Tempo: Astronômico retratando o início do dia e o cair

da tarde. “São os recursos utilizados para indicar

os períodos do dia, como utilização do sol ou da

lua”. RAMOS (2014)

Expressão facial: As feições de Xaxado e Zé Pequeno demonstram desolação, desesperança. As expressões faciais e

as metáforas visuais se somam aos gestos dos

personagens e à postura do corpo. Devem estar

em perfeita sintonia de modo a reforçar o sentido

pretendido. RAMOS (2014)

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A questão envolvida nessa forma de leitura, estudo e pesquisa com base na estrutura

fixa da narrativa e na utilização dos recursos expressivos das tiras em quadrinhos nos conduz

à organização do pensamento tomando como base o decalque. Ler para apreender a sequência

convencional início, meio e fim da narrativa quadrinística é decalcar. Aprender, dominar e

utilizar a técnica de fazer quadrinhos é decalcar. Se decalcar é seguir um modelo, o que valida

o uso do texto imagético na contemporaneidade é a aprendizagem da “gramática” dos

quadrinhos que prescreve como ler e produzir quadrinhos. Reproduzir e copiar a gramática

dos quadrinhos é aprender os seus recursos gráfico-visuais. Se for assim, ler quadrinhos é

decodificar o enredo da narrativa obedecendo à linearidade pré-estabelecida pelo quadrinista.

Produzir quadrinhos é reconhecer e identificar a técnica que compõe o conjunto expressivo de

desenho empregado nos diversos gêneros dos quadrinhos.

Frente a essas premissas, faz-se necessário pensar quais são as relações que se

pretendem estabelecer entre as tiras em quadrinhos e o leitor\consumidor. Espera-se que o

leitor\consumidor realize um mero decalque do texto imagético ou engendre uma cartografia

quadrinística? Para mobilizarmos uma reflexão sobre o que é olhar para os quadrinhos como

um mapa veja o que nos diz Eni Pulcinelli Orlandi (2001) quando analisa a não-

homogeneidade do texto mobilizando conceitos como a historicidade do texto e a

historicidade do sujeito-leitor.

A imagem que segue estabelece um diálogo com a noção de mapa ao propor a quebra

da linearidade textual. De um olhar estruturalista – defendido pelo decalque – à um

movimento plural do texto, onde pensar sobre o papel da cultura na construção do que é

escrito redimensiona a relação entre o texto e o sujeito-leitor na contemporaneidade.

Vejamos como se organiza essa configuração:

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Fig: 28. Representaçãográfica das mediações entre o sujeito-leitor e o texto

Fonte: Leitura e Perspectivas Interdisciplinares, 1992, p.71

Nesta perspectiva, o movimento de produzir um texto brota da relação que se dá entre

o sujeito-autor e a sua história. Os sentidos que circulam no texto são construções sociais.

Estão ali as posições do sujeito-autor e suas histórias, embora o sujeito-autor não seja “dono”

dos sentidos projetados. O texto ao ser lido abre novas perspectivas, pois o “lugar social” do

autor e do sujeito é quem provoca as possíveis leituras. Nessa leitura, o leitor operacionaliza

pontos de entrada e pontos de fuga.

Os pontos de entrada correspondem à posição do sujeito-leitor frente ao texto. Se

existem diversos leitores, há também uma multiplicidade de relações com o texto. A

posicionalidade do sujeito-leitor depende da função social atribuída á leitura e como foi

construído o ato de ler ao longo da sua vida. Sentiu vontade de ler? O que leu? Como leu? Por

que leu? A leitura o conduzia para perceber as relações sociais sob o viés do decalque ou do

mapa? De que forma o seu “lugar social” define um perfil de leitor? Na minha casa, no meu

bairro, na minha comunidade o que leio? Há espaços de leituras? Aprendi a ler? Em quais

circunstâncias? Há, no cenário da leitura contemporânea, uma diversidade de textos, de

leitores e de sentidos.

Ao passo que os pontos de entrada evidenciam as atitudes dos sujeitos-leitores frente

ao texto, no caso dos pontos de fuga, esse mesmo sujeito-leitor produzirá novos e diferentes

sentidos ao que foi dito pelo autor via texto. Múltiplos leitores. Múltiplos sentidos. O sentido

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é aquele que o sujeito quer que seja. O caminho da leitura quem faz é o leitor. Caminho reto é

caminho sem contradições. Caminho sinuoso é caminho com outras direções, rotas, etc.

Todo texto em relação à leitura teria, pois, vários pontos de entrada e vários pontos

de fuga. Os pontos de entrada corresponderiam a múltiplas posições do sujeito. Os

pontos de fuga são as diferentes perspectivas de atribuição de sentidos: ao

relacionar-se com os vários pontos de entrada, o leitor pode produzir leituras que

encaminham-se em várias direções. Não necessariamente previstas, nem

organizadas, nem passíveis de cálculo. Há várias perspectivas de leituras. Há

diferentes posições do sujeito-leitor. (ORLANI, 2003, 70-71)

Assim, na relação entre texto e sujeito-leitor, a produção de sentido vai além da

organização estrutural do enredo e dos elementos que constituem o corpus do texto. É assim

também que entendemos a linguagem dos quadrinhos enquanto formação discursiva: como

uma cartografia no processo de produção das imagens. Para o mapa dos quadrinhos

interessam os interstícios, as estratégias para subverter a ordem instituída do texto que tem

sempre um início, meio e fim inalteráveis. A intensidade da leitura está no meio, no que se

pode extrapolar do texto. Mapear quadrinhos não é decalcar.

Aprender as características da linguagem dos quadrinhos não é requisito para

recepcionar o texto como potência de significados e perspectivas. Dominar as 72 formas ou

mais de balão e seus recursos gráficos (balão-fala, cochicho, berro, etc), formato do apêndice

(seta, corações, mão, etc), os diferentes valores expressivos da letra, as onomatopeias (bam,

bum, crash, crack, etc), as figuras cinéticas, as metáforas visuais restringe o gênero dos

quadrinhos a uma mera cópia dos seus recursos expressivos. Os quadrinhos decalque –

modelo representativo – podem existir, mas para quebrar o mapa, local em que “o desejo se

move e produz” (Guattari,1995). E que desejo seria esse? O desejo de construir uma leitura

que fuja aos territórios determinados, impostos por construções simbólicas que prescrevem o

dito sem que haja refutação do não-dito.

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Como transitar com a próxima tira em quadrinhos sob o olhar e construção do mapa?

Vejamos:

Fig: 29.

Fonte: www.turmadoxaxado.com.br

No ambiente escolar – do ensino fundamental II – é muito comum o trabalho

prioritário com a “gramática” da tira em quadrinhos. Isso significa dizer que ao levar essa

imagem para a sala de aula, o professor daria ênfase às partes que compõe o todo. No caso,

esse texto teria uma leitura ancorada no arcabouço gráfico-visual e num enredo fixo e

condicionado apenas a uma “compreensão” do que diz o quadrinista. Os estudantes

aprenderiam os elementos constituintes de forma simplista e mecânica.

Sob outra vertente, ao considerarmos a tira em quadrinhos como um mapa,

deslocamos o pressuposto de que ler quadrinhos é decodificar a estrutura linear da narrativa e

seus recursos gráficos objetivando com isso, lançar um novo rumo ao processo de leitura do

texto imagético.

Indo ao encontro da concepção dos quadrinhos como decalque, reforçamos a idéia de

que trabalhar apenas como o aspecto estrutural não responde ao desejo de elaborar uma

prática de leitura como espaço de construção de sentidos e também como local de

questionamento sobre a vida, as relações sociais, e conseqüentemente sobre como a

linguagem é usada e para quais fins.

No processo de leitura, o sujeito-leitor assume uma posição de construtor de sentidos

e, através dos múltiplos pontos de fuga, problematiza a situação de comunicação que as

imagens lhes proporcionam, abrindo dessa maneira, interfaces com outros campos seja

político, econômico, histórico, fazendo emergir uma nova posição para o leitor, valorizando o

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“lugar social” do texto e a sua história enquanto leitor. Aquele leitor que só responde à

pergunta: “o que quer dizer o autor”, não produz uma leitura plural e ambígua.

Na tira em quadrinhos, o personagem Xaxado reconhece e afirma o sertanejo como

“gente batalhadora” o que luta para cultivar a sua terra, molhar a sua plantação não com a

chuva, mas com o seu suor, esforço e sofrimento. Se a proposta é não reproduzir os

estereótipos criados para explicar que é o sertanejo, a leitura em sala de aula é um momento

de provocação: Quem são os leitores desse texto? Moram na zona urbana? Na área rural? Tem

água encanada? Poço artesiano? Não tem água? Já viveram o sofrimento da seca? Como

percebem o sertanejo? Como lutador ou um derrotado?

E quanto aos outros saberes que circulam no texto? O que falta para que o sertanejo

tenha uma vida cidadã? Por que a imagem do sertanejo é sempre associada à fome, miséria,

sofrimento e morte? Por que a água chega pra uns e não para a coletividade? E a indústria da

seca a quem interessa? Por que ações emergenciais como construção de poços, barragens e

cisternas não são levadas a sério? E a educação? Saúde? Em que medida a vida do sertanejo

não é usada como plataforma político-partidária?

É tendo em vista essas questões que nos perguntamos: que tipo de leitura é produzida

na escola? Que tipo de leitor ela valoriza?

Assim instrumento de reprodução, mas também espaço de contradição, a leitura é,

fundamentalmente, processo político. Por isso, aqueles que formam leitores –

alfabetizadores, professores, bibliotecários – desempenham um papel político que

poderá estar ou não comprometido com a transformação social, conforme estejam ou

não conscientes da força de reprodução e, ao mesmo tempo, do espaço de

contradição presentes nas condições sociais da leitura, e tenham ou não assumido a

luta contra aquela e a ocupação deste como possibilidade de conscientização e

questionamento da realidade em que o leitor se insere. (SOARES, 1998, p.28)

Esta afirmação de Magda Becker Soares (1998) mostra a relevância de refletirmos

sobre as condições sociais de leitura nos espaços escolares brasileiro, fator preponderante para

identificarmos o caminho do ato de ler e suas conseqüências para os profissionais de educação

e estudantes. O modo de produção de leitura nas escolas determina que tomada de posição

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assumimos frente às construções sociais: se reproduzimos os processos de exclusão através

das experiências de leitura ou se buscamos alternativas para problematiza a realidade social na

qual estamos inseridos.

Percebemos, enfim, que a prática social de leitura no processo de escolarização ora

concorre para a leitura “decalque” ora para a leitura “mapa”. Nesses dois trânsitos de leitura,

como se posiciona o professor? Que percurso escolher? O que define essa escolha? E como

fica o estudante sujeito-leitor nessa relação com o ato de ler? Para todos os envolvidos com a

prática de leitura, cabe, portanto reconhecer a leitura como “múltipla, a ser plural, a ser

ambígua. Mas não será nunca qualquer uma, conforme Maria Cristina Leandro Ferreira

(2003).

3.3 Como potencializar um novo leitor de imagens no Ensino Fundamental II (6º ao 9º

ano)?

3.3.1 As memórias de leitura do sujeito-leitora- pesquisadora

“A leitura vai, portanto, além do texto (seja ele qual for) e começa antes do contato

com ele. O leitor assume um papel atuante, deixa de ser mero decodificador ou

receptor passivo. E o contexto geral em que ele atua, as pessoas com quem convive

passam a ter influência apreciável em um desempenho na leitura. Isso porque o dar

sentido a um texto implica sempre levar em conta a situação desse texto e de seu

leitor. E a noção de texto aqui também é ampliada, não mais fica restrita ao que está

escrito, mas abre-se para englobar diferentes linguagens. (MARTINS, 2012, p. 33)

Década de 70. Escola pública. Ensino primário. Nessa época começa o meu itinerário

de leitura, as histórias mais memoráveis, os primeiros contatos com o texto, a difícil relação

com o ato de ler, os medos, as inseguranças e conflitos que a entrada no mundo das letras me

trazia. Lembro-me de duas situações que marcaram a minha vida, o encontro com as palavras,

que, diga-se de passagem, não foi um amor à primeira vista. No lugar do desejo de aprender a

ler, outro sentimento tomou fôlego e força: o medo. O medo de errar. O medo de ler. O medo

da reação da professora.

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A primeira cena que segue aconteceu no ano de 1976 quando cursava a segunda série

“primária”.

Sala organizada em fileiras. Professora na frente, olhar austero, voz forte e pesada,

dizia: Hoje, vamos ler! Só de ouvir essas palavras, meu corpo tremia todo, pois ainda não lia

“corrido”, apenas soletrava com muita dificuldade. Eu tentava me livrar daquele dedo

impositivo, apontando para quem deveria ler: baixava a cabeça, rezava para não ser chamada,

acompanhava os movimentos do colega da frente na tentativa de me esquivar do olhar

rigoroso da professora, encolhia o corpo todo acreditando que não seria notada. Pura ilusão de

criança! Ninguém escapava da hora da leitura. Tive que ler. O texto me trouxe uma palavra

nova e de extrema complexidade para mim. Nem me recordo do que tratava a mensagem, mas

só sei que no meio do texto tinha uma palavra. Tinha uma palavra no meio do texto. Tinha

uma palavra. No meio do texto tinha uma palavra. Raquítico. E tentei ler...

Fiquei alguns minutos tentando soletrar a palavra. A professora já inquieta com a

minha demora. E a palavra não saia. Decididamente, não saiu. Quem a proferiu, me

corrigindo foi a professora. Alguns colegas riram da minha pífia leitura, outros se condoeram

da minha “dor”. A professora não relutou em expressar um olhar de desagrado e insatisfação.

E deu o veredito final: Elizia não sabe ler, portanto é limitada, tem uma “leitura raquítica”.

Não está alfabetizada.

Naquela época, não tinha noção do sentido da palavra raquítico, contudo “senti na

pele” o efeito de ser estigmatizada, de receber o rótulo de incompetente. Até hoje quando no

meio de um texto – seja ele verbal ou não – encontro a palavra raquítico, rememorizo como

foi dolorida o encontro com as “primeiras letras”, as primeiras palavras.

1978. Ano em que aconteceu a segunda cena. Cursava a quarta série. Com outra

professora pensei: agora, vai ser diferente! Já sabia ler como a escola queria. Outra “amarga”

ilusão! A professora – também rigorosa e exigente – numa aula em que comemorávamos o

Dia do Soldado – 25 de agosto – levou um desenho para a “classe” pintar. A tarefa rodada no

“mimeógrafo” trazia a figura de um soldado segurando com a bandeira do Brasil. Se tinha

uma aula que eu gostava era a de pintura. Nesse dia, recordo-me com detalhes, usei o lápis de

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cor verde para pintar o uniforme do soldado, conforme orientação da professora. Tudo ia

muito bem até que resolvi pintar o bolso direito do uniforme da cor vermelha. Pra quê? A

professora ficou extremamente irritada e disse: Onde já se viu usar a cor vermelha no

uniforme do soldado brasileiro? Trate de refazer a atividade e não “erre” novamente. Já com

outro desenho em mãos, refiz a pintura como a “pró” desejava. No final da aula, ela teria que

expor os desenhos no varal da sala e não caberia compartilhar com a classe e as demais

professoras, a imagem deturpada do soldado brasileiro.

Desse dia em diante, as aulas de pintura nunca mais foram às mesmas. Ficava a

imaginar as datas comemorativas e as pinturas que viriam. Teria que pintar do “jeito da pró”.

E eu? Não podia escolher as cores? A minha forma de pintar? Por que todos os desenhos

deveriam ser iguais? Não podia ter ao menos um diferente? Assim, continuei a pintar do “jeito

da pró”, mas uma pergunta lá no fundo me acompanhava: seria sempre assim?

E as histórias não pararam. Novas relações com a linguagem, a leitura e escrita de

textos verbais e imagéticos no primeiro grau, ensino de 2º grau (formação para o Magistério),

Estudos Adicionais, Graduação em Letras Vernáculas, Especialização em Estudos Literários e

o Mestrado em Crítica Cultural. Tempos sociais e históricos distintos. Diversas abordagens de

leitura. Múltiplos perfis de leitores nos espaços escolares e acadêmicos. Programas e políticas

de incentivo à leitura. Dificuldades... E por fim, a polêmica “crise de leitura”.

Sob a primeira cena narrada, a concepção de leitura do texto verbal ainda estava

ancorada no método de alfabetização sintético e analítico (silábicos ou tradicionais) que

visava à decodificação das letras e dos sons. Para isso, o aluno no método sintético precisava

“vencer” três etapas do processo a fim de dominar a técnica de leitura: soletração, silabação e

fônico, num processo direcionado da parte para o todo.

Na soletração, exigia-se que o aluno decorasse as letras do alfabeto e em seguida, que

fosse capaz de uni-las em sílabas. Trata aqui, da utilização dos elementos menores que a

palavra, os fonemas, letras e sílabas. Ênfase também na pronúncia correta.

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Fig: 30.

Fonte: acervohistoricodolivroescolar.blogspot.com.br

Na silabação, ocorre o reconhecimento da família de sílabas.

Fig: 31.

Fonte: acervohistoricodolivroescolar.blogspot.com.br

Já o fônico, identifica a correspondência entre os sons e as letras. Estuda-se a

representação gráfica dos fonemas.

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Fig 32.

Fonte: acervohistoricodolivroescolar.blogspot.com.br

Quanto ao método analítico o caminho percorrido nasce do todo para as partes. Nessa

atividade existe a decomposição a partir de frases. O aluno separa palavras, divide em sílabas.

É a chamada setenciação.

Fig: 33.

Fonte acervohistoricodolivroescolar.blogspot.com.br

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No processo de palavração, a partir da palavra, dividem-se em unidades simples, as sílabas.

Fig: 34.

Fonte acervohistoricodolivroescolar.blogspot.com.br

No global, apresenta-se uma história com começo, meio e fim. Depois o trabalho é

feito na decomposição em frases, palavras, sílabas e letras.

Fig: 35.

Fonte: acervohistoricodolivroescolar.blogspot.com.br

Com bases nessas informações, notamos que a concepção de leitura e práticas

pedagógicas na década de 70 estava voltada para a ideia de que no processo de

desenvolvimento da aprendizagem a mente da criança se apresentava como uma tabula rasa –

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uma folha de papel em branco – desprovida da capacidade de levantar hipóteses, de raciocinar

sem a orientação do professor. A criança não sabe nada quando nasce. Somente através da

experiência do aprendizado previsível e passivo consegue aprender através da modelagem do

comportamento humano (behavior= comportamento, conduta). Condicionado a um estímulo-

resposta segundo as idéias defendidas pelo filósofo John Locke. Vejamos o que nos diz

Angela B. Kleiman:

A abordagem psicossocial da leitura foi precedida por uma longa etapa em que os

estudos behavioristas dominavam o campo, fato este evidente (...) que previam um

leitor que precisava receber um estímulo visual, uma letra, para uni-la a um estímulo

visual anterior para assim formar uma sílaba, procedendo dessa forma em todos os

níveis de significação: letra por letra até completar uma sílaba, sílaba por sílaba, até

completar uma palavra, palavra por palavra até completar uma frase e assim

sucessivamente. (2004, p.16,17)

Como visto, a escola trabalhava com o procedimento linear dos elementos da língua.

Palavra – a – palavra, o aluno era privado dos processos de significação, experimentava a

leitura de controle, baseada no conhecimento lingüístico como fator decisivo para aprender a

ler.

Em relação à segunda cena – que trata da aula de pintura – também caracteriza o ato

de ler ou produzir texto imagético como um processo passivo. Pensar no ensino da leitura

imagética nos manuais didáticos dos anos 70 significa questionar a relação entre a ilustração-

texto-leitor e as suas finalidades. Vejamos as seguintes imagens:

Fig: 36. Fig: 37.

Fonte: www.oliveirasalazar.org Fonte: www.santanolstalgia.com

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Fig: 38 Fig: 39

Fonte: www.taquiprati.com.br Fonte:acervohistoricodoliroescolar.blogspot.com.br

Com base nesses manuais didáticos, é possível identificar o tratamento dado ao texto

imagético: é limitado a fotografias, ilustrações e desenho que servem de coadjuvantes no

processo de aprendizagem. As finalidades pedagógicas de se usar as ilustrações são:

Tornar mais atrativa e agradável o manual;

Dialogar com o título;

Ancorar o texto;

Servir de suporte para iniciar as unidades;

Visualizar o conteúdo;

Enfeitar a capa;

Prender a atenção do aluno;

Em função dessas finalidades, podemos reconhecer que

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A imagem inicial exibe uma relação de dependência do texto verbal, sem que se

estabeleça, no entanto, uma relação polissêmica entre a imagem e a linguagem (...).

Assim, os desenhos não parecem significar pelo seu valor simbólico: sua função

estaria limitada a prender a atenção de um leitor a quem não se credita mais a

possibilidade de engajamento contínuo, independente, na leitura do texto verbal.

(KLEIMAN, 2004, p.18)

O trabalho com a imagem na escola primária consistia, portanto, em uma produção de

sentido linear. A imagem como ornamento. O texto verbal – eficiente e relevante – para o

estudo lingüístico e o leitor, esvaziado de uma posição crítica, sem possibilidades de refletir

sobre o processo de significação da linguagem.

Assim, percebe-se a relevância que possui o texto verbal como modalidade

legitimadora na construção de estratégias de leitura. A escola, por sua vez, reduz o texto

imagético a um “co-partícipe da significação” (Kleiman, 2004).

As considerações sobre as condições de acesso à leitura, o uso pedagógico do texto

verbal e o valor atribuído ao texto imagético na década de 70 nos incitam a realizar alguns

questionamentos: em que medida hoje – com os avanços no campo de pesquisa sobre o

processo de leitura – o texto imagético tem seu lugar respeitado nas escolas brasileiras? Como

a escola o recebe? E qual seu papel na formação de leitores?

As histórias da leitura imagética na contemporaneidade têm muito a nos contar.

3.3.2 Crise na leitura: colapso ou revolução?

Tratar a questão da crise na leitura implica em refletir sobre como a sociedade do

conhecimento concebe a função social do ato de ler, como as escolas “ensinam” o processo de

leitura, quais as teorias que fundamentam as práticas pedagógicas do professor e como os

estudantes recepcionam as atividades desenvolvidas em sala de aula. Para isso, sirvo-me de

algumas falas pontuais dos professores que descrevem os conflitos estabelecidos quando se

pensa a leitura nos ambientes educativos da esfera pública.

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“Nossos alunos não querem nada. Na aula de português, peço para ler e ninguém quer.

Termino lendo para a turma.”

Se tem crise na leitura? E como tem. Todo ano o tema da crise é discutido na jornada

pedagógica. Mas sabe o que acontece durante o ano? Nada. As dificuldades continuam as

mesmas.”

“Lá vem essa coordenadora com as teorias de leitura. Não entendo por que estudá-las,

se na prática, a leitura fica aprisionada ao livro didático.”

“Confesso que não gosto de ler. Tomara que meus alunos nunca saibam disso!”

“A gestora escolar exige um projeto de leitura, mas não dá condição de trabalho. Falta

uma biblioteca equipada, não há uma sala de leitura, se ultrapasso a minha cota de xerox, não

posso solicitar mais textos. Sem falar na omissão dos colegas das outras áreas quando

afirmam que ensinar a ler é uma tarefa apenas do professor. Assim, fica difícil incentivar a

leitura.”

As falas aqui relatadas expressam as inquietações e ansiedades do professor quando o

assunto é o modo de produção de leitura nas escolas. A tão polêmica e discutida crise existe.

Ela está instalada nas escolas e traz em seu bojo a marca das contradições existentes nas

propostas pedagógicas das nossas escolas. Entre a escola real e a escola ideal existe um

descompasso visível a todos os segmentos que fazem parte do espaço escolar. A crise tem

como propósito trazer à tona a desarmonia e a problemática de qualquer setor ou instituição

social. Há quem defenda – e nessa posição existe uma carga ideológica – que a crise seja

apenas uma desordem momentânea, incapaz de prejudicar o planejamento da vida social

articulado, transparente e ordeiro. Chauí no seu livro Cultura de Democracia (o discurso

competente e outras falas (2011) acrescenta:

A noção de crise permite representar a sociedade como invadida por contradições e,

simultaneamente, tomá-las como um acidente, um desarranjo, pois a harmonia é

pressuposta como sendo de direito, reduzindo a crise a uma desordem fatual,

provocada por enganos, voluntários ou involuntários, dos agentes sociais, ou por

mau funcionamento de certas partes do todo. A crise serve, assim, para opor uma

ordem ideal a uma desordem real, na qual a norma ou a lei são contrariadas pelo

acontecimento, levando a dizer que a “conjuntura” põe em risco a “estrutura” ou,

então, que a estrutura é inadequada para absorver a novidade. (p.47)

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Na medida em que se trata da teorização da leitura no espaço escolar, a crise ratifica

que é a escola que não funciona como deveria. A própria comunidade escolar não sabe

operacionalizar com os métodos e projetos. Os órgãos educacionais entregam o “pacote

pronto” de como organizar e estruturar o fazer pedagógico das escolas e se há erros,

certamente quem responde é toda a comunidade escolar. Quem elabora as leis sempre acerta.

Quem executa conforme a legislação definida mantém o equilíbrio da conjuntura. Havendo

quebra, existem desestruturação e ineficiência do instituído como legal e de direito. A crise

diz que há o problema, mas ao mesmo tempo oculta a sua dimensão.

É, pois, fundamental dizer que a busca por culpados pela crise instituída e oficial não

equaciona o problema. Precisamos compreender as (im) possibilidades de tratar o processo de

leitura como prática libertadora e não como uma atividade de pura mecanização e automação

como se apresenta nas escolas brasileiras.

Menos ou mais sofisticados, os exercícios que sob o nome de interpretação,

compreensão ou entendimento do texto costumam suceder à leitura são,

quase sempre, exercícios que sugerem ao aluno que interpretar, compreender

ou entender um texto (...) é repetir o que o texto diz. O que é absolutamente

incorreto. (LAJOLO, 2002, p. 109)

Nesse momento, pode-se pôr em questão a forma como a escola trata a aprendizagem

da leitura e que tipo de leitor ela constrói. Para isso, é significativo refletir sobre as teorias da

leitura e analisar como cada uma percebe o uso do texto pelo leitor levando em consideração

que um dos motivos atribuídos ao fracasso da leitura nas escolas brasileiras é a pulverização

de diversas teorias simultaneamente, acarretando assim, numa superficialidade do processo de

ler e escrever.

Partindo do princípio da multiplicidade de pesquisas e teorias sobre leitura, cabe

salientar que para esse tópico foi feito uma delimitação com base no trabalho da professora

Mary A. Kato (1990) quando esboça os modelos de leitura, no seu livro No Mundo da Escrita,

uma perspectiva psicolingüística.

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MODELOS DE LEITURA

Concepção Estruturalista Leitura como um processo instantâneo de decodificação de

letras em sons, e a associação destes com o significado.

(p.62)

Processamento de dados

Supõe que cada tarefa cognitiva pode ser analisada em etapas

ordenadas, começando com um estímulo sensorial e

terminando com uma resposta.

É linear e indutivo. (p.62)

Leitura sem mediação

sonora

Leitura é uma atividade de reconhecimento e de

compreensão, e não como uma atividade que exige uma

recodificação sonora, que, por sua vez, levaria ao significado.

(p.64)

Análise pela síntese

Leitura ascendente, usado para designar o processo linear,

sintético e indutivo. Das letras e conjunto de letras até as

palavras e textos.

Leitura descendente, reservada para o processo não-linear,

analítico e dedutivo. Das palavras ou frases com sentido para

os elementos constituintes.

A leitura é composta de três processos: formação de

hipóteses, síntese de dados e confirmação/desconfirmação.

(p.65)

Múltiplas hipóteses A leitura é um processo que ocorre em vários níveis, cada um

dos quais formula hipóteses alternativas. (p.69)

Construtivista

A leitura é afetada pelo contexto lingüístico e informação

extratexto. Conhecimento de mundo dos leitores e

experiência do leitor são levados em conta. (p.69)

Reconstrutor A leitura seria um ato de reconstrução dos processos de

produção. Há uma interação do leitor com o próprio autor,

em que o texto apenas fornece as pegadas das intenções do

autor. (p.70)

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A partir dessas perspectivas teóricas sobre leitura que coexistiram nas décadas de 70 e

80 é possível reconhecer a medida dos conceitos de leitor, a função do texto e os

procedimentos mecânicos e artificiais que marcam o fenômeno da linguagem e como ainda

hoje, alguns desses modelos prevalecem nas aulas de português.

O viés de construção do papel do leitor mobiliza, diretamente, uma noção de

subserviência do leitor ao texto. Podemos denominar de leitor-servo, aquele que reconhece

apenas os elementos internos do texto e se submete a ele, sem voz e vez. O encontro com o

texto é condicionado ao estudo e descrição das formas lingüísticas do texto, desconsiderando

os aspectos histórico-sociais que perpassam as vivências do leitor e do autor. O que dá sentido

ao texto é o lingüístico.

Da concepção estruturalista até as múltiplas hipóteses, persiste o esvaziamento entre o

leitor e o texto. Na abordagem construtivista, o aspecto linguístico se mantém, mas o

conhecimento prévio do leitor aparece como diferencial. O texto faz sentido porque a visão de

mundo do leitor passou a ser valorizada. Sobre o modelo reconstrutor, ocorre a interação entre

o leitor e o autor. Nesse caso, o leitor busca a intencionalidade do autor.

No entanto, é preciso sinalizar que ainda há uma simulação da leitura. Entre “o que o

texto está dizendo” e “por que o escritor está dizendo o que o texto está dizendo” (Kato, 1990,

p.72) existe a marca de uma leitura conteudista, unilateral e explicada sob o olhar lingüístico.

Devido a isso, o processo de leitura silenciava o seu caráter ambíguo. Maria Cristina Leandro

Ferreira suscita a seguinte provocação:

Convém reconhecer que não se pode dizer tudo na língua. E este mecanismo de

indeterminação abre brechas para a ambigüidade (...). longe de encarar a

ambiguidade como uma “problema”, com um fato lingüístico “negativo”, ela deve

ser vista como um lugar de resistência, um lugar de diferença com o sistema e um

modo de se perceber o melhor sujeito que a produz e/ou a detecta). (2003, p. 207)

Vemos, então, que a partir da idéia de Ferreira (2003), de que a leitura é um espaço de

ambigüidades podemos – na cena escolar contemporânea – indagar como as nossas escolas

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concebem o ato de ler, como o professor media a relação entre leitor e texto, além do tipo de

leitor privilegiado nos ambientes educativos.

Para tanto, me aproprio das minhas experiências como professora de português para

transitar pelo espaço da escola pública – que conheço tão de perto – e mostrar as rotas da

leitura na sala do ensino fundamental de 9 (nove) anos (5ª a 8ª séries).

É muito comum nas reuniões de coordenação e nas trocas de experiências na escola,

ouvirmos o seguinte posicionamento: os alunos chegam na 5ª série sem nenhuma noção de

leitura e escrita. Não sabem ler e nem escrever. Na realidade, eles não foram alfabetizados. E

o que eu faço? Como vão acompanhar o planejamento?

Numa situação real como essa fica nítido o desespero do professor quanto aos meios

de aquisição da leitura por seus alunos. E também, denuncia a concepção de leitura que o

professor acredita e defende: a alfabetização. Se o aluno não chegou alfabetizado na 5ª série,

isso equivale dizer que ele não sabe ler? È iletrado? A sua vivência de leitura se dá apenas no

ambiente escolar? Pensemos sobre isso. Para responder a essas questões, Soares (1998, p.24)

esclarece:

Da mesma forma, a criança que ainda não se alfabetizou, mas já folheia

livros, finge lê-los, brinca de escrever, ouve histórias que lhe são lidas, está

rodeada de material escrito e percebe seu uso e função, essa criança é ainda

“analfabeta, porque não aprendeu a ler e a escrever, mas já penetrou no

mundo do letramento, já é, de certa forma, letrada. Esses exemplos

evidenciam a existência deste fenômeno a que temos chamado de letramento

e sua diferença deste outro fenômeno a que chamamos alfabetização, e

apontam a importância e necessidade de se partir, nos processos educativos

de ensino e aprendizagem da leitura e da escrita voltados seja para crianças,

seja para adultos, de uma clara concepção desses fenômenos e de suas

diferenças.

Assim, crianças, adolescentes e adultos antes de ingressarem na escola já possuem

conhecimentos prévios, experiências e histórias de vida com a leitura e a escrita. São letrados,

ou seja, nas suas atividades sociais utilizam múltiplas linguagens para se relacionar com o

outro. Bate-papo presencial ou virtual, filmes, músicas, danças, torpedos, facebook, whatsap,

instagram, grafites, etc são situações comunicativas que precedem o uso da língua

sistematizada nas escolas. Efetivamente, são práticas sociais de leitura e escrita.

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É importante assinalar que diversos fatores interferem nas condições de uso e

aprendizagem da leitura e escrita. Se a escola agrega grupos sociais distintos, de modo algum

podemos negar as tensões e conflitos sociais que transitam nos espaços escolares. Há alunos

sem as mínimas condições financeiras. A ida á escola garante uma merenda ou uma refeição

diária. Uma parcela enorme de pais de alunos não é “alfabetizada”. Não têm capital para

comprar livros, etc. Muitos alunos trabalham no turno oposto para ajudar a família. Enfim,

além desses problemas existem outras questões sociais que separa violentamente aqueles

reconhecidos como “alfabetizados” do grupo rotulado de “analfabeto”

Na escola, o aluno alfabetizado é aquele capaz de ler e escrever. Para isso, ele

necessita dominar as técnicas que envolvem o aprendizado dos sistemas fonológicos e

gráficos da língua. Aluno alfabetizado é aluno que decodifica a “ciência das letras”, de forma

automatizada. Desde 1980 – com a chegada do Letramento na Educação e Ciências

Línguísticas – o conceito de alfabetização sofre questionamentos. Pode-se alfabetizar sem

pensar no social, político, cultural, etc? Basta ser alfabetizado para sentir-se inserido na

sociedade, ter uma atuação cidadã? Nessa discussão, o aluno letrado é aquele que exercita o

Letramento como resultado da “ação de ensinar e aprender as práticas sociais de leitura e

escrita. O estado ou condição que adquire um grupo social ou um indivíduo como

consequência de ter-se apropriado da escrita e de suas práticas sociais.”, Soares (1998, p. 39).

Não se trata aqui, de desconsiderar ou anular o processo de alfabetizar, o que se coloca

em questão é o direcionamento dado ao ato de ler e escrever no processo de alfabetização.

Busca-se, nas práticas pedagógicas, não somente alfabetizar, mas “alfabetizar letrando” os

nossos estudantes. A viabilidade dessa proposta não é tarefa fácil. Exige-se que a comunidade

escolar oportunize um movimento de leitura e escrita em que a língua não seja asfixiada pela

aprendizagem oficial – mecanicista e pragmática – da nossa língua. Ler e escrever é ativar a

vida, as vivências. É se apropriar de modos alternativos de luta, de conquistas, de inserção

social.

Quando pensamos na reavaliação dos conceitos de analfabeto e letrado e o trabalho

com a linguagem segundo os pressupostos do letramento no espaço escolar (e também fora

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dele!) pretendemos que a língua seja considerada como potência simbólica, instrumento

imprescindível para ler sobre cultura, estrutura de poder, etc.

Socialmente e culturalmente, a pessoa letrada já não é a mesma que quando era

analfabeta ou iletrada, ela passa a ter uma outra condição social e cultural – não se

trata propriamente de mudar de nível ou de classe social, cultural mas de mudar seu

lugar social, seu modo de viver na sociedade, sua inserção na cultura – sua relação

com os outros, com o contexto, com os bens culturais torna-se diferente. (SOARES,

1998, 37)

Para isso, é preciso considerar que a nossa escola é um ambiente de contradição. A

língua que serve para incluir, também serve para excluir. Como fica o estudante que chega na

5ª serie sem saber ler e nem escrever?

Na prática escolar, o aluno é rotulado de analfabeto. Desconsidera-se que antes de

entrar na escola, ele já sabia ler seu mundo, sua família, sua vizinhança, seu bairro, sua

comunidade local, etc. Suas experiências de vida e seus conhecimentos prévios são

descartados. O trabalho com a língua se limita a identificar os alunos com problemas, indicá-

los para a coordenação pedagógica, solicitar um projeto de leitura e escrita no turno oposto de

aula, etc.

Em sala, as atividades escolares colocam todos num mesmo nível de aprendizagem,

apresentando como parâmetro aqueles que leem com “fluência” (a dita leitura corrida, sem

soletrar!), os que “dominam” o sistema ortográfico, aqueles em que a escrita chega mais

perto da língua culta. Nisso, o papel do professor de português é um ponto chave para a

relação entre aluno, língua, texto, leitura e escrita. Ao mesmo tempo em que pode aproximar o

aluno de uma experiência viva, dinâmica e significativa com a linguagem, o professor pode

afastá-lo, ao usar uma língua “autorizada” e dá ênfase apenas ao ensino tradicional da

gramática.

Além disso, é na sala de aula – num ambiente de educação – em que se firmam as

dicotomias, geradoras de exclusão, etc. Quem sabe ler e escrever terá um futuro brilhante.

Aluno analfabeto não conseguirá ascensão social. A vida é dos mais fortes, inteligentes e

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competitivos. Se não sabe escrever o nome, nem tão pouco escrever um bilhete, não terá

acesso aos bens culturais. E assim, tais condutas ainda prevalecem na escola. A leitura do

estudante é o tempo todo julgada pelo professor. Ele lê o texto que é autorizado pelo

professor, o livro didático dita os gêneros textuais mais privilegiados, faz atividade avaliativa

para provar que sabe ler, recebe roteiro de leitura para “compreender” os romances

considerados clássicos da literatura, etc. Nesse sentido, institui-se a didatização da leitura.

Antes de entrar na escola, os nossos estudantes têm experiências de leitura e escrita. Após a

sua entrada na escola, ele conhece outra língua: a sistematizada, a oficial, a culta.

Quanto à relação aluno-leitor-texto, ainda prevalece outra realidade: a escola define os

gêneros textuais a serem trabalhadas nos programas das disciplinas, desconsiderando as

preferências de leitura dos alunos. Durante a escolha, não é levada em consideração as

diferentes linguagens que o estudante tem acesso, sobretudo quando se fala nas tecnologias da

informação e comunicação. A escola passou a disputar com os textos eletrônicos e\ou

multimodais – aqueles que mesclam aspectos visuais, escritos e sonoros – com o intuito de

fazer prevalecer à hegemonia do texto verbal.

É muito freqüente nas aulas de português (e nas outras também) o desespero do

professor em ter que lidar com os celulares tocando insistentemente, os fones de ouvido

tomando conta da aula, os alunos desatentos e sem motivação alguma para ler o texto

selecionado pela professora. Quase sempre, o professor faz uso do texto eletrônico, mas só

para registrar os pontos negativos. No cotidiano escolar, não consegue tratar esses

dispositivos eletrônicos como aliados na experiência com a linguagem na sala de aula.

Diante do fato da presença marcante dos textos eletrônicos na vida social dos nossos

estudantes, a comunidade escolar num todo, sofre com a insatisfação dos alunos frente ao

trabalho pedagógico na sala de aula. O “muro das lamentações” caracteriza bem essa situação:

de um lado os professores agonizando com o desinteresse dos alunos e do outro lado, os

alunos que sofrem com uma escola que desvaloriza seus gostos de leitura.

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Quando atentamos para essas questões e problematizamos as condições de produção

da leitura e da escrita na escola pública brasileira, reconhecemos que a crise efetivamente

existe. “A crise serve para ocultar a crise verdadeira” (CHAUÍ, 2011, p. 48) e nesse processo

de mascaramento, as “autoridades da educação” justificam os obstáculos na aprendizagem por

conta da crise. Não querem desestabilizar os seus projetos. Nem pensar em oficializar que

algo vai errado. Que as contradições e os conflitos não existem. Querem manter a “harmonia”

no processo de aprendizagem. Por isso, são os primeiros a propagar a existência e efeitos da

crise na educação que atinge a todos, sem distinção. Gestor, coordenadores, supervisores,

professore, alunos, etc. Todos são afetados pela crise.

E na crise, todos procuram uma salvação. Mas quem salvará a todos da crise? Existe

uma cura milagrosa para a crise? Precisamos de heróis e heroínas para assegurar o direito

legal de experimentar o exercício de ler e escrever com liberdade e autonomia?

Mas, o que de fato, a crise proporciona? O que podemos extrair dela? É possível falar

das deficiências encontradas nas práticas de leitura e ao mesmo tempo, mobilizar

ações\alternativas na (re) construção de um percurso para a leitura em sala de aula?

É na prática pedagógica que encontramos os caminhos para driblar a crise. Na escola

– espaço de construções de linguagem – é que iremos significar o nosso papel perante a vida:

se para a submissão ou se para uma posição libertária.

3.3.3 O uso das tiras em quadrinhos no Ensino Fundamental de 09 anos: remédio para

todos os males?

“Entrar em uma banca de jornal e revistas para comprar um gibi é,

ainda, no século XXI, comportamento de leitores assíduos ou

eventuais de histórias em quadrinhos. Esse hábito de consumo,

contudo, só teve início em meados do século passado. Desde seu

surgimento, as HQs passaram por mudanças quanto à sua forma de

publicação e distribuição, em relação a seu público e também à

linguagem utilizada pelos artistas e compreendida pelo leitor.”

(Roberto Elísio dos Santos)

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O gênero tira em quadrinhos faz parte do ambiente escolar contemporâneo. A LDB

(Leis de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), os PCN`s (Parâmetros Curriculares

Nacionais), O PNBE (Plano Nacional Biblioteca da Escola) oficializaram o uso da linguagem

dos quadrinhos como recurso pedagógico nas diversas áreas do conhecimento.É importante

ressaltar que essa aceitação dos quadrinhos como prática pedagógica não ocorreu de uma hora

pra outra; pelo contrário, levou um tempo considerável para que as narrativas quadrinizadas

ocupassem um “status” diferente no século XXI tanto no Brasil como em outros países.

Por muito tempo, os quadrinhos foram estigmatizados por ser um produto fruto da

indústria cultural que tem como propósito fundamental a comercialização das edições e

publicações. Além desse aspecto, as imagens gráficas sofreram profundas críticas dos

intelectuais, pais, professores e demais segmentos sociais que olhavam com descrédito para a

leitura desse meio de comunicação de massa.

De restrições, olhar de desconfiança, preconceitos e vigilância severa, a leitura dos

quadrinhos era considerada como uma “má leitura”. Ler quadrinhos era “coisa de criança”.

Causava preguiça mental e em virtude disso, as crianças e adolescentes teriam seu

desenvolvimento intelectual comprometido com os conteúdos insignificantes trazidos pelos

quadrinhos.

De fato, um acontecimento histórico que marcou a “imagem” dos quadrinhos foi em

1954 quando o escritor alemão Fredric Wertham radicado nos Estados Unidos lançou o livro

A Sedução dos Inocentes. Nessa obra, o autor defendia que a história em quadrinhos do

Batman estimulava a prática do homossexualismo entre o jovem norte- americanos. A relação

entre Batman e Robin indicava que entre os dois havia um desejo de viverem juntos. Era o

sonho de ser homossexual se realizando.

Com isso, o escritor também psiquiatra Frederic Wertham conseguiu propagar as suas

idéias nos Estados Unidos e em outros países do mundo. Se a criança ou adolescente lesse

uma HQs certamente imitariam as ações dos heróis. O livro fez bastante sucesso e atingiu

fortemente a produção e publicação dos quadrinhos que passaram a ser vistos como uma

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grande ameaça para o público leitor. Ler quadrinhos era muito perigoso, pois criava crianças e

adolescentes desajustados e com sérios desvios de comportamento.

A tese defendida pelo escritor nasceu do atendimento aos jovens considerados

problemáticos que demonstravam anomalia comportamental. Dessa forma, ele deduziu que as

HQs de suspense e terror lidas por esses jovens seriam o motivo para tanto malefícios.

Dos anos 50 a meados da década de 70, nos Estados Unidos e na Europa, os

quadrinhos ganham novo impulso e passam a ser utilizados em campanhas educativas,

manuais para treinamento de tropas dos soldados americanos, suporte para tornar mais lúdica

os assuntos escolares, transmissão de informações escolares, atingindo um numeroso público.

Mesmo com as novas abordagens dada aos quadrinhos, ainda não o reconheciam como uma

publicação com fins didáticos. Assim, os quadrinhos associados apenas ao entretenimento

passam a ser questionado e outras possibilidades de uso dessa ferramenta de comunicação

ganha força.

No Brasil, em 12 de abril de 1939 era lançada a revista Gibi, publicação que fez muito

sucesso na época. A popularidade alcançada fez com que o título da revista passasse a ser

sinônimo de HQs no cenário brasileiro há várias décadas e até hoje, os leitores continuam

utilizando o termo Gibi para se referir unicamente às histórias em quadrinhos, mas quando se

fala em tiras cômicas, o termo não procede. Vejamos as capas do Gibi:

Fig: 40. Capa do Gibi# 1 de 12 de abril de 1939, 32 páginas e formato 21x28 cm

Fonte: Gibi, a revista sinônimo de quadrinhos,2010

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Fig: 41. Gibi, serviçal indiano, provável fonte do título da revista

Fonte: Gibi, a revista sinônimo de quadrinhos,2010

Fig: 42. Capa do Gibi# 34, que iniciou a nova periodicidade da revista

Fonte: Gibi, a revista sinônimo de quadrinhos,2010

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Fig: 43. Capa do último número do Gibi Semanal.

Fonte: Gibi, a revista sinônimo de quadrinhos,2010

Quanto à representação do título Gibi, houve também um olhar preconceituoso no que

diz respeito ao significado da palavra. Nos dicionários, o significado do termo corresponde à

negrinho e moleque. Por conta disso, associou-se a leitura de gibis à idéia de vadiagem. Quem

ler HQs não tem nada pra fazer, é um desocupado, um irresponsável. “Antes do surgimento

da revista, a palavra gibi era empregada para designar menino negro, e o personagem-símbolo

que aparece ao lado esquerdo do título nas capas dos primeiros números deixa explícito esse

significado (CHINEN, 2010, p.39).

Assim, essas interpretações revelam o efeito negativo e perigoso da leitura de gibi. “O

leitor de HQs seria impedido de ter contato com a chamada “boa leitura”, aquela que

proporciona uma aprendizagem de qualidade, eficiente e responsável.

Nota-se hoje, com o avanço das diversas estratégias de leitura em sala de aula, uma

permanência do olhar de desconfiança com os gêneros dos quadrinhos. A presença desses

gêneros na escola é uma realidade, mas a forma como são apresentados ao público leitor ainda

carrega as marcas e os rótulos de uma leitura que gera ociosidade, entretenimento sem

nenhum ganho significativo para quem ler. Luyten elucida a importância dos quadrinhos:

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Quantas vezes todos nós já levamos bronca dos pais, sendo pegos “ em

flagra” com uma revista de quadrinhos não mão e eles diziam: Larga esse

gibi! Não tem coisa melhor para ler?”. Preconceitos como esse ainda existem,

mas estão ficando menos freqüentes. Hoje, a grande maioria das pessoas já

está conscientizada da enorme importância que têm as histórias em

quadrinhos. Tanto na área da educação como nas de lazer e, até, nos campos

da propaganda comercial e política. Em todas as páreas temos, portanto, a

possibilidade de encontrar os quadrinhos. O que importa, porém, é de onde

vêm essas histórias e quem as escreve, pois elas são excelente veículo de

mensagens ideológicas e de crítica social, explícita ou implicitamente.(1993,

p. 7)

Com relação à leitura das tiras em quadrinhos – surgiram primeiro do que as histórias

em quadrinhos – o quadro não é diferente. Nem sempre foram vistas com “bons olhos”. Desde

o seu surgimento no final do século XIX nos Estados Unidos – nossas produções

quadrinísticas receberam influências da indústria cultural americana – até a cena atual

contemporânea, as tiras passaram por enormes transformações no campo da diagramação,

editorial, publicação e teor de conteúdo, organização composicional, estilo de linguagem, o

fazer gráfico e, sobretudo, o reconhecimento dos quadrinistas brasileiros. Vejamos as duas

tiras em quadrinhos a seguir que visualizam bem o processo de evolução do trabalho gráfico

dos quadrinhos.A primeira de Ângelo Agostini, italiano radicado no Brasil, o pioneiro das

histórias ilustradas no Brasil e a segunda de Antonio Cedraz.

Do processo de litografia – Agostini desenhava a lápis em papel vegetal e decalcava

suas ilustrações em cima de uma pedra, jogava-se ácido criando uma chapa de metal que

imprimia o desenho – até o cenário de criação das tiras em quadrinhos na contemporaneidade,

o avanço na área de diagramação e produção editorial evoluiu significativamente. Hoje o

trabalho com as tiras em quadrinhos se reorganiza pela lógica da divisão de tarefas com uma

equipe composta por editor, diagramador, desenhista, roteirista, colorista e letrista. Em ambos

os trabalhos, a marca da sátira social e crítica aos comportamentos do indivíduo em sociedade

se mantêm.

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Fig: 44. “As aventuras de Nhô Quim, de Angelo Agostini, iniciada em 30 de janeiro de 1869.

Fonte: Fonte: Gibi, a revista sinônimo de quadrinhos, 2010.

Fig: 45.

Fonte: www.turmado xaxado.com.br

Das páginas dominicais no final do século XIX às revistas de grande circulação no

mundo e internet, o gênero tiras em quadrinhos passou por mudanças significativas, preservou

o aspecto cômico através de desenhos satíricos e personagens caricaturais e diversificou

também as suas temáticas sociais com diferentes atribuições de sentido que foram lidas de

acordo com a dinâmica sócio-cultural da época, a acepção de leitura, o perfil do leitor e o

valor da tiras em quadrinhos como forma de leitura.

A questão que se coloca nesse momento é a de refletir sobre como operacionalizar um

novo modo de produção da leitura das tiras em quadrinhos na escola brasileira. É preciso

saber como e de que maneira a linguagem das tiras em quadrinhos é recepcionada nas salas de

aula das escolas públicas do ensino fundamental. Vergueiro no livro Como usar as histórias

em quadrinhos na sala de aula, sinaliza como cada modalidade escolar – da pré-escola até o

ensino médio deve recepcionar os quadrinhos. Assim, no ensino fundamental de 9 anos:

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Os alunos se integram mais à sociedade que os rodeia, sendo capazes de distinguir

os níveis local, regional, nacional e internacional, relacioná-los entre si e adquirir a

consciência de estar em um mundo muito mais amplo do que as fronteiras entre sua

casa e a escola. O processo de socialização se amplia, com a inserção em grupos de

interesse e a diferenciação entre os sexos. Têm a capacidade de identificar detalhes

das obras de quadrinhos e conseguem fazer correlações entre eles e sua realidade

social. As produções próprias incorporam a sensação de profundidade, a

superposição de elementos e a linha do horizonte, fruto de sua familiaridade com a

linguagem dos quadrinhos. (2009, p. 28)

Nessa afirmação, é preciso considerar uma questão fundamental: os alunos têm a

capacidade de correlacionar as obras de quadrinhos e sua realidade social. Analisando sob o

viés da leitura que se concentra apenas em “alfabetizar” o sujeito-leitor na linguagem dos

quadrinhos – um método puramente didático – nos defrontamos com o ato de ler desvinculado

da relação entre a linguagem e a história social. Se a estrutura organizacional das imagens

gráficas conduz o percurso do ato de ler e escrever, a realidade social não é problematizada.

Com isso, o sujeito-leitor não correlaciona o texto com o processo de significação que

envolve a cultura, a história, o social e a linguagem. E a forma como os textos são trabalhados

na escola oferece essa possibilidade de questionar a vida social? Pode a leitura desenvolver-se

no movimento interdisciplinar?

De modo generalizado, a forma de organização do conhecimento na escola se dá de

maneira estanque, fragmentado e compartimentado em disciplinas. Cada professor – quase

sempre especialista em sua área – quer dissecar o conteúdo definido pelo programa curricular

e na lida diária escolar, experimenta um pseudo-contato com uma proposta de ensino

direcionada para uma metodologia interdisciplinar.

Devido à superficialidade como é desenvolvida nos ambientes escolares, a ação

interdisciplinar está muito distante das práticas pedagógicas que circulam nas salas de aula da

Educação Básica. Especificamente no ensino fundamental II, ensino de 09 anos, o que se

percebe são professores engaiolados, presos a um sistema de ensino que categoriza o saber e o

enquadra a uma fixidez e confronte das disciplinas.

Desde o final da década de 60 que a proposta de se trabalhar com o movimento de

interdisciplinaridade ecoou e invadiu – ainda de maneira distorcida e banalizada – os espaços

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escolares num esforço de desembaraçar o tecido epistemológico da disciplinaridade que tanto

divide o conhecimento em partes, individualizando acima de tudo, o comportamento de todos

os envolvidos na construção do saber em sala de aula e das ações pedagógicas desenvolvidas

pela comunidade local.

Quando pensamos no cotidiano escolar, imediatamente nos remetemos às trocas de

experiências entre professores e professores, professores e alunos e aluno-professor e, por

conseguinte, o que determina a superficialidade do fazer interdisciplinar nos encontros da

Educação Básica.

Considerando-se a posição do professor, pode-se afirmar que não somente a produção

do conhecimento é vista como algo isolado e distante do processo de aprendizagem,como op a

própria identidade do professor também absorve essas qualificações. Se no ambiente escolar,

o professor deveria fortalecer o diálogo entre os colegas e partilhar inquietações, angústias,

sonhos, etc, na realidade “nua e crua” da escola, o professor se vê cada vez mais fechado,

individualista, preocupado com as dificuldades pedagógicas e absorto em planejar a sua

disciplina, organizar a seleção e distribuição dos conteúdos programáticos por unidades,

elaborar atividades avaliativas, etc. Enfim, quase sempre não sobra tempo para olhar, perceber

o outro colega de trabalho, escutar, compartilhar, dividir os anseios, etc. O resultado é a

formação de professores silenciados. Emudecidos de si e do outro. Distantes do outro, do

desejo de mudar, de reinventar a sua prática, de sentir que é possível – mesmo dentro de uma

rede de fragilidades – interagir e cooperar na construção de relações mais justas, democráticas

e solidárias.

Na relação professor-aluno, o quadro se agrava. É cena comum nas escolas

brasileiras, o desgaste das relações entre docentes e discentes. O professor reclama da

indisciplina, do desrespeito e das posturas agressivas dos alunos. Presencia-se, assim, aquele

velho jogo da culpabilidade. Preparo aulas motivadoras. Trabalho com os textos que eles

gostam, abro espaço para discussão sobre os problemas da juventude, planejo pensando neles,

faço de tudo para ser um bom professor, mas os alunos não “querem nada”. Eles não gostam

da escola, dos professores, das aulas, enfim, eles nem sabem por que estão na escola.

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Esse tipo de posicionamento do professor – de colocar a culpa no outro – também se

dá entre os alunos. Poxa, que aula chata! O professor nunca traz um texto interessante. Só usa

o que tem no livro didático. Nas aulas, só faço copiar, copiar, copiar. Por que o professor acha

que só ele manda? E nós, alunos, não podemos sugerir? Ah, se eu fosse professor... daria uma

aula bem “maneira”.

Professores e alunos: todos no mesmo barco. O barco da educação. O ponto crucial é

se esse barco está naufragando ou à deriva? Quem defende e acredita na educação opta por

estar à deriva. È melhor não ter um rumo certo e buscar novas rotas e desvios a desejar o

fracasso dos atos de educar, ler, criar, etc.

O questionamento sobre como se configura hoje as relações interpessoais e

intrapessoais na escola, oferece novas possibilidades para as considerações sobre como a

interdisciplinaridade pode acontecer apesar das tensões que marcam a vida escolar seja no

campo das subjetividades seja no pedagógico.

Ivani Fazenda nos convida a refletir sobre o que é interdisciplinaridade:

A interdisciplinaridade não é categoria de conhecimento, mas de

ação. A interdisciplinaridade nos conduz a um exercício de

conhecimento: o perguntar e o duvidar.

Interdisciplinaridade é arte do tecido que nunca deixa ocorrer o

divórcio entre seus elementos, entretanto, de um tecido bem

trançado e flexível. A interdisciplinaridade se desenvolve a partir do

desenvolvimento das próprias disciplinas. (1994, p. 29)

Na prática docente, esses aspectos ainda não são compreendidos e sua aplicabilidade

distante do que se deseja. Nas jornadas pedagógicas um eixo temático é selecionado para ser

trabalhado durante todo o no ano letivo – já vem pronto da secretaria ou departamento de

Educação – e levado às escolas sem que as especificidades de cada unidade de ensino sejam

analisadas. No primeiro encontro com as coordenadoras, é sugerido que os professores

formem grupos por disciplina e montem um projeto interdisciplinar. O eixo temático passa a

ser discutido e ao final da atividade, cada grupo expõe como cada disciplina trabalhará ,

indicando os textos a serem lidos, a metodologia, os recursos e critérios de avaliação,

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definidos com base na duração das unidades (calendário construído também pelos dirigentes

da educação, sem a presença e acompanhamento dos docentes). Nesse campo de análise,

quase sempre quando ocorre divergência, é motivo para as “guerras de ego” e disputa de

quem sabe mais ou quem sabe menos, sem contar também com a valorização de algumas

disciplinas em detrimento de outras. É assim que a interdisciplinaridade se presentifica nas

escolas.

Com base nessas condições, identificamos os seguintes pontos: o tema norteador (o

todo) é dividido por disciplinas sem que exista uma problematização inicial, seguida de um

diálogo entre os conhecimentos, os alunos só conhecem a proposta depois de elaborada, sem

ter um espaço oportunizado para concordar, negar, sugerir ou ampliar o que foi estabelecido e

no saber fragmentado das disciplinas, o movimento interdisciplinar perde força e fôlego, ou

melhor, é sucumbido pelo saber unificado e também pelo medo do professor de abandonar a

zona de conforto (foi treinado a ensinar em disciplina!) e aventurar-se no compartilhamento

do conhecimento que é linguagem, é coletivo, pertence a todos.

É indiscutível que não podemos escamotear os problemas que atingem as práticas

pedagógicas nos ambientes escolares, sobretudo, porque é na discussão e análise desses

entraves que professores e alunos são desafiados a pôr em relação os conhecimentos e a

atividade de ler – enquanto prática discursiva – trabalhada sob o viés da interdisciplinaridade

nos mostra que “a leitura não é aceitação passiva, mas é construção ativa; é no processo de

interação desencadeado pela leitura que o texto se constitui” (SOARES, 2001, p.26). A leitura

e o texto são linguagens compartilhadas em todas as áreas do conhecimento.

É neste sentido que pensamos a prática de leitura das tiras em quarinhos no ensino

fundamental de 09 anos: sob o fazer interdisciplinar, pois “a compreensão de uma imagem

requer uma comunidade de experiência” (Will Eisner, 1989, p.3)

Há, assim, de se valorizar as múltiplas experiências que constituem o fazer narrativo

das tiras em quadrinhos. Todas as pessoas que vivem e articulam a prática da linguagem dos

quadrinhos – narrativa plural e multifacetada – nos ambientes educativos têm uma enorme

responsabilidade diante de como o texto imagético é tecido na comunidade escolar. Vergueiro

em Como usar as histórias em quadrinhos na sala de aula assim se posiciona: “a alfabetização

na linguagem específica dos quadrinhos é indispensável para que o aluno decodifique as

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múltiplas mensagens neles presentes e, também, para que o professor obtenha resultados em

sua utilização” (2009, p. 31).

Para desmistificar essa proposição, existem situações em sala de aula que mostram

outros caminhos na relação com os quadrinhos. Muitos alunos não dominam a “gramática”

dos quadrinhos e escrevem (produzem!) narrativas gráficas com propriedade. Outros

conhecem como fazer, dominam os recursos gráficos e não conseguem articular o enredo

seqüenciado da história. Alguns professores não dominam os mecanismos de composição dos

quadrinhos, contudo desafiam os alunos a pensar sobre o uso e prática social, no caso, das

tiras em quadrinhos. Há professores que sabem teorizar sobre o fazer quadrinhos e se

esquivam de proporcionar aos alunos, um encontro com uma leitura que vá além da repetição

mnemônica e formal dos quadrinhos.

Aqueles que priorizam, na leitura dos quadrinhos, apenas a dimensão estrutural

esquecem que o gênero tiras em quadrinhos não se limita apenas aos seus recursos gráficos. O

fato do professor e do aluno aprender e estar familiarizados com os principais recursos dos

quadrinhos não é garantia de leitura uma desviante, aquela na qual os sentidos

homogeneizados são desconstruídos e construídos em novas rotas de significação. Penso que

o próprio Vergueiro defende uma leitura dos quadrinhos numa perspectiva do alfabetizar

letrando e isso é evidenciado quando ele sugere propostas interdisciplinares como alternativas

para trabalhar o texto imagético nos processos educativos de ensino e aprendizagem visando

estabelecer interrelações com as comunidades do saber: o português, a historia, a geografia, a

ciência, artes, etc e os quadrinhos como prática discursiva e social de leitura. Scott Mccloud

no seu livro Desvendando os quadrinhos nos mostra como o leitor é convidado a descobrir as

pistas de sentido que os quadrinhos proporcionam.

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Fig:46

Fonte: Scott Mccloud, 2005, p.86

A leitura das tiras em quadrinhos, do ponto de vista da descoberta de “pistas” dotadas

de sentidos plurais, é o que um projeto interdisciplinar almeja. A partir de uma situação-

problema comum a todas as disciplinas, o sujeito-leitor-aluno é provocado a construir redes

de conexões entre os conhecimentos e problematizar os sentidos multirreferenciais que cada

disciplina oferece como trilhas para o leitor de quadrinhos. Nessa busca, o conhecimento é de

todos. Professores e alunos, comunidade escolar, enfim, o espaço da escola se abrindo para a

construção coletiva do saber. Ivani Fazenda levanta alguns questionamentos importantes na

capacitação de docentes para o trabalho com projeto interdisciplinar. São eles:

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Como efetivar o processo de engajamento do educador num trabalho

interdisciplinar, mesmo que sua formação tenha sido fragmentada.

Como favorecer condições para que o educador compreenda como ocorre a

aprendizagem do aluno, mesmo que ele ainda não tenha tido tempo para

observar como ocorre sua própria aprendizagem.

Como propiciar formas de instauração do diálogo, mesmo que o educador

não tenha sido preparado para isso.

Como iniciar a busca de uma transformação social, mesmo que o educador

apenas tenha iniciado seu processo de transformação pessoal.

Como propiciar condições para troca com outras disciplinas, mesmo que o

educador não tenha adquirido o domínio da sua. (1994, p, 50)

Com base nesses questionamentos, percebemos que não é fácil construir um projeto

interdisciplinar de qualquer maneira ou que as ações nas escolas ocorrem como um passe de

mágicas. Pensar sobre a interdisciplinaridade requer mudanças substanciais na prática

pedagógica do professor.

O professor sai da universidade ainda experimentando o saber na perspectiva de

disciplina e frequentemente considera a sua formação acadêmica insuficiente para o exercício

em sala de aula. Por um lado, não encontra saída para as dificuldades de aprendizagem do

aluno e por outro, se culpa por não resolvê-las. No cotidiano escolar tão fragmentado, o

professor nem sempre reavalia a sua práxis nem tão pouco admite que também enfrenta

problemas para aprender. O professor exige o desenvolvimento das competências e

habilidades dos alunos na sua disciplina e quase sempre, ele não as possui. Exige-se que o

aluno leia, desenvolva o hábito da leitura, mas o professor também é um leitor “competente”?

Na vivência desses percalços, o desejo de solidificar o diálogo nas relações se vê

sufocado diante de tantas demandas. Como desmontar a disciplinaridade do conhecimento se

não for a partir de uma constituição dialógica do fazer pedagógico? È preciso quebrar o

silêncio fincado em nossas relações pessoais e na hierarquização do saber. Sair da construção

individual do saber para uma posição compartilhada requer transformação no âmbito pessoal

e social.

A próxima tira em quadrinhos dá algumas pistas sobre o movimento de

interdisciplinaridade e de outro processo também significativo para a leitura do texto

imagético: a intertextualidade:

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Fig:47

Fonte: www.turmadoxaxado.com.br

Do ponto de vista do trabalho com o movimento interdisciplinar, as “pistas” textuais

não são visibilizadas apenas por uma disciplina como se ela fosse à única capaz de explicar o

saber problematizado, mas sob o olhar de todas as disciplinas articuladas a partir de um

mesmo tecido de investigação. No âmbito da escola, o objeto problematizado – analisado e

definido coletivamente – percorre os pontos de encontros entre as disciplinas. Neste caso, há

uma abertura para os múltiplos saberes e suas variadas direções.

No entanto, para que de fato essa ação interdisciplinar aconteça é fundamental que o lugar

social e histórico dos envolvidos no processo de leitura seja considerado além de como o texto

é reconhecido pelos professores e alunos. Calvino destaca:

Há o texto multíplice, que substitui a unicidade de um eu pensante pela

multiplicidade de sujeitos, vozes, olhares sobre o mundo. Há a obra que, no

anseio de conter todo o possível, não consegue dar a si mesma uma forma

nem desenhar seus contornos, permanecendo inconclusa por vocação

constitucional. (1990, p.132).

Na leitura dessa tira em quadrinhos, o ponto inicial é apresentá-la como um texto

multíplice. Com base no levantamento da situação problema – o abandono da região e do

sertanejo, por exemplo – a disciplina de Português, História, Geografia, Artes, Ciências,

Matemática, etc suscitam os debates envolvendo as questões socio-polìtico-culturais e

alternativas para exercitar o professor - pesquisador e aluno - pesquisador que existe em cada

sala de aula do nosso país.

Por outro lado, se a tira em quadrinhos fosse estudada pela perspectiva do texto

totalizante, não haveria a leitura do “impossível”, do inusitado, do diferente. Todas as

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informações possíveis são apresentadas, mantendo a unilateralidade textual. Com isso, o texto

se fecha na sua estrutura organizacional, sem abrir “pistas” para quem ler.

Na construção de sentido dessa tira em quadrinhos, o quadrinista Antonio Cedraz

recorreu a intertextualidade como elemento constituinte da narrativa gráfica. A

intertextualidade pode ser estudada a partir de duas perspectivas como esclarece Tiphaine

Samoyault: a” intertextualidade permite uma reflexão sobre o texto colocado assim numa

dupla perspectiva: relacional ( intercâmbio entre textos) e transformacional (modificação

recíproca dos textos que se encontram nesta relação de troca”. (1991, p.67).

No aspecto relacional, encontramos um diálogo entre a história quadrinizada e o conto

clássico da literatura infanto-juvenil João e Maria, dos irmãos Grimm. A linguagem híbrida

dos quadrinhos – imagem e texto – faz uma reconte das aventuras dos irmaõs perdidos na

floresta. Aqui, já temos a interação entre o quadrinista, o leitor e os gêneros envolvidos.

No que tange à perspectiva transformacional, Cedraz recontou a narrativa adaptando

os elementos literários à realidade social do sertão nordestino: caatinga, tapioca,graúnas,

cangaceira,rapadura, etc. A permuta se dá também quando a figura do contador de história

surge no papel de Marieta, a mulher que conta histórias para homens, no caso para Xaxado e

Zé Pequeno. Essa possibilidade mostra a reciprocidade entre os gêneros textuais. Quadrinhos

dialogando com a Literatura. Literatura dialogando com as imagens. Ambos os gêneros

subvertendo os esteréotipos e as representações socias trazendo para a sala de aula reflexões

obre o modelo de família, a omissão e abandono dos país, o mal , a punição e o temor nas

relações sociais, os problemas existenciais que afligem o ser humano, etc.

Na última vinheta, quando Marieta pensa: “não é fácil adaptar contos de fadas para

esses dois”, a sua declaração nos reporta ao papel do professor na mediação da leitura das

tiras em quadrinhos em sala de aula. Para que o aluno perceba a dialogicidade entre os

gêneros é necessário que a atividade de leitura intertextual seja uma prática vivenciada nos

encontros não somente nas aulas de português, mas nas outras áreas. Para legitimar essa ação

metodológica, a escola deve se abrir para a pluralidade de textos e de leitores que a dinâmica

contemporânea oferece e evitar com isso o descrédito atribuído a alguns gêneros e a

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valorização exarcebada de outros. Os texto verbais, imagéticos e eletrônicos trabalhados de

maneira intertextual compõem um mosaico de leituras ativas, transformadoras e

potencialmente caregadas de multiplos olhares sobre o mundo, a vida, a linguagem,etc.

Nessas condições, a intertextualidade como elemento dinâmico na construção de

sentido é uma forte aliada no exercício de uma leitura interdisciplinar. De acordo com essa

perspectiva, a comunidade escolar nas figuras da gestora, supervisora, coordenadora,

professores, alunos, pais, bibliotecário e demais funcionários têm a oportunidade de

vivenciarem uma nova construção do saber, alicerçada na troca de experiências, na qual todos

colaboram, apoiam e participam no processo de leitura(s), pois a escola é um local de agregar

leituras,plurais, heterogêneas, multirrerefenciais,etc

A construção de uma didática interdisciplinar baseia-se na possibilidade da

efetiivação de trocas intersubjetivas. Nesse sentido, o papel e a postura do

profissional de ensino que procure promover qualquer tipo de intervenção junto aos

professores, tendo em vista a construção de uma didática trsnformadora ou

interdisciplinar, deverão promover essa possibilidade de trocas, estimular o

autoconhecimento sobre a prática de cada um e contribuir para a ampliação da

leitura de aspectos não desvendados das práticas cotidianas. (FAZENDA, 2002,

p.79)

É, assim, possível no ambiente escolar e fora dele( lemos também em outros locais,

diariamente!) transitar por outras ordens textuais e nesse novo trânsito, o gênero tira em

qaudrinhos é uma potente formação discursiva aberta a todos que queiram navegar na sua

leitura.

Scott Mccloud (2005, p.197) afirma que compreender os quadrinhos é um negócio

sério e que está tão próximo de nós quanto uma caneta, papel e lápis. Os gêneros dos

quadrinhos proporcionam aos interlocutores uma leitura que ganha corpo e significação sob o

viés do olhar desviante, aquele vai além do que é dito. O leitor não se coloque como servo da

imagem, mas opera uma nova relação com o ato de ler em que o leitor esteja presente e

criticamente perceba a multiplicidade de histórias e vozes que ressoam nas narrativas

quadrinizadas.

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Fig:48

Fonte: Scott Mccloud, Desvendando os quadrinhos, 2005

Os quadrinhos dão as boas-vindas não somente a qualquer criador, mas principalmente

ao todos os segmentos que participam da gestão escolar e principalmente ao sujeito-leitor-

aluno, quase sempre colocado à margem do processo de leitura.

Por fim, Vergueiro sugere uma reflexão sobre a prática de leitura dos quadrinhos nas

escolas:

Os quadrinhos não podem ser vistos pela escola como uma espécie de panacéia que

atende a todo e qualquer objetivo educacional, como se eles possuíssem alguma

característica mágica capaz de transformar pedra em ouro. Pelo contrário, deve-se

buscar a integração dos quadrinhos a outras produções da indústria editorial,

televisiva, radiofônica, cinematográfica etc., tratando todos como formas

complementares e não como inimigas ou adversárias na atenção dos estudantes.

(2009, p. 27)

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Afirmar que os quadrinhos e seus gêneros – no caso as tiras em quadrinhos – são

remédios para todos os males do processo de aquisição e aprendizagem da leitura e escrita nas

escolas da Educação Básica é uma profunda incoerência. O perigo está em se negar à

presença dos quadrinhos nos encontros em sala de aula ou utilizá-lo apenas como “enfeite”

para simular a leitura do texto imagético.

O grande desafio é oferecer à comunidade escolar o contato com a multiplicidade de

gêneros textos que circulam nos espaços sociais contemporâneos sem privilegiar uns em

detrimento de outros. A literatura, os quadrinhos, as tiras eletrônicas, os filmes, as músicas, as

mensagens eletrônicas, conto de fadas, memórias, bate-papo virtual, etc são formações sócio-

discursivas que oportunizam um grande encontro com a potência da linguagem como

atividade social, histórica e cultural.

Passa-se, na escola, a viver um encontro transformador com o ato de ler e escrever.

Nesse encontro, o leitor tem a sua presença respeitada e é capaz de praticar uma leitura crítica

perante aos suportes textuais e acima de tudo, questionar o seu espaço social. É preciso que o

sujeito-leitor-aluno lance novos voos á procura da imagem, da palavra lida ou escrita

libertando-o do sentido protocolado da leitura.

Fig:49

Fonte: Scott Mccloud, Desvendando os quadrinhos, 2005

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CONSIDERAÇÕES (IN) FINITAS

“A sanção do crítico não é o sentido da obra, mas o sentido do que dela diz.”

(Roland Barthes).

Elaborar as considerações finais de um trabalho acadêmico ou de qualquer outra

natureza é, para mim, a fase mais conflituosa do processo de escrita. Chega-se ao fim de uma

investigação científica como se efetivamente tivéssemos esgotados todas as análises e

reflexões a respeito do objeto em estudo. Como se ao problematizar o conhecimento

encontrássemos a solução para todas (ou quase todas!) as dificuldades que inviabilizam as

mudanças desejadas no campo de estudo e atuação da pesquisa. Ledo engano! Depois de

investigar o problema e identificar as suas causas, a inquietação do início da pesquisa se torna

gigantesca. E é ela que me impulsiona a “sobreviver” em meio a tantas impossibilidades na

prática de educar. A “crise da leitura” passa primeiro pela crise da subjetividade do professor.

Para cursar o mestrado em Crítica Cultural obtive licença para curso por dois anos.

Com isso, me afastei das atividades escolares. No dia 09 de abril retornarei para as minhas

salas de aula. No município de Pojuca assumirei três turmas de 5ª séries, no turno matutino no

colégio público (Colégio Municipal Presidente Castelo Branco). Na escola estadual, no turno

vespertino, não tenho turmas. A escola esvaziou-se. Perdemos muitos estudantes. Alguns não

querem a seriação regular. Optam em cursar a EJA (Educação de Jovens e Adultos) do ensino

médio. Portanto, ao retornar sou uma professora de português “excedente”. O que restou foi a

retirada do pagamento das aulas complementares (AC), aproximadamente 28% do meu

salário.

Para os colegas de trabalho, o meu retorno às escolas vem com um enorme diferencial:

ela agora é mestra! Mestra em Crítica Cultural! E o que é mesmo ser mestra especificamente

na escola publica municipal? O que vale o título? Como e quando a minha tese terá uma

função social \escolar?

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Com o título da minha tese “As tiras em quadrinhos da Turma do Xaxado: imagens

desviantes trago para a discussão o texto imagético como signo e produto cultural, sua

potência narrativa e seu papel como suporte textual no trabalho com a leitura em sala de aula.

Ao relacionar os resultados obtidos, faço nesse momento uma ponte com a realidade

do meu espaço escolar ao retornar para a sala de aula.

Os Parâmetros Curriculares Nacionais não fazem parte do acervo da nossa biblioteca.

Quase sempre estão colocados na estante que fica na sala da diretora ou trancafiados numa

gaveta qualquer da sala da coordenação. Ora ou outra – raramente – são citados para lembrar

a sua importância no desenvolvimento das atividades pedagógicas e refletirmos sobre a

eficiência das metodologias na condução das atividades escolares.

O livro didático mantém a sua posição privilegiada como um recurso pedagógico

imprescindível para o trabalho com a leitura e escrita nas aulas de português. É o guia oficial

do professor. A sua escolha – em todas as disciplinas – é sempre muito rápida e atribulada.

Primeiro, há uma guerra entre as editoras para “vender” o seu produto. Presenteiam os

professores com brindes e exemplares das coleções, oferecem um dia ou dois de encontro para

fazer a propaganda do livro show, etc. Nas discussões em grupo e por área do conhecimento,

os professores defendem aquele autor “x”, preferem o material que trabalha mais com a

gramática, um ou outro se preocupa com a forma de apresentação dos textos e outros, dizem

“por mim tanto faz, o que vocês escolherem está bom pra mim”.

O sentido do texto para o professor ainda permanece pautada na concepção de que o

texto serve para estudar as questões gramaticais. Quando ultrapassa esse limite, explora as

questões de compreensão como: O que o autor quis dizer no texto? Quais as principais idéias

defendidas pelo autor? Que outro título você daria ao texto?

Na construção do planejamento, as atividades de leitura e escrita se sustentam no texto

verbal, privilegiando a descrição, a narração e a dissertação. Os textos imagéticos e

eletrônicos ainda são mal vistos ou pouco trabalhados. Não merecem credibilidade no

processo educativo.

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O gênero tiras em quadrinhos serve apenas para cobrar os conhecimentos lingüísticos.

No livro didático é assim a sua configuração e nas atividades avaliativas também. Pensar

sobre as representações sociais visibilizadas nos quadrinhos dá muito trabalho. O que adianta

falar sobre preconceito, discriminação, estereótipo se os nossos alunos não estão “nem aí”

para as questões sociais? É mais conveniente e simples pedi que os alunos façam desenhos

utilizando os tipos de balões ensinados nas aulas de português. Fácil de corrigir. Fácil de

atribuir uma nota.

Hora de planejar. Decidir as ações metodológicas para o ano letivo. Analisar o grande

problema da nossa escola: os alunos não sabem ler nem escrever. Está na hora de se montar

um projeto de leitura. Para essa elaboração, todos direcionam os olhares para os professores

de português, são eles que trabalham com a linguagem, corrigem as redações, conhecem as

produções textuais da turma. O professor da outra disciplina diz que não é obrigação dele

ensinar ninguém a ler e escrever. Já tem tanta atividade para corrigir.

A escola recebe as tensões sociais e conflitos da sociedade e não escapa da “crise” de

valores, de comportamentos, de atitudes, da crise pedagógica, da crise na leitura e na escrita.

Uns declaram que não tem mais jeito. Outros até tentam, mas mantém a descrença nas

mudanças. Alguns não perdem a vontade de construir um ambiente escolar baseado na

cooperação, na parceria, nos projetos, nas oficinas, no movimento de pertença, na “revolução

molecular”, de querer mudar, transformar, reinventar o que parece perdido e destópico. Eu

sou uma delas! E junto a mim, do meu lado ou em cada canto do país existem professores e

professoras que não param de sonhar, apesar de todos os embates e descrédito com a

educação em nosso país.

É preciso tecer novos percursos. Redefinir a nossa prática. Construir novas relações

com a produção do conhecimento.

A produção final do texto da dissertação me concede o título de mestre em Critica

Cultural, mas a relação com a linguagem, os signos e a cultura é ininterrupta, não cessa. A

dissertação aqui apresentada abre a possibilidade de novos (des) sentidos para quem a ler.

Agora – para mim – o que prevalece não é simplesmente uma tese concluída, mas como

operacionalizar, na minha práxis pedagógica, o aparato teórico e as perspectivas de mudanças

em sala de aula no trato com as tiras em quadrinhos. O que espero da tese em questão? Quero

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senti-la no meu cotidiano, na minha sala de aula, nos encontros pedagógicos, enfim, é para

isso que o conhecimento funciona: para tecer revoluções por menor que sejam.

São tantas as travessias. Dificuldades. Expectativas. Vontades e sonhos. Desvios

necessários.

Que a escola, os professores, os alunos, a prática pedagógica se tornem desviantes, na

procura por um espaço escolar mais justo, solidário e libertário.

Para essa caminhada desviante, não há pacote pronto, soluções instantâneas, respostas

completas.

O que há, de fato, é o desejo de construir.

E eu quero construir.

Eu acredito no que faço.

E ser professora é isso:

Acreditar, sempre no texto-vida!

E assim, a pesquisa está aberta!

E quem disse que ela se “fecha”?

Finalizo o meu trabalho – ele seguirá nas relações em sala de aula e fora dela –

driblando as normas das produções acadêmicas, com uma tira em quadrinhos do nosso

Xaxado, Antonio Cedraz falecido no dia 11 de setembro de 2014, dia em que a minha escrita

se entristeceu, quase parou. Obrigada, meu amigo Cedraz! Obrigada pela força dos nossos

encontros.

Fig: 50

Fonte: Guilherme Rossi, homenagem à Cedraz, 2014.

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