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ELISANGELA APARECIDA ZAMPIERI
NÃO ESTAMOS PREPARADOS: DETERMINISMOS,
CONTINGÊNCIAS E POTENCIAL DAS HISTÓRIAS DE VIDA
NA AÇÃO DOCENTE INCLUSIVA
Dissertação apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Educação na
Linha de Pesquisa I: Políticas e
Processos Formativos em Educação,
da Universidade do Planalto
Catarinense - UNIPLAC como
requisito parcial para obtenção do
título de Mestre em Educação.
Orientadora: Profa. Dra. Ana Maria
Netto Machado.
LAGES
2016
Ficha Catalográfica
(Elaborada pelo Bibliotecário José Francisco da Silva - CRB-14/570)
--
-
Dedico este trabalho ao meu filho
Gianluca e às pessoas com deficiência
com quem convivo diariamente por
terem me inspirado sentimentos que
me tornaram uma pessoa melhor.
AGRADECIMENTOS
Aos meus pais Idemir e Nair Zampieri, primeiros mestres e
guias: sem eles a experiência do curso não teria existido.
Ao meu filho, Gianluca, meu lugar e meu caminho, por
entender e aceitar minhas ausências.
À direção e aos professores da Escola Especial Hugo Miguel
Sulzbach, cujo apoio e incentivo impulsionaram-me a dar mais um
passo no longo caminho do crescimento intelectual e profissional.
À Fundação Catarinense de Educação Especial (FCEE) e à
Secretaria de Estado da Educação (SED) que me possibilitaram o
afastamento de minhas atividades profissionais para que pudesse me
dedicar exclusivamente ao curso. Minha retribuição virá sob a forma
conhecimento, que disponibilizo como contribuição para o cumprimento
de suas importantes missões.
À professora Dra. Vera Roesler pelo suporte nos primeiros
passos deste trabalho, pelo afeto, pelos laços, pela leveza, por me olhar
devagar, pela generosidade em compartilhar seu saber e suas histórias de
vida.
À professora Dra. Ana Maria Netto Machado, presença
marcante ao longo deste percurso, por me permitir voar e construir
minha autonomia intelectual, pelos desequilíbrios gerados, por me
ensinar a desobedecer mapas e desinventar bússolas.
Às professoras que participaram da banca de qualificação, Dra.
Maura Corcini Lopes, Dra. Carmen Lúcia Fornari Diez e Dra . Maria
Selma Grosch, cujas importantes contribuições enriqueceram
sobremaneira este trabalho.
Ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação da
UNIPLAC, em especial aos professores que me favoreceram com seus
conhecimentos e com a amizade sincera que brotou dessa convivência.
Aos amigos que emprestaram voz aos meus silêncios,
notadamente ao professor José Antonio Klaes Roig, por movimentar
meus horizontes.
Aos colegas de curso que mais do que estarem juntos, foram
juntos.
À direção e professores da escola em que realizei a coleta de
dados para esta pesquisa, a quem agradeço a confiança, a receptividade
e o acolhimento da proposta de trabalho.
Às pessoas com deficiência, razão deste estudo, que pela
convivência e aprendizado me possibilitaram ser uma pessoa melhor.
Ao amigo Gilvan Araujo, pela revisão textual deste trabalho,
pelo carinho e pela amizade.
À amiga Francine Kerkoff, companheira de viagem, cuja
generosidade, amizade, e conversas inspiradoras, trouxeram-me alento
para prosseguir.
À amiga Lizonete Dal Farra, pela hospitalidade e pelo carinho
com que me acolheu em sua casa.
À amiga Karyne Noemi S. Pereira pela revisão metodológica
deste trabalho, pelas conversas sempre estimulantes e por compartilhar
minhas utopias educacionais.
A tod@s, meu reconhecimento, minha gratidão e afeto.
RESUMO
Esta investigação teve como objetivo ampliar a compreensão dos
processos de inclusão escolar no Brasil, articulando dimensões
macrossociais e microssociais. Basicamente as questões macrossociais
foram trabalhadas a partir de Robert Castel (dissonâncias entre os
processos de exclusão e inclusão social) e Michel Foucault (estratégias
de governamento, disciplinamento e normalização). Foram sujeitos da
pesquisa empírica oito docentes da rede estadual de ensino do município
de Curitibanos (SC): três Professoras Regentes, três Segundas
Professoras, uma Professora do SAEDE e uma Coordenadora técnico-
pedagógica. Inspirado na Sociologia Clínica de vertente francesa, o
trabalho de campo empregou metodologias qualitativas como a clínica
narrativa, desenvolvida por Vincent de Gaulejac e Christophe
Niewiadomski, e o método biográfico, inspirado em Daniel Bertaux. Ao
‘ o de
q ’ f b “
” b -as com as contingências macrossociais
consideradas determinantes dos e nos processos de inclusão escolar. Foi
possível, assim, relativizar o discurso da desvalorização e impotência
z ‘ ’
abrindo-se espaço para a autovalorização e o empoderamento das
professoras. A recuperação de suas trajetórias sócio-históricas fez
emergir simultaneamente uma renovada postura política e
epistemológica frente ao processo de inclusão, à medida que se
perceberam como sujeitos de conhecimento e protagonistas de sua ação
docente.
Palavras-chave: Práticas pedagógicas. Inclusão Escolar. Exclusão
social. Histórias de Vida. Normalização e
disciplinamento.
ABSTRACT
This investigation aimed at expanding the comprehension of the
inclusive education process in Brazil by linking macro and micro social
aspects. Basically, the macro social matters were dealt through the use
of R b ’ (the mismatch between the social inclusion
F ’
and normalization strategies). The research subjects were eight teachers
who work in the state education network of Curitibanos (SC): three of
them are Main teachers; other three ones are Secondary Teachers; one is
a Special Education Support Service teacher and one is a technical and
pedagogical coordinator. Inspired on the French Clinical Sociology, the
field research applied qualitative methodologies like the clinical
narrative, which was developed by Vincent de Gaulejac and Christopher
Niewiadomski, and the biographical method, inspired on Daniel
Bertaux. By “
R ” w b k b w
experiences and to debate them in relation to macro-social contingencies
which are considered decisive in the inclusive education process. Thus,
it was able to relativize the belief of depreciation and powerlessness that
b z “w -are-not- ”
b ’ f-worth and empowerment to
grow. The recovery of their social and historical trajectories
simultaneously allowed a renewed political and epistemological attitude
towards the inclusive education process to emerge as they realized that
y bj ’ k w y w
teaching.
Key-words: Pedagogical practice. Inclusive Education. Social
Exclusion. Life Stories. Normalization and Disciplining.
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
APAE – Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais.
CNTE – Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação.
FCEE – Fundação Catarinense de Educação Especial.
MEC – Ministério da Educação e da Cultura.
ONU – Organização das Nações Unidas.
PPP – Projeto Político Pedagógico.
SAE – Secretaria de Assuntos Estratégicos.
SAEDE – Serviço de Atendimento Educacional Especializado.
SAEDE/DM – Serviço de Atendimento Educacional Especializado na
área da Deficiência Mental.
SED – Secretaria de Estado da Educação.
SEESP – Secretaria de Educação Especial.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................. 21 1 CONTEXTO, SUJEITOS E ENCAMINHAMENTOS DA
PESQUISA ........................................................................ 29 1.1 ORGANIZAÇÃO E ESTRUTURA DOS SERVIÇOS DA
ESCOLA INCLUSIVA ........................................................ 29 1.2 QUEM FORAM OS SUJEITOS DESTA PESQUISA?............. 30 1.3 OS PRIMEIROS PASSOS DA PESQUISA ............................ 31 2 CAMINHOS E (DES)CAMINHOS DA PESQUISA ............. 33 2.1 O ENFOQUE SOCIOCLÍNICO: O SUJEITO FACE À SUA
SUBJETIVIDADE E À PRÓPRIA HISTÓRIA ....................... 35 2.2 AS ABORDAGENS BIOGRÁFICAS NA PESQUISA ............ 37 2.3 B R G “R FAMILIAR E
R J ÓR ” ..................................................... 39 2.3.1 Em que se fundamenta? ..................................................... 39 2.3.2 Como coletamos os dados? O Seminário de Implicação de
Pesquisa ............................................................................ 41 2.3.3 As técnicas utilizadas no Seminário de Implicação e
Pesquisa ............................................................................ 44 2.4 PROCEDIMENTOS DE ANÁLISE DO MATERIAL
EMPÍRICO ......................................................................... 46 3 PRINCIPAIS ANTECEDENTES HISTÓRICOS PARA
COMPREENDER A INCLUSÃO ESCOLAR NO BRASIL . 50 4 O PROCESSO DE INCLUSÃO ESCOLAR:
ELEMENTOS PARA AMPLIAR SEU ENTENDIMENTO . 64 4.1 OS LIMITES DA INCLUSÃO ESCOLAR QUANDO
DESCONECTADA DOS PROCESSOS DE INCLUSÃO
SOCIAL ............................................................................. 69 4.2 PRÁTICAS DE INCLUSÃO OU PRÁTICAS DE
NORMALIZAÇÃO? UMA ANÁLISE A PARTIR DA
“ R ÁV ” F R Ç ....................................... 86 5 A EXPERIÊNCIA PEDAGÓGICA DA INCLUSÃO A
PARTIR DA “EXPERIÊNCIA DE SI”: AS HISTÓRIAS
QUE DE NÓS CONTARAM E AS HISTÓRIAS QUE
FAZEMOS ...................................................................... 102
5.1 HISTÓRIAS DE VIDA, SABERES DOCENTES E
ESCOLHAS PROFISSIONAIS ........................................... 106 5.2 HISTÓRIAS DE VIDA COMO PRÁTICA REFLEXIVA E
PROCESSO AUTOFORMATIVO ...................................... 115 5.3 HISTÓRIAS DE VIDA COMO EXPERIÊNCIA DE
PROTAGONISMO E EMPODERAMENTO DOCENTE ....... 126 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................ 136 REFERÊNCIAS .............................................................. 144 APÊNDICE ..................................................................... 157 APÊNDICE A: CATEGORIAS OU TEMAS DE ANÁLISE ... 157
21
INTRODUÇÃO
[...] na vida e no trabalho o mais interessante é
converter-se em algo que não se era no princípio.
Se soubesse, ao começar um livro, o que se ia
dizer no final, acredita você que haveria valor em
descrevê-lo? O que é a verdade acerca da escrita
da relação amorosa também é verdade para a vida.
O jogo vale a pena na medida em que não se sabe
como vai terminar (FOUCAULT, 2000, p. 142).
Falo de um lugar-espaço que me habita desde muito cedo: a sala
de aula, quando sequer dominava os códigos da escrita, território do
qual me apoderei e que de mim apoderou-se desde a infância. Não havia
giz. Era o carvão que dava forma aos meus impulsos pueris pedagógicos
e tomava as paredes do antigo celeiro do sítio do meu avô, preenchendo
as tardes quando das brincadeiras de escola. Alguns poucos livros e
muitas revistas Nosso Amiguinho, presentes de meu pai, e os livros
“mágicos” que se movimentavam diante dos olhos, pertencentes ao
acervo de dona Iraci Dondé, professora da escola onde estudava,
alimentavam minhas fantasias e o meu ser professora. Nesse espaço,
cercada de rabiscos, tal como o faziam os antigos habitantes das
cavernas, eu ensaiava os primeiros passos daquela que seria anos mais
tarde, minha profissão: o ofício de mestra.
“Ofício de Mestre: Imagens e auto-imagens” (2000) foi, a
propósito, uma das obras de Miguel Arroyo que deram suporte
importante ao trabalho de conclusão do curso de Pedagogia, por mim
finalizado em 2000, na Universidade do Contestado (UnC.) Campus de
Curitibanos. Nesse estudo analisei a formação de professores e a
ideologia na Educação. Inquietavam-me, naquela oportunidade, os
discursos criados e propagados pelo imaginário social exaltando a
docência como um fazer missionário romantizado, associando a prática
do professor a um sacerdócio, uma missão para a qual basta um
chamado e o exercício do amor à profissão, desvinculando-a de um
saber que exige conhecimento teórico e engajamento político. A
discussão acerca dos elementos que permeavam a ação educativa em suas especificidades e complexidades foi a tônica da investigação então
empreendida.
Devo dizer que em minha trajetória como educadora,
incomoda-me a prática da docência desvinculada da reflexão, que não se
22
reconhece como ato político, mas permanece e é percebida como fazer
descontextualizado, acrítico e alienante. Deve-se a isso, a escolha dessa
problemática como campo de análise e reflexão.
Percebo, ao buscar a hermenêutica desse meu fazer profissional
e ao descrever meu percurso e inserção no campo da Educação, que não
por acaso me envolvo mais uma vez com a temática da docência. Isso
porque a escolha do tema de pesquisa não ocorre por acaso. Na maioria
das vezes, surge como:
[...] um mergulho profundo do pesquisador em sua
própria interioridade [...]. O pesquisador é
estimulado a encontrar na sua própria história de
vida os motivos e a temática específica que
gostaria de pesquisar (KENSKI, 1998, p.312).
Ao problematizar estas questões iniciais, consigo vislumbrar
uma rede tecida de forma não-linear, feita do entrecruzamento de
olhares, experiências e inquietações, que ora se acomodam, ora
reaparecem, e se caracterizam como um processo elíptico, em que se
constrói uma trajetória retomando continuamente o caminho já
percorrido, do qual convém recuperar a memória.
Esta não linearidade se faz presente também durante o processo
de pesquisa, representada por idas e vindas e tendo início muito antes da
sistematização deste trabalho, processo este que retrato por meio da
epígrafe com Michel Foucault, no início deste texto. Vamos nos
encontrando e desencontrando, nos formando e nos desconstruindo,
preservando a possibilidade de pensar diferente e de enxergar com olhos
menos acostumados.
A imersão no mundo dos cadernos, dos livros, das histórias, da
poesia se fez em mim muito cedo, ainda quando a escola era um espaço
por mim ignorado. Dos cadernos de minha tia Arildes eu ensaiava a
cópia do que eram para mim rabiscos, cujos significados me eram
desconhecidos, mas, ainda assim, fascinantes. A biblioteca da casa da
dona Iraci, que tanto aguçava minha fantasia, dava indícios do meu caso
de amor com os livros. Já a ela, minha presença talvez incomodasse um pouco, já que fazia ponto na porta da sua casa entre sete e oito horas da
manhã, esperando que me convidasse para entrar e me permitisse o
acesso à sua coleção de livros.
A tarefa de declamar poesias me era com frequência incumbida
quando das festividades e eventos escolares. Expressar-me em público,
23
mais do que a ansiedade e o nervosismo comuns a essas situações,
proporcionava-me intensa sensação de felicidade. O cartório onde meu
pai trabalhava, a mesa e a cadeira giratória, os balcões escuros, os
armários de porta de vidro e os livros gigantes, cheios de escritos
antigos borrados pelo tempo, constituíam o cenário, no qual eu - envolta
em sonhos infantis, detinha o poder dos que comandam, dos que sabem,
dos que ensinam.
Rubem Alves disse que somos as coisas que moram dentro de
nós. A professora que me tornei mora em mim desde a meninice,
crescendo comigo e se reinventando a cada dia, a cada leitura, a cada
conversa, a cada experiência que vivo no chão da sala de aula e fora dela
com meus pares, aqueles com quem compartilho minha existência,
minhas inquietações e desafios.
Desde os meus “hieróglifos” - essa escrita pessoal
sagrada trazida à tona no momento em que me coloco a refletir acerca
das motivações que me levaram a embrenhar-me nesta tarefa - aos dias
de hoje, há um espaço de produção de sentidos e subjetividade que me
possibilitam compreender minhas próprias histórias de vida como
constitutivas de minha identidade pessoal e profissional.
Recupero as palavras de Paulo Freire quando disse que ninguém
começa a ser professor numa certa terça-feira às quatro horas da tarde.
Ninguém nasce professor ou é marcado para ser professor. Formamo-
nos como educadores permanentemente na prática e na reflexão sobre a
prática. E esta micro-gênese do conhecimento, definida por Vygotsky
(1999), como o espaço entre o não saber e o saber, faz com que olhemos
como cada pequeno fenômeno tem a sua história e como ninguém tem
uma história igual a do outro. É então que vai aparecer a construção da
singularidade de cada pessoa e a heterogeneidade entre os seres
humanos.
Esta foi uma questão tratada, de maneira informal, com a
professora Vera Roesler, minha primeira orientadora. Como e por quê,
professores que passaram por experiências de formação análogas,
assumem posturas profissionais tão distintas em sala de aula? Dessa
pergunta nasceu o que foi definido por ela como meu primeiro insight:
as práticas pedagógicas, que em princípio decorrem de um processo de formação sistematizada, inicial ou continuada, não se limitam a
conhecimentos técnicos ou teóricos e tampouco podem ser mostradas
em sua integralidade no percurso de uma pesquisa como a que lastreou
este estudo.
24
Essa primeira reflexão permitiu a conclusão que tais práticas
estão vinculadas à construção e à apropriação individual de sentidos,
pela qual cada docente passa a reconhecer-se como sujeito, a
compreender seu trabalho e a sua maneira de colocar-se diante deste
contexto. A metodologia deste estudo brotou daí, avalizada que foi pela
referida professora, e plenamente empregada na investigação que
empreendi.
A apropriação de sentidos que cada professor dá à sua atuação
docente passou a inquietar-me, sobretudo, no período no qual atuei na
coordenação pedagógica da APAE do município de Curitibanos, SC
(2011 - 2013). Verifiquei então diferentes posturas adotadas pelos
professores e fui desafiada a orientar pessoas com vivências pessoais e
profissionais muito distintas.
A escolha da temática desta investigação está, assim,
relacionada à minha trajetória pessoal e profissional e está marcada
especialmente: a) por uma atuação que valoriza a reflexão e o diálogo; e
b) pelo envolvimento na formação continuada de educadores da Escola
Especial Hugo Miguel Sulzbach e da rede regular de ensino catarinense
por meio de Programa de assessoria e de cursos de capacitação em
Educação Inclusiva.
De forma mais específica, esta opção remonta a 2006, quando
surge a Política de Educação Especial de Santa Catarina que contém as
Diretrizes para o Serviço de Atendimento Educacional Especializado na
área da deficiência mental (SAEDE/DM) ofertado aos alunos
matriculados na rede regular de ensino (SC). Essa Política fundamenta-
se na teoria sócio-histórica e trata do desenvolvimento psicológico como
um processo aberto, mutável e resultante de interações sociais diversas.
Tem como objetivo qualificar as funções psicológicas superiores do
aluno com deficiência intelectual, por meio de estratégias pedagógicas
que possibilitem avanços no seu processo de aprendizagem.
Participando de cursos e eventos como formadora quando ainda
me encontrava atuando em sala de aula e, mais tarde, na assessoria aos
professores da rede estadual de ensino do município, constatei lacunas e
carências dos professores em relação ao processo de ensino e
aprendizagem de alunos com deficiência intelectual e as denominadas condutas típicas
1. Percebi também que elas se somam ao desalento e à
1 A categoria Condutas Típicas compreende educandos que apresentam os
quadros de transtornos hipercinéticos ou do déficit de atenção com
25
frustração que experimentam diante de tamanho desafio. Havia por parte
dos professores, referências de que a política inclusiva tinha sido
estabelecida de cima para baixo excluindo-os de participação nas
discussões. Essa evidência acabava por gerar desconfiança e reforçar a
rejeição dos professores com relação às determinações legais.
É recorrente ainda no discurso dos docentes a afirmação de que
não se sentem preparados para trabalhar com alunos que, segundo eles,
necessitam de condições de ensino diferenciadas, inviáveis de se
concretizarem nos espaços da escola regular. Também ouvimos com
frequência dos professores que os percursos próprios de aprendizagem
destes alunos, não são comportados pela escola, da forma como está
organizada.
Configuram-se, assim, compreensões distintas sobre a presença
de alunos com deficiência no sistema escolar regular. Se por um lado,
“ ” f dos
alunos com deficiência, por outro, há uma desconfiança com relação às
suas próprias práticas na atuação junto a esses alunos. Evidencia-se,
desta forma, que tanto os aspectos teórico-metodológicos - que
colaboram para o ser profissional e são imprescindíveis à sua formação -
o pessoal e o subjetivo, imbricados na constituição do ser professor -
precisam ser considerados.
A partir desse quadro traçado, este trabalho aponta como
possibilidade abrir espaço à reflexão e instigar, por meio da experiência
de si2 de cada docente, seu protagonismo diante do processo de inclusão,
que em razão das dificuldades e dos limites para a sua efetiva
implantação precisa ser constantemente revisitado.
Nesta pesquisa, a reaproximação à problemática da inclusão se
dá na interlocução com diversos autores. A partir de Lev Vygotsky
(1997, 1999, 2005), Foucault (1996, 2004, 2013), Erving Goffman
hiperatividade/impulsividade e transtornos globais do desenvolvimento
(SANTA CATARINA, 2009, p.25) 2 Expressão empregada por Larrosa (2011) que designa a relação do sujeito
consigo mesmo, ou seja, uma reflexão sobre si próprio. Noção semelhante
aparece em Foucault 84 “ é ” Essas técni “
aos indivíduos efetuarem, sozinhos ou com os outros, certo número de
operações sobre seu corpo e sua alma, seus pensamentos, suas condutas, seu
”
http://cognitiveenhancement.weebly.com/uploads/1/8/5/1/18518906/as_tcnicas_
do_si-_michel_foucault.pdf
26
(1987) e dos estudos do brasileiro Isaias Pessotti (1984, 1999) situamos
momentos importantes para compreender as relações entre as práticas de
inclusão e os determinantes históricos, sociais, políticos e culturais.
Confere-se especial ênfase aos conceitos de Robert Castel (1998, 2000)
de quem tomamos o conceito de desfiliação social, para aprofundar a
compreensão do que no Brasil denominamos de exclusão. Com a
finalidade de pensar a escola como parte da engrenagem social que
opera dentro de uma lógica sistêmica, focamos especialmente os
processos acionadores da exclusão tratados pelo autor. Entre as
referências presentes, destaca-se também Michel Foucault (2001, 2002a,
2002b, 2008) que desenvolve o conceito de governamentalidade, o qual
colabora para esclarecer a lógica do Estado, neste caso materializada nas
políticas de inclusão. Tal lógica visa assegurar a prosperidade e o
crescimento econômico a partir da instauração da norma e do controle
do risco social representado pelas pessoas com deficiência. Outro nome
importante neste trabalho é Vincent de Gaulejac (2009a, 2009b, 2014),
que ampara a pesquisa empírica especialmente a técnica do Seminário
de Implicação e Pesquisa, que realizamos junto às professoras.
De igual importância foram as narrativas das docentes3, sujeitos
da pesquisa de campo, as quais fizemos dialogar com os diversos
referenciais teóricos. Tais narrativas são entendidas como vetor teórico
para pensar a ação docente no processo de inclusão, por constituir-se
como espaço de produção de saberes e de reflexão sobre a prática.
Estamos cientes dos desafios e riscos que assumimos ao
aproximar autores de vertentes teóricas distintas, até mesmo de áreas do
conhecimento diferentes para desenvolver esta pesquisa, o que exigiu
intenso trabalho na articulação dos diversos referenciais. Entretanto,
desenvolvemos a investigação buscando sempre justificar, de maneira
responsável, as escolhas que fizemos, assim como a necessidade de
3 Os sujeitos participantes da pesquisa são identificados neste trabalho por
nomes fictícios, o que dará direito ao leitor de, eventualmente, recuperar e
confrontar as falas de um mesmo sujeito sobre os diferentes temas abordados.
Para efeito de melhor compreensão, classificamos os sujeitos em quatro grupos,
de acordo com a função ocupada na escola:
Grupo 1 – Professores Regentes: Raquel, Catarina, Flavia, Maria Aparecida
Grupo 2 – Segundas Professoras: Raquel, Lucirene, Sarah
Grupo 3 – Professora do SAEDE: Angélica
Grupo 4 – Assistente técnico-pedagógica: Beatriz
27
trazer tais aportes teóricos para interpretar e compreender, em sua
complexidade, o problema da inclusão escolar.
Metodologicamente, procedemos a uma investigação de caráter
qualitativo, o que permitiu articular a compreensão da realidade
subjetiva das professoras à compreensão de processos macrossociais.
Essa orientação “se conjuga à da Sociologia Clínica que, contornando as
separações disciplinares, se interessa particularmente pelo estudo das
interações entre os processos q ”
(NIEWIADOMSKI, 2013, p. 122).
Estes estudos ressituam a problemática que propomos analisar,
na medida que compreendemos as práticas pedagógicas como
resultantes do encontro de discursos oficiais e relações de poder que
constituem o cenário das práticas. Em certa medida, este
entrecruzamento condiciona o trabalho docente: a) pelo viés da
aceitação cega e pacífica das determinações legais e, nesse sentido, os
professores tomam para si unicamente a responsabilidade pela inclusão;
e b) pela negação da diferença, resultado de pré-conceitos produzidos e
disseminados em determinados contextos históricos, igualmente
resultantes de discursos e relações de poder, que marginalizam pessoas e
grupos que não respondem aos enquadramentos e padrões de conduta
definidos para a vida em sociedade.
Dessa forma, nosso movimento se deu em uma perspectiva
teórico e prática, por aproximações e distanciamentos, no trânsito entre a
compreensão de macro processos (Estado/Sociedade) e micro processos
(sala de aula/professor/histórias de vida), buscando compreender as
relações entre as contingências políticas, econômicas e sociais e as
práticas docentes, concebendo-as também como resultantes de suas
trajetórias sócio-históricas que, por sua vez, são também por aquelas
influenciadas.
Nesse sentido, f “ ” obriga a
entendê-la para além dos espaços de escolarização, uma vez que
extrapola as dimensões didático-metodológicas. Relevante, portanto,
pensar a dimensão política que perpassa o trabalho docente, bem como
compreender os princípios que orientam a elaboração das propostas
pedagógicas, articulados aos sistemas de poder que as estabelecem. Apesar da força determinista reconhecida a partir da perspectiva teórica
adotada, entendemos que ainda há espaço para o protagonismo e para a
autoria das professoras, possibilitados a partir da reflexão de suas
histórias de vida, as quais envolvem seus contextos pessoais e
28
profissionais. Das narrativas autobiográficas das professoras em suas
singularidades, foi possível identificar temas coletivos que atravessam
as trajetórias e se conectam com a estrutura social na qual exercem sua
profissão, constroem sua identidade e criam estratégias e espaços de
resistência.
Desta forma, a questão analisada foi: De que maneira as
trajetórias sócio-históricas (ou histórias de vida) de professoras
envolvidas com a inclusão de pessoas com deficiência permitem ampliar
a compreensão desse processo e minimizar o imaginário determinista
q f z “ ”?
A problemática desta investigação compreendeu ainda outros
questionamentos considerados relevantes no trato da questão, dentre os
quais: Quem são esses sujeitos que os professores narram? O que os
professores entendem por educação inclusiva? Como esses profissionais
veem o movimento acerca da inclusão? Quais avanços constatam (se
constatam) no processo de inclusão? Quais os limites e entraves para
efetivar mudanças?
Coerentemente com essa questão-base, a pesquisa objetivou:
ampliar a compreensão dos elementos envolvidos nos processos de
inclusão escolar articulando as dimensões macrossociais e
microssociais.
O trabalho compõe-se de quatro capítulos: No primeiro
descrevemos o contexto, os sujeitos e os primeiros encaminhamentos da
pesquisa. No segundo trazemos as opções metodológicas: a abordagem,
a fundamentação, as técnicas, a coleta de dados por meio do Seminário
de Implicação e Pesquisa e os procedimentos de análise das
informações. No terceiro capítulo analisamos alguns antecedentes
históricos relevantes que ao longo do tempo vêm demarcando a
existência das pessoas com deficiência. No quarto capítulo refletimos
sobre os processos acionadores da exclusão e também acerca da inclusão
como objeto da governamentalidade do Estado. No quinto capítulo
realizamos a análise das trajetórias socio-históricas das docentes,
sujeitos desta pesquisa, buscando compreender a relação destas com as
práticas pedagógicas realizadas em sala de aula. Por fim, apresentamos
os resultados obtidos, analisando-os, chegando assim às considerações finais.
29
1 CONTEXTO, SUJEITOS E ENCAMINHAMENTOS DA
PESQUISA
1.1 ORGANIZAÇÃO E ESTRUTURA DOS SERVIÇOS DA
ESCOLA INCLUSIVA
O espaço compreendido por esta investigação corresponde a
uma escola de Educação Básica da rede estadual de ensino do município
de Curitibanos que, conforme dados constantes no PPP do ano de 2014,
atende 548 alunos, dos quais 144 apresentam deficiência
intelectual/condutas típicas.
A Educação Especial dessa rede é amparada pela Política de
Educação Especial5 do Estado de Santa Catarina, instituída por
intermédio da SED e FCEE em 2006. Em cumprimento às diretrizes
dessa Política, as antigas salas de recursos foram transformadas em
Serviços de Atendimento Educacional Especializados - SAEDEs e
criou-se o cargo de segundo professor de turma nas escolas de ensino
regular que tenham alunos da Educação Especial.
Em relação ao SAEDE, são elegíveis alunos com diagnóstico de
deficiência, condutas típicas e altas habilidades com o objetivo de
complementar, apoiar e suplementar o processo de ensino e
aprendizagem. A frequência do aluno na modalidade de ensino
fundamental deve ocorrer obrigatoriamente no período oposto ao da
4 Este número representa os alunos que apresentam laudo comprobatório da
deficiência. Conforme relato da assistente técnico-pedagógica, responsável pelo
encaminhamento desses estudantes, os laudos relativos à alguns deles ainda não
foram produzidos, portanto esses alunos não foram contabilizados. 5 Aprovada pelo Conselho Deliberativo no dia 24 de abril de 2006;
referendada pela Resolução nº 112, de 12 de dezembro de 2006, do
Conselho Estadual de Educação e homologada pelo Decreto nº 4.490, de 15
de dezembro de 2006. As diretrizes estão respaldadas, dentre outros
documentos, na Constituição Federal de 1988, na Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional de 1996, no Programa Educação Inclusiva: direito à
diversidade do MEC e o Decreto nº 5.296, ambos de 2004 (SANTA
CATARINA, 2006, p. 21). Dentre as especificidades desta modalidade de
ensino destacam-se as diretrizes quanto ao educando com severos
comprometimentos. A Política faculta às famílias que tenham filhos em
idade escolar com tal diagnóstico, o direito de optarem pela matrícula em
escolas regulares ou em centros especializados.
30
escolarização. Ainda de acordo com as diretrizes que regulamentam este
serviço, deve ser ofertado por profissional da Educação Especial.
De acordo com o Programa Pedagógico (2009, p. 32-33), o
SAEDE/DM é um serviço direcionado ao aluno com diagnóstico de
deficiência mental que esteja frequentando níveis e modalidades do
ensino regular. Esse serviço tem por objetivo qualificar as funções
psicológicas superiores do educando, para autorregulação de sua
estrutura cognitiva, mediante investigação de estratégias pedagógicas
que possibilitem avanços no seu processo de aprendizagem.
Compete ainda aos professores orientar e subsidiar o professor
de sala de aula (ensino regular) e a turma na qual o aluno está
matriculado; propor intervenções pedagógicas, orientar o professor da
classe regular quanto à adaptações curriculares no contexto da
metodologia, avaliação e temporalidade, dentre outras. Esse serviço é
ofertado no contraturno ao da escolarização regular e atende 14 alunos
com diagnóstico de deficiência intelectual. O professor responsável pelo
programa é graduado em Pedagogia e tem complementação e
especialização em Educação Especial. Em sala, os alunos com deficiência intelectual/condutas típicas,
recebem atendimento especializado prestado por cinco segundas
professoras. Destas, duas são habilitadas e possuem especialização e três
cursam Pedagogia.
Esse atendimento se caracteriza pela atuação de um professor
da área de Educação Especial em sala de aula ou profissional da área da
saúde na escola para atender alunos com deficiência ou outros que
necessitem. Esse professor deverá trabalhar como corregente (nas
turmas de séries iniciais do ensino fundamental) planejando e
executando as atividades pedagógicas em conjunto com o professor
titular; e colaborador desse professor (nas séries finais do ensino
fundamental e do ensino médio), propondo adaptações curriculares
(SANTA CATARINA, 2009, p. 17).
1.2 QUEM FORAM OS SUJEITOS DESTA PESQUISA?
As professoras que deram voz a esta pesquisa, selecionadas na fase de planejamento, trabalham com alunos com deficiência
intelectual/condutas típicas, na condição de Professoras Regentes,
Segundas Professoras e Professora do Serviço de Atendimento
Educacional Especializado - SAEDE.
31
Na etapa de coleta de dados incluímos entre os sujeitos da
pesquisa a professora responsável pela assistência técnico-pedagógica
na instituição por entendermos que sua presença ajudaria a elucidar
questões de abrangência não alcançada pelos docentes e, também porque
de forma direta ou indireta, essa profissional atuava com todos os
envolvidos no processo de inclusão. Seu conhecimento e as informações
disponibilizadas poderiam, portanto, contribuir para a investigação.
Na montagem da amostra cuidamos de incluir as professoras
titulares e as segundas professoras por considerarmos a hipótese de que
havia diferenças substantivas entre os dois grupos, de maneira que seria
importante por em relevo essa questão no espectro da pesquisa.
Adotados esses critérios, as participantes foram indicadas pela
equipe gestora da escola, considerando as especificidades do trabalho e
a disponibilidade em participar do seminário.
Assim, a amostra foi constituída com oito participantes: três
Professoras Titulares, duas Segundas Professoras, uma Professora
Titular e Segunda Professora (uma função para cada um dos períodos),
uma Professora do SAEDE e uma Assistente técnico-pedagógica. Todos
os sujeitos são do gênero feminino e situam-se na faixa etária dos 22 a
55 anos.
A formação das docentes distribui-se entre Ciências Biológicas,
Pedagogia, História e Matemática. Seis professoras são habilitadas e
atuam em sua área de formação; duas estão cursando graduação; duas
concluíram pós-graduação na área de atuação; duas estão cursando a
segunda graduação e uma possui mestrado em Ciência da Computação
com ênfase em Educação. Duas das professoras participantes têm mais
de 15 anos de atuação e seis entre 4 e 10 anos de exercício profissional.
1.3 OS PRIMEIROS PASSOS DA PESQUISA
Tendo em mente que o trabalho não deveria prejudicar o
andamento das atividades na escola e pensando na possibilidade de que
constasse no calendário6 letivo de 2015, os primeiros contatos com a
escola selecionada para esta investigação a fim de viabilizar a atividade,
iniciaram-se no mês de dezembro de 2014. Nesse momento, tínhamos
6 Tínhamos como intenção que fosse realizado num período de três dias
consecutivos. De fato ocupou uma carga horária de 8 hs/a.
32
como objetivo expor à direção da instituição a ideia do trabalho, bem
como, com ela definir a melhor forma de concretizá-lo.
Assim, considerando a disponibilidade das docentes, bem como
dias para o desenvolvimento do trabalho, ficaram definidos 17 e 18 de
março de 2015 para a realização do Seminário de Implicação e Pesquisa,
correspondendo a uma carga horária de oito horas. Nesse momento
também se definiu a amostra que faria parte da pesquisa. Outros
contatos foram feitos posteriormente para estabelecer detalhes como o
espaço e os materiais a serem utilizados.
Com relação aos procedimentos éticos, em conformidade com
as medidas preconizadas na Resolução 466/2012 do Conselho Nacional
de Saúde para pesquisas com seres humanos, adotados pelas demais
áreas quando as pesquisas envolvem seres humanos, esclarecemos as
docentes acerca dos objetivos e procedimentos da pesquisa e dos
preceitos éticos adotados: confidencialidade, respeito, acompanhamento
dos resultados. Também acordamos alguns procedimentos entre os
membros do grupo, bem como foram prestadas todas as demais
informações constantes no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
(TCLE), o qual foi lido e assinado. Essas providências objetivaram
reduzir riscos e prejuízos às participantes. A pesquisa encontra-se
registrada na Plataforma Brasil sob o Certificado de Apresentação e
Apreciação Ética número 39739614.1.0000.536.
33
2 CAMINHOS E (DES)CAMINHOS DA PESQUISA
Por muitos caminhos diferentes e de múltiplos
modos cheguei eu à minha verdade; não por uma
única escada subi até a altura onde meus olhos
percorrem o mundo. Eu nunca gostei de perguntar
por caminhos – isso, ao meu ver, sempre repugna!
Preferiria perguntar e submeter à prova os
próprios caminhos. Um ensaiar e um perguntar
foi todo o meu caminhar - e, na verdade,
também tem-se de aprender a responder a tal
perguntar! Este é o meu gosto: não um bom gosto,
não um mau gosto, mas meu gosto, do qual já não
“ - é meu
caminho, - ?”
q “ ” O
caminho, na verdade, não existe! (NIETZSCHE,
1998, p. 272)
Adotamos neste estudo a clínica narrativa (GAULEJAC, 2009a,
2009b, 2014; NIEWIADOMSKI, 2013) e o método biográfico
(BERTAUX, 2009) inscritos “R F
j ”, que por sua vez se sustenta nos aportes da Sociologia
Clínica de vertente francesa.
Dedicamos este capítulo a explanar tais opções metodológicas.
Assim, no primeiro tópico expomos alguns fundamentos da abordagem
socioclínica que ampara a metodologia da investigação empreendida; no
segundo descrevemos sucintamente o método biográfico; na sequência
apresentamos algumas ideias e autores empregados para compor o
aporte teórico que fundamenta “R F
j ”, descrevemos como foi realizada a coleta dos dados,
bem como, os suportes (técnicas) utilizadas. Finalizamos, delineando os
procedimentos de análise do material empírico.
Importante destacarmos que a opção por tal abordagem
metodológica não ocorre ao acaso e se justifica inicialmente por nossa
vivência e pelas reflexões como educadora e responsável pela orientação pedagógica aos professores da Escola Especial. Essa experiência muitas
vezes mostrou que, para além dos conhecimentos disciplinares
adquiridos na universidade e dos conhecimentos didáticos e
pedagógicos apropriados ao longo da prática docente, os professores se
34
servem da cultura pessoal que provém de sua história de vida e de sua
cultura escolar anterior, determinante em sua prática docente.
Esta opção se justifica também por nossa implicação ao longo
de um trabalho de assessoria técnico-pedagógica junto às professoras da
rede regular de ensino, algumas, sujeitos da pesquisa. Assim,
considerando que muitas das dificuldades práticas do trabalho com os
alunos com deficiência já eram de nosso conhecimento, entendíamos a
necessidade de avançarmos e aprofundarmos essa interação junto às
docentes, buscando compreender questões que estavam para além das
evidências.
Ao mesmo tempo, consideramos relevante destacar que,
estando fortemente implicada neste processo, tendíamos a buscar formas
de contribuir e alterar, em alguma medida, as condições em que este
processo vinha ocorrendo. Dessa forma, encontramos na abordagem
biográfica a possibilidade de promover, por meio de reflexões mediadas,
algum tipo de transformação da realidade. Isso porque, conforme
salienta Niewiadomski (2013, p.122), a dimensão clínica visa:
[...] propor um trabalho de embasamento
destinado a dar suporte ao sujeito diante das
dificuldades que vive e assim participar da
compreensão do sentido de sua trajetória singular,
de modo a ajudá-lo a achar finalmente seu próprio
caminho.
Nesse sentido, as hipóteses de trabalho são construídas em
processo de coparticipação, uma vez que os sujeitos estão
“ j s e
objetos q z ‘matéria-prima’
necessária ao trabalho de interpretação, porém refletindo, do mesmo
modo, sobre seu tratamento” W K ), (grifo
no original). À luz desta perspectiva, os conflitos e as contradições
pessoais e profissionais podem ser compreendidos a partir dos sujeitos
que, conscientes de si, aumentam as condições de operar uma reescrita
de sua própria história.
35
2.1 O ENFOQUE SOCIOCLÍNICO: O SUJEITO FACE À SUA
SUBJETIVIDADE E À PRÓPRIA HISTÓRIA
Considerando a importância da abordagem socioclínica neste
trabalho, faz-se necessário explicitarmos os termos que a compõe e seus
significados no contexto da pesquisa: sociologia, considerando os
estudos de G j 4 8 “
dinâmica das contradições e o peso das estruturas intervêm sobre o
destino individual para lhe canalizar o sentido, ou seja, sua direção e
q f z ”; q forme
analisa Roesler (2012, p. 120), resgatando os estudos de Rhéaume
(2010, p.84), a palavra deve ser entendida em um sentido metafórico
correspondendo à proximidade e implicação com os sujeitos.
Gaulejac (2014, p.170) analisa a pertinência da Sociologia
q “ q z
real ao estudo das determinações estatísticas, das probabilidades e das
bj à q b ”. Para o
autor, a apreensão subjetiva faz parte das coisas e o sentido e função de
um fato humano se constituem no confronto entre a elaboração teórica e
a experiência vivida.
Takeuti (2009, p.75) foi também uma importante
socióloga que se dedicou a estudar e estabelecer as
características da abordagem socioclínica. Para a autora, esse
enfoque busca unificar as esferas que correspondem ao
individual e ao coletivo, à objetividade e à subjetividade, aos
micro e macro processos, ao voluntarismo e ao determinismo
com vistas a compreender os fenômenos sociais. Em síntese, podemos dizer que a Sociologia Clínica tem por
objeto:
[...] desembaraçar os complexos nós existentes
entre os determinismos sociais e os determinismos
psíquicos na conduta dos indivíduos e dos grupos,
assim como nas representações que eles fazem
para si mesmos dessas condutas. Ela se inscreve
no centro destas tensões entre objetividade e
subjetividade, entre estrutura e ação, entre
indivíduo produto sócio-histórico e indivíduo
criador de história, entre a reprodução e a
36
mudança, entre as dinâmicas inconscientes e as
dinâmicas sociais [...] (GAULEJAC, 1993, p. 14).
Assim entendida, toda pesquisa neste campo considera os
conflitos e contradições vividos pelos indivíduos a partir de um conjunto
de fatores que envolve as dimensões individuais, pessoais, psicológicas,
afetivas e existenciais das relações sociais. Desse modo o sujeito é
compreendido com base na historicidade, entendida como um conceito
sociológico que designa:
o conjunto de processos pelos quais uma
sociedade produz sua história; e como conceito
psicológico, que dá conta da capacidade do
homem de produzir mediações simbólicas em sua
relação consigo mesmo e como o mundo
(GAULEJAC, 2014, p.37).
Roesler (2012, p. 119) resgata outros estudos deste importante
pesquisador para evidenciar ‘ b ’ da concepção adotada
pela Sociologia Clínica que “ f ô
como indicador das teorias e referências a serem utilizadas, e não o
con ” u seja, é o próprio sujeito em seu vivido, em suas tensões e
ambivalências que fornece as pistas de como deverão ser analisadas as
situações que o envolvem e as intervenções que serão necessárias.
Consoante com o enfoque dado ao trabalho do professor como
protagonista de seu ofício, o estudo se propôs e pôs em relevo também a
possibilidade, destacada por Roesler (2012), de a historicidade
individual possibilitar avanço na compreensão da ideologia, dos jogos
de poder e de submissão, que com frequência aparecem no discurso dos
docentes, isso porque:
[...] a Sociologia Clínica nos oferece uma base
teórica e metodológica que permite o acesso aos
fenômenos estudados suplantando os limites
positivistas. O sujeito, nessa abordagem, é
multideterminado e considerado em sua
historicidade, como produtor e produto da
realidade social. Sua história singular está
imbricada ao registro social de forma
indissociável, porém sem ser equivalente
(ROESLER, 2012. p.122).
37
O conceito de historicidade destacado por Gaulejac (2009b,
2014), Takeuti (2009) e Lainé (2009) entre tantos outros autores que
fazem parte dessa perspectiva, converge com a ideia de liberdade e de
capilaridade do poder (FOUCAULT, 2002b). Nesse contexto de
historicidade, o sujeito não nega a influência e o peso da história, mas é
capaz de atuar sobre ela, alterando, se necessário, seu curso.
2.2 AS ABORDAGENS BIOGRÁFICAS NA PESQUISA
Na visão de Bertaux (1999, p. 3-4), pioneiro na utilização da
b “ ” , mais tarde, na
Sociologia Clínica no contexto da Europa - a expressão “abordagem
biográfica” expressa um duplo movimento do pesquisador: de
observação e de reflexão. Para o autor, uma história de vida não
representa um quadro conceitual e epistemológico inalterado. Por isso o
pesquisador será gradualmente forçado a questionar esses quadros um a
um. Tal abordagem não está restrita, assim, a uma técnica, mas também
a construção gradual de um novo processo sociológico mediado pela
leitura do pesquisador.
Bertaux (1994) considera que as histórias de vida são ricas
fontes de informação e de significados transmitidos através da cultura de
um grupo. No trabalho com essa abordagem busca-se tornar visíveis
alguns dos processos-chave que contribuem para formar a sua história,
não sendo esses processos necessariamente sociológicos, mas também e
em grande parte são, psicológicos.
Em relação à pesquisa biográfica Niewiadomski (2013, p. 121)
assinala que se trata de um campo de investigação relativamente recente
e polimórfico que assim descreve:
A pesquisa biográfica tem como projeto estudar,
em uma dada sociedade [...] as condições de
funcionamento pragmático, discursivo e simbólico
da fala de si e relacionar as construções
biográficas individuais com os modelos que
orientam e estruturam as relações do indivíduo
consigo e com a coletividade.
De acordo com o autor, essa abordagem cobre domínios de
intervenção como a autobiografia, as narrativas de vida, as histórias de
f “ f j ”
38
inspirados pelo campo da Sociologia Clínica, as histórias de vida de
coletividade, a psicobiografia etc.
No entanto, conforme Roesler (2012, p.130) apesar do termo
“histórias de vida” ser o mais utilizado, todas essas práticas se
inscrevem na perspectiva q bj â “
experiência vivida dos indivíd ” Sem entrar no mérito de tal diferenciação, consideramos
importante explicitarmos alguns significados dados ao “
” que servem aos objetivos deste estudo. Nessa direção temos
contribuições de autores como Alex Lainé (2009), que traz uma
definição proposta por Pineau e Legrand (1993) para os quais o termo
“ f ”. Outra
definição desenvolvida por Lainé (2009, in ROESLER, 2012, p 130)
caracteriza a história de vida de uma pessoa como “uma sequência de
fatos, de contingências, de momentos de acaso, eventos datados e
situados no tempo e no espaço, vividos da maneira possível naquela
ocasião precisa da vida”.
Desse modo, diferente do relato de vida que aborda um
fragmento, num dado período da vida de um indivíduo por ele descrito
(RHÉAUME 2009, p.166), no caso da história de vida, Roesler (2012)
explica que remetem a situações que se iniciam antes do nascimento de
cada sujeito e envolvem uma história maior, aquela de toda a
humanidade.
Nessa história são compartilhadas raízes comuns a
gerações familiares, com todos os seus fantasmas,
seus segredos, suas ideologias, seus valores, suas
crenças, suas posições sociais adquiridas e
perdidas, seus capitais culturais e econômicos, etc.
Consideramos também o movimento de cada
indivíduo como produzido por esta História e, ao
mesmo tempo, produtor desta História. Dito com
outras palavras, levamos em consideração como
cada um se apropria de sua trajetória sócio-
histórica e faz suas escolhas, nas condições
possíveis (ROESLER, 2012, p.130).
Tendo isso em conta, o que propusemos ao trabalhar com
histórias de vida no âmbito da abordagem autobiográfica foi dar ao
discurso do sujeito um lugar central, visto que tal abordagem:
39
[...] constitui uma fonte insubstituível de
informações para esclarecer o modo como os
indivíduos elaboram suas representações de si
mesmos, suas relações com o outro e como, na
articulação do individual com o social, eles
atribuem uma forma às suas experiências
(NIEWIADOMSKI, 2013, p.121).
Conhecer essas histórias de vida pode representar, para nós
pesquisadoras, um elemento epistemológico importante no contexto
maior do processo de inclusão escolar. Para as docentes que passam por
tal experiência, traduzir-se, igualmente, em autoreconhecimento,
possibilitando-lhes refazer a “ ” f
repercussão, a transformação de suas práticas.
2.3 A ABORDAGEM DO “R F R R J ÓR
”
2.3.1 Em que se fundamenta?
O fato de analisar em que o indivíduo é
programado por sua história não a muda. Ao
contrário, muda sua relação com a história
(GAULEJAC, 2014, p.172).
Roesler (2012, p.125) revela que o termo “R F ”
utilizado na Sociologia Clínica tem origem na psicologia, mais
precisamente em um conceito freudiano, segundo o qual,
[...] a criança abandonada, em situação de
precariedade ou com sentimento de não ser
suficientemente amada pelos seus pais passa a
imaginar que sua condição é provisória, negando
“ ”
sua origem.
Conforme a citada autora tal acontecimento tem a função de corrigir a realidade e de permitir uma nova possibilidade de existência,
ao mesmo tempo que permite suportar o peso das contingências e
atenuar o sofrimento.
40
“R F ” ainda, conforme
descreve Roesler (2012, p. 126) a modalidade de seminários de
“ q ” F è
Michel Bonetti e Vincent de Gaulejac. Uma terceira aplicação para o
termo, explicitada por Gaulejac (2009b, p.12) refere-se à “
familiares transmitidas entre gerações, nas quais são narrados os eventos
passados, os dest f ‘ f ’” (grifos
no original). Para o autor, o retorno histórico:
Produz efeitos profundos porque permite [...]
apreender elos existentes entre os problemas
encontrados na existência do sujeito e seus
conflitos relacionados à história pessoal, familiar
e social (GAULEJAC, 2009b. p. 63).
De acordo com Gaulejac (2014, p. 167-168) estes seminários
tratam: da genealogia familiar, da qual depende a herança afetiva,
cultural, econômica e ideológica que cada um recebe e que condiciona
sua inserção social; da formação do projeto parental (o que meus pais
desejam para mim), de suas contradições e incoerências; do romance
familiar, já que cada um realiza uma reescritura de sua história
aproveitando histórias de família para passar da história de vida à
historicidade; das escolhas e rupturas da existência (escolhas
profissionais, políticas, amorosas, rupturas familiares ideológicas etc.,
para compreender o que as produziu e o que elas produzem e localizar
os elementos estruturantes da trajetória social e o modo como cada um
escreve a história de sua vida).
Esta abordagem metodológica presta-se aos objetivos da
investigação que empreendemos, conquanto o trabalho com as histórias
de vida possibilita ao indivíduo reconhecer-se como sujeito social e
historicamente determinado, mas ao mesmo tempo, de um determinismo
que não é absoluto. À luz desse referencial teórico, buscou-se neste
estudo possibilitar às participantes reconhecerem-se “como produto de
uma história da qual buscam se tornar sujeitos, explorando os diversos
elementos que contribuíram para configurar sua personalidade” (GAULEJAC, 2014. p.167).
41
Gaulejac (2009b, p. 62) situa esses seminários enquanto
démarche7 de formação como um meio de interrogar as trajetórias
profissionais. Isso permite aos participantes analisar as razões de suas
escolhas, como também as modalidades de seus investimentos
profissionais. No decorrer desses seminários, conforme descreve o
citado autor há um duplo movimento de distanciamento e implicação.
Ao se distanciar, o indivíduo percebe sua própria história como produto
de evoluções que permeiam o conjunto dos integrantes de uma classe
social, cultura e época. Mas a realidade objetiva se enraíza na
experiência subjetiva de cada um, que é a expressão da singularidade
individual, “que a questiona, interroga, valida e/ou contradiz, permitindo
uma interação constante e dialética entre obje bj ”
(GAULEJAC, 2014, p.170)).
Também denominado de clínica narrativa, esta metodologia
localiza-se no domínio das ciências humanas e sociais e cobre a atenção
q “ bj
b é j ”
(NIEWIADOMSKI, 2013, p. 121).
Os relatos de vida se dão no grupo, por meio de trocas e partilha
de experiências, entretanto, o relato de vida está centrado na experiência
individual com o grupo servindo de suporte na exploração e análise.
2.3.2 Como coletamos os dados? O Seminário de Implicação de
Pesquisa
Os dados empíricos desta pesquisa foram obtidos por meio de
uma experiência coletiva que nomeamos como Seminário de Implicação
e Pesquisa: “Trabalhar com a deficiência intelectual - práticas
pedagógicas e histórias de vida”. Esse evento, levado a efeito nos dias
17 e 18 de março de 2015, teve como referência o aporte teórico
anteriormente descrito e a análise de seus resultados constitui a essência
mesmo deste trabalho.
A atividade foi por mim coordenada e acompanhada pela
professora Vera Roesler que, dada a experiência acumulada com o
método, deu suporte e garantia de sua aplicabilidade. No espaço organizado previamente, um som ao fundo, tapetes
com almofadas espalhadas, uma mesa para o trabalho coletivo e cadeiras
7 Se refere a um modo, um procedimento.
42
distribuídas de forma circular, davam o tom da informalidade. Fazer
com que as professoras se sentissem acolhidas e a vontade, foi uma de
nossas preocupações para esta atividade.
Os trabalhos foram iniciados com uma breve apresentação, na
qual cada professora falou sobre si e acerca do trabalho que realiza na
escola. Na sequência, apresentamos os objetivos e conteúdo do
seminário, bem como, explicitamos como o evento se desenvolveria.
Simultaneamente buscamos saber sobre as expectativas do grupo para o
trabalho.
Nesse primeiro momento apresentamos também o “ to de
” derações de cunho ético e
combinando conjuntamente algumas regras que valeriam para a
atividade. Teve-se com essa iniciativa o propósito de possibilitar às
docentes - foco de muitas análises e trabalhos, mas pouco escutadas -
um espaço para se expressarem acerca do tema; conhecer a compreensão
que tinham de seu próprio trabalho: sentimentos, obstáculos,
expectativas, desafios e estratégias adotadas; e mediar a reflexão acerca
da relação entre suas trajetórias sócio-históricas e as práticas docentes,
com vistas a se perceberem como sujeitos de conhecimento e
protagonistas de sua ação.
No planejamento das atividades procuramos intercalar
momentos em que as professoras pudessem expor questões relativas à
prática docente junto aos alunos com deficiência com momentos em que
suas trajetórias sócio-históricas fossem evidenciadas. Tínhamos
consciência de que em muitos momentos em que estivessem narrando
suas trajetórias, emergiriam situações relativas à sala de aula e às suas
práticas pedagógicas. No entanto, optamos por priorizar algumas
questões que se reconhecia de grande relevância para a pesquisa,
evitando assim risco de não serem abordadas.
Algumas perguntas iniciais orientaram o trabalho junto às
professoras: quem é o deficiente intelectual? O que significa ser
deficiente em nossa sociedade? O que compreendem por inclusão e
exclusão? Como pensam uma sala de aula ideal? Quais os principais
problemas encontrados em sua prática? Como realizam o planejamento
de ensino para os alunos com deficiência e em que momento isso acontece? Como trabalham as questões cognitivas desses alunos: que
estratégias, conceitos, conhecimentos, funções são priorizadas? Quais
pontos destacam como de maior relevância no processo de inclusão?
Quais os elementos dificultadores e/ou impossibilitantes? Em que
43
medida entendem que sua prática pedagógica favorece o processo de
inclusão social de seus alunos com deficiência?
Essas indagações foram discutidas no grande grupo e/ou em
duplas. Após, cada docente, de acordo com as especificidades de sua
função, relatou seu entendimento e suas experiências.
Nas atividades em que propomos recuperarem suas trajetórias,
as professoras, conforme a atividade sugerida e a orientação recebida,
escolhiam os materiais disponíveis e confeccionavam cartazes
utilizando-se de técnicas variadas: desenho, recorte, colagem, pintura
etc. Confeccionado o material, procedia-se às exposições, sem qualquer
organização prévia: a ordem das apresentações era feita conforme as
professoras manifestavam interesse. O desejo por socializar suas
experiências de vida mostrou-se crescente e a participação do grupo
ocorreu de forma entusiasta e com forte envolvimento. As participantes
foram orientadas a colaborar com questionamentos e impressões que
auxiliassem na análise e compreensão das trajetórias individuais,
buscando identificar a ressonância com suas vivências atuais.
Ao sugerimos essa implicação (envolvimento) ao grupo tivemos
em conta que o envolvimento com a história do outro tem como objetivo
“ z
problemática que dê sentido e guie a decodificação dos materiais
” (GAULEJAC, 2014, p.169), bem como, possibilitar a
transversalidade, na medida em que cada participante, por meio de um
processo de espelhamento, vê-se a si próprio na narrativa do outro.
Em algumas situações as narradoras não se davam conta, de
início, de possíveis relações entre suas trajetórias e algumas atitudes e
comportamentos que ocorriam no tempo presente, entre as
representações construídas historicamente e a revelação de
determinações sociais. Nesses casos, como pesquisadoras, interferíamos
e questionávamos acerca de que significados e sentidos as professoras
davam àquela situação: se identificavam de alguma forma, a repercussão
de tais situações com as vividas atualmente, como haviam elaborado tal
acontecimento, em que medida tal fato havia afetado seus
comportamentos, dentre outros questionamentos que considerávamos
pertinentes. Paralelamente à recuperação das histórias de vida efetuou-se um
trabalho teórico, em que, junto ao grupo guiávamos a produção de
hipóteses buscando elucidar as situações vividas e os mecanismos
mobilizados para seu enfrentamento. As narrativas possibilitaram a
44
reconstituição de partes importantes das vivências das professoras, de
modo que passamos a compreender a repercussão destas experiências
em suas práticas pedagógicas e, de igual modo, compreender como a
história de cada uma em sua singularidade, em suas contradições e em
suas recorrências refletia a história de um coletivo.
2.3.3 As técnicas utilizadas no Seminário de Implicação e Pesquisa
Na recuperação das trajetórias sócio-históricas utilizamos os
seguintes recursos: elaboração da identidade, recuperação da trajetória
escolar e construção do genoprofissiograma, alternando fases de
expressão verbal e técnicas não verbais de exploração como desenho,
colagem, confecção da linha do tempo etc. De acordo com Gaulejac
(2014, p. 174), a expressão não verbal facilita “
imaginário, do não explicado a priori, das contradições vividas, do
imprevisível. Ela permite produzir material a partir de códigos diferentes
f b ”
A elaboração da identidade teve como objetivo acessar
informações acerca de quem eram as professoras (sua origem, profissão,
idade, estado civil, características, traços marcantes, como se viam e
como eram vistas). As pistas encontradas conduziram à compreensão
das escolhas, posturas e permitiram circunstanciar os comportamentos e
atitudes das docentes em sala de aula com alunos com deficiência.
Dos relatos emergiram situações de dificuldades financeiras,
falência econômica e união da família buscando a superação de crises,
trabalho operário, valorização do trabalho/religiosidade forte (trabalho
como aquilo que aproxima de Deus), rejeição paterna, casos de
deficiência na família, violência e conflitos familiares, entre outros
elementos.
O segundo recurso utilizado visou recuperar a trajetória escolar
por meio da confecção de um cartaz com imagens que representassem
momentos importantes desse percurso. Consideramos que estas
vivências deixam marcas psicológicas importantes, permanecendo, via
de regra, na vida adulta. Ademais, a cultura pedagógica está fortemente
impregnada das experiências escolares vividas pelas professoras enquanto alunas, que se manifestam, com frequência, em sua prática
docente presente.
Nessa atividade evidenciamos interferências de situações
vividas no percurso escolar na constituição profissional das participantes
45
da pesquisa: experiências traumáticas e situações marcantes, castigo,
humilhação, agressão, preconceito, discriminação, exclusão,
marginalidade, indisciplina, expulsão do ambiente escolar, cobranças
extremas ou indiferença por parte dos professores, desgaste emocional e
psicológico, dificuldades de aprendizagem, reprovação etc. Da mesma
forma, ficou clara a influência que alguns professores exerceram sobre a
formação da identidade das docentes, servindo de referência para o
trabalho que realizam.
O último exercício foi o genoprofissiograma. De acordo com
Roesler (2012, p. 128), o trabalho com esse tipo de recurso ou suporte é
considerado fundamental por favorecer o sujeito a compreensão do
“ ”
Para essa atividade solicitamos que as docentes reconstituíssem sua
árvore genealógica, resgatando pelo menos três gerações e indicando
para cada personagem, o nome, a origem social, profissão, lazer e outras
ocupações, o nível cultural, época de nascimento e morte, características
especiais, problemas específicos e outros eventos significativos.
Na realização dessa atividade esclarecemos que não existia um
padrão pré-definido. Desse modo, cada participante criou seu próprio
modelo, fazendo as escolhas que considerou convenientes. Concluída a
tarefa, cada participante do seminário expôs seu material, procedendo ao
relato que, conforme orientação, poderia iniciar de qualquer ponto. Esse
momento foi acompanhado pelo grupo e pelas pesquisadoras que
mantinham-se atentas tanto ao relato oral quanto aos detalhes gráficos
do material: a maneira como a representação gráfica foi posicionada no
espaço da folha, os grandes vazios, as cores utilizadas, as imagens
selecionadas, o tipo de letra e de traçado, as palavras-chave, os
equívocos, os esquecimentos, a concentração em um dos ramos
familiares, dentre outros aspectos.
O movimento de implicação do grupo foi um ponto importante
observado porque auxiliou na compreensão de determinadas situações
que, em muitos casos, permaneciam em nível inconsciente. Durante ou
após cada apresentação, o grupo apresentava suas contribuições e
questionamentos, que conforme desejo e/ou disponibilidade do autor
eram debatidos e/ou respondidos. A identificação da estrutura familiar possibilitou compreender
como os elementos da cultura, as regras sociais e a composição familiar
repercutiram nos modos de ser e de atuar de cada professora nas
diversas esferas sociais. Nesse caso específico, possibilitou entender as
46
escolhas profissionais e algumas posturas adotadas diante da deficiência
e do processo de inclusão.
Em cada etapa do seminário as professoras realizaram o relato
oral. A opção por fazê-lo ou não foi acordada anteriormente,
respeitando-se o desejo das participantes e considerando que, mesmo
não narrando partes de sua história, o movimento de implicação e
reflexão deu-se também por meio da escuta.
Em todas as atividades propostas, a análise dos materiais foi
acompanhada pela psicóloga Vera Roesler, que participou do início da
pesquisa como orientadora e, dada a formação na abordagem utilizada,
contribuiu significativamente na análise das narrativas e na construção
das hipóteses para posterior interpretação do material empírico que foi
realizada muitos meses depois, com a orientadora que levou a termo a
dissertação.
2.4 PROCEDIMENTOS DE ANÁLISE DO MATERIAL EMPÍRICO
No tratamento das informações coletadas durante o seminário,
b “ ”
Bertaux (2009) e as reflexões desenvolvidas por Gaulejac (2009, 2014).
Considerando a dinâmica do seminário - o entrecruzamento das
narrativas, as discussões, as conversas paralelas, o vai e vem de
informações - optamos para análise do material empírico por uma
transcrição8 indireta.
A interpretação do material empírico constitui uma função
particularmente complexa. Neste trabalho, especificamente,
consideramos que isso é otimizado por tratar-se de uma análise que leva
em conta, igualmente, dois aspectos: o psicológico e o sociológico.
Quanto ao primeiro, é preciso considerar, como esclarece Niewiadomski
(2013, p.129), que além do psiquismo não ser diretamente observável, o
trabalho de interpretação está estreitamente ligado à presença do
b q “é levado a estabelecer laços de sentido durante sua
f ”. Em relação ao aspecto sociológico, a atividade de interpretação
segue um caminho oposto, obedecendo, conforme explica o autor, a
regras de objetivação, sendo que os fatos sociais devem ser compreendidos como uma realidade independente do observador.
8 O seminário foi gravado em áudio com a devida autorização das professoras e
transcritas as falas.
47
Desse modo, na qualidade de pesquisadora, nossa tarefa
constituiu-se de um olhar ao mesmo tempo racional e intuitivo, que
levou em conta objetivos capazes de sustentar a lógica dos modelos
teóricos empregados e também a subjetividade clínica desdobrada em
cada uma das protagonistas implicadas nas situações de interlocução.
No tratamento das informações, algumas de nossas hipóteses
iniciais se confirmaram, outras emergiram de forma surpreendente e
outras tantas foram sendo evidenciadas à medida que as leituras e o
repertório de informações acerca do tema, foram sendo ampliados e
aprofundados.
Considerando que a abordagem socioclínica, opção neste
trabalho, leva em conta questões psíquicas, emocionais e inconscientes,
dentre outras, é conveniente esclarecer que, dada nossa área de
formação, tais questões foram consideradas a partir do conhecimento
por nós apropriado e, portanto, com naturais limitações9.
Recorremos em muitos momentos à intuição, à imaginação e à
sensibilidade, buscando compreender além do significado das falas, dos
gestos, das pausas, dos olhares, os sentidos atribuídos pelos sujeitos às
experiências vividas. Isso porque a análise, em se tratando de narrativas,
significa atribuição de sentido aos dados, uma vez que o documento
biográfico não fala por si e precisa ser analisado com vistas à questão
em estudo. Importante considerar, no entanto, conforme explica Bertaux
(2009, p. 27), que essa análise não consiste em especulação abstrata,
pois antes está associada a um processo reflexivo constante do
pesquisador, à aproximação dos fenômenos e à confrontação com
diversas fontes teóricas.
Assumimos nossa subjetividade durante todo o percurso da
pesquisa, porque reconhecemos, conforme assinala Gatti (2012), que o
método não corresponde somente a um conjunto de passos que ditam
um caminho, mas diz respeito também a um conjunto de crenças,
valores e atitudes, e é, portanto, em parte personalizado pelas mediações
do investigador.
9 Porém, sustentadas pela experiência da primeira orientadora, que tinha
formação específica nesse método e acompanhou presencialmente o Seminário
de Implicação e Pesquisa. A segunda orientadora, embora não seja especialista
nesse método também tem formação psicológica e teve muitos anos de prática
clínica como psicanalista. Logo, o trabalho foi criterioso.
48
Esse referencial pessoal se manifesta em um diálogo constante
com nossos interlocutores e impregna-se, inevitavelmente de ideologias,
conhecimentos anteriores, experiências e se enlaça com nossas próprias
histórias de vida. Não menos importante é o diálogo estabelecido com
nossas convicções e certezas, o qual com frequência levantou a dúvida
acerca daquilo que dissemos ser fruto da pesquisa, corresponder de fato
ao pensamento dos pesquisados, assim como importante foi também o
esforço na procura por consensos sustentáveis teórica e
metodologicamente.
Considerando, como sublinha Gaulejac (2014, p. q “
discurso, seja ele escrito ou oral é sempre uma reconstrução e, nesse
f ” q
pesquisador tem sua forma própria de abordar o material de pesquisa, o
que esteve em jogo não foi tanto compreender a obra ou seu autor (no
caso as professoras e suas histórias de vida), mas produzir hipóteses que
ajudassem a ampliar a compreensão acerca do processo de inclusão
escolar.
A princípio, esclarece Gaulejac (2014, p. 169), as hipóteses
servem de chaves explicativas para compreender este ou aquele
fenômeno desta ou daquela pessoa específica; mas a partir do momento
em que sua pertinência em uma história singular é encontrada em outras,
elas passam a adquirir a condição de hipóteses teóricas.
Bertaux (2009) denomina esse processo descrito por Gaulejac
(2014, p. 27) de saturação, é “q q
que diz respeito ao social e não ao psicológico, ao coletivo e não ao
individual”. Dito de outro modo, tal fenômeno comprova que as
hipóteses extraídas do material empírico não são fruto da imaginação
dos pesquisadores, mas adquirem certa coerência, especialmente após
terem sido refletidas e analisadas.
Observando essa recorrência de situações destacada pelos
referidos autores, e que emergiram durante o seminário nos exercícios e
reflexões do grupo, é que foram selecionadas e desenvolvidas as
categorias de análise constantes neste trabalho. De posse do material,
após a sua transcrição, o trabalho foi dividido nas seguintes etapas: (1)
destacamos em cada um dos oito casos, excertos de discursos que continham indicativos de temas ou categorias para possível análise; (2)
realçamos com uma mesma cor as narrativas que apresentavam relações
de proximidade ou que se referiam a aspectos semelhantes, inicialmente
partindo de ideias relacionadas às questões macro, às questões de
49
normalização e àquelas que se referiam à subjetividade; (3) refletimos
sobre as informações que constituíram as categorias e a partir dessas
últimas, recompomos alguns pontos do projeto inicial, bem como
localizamos novas subcategorias; (4) nomeamos provisoriamente cada
uma das categorias e subcategorias e passamos a desenvolvê-las,
articulando-as aos referenciais teóricos.
Como resultado desse conjunto de princípios e procedimentos,
elaboramos um quadro síntese com as principais categorias de análise e
elementos que surgiram mais evidentes nas narrativas (Apêndice A).
50
3 PRINCIPAIS ANTECEDENTES HISTÓRICOS PARA
COMPREENDER A INCLUSÃO ESCOLAR NO BRASIL
Se analisarmos o tratamento dado às pessoas com deficiência ao
longo da história encontramos uma série de abordagens, nomeadas por
diversos autores como paradigmas10
, úteis para olhar aqueles que fogem
à norma ou se distinguem da média.
Tais modelos de tratamento merecem consideração se
pretendemos compreender a atual condição de existência das pessoas
com deficiência, bem como o processo de inclusão escolar que vem
sendo instituído no Brasil desde a década de 1990. Evidentemente, o
olhar para o diferente esteve presente ao longo da história da
humanidade, com designações e tratamentos distintos e que têm sido
exaustivamente pesquisados. Considerando o contexto desta pesquisa
limitamos este capítulo à história mais recente.
Cientes de que seria ilusória qualquer análise pretensamente
neutra e objetiva sobre o fenômeno da inclusão, considerando com
Veiga-Neto (2001, p. 111) a ideia de que, entender os sentidos como
contingentes cria possibilidades de transformações e redirecionamentos.
Isso porque, “f anjos sobre os quais devemos
aplicar nossos esforços, seja para desativá-los, desarmá-los ou
desconstruí-los, seja para ativá-los ou redirecioná- ”. Importa, assim,
recuperar o contexto específico onde o conceito de deficiência vem
sendo construído e delineado.
Dessa forma, entendemos importante demarcar algumas
condições históricas que colaboram para o entendimento do processo
inclusivo, especialmente porque elas afetam a forma como os docentes
veem as pessoas com deficiência e seu trabalho junto a elas. Por sua vez,
tais percepções fortalecem mitos e estereótipos acerca das limitações e
possibilidades dessas pessoas.
Neste capítulo, recuperamos brevemente alguns antecedentes
históricos para compreendermos o atual quadro da inclusão no Brasil,
sobretudo a partir de três estágios (paradigmas) correspondendo às
atitudes desenvolvidas em relação às pessoas com deficiência ao longo
10 De acordo com Kuhn (1991, p.13) “paradigmas são as realizações científicas
universalmente reconhecidas que, durante algum tempo fornecem problemas e
soluções modelares para uma comunidade ”
51
dos séculos: o Paradigma da Institucionalização, o Paradigma da
Integração e o Paradigma da Inclusão.
Primeiramente, num período que se refere predominantemente à
Idade Média, o tratamento às pessoas consideradas não sociáveis se
dava por meio da segregação e do disciplinamento. Este período ficou
conhecido como Paradigma de Institucionalização, no qual a noção de
Instituição Total (GOFFMAN, 1987) é relevante.
Para Fernandes (2006), os padrões de normalidade levaram,
nesse período, a hegemonia da Medicina impulsionando a concepção de
deficiência baseada em critérios fundamentalmente orgânicos e
patológicos. Nesse quadro, destacam-se os estudos do psiquiatra
Fhilippe Pinel (França, 1745-1826), que adquiriu notoriedade ao
considerar as pessoas com perturbações mentais como doentes e
merecedoras de tratamento e ser o primeiro médico a descrever e
classificar algumas perturbações mentais (PESSOTTI, 1984, 1999).
O fato de ainda hoje pessoas com diagnóstico de deficiência
intelectual e de doença mental serem confundidas pelo imaginário
coletivo, indica o quanto as ideias de Pinel foram avançadas para sua
época.
O modelo de tratamento marcado pela visão organicista da
deficiência sustentou as práticas de correção e normalização que vão
marcar esse período e se manter, ainda que com outros contornos e
juntamente com outras práticas nos séculos seguintes. É somente
próximo ao final do século XVIII que surgem as primeiras iniciativas
buscando ultrapassar o modelo biológico da deficiência a partir dos
estudos de Jean-Étienne Esquirol (França, 1772-1840). Discípulo de
Pinel, destacou-se por propor uma dissociação importante entre
demência e idiotia (a primeira considerada científica). Na primeira
“ z q ‘órgãos d ’
perderam energia ou vigor, enquanto, na segunda, os órgãos
responsáveis pelas atividades intelectuais jamais se desenvolveram
normalmente” (PESSOTTI, 1999, p. 61) (grifo no original). Os estudos
de Esquirol inauguram o campo da Pedagogia para as pessoas com
deficiência mental. O processo de escolarização passou então a ser
considerado. Nesse contexto, Jean Itard (1774 - 1838) merece destaque
especial por ter sido um dos primeiros pedagogos intervindo junto ao
menino selvagem, capturado na floresta de Aveyron a quem chamou
Victor. Contestando o diagnóstico de Pinel, seu mestre, que afirmava ser
52
o menino acometido de idiotia, sendo portanto, inútil educá-lo, pois era
impossível restaurar suas faculdades danificadas, Itard iniciou um
trabalho de educabilidade do menino selvagem e propôs, com base na
pedagogia de John Locke11
(Inglaterra, 1632-1704), o primeiro
programa sistematizado para a Educação Especial em 1800.
Sobre as condições específicas de institucionalização, prática
corrente nesse período, importantes contribuições foram dadas por
Erving Goffman (1987) e Foucault (2004) e, no Brasil, por Pessotti
(1984).
Tais autores são unânimes ao descrever o sincretismo de casos e
pessoas abrigadas pelas instituições totais. Em linhas gerais, esses
estabelecimentos podiam ser definidos como um híbrido social, não
havendo um estatuto ou definição acerca da demanda abrigada. Desse
modo, eram acolhidos desde idosos, órfãos, deficientes, mutilados, até
pessoas consideradas de risco à sociedade, como prostitutas, idiotas,
loucos, libertinos, delinquentes, mutilados e possessos.
Buscando definir um aspecto comum a esses estabelecimentos,
Goffman (PESSOTTI, 1984, p. 17) descreve a ruptura das barreiras com
o mundo externo e a união das três esferas da vida: dormir, brincar e
trabalhar, no mesmo lugar e com os mesmos coparticipantes, tratados da
mesma forma e obrigados a fazer as mesmas coisas.
Foucault (2004) usa como data de referência para estas
instituições o ano de 1656, data do decreto de fundação do Hospital
Geral (Paris) que, segundo esclarece, não é um estabelecimento médico.
É uma estrutura semijurídica, uma espécie de
entidade administrativa que, ao lado dos poderes
já constituídos, e além dos tribunais, decide, julga
11 O filósofo rejeitava à doutrina das ideias inatas e defendia que elas provêm da
experiência. Segundo sua teoria, nada está no intelecto que antes não tenha
estado nos sentidos. Essay Concerning Human Understanding, traduzido por
Ensaio acerca do Entendimento Humano foi um dos principais trabalhos
de Locke. Publicado originalmente em 1690 f “ b
filosófica e crítica, a visão naturalista da atividade intelectual com suas
inevitáveis implicações éticas, pedagógicas e doutrinárias no campo da
deficiência mental. A meta última do Essay era mostrar a natureza e as
limitações do entendimento humano como argumento para fundamentar a
â f f z ”
(PESSOTTI, 1984, p.26).
53
e executa. [...] Exerce uma soberania quase
absoluta, [...] é um estranho poder que o rei
estabelece entre a polícia e a justiça, nos limites
da lei: é a terceira ordem de repressão
(PESSOTTI, 1984. p.50).
Quanto ao tratamento destinado aos internos, Goffman (1987,
p.24) descreve um processo de destruição das identidades que denomina
de “ f ” de mortificação acontece
simultaneamente ao de enquadramento, pelo qual:
O novato admite ser conformado e codificado
num objeto que pode ser colocado na máquina
administrativa do Estado e modelado suavemente
pelas operações de rotina (GOFFMAN, 1987,
p.26).
Em A História da Loucura (2004), obra de grande relevo que
orienta e transforma as ideias em curso no campo da saúde mental,
Foucault reafirma o caráter disciplinador das instituições totais em
relação aos indivíduos considerados não sociáveis. Assim, uma casa de
internamento, seguindo os preceitos religiosos e corretivos é
caracterizada como:
Uma instituição moral encarregada de castigar, de
corrigir uma certa "falha" moral que não merece o
tribunal dos homens mas que não poderia ser
corrigida apenas pela severidade da penitência. O
internamento se justifica assim duas vezes, num
indissociável equívoco, a título de benefício e a
título de punição. É ao mesmo tempo recompensa
e castigo, conforme o valor moral daqueles sobre
quem é imposto. Até o final da era clássica, a
prática do internamento será considerada nesse
equívoco: ela terá essa estranha convertibilidade
que a faz mudar de sentido conforme o mérito
daqueles a quem se aplica (ibidem. p.70) (grifos
no original).
Resguardadas as importantes conquistas obtidas a partir dos
processos de inclusão das pessoas com deficiência: a superação da
segregação física, a convivência e a participação na escola, no trabalho e
54
em outras esferas sociais, o respeito e a visibilidade conquistada, dentre
outros significativos progressos, tal forma de tratamento descrita pelos
autores pode ser, com nuances ou abrandamentos, reconhecida nos
processos de inclusão escolar na contemporaneidade. A presença dessas
pessoas no ambiente escolar caracteriza esse elemento de tensão e
contradição apresentado por Foucault, ao referir-se às casas de
internamento.
Assim, se de um lado, as políticas em vigor no início do século
XXI pretendem promover a equidade e assegurar a universalização do
acesso à educação no Brasil, dentre outras importantes conq “
t b f ” de outro, a partir de instrumentalidades
disciplinares aparentemente benevolentes, a escola compromete-se a
enquadrar, corrigir e punir, se necessário, tendo como fundamento
critérios de normalidade.
A violação da subjetividade e da identidade da pessoa com
deficiência, conforme vê-se, é uma condição historicamente construída,
que atenuada ainda persiste na escola. Treinados, cultural e
discursivamente, para olhar o diferente e enxergar o desviante, os
professores se apropriam de discursos que valorizam desvios e
perpetuam práticas que fazem com que os alunos internalizem,
igualmente, seu status de desviantes.
Retomando o percurso histórico que iniciamos, buscamos trazer
outros elementos que ajudem a pensar acerca dos limites que dificultam
a efetivação, na prática, do processo de inclusão escolar do aluno com
deficiência.
Por volta da década de 1950 destacamos o início de um
processo de desinstitucionalização que decorre especialmente dos
estudos de Goffman (1962) tratando da realidade dos manicômios,
prisões e conventos, quando o paradigma da institucionalização passa a
ser criticamente analisado. Esse processo resulta também de diversas
pesquisas denunciando a inadequação e ineficiência dessas instituições
na recuperação das pessoas com deficiência, bem como de movimentos
sociais, cujas bandeiras ideológicas foram sintetizadas na Declaração
Universal dos Direitos Humanos (1948).
O processo de desinstitucionalização foi impulsionado também, pelas duas grandes guerras mundiais (1914-1918/1939-1945), resultando
em muitas pessoas mutiladas que necessitavam assumir um papel
rentável pelo alto custo representado para a sociedade. A deficiência
passou então a ser vista como uma condição do indivíduo. Como se vê,
55
motivações econômicas impulsionaram o enfraquecimento daquele
paradigma.
Resultante de uma crescente diminuição da responsabilidade
social do Estado, aliada a duras críticas por parte da academia científica
ao movimento de institucionalização, bem como, da militância de
grupos envolvidos na defesa dos direitos civis das pessoas com
deficiência, fundamentou-se a ideia de integração. Esse estágio, iniciado
por volta da década de 1960, teve como objetivo reinserir a população
no circuito da produção econômica, promovendo a responsabilidade e
enfatizando um grau significativo de autosuficiência da pessoa com
deficiência, por meio de sua normalização.
A ideia de educabilidade dessas pessoas, estudada e difundida
por alguns importantes pensadores no decorrer dos séculos ganhou
força. Inspirada no ideário de Locke, o centro da teoria do conhecimento
e da teoria da moral, antes solidamente plantado no dogma e na
” é deslocado para a experiência individual12
, (PESSOTTI,
1984, p. 31) (grifo nosso).
Em decorrência, se as ideias são produto da experiência e do
exercício de funções intelectuais, elas precisam ser estimuladas, bem
como, as vivências pessoais priorizadas com relação ao determnismo
biológico. É assim, um aprendizado de fora para dentro, orientado não
para os déficits, mas para as possibilidades. A qualidade das
intervenções seria determinante para a aprendizagem e para o
desenvolvimento também dos indivíduos com algum déficit.
A ênfase na experiência sensorial proposta por Locke tornou-se
fundamento da didática moderna, juntamente com outros princípios
educacionais como a individualidade do processo de aprender e a
importância dos objetos concretos na aquisição de noções.
Outros nomes importantes que influenciaram o entendimento
sobre deficiência são Edouard Seguin (França, 1812-1880) e Maria
Montessori (Itália, 1870-1956).
Como médicos-educadores pioneiros, eles tiveram papel
expressivo na educação e, particularmente, na educação de pessoas com
deficiência: não acreditavam em padrões fixos e predeterminados, mas
nas possibilidades de transformação dos indivíduos a partir de estímulos
12 Essa dimensão valorizada por Locke é relevante para o nosso trabalho, pois é
na história de vida do indivíduo que encontramos suas experiências.
56
do ambiente; admitiam que todos, independentemente da condição
intelectual, eram potencialmente afeitos à aprendizagem; evidenciaram
em suas obras o respeito aos ritmos e percursos singulares de
aprendizagem e à adequação dos métodos e intervenções às capacidades
individuais; organizaram métodos e propostas de intervenção
inovadoras.
Outro expoente desse período foi Jean Piaget (Suíça, 1896-
1980). A partir da criação de um campo de investigação que denominou
epistemologia genética, uma teoria do conhecimento centrada no
desenvolvimento natural da criança, Piaget influenciou de forma
expressiva as práticas pedagógicas.
Em se tratando dos avanços educacionais ocorridos neste
período ganhou espaço também a discussão acerca da relação entre
deficiência, aprendizagem e desenvolvimento, amparada na psicologia
histórico-cultural e tendo em Vygotsky (Rússia, 1896-1934), Leontiev
(Russia, 1903-1979) e Luria (Russia, 1902-1977) seus principais
representantes.
As concepções de Vygotsky (1999, 2005) sobre o
desenvolvimento humano fundamentaram-se na ideia de que as funções
psicológicas superiores13
se desenvolvem no curso das interações sociais
por meio de elementos mediadores, não devendo, portanto, serem
buscadas em propriedades naturais do sistema nervoso.
Nesse contexto, Vygotsky (1997) evidenciou a importância de
um trabalho que concebe as funções psicológicas superiores como
modificáveis e os sujeitos, em interação com o meio e mediados por
instrumentos e símbolos, com potencial para o desenvolvimento.
Seus estudos no campo da Defectologia (1997) apontaram
também para a capacidade de compensação orgânica14
e para a
13 Funções psicológicas superiores ou funções superiores da consciência são
estruturas cerebrais tipicamente humanas dentre as quais encontram-se a
memória seletiva, o pensamento abstrato, a atenção concentrada, a vivência
emocional e a intencionalidade da ação (VYGOTSKY, 1999). 14
Todo defeito cria estímulos para elaborar uma compensação, ou seja, cria
uma reação individual e contínua de adaptação ao déficit (VIGOTSKI, 1997,
p.14). Exemplos são bem evidentes nos esportistas de alto rendimento e,
inclusive, entre os atletas paralímpicos que surpreendem e desconstroem a cada
dia os preconceitos.
57
importância da compensação social15
que pode mediar e apoiar o
processo de desenvolvimento, o que confirma o caráter flexível e
dinâmico da deficiência.
Vista a partir dessas abordagens, a mediação pedagógica passou
a incorporar novos significados e perspectivas educacionais viabilizando
o desenvolvimento de habilidades e o acesso a conhecimentos
historicamente produzidos. Importante é realçar, no entanto, que tais
concepções permaneceram nesse período e permanecem ainda hoje,
significativamente limitadas às discussões teóricas, sendo considerável a
dificuldade para serem deslocadas e materializadas nas práticas ditas
inclusivas.
Desse modo, embora sejam constatados avanços importantes
nesse período, o modelo de integração se pautava, conforme consta na
cartilha 01 do Projeto Escola Viva16
pela
[...] necessidade de modificar a pessoa com
necessidades educacionais especiais, de forma que
essa pudesse vir a se assemelhar, o mais possível,
aos demais cidadãos, para então poder ser
15 Segundo Vygotsky (1997) há uma deficiência primária, dada organicamente e
uma deficiência secundária, medida socialmente e que se caracteriza pela
presença de barreiras físicas e atitudinais que impedem e/ou dificultam a
participação social e cultural da pessoa com deficiência. A compensação social
diz respeito à criação de um ambiente social favorável, rico em estímulos, com
profissionais mediando o processo de desenvolvimento e possibilitando formas
de a pessoa com deficiência acessar níveis mais complexos de pensamento.
Poderíamos talvez afirmar que, no Brasil, um avanço concreto nas cidades em
termos de acessibilidade, está acontecendo de maneira muito mais rápida do que
a modificação do ambiente escolar rico em estímulos descrito por Vygotsky.
Um exemplo são os programas de mobilidade urbana, com calçadas, sinaleiras e
transportes adaptados, bem como aqueles de acessibilidade à cultura, com
descrições de cenários em peças de teatro e cinema para cegos etc. A criação do
segundo professor representa na escola a mesma intenção. Entretanto, nossa
pesquisa e outras revelam que essa prática reintroduz uma espécie de exclusão
incluída, embora, evidentemente, seja sutil e represente um avanço. 16
Projeto organizado pela Secretaria de Educação Especial do Ministério da
Educação, constituindo-se de uma coletânea de materiais contendo cartilhas e
material audio-visual destinados aos programas de formação de professores
visando garantir o acesso, a permanência e o ensino de qualidade aos alunos nas
salas de aula do ensino regular.
58
inserida, integrada ao convívio em sociedade
(BRASIL, 2000, p.16).
Nesse contexto, as práticas docentes sustentavam-se na ideia de
correção da deficiência entendida como o lugar do desvio, da desordem,
do risco17
b “
discursos psicológicos combinados com discursos médicos e de
assistência so b ”
(SARDAGNA, 2013, p.45). Proliferaram-se, assim, os serviços e
recursos especializados visando habilitar e/ou reabilitar as condições
anatômico-fisiológicas das pessoas.
Para compreendermos o que ocorreu nesse período, é
apropriada a análise de Foucault (1996), sobre o processo de
normalização que de forma ainda bastante intensa, se mantém, neste
período. Para o autor (idem p. 114), se no século XVIII os objetivos da
reclusão visavam afastar os indesejados do convívio com as demais
f ô q “ ” é
XIX essa institucionalização teve como objetivo a reformação ou
correção dessas “ ”
“ ” b
risco18
.
No sentido do exposto há, neste segundo momento, um
deslocamento de sentidos que não incide diretamente sobre a perda de
direitos do indivíduo com deficiência, mas na sua adaptação visando
aumentar a segurança das populações, ou seja, diminuir-lhes o risco, o
perigo e a crise. Assim, conforme Foucault (1996, p. 114),
A fábrica não exclui os indivíduos; liga-os a um
aparelho de reprodução. A escola não exclui os
indivíduos; [...] ela os fixa a um aparelho de
transmissão do saber. O hospital psiquiátrico não
exclui os indivíduos; liga-os a um aparelho de
correção, a um aparelho de normalização dos
17 A noção de risco é tratada por Foucault (2002a) no contexto da vigilância,
disciplina e regulação das populações. Esse controle se efetiva a partir de
tecnologias de poder, como o biopoder e a governamentalidade. Norma e risco
são conceitos que retomaremos no capítulo 4.0. Biopoder é definido na nota 20
e governamentalidade abordada no item 4.2.
59
indivíduos. A principal finalidade dessas
instituições é fixá-los a um aparelho de
normalização. [...] Trata-se, portanto, de uma
inclusão por exclusão.
O que se pode depreender é que, embora não mais segregadas e
ainda que importantes mudanças tenham ocorrido no padrão de relação
das sociedades com as pessoas com deficiência, esse paradigma
permanece fortemente circunscrito a discursos e práticas normalizantes.
Se institucionalizadas essas pessoas sofriam privações, violações físicas
e padeciam de um processo de deformação identitária, uma vez
afastadas do convívio familiar e social; integradas, elas passam a sofrer
b “ ”
Nesse sentido, ainda que se utilizando de mecanismos mais
sutis e bem intencionados (esta parece ser uma diferenciação
importante), persiste na escola a cultura do enquadramento e da
normalização. A exemplo do que já ocorria no modelo de
institucionalização total, a escola mantém-se, nesse período, conforme
escreveu Goffman (1987, p. “ f pessoas; cada
é b q f z ”
O domínio disciplinar que se estabelece sobre os corpos,
conforme descreve Foucault (2013, p.133), f “ ”
dispensa as relações custosas e violentas introduzidas em períodos
anteriores por meio da sujeição, para transformar-se em uma relação de
coerção sobre os corpos, uma manipulação calculada19
de seus
elementos, de seus gestos e de seus comportamentos que torna os
sujeitos tanto mais produtivos quanto mais dóceis.
Imersos em um processo de ritualização e interpelados pelo
poder disciplinar que atinge toda a escola, os professores têm
dificuldade em romper tal padrão, mantendo o processo de exclusão.
Novas técnicas de controle e normalização são acrescentadas às práticas
pedagógicas como forma de cumprir com as prescrições das políticas
19 Pode não ser de todo inapropriado pensar o imenso volume de documentos
educacionais com os quais o sistema educacional brasileiro conta, entre
diretrizes, projetos político-pedagógicos obrigatórios, somados a diretrizes
destinadas a orientar os passos dos professores. Podemos entender esse
emaranhado de documentos aos quais os docentes dão extremo valor como
formas de controle e disciplinamento que deixam escasso espaço para
autonomia, protagonismo e criatividade.
60
educacionais. Essa limitação de ação vincula-se também a um poder
disciplinar que opera sobre a agência docente (PIGNATELLI, 2001,
p.140), impossibilitando o autodistanciamento dos professores ou, nas
F 8 f f “ ”,
associada a um cuidado constante com a verdade. Ao mesmo tempo,
essa passividade docente tende a restringir os significados dos processos
de inclusão e a fixar determinadas verdades.
Decorrente desse panorama, o paradigma de integração
rapidamente começou a perder forças. A ideia de assemelhar os
diferentes o mais possível dos cidadãos considerados normais não pode
sustentar-se por muito tempo, conquanto a deficiência não é algo que se
apague, mas requer ser administrada na convivência social.
Fruto desse entendimento, teve ênfase no Brasil, a partir de
1990, o processo denominado de inclusão educacional. Balizado por
discussões realizadas em encontros internacionais como as conferências
de Jomtien (1990) e Salamanca (1994), cujo objetivo foi minimizar as
desigualdades sociais e desenvolver um sistema educacional inclusivo,
as políticas públicas passaram a propor iniciativas educacionais nessa
direção.
Em conformidade com esses objetivos, as Diretrizes Nacionais
para a Educação Especial na Educação Básica, Resolução CNE/CEB nº
2/2001, no artigo 2º, determinam que:
Os sistemas de ensino devem matricular todos os
estudantes, cabendo às escolas organizarem-se
para o atendimento aos educandos com
necessidades educacionais especiais, assegurando
as condições necessárias para uma educação de
qualidade para todos (MEC/SEESP, 2001).
Este paradigma sustentou-se na concepção de diversidade e de
respeito às necessidades de todos os cidadãos. Para isso disseminou-se a
ideia de que a escola e a sociedade deveriam oferecer os suportes para a
plena participação nos espaços sociais, independente das condições, do
tipo de deficiência ou do grau de comprometimento apresentado.
A Educação Especial organizada tradicionalmente como
atendimento educacional especializado substitutivo ao ensino regular
assumiu um caráter transversal, complementar ou suplementar ao ensino
regular e as escolas especiais, consideradas por muitos segmentos
sociais como segregadoras, passaram a ser severamente criticadas.
61
Nesse ínterim, a militância em favor dos direitos das pessoas
com deficiência ganhou força, inúmeras leis foram aprovadas e
documentos norteadores das políticas públicas foram sistematizados.
No entanto, ainda que as práticas de inclusão possibilitem
visualizar certa descontinuidade em relação às práticas anteriores,
desmistificando as condições de existência das pessoas com deficiência,
mantém-se o princípio da normalização inscrita numa lógica de
ordenamento nos moldes disciplinares que visa um processo de
homogeneização da escola.
O controle sobre os corpos se multiplica. De uma estrita
colaboração entre os gestores do Estado e os especialistas (médicos,
psiquiatras, sanitaristas e outros) potencializa-se uma forma de fazer
política, denominada por Foucault de biopolítica20
e um poder coletivo
sobre a vida, que denominou biopoder (FOUCAULT, 2002a).
Flickinger (2014), sustentando seus argumentos na Teoria
Crítica21
, chama também a atenção para os perigos da inclusão quando
submetida à norma:
20 Os conceitos de biopolítica e biopoder estão associados. Foram cunhados
originalmente por Foucault e designam uma nova forma de poder presente no
fim do século XIX e início do século XX. As diferentes formas de
disciplinamento, antes direcionadas para os indivíduos, passam a atuar sobre o
conjunto deles, ou seja, sobre a população, sobre a gestão da saúde, da higiene,
da alimentação, da sexualidade, da natalidade, dos costumes etc., na medida em
que se tornaram preocupações políticas. Esse conceito pode ser entendido, na
atualidade a partir do Plano de Enfrentamento à Microcefalia, desenvolvido
pelo governo federal para erradicação do foco do mosquito Aedes aegypti,
responsável pela transmissão do Zika Vírus. O controle dos corpos,
principalmente das mulheres grávidas e de seu modo de vida passou a ter
centralidade nas ações de prevenção do governo. A biopolítica representa assim,
“ ” q f de controlar a
vida e garantir a normalidade. 21
A Teoria Crítica, desenvolvida na Escola de Frankfurt utiliza pressupostos do
marxismo para explicar a sociedade e a psicanálise para esclarecer a formação
do indivíduo. Um dos principais questionamentos é entender o indivíduo frente
à dor do autoritarismo, negando sua própria condição de ativo no corpo social.
Com o intuito de questionar o autoritarismo e confrontá-lo, os pensadores
ligados à teoria crítica se interessam por temáticas associadas à emancipação
humana, valorizando a cultura e a ação comunicativa. Alguns de seus principais
expoentes são: Theodor Adorno, Jurgen Habermas, Max Horkheimer, Axel
Honneth.
62
Ao primeiro olhar, a estratégia pedagógica da
inclusão social parece ser justa, em razão do seu
objetivo de aumentar as chances de participação
no sistema educativo também daqueles que têm
sido dele excluídos ou colocados à margem. No
entanto, essa estratégia tem um lado perigoso,
pois, ao fazer todos se submeterem às normas do
sistema dado, ela desrespeita a variedade de
diferenças legítimas de seus integrantes
(FLICKINGER, 2014, p.37).
Visto por essa ótica, o movimento inclusivo se apresenta ainda
com muita força, como meio de adaptação dos indivíduos, visando a
manutenção do status quo. Desta forma, uma questão permanece na
pauta das discussões: é possível pensarmos alternativas mais inclusivas
e humanizadoras para as pessoas com deficiência, sem que o foco
principal seja submetê-las a um processo de normalização?
Considerando o contexto apresentado, como viabilizar o direito de ser
diferente?
Uma resposta possível a tal questionamento precisa levar em
conta o próprio conceito de diferença constituído nos diversos contextos
históricos, o que envolve uma discussão ética sobre inclusão e uma
dimensão filosófica da diferença, “a qual tem como tarefa arrancar a
diferença de seu estado de maldição” (DELEUZE, 2000 in GALLO,
2011, p.8).
A reflexão de Veiga-Neto (2001, p.110) reforça o argumento
que vimos buscando sustentar ao longo deste trabalho e que nos parece
constituir a gênese de toda a limitação da ação docente junto às pessoas
com deficiência. Para o autor, se parece mais difícil ensinar as classes
inclusivas nas quais os chamados normais estão misturados com os
chamados anormais:
[...] não é tanto porque seus (assim chamados)
níveis cognitivos são diferentes, mas, antes,
porque a própria lógica de dividir os estudantes
em classes - por níveis cognitivos, por aptidões,
por gênero, por idades, por classes sociais etc. -
foi um arranjo inventado para, justamente colocar
em ação a norma, através de um crescente e
persistente movimento de, separando o normal do
63
anormal, marcar a distinção entre normalidade e
anormalidade.
Essa modalidade de entendimento e tratamento dos diferentes
traz a necessidade da formação continuada22
em educação inclusiva para
professores e equipes diretivas. Compartilhamos desse entendimento
porém, a partir de um olhar que compreende tal formação fundamentada
na construção de uma política docente que situe em primeiro plano as
experiências dos sujeitos concretos da ação pedagógica, isto é, que parta
de suas histórias de vida.
No contexto das tensões e contradições que este breve
retrospecto histórico evidenciou, e tendo em conta a grande dificuldade
de concretizar, na prática, o processo inclusivo, o desafio desta pesquisa,
sustentada nos autores que trazemos é pensar a inclusão a partir da
categoria docente como uma categoria política, capaz de exercer sua
liberdade e protagonismo. Consoante a isso Pignatelli (2011, p. 142):
[...] o que é necessário é um respeito pelas
pessoas, pelas suas experiências e suas condições,
juntamente com uma discussão oportuna e uma
mediação crítica, à medida que as ocasiões se
apresentam.
Acrescentamos: respeito pelas pessoas com deficiência e
também pelos professores, que também padecem por falta de
reconhecimento e autorreconhecimento.
22 Com esse propósito foi instituído no ano de 2003 o programa Educação
Inclusiva: Direito à Diversidade. O propósito do programa foi estimular a
formação de gestores e educadores para a criação de sistemas educacionais
inclusivos, tendo como princípio a garantia do direito, dos alunos com
necessidades educacionais especiais, de acesso e permanência, com qualidade,
nas escolas regulares.
64
4 O PROCESSO DE INCLUSÃO ESCOLAR: ELEMENTOS
PARA AMPLIAR SEU ENTENDIMENTO
Existem momentos na vida onde a questão de
saber se se pode pensar diferentemente do que se
pensa, perceber diferentemente do que se vê, é
indispensável para continuar a olhar ou refletir
(FOUCAULT, 1984, p. 13).
“ ”! f q nuncia este trabalho
corresponde a um dos discursos fortemente sustentados pelas
professoras, sujeitos desta pesquisa, evocados durante o decurso do
trabalho empírico que realizamos. As docentes assim justificam a sua
inoperância e manifestam sua frustração diante do processo de inclusão
de alunos com deficiência na rede de ensino regular. Vejamos alguns
trechos de suas falas durante o Seminário.
“Está faltando capacitação para os professores. Essa é uma situação que me angustia, não nos foi dada base de trabalho,
[...]não nos deram bagagem teórica pra trabalhar a
deficiência. [...]Botaram todos nós em um rio, cada um nada do
seu jeito ou se afoga. Planeje se você for um professor
comprometido, se não, faça de conta que você está fazendo [...] e que está tudo a mil maravilhas. A gente precisa se perguntar,
até que ponto isso é inclusão”? (Catarina)
“Eu considero que não é porque os professores não queiram, é
porque não estão preparados. Veio tudo de cima pra baixo, não
teve uma orientação básica, cada professor trabalhou a seu modo. O que eu considero a falha do sistema foi: capacitaram
os professores dos anos finais? Não! Até onde eu sei, não sei se
participaram de alguma capacitação. Aí claro, cada um desenvolve a sua teoria, de acordo com os seus conceitos, os
seus valores, sua visão” (Beatriz).
Esses dois depoimentos que apontam a capacitação insuficiente
como elemento dificultador do processo de inclusão estão presentes no
discurso docente quando se fala sobre a temática da inclusão, situação
constatada anteriormente à pesquisa também no trabalho de assessoria
65
que realizamos junto aos professores das escolas regulares (2011-2013)
e explicitamos na introdução deste trabalho.
É importante destacar que dez anos se passaram desde que o
Estado de Santa Catarina, ao adotar o princípio de Educação Inclusiva,
lançou sua Política de Educação Especial23
(2006). No entanto, os
discursos que colocam o despreparo do professor como justificativa para
os problemas enfrentados no processo de inclusão são recorrentes, não
sofreram qualquer alteração e podem ser ouvidos cotidianamente nas
escolas e eventos que discutem a inclusão.
Entendemos que a formação inicial e continuada na área da
Educação Especial é importante, porquanto possibilita ao professor
adquirir conhecimentos específicos que lhe permitirão atuar com maior
segurança junto ao aluno com deficiência. Reconhecemos também, o
fato de alguns desses professores não terem sido favorecidos com essa
modalidade de formação.
No entanto, acompanhando boa parte dos professores durante as
assessorias técnico-pedagógicas, nos perguntamos se, a partir das
orientações, estudos e reflexões que, junto a eles desenvolvemos
sistematicamente - seja em momentos de formação, conversas informais,
leituras e no contato estabelecido com os alunos - não estariam eles
capacitados, em alguma medida, para atuar pedagogicamente com os
alunos da Educação Especial?
Nesse sentido, e considerando a complexidade desse processo,
nosso esforço é por buscar dar maior clareza à questão, determinando
conceitualmente os limites das proposições trazidas pelas professoras,
sujeitos da pesquisa de campo.
Entendemos necessário problematizar as metanarrativas24
proferidas em nosso meio educacional, propondo um olhar que não nega
a importância da formação para as práticas inclusivas, mas considera
23 Documento editado pela Secretaria de Estado da Educação de Santa Catarina
por meio da Fundação Catarinense de Educação Especial (2006). Apresenta as
diretrizes para a Educação Especial no Estado, definindo os fundamentos, o
público, os serviços e os níveis e modalidades de ensino. 24
Podem ser definidas como qualquer discurso que proponha formar
consensos universais. São esquemas explicativos universalizantes, visões
totalizantes utilizados para explicar fenômenos educacionais em que certos
grupos impõe suas visões particulares, disfarçadas como universais, às de
outros grupos.
66
indispensável compreender os processos sociais e políticos mais amplos
e as relações de poder neles implicadas. Pensamos que tal entendimento
pode permitir às docentes abandonar essa posição de impotência que
expressam, de modo que sintam-se mais capazes de fazer sua parte na
inclusão desejada.
Assim, mantemos no decurso deste trabalho um olhar de reserva
sobre as práticas ditas inclusivas, por entendermos que a escola
conforma o macro contexto, marcado por profundas contradições. Tais
contradições se refletem no espaço escolar e se caracterizam, de um
lado, pelo processo de controle do Estado - que nas últimas décadas vem
se desresponsabilizando25
pelos efeitos das políticas educativas - e, de
outro, pelo reforço da responsabilização individual dos professores em
incluir alunos com deficiência.
A emergência da retórica discursiva em torno da inclusão
dificulta a compreensão dos determinantes externos à escola e à sala de
aula, resultando em sofrimento, sentimento de impotência e culpa,
fragilidade identitária e baixa autoestima, situações vivenciadas pelos
docentes muitas vezes de forma solitária. Afinal de contas, como
expressar que não dão conta da sua tarefa, que não conseguem sucesso,
que é difícil? Como contrapor-se aos discursos oficiais entusiasmados,
sem que isso seja lido como incompetência, desinteresse ou sem que sua
habilidade profissional seja colocada em xeque?
Como resultado dessa alienação ou da constatação pouco
produtiva q “ b ”, há uma
dificuldade em se fazer emergir na escola estratégias de resistência que
minimizem as dissonâncias entre o trabalho prescrito e o trabalho real.
Esse descompasso incide no que Correia e Matos (2000), ao abordarem
“ õ q f ” nomeiam
de “ b z bj ” f
“ â q f
25 A partir da década de noventa, surge um forte discurso de modernização da
economia, com críticas à ação direta do Estado principalmente nos setores de
proteção social. O Governo Federal passou a defender uma forma de
organização em que o Estado deveria deixar de ser o responsável direto pelo
desenvolvimento econômico e social pela via da produção de bens e serviços
para fortalecer-se na função de promotor e regulador desse desenvolvimento
(MACIEL; KASSAR, 2011, p.19).
67
existência de um grande processo de erosão das relações entre as
b õ b õ f ” idem. p. 96).
Entendemos que esse processo de desmobilização se reflete no
discurso das docentes com quem trabalhamos, vinculando-se à narrativa
do despreparo. Associamos este argumento, sobretudo a duas questões
principais, sobre as quais discorremos nos parágrafos seguintes:
A primeira dessas questões associa-se aos dilemas e às
complexas pressões do ambiente escolar que envolvem uma sobrecarga
de trabalho, um sentimento de impotência diante das dificuldades e,
ainda, um conflito vivido pelos professores diante de um quadro
prescritivo, muitas vezes dificultado pela variabilidade de situações que
compõe o contexto escolar. Alguns desses conflitos são expressos no
desabafo da professora Catarina:
“Vem uma ideia linda e maravilhosa que a gente precisa valorizar a subjetividade do nosso aluno. Mas e aí? A gente tem
pouco apoio e o papel aceita tudo. Dentro da sala de aula se o
professor quiser fazer de conta que ensinou, os alunos são coniventes ao ponto de fazerem de conta que estão copiando e
que está tudo a mil maravilhas”.
“Não adianta a gente dizer que a gente aceita a inclusão com naturalidade porque eu tenho que respeitar e lutar pelo direito
do meu outro aluno”.
O primeiro relato aponta para a sala de aula como o espaço do
refúgio, como se a espessura das paredes protegesse o professor da
incompreensão (CORREIA, 2008, p.41). Assume-se as dificuldades de
se colocar em prática uma proposta de inclusão coerente com os
princípios estabelecidos, ao mesmo tempo em que se evidencia a
fragilidade do cotidiano da sala de aula, especialmente para aqueles
sujeitos que resistem à organização normatizadora da escola.
No segundo depoimento, a professora, referindo-se a um aluno
agressivo que não se adaptou ao processo de inclusão, aponta para uma
ambivalência vivida no contexto da sala de aula. Se é justo que o aluno
com deficiência tenha acesso à educação também é justo que o outro não
seja prejudicado. Essas e outras contradições que são perceptíveis
quando confrontamos o trabalho prescrito e o trabalho real, sinalizam às
68
professoras que não estão preparadas por não conseguirem cumprir os
programas e responder adequadamente ao que delas se espera.
A outra questão a qual associamos o sentimento de despreparo,
resulta da ideia de normalização. Nesse contexto, percebemos estar
presente uma retórica que celebra o respeito à diferença, mas que na
prática não se sustenta. Nesse caso, um padrão de aluno, de ensino e de
aprendizagem atravessa os discursos das professoras, posicionando a
pessoa com deficiência como não aprendente, e suas práticas docentes
na educação inclusiva, como pouco eficazes. Deste modo, ao se
autodefinirem como não preparadas, as docentes estão se referindo, na
verdade, à sua dificuldade em controlar, enquadrar e governar a
diferença.
Desse modo, buscando ampliar o escopo de compreensão dos
processos de inclusão, dividimos este capítulo em dois blocos: no
primeiro recorremos especialmente a Castel (2000) e no segundo a
Foucault (1996, 2002a, 2002b, 2008, 2013).
Ter Castel como referência atende ao propósito de evidenciar a
origem dos desequilíbrios atuais dos quais decorrem as situações
denominadas de exclusão. O conceito de desfiliação social (ibidem.
p.24) utilizado pelo autor para se referir a situações frequentemente
nominadas de exclusão, sustenta algumas das importantes reflexões
desse bloco.
Ao contextualizarmos os processos de inclusão escolar, não
pretendemos caracterizar os determinantes sociais e políticos como
imobilizantes, no sentido de que pouco ou nada se possa fazer contra
eles, mas conscientizar os professores acerca dos limites de sua ação,
tornando-os assim, mais capazes e livres para procurar fazer o possível
de ser feito.
Pensamos que esse procedimento pode incidir na superação da
estranheza identitária, da desilusão e do sentimento de fraqueza,
frequentemente experimentados pelos docentes que atuam com estes
alunos. Entendemos, ainda, que essa conscientização pode manifestar-se
também na emergência de um processo de autoria, uma vez abandonada
a ideia de que existem princípios universais, inquestionáveis e
reguladores do trabalhando docente. Convergindo com esse movimento, pensamos que essa tomada
de consciência possibilitará às professoras compreenderem que as
teorias, os conceitos e os saberes são constitutivos da prática
69
pedagógica, construídos e (re)construídos coletivamente desde o seu
meio, nas experiências e contradições vividas no chão da sala de aula.
No segundo bloco, recorremos a Foucault buscando analisar as
políticas e as práticas de inclusão a partir de uma análise da diferença e
sua relação com a governamentalidade.
Se com Castel nos ocupamos em explicitar as questões que se
“ fora ” F realizamos uma
imersão no interior da sala de aula, problematizando as práticas
pedagógicas em sua transversalidade com as questões de poder,
disciplina, vigilância e normalização.
Ao trazermos essa análise pretendemos evidenciar que, em
grande medida, os enquadramentos que resultam da necessidade de
normalização dos alunos com deficiência, são incompatíveis com a
lógica da inclusão, e que tais práticas incidem em um sentimento de que
é impossível vivenciar essa experiência em espaços comuns de
escolarização.
4.1 OS LIMITES DA INCLUSÃO ESCOLAR QUANDO
DESCONECTADA DOS PROCESSOS DE INCLUSÃO SOCIAL
Os processos de inclusão social e de inclusão escolar de pessoas
com deficiência respondem (ou parecem responder) a reivindicações de
certos setores da sociedade e se apresentam como conquista de direitos.
Tal movimento, entretanto, é também de interesse de outros segmentos
da sociedade, não especialmente alinhados com a inclusão de
populações por diversos motivos marginalizadas, encontrando forte
ressonância principalmente entre os setores político-econômicos. Incluir
passa a representar, assim, um avanço interessante do ponto de vista de
que, nessa condição, as pessoas passam a participar e alimentar a lógica
produtivista, que precisa um grande contingente de consumidores para
manter a máquina industrial em curva continuamente crescente.
Partindo das análises de Maciel e Kassar (2011) sobre a
inclusão e a política educacional, podemos considerar que é no contexto
da lógica capitalista e sob forte influência de acordos internacionais26
26 As políticas públicas de inclusão se articulam a documentos orientadores
produzidos pela Unesco e pelo Banco Mundial. Resultando dos acordos
firmados, os países assumem o compromisso de garantir prioridade à educação,
70
que a partir da década de 1990, as políticas públicas passam a considerar
crianças e jovens com deficiência que permaneciam fora do ambiente
escolar como potencial aumento de força produtiva e consumidora.
Dentre esses acordos, dois importantes documentos passam a
orientar os processos educacionais e a comprometer as instituições
definindo metas de escolarização de qualidade para todos: a Declaração
Mundial de Educação para Todos27
e a Declaração de Salamanca28
.
Envolvidos com os ideais de universalização da escolaridade
básica, de acesso educacional equitativo e de redução das desigualdades,
ambos os documentos apresentam como linhas norteadoras os princípios
inclusivos e colocam a educação em lugar de destaque nessa tarefa. Tais
princípios se articulam também às recomendações para que sejam
desenvolvidas nos alunos habilidades necessárias ao cotidiano da vida,
que correspondam às demandas sociais, sobretudo com vistas a torná-los
economicamente ativos.
Neste contexto, chama-nos a atenção a ênfase dada à escola
como mecanismo social privilegiado e à educação como fator
preponderante na redução/eliminação da desigualdade e da exclusão. Ao
assumirmos esse estranhamento, não queremos desresponsabilizar a
escola de suas importantes contribuições para as mudanças esperadas;
ao contrário, reconhecemos que, se ela não muda sozinha a sociedade,
tampouco haverá uma transformação que não passe por suas vias.
Também não nos cabe sugerir algum tipo de contestação ao acesso das
pessoas com deficiência aos espaços formais de escolarização.
Admitimos a legitimidade desse processo, bem como, para que isso
ocorra, a necessidade de reinventarmos os processos de ensinar e
aprender.
No entanto, as políticas brasileiras sinalizam que tão logo os
sistemas educacionais consigam cumprir com as proposições emanadas
das conferências internacionais, os desequilíbrios sociais serão
resolvidos, o que consideramos uma ilusão que vem sendo difundida
comprometendo-se com as metas de escolaridade básica de qualidade para
todos. 27
Declaração originada da Conferência Mundial sobre Educação para
Todos (Jomtien/Tailância, 1990), convocada pela Unesco, Unicef, PNUD e
Banco Mundial. 28
Resulta da Conferência Mundial sobre Necessidades Educacionais Especiais
promovida pela UNESCO (Salamanca/Espanha,1994).
71
mundo afora. E se assim não ocorrer, devemos então concluir que a
escola é, por essência, conservadora e resistente à mudança? Que há um
comodismo generalizado por parte dos docentes? Que estamos todos
despreparados para assumir a inclusão? Da forma como estão colocadas,
seguindo uma lógica linear, perfeitamente conciliável e isenta de
contradições, passa- q “ desigualdade social dos alunos,
resultante das relações históricas entre os homens, desaparecerá no dia
em que a escola regular conseguir prover equitativamente oportunidades
para todos" (CARMO, 2001, p.45).
Convém lembrar também que tais recomendações, por sofrerem
a ação deliberada do Estado, respondem a seus interesses e
necessidades. Por essa razão, entendemos que uma análise acerca dos
processos de inclusão escolar não pode se limitar a uma mera
compreensão das políticas públicas específicas para a área, mas
sobretudo, precisam articular-se aos determinantes estruturais mais
amplos que as condicionam e legitimam.
A escola não é uma ilha. É sim, um nodo de uma rede, de uma
malha de regulações em que os pontos se conectam entre si e desde onde
se desenvolvem ações articuladas, ainda que cada segmento mantenha
objetivos diferentes. É o que poderíamos chamar de uma “ genharia
socia ” (WALLERSTEIN, in MACHADO; BIANCHETTI, 2011). Para
os autores, essa engenharia social é composta de um emaranhado
complexo de forças e poderes, concretizados em entidades e outras
formas de organização, como por exemplo os organismos
internacionais, com seus diagnósticos que se transformam em
prognósticos e seus mapeamentos que são, de fato, prescrições. A ação
docente, dentro da sala de aula está perpassada por tais redes e
articulações distantes, que podem ser entendidas também a partir da
noção de capilaridade do poder de Foucault (2002b).
Nesse ponto nos reportamos a Castel (2000) em sua análise
sobre a desigualdade e a questão social. Para o sociólogo, as políticas de
discriminação positiva29
que se apresentam como tentativas de prevenir
ou compensar as desvantagens sofridas por algumas categorias sociais
29 Poderíamos aproximar a expressão de Castel na atualidade brasileira das
“ f ” q f
algumas categorias sociais em matéria de acesso ao trabalho, à moradia, à
educação etc., ou seja, amenizar ou reparar distorções e desigualdades, manter o
nível de desenvolvimento e acomodar possíveis conflitos.
72
encobrem, na verdade, as dinâmicas sociais globais que são
responsáveis pelos desequilíbrios atuais" (CASTEL, 2000, p.25).
Por essa ótica, o fenômeno da exclusão é visto como algo
natural e intrínseco às relações que se estabelecem em sociedade, e as
vítimas da exclusão não são vítimas de ninguém, a não ser de si
próprias, de sua própria incompetência, e como tal, esse fenômeno não
necessita ser interrogado ou problematizado. Desse modo, desejar
compreender os processos de inclusão escolar sem buscar sua
ancoragem nos processos sociais que acionam a exclusão limita seu
entendimento, bem como inibe a criação de estratégias que a longo
prazo podem resultar em avanços nesse processo.
Considerando os limites desse estudo, temos como propósito
tensionar as práticas em nosso contexto ditas de inclusão, buscando,
como sugere Castel (2000), desarmar algumas armadilhas que sustentam
os ideais inclusivos.
O percurso que delimita este trabalho - iniciado em decorrência
das assessorias técnico-pedagógicas30
aos professores da rede regular de
ensino e concluído com o Seminário de Implicação e Pesquisa31
-
possibilitou-nos compreender que fatores externos à escola precisam ser
considerados se desejamos pensar de outras formas, por outras vias que
não aquelas em voga que proclamam a inclusão como uma espécie de
panacéia educacional, suprimindo a potência de reflexão e de
pensamento crítico dos docentes, tão necessária ao enfrentamento dos
problemas dela advindos.
Esses fatores, muitas vezes ignorados pelos professores, os
levam a assumir essa tarefa como se a responsabilidade de conduzir esse
processo fosse unicamente da escola e de si próprios. Nas narrativas das
professoras, buscamos exemplificar as condições em que a
metanarrativa da inclusão opera sobre o discurso docente.
“Muitas vezes a gente usa tantas estratégias, busca, e mesmo assim não encontra...Eu trago atividades diferenciadas dentro
dos meus objetivos e eles (os alunos) não conseguem se
motivar. Eu busco, eu corro, eu me esforço [...] e na sala eu fico: sente direito, vamos, fale! Eles não ligam, não estão
30 Conforme descrito na introdução deste trabalho.
31 Trabalho para a coleta de dados desta pesquisa realizado junto às professoras,
conforme descrito na página 30.
73
motivados a aprender o que eu estou trabalhando e eu fico pensando: o que está acontecendo, meu Deus, comigo?”
(Raquel)
“O que mais me angustia é porque estas pessoas que estão nas nossas mãos são as pessoas que vão administrar a sociedade.
[...] Aí eu me questiono, meu Deus: o que eu fiz por esses
alunos? Eu penso que eles são o resultado do trabalho que nós fazemos” (Beatriz).
“A sociedade vai cobrar desse aluno que ele tenha uma missão, que ele possa ser alguém. Isso é nossa responsabilidade”
(Angélica).
“Eu acho que inclusão significa aceitar o aluno e exclusão, rejeitar” (Catarina).
“Inclusão é um desafio que a vida nos impõe [...]a busca da solução. [...] A inclusão tem que começar por mim e por cada
uma de vocês” (Sarah).
“A maior frustração da gente é em relação à aprendizagem, esse retorno que muitas vezes não vem” (Maria Aparecida).
Esta centralidade da inclusão na dimensão pedagógica faz com
que recaia sobre os professores a culpa pelo insucesso do aluno. Essa
situação gera tensão e ansiedade, principalmente quando esses
profissionais assumem os problemas decorrentes do processo como algo
que necessita ser superado exclusivamente por cada um deles. Não
encontrando saídas viáveis, com frequência frustram-se, considerando-
se pouco competentes. Diante disso, é preciso pensar sobre as condições
reais com que contam os professores para transformar a realidade e os
discursos sobre inclusão em termos mais ou menos concretos.
Para que possamos compreender a escola, é necessário analisar
seu entorno e o quanto sua realidade é afetada pelo contexto econômico,
cultural e social de espectro mais amplo. Não é possível entender sua
função social sem que haja uma reflexão sobre quem aprende, quem
ensina e desde onde são estabelecidas as condições e exigências que
envolvem os docentes neste processo. Compreender melhor essa
74
dinâmica pode nos auxiliar a dimensionar os desafios do processo de
inclusão, uma vez que nos cabe interrogar em que medida, a escola
como uma das múltiplas partes da engrenagem social tem possibilidade
(se tem!?) de transformar as situações ditas de exclusão.
É nesse sentido que Castel (2000) chama atenção para o uso do
termo exclusão, considerando que, via de regra, são realizadas análises
setoriais “ b [ ]
e consequentemente, são construídas políticas que não consideram a
relação entre a lógica econômica e a coesão social” (ibidem. p.13).
Castel (2000) questiona a legitimidade e o uso conceitual que se
faz do termo exclusão - empregado de forma indiscriminada e genérica
como um mot-valise32
para definir todas as modalidades de miséria do
mundo - “ z õ q f z q
” ibidem. p.19). Para esse autor, parte das
situações classificadas como sendo de exclusão, resulta das
vulnerabilidades decorrentes das transformações que se operam no
mundo do trabalho, causando a degradação dos sistemas de proteção ao
trabalhador (ibidem. p.14/15).
Assim, quando falamos em exclusão estamos, na verdade, nos
referindo a um disfuncionamento, a processos de desestabilização,
precarização, vulnerabilidade, q “ ” z
sua complexidade. A exclusão no sentido dado por Castel, se aplicaria a
õ “ 33”
32 f “mot-valise” z
“ - ” q ú
Sua função é nominar situações diversas, nem sempre pertencentes ao mesmo
campo social. O autor critica a utilização indiscriminada do termo exclusão,
salientando que cada fenômeno social precisa ser analisado em seu contexto,
levando em consideração seus componentes históricos, políticos, econômicos e
sociais e, ainda, que é preciso descortinar as complexas relações veladas
existentes entre esses diferentes contextos. 33
Alguns casos são citados por Castel (2000) para ilustrar situações de
exclusão: o dos leprosos, na Europa, afastados da sociedade por meio de uma
cerimônia religiosa de separação, das sociedades escravagistas, dos ciganos, dos
judeus perseguidos pelo nazismo, dos mouros espanhóis e dos perseguidos pelo
movimento da Inquisição. Na direção apontada por Castel, Lopes (2011, p. 114)
f [ ] “ q q q q estatística do
Estado, que escapam de atendimentos previdenciários, e/ou de assistência, que
são despejados de seus territórios para serem colocados em lugar algum, que
75
(CASTEL, 2000. p.37), sendo sempre o desfecho de procedimentos
oficiais e caracterizando-se como um verdadeiro status (ibidem. p.42).
Articulado às questões sociais, políticas e econômicas mais
amplas, o termo exclusão seria, assim, mais apropriadamente designado
como processo de desfiliação social, uma espécie de orfandade em que
os sujeitos sociais, afetados pelos modos de produção e
desenvolvimento da sociedade, são abandonados à sua própria sorte,
sem qualquer proteção do Estado por meio de direitos com os quais
deveriam contar em uma sociedade democrática.
Se retomarmos, por exemplo, o enunciado da professora Raquel
descrito anteriormente - em que descreve sua frustração diante do aluno
desmotivado - como foco de problematização, podemos entender a
inclusão, enquanto processo, como imbricada e constitutiva da exclusão,
ainda que com dinâmicas assimétricas e diferentes34
. Tal fenômeno deve
igualmente ser entendido como um processo de desfiliação social, na
medida em que resulta de um movimento que conduz a uma situação de
desigualdade de acesso ou, em outras palavras, de usufruto diferenciado
aos bens e direitos.
Nesse contexto, podemos entender o aluno ao qual se refere a
professora, que não participa e mostra-se limitado em sua aprendizagem,
como aquele pertencente a uma família cujos pais têm ou tiveram suas
vidas afetadas pelas macro transformações econômicas e para os quais
restam lugares residuais na sociedade. O comportamento desse aluno na
escola, pode resultar, para além do investimento da professora, de
aguardam em asilos o desfecho de sua vida, que vivem em espaços onde sua
presença não implica mudanças nem do espaço nem das relações que nele se
b ” 34
A definição e distinção realizadas por Rattner (2006) pode ajudar a
aprofundar estas considerações “Enquanto a inclusão social é produto de
políticas públicas dirigidas concretamente para o resgate e a incorporação
da população marginalizada, oferecendo condições e acesso à organização
social, como produtores e consumidores, cidadãos com plenos direitos e
senhores de seu destino, a exclusão é o resultado de uma dinâmica
“ ” de acumulação e reprodução do capital, cada vez mais
aceleradas pela concentração de capitais no regime de mercados e espaços
b z ”. Porém, é importante enfatizar que, seguindo Castel, não
podemos ser tão otimistas com relação à inclusão resultar em cidadãos
plenos de direitos e senhores de seu destino, como vimos acima.
76
contextos sociais, econômicos e culturais muitas vezes restritivos, que
incidem no baixo rendimento escolar e na ausência de condutas
esperadas pela escola como motivação, disciplina e concentração.
O contexto social, no qual a escola está inserida, é descrito pela
assistente técnico-pedagógica, Beatriz:
“Nossa escola está situada num bairro bastante carente com
problemas sociais bastante graves, a maioria das famílias tem trabalho temporário. A escola recebe alunos não só com
deficiência intelectual, mas com uma deficiência social grande. Às vezes a gente precisa fazer um trabalho de orientação com
os próprios pais porque eles são limitados. A gente percebe que
a criança, pelo contexto em que vive, muitas vezes vai além”.
Nessas condições há, conforme descreve Castel (2000, p. 25),
“um continuun de posições que ligam os in e os out35
” e uma lógica a
partir da qual os in produzem os out, de forma que não se pode falar de
situações de inclusão escolar descoladas do contexto social.
Tais situações podem ser traduzidas como privação de emprego,
de saúde, de acesso à cultura, de alimentação adequada, de meios para
participar do mercado de consumo, de liberdade, de esperança. E, nesse
sentido, a inclusão do aluno com deficiência, assim como dos demais
sujeitos sociais que são destinatários das várias modalidades de inclusão
designadas por Castel (2000, p. 46) como políticas de discriminação
positiva36
, implica
[...] a proposital inclusão precária, instável e
marginal. Uma inclusão em termos daquilo que é
racionalmente conveniente e necessário à mais
eficiente (e barata) reprodução do capital. E,
também, ao funcionamento da ordem política, em
favor dos que dominam. Esse é um meio que
35 Corresponde à aqueles que estão dentro e fora, ou nos termos de Castel, aos
filiados e desfiliados. 36
Poderíamos aproximar a expressão de Castel na atualidade brasileira das
“ f ” q f
algumas categorias sociais em matéria de acesso ao trabalho, à moradia, à
educação etc., ou seja, amenizar ou reparar distorções e desigualdades, manter o
nível de desenvolvimento e acomodar possíveis conflitos.
77
claramente atenua a conflitividade social, de
classe, politicamente perigosa para as classes
dominantes (MARTINS, 1997, p. 20).
As políticas educacionais de inclusão podem ser entendidas
como ações positivas, até mesmo favoráveis37
aos sujeitos sociais mais
vulneráveis, porém insuficientes. Castel (2000), as identifica como
ações paliativas que não eliminam a exclusão, mas atenuam seus efeitos,
sobretudo os reivindicatórios.
Nessa mesma linha de pensamento e situando a escola num
conjunto social mais abrangente, q “
educação não é uma responsabilidade da escola e sim da sociedade que
criou a escola no interior de um determinado projeto de
” b z
sucesso ou pelo fracasso do processo de inclusão significa posicioná-la
no lugar da redenção e do salvacionismo, na ilusão de que a
transformação da escola, por si só, atenuaria ou até mesmo anularia as
desigualdades e mazelas sociais.
Este lugar de salvação muitas vezes é incorporado ao discurso
dos professores, q “ ”
“ ” “ ” identidade docente. E se
assim ocorre com o professor, em sentido lato, ainda mais acontece com
o professor da Educação Especial, para quem tais atributos a ele se
ligam por imediata analogia. Isso se evidencia na narrativa da segunda
professora Sarah, quando define seu ofício:
“Ser professora para mim é, uma providência divina [...] sempre via os professores como deuses, detentores do saber”.
Com tais propriedades, tornam-se compreensíveis as situações
de mal-estar, frustração e baixa autoestima, comuns entre professores
diante de experiências de inclusão escolar não bem sucedidas.
37 8 f q “
” “ é
incontestável de não se resignar ao abandono definitivo de novas populações
” é q
devem ser pensadas como estratégias limitadas no tempo, a fim de ajudar a
passar o mau momento da crise e não como algo que deva permanecer.
78
Quando afirmamos, no entanto, a necessidade de considerar o
contexto em que as práticas escolares são organizadas, não
desconsideramos o compromisso ético e educativo das instituições
escolares, da mesma forma que não eximimos o professor de sua
responsabilidade na promoção do desenvolvimento do aluno com
deficiência. Nos referimos a necessidade de entender a prática docente
como um dos pontos da trama educacional, perpassada pelas inúmeras
contradições sociais, que se manifestam nas dissonâncias entre as
prescrições oficiais e as condições reais do trabalho docente. Na
seguinte passagem Gentili (1995, p.29) esclarece de que maneira se
articulam as responsabilidades dos docentes com as contradições da
sociedade:
Podemos não querer culpar os/as professores/as,
mas não podemos ignorá-los/as, a educação como
um empreendimento cultural constitui-se em e
através de seu trabalho. Esse trabalho é a arena
onde se condensam as grandes contradições em
torno da educação e da justiça social.
Neste ponto nos deparamos com uma situação de difícil
equacionamento. Se remetermos às contradições da sociedade capitalista
às dificuldades para incluir sujeitos na escola parece restar aos
professores apenas a impotência e a desvalia. Afinal, pode o docente no
exercício de sua profissão, dentro da escola promover alguma mudança?
E nesse caso, qual? E de que formas? Algumas dessas contradições são evidenciadas nas narrativas
das docentes com quem trabalhamos. Ao se referir ao processo de
avaliação, a segunda professora Sarah relatou ter planejado sete provas
diferenciadas que deveriam ser aplicadas com os alunos com deficiência
intelectual. Durante a realização da prova, ela observou que havia ainda
dois alunos em classe com dificuldades de aprendizagem, os quais
requeriam adaptações.
Considerando as particularidades e a variabilidade de
características e necessidades específicas que alunos nessas condições demandam, entendemos haver um número elevado de alunos por sala, o
que pode comprometer a qualidade da ação pedagógica.
Outros relatos são representativos de tais contradições. Quando
questionamos as segundas professoras sobre as condições em que se
dava o trabalho em sala de aula e se sobre a interação com os
79
professores regentes, constatamos uma situação recorrente entre os
professores que atuam nas séries finais do ensino fundamental. Muitos
desses docentes possuem carga de trabalho extensas e horas-atividade
restritas, não dispondo de tempo para discutir questões relativas ao
planejamento e à avaliação. Outra situação complicadora é a exigência
de dedicação integral dos segundos professores ao(s) aluno(s) com
deficiência, inclusive durante o recreio. Isso limita seus momentos de
diálogo, de troca de experiências e de reflexão com os professores
regentes. Na realidade é como se houvesse uma micro aula dentro da
aula regular, formada pelo segundo professor com seu ou seus alunos.
É função do segundo professor realizar adaptações para os
alunos em processo de inclusão, precisando para isso, participar do
planejamento das aulas com o professor regente. Porém, as segundas
professoras de nossa amostra revelaram tomar conhecimento do
planejamento no decorrer das aulas.
“Como a gente não tem como planejar, eu tenho uma aula de
Educação Física (semanal) que quando tem algum professor pela escola eu pergunto o que ele vai trabalhar” (Raquel).
Na fala da professora Beatriz, responsável pela coordenação
técnico-pedagógica,
“Não há um momento para sentar com o segundo professor,
alguns têm carga horária cheia, as vezes na sala de aula é possível fazer[...] o ideal seria ter um horário para planejar em
conjunto. Mas como, se o segundo professor está lá e não pode
largar o aluno, que bagunça. É complexo isso, a teoria é muito bonita, mas a prática [...]”.
A necessidade de o segundo professor ausentar-se da sala de
aula para participar das assessorias e capacitações configura outro fator
complicador constatado no percurso de nosso trabalho de campo. Estes
momentos de formação são ofertados pelas instituições especializadas
(APAES), estando previstos no Programa Pedagógico (2009)38
, mas
38 Documento que apresenta as diretrizes para o trabalho em Educação Especial
na rede estadual de ensino. De Santa Catarina
80
muitas vezes são impossibilitados dada a dificuldade de saída do
professor da sala de aula.
Além das situações narradas exemplificadoras das condições
em que o processo de inclusão vem ocorrendo e as contradições
presentes entre as determinações legais e a prática, constatamos que há
também uma dificuldade na emissão de laudos comprobatórios de
deficiência. Esse documento é necessário para o encaminhamento do
processo de solicitação do segundo professor na escola regular, quando
esta atende alunos da Educação Especial. Segundo a professora Beatriz,
responsável pela coordenação técnico-pedagógica da escola,
“O aluno tem que ter um diagnóstico de deficiência mental
moderada. Nós dependemos da Apae pra fazer uma ficha de triagem, o laudo, pra depois fazer o encaminhamento”.
Constatamos outra situação: a rede regular do município
estudado não possui em seu quadro, psicólogos que realizem esse
trabalho de triagem inicial e diagnóstico, nem o atendimento
especializado ao aluno com deficiência. Uma das alternativas
encontradas pelos gestores foi firmar uma parceria com a APAE e com a
Secretaria Municipal de Educação para cedência de seus profissionais.
Considerando a forma como o processo de inclusão vem
ocorrendo, a abrangência de situações e particularidades que integram o
público atendido, bem como, as prescrições das políticas que regem o
trabalho com a educação especial, faz-se necessário uma atuação
interdisciplinar entre diferentes profissionais que possam dar suporte ao
professor; são profissionais que a rede escolar não disponibiliza.
Tendo em conta os embates de ordem político-práticos próprios
do processo de inclusão, entendemos a necessidade de ser analisado no
contexto macro das políticas educacionais. Uma proposta educacional
que se nomeie inclusiva não pode se furtar a assegurar condições
estruturais mínimas que envolvam recursos físicos, humanos e
financeiros. Sem eles estará restrita a um discurso oficial utópico,
essencialmente uma retórica que não se efetiva no campo das práticas
educacionais. Fica claro que a implementação das condições para o trabalho qualificado exigida pelas leis relativas à inclusão, esbarra em
limites associados especialmente à falta de recursos financeiros.
A educação inclusiva - que de modo geral soa como forma justa
de aumentar as chances de acesso de todo e qualquer cidadão aos
81
sistemas educativos - precisa ter suas verdades postas em suspenso, uma
vez que se torna perigosa quando estimula a aceitação cega dos
princípios e prescrições dominantes e conduz, até mesmo, a um
entusiasmo idealista que impede o surgimento e a concretização de
propostas eventual e concretamente mais factíveis.
Assim, embora considerando as políticas de inclusão escolar
j q “ ‘ ’
q q ‘ ’ - ”
(CASTEL, 2000, p.46 - grifos no original) e a diversidade como
condição humana, não podemos desconsiderar que a implantação dessas
políticas esbarra em limites não restritos às questões pedagógicas ou
metodológicas, conforme explicitamos.
É preciso ponderar, no entanto, que ainda que sejam
necessárias, as iniciativas governamentais de inclusão vigentes são
tentativas precárias mascarando, em certa medida, um problema gestado
pelo próprio sistema. Isso porque o modus operandi específico das
sociedades sustentadas pelos princípios do capital é por si excludente,
permitindo apenas a alguns indivíduos pertencentes a camadas menos
favorecidas ascenderem socialmente. Sendo parte de sua lógica um
contingente importante de excluídos, essa condição não é superável
dentro desse sistema econômico.
Neste contexto a exclusão marca, na verdade, uma contradição.
Os excluídos seriam as vítimas de processos sociais, políticos e
ô õ “
de tais sistemas, fazem parte deles q ” R
1997, p. 14). Ações pontuais e periféricas, como são as políticas de
inclusão escolar, podem assim, criar a ilusão de que operam mudanças
significativas na ordem da sociedade.
Desse modo, acesso à educação, direito à igualdade e conquista
da cidadania convertem-se em palavras de ordem contra as quais parece
não haver argumentos e com as quais criamos “um sentimento de
pertencimento, de cumplicidade e de mobilização, sentimentos úteis
quando se almeja governar a conduta através de uma racionalidade
neoliberal” R H ).
Esse processo de interiorização de regras, mobilizado por aparelhos especializados, que Foucault (2008, p. 244) denomina de
82
dispositivos39
, é fundamental na medida que propicia a assimilação
dessa dinâmica de pseudomudanças. Esse movimento é descrito na obra
“ ”40
(1954) de Giuseppe Tomasi di Lampeduza (Itália, 1896-
1957), quando profere a difundida frase “A única mudança permitida é
aquela sugerida pelo príncipe de Falconeri: tudo deve mudar para que
tudo fique com ” Nesse sentido, ações são projetadas visando
corrigir algum detalhe defeituoso sem, contudo, alterar a ordem e a
estrutura social e, de modo que, haja uma conformação dos sujeitos às
regras gerais estabelecidas.
Para Castel (2000, p.32) esse deslocamento de ação do centro
para as margens:
[...] corresponde a uma espécie de princípio de
economia no qual se podem encontrar
justificativas: parece mais fácil e mais realista
intervir sobre os efeitos de um disfuncionamento
social que controlar os processos que o acionam,
porque a tomada de responsabilidade desses
efeitos pode se efetuar sobre um modo técnico
enquanto que o controle do processo exige um
tratamento político.
39 Foucault conceitua dispositivo como um conjunto decididamente heterogêneo
de elementos que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas,
decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos,
proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito
fazem parte do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre
esses elementos. [...]. Em suma, entre esses elementos, discursivos ou não,
existe um tipo de jogo, ou seja, mudanças de posição, modificações de funções,
que também podem ser muito diferentes. Em páginas anteriores trouxemos a
expressão de Immanuel Wallerstein, engenharia social, que podemos aproximar
do conceito de dispositivo de Foucault. 40
“O Leopardo” f
Giuseppe Tomasi di Lampedusa, príncipe italiano, nascido em Palermo. O
romance narra a decadência da nobreza e a ascensão de uma nova classe na
Itália do final do século XIX durante o Ressurgimento, movimento que buscou
unificar o país, que era uma coleção de pequenos Estados submetidos a
potências estrangeiras. http://www.revistabula.com/552-algo-deve-mudar-para-
que-tudo-continue-como-esta/
83
No caso da deficiência, esse tratamento técnico se dá
inicialmente por meio de classificações pelas quais se agrupam
indivíduos com características análogas: deficiência visual, intelectual,
física, auditiva. A partir desses grupos, outras classificações se operam
como os níveis estabelecidos para a deficiência: leve, moderada, severa,
profunda. Em torno dessas categorizações se organizam saberes,
serviços e atendimentos especializados: fonoaudiológicos,
fisioterápicos, psicológicos, psiquiátricos, pedagógicos, se buscam
recursos e estratégias, se organiza um aparato clínico e educacional, a
fim de prevenir os riscos sociais.
À escola atribui-se a responsabilidade por encontrar formas de
resolver os problemas, buscar alternativas, estabelecer parcerias e
remediar os efeitos “ ” õ quase sempre são
reduzidas e as condições precárias, não sendo dada normalmente ao
professor a possibilidade de influenciar as regras. Embora os problemas
tenham raízes e causas complexas e distantes, exige-se da escola e dos
professores respostas às demandas da sociedade, a partir de ações
pontuais e fragmentadas, evidentemente insuficientes para
transformações decisivas.
À escola é legada ainda a responsabilidade pela transmissão de
valores que consolidem os interesses dominantes. A internalização
desses discursos pelos professores consubstancia-se na narrativa da
professora Maria Aparecida durante o seminário:
“Eu acho que a função da escola é possibilitar ao aluno o
acesso ao conhecimento científico, porque é este conhecimento que garantirá sua autonomia e permitirá mudar sua história”.
Trata-se de um exemplo representativo no qual vemos emergir
um discurso universalizante e idealizado que, por assim se apresentar,
justifica a exclusão do currículo de outras narrativas que não cabem nos
enquadramentos a priori definidos como necessários e legítimos. Há um
saber/poder ditando qual conhecimento é válido, qual conhecimento
deve ser priorizado, em benefício do que ou de quem. Um saber/poder
que opera produzindo silenciamentos e que se utiliza de instituições e agentes legitimadores, colocando em ação uma série de dispositivos
com a finalidade de disciplinar os saberes e pô-los a serviço do Estado
(VARELA, 2011, p.90). Com frequência, o professor exerce essa
função, e como tal, se vê envolto em um turbilhão de ações, cujo
84
encadeamento lhe escapa, conhecendo apenas alguns elos da cadeia que
o deixam perplexo, pois sua ação e esforço não têm como atingir o
efeito acalentado.
“Ele não sabe ler nem escrever” “não tira o aluno da sala, alfabetiza” “como vou passar este aluno com deficiência se o outro faz
tudo e esse não faz nada”?! São outros exemplos significativos de falas
comprometidas com as metanarrativas educacionais e que são
denunciadas por meio de detalhes linguísticos que escapam à
consciência das docentes, evidenciando a dificuldade de sustentação do
discurso inclusivo.
Isso não significa que, ao admitir que as pessoas com
deficiência têm direito a participar e aprender em espaços de
escolarização regular, as professoras estejam de alguma forma,
fabulando. Tais narrativas expressam, na verdade, o que o discurso
teórico das políticas em geral não captura, não revela, não problematiza
e que se complexifica e é vivenciado em toda sua ambivalência no dia a
dia da sala de aula, com efeitos subjetivos deletérios para os docentes.
Ao pensarmos a inclusão como imperativo de um Estado
neoliberal (LOPES, 2011, p. 127) “ f q
Estados, em um mundo globalizado, encontram para manter o controle
da info ”, cabe-nos então interrogar: qual o lugar
ocupado pela pessoa com deficiência nessa rede de poderes em que se
constitui a inclusão escolar? É possível pensar a escola sobre outros
princípios, outra lógica? Que espaço têm os professores para agir,
educar, transformar? Como superar as contradições presentes entre a
lógica neoliberal, com seu sistema próprio de pressões, e os processos
q “ f õ
desespero extremo que resultam dess f ”?
(CASTEL, 2000, p.26)
No contexto atual essas contradições se manifestam, por um
lado, nos discursos de uma educação inclusiva, plural, democrática e
solidária, preconizados pelas conferências internacionais referidas
anteriormente. Por outro, revelam-se em ações de gestão que fixam
metas de desempenho, realizam avaliações externas, premiação de
escolas e bonificação para professores e diretores, bem como orientam o afastamento daqueles que obtiverem, de forma consecutiva, baixos
rendimentos na escola onde trabalham. Logo, poderíamos falar,
indiretamente de punições.
85
Alguns destes pontos são descritos no documento Pátria Educadora
41, organizado pela Secretaria de Assuntos Estratégicos
(SAE), o qual, de acordo com a Confederação Nacional dos
Trabalhadores em Educação (CNTE), sustenta-se numa lógica de
meritocracia empresarial, posta em funcionamento por meio da gestão e
do currículo.
Nas conversas que realizamos, as professoras alegam que não
há muito o que discutir sobre a avaliação do aluno com deficiência,
posto que, “ j 42” Ao interrogarmos
sobre o que pensam e praticam em termos de avaliação da
aprendizagem, as professoras invocam as exigências do sistema acerca
da nota.
“Que nota, Elisangela!? O sistema exige sete. No sistema
online a nota mínima é sete” (Catarina).\
“Eu nunca atribuo notas nas provas deles, sempre coloco muito
bem, parabéns, um conceito... nota não! Nota eu deixo pra por
lá no diário. E nós sabemos que eles já entram com sete, eles não reprovam, né!” (Maria Aparecida)
Deixando de lado o mérito da aprovação/reprovação, o que nos
parece claro é que medidas de avaliação são importantes, considerando
que apresentam indicativos dos avanços, desafios e rumos para o
sistema educacional. Não obstante, é preciso que estas medidas
considerem todas as variáveis que este contexto alcança.
No caso em questão, em se tratando da avaliação da
aprendizagem, o que se evidencia é a inexistência de preocupação maior
com o que, de fato, o aluno com deficiência aprendeu, principalmente
considerando o discurso dos professores regentes, tendo em mente que a
referência feita à à “ é
”
41file:///C:/Users/Acer/Downloads/Qualificacao%20do%20Ensino%20Basico%
20%20Documento%20para%20discussao%20(1).pdf 42
As professoras se referem aqui ao item I do parágrafo 2º do art. 6º da
R º “ f -se ao ajuste de permanência do
educando na mesma série e o consequente prolongamento do ano letivo, sem
que se caracterize retenção” (Grifo nosso).
86
Isso posto, entendemos que mensurar o contexto educacional
tendo como referência dados estatísticos pode produzir melhores índices
e mais verbas concedidas pelos organismos internacionais, sem contudo
traduzir efetivamente a realidade escolar e, muito menos, converter-se
em melhorias para a educação, sobretudo, para a aprendizagem dos
diferentes alunos que frequentam a escola.
4.2 PRÁTICAS DE INCLUSÃO OU PRÁTICAS DE
NORMALIZAÇÃO? UMA ANÁLISE A PARTIR DA
“ R ÁV ” DIFERENÇA
H ú “ ”
são os sujeitos dos quais deveria haver menos –
ou melhor, nenhum. E nunca há um número
suficiente de nós. “ ” as das quais
deveria haver mais (BAUMAN, 2005, p.47)
Conforme explicitamos no início deste capítulo buscamos
refletir nesse tópico acerca das implicações da normalização dos espaços
pedagógicos que faz proliferar entre os docentes o discurso do
despreparo e concorre para o entendimento do processo de inclusão.
Para tanto, nos valemos dos estudos de Foucault, principalmente
daqueles associados aos conceitos de disciplinamento e vigilância, das
formas de poder, do Estado e, em especial, da governamentalidade.
O conceito de governamentalidade é bastante complexo no
pensamento de Foucault, sendo discutido e retomado em obras como
Nascimento da Biopolítica (1977-1978), Segurança, Território e
População (1977-1978) e Microfísica do Poder (1979), embora as
questões do poder, disciplina, vigilância e biopolítica – conceitos que se
enredam ao de governamentalidade - apareçam também em outras obras,
tais como Vigiar e Punir (1975) e A Verdade e as Formas Jurídicas
(1996).
À medida que as pesquisas desse autor foram avançando, o
conceito de governamentalidade foi sofrendo alterações e acréscimos. O
termo é assim, descrito sob três aspectos distintos, porém interligados e
designa:
a) O conjunto constituído pelas instituições, os
procedimentos, análises e reflexões, os
cálculos e as táticas que permitem exercer essa
87
forma, bem específica, embora muito
complexa, de poder que tem por alvo principal
a população, por principal forma de saber a
economia política e por instrumentos técnicos
essenciais os dispositivos de segurança;
b) A tendência, a linha de força que, em todo o
Ocidente não parou de conduzir, e desde há
muito, para a preeminência desse tipo de
poder que podemos chamar de governo sobre
todos os outros - soberania, disciplina etc. - e
levou ao desenvolvimento de uma série de
aparelhos específicos de governo e de um
conjunto de saberes;
c) O resultado do processo pelo qual o Estado de
justiça da Idade Média, que nos séculos XV e
XVI se tornou o Estado administrativo, viu-se
pouco a pouco governamentalizado
(FOUCAULT, 2002b, p. 291-292).
Objetivando pensar os processos de inclusão para além do que
conseguimos enxergar no contexto das práticas escolares, fazemos um
exercício de compreensão a partir da “ f ” b
tornar visível os condicionantes das ações pedagógicas. Temos ciência
de que as formulações de Foucault não dizem respeito diretamente às
questões educacionais. No entanto, ao tratar das estruturas de poder, da
medicina social, dos dispositivos de segurança e controle, da
sexualidade, da constituição do sujeito, entre outros temas, esse autor
tangencia os processos educacionais, sendo possível recorrer a seus
estudos para enriquecer a compreensão dos processos de inclusão
escolar.
Para as relações que procuramos estabelecer entre
governamentalidade e inclusão, importa compreender o termo
governamentalidade a partir do significado que assumiu por volta do
século XVIII, remetendo ao plano dos indivíduos e seus corpos e do
desenvolvimento de técnicas de disciplinamento, docilidade, obediência,
normalização. Nessa ótica, conforme destacou Veiga Neto (2011, p. 7),
[...] o que conta cada vez mais, a partir de então, é
a população, pensada não como um conjunto de
indivíduos, mas como um corpo vivo cuja
sobrevivência deve ser mantida por todo um
conjunto de ações políticas governamentalizadas.
88
Para Foucault (2001), o sujeito remete a “
” j é a produção desse mundo. Sobre o corpo
histórias se inscrevem, sendo o sujeito fabricado, subjetivado,
normalizado e controlado por processos, dispositivos e mecanismos que
o constituem em suas experiências, em suas atitudes e em suas formas
de ser. Nesse sentido, a construção de identidades é, para o autor,
essencialmente um ato político, um ato de governamento43
.
Dessa forma, no contexto da sala de aula, tanto o professor
quanto o aluno sofrem os efeitos desse poder, ou melhor dizendo, não
apenas sofrem mas fazem parte e exercem tais relações de poder que,
para Foucault, são onipresentes. Em outras palavras, o poder não é algo
estático que habita um lugar determinado, mas encontra-se capilarmente
distribuído.
Poderíamos nos questionar então, que posição de sujeito ocupa
esse professor que atua na educação inclusiva? Como ele se posiciona
e/ou vem se posicionando? Qual sua cultura familiar e/ou escolar? Quais
são seus valores, suas crenças, seus conceitos e preconceitos? Que
heranças ele carrega e por quais discursos e relações de poder é afetado?
Qual sua concepção de aluno, de educação, de currículo, de deficiência,
de diferença, de boa formação? E o que significa para ele, precisamente,
estar bem preparado? Não pretendemos propriamente responder a todas
essas questões, mas desenvolver reflexões esclarecedoras sobre as
práticas pedagógicas no campo da inclusão escolar.
Assim considerando, é preciso que nos perguntemos ainda
sobre a gestão social e política das práticas desenvolvidas, pelos poderes
que gravitam sobre elas, pelos lugares nos quais esses docentes são
induzidos a fazer determinadas escolhas em detrimento de outras, a
repetir determinados discursos dos quais se apropriaram em
determinados contextos, muitas vezes incluídos “em dispositivos sociais
coativos e normativos de tipo religioso, jurídico, médico, pedagógico,
terapêutico etc ” RR . E mais, os docentes são
induzidos muitas vezes, a propagar o ideário inclusivo com base em
uma série de técnicas de subjetivação, que colocadas em funcionamento
contribuem para a sua mobilização, levando a engajar-se na proposta da
43 Em Coisas de Governo (2002. p.13-34), Alfredo Veiga Neto se refere a
governamento como ações de governar que, para Foucault, não estão
centralizadas, mas podem ser distribuídas microscopicamente pelo tecido social.
(Foucault utiliza para tal a expressão capilaridade do poder).
89
inclusão, incorporada como um imperativo, uma grande verdade,
quando ela pode ser vista sob diferentes vieses, já que não há um único
lugar de onde extraímos o discurso verdadeiro.
Ao pensarmos em inclusão escolar é imediata a relação que
estabelecemos com a formação do professor que irá atuar nessa
modalidade de ensino. Uma preocupação que não se esgota, ainda que
transcorrida mais de uma década de efetivação desse movimento no
Brasil, justamente pela importância que o professor assume nesse
processo. Mas e hoje? Estão os professores preparados para incluir?
Pensamos que não. Eles são praticamente unânimes a dizer que não.
Também nós pensamos que não estão preparados. Porém, as motivações
de nossa resposta negativa não coincidem com as dos docentes, e é esta
uma das contribuições que trará esta pesquisa. Com essa afirmação
estamos pensando menos em sua formação específica como
profissionais, dada em um nível inicial e/ou continuado e mais naquilo
que caracteriza sua formação como sujeitos que sofrem processos de
subjetivação e que são, a um só tempo, formados e con(formados).
Por esse viés, podemos pensar que os professores estão muito
mais preparados para excluir do que para incluir. Ora, não é isso que
aprendemos em nossa cultura, em nossa trajetória escolar, em nossa
formação? Não crescemos, nos desenvolvemos e formamos em espaços
seletivos e excludentes, colonizados pela cultura da homogeneização
que converteu e converte a diferença em estatuto de menor valor, e por
isso mesmo, sendo necessário que seja capturada, contida, enquadrada e
normalizada?
Nesse ponto, propomos um exercício de desfamiliarização dos
discursos proferidos pelas docentes. Considerando que seus modos de
compreensão, suas representações e suas atitudes são a expressão de seu
tempo e de seu espaço, sendo influenciados pela história, pela cultura e
pela discursividade, este professor, conforme explica Larrosa (2011,
p.40) “não pode ser tomado como um ‘ ’ não problemático” (grifo
no original).
Pensando nessa possibilidade de problematização, recorremos
às narrativas produzidas no contexto do trabalho de campo, durante uma
discussão na qual propusemos que as professoras falassem quem eram as pessoas com deficiência intelectual, como pensavam uma classe ideal
e quais dificuldades encontravam no trabalho com esses alunos.
Apresentamos algumas manifestações:
90
“São alunos que não conseguem se apropriar dos conhecimentos, não conseguem aprender, não podem seguir
uma turma como uma criança normal, normal entre aspas”
(Flávia).
“São pessoas que não se apropriam de conceitos de base
(referindo-se a conceitos científicos priorizados pela escola).
São pessoas que dependem dos outros para lhes conduzir, apresentam temperamento bastante diferente, tem pouco
raciocínio lógico. É alguém diferente no meio de nós”
(Beatriz).
“Segundo os laudos que a gente recebe são alunos que tem
baixo rendimento cognitivo, que não conseguem aprender no mesmo tempo que as outras crianças que não têm
comprometimento” (Raquel).
“Deficiência no sentido motor, intelectual, dificuldade para
assimilar qualquer coisa, problemas na parte neurológica.
Difícil relação com a memória intelectual, ao cérebro, à
cognição, enfim, tudo que diz respeito ao hemisfério cerebral”
(Catarina).
“Uma classe ideal é uma classe disciplinada, onde todos os alunos aprendem, todos têm o mesmo nível de conhecimento”
(Flavia).
“A principal dificuldade que eu encontro é quanto a eles não
saber ler e escrever. Isso é a pior parte” (Flávia).
Atentemos que em todas as tentativas de definir essas pessoas,
enfatiza-se o que elas não apresentam, não são ou não alcançam. E ao
fazê-lo, as docentes definem a diferença a partir de um critério de
comparabilidade e não de compatibilidade. Uma diferença que não é
vista como algo em si mesma e para si mesma, que não caracteriza de
fato uma diferença pensada no sentido do diverso, mas como uma
simples variação em relação a uma identidade supostamente média ou
normal, previamente definida (GALLO, 2011, p. 8-9). A uma diferença
91
que se filia à identidade dos estabelecidos e que, ao mesmo tempo,
transforma os demais em outsiders44
(ELIAS; SCOTSON, 2000).
Ao anunciar que as pessoas com deficiência são “pessoas
diferentes no meio de nós”- e considerando que na escola convivem
diferenças de toda ordem, etnia, pertenças sociais, costumes, crenças,
histórias de vida - a professora marca tal singularidade como algo que
desarmoniza, desestabiliza e ameaça mais do que outras diferenças.
Algumas diferenças seriam, por assim dizer, mais facilmente
administráveis, ou como diria a canção45
, são todos iguais e tão
desiguais, mas uns mais iguais que os outros.
Assim, aquele em que a diferença se anuncia de forma mais
declarada, ameaça toda pretensa ideia de estabilidade. De outra forma
poderíamos dizer: há uma necessidade acentuada de ater-se a algo, de
negar o vazio instaurado na convivência com o diferente, aquele para
quem as respostas já encontradas, já não mais satisfazem e com quem o
professor age na grande maioria das vezes, buscando aproximá-lo da
normalidade.
O acesso desses diferentes à escola que emerge como
possibilidade de (des)organização e de quebra da rigidez que nela vigora
de forma secular parece não abalar sua estrutura. Há antes um esforço
contínuo por ajustá-los, por converter aquilo que era estranho em algo
familiar, algo com o qual saibamos lidar como sempre fizemos,
conviver, fazer acordos e vê-los sendo cumpridos.
Não com pouca frequência, em nossas práticas negamos a
diferença, enquanto a aceitamos em nossos discursos. Ao pensarmos
uma classe ideal como aquela onde “todos aprendem no mesmo ritmo”
“têm o mesmo nível de conhecimento”, conforme descreve a
professora Flávia, reinventamos o papel da escola: do lugar do aprender
para o lugar do aprender as mesmas coisas em tempos análogos e sob as
mesmas intervenções.
Mais grave é pensarmos uma classe ideal como a que todos os
alunos aprendem. Nesse caso, nomeamos (de forma inconsciente) o
aluno com deficiência como aquele que não aprende. Materializamos o
44 Outsider pode ser traduzido, conforme descrevemos neste trabalho, como o
sujeito que apresenta algum comportamento desviante em relação a um padrão
estabelecido. Aquele que foge ou diverge da norma, o estranho. 45
Nos referimos à música “Ninguém igual ninguém” (Engenheiros do Hawaii,
1970).
92
ideal da ordem e da pureza e, já ao colocarmos em ação essa função,
mobilizamos “ ” “Cada ato nomeador46
divide
o mundo em dois: entidades que respondem ao nome e todo o resto que
” (BAUMAN, 1999, p.11). E ainda: se concordamos que todas as
pessoas são diferentes e devem ser respeitadas em sua condição
singular, única, por que em sala de aula, colocamos, por exemplo,
(como o faz a professora Flávia) a aquisição da leitura e da escrita como
objetivos prioritários na escala das aprendizagens? Não estaria a escola
consagrando tal tarefa, alfabetizar, a uma ‘ ’ supostamente
homogênea?
Ao fazermos tais considerações não estamos negando a
existência de déficits, mas pensando outras representações para estes
sujeitos que justifiquem sua inclusão na escola. Sobre esta questão
Fabris e Lopes (2000, p.03), lembram que “ b f é
pensar o diferente como uma possibilidade e não como uma falta, uma
possibilidade que, justamente por sua diversidade, tem o que negociar, o
q q ” Porém, é preciso entender que numa
escola que inclui as aprendizagens dos diferentes alunos, o seu
desenvolvimento é também singular. Todos crescem, mas não nas
mesmas dimensões.
Em tempos em que o discurso da inclusão se tornou uma
metanarrativa que dificulta a crítica e a articulação de alternativas,
constata mos que a instauração da norma coloca em ação um constante e
repetido posicionamento da pessoa com deficiência em função de um
padrão instituído, como se não fosse possível pensar o seu
desenvolvimento a partir de suas próprias capacidades, de seu próprio
ritmo e de seus próprios avanços. O outro, “normal”, aquele que se
“ ” z
padronizado, com suas habilidades e características, dita às pessoas que
“f ” “ ”
conhecimentos e comportamentos socialmente aceitos e válidos que
precisam aprender, sob pena de serem considerados peso
46 O conceito de nomeação de Bourdieu (1998) foi empregado por Jourdan
Linder da Silva em sua dissertação Sentimentos de injustiça de docentes como
miopia educacional: o (des)investimento pedagógico em adolescentes de
periferia (UFSC, 2015). Tal conceito poderá ser utilizado em próximos
trabalhos para aprofundar esse aspecto.
93
incompreensível para os docentes e fracassados com relação ao padrão
normal.
Uma outra constatação feita no decurso do trabalho de campo é
que muitos professores regentes sequer aceitam as adequações relativas
ao conteúdo curricular47
previstas nos documentos norteadores,
conforme descrevem a assistente técnico-pedagógica e uma segunda
professora:
“Em muitas situações o segundo professor tinha que seguir a
risca o que o professor regente estava trabalhando na sala [...] De que jeito, não sei” (Beatriz).
“A professora de português estava trabalhando poesia e os
alunos (com deficiência) foram mal na prova [...] Claro! É um conteúdo muito difícil e a professora não deixou trabalhar de
outra forma. Eu pedi: Então posso trabalhar separação de sílabas nos poemas? Não! Você tem que trabalhar o conteúdo
que eu estou trabalhando” (Raquel).
Essas questões sinalizam que, ao impossibilitarmos o acesso aos
conhecimentos necessários a um determinado educando, em favor
daqueles priorizados por um currículo escolar que não considera as
diferenças, realizamos um processo injusto de apropriação da diferença.
O que queremos argumentar é aquilo que Bauman (1998) definiu como
“ é ” f à
ordem social. Essa estratégia tem como objetivo destruir os estranhos,
tornando-os despercebidos no tecido social, isto é, indistinguíveis do
que já existe. No lugar de expulsar ou excluir coloca-se em prática uma
estratégia mais efetiva. Trata-se de converter a diferença em
b f õ f “
demolindo, mas construindo ao mesmo tempo; mutilando, mas
corrigindo” BAUMAN, 1998, p.29).
Em Foucault (2001), poderíamos descrever esse processo como
a materialização “ é ”
[...] a norma traz consigo ao mesmo tempo um
princípio de qualificação e um princípio de
47 http://portal.mec.gov.br/seesp/arquivos/pdf/serie4.pdf
94
correção. A norma não tem como função excluir,
rejeitar. Ao contrário, ela está sempre ligada a
uma técnica positiva de intervenção e
transformação (FOUCAULT, 2001, p. 62).
Por essa ótica, no contexto de Foucault, a inclusão aparece
como contraposição ao processo de exclusão. A substituição do modelo
de exclusão da lepra pelo modelo de inclusão do pestífero citada por
Foucault (2001, p.59) como um dos grandes fenômenos do século
XVIII, são significativos para analisarmos o processo de inclusão na
contemporaneidade.
Os mecanismos negativos da exclusão caracterizados pela
desqualificação, rejeição, privação, recusa e desconhecimento foram
substituídos pelo policiamento, pela observação minuciosa e pela
â à “ ”
institucionalização da pessoa com deficiência é uma reação negativa; já
a reação à peste, como a presença destas pessoas anteriormente
segregadas ou excluídas nas escolas regulares é uma reação positiva,
uma reação de inclusão, ainda que estas práticas não se sustentem,
conforme se anuncia, pela celebração da dignidade humana, da
cidadania e do respeito às diferenças, mas pela produção de um sujeito
interessante e funcional ao sistema, como vimos com Castel.
O poder vigilante apontado por Foucault é também incorporado
na sala de aula de forma sutil, o que o torna, segundo Veiga-Neto e
Lopes (2007, p.952) ainda mais eficiente. Dess “é ao seu
‘pervasivo’48
que o poder se torna quase invisível
f ” fo e nota no original). Essa
singularidade do poder se manifesta nas relações escolares não por meio
da força, mas da inteligência.
Assim, ao se demarcar que o aluno com deficiência deve ter
acesso aos conhecimentos escolares por meio de adaptações
48 q é “f ” q f z
“ ” francês etc. (pervasive). Nessas línguas, ela é
usada para designar uma marcha ou caminhada (do verbo latino vado, re), de
alguma coisa, ao longo de ou por entre (da preposição latina per) outras coisas.
No registro foucaultiano, o poder não é propriamente invasivo – o que remeteria
a um sentido de penetração e ocupação – nem infiltrador – o que remeteria à
existência de algum filtro ou barreira –, mas sim intrometido (sem que isso
implique um juízo de valor).
95
curriculares49
, isso pode dar a falsa conotação que estamos, de fato,
incluindo este aluno e possibilitando meios para o acesso ao
conhecimento científico produzido pela humanidade da mesma maneira
que aos demais estudantes.
Na prática, conforme segue o relato da segunda professora
Raquel, essa ideia encontra inúmeras barreiras, além do que, não se
justifica, considerando que o lugar de onde se fala é o lugar da
normalidade e consequentemente, da exclusão.
“É o primeiro ano que estou trabalhando nos anos finais e estou achando muito difícil, porque segundo o Programa
Pedagógico50
a gente precisa adaptar as atividades com base
no conteúdo que o professor está trabalhando. Então, se o
professor de química está trabalhando densidade, é este
conteúdo que vou trabalhar com o aluno com deficiência. E meu aluno não sabe ler, não conhece os números, como é que
eu vou trabalhar densidade?! Este é o último ano do Robson na escola e eu poderia investir mais na sua alfabetização. Eu acho
importante alfabetizá-lo, mas eu não tenho liberdade51
para
fazer isso”.
Ainda que resguardadas as possibilidades de adaptação (das
quais percebemos não haver muita clareza por parte da professora),
parece fazer sentido nos perguntarmos sobre a estranheza que tal
conhecimento pode causar a esse aluno, da grande possibilidade de
reconhecer seu não-pertencimento a este grupo e de seu sentimento de
49 As adaptações curriculares, descritas nos Parâmetros Curriculares Nacionais
são definidas como: [...] possibilidades educacionais de atuar frente às
dificuldades de aprendizagem dos alunos. Pressupõem que se realize a
adaptação do currículo regular, quando necessário, para torná-lo apropriado às
peculiaridades dos alunos com necessidades especiais. Não um novo currículo,
mas um currículo dinâmico, alterável, passível de ampliação, para que atenda
realmente a todos os educandos (grifo nosso). 50
No documento ao qual a professora se refere, consta dentre as atribuições do
f “ õ
” é q é
nem apresenta qualquer detalhamento relativo a essa tarefa. 51
A professora se refere à dificulda “ ” f
necessidade de fazer adaptações curriculares.
96
orfandade diante de algo que não lhe parece nem um pouco familiar.
Para melhor compreender esse sentimento é útil nos remetermos a
situações em que fomos, nós próprios, submetidos a experiências de
estranhamento: quando mudamos de cidade, quando iniciamos em uma
nova escola com pessoas e costumes tão diferentes, em espaços que
mais nos soavam como um des-lugar. Pensar na nossa necessidade de
acolhimento e do alívio que sentimos conforme vamos sendo
acomodados a nova realidade que nos toca enfrentar. Cabe também
indagarmos sobre a escola como um importante espaço da experiência
social, o espaço em que as diferenças de seus integrantes são legitimadas
por meio de um currículo que não isenta o educando do mundo da vida.
E aí vem outra dimensão a considerar q “
construído com as diferenças jamais será passível de adaptações, pois
uma adaptação pressupõe manter uma estrutura que hoje está alicerçada
b ”
Desconsiderando tais diferenças, incorremos, como educadores, no
desprezo por diversos potenciais individuais e na submissão dos
educandos a exigências a eles alheias.
A narrativa que a professora traz é reveladora de um processo
de massificação onde se encontra implícita a noção de que um trabalho
f “ ”
ou trazê-lo de alguma forma para o mundo dos “estabelecidos”, dos
“ ”, candidatos preferenciais aos currículos e conhecimentos
“ ”
Nesse processo há um esforço por coletivizar, categorizar os
alunos em alguma espécie já existente, assim, como descrito por
Foucault (2001, p.58) ao se referir aos mecanismos de controle da peste
do século XVIIII, do qual se infere, tenhamos herdado as técnicas de
policiamento e vigilância modernas.
Há uma literatura da peste que é uma literatura da
decomposição da individualidade; toda uma
espécie de sonho orgiástico da peste, em que a
peste é o momento em que as individualidades
se desfazem. [...] A peste passa por cima da lei,
assim como passa por cima dos corpos. [...] O
momento da peste é o momento do policiamento
exaustivo de uma população por um poder
político, cujas ramificações capilares atingem sem
97
cessar o próprio grão dos indivíduos, seu tempo,
seu habitat, sua localização, seu corpo.
Esse apagamento dos contornos das individualidades e o
policiamento exaustivo ao qual se refere Foucault é mobilizado em
outras narrativas docentes, algumas remetendo a situações extremas de
controle e correção, como a citada pela segunda professora Raquel:
“Eu trabalho com uma aluna muito hiperativa. Os alunos estão
concentrados, ela levanta, canta, dá tapa, briga, xinga. E eu
pensei: o que vou fazer com essa menina para ficar mais calma? Aí chamei a mãe e perguntei: mãe, você me autoriza a
fazer isso, isso e isso? Porque eu imprensei ela na parede, mesmo! Coloquei a carteira dela na parede, coloquei a minha
ao lado e atrás tem o armário. Ela não pode sair para trás e na
frente tem um aluno que ela não pode sair para frente [...] Não é minha função ficar ao lado dela, eu tenho que auxiliar a sala
toda, mas os professores não estão conseguindo dar aula. Ela
fica ali, às vezes batendo a perna. Ela diz: eu já estou cansada de ficar aqui! Ela tira essa angústia pedindo o tempo todo para
ir no banheiro e tomar água”.
Este enunciado remete ao poder que se exercia sobre os doentes
no século XVIII e que em muito se assemelha ao controle e
gerenciamento dos riscos que empregamos na escola da Modernidade.
Ao agir de tal forma, a escola não está excluindo, está antes fixando,
atribuindo um lugar, definindo e controlando a presença da aluna. E
incluindo, porque a inclusão prevista pela governamentalidade se define
pela proximidade, ainda que essa proximidade se sustente pela exclusão
das individualidades, ou conforme descrito por Correia (2008, p. 37) por
“ bj ” diríamos inclusive, de
pessoa.
Trata-se, pois, de uma espécie de quarentena escolar, em que se
atua de forma densa e analítica visando a normalização, ainda que se
saiba que esta é impossível, mas ainda assim, ou por isso mesmo, necessária, já que para Foucault (2001), o que define o indivíduo a ser
corrigido é justamente sua incorrigibilidade “Um incorrigível que vai
” ibidem. p.73).
A situação relatada pela professora é ilustrativa do que Bauman
(1998, p.15) define como ordem.
98
[...] um meio regular e estável para os nossos atos;
um mundo em que as probabilidades dos
acontecimentos não estejam distribuídas ao acaso,
mas arrumadas numa hierarquia estrita – de modo
que certos acontecimentos sejam altamente
prováveis, outros menos prováveis, alguns
virtualmente impossíveis.
É dessa lógica que a escola se alimenta e na qual se sustenta. A
ordem e a normalização são concepções estruturantes das práticas que
analisamos, nas quais há espaço escasso para o imprevisto. Logo, para a
criatividade, para o protagonismo e para o novo. Tudo é de alguma
forma capturado, enquadrado. Nada escapa ao controle e à regulação
atenta do professor, do diretor, do secretário de educação e de toda uma
rede de poder que se organiza, numa espécie de panóptico52
moderno,
por meio do qual tudo é previsto, vigiado e corrigido.
O segundo professor pode também ser visto como representante
desse controle, pois sem ele o risco de imprevisto é maior. Ele está a
serviço do controle. Seu trabalho pode ser considerado como antídoto
contra a irrupção do imprevisto, do que foge ao homogêneo. Essa
constatação se evidencia na fala da assistente técnico-pedagógica
Beatriz, ao se referir à atuação de algumas segundas professoras.
“Alguns alunos se tornam extremamente dependentes. Se a professora não vem eles saem procurando. [...] E as vezes a
professora é tão superprotetora, ela tem que cuidar tanto que
vira uma cuidadora”.
52Também cha “ ”
Foucault (2013) é um projeto arquitetônico característico do século XVI,
que mantém as pessoas sob vigilância constante, podendo ser utilizado em
diversas instituições. Esse modelo foi utilizado tanto em prisões hospícios,
fábricas, hospitais e escolas. Descrito por seu próprio idealizador Jeremy
Bentham (2000, p. “ -se de um edifício circular [...]. Os
apartamentos dos prisioneiros ocupam a circunferência [...]. Essas celas são
separadas entre si e os prisioneiros, dessa forma, impedidos de qualquer
comunicação entre eles, por partições na forma de raios que saem da
circunferência em direção ao centro estendendo-se por tantos pés quantos
forem necessários para se obter uma cela maior [...]. O apartamento do
inspetor ocupa o centro”
99
Embora a atuação desses professores seja muitas vezes eficiente
no controle dos riscos que as pessoas com deficiência representam no
dia-a-dia da escola, a diferença tem, como explica Roos (2011) uma
dimensão intensa, ingovernável, uma força capaz de se furtar ao
controle. Algo que escapa, excede a todo o aparato constituído para
enquadrá-la e que, em dado momento se apresentará em toda sua
intensidade afirmativa.
Essa (in) governabilidade da diferença se reflete nas narrativas
das professoras ao descreverem situações corriqueiras do cotidiano
escolar:
“Quando a professora está trabalhando atividades que
envolvem a escrita e a leitura, os alunos com deficiência não acompanham e isso acaba levando à indisciplina [...] (Flávia).
“É uma maneira de se autoafirmarem se rebelando, é uma forma de demonstrar que eles não são totalmente incapazes,
alguma coisa eles sabem fazer: falar, brigar, chamar atenção
de alguma maneira” (Beatriz).
“Este aluno eu tenho receio, eu estava de costas, ele chegou
por trás e me agarrou, se ele resolvesse me espancar ele
poderia ter feito, nos meus pequenos ele batia, ele é forte, eu fiquei com medo. Nós temos que incluí-lo mas ele não pode
agredir. Ele não pode ficar sozinho” (Catarina).
“Jocemara depende de mim para conseguir se concentrar, se
não estou perto ela se desregula. Na segunda feira eu peguei
atestado e ela aterrorizou a sala porque não tinha ninguém ao lado dela[...]. É triste, porque eles não desenvolvem
independência. Se eu saio, ela se desorganiza [...]. O comportamento dela quando eu estou na sala e quando não
estou é totalmente diferente. Então eu me pergunto: se não
existisse um segundo professor pra ela como seria? Será que ela ia conseguir se concentrar, será que iria se desenvolver?”
(Raquel).
Assim, pensamos que não cabem aos diferentes o “ f
”, alguns demasiadamente grandes, outros ajustados demais.
100
Sentem-nos incômodos, desagradáveis, inapropriados. O desconforto
transparece nas narrativas dos professores. É recorrente em suas falas
adjetivarem os alunos como desinteressados, rebeldes, inquietos,
desmotivados, indisciplinados, evidenciando uma série de esforços, em
geral pouco ou contraprodutivos.
E mais uma vez recorremos a Bauman (1998, p.14-15) para
pensarmos os reveses do processo de inclusão. Para o autor, a
dificuldade que sentimos “ ” q q
não se reconhecem em nenhum lugar para os quais o modelo de pureza e
de ordem tenha sido destinado, se dá porque:
[...] elas cruzam fronteiras, convidadas ou não a
isso. Elas controlam a sua própria localização,
zombam, assim, dos esforços dos que procuram a
z “ ”
afinal, revelam a incurável fraqueza e
instabilidade de todas as suas acomodações.
Pensando na possibilidade de experiências de inclusão escolar
mais profícuas, partimos da ideia da (des) harmonia, num sentido que
vise a autonomia em relação aos ideais de pureza e que tem na diferença
o princípio ordenador das relações. Isso pede uma mudança do eixo de
rotação da escola o que não é simples, mas sem a qual talvez corramos o
risco de aderir a um processo de circularidade perigoso, retornando
sempre às mesmas questões e inviabilizando o surgimento de novas
formas de ver, conviver e pensar o diferente.
Assumir a inclusão significa assumir o risco do desequilíbrio
instaurado a partir da decomposição do modelo clássico de escola e de
educação. A presença da diferença solicita uma certa desregulamentação
dos espaços educativos de forma que os educandos, na condição em que
se apresentarem, possam situar-se da melhor forma possível e encontrar
neles acolhimento para seus projetos de vida, longe da normatividade
prescrita pelo Estado e incorporada, em grande medida pelos docentes.
É preciso livrar o corpo da lição da areia53
, poemou Cecília Meireles.
O que queremos sinalizar a partir dos versos da escritora é que
pensar em inclusão significa aceitar e aprender a conviver com o
instável, o improvável, o desconhecido, sob pena de permanecermos na
53 http://www.casadobruxo.com.br/poesia/c/mara.htm
101
ilusão da terra firme, segura e sem medos, onde todos os percursos
possíveis levam sempre a lugares já experimentados. Nessa direção, a
segurança que os professores precisam para atuar com alunos com
deficiência será encontrada quando compreenderem que não é possível
incluir da maneira que entendem, mas ao se liberarem das
metanarrativas, fazendo aquilo que é exequível com certa criatividade.
Mas, esta criatividade não nascerá dos discursos oficiais ou documentos
legais. Ela requer liberdade de interagir com os diferentes, abertura,
certo protagonismo e ousadia.
O que fomos descobrindo ao longo desta pesquisa é que o
grande silenciado é o sujeito professor, que precisa autoreconhecer-se e
reconhecer-se entre seus pares, o que pode decorrer da sua afirmação
pessoal como único e diferente, a partir da sua trajetória e história de
vida. A impotência expressa pelos docentes, ao formular que não estão
preparados pode assim transformar-se em potência que se assenta na sua
própria história de vida, capaz de trazer à tona o que cada um sabe e
pode aprimorar, promovendo sua autoestima. Este movimento implica
um desassujeitamento ao que é vivido como determinação externa
impiedosa, à qual é preciso submeter-se.
A propósito, se houve necessidade de desenvolver técnicas de
controle e de disciplinamento dos corpos, é porque existem, desde
sempre, formas de desassujeitamento. O pensamento foucaultiano de
que é preciso opor-se a todo sistema de arbitrariedade que visa subjugar
e submeter não só os corpos, mas, sobretudo, as consciências, emerge
como potência de transformação. Tal é, portanto, o objetivo maior da
educação de nossos tempos.
102
5 A EXPERIÊNCIA PEDAGÓGICA DA INCLUSÃO A
PARTIR DA “EXPERIÊNCIA DE SI”: AS HISTÓRIAS QUE
DE NÓS CONTARAM E AS HISTÓRIAS QUE FAZEMOS
Esse homem, ou mulher, está grávido de muita
gente. Gente que sai por seus poros. Assim
mostram, em figuras de barro, os índios do Novo
México: o narrador, o que conta a memória,
coletiva, está todo brotado de pessoinhas
(ALEANO, 2002, p.13).
Até aqui propomos uma análise acerca dos determinismos e das
contingências históricas, sociais e políticas que repercutem nos
processos de inclusão conforme temos desenvolvido. Temos consciência
que todos os pontos levantados afetam de forma incontestável as formas
como vem ocorrendo a inclusão de pessoas com deficiência nas classes
de ensino regular.
No entanto, limitar nossa análise a tais importantes dimensões
seria assumir a visão fatalista de que tudo não passa de reprodução e que
somos apenas produto da história e das condições concretas de
existência. Seria assumir nossa condição de prisioneiros de uma história
da qual, seríamos apenas espectadores.
Já sinalizamos com Foucault, que o poder é exercido em sua
capilaridade, estando presente nas relações que se estabelecem entre os
indivíduos em qualquer esfera da sociedade não podendo, portanto, ser
controlado. Também com Gaulejac (2014) vislumbramos a
possibilidade de superação da ideia de aprisionamento da história e dos
modos que levam a nos situarmos como estando inscritos nos modelos
de reprodução.
Nesse sentido, é que passamos a analisar os discursos de cada
docente sobre si próprias na transversalidade com suas práticas
pedagógicas, compreendendo tal experiência em sua constituição
histórica, em sua contingência e em sua singularidade. Nesse ponto
recorremos novamente a Gaulejac (2009b, p.66), ao trazer um
contraponto ao determinismo: a possibilidade de liberdade. Sobre essa
importante dimensão, o autor lembra que “mesmo quando a história que
precede fixa probabilidade daquilo que pode acontecer, os imprevistos e
”
Transpondo essa ideia para o processo de formação do
professor, uma contribuição de Tardif (2014) é oportuna. Ela afirma que
103
os saberes profissionais dos professores são atemporais, ou seja, são
adquiridos ao longo do tempo. Aqui cabe retomarmos a ideia
apresentada na introdução deste trabalho de que as práticas pedagógicas
não resultam, nem tampouco se limitam aos conhecimentos adquiridos
pelo professor no decorrer de sua formação inicial e/ou continuada. De
outro modo, podemos dizer que, além de um corpo de conhecimentos
exterior a ele, esse professor se forma a partir de experiências e de
relações consigo mesmo e com outrem, elaborando e reelaborando
significados.
Pensando sobre isso nos vem à mente a experiência
compartilhada pelas docentes durante o seminário, acerca do trabalho da
professora Flávia. A professora leciona Ciências e durante o tempo em
que trabalhou com alunos da Educação Especial afirma não ter feito
nenhum curso nessa área.
Os depoimentos das colegas que trazemos a seguir, atestam
nosso entendimento de que os docentes são dotados de um saber
construído a partir de suas experiências pessoais e não apenas
profissionais, e que, inclusive, muitas vezes, as primeiras subsumem as
segundas. Os professores, ao contrário do que pensávamos não são
apenas mediadores, mas sujeitos do conhecimento e “seu trabalho
cotidiano, não é somente um lugar de aplicação de saberes produzidos
por outros, mas também um espaço de produção, de transformação e de
mobilização de saberes que lhe são próprios” R F 4 .237).
Seguem alguns depoimentos nesse sentido:
“Eu acho que Flavia já está bem preparada para trabalhar com a inclusão. Ela pensa assim: não é teu aluno, é nosso
aluno. Ela está sempre pensando no que pode fazer para ajudar. A gente vê a preocupação, a dedicação, a
determinação, a paciência dela. Quero parabenizar, porque pra
mim é uma oportunidade trabalhar com ela, estou aprendendo muito” (Raquel).
“A postura dela dentro da sala de aula é exemplar. Ela tem
ética, tem uma visão de educação que os outros não têm, além de muita flexibilidade para trabalhar” (Sarah).
104
“O que a gente observa nela é que as atividades que ela planeja são sempre diversificadas e muito bem preparadas,
além de todo amor que ela traz para a sala de aula” (Beatriz).
Sobre os depoimentos das colegas de seminário, Flavia declara:
“Eu só me coloco no lugar dessas crianças. Eu tenho que
adaptar as atividades que eles não conseguem fazer”.
Na fala da professora se revela o que Tardif (2014, p. 265)
nomeia de saber personalizado. Nesse caso, diante de uma situação
conflituosa não é a um saber formalizado, objetivado que a professora
recorre para buscar uma solução, mas a um saber incorporado,
subjetivado.
Para o autor, boa parte do que os docentes sabem sobre o
ensino, sobre os papéis do professor e sobre como ensinar é mobilizado
pelos conhecimentos anteriores à formação inicial, a crenças e
representações que provêm de suas histórias de vida e que permanecem
fortes e estáveis através do tempo. Esses modelos, vindos de sua história
familiar e escolar são reativados diante de situações de conflito
vivenciadas pelo professor em sala de aula (ibidem. p. 260/261).
Percebe-se ainda, que a personalidade da professora foi
absorvida em seu ofício. Para controlar seu ambiente de trabalho, Flavia
passa a contar consigo mesma, com os recursos de que dispõe, com suas
capacidades pessoais e com sua própria experiência.
Momberger (2009, p. 252), nos faz refletir também sobre o peso
das experiências relacionais nos processos de formação docente.
Muito mais do que conteúdos de conhecimento,
são as experiências relacionais afetivas e sociais -
em que a polaridade emocional marcou sua
relação ao aprendizado e ao saber - que os adultos
em formação retêm da escola, aquilo que eles
designam do seu tempo escolar como sendo
significativo para o seu percurso de formação.
Tais experiências são vividas pelos professores no interior de
certos aparatos como a família, a escola, o ambiente profissional e
comunitário e em inúmeras relações que os indivíduos estabelecem com
seus pares, cotidianamente, ou seja, resultam de suas histórias de vida.
105
Como professores nos filiamos a determinadas crenças e
sistemas de valores, assumimos determinadas condutas, aderimos a
determinadas escolhas e exclusões, damos sentido às coisas, nos
inquietamos com umas enquanto permanecemos imobilizados diante de
outras. Enfim, somos uma amálgama formada a partir de tudo que
vivemos, do que nos apropriamos, elaboramos e reelaboramos, do que
rompemos, ousamos, idealizamos e materializamos. Somos complexos,
contingentes, produzidos pela discursividade e pela história, mas somos
também livres. Somos pessoas e estamos de fato, como nos lembra
G “b ”
E como é que nos reconhecemos como pessoas? Nossas formas
de ser e de agir são explícitas e conscientemente controladas? Jorge
Larrosa (2011) diz que a identificação própria do humano se dá em
algum nível de reflexividade,
[...] como se algum tipo de relação reflexiva da
pessoa consigo mesma, o poder ter uma certa
consciência de si e o poder fazer certas coisas
consigo mesma, definisse nada mais e nada menos
que o ser mesmo do humano (LARROSA, 2011,
p. 39).
Poderíamos aproximar a consideração feita pelo autor com a
possibilidade de mediar a experiência de si a partir do resgate de
histórias de vida. Nos limites do trabalho empírico que realizamos,
consideramos ser este um de nossos pontos importantes.
“ ”, cunhada por Larrosa
(2011), por entendemos que se equaciona com nossa proposta junto às
docentes. Nessa direção, e reconhecendo a importância do processo
reflexivo para a formação docente, buscamos estimular a tomada de
consciência das participantes acerca de quem eram, de suas ideias e
modos de comportamentos, bem como de uma análise de suas trajetórias
que modificasse, em alguma medida, a imagem que tinham de si
mesmas e de sua relação com a sala de aula.
Compreender porque ensinam da forma como ensinam e não de
outra, que imagens têm de si, do aluno com deficiência, de escola, quais
são seus valores, crenças, preconceitos e como esse modo de fazer se
articula às trajetórias sócio- históricas que as constituem hoje como
docentes, são algumas das reflexões que buscamos fomentar durante o
seminário.
106
A longo prazo, pensamos que esse processo de
autoconhecimento e reflexão acerca das práticas das docentes possa
converter-se em autonomia, autoregulação e melhoria da autoestima.
Dizendo de outro modo, pretendemos que, ao tomarem consciência de
suas trajetórias, as docentes se apropriem dos sentidos que dão ao seu
trabalho e se percebam como protagonistas capazes de projetar ações em
alguma medida transformadoras da realidade. Uma consciência que lhes
possibilita compreender concretamente que “ é as uma
das formas do realizável, e que o possível não se reduz ao pro ”
(GAULEJAC, 2014, p. 17).
Importa consignar que as categorias que passamos a apresentar
não foram definidas a priori, embora algumas já estivessem presentes
nos pressupostos desta pesquisa, ainda que em suspenso, aguardando a
emergência dos elementos do campo empírico. Sua definição resulta das
recorrências observadas entre um relato de vida a outro. Essas repetições
nos chamaram a atenção e, a partir delas, desenvolvemos os elementos
teóricos que se seguem. Tais categorias resultam também de um esforço
hermenêutico por meio do qual buscamos decodificar e dar sentido aos
materiais apresentados, buscando hipóteses explicativas que começaram
a elaborar-se coletivamente durante a realização do seminário.
Os sentidos foram sendo ressignificados à medida que
avançávamos na compreensão, caracterizando um movimento
permanente de elaboração e reelaboração, de idas e voltas entre empiria
e teoria. O diálogo iniciado junto ao grupo se manteve nesta etapa do
trabalho.
Com isso, buscamos um melhor entendimento sobre a ação
docente na educação inclusiva. Uma compreensão que expressa o
resultado sempre provisório de um processo dialógico, reflexivo e
respeitoso com aqueles que nos emprestaram suas experiências, para
pensar os caminhos trilhados e também os possíveis para a Educação
Especial.
5.1 HISTÓRIAS DE VIDA, SABERES DOCENTES E ESCOLHAS
PROFISSIONAIS
Conforme explicitamos, a pesquisa realizada teve como
sujeitos, profissionais com diferentes atribuições no processo de
inclusão: professoras titulares, segundas professoras, professora do
SAEDE e assistente técnico-pedagógico. Esta opção vem de nosso
107
esforço em compreender o processo de inclusão de alunos com
deficiência a partir da multiplicidade de olhares e da maneira como cada
um dos envolvidos elabora e dá significado à sua prática docente, a si
próprio, como profissional e ao aluno com deficiência.
No decurso de nosso trabalho empírico confirmamos, conforme
hipótese inicial levantada, a existência de particularidades importantes
associadas aos diferentes lugares ocupados pelas professoras na escola, e
que o entendimento e a relação estabelecida com a deficiência se dá
entre esses grupos também de forma diferenciada. As particularidades
próprias do trabalho dos professores que compõe as duas principais
categorias presentes - professores titulares e professores da Educação
Especial (segundas professoras e professora do SAEDE) - são
justificadas em suas narrativas de vida.
Entre o grupo formado pelas segundas professoras e pela
professora do SAEDE, verificamos que, em todos os casos, há situações
muito representativas vividas em seus contextos sócio-históricos.
Percebe-se um envolvimento mais significativo, um vínculo afetivo
mais forte que decorre de certa identificação das docentes com os alunos
da Educação Especial - e que ultrapassa uma questão meramente lógica
– uma vez que sua presença em sala está condicionada à matrícula
desses alunos.
Temos, nesse caso, diferente da situação dos professores
regentes, uma opção declarada por este tipo de trabalho, com este tipo
de aluno, o que incide, de forma geral, em maior empatia e consciência
acerca do trabalho inclusivo. Em algumas de suas narrativas as docentes
manifestam esse sentimento:
“O trabalho para mim é uma oportunidade e um desafio. Não existe nada tão fechado que não tenha uma janelinha que possa
ser aberta” (Sarah).
“Se existir vínculo, se o vínculo for forte e existir confiança, a aprendizagem será uma consequência” (Lucirene).
“É muito gratificante trabalhar com essas crianças [...]. Eles
estão ali pedindo: olhe para mim, eu sou alguém dentro da sala e eu preciso que você me dê a mão para sair daqui e chegar aí.
E é isso que me prende na Educação Especial” (Angélica).
108
“O que me faz hoje ser segunda professora é o prazer de estar ao lado deles, a sede de saber mais sobre a deficiência e ter a
certeza que não sou professora por acaso” (Sarah).
“Sempre digo que quero ser marcada na vida dos meus alunos. [...] Eu tenho que buscar o meu máximo pra conseguir sanar as
dificuldades deles, como uma professora sanou as minhas na
terceira série. Então eu estou batalhando para chegar lá, no final do ano, eles olharem pra mim e dizerem: Ah! Que bom
profe, que você fez isso por mim! Eu quero ser vista por eles dessa forma” (Raquel).
“Atualmente eu estou numa sala de quinto ano, é minha
primeira experiência como professora titular, então tá sendo uma experiência assim... meu Deus é muito trabalhosa, são
alunos com muita dificuldade! Primeira experiência, muita dificuldade, sala indisciplinada, tudo junto, né. Mas eu me
coloco no lugar deles” (Raquel).
“Raquel, no ano passado fez um trabalho maravilhoso no
SAEDE e agora que eu entendi que nada acontece por acaso.
Então, pela sua dificuldade, as circunstâncias que viveu, ela
teve um olhar diferente. Ela fez uma triagem na escola, que nunca ninguém tinha feito, com aquela vontade, aquela
necessidade de ajudar. Não precisava chamar: Olha, Raquel... Não! Ela mesma se direcionava, enxergava. A gente via, ela
não fazia como uma obrigação, mas como uma boa ação.
Assim... a gente tem uma função, a gente faz aquela função, mas quando a gente faz além daquela função, com o desejo de
ajudar, nós somos diferentes, e isso ficou muito registrado aqui
na escola” (Beatriz).
“Eu vejo a importância do elogio e do incentivo. Ano passado
foi um ano que me marcou porque eu tive um aluno que quando chegou na escola, falava: Eu não sei fazer! É melhor que eu
morra! A gente fez um trabalho com ele e no final do ano ele
repetia o que eu dizia para ele: Eu posso, eu sei eu sou capaz! Eu perguntava: E o que você vai ser? Ele respondia: Eu vou ser
professor!” (Sarah).
109
Os enunciados acerca das vivências trazidas pelas professoras
são carregados de emoções, afetos, sentimentos e sensações que são
marcas dos contextos nos quais elas se inserem. Nessas práticas, mais do
que um saber pronto, estabelece-se uma relação com o saber onde
entram em cena vários componentes: técnicos, didáticos, conceituais,
motivacionais, psicológicos, éticos, históricos, sociais.
Esses elementos, formam, de acordo com Tardif (2014), uma
“epistemologia da prática profissional”. Em outras palavras isso
corresponde ao “conjunto dos saberes utilizados ‘realmente’ pelos
profissionais em seu espaço de trabalho cotidiano para desempenhar
‘todas’ as suas tarefas” (ibidem. p. 255) (grifos no original). E fica claro
nas manifestações das professoras que esse conjunto de saberes envolve
muitíssimo as experiências passadas, episódios vivenciados em
momentos ou períodos da vida.
Nesse sentido, evidencia-se o quanto a subjetividade dessas
professoras está presente em suas práticas, o quanto os saberes
provindos de suas experiências conduzem suas ações e dão sentido ao
seu fazer pedagógico e à sua própria formação, vista como um processo
amplo e dialético que envolve uma conexão entre o mundo interior e o
exterior.
Dominicé (2010, p. 94) descreve a formação como um processo
q “os contextos familiares, escolares e profissionais constituem
lugares de regulação de processos específicos que se enredam um no
outro f ”
Nessa mesma linha de raciocínio, Gaulejac (2014, p. 170)
afirma q “ à
õ q z ” â
narrativas biográficas das professoras, conforme elas expressam:
“Devido ao fato de eu ter convivido em ambientes diferentes,
lá no ambiente da fábrica, onde as pessoas mal sabiam escrever seu nome, eu comecei a valorizar mais o ser humano,
eu percebi que não importa se é um mestre ou um analfabeto,
todos têm valor e foi lá que eu comecei a me perceber como um ser capaz de ter algo bom, que viesse contribuir para a
mudança dessas crianças que chegam na escola” (Sarah).
“Eu já passei por dificuldades na escola, eu já sofri
preconceitos. É como um rótulo, uma coisa que fica na mente
110
da pessoa. [...] Eu acho que minha missão é ajudar as crianças” (Angélica).
“Eu tinha muita dificuldade de leitura e escrita na primeira e
na segunda série. Só fui alfabetizada na terceira série” (Raquel).
“Sempre tive muita dificuldade em matemática. Hoje, depois de
muito tempo trabalhando com a deficiência eu acredito que eu
tenha uma discalculia [...] é uma dificuldade muito grande que
até hoje pra ensinar meus alunos eu tenho que estudar muito” (Raquel).
“Quando fui transferida de escola para uma totalmente
diferente da anterior, fui muito rejeitada, por ser pobre, por morar na periferia, não fiz amigos, mal tinha um coleguinha
para fazer um trabalho. Me sentia muito rejeitada e excluída[...] Eu e meus primos que saímos de lá (referindo-se à
escola anterior), a gente sentiu que era só nós, ninguém
chegava perto e falavam muito mal do bairro” (Raquel).
Entre esse grupo de professoras há uma herança pessoal, social
e cultural muito potente que condiciona suas práticas na medida em que
as representações que constroem acerca da pessoa com deficiência se
ancoram nas formas como elas próprias experienciaram o mundo. Tais
representações decorrem especialmente de suas trajetórias escolares ou
dos contextos familiares. Gaulejac (2014) traduz tais condutas docentes
afirmando q “ b f
õ f j ”
estabelecida pelas professoras com seus alunos, narrada por elas e
confirmada pelas demais participantes do seminário.
Atuar com alunos com deficiência representa, assim, um olhar-
se diante do espelho. É a memória de um espaço-tempo que emerge
reconstituindo as alunas que foram e ressignificando suas práticas. Uma
memória que não é sonho, é trabalho (BOSI, 2010). “ b é
reviver, mas refazer, reconstruir, repensar com ideias e imagens de hoje
” ibidem. p. 55).
Acerca do peso dos contextos familiares no processo de
formação, no grupo composto pelas segundas professoras e pela
111
Professora do SAEDE observamos que em 75 % dos casos há
evidências na história pessoal que justificam suas escolhas pelo trabalho
na Educação Especial.
Raquel, ao elaborar sua árvore genealógica descreve uma
relação com um ramo da família bastante conturbada. Um de seus avôs
era matador de aluguel e morreu nas mãos de um bandido. O pai,
alcoólatra, tinha no avô uma referência e sempre que bebia aparecia em
casa com uma arma. Seus relatos apontaram para a escolha da profissão,
podendo indicar uma tentativa de sair da obscuridade legada por seus
antepassados.
“Por eu ver tanto mal desse lado (aponta para o lado da árvore
que corresponde ao ramo da família indicado) é que eu procuro fazer tanto o bem”.
Na medida em que exerce a função de professora de pessoas
com limitações, excluídas e marginalizadas socialmente, a professora de
alguma forma entende que está pagando uma dívida social herdada. A
educação, em certa medida, a redime e a retira da escuridão projetando-a
em direção à luz - o reconhecimento, um lugar social.
No caso de Sarah, a recuperação de sua trajetória familiar
aponta a religião (protestante), a família e o trabalho como centrais em
sua vida. De origem européia, o valor que a professora dá à sua
profissão está associado à religião, pela forma como o trabalho é
concebido entre os povos da doutrina referida, para a qual tal ocupação
não significa somente um meio e subsistência, mas o caminho pelo qual
a pessoa se aproxima de Deus.
Em sua fala a professora dimensiona a importância que o
trabalho atual assume em sua vida.
“Esta escola faz parte da minha formação. [...] Vocês não
fazem ideia da grandiosidade que é para mim, estar aqui”.
A opção por atuar com pessoas com deficiência pode estar
associada também aos princípios religiosos (salientados em sua
narrativa), pela aproximação com os mais necessitados. Entre seus
ancestrais que viviam da agricultura, a professora narra uma situação de
falência econômica. Isso se manifesta na geração em que se encontra
(provavelmente pelo medo de recorrência do fato) em grande
112
solidariedade e, no seu trabalho, pelo esforço, compaixão, generosidade
e amor para com os alunos.
A professora Lucirene também associa sua aproximação com a
Educação Especial ao seu histórico familiar. De acordo com a docente,
três de suas tias maternas possuem deficiência, uma é surda, outra
possui deficiência física e outra apresenta problemas na fala. Segundo
seu relato, e f q “mal aprenderam escrever o nome”.
Para Lucirene isso influenciou significativamente sua escolha
profissional. Esse envolvimento com situações de deficiência se
manifesta de forma importante no seu trabalho, na medida em que a
professora alega sentir-se muito responsável pelo aluno com deficiência.
“Eu não me vejo ficando parada diante de uma criança com
dificuldade de aprendizagem”.
No grupo das professoras titulares, percebe-se também a
existência de relações significativas com os alunos da Educação
Especial, embora em 66,6 % dos casos manifeste-se de forma pouco
expressiva. A análise de suas trajetórias social, familiar e escolar não
revela evidências tão significativas quanto aquelas presentes no grupo
anterior. Em alguns casos percebe-se inclusive, um vínculo bastante
frágil na relação professor/aluno, conforme descreve a professora Maria
Aparecida
“Eu deixo livre para que o segundo professor trabalhe o que
quiser”.
“Tenho salas com 41 alunos e não tenho como conhecê-los, muito menos saber o nome deles (se referindo principalmente
ao primeiro bimestre). E são muitas turmas. Com os alunos inclusos são lá com a professora que faz o trabalho dela”.
Em que pese as reais dificuldades enfrentadas pelas docentes
em seus contextos escolares, percebemos que as ocorrências narradas pela professora, pela forma como foram expressas, vinculam-se a certos
conhecimentos disciplinares adquiridos na universidade, assim como, a
conhecimentos didáticos e pedagógicos que provém de sua formação
profissional. Percebemos também, uma tradição ou modelo de professor
113
que se reproduz, mantendo um padrão de rigidez, inflexibilidade e
preocupação com resultados. No caso de tais resultados não aparecerem,
o aluno deixa de ser visto pela professora como de sua responsabilidade.
Na narrativa de seu percurso acadêmico encontramos elementos que
podem justificar suas atitudes em sala de aula. Sobre isso a professora
conta:
“Foi uma época muito sofrida. Os professores, todos homens, muito sistemáticos, metódicos, perfeccionistas, exigiam sempre
o máximo de nós e tínhamos que ir ao limite. Se tivesse que fazer novamente o curso não faria, acho que não vale a pena
pelo lado emocional e psicológico. Foi muito difícil!”
Não podemos desconsiderar, conforme esclarece Gaulejac
(2014), que a utilização das histórias de vida se presta para analisar de
que modo a história individual é socialmente determinada, mas
considera importantes tanto as escolhas como as rupturas da existência.
Nesse sentido “ f
influência dos determinantes sociais; a da atividade pulsional, que busca
permanentemente obter a satisfação de um desejo próprio; e a irredutível
singularidade de cada ser que busca existir por ele próprio”
(GAULEJAC, 2009b, p.71).
No caso específico que relatamos, podemos considerar que a
professora tem dificuldade em romper com um padrão, incorporando
“ de pensar, habitus que vão se tornando parte
integrante de sua pessoa, como se fossem inatos” (ibidem. p.69).
O trabalho que realizamos pode ser entendido num sentido que
possibilita a essa professora enxergar-se, voltar o olhar para dentro e
recuperar sua função de historicidade, função esta que “à
capacidade de um indivíduo de integrar sua história, mas também, de
integrar a História, de modo a compreendê-la [...] para modificar a
maneira ” (ibidem. p. 35).
Um destaque nesse ponto nos faz pensar sobre a forma como a
tradição centraliza na educação e na formação a ideia de domínio de
conteúdos e de técnicas para ensinar. Na direção oposta, Larrosa (2002) afirma que a educação não deve ser pensada apenas do ponto de vista da
relação entre a ciência e a técnica ou da relação entre teoria e prática,
mas de uma proposta mais existencial, a partir da relação
experiência/sentido humanos.
114
Esta reflexão nos parece bastante oportuna considerando o
relato da professora Maria Aparecida. É a experiência que conduz seu
fazer da forma como é feito e não de outra. Essa experiência a que nos
referimos não diz respeito apenas à formação profissional ou ao trabalho
do professor, ou seja, não tem a ver somente com “o que acontece” em
sua carreira, mas com “o que lhe acontece”, aquilo que, em confronto
com sua subjetividade passa a produzir os sentidos que dá à sua prática
na vida.
Retomando nossa análise acerca das diferenças observadas
entre os dois grupos de professores pesquisados, trazemos o depoimento
da professora Raquel que reafirma certa fragilidade nos vínculos
estabelecidos entre os professores titulares e os alunos com deficiência:
“Eu estou achando muito difícil pela falta de planejamento da
maioria dos professores [...]. O professor vai trabalhar, por exemplo, império. Eu consegui adaptar uma atividade sobre
isso, chegou no dia, a sala estava bagunçando, o professor não
faz a atividade sobre império e começou a ditar. Pense eu, com uma aluna que não escreve, hiperativa, que eu tenho que ficar o
tempo todo ao lado dela porque se não ela não se concentra...
Eu vou ter que escrever tudo pra ela levar pra casa?! O que a aluna ficou fazendo naquela aula? Nada! O que ela aprendeu
naquela aula? Nada! Pra mim que tenho que adaptar as atividades está sendo muito ruim, muito difícil, eu estou tendo
muitas dificuldades [...]. Tem professores que dizem: O aluno é
teu, você se vira”!
Podemos associar esse comportamento descrito pela professora
em relação ao trabalho com os alunos da Educação Especial a partir do
que Tardif (2014, p.266) descreve como as marcas do humano na ação
docente.
Primeiramente, refere o autor, os seres humanos são indivíduos.
É essa dimensão fundamental da vida que orienta a existência de uma
disposição no professor para conhecer e compreender os alunos em suas
particularidades individuais e situacionais, bem como em sua evolução a médio e longo prazo no contexto da sala de aula. A segunda
consequência descrita, que se refere ao caráter humano do ato educativo,
reside no fato de o saber profissional comportar sempre um componente
115
ético e emocional, que se apresenta impregnado de valores de sua
cultura.
Disso depreendemos que, quanto mais imersos em situações de
vida que o aproximem da experiência de vida do aluno com deficiência,
mais provocado será o professor a desenvolver práticas de ensino
significativas e desencadeadoras de aprendizagem.
Se a forma como metabolizam suas experiências de vida não
propicia uma atuação diferente daquelas descritas pela professora, e
mais, se o processo de inclusão é uma realidade, é no contexto da sala de
aula, marcado por relações conflituosas e complexas, entre as quais os
saberes deverão ser construídos e as experiências que os docentes têm
de si, reconstruídas.
Esse movimento, pode ser potencializado quando se processa de
maneira não isolada ou solitária, isto é, se faz compartilhado. A reflexão
e a autoconsciência pessoal e profissional do professor precisa ser,
portanto, um processo mediado.
5.2 HISTÓRIAS DE VIDA COMO PRÁTICA REFLEXIVA E
PROCESSO AUTOFORMATIVO
Eu creio no poder das palavras, na força das
palavras, creio que fazemos coisas com as
palavras e, também, que as palavras fazem coisas
conosco. As palavras determinam nosso
pensamento porque não pensamos com
pensamentos, mas com palavras, não pensamos a
partir de uma suposta genialidade ou inteligência,
mas a partir de nossas palavras (LARROSA,
2002, p.21).
Quando pensamos a abordagem das Histórias de Vida a partir
de uma concepção de autoformação o fazemos lembrando da afirmação
de Jennifer Nias, citada por Nóvoa (1992, p.7) q “ f é
uma pessoa, é f ” Estamos
pensando que, ao entrar numa sala de aula, esse professor o faz portando
suas histórias, suas concepções, seus valores, seus conceitos, pré-
conceitos, experiências, dificuldades, desejos, frustrações.
É isso tudo que o forma, ou seja, a vida é sua própria
experiência formadora e toda experiência de formação é, ao mesmo
tempo, de autoformação, porque é um processo ativo que não se dá
116
apenas em espaços e tempos precisos, mas é antes uma ação vital de
construção de si próprio. Por isso, como bem sinaliza Larrosa (2011,
p.49), “ q está duplicada numa questão quase existencial
e a transformação da prática está duplicada pela transformação pessoal
do professor”.
Isso se evidencia no depoimento da professora Catarina:
“Para mim, que estou buscando evoluir, buscando o equilíbrio, esse foi um momento muito importante. A gente é muito forte
quando não se coloca em xeque a gente pessoa, e aqui a gente trabalhou com sentimentos. Isso veio a acrescentar muito pra
mim enquanto bagagem evolutiva e claro, vai acrescentar
também no meu dia-a-dia como professora”.
Nesse sentido, e compreendendo que a identidade profissional
não se descola das múltiplas experiências de vida, o que buscamos no
trabalho realizado junto às docentes foi dar a ele um enfoque clínico, no
sentido de ser uma tarefa que se aproxima o mais possível do vivido
pelo indivíduo (GAULEJAC, 2009b), ou passa por uma visão global do
sujeito, “de modo que não o separa, recorta, isola. É, ao contrário, a
perspectiva que religa, apreende [...] a totalidade, de tal modo que cada
elemento do percurso é percebido e pensado em suas relações aos outros
elemento q f z ” (LAINÉ, 2009, p.244).
Assim, retomando uma das ideias centrais deste trabalho,
entendemos que, ao se definirem não preparadas para a inclusão, as
professoras não estão se referindo apenas às questões de ordem
metodológica, procedimental ou a um corpo de saberes constituído que
lhes possibilita atuar pedagogicamente em sala de aula, ainda que
pensem que sim, que é desses conhecimentos e competências que
necessitam e que isso, por si só, será garantia de sucesso do seu
trabalho.
Nesse enunciado se fazem presentes aspectos mais interiores e
pessoais, como atitudes, aptidões, valores, disposições, componentes
afetivos e emotivos, dentre outros, os quais influenciam fortemente a
atuação docente. Componentes esses, que podem ser acessados no momento em que as professoras se dispõem a socializar suas trajetórias.
Tanto em Larrosa (2011) quanto em Gaulejac (2014), os
momentos em que somos narrados, por nós ou pelo outro, provocam
uma tensão reflexiva. Essa tensão produz uma zona de incerteza e
117
questionamento pela qual o sujeito se vê e se julga. E ao se ver, se
conhece, toma consciência. E ao tomar consciência, se forma e tem a
possibilidade de transformar-se.
Essa tensão foi descrita pela segunda professora Sarah, em
nosso trabalho de campo:
“O trabalho que a gente realizou foi assim... desequilibra,
equilibra, desequilibra de novo”.
Tais desequilíbrios narrados pela professora podem ser
compreendidos como modalidade de conhecimento54
e, nesse sentido,
vários são os autores que compreendem a história de vida como relatos
que favorecem aprendizados. Entre esses destacamos Momberger (2009,
p.249), para quem “ f f
particularmente, na versão biografia educativa, é um efeito de
conhecimento” Para a autora, o trabalho biográfico oferece uma relação
interna e direta para a formação do indivíduo que, para que tenha um
sentido, precisa ser ressituada em sua história. A base de tal
conhecimento é a experiência, assim explicada:
Para que aquilo que nos é estranho e desconhecido
passe a fazer parte de nosso repertório de
conhecimento é preciso que nos submetamos a
processos de etiquetagem, de classificação, de
tipificação, que virão integrar e se ordenar na
reserva de nossos saberes disponíveis. Essa
reserva vai se modificando e se reconfigurando
sob relações variáveis segundo a natureza de
novos saberes integrados (MOMBERGER, 2009,.
p. 253).
54 Para Piaget (1975) o desenvolvimento cognitivo ocorre sempre que ações
físicas ou mentais atuam provocando desequilíbrios. Isso acontece a partir de
processos de assimilação e acomodação. O processo de assimilação consiste na
incorporação de uma realidade exterior qualquer numa parte do ciclo da
organização. Já, o processo de acomodação consiste na criação de novos
esquemas ou na modificação dos velhos (PIAGET, 1987).
118
Recuperando o Seminário de Implicação e Pesquisa realizado,
passamos a descrever alguns pontos que consideramos importantes no
processo de formação, conhecimento e autoconhecimento das docentes.
Era a primeira vez que as participantes do grupo viviam a
experiência de falar de si, demoradamente e sob efeito de análise dos
diversos momentos que marcaram suas trajetórias. Era a primeira vez
que um grupo ouvia e compartilhava de suas experiências, que elas, as
professoras, se percebiam nas histórias das demais, ao mesmo tempo em
que aquelas também se reconheciam nas suas.
Por estarem as docentes significativamente implicadas no
trabalho, a abordagem das histórias de vida possibilitou uma interação
bastante positiva, em que, ora as professoras narravam ou
compartilhavam as trajetórias das demais participantes, ora estavam
sendo interpretadas ou contribuindo com suas análises e/ou impressões
acerca das narrativas socializadas. Desenvolveu-se, ali, um processo de
coconstrução dinâmica, um diálogo aberto, com a única finalidade:
contribuir um com o outro.
Não havia qualquer tipo de esforço em se impor alguma
verdade ou em dar ênfase a conhecimentos que fossem externos ao
grupo. Interessava-nos especialmente, os saberes produzidos no coletivo
do trabalho em suas salas de aula, em seus grupos de estudo, em suas
experiências dentro e fora da escola.
A busca das hipóteses efetuava-se no vai e vem das
considerações e das análises das participantes, as quais traziam consigo
uma carga de visões de mundo e de sentidos particulares. As convicções
pessoais eram confrontadas a todo momento com a experiência e a
opinião do outro. Formavam-se zonas de intersecção, vindo à tona
formas de fazer e de pensar que dialogavam com as demais, que
reforçavam posições ou que colocavam a prova supostas certezas,
ameaçando um chão argumentativo aparentemente seguro, mas que,
inevitavelmente, conduziam a reflexões, conforme destacamos nos
depoimentos das professoras:
“Eu fiquei pensando sobre nossos alunos, suas famílias, no aluno que tem dificuldade, porque quando é na família dos
outros é mais um; agora, quando é na nossa família... Eu me coloco no lugar, porque se nós tivemos toda essa trajetória,
essas emoções, essas marcas, imagina a pessoa com deficiência
119
intelectual como se sente, sempre aquém, sempre abaixo” (Beatriz).
“É muito fácil eu dizer se o que o aluno faz está certo ou
errado, eu tenho que apresentar números na escola, mas quanto essa pessoa produziu, quanto ela aprendeu? Eu me
pergunto: será que eu contribuí pra vida cotidiana ou só pra
vida acadêmica desse aluno”? (Raquel)
“Em algum momento a professora me perguntou onde estava a
explicação para eu ser professora de alunos com dificuldade. Eu me questionei, eu refletí, não que em outros momentos a
gente não faça isso, mas eu tive a oportunidade de olhar pra
atrás e me ver” (Catarina).
“Acho muito importante tudo isso que a gente viveu aqui pra
gente ter um olhar diferente, respeitar a individualidade [...]. Eu me questionei: que professora eu fui, que marcas eu deixei?
Me questiono também sobre a forma como fazemos inclusão.
Todos tivemos dificuldades de compreender esse processo.
Quem é que passou por tudo isso? O próprio aluno, foram
vidas. É uma dor muito grande ver a criança ali sem participar,
sem aprender. As coisas foram sendo construídas e estão sendo modificadas em cima da dificuldade e do sofrimento de
alguém” (Beatriz).
“Ontem a professora me perguntou sobre a importância do
conhecimento científico que eu mencionei55
. Ela me questionou
de que maneira eu via os alunos com deficiência intelectual
nesse contexto. Aí em casa eu fiquei pensando sobre isso e
lembrei de um caso. Em 2012 eu tive um aluno com deficiência intelectual. Teve um período que eu trabalhei com unidades de
medidas, teve um dia que ele fez uma colagem sobre produtos
55 “Eu acho que a função da escola é de passar o conhecimento científico para
o aluno, porque aquele ser humano que acaba não tendo esse conhecimento
científico não vai ter autonomia pra vida. Nós estamos aqui porque tivemos
isso, nos tornamos melhores, autônomos, conseguimos mudar a nossa história
através disso”.
120
que eram em litro, em quilograma... Isso mexeu comigo porque eu percebi que ele aprendeu, eles aprendem do jeito deles, mas
eles aprendem também” (Maria Aparecida).
“Eu tive insônia, fiquei lembrando dos acontecimentos de ontem, das reflexões feitas durante a manhã e a tarde, foi uma
reflexão boa, mas que incomoda” (Lucirene).
Os relatos evidenciam a força que a narrativa biográfica
imprime na formação e o poder de transformação que opera sobre as
docentes. Ter sua própria trajetória de vida como conteúdo formativo,
desloca a experiência das professoras de um lugar marginal para um
lugar de protagonismo, o que inevitavelmente, se traduz em novos
saberes mais articulados com as necessidades de seu ofício.
O processo de formação que parte da atitude reflexiva é descrito
por outro importante autor que tratou da linguagem, Backhtin (1992). A
reflexão, de seu ponto de vista, é um momento de distanciamento físico
do narrador para consigo mesmo, “o autor da biografia é o outro
possível” (ibidem. p. 166). Um outro que penetra sua consciência e que
com frequência governa sua conduta e seu o juízo de valor. Afinado
com essa ideia, Larrosa (2011, p. 73), ao descrever os dispositivos
pedagógicos56
que atuam na experiência de si, destaca que “ -se, o
expressar-se e o narrar-se no domínio moral se constituem como atos
j ” Isso se evidencia principalmente nos dois
últimos relatos apresentados.
Ao destacar que o papel da escola é o de transmitir os
conhecimentos acumulados e sistematizados e que aquele não se
apropria deles não desenvolve autonomia, interrogamos a professora
Maria Aparecida acerca de seu entendimento da pessoa com deficiência
nesse contexto. No caso referido, diante de um questionamento que
desacomoda um saber interiorizado, a relação da professora consigo
mesma toma a forma do julgar-se, o que a leva a buscar em sua
trajetória profissional alguma situação de validação de seus saberes.
Nesse caso é como se a professora, “além de ver-se tivesse também um
critério ou padrão que lhe permitisse avaliar o que vê, criticar-se” (ibidem. p.74), ainda que não o faça explicitamente.
56 Por dispositivo pedagógico Larrosa q j “q q
q f ”
121
O paradigma da inclusão projeta uma performance docente que
vai sendo, aos poucos, interiorizada pelos professores. Durante as
atividades de reflexão as docentes foram levadas a transformar sua
percepção e, muito provavelmente, com repercussões na prática. Nessas
situações, de acordo com Larrosa (2011, p. 77) os critérios de juízo são
os predominantes.
A necessidade de julgar-se a si próprio em função
da própria transformação é, então, desencadeante
e reguladora de todas as atividades de auto-
observação e de todos os mecanismos discursivos
de autoanálise que estão incluídos na reflexão
sobre a prática.
No último relato apresentado, a professora descreve a sensação
“ f b q ”
podemos identificar um possível conflito vivido pela docente que remete
ao que Villers (2009, p. 215) - ao analisar o processo de construção da
identidade - nomeia de “ ” Partindo dos estudos
de Higgins (1987, 1989), o autor define esses domínios como:
O si realizado que se refere à representação dos atributos
que o sujeito tem ou pensa que tem em um determinado
momento;
O si ideal que diz respeito à representação que o sujeito tem
dos atributos que uma pessoa gostaria de idealmente
possuir;
O si normativo que seria a representação que o sujeito tem
dos atributos que uma pessoa pensa que deveria possuir.
A narrativa apresentada colabora para a ideia que apresentamos
neste trabalho, segundo a qual a formação do professor só é possível ao
custo de uma mobilização de sua identidade, o que, a partir da tomada
de consciência o leva a buscar outros caminhos, possíveis e
provavelmente melhores. Na fala da professora Lucirene, expressa-se
essa dinâmica de constituição de si que é geradora de conflitos,
contradições e problematização da existê “ ” q
interroga, se critica, se define e se transforma. Por isso, a sensação de
uma reflexão boa, porque permite avançar, mas que ao mesmo tempo
incomoda, porque remete a um grau de consciência das próprias
limitações e demanda esforço para mudar, abandonar práticas
conhecidas.
122
Nos demais depoimentos percebemos a ocorrência de algumas
rupturas ou, ao menos, de reflexões que podem ser indicativas de novas
ações projetadas em função das potencialidades da abordagem das
histórias de vida. Em todos os casos podemos perceber um exercício
metacognitivo em que as professoras passam a pensar sobre como
pensam e como agem. Trata-se de um trabalho sobre o seu trabalho, ou
trabalho ao quadrado. Contar suas vidas, conforme fica evidenciado,
representa um modo de se refazerem.
Essa prática remete ao conceito de historicidade já apresentado,
q “ - própria ao homem, a partir da análise
reflexiva de sua história passada - de infletir mais (ou de ter mais
domínio sobre) sua vida futura e, assim, de advir mais como sujeito de
” LAINÉ, 2009, p. 241). Esse conceito se materializa nos
depoimentos das professoras a partir do que descrevem como
transformação de suas práticas:
“Agora quando a gente for conversar com uma criança a gente
tem outro olhar, a gente não vê mais eles só aquele ser ali, mas todo o seu contexto” (Beatriz).
“Imaginem como vai ser, a partir de amanhã, a atuação de
cada uma de nós em sala de aula! E isso não vai ser da nossa fala, nós vamos ter atitudes diferentes” (Sarah).
Atitudes diferentes que decorrem de suas próprias experiências
de vida revisitadas. Esta parece ser a chave para o desenvolvimento de
práticas pedagógicas mais afinadas com o processo de inclusão. Se a
educação inclusiva aponta para a necessidade de uma grande
transformação dos sistemas de ensino, o trabalho que o professor realiza
- apesar de todas as implicações externas a ele - é fator importante neste
processo.
Nesse sentido, as experiências vividas pelos docentes no
decurso de sua vida precisam ser consideradas e tomadas como centrais,
o que, via de regra não acontece nem nos cursos de formação inicial,
nem naqueles de formação continuada.
123
Lainé (2009, p. 231), ao se referir ao uso das histórias de vida e
ao dispositivo para validação das aquisições de experiências (VAE57
)
“ ”,
quando a formação segue os modos tradicionais.
Não se trata de uma mesma coisa para um
aprendente, de um lado tentar se aproximar de um
conceito “ ”
de elos em relação à sua experiência pessoal; e de
outro, de captar este mesmo conceito no instante
em que ele esclarece um momento de sua história
vivida, instante no qual ele se questiona.
Desse modo, ao serem confrontadas com seu próprio itinerário
de formação e dar-se conta do quanto determinadas situações afetaram
sua configuração como pessoa e como profissional, ocorre um processo
de deslocamento de si mesmas, no qual as docentes se posicionam no
lugar do aluno e passam a refletir sobre seus próprios comportamentos,
modos de atuação e formas de entender a deficiência e o seu trabalho.
Entendemos que esse exercício de empatia é fundamental,
porque remete a emoções, a afetos que, como elementos interiores,
desencadeiam transformações, especialmente em razão de estarmos nos
referindo a situações em que a diferença é revelada em toda sua
potência, obrigando-nos a repensar a nossa postura diante do outro. Uma
postura que mais do que estar junto, envolve ser junto.
Os professores que “estão junto” são aqueles de quem, com
maior frequência ouvimos que a inclusão não é algo possível, que não se
sentem preparados e que os alunos com deficiência não aprendem. Por
q q “são junto” - vivenciando o processo de inclusão
numa aproximação autêntica com a diferença, sem fazer do diferente o
mesmo - retiram de suas próprias experiências de vida as respostas que
necessitam. A transformação de suas práticas profissionais decorre,
sobretudo, de uma transformação de si próprias, como pessoas.
O que percebemos com certa frequência durante o tempo em
que atuamos na assessoria técnico-pedagógica aos professores, é que,
57 Descrito pelo autor como uma via de qualificação profissional baseada na
prática, esse processo se utiliza das histórias de vida para validação das
aquisições. Foi institucionalizada na França como dispositivo formal de
validação das aquisições em 1992.
124
quando um professor consegue desenvolver atitudes inclusivas como
generosidade, desprendimento, altruísmo, acolhimento, respeito pela
diferença, dentre outras, as dificuldades decorrentes do trabalho com as
pessoas com deficiência são minimizadas ou mais facilmente
administradas. Esse professor passa a desenvolver uma metodologia
própria, uma capacidade intuitiva com base em conhecimentos
anteriores, dos quais lança mão para resolver os problemas que vão
surgindo, desenvolvendo assim certa autonomia em relação ao seu
trabalho. Isso se manifesta nas palavras da segunda professora Lucirene,
quando relata:
“A gente tem que ter sempre uma carta na manga, se não dá de
um jeito, tem que encontrar outra forma”.
Em contrapartida, aqueles que não desenvolvem tais atitudes
têm dificuldade para atuar diante de situações novas, parecendo
necessitar de receitas prontas ou fórmulas mágicas que aplicadas
resolveriam todos os seus problemas.
Além de um instrumento de formação, o relato biográfico opera
um duplo movimento de transformação: em relação à nossa própria
identidade e em relação ao reconhecimento do outro. Desenvolve-se
assim, uma dinâmica de alteridade: a relação com o outro possibilita o
próprio reconhecimento e condiciona nossa existência; por outro lado, o
reconhecimento de si possibilita apreender as complexas relações que
estabelecemos com nossos pares. Entendemos o outro a partir do nosso
próprio processo de autoconhecimento.
Esse processo, no entanto, solicita atenção consciente, o que
muitas vezes não ocorre ao acaso, mas precisa ser mobilizado por uma
intencionalidade ou por um desejo “ q nós estamos em perigo
ou incapazes de desenvolver uma escuta e um conhecimento de nós
b ”
(JOSSO, 2007, p.427).
O sentido que damos a nós próprios, ao outro ou à vida é
sempre uma reconstrução e como tal pode ser alterado e transformado a
partir da reflexão sobre os modos como agimos e reagimos. As
trajetórias de vida quando recuperadas ao nível da consciência adquirem
esse caráter de reflexividade. Ao recuperarmos nossas trajetórias
“estruturamos o olhar que lançamos sobre a nossa própria história e este
125
é o prisma pelo qual reconstituímos a trama da existência”
(GAULEJAC, 2009b, p. 66).
Nessas situações as docentes colocam em evidência o modo
como mobilizam seus conhecimentos, seus valores, seus interesses e
suas energias, num diálogo com seus contextos de origem. São
experiências q “ ”
(BUENO, et al. 1993, p.307) suas identidades podem ser transformadas.
Esse conceito permite compreender muito bem um importante relato de
nosso material empírico, onde a professora Raquel narra um processo de
desconstrução da imagem que formou sobre si:
“Eu achava que eu era um problema. Eu tinha um pensamento
e na conversa com as colegas, contando a minha história, eu pude perceber que na verdade eu sou uma solução, não um
problema”.
O relato da professora nos permite inferir que este exercício de
historicidade vivido por ela possibilitou que, ao ser narrada, ela
modificasse o olhar que tinha de si mesma podendo traduzir-se em
mudanças em seu tempo presente e fu “ f q o
indivíduo é programado por sua história não a muda. Ao contrário,
” G J 4
Podemos descrever como um dos pontos altos do trabalho com
o coletivo dos professores os momentos em que percebíamos o esforço
do grupo em contribuir, questionar, criticar ou relativizar determinados
aspectos das narrativas trazidas. Uma obra de Tardif e Lessard (2013),
inspirada nos estudos de François Dubet (1994), propõe a ideia de que a
experiência subjetiva remete a uma situação social. Esse caráter justifica
a implicação do grupo nos relatos de experiência individual.
Se a experiência de cada docente [...] é bem
própria, ela não deixa de ser também a de uma
coletividade que partilha o mesmo universo de
trabalho, com todos os desafios e suas condições
[...]. As vivências mais íntimas excedem a
intimidade do Eu psicológico, para inscreverem-se
numa cultura profissional partilhada por um
grupo, graças a qual seus membros atribuem
sensivelmente significados análogos a situações
comuns (ibidem. p. 52).
126
Essa dinâmica é identificada metodologicamente por Gaulejac
4 “ â ”
quando, ao compartilharmos nossas histórias de vida, esse outro que me
é significativo, porque vive experiências parecidas, porque sabe do que
falo, porque se reconhece nas minhas histórias, nos meus dilemas e
sofrimentos, compartilha comigo diferentes pontos de vista. Esse outro
que me narra, e que ao fazer isso me possibilita pensar um outro eu que
do lugar de onde eu me encontrava não via.
Larrosa (2002), ao resgatar Heidgger, traz outros elementos
importantes que nos ajudam a entender a importância do outro no nosso
processo de formação.
O sujeito que vive a experiência de si não é um
sujeito que permanece em pé, ereto, erguido e
seguro de si mesmo [...]. Não é um sujeito que se
apodera daquilo que quer, não é um sujeito
definido por seus sucessos ou seus poderes, mas
um sujeito que perde seus poderes precisamente
porque aquilo de que faz experiência dele se
apodera [...]. O sujeito da experiência é também
um sujeito [...] receptivo, aceitante, interpelado,
submetido (LARROSA, 2002, p. 25).
Isso não deve ser traduzido como imobilidade, mas como uma
passividade feita de amadurecimento, equilíbrio, paciência, atenção,
disponibilidade, resignação e aceitação. Podemos transpor esse sujeito a
que se refere Larrosa (2002), para o contexto da formação para a
inclusão. Nesse sentido, a recuperação das histórias de vida favorece ao
professor assumir seus conflitos, suas tensões e contradições, seu
desconhecimento, suas limitações e seu despreparo. Mas, de igual modo,
permite sensibilizar-se e reconhecer no outro sua singularidade,
especialmente porque estamos falando de uma formação para a
diferença.
5.3 HISTÓRIAS DE VIDA COMO EXPERIÊNCIA DE
PROTAGONISMO E EMPODERAMENTO DOCENTE
“ ” poder, não há como escapar dele.
Não existe, relativamente a ele, nenhum exterior absoluto [...]
(FOUCAULT, 1984, p.95).
127
Gaulejac (2014, p. 24) alerta que, se por um lado o indivíduo é
produzido pela história, por outro ele é igualmente seu produtor, um
autor. Ele é portador de historicidade e, como tal, tem capacidade para
intervir em sua própria história, função que o posiciona como sujeito em
um movimento dialético entre o que é e o que se torna.
Embora o autor que embasa metodologicamente o seminário de
onde extraímos os dados desta pesquisa, não se refira às histórias de
vida como fator de empoderamento, mas sim como forma de o sujeito
ter maior controle sobre seu futuro, no percurso de nosso trabalho
empírico percebemos que essa característica emergiu com bastante
intensidade.
Para o encaminhamento dado a este trabalho, nos apropriamos
do conceito de empoderamento descrito pelo sociólogo francês Jacques
Rheaume (2009, p. 169), para quem o termo designa:
[...] um processo permitindo o desenvolvimento
de um poder perdido ou inibido, nos indivíduos e
numa coletividade, no que tange à sua vida e sua
situação de vida: o empoderamento designa assim
uma ‘reapropriação’ de seu poder (grifo no
original).
Ao fazer um relato de vida coletivo e tratar das relações de
empoderamento, o autor destaca ainda quatro dimensões interligadas
que caracterizam esse processo: o desenvolvimento da estima de si; o
reconhecimento e o desenvolvimento de competências; um quadro
relacional de relações igualitárias; e o desenvolvimento de uma
consciência social crítica.
Nas narrativas das professoras, algumas das características
listadas são evidenciadas:
“A forma como o seminário foi ministrado nos conduziu ao encontro com nós mesmos nos tornando fortes para enfrentar
os desafios” (Flávia).
“As reflexões propostas me levaram a pensar no real sentido da
vida, quem somos e porque estamos aqui” (Sarah).
128
“Eu tive uma sensação prazerosa de ter vencido muitos obstáculos, de ter percebido que consegui chegar onde eu
sonhava e onde eu almejei chegar” (Beatriz).
“Eu cheguei em casa, conversei com meu esposo, disse que fiquei “me achando”. Eu me dei conta que para a idade que eu
tenho eu sou um pilar na minha casa e aqui na escola também.
Eu só tenho 22 anos e meus pais dependem de mim pra tudo” (Raquel).
Ao pensarmos sobre o significado de tais enunciados, nos
reportamos a Gaulejac (2009b), para quem o momento do relato
biográfico está associado ou tem efeitos aproximados ao da psicoterapia.
Esta experiência, para o autor, “ à q
tem um sentido preestabelecido, ao mesmo tempo em que instiga a lhe
trazer um sentido” (GAULEJAC, 2009b, p.71) é, nesse sentido, o último
relato apresentado nos é especialmente significativo.
Reportando-nos à participação da professora Raquel durante o
seminário, percebemos a importância que o trabalho de recuperação de
sua trajetória sócio-histórica teve no processo de reconstrução de sua
identidade.
Na primeira atividade que propomos, tratando justamente da
elaboração de sua identidade, logo em seus primeiros relatos, Raquel se
emocionou ao referir-se ao seu comportamento no contexto familiar,
chegando a interromper sua fala. Conforme sua própria narrativa, a
professora “
f ” ões financeiras pelas quais
passou.
Nas atividades seguintes, ao partilhar sua história, narrar e
ouvir, a professora passou a analisar como foi produzida pelas múltiplas
contingências que atravessaram sua história e seu grupo de pertença, se
compreende e confere novo sentido ao que é e ao que lhe acontece, cria
para si uma realidade diferente, ou seja, se reconfigura e se tece
novamente pelas palavras. “Se as palavras não têm o poder de criar o
objeto ao qual elas se referem, elas têm o poder de dar existência ao sujeito que as pronuncia” , 2009, p. 202).
As palavras empoderam, permitem à professora operar uma
reescrita de vida ao compreender que é ainda muito jovem para ter
atitudes diferentes das que tem e, ainda, que não é apenas a “pessoa má”
129
que imaginava ser. Mas que além desse aspecto até então dominante na
concepção sobre si, em sua identidade, passa a reconhecer outros
aspectos, desta vez positivos e igualmente relevantes, que a tornam de
alguma forma especial. Esse dar-se conta de si permite à professora “
da contingência, mudar de lugar, revolver o peso dos determinismos e
inventar para si um “ ” (GAULEJAC, 2009b,
p. 67).
Uma outra dimensão central a se considerar acerca do processo
de empoderamento destacada por Rheaume (2009, p.172) é o trabalho
de memória resgatado a partir de relatos biográficos.
Nesse sentido, o autor entende que a reconstrução identitária
possibilitada por meio do exercício de recuperação do vivido é que
mobiliza a ação e possibilita ao indivíduo um melhor domínio de seus
projetos de vida. Isso faz pensar que o trabalho com a memória
possibilita ao sujeito uma maior consciência de si e de sua realidade:
quanto maior o nível de consciência, maior a sua condição de atuar
sobre ela.
Nessa direção, partilhamos com Larrosa (2011, p.68) da ideia
q “ recordação não é apenas a presença do passado [...], a
recordação implica imaginação e composição”. Ao realizar a análise
etimológica da palavra narrar, o autor revela a relação entre as histórias
de vida e a mobilização de ações:
Narrar significa algo assim como arrastar para a
frente, e deriva também de gnarus, que é, ao
“ q b ” “ q ” [ ]
Assim, o que narra é o que leva para frente,
apresentando de novo o que viu e do qual
conserva um rastro em sua memória (idem).
Pensamos que, se damos neste trabalho especial importância à
experiência como essência do processo formativo, e sendo a experiência
aquilo que nos toca, é a experiência também aquilo que nos move, que
nos possibilita avançar, buscar novos e diferentes caminhos,
protagonizar nossa ação docente. O processo de narrar, pela peculiar
propriedade de autoconhecimento que gera, possibilita ao sujeito o
resgate e a reelaboração das experiências, ao mesmo tempo em que
projeta novos possíveis. A narrativa evidencia para o sujeito sua
capacidade de se autodeterminar.
130
Tão importante quanto os pontos levantados até aqui,
considerando a experiência de empoderamento e protagonismo
docentes, é o sentimento de autovalorização vivenciado pelas
professoras ao realizarem seus relatos de vida. Na escuta acolhedora e
na relação de cumplicidade do grupo, elas se veem como pessoas e
profissionais que têm valor. A professora Flávia, diante dos comentários
tecidos pelas demais acerca do seu trabalho com os alunos com
deficiência, externa esse sentimento:
“Olha, faz anos que eu trabalho e eu nunca fui tão valorizada como estou sendo agora, nesta escola”.
Guy de Villers (2009, p. 213), em seu artigo Identidade, sujeito
e formação ajuda a pensar sobre os efeitos que a fala do outro opera
sobre a constituição do eu. Para ele, a noção de identidade não se
constitui ontologicamente, mas é antes uma construção representacional
e discursiva operada pelos sujeitos sobre eles próprios ou sobre os
outros com quem se acham em relação, o que significa que essa
representação só é acessível num espaço comunicacional.
Nesse passo, o processo de identificação do sujeito consigo
mesmo se dá quando suas particularidades encontram aprovação e apoio
do outro. Este entendimento encontra ressonância em Larrosa (2011, p.
70) ao defender a ideia q “
não é algo que se produza em um solilóquio, em um diálogo íntimo do
”
Pensemos sobre o poder que o processo de validação das
demais participantes do grupo exerce na constituição da subjetividade da
professora Flávia, no sentido que sua identidade profissional assume, na
sua capacidade de empoderar-se e, especialmente, de desenvolver a
estima de si e novas competências na atuação docente. E ainda, sobre os
elos de consideração e confiança que emergem dessa interação e as
possíveis consequências para o trabalho docente, especialmente se
considerarmos o individualismo e a competitividade presentes nas
relações profissionais.
Consideremos também para esta análise o déficit de reconhecimento que o trabalho docente vem sofrendo, especialmente do
professor que atua com os alunos da Educação Especial e que, mais do
que a falta de reconhecimento do outro, sofre de uma crise de
reconhecimento próprio. Isso porque as expectativas de mudanças
131
projetadas sobre o modo desses professores serem e estarem na
profissão são inúmeras, ao mesmo tempo em que há um hiato entre a
“ õ q b déficit de
b õ ” RR 8 4 q fragilidade
identitária, baixa auto-estima e sentimento de perda de poder e de
autoridade.
Correia (idem. p.45), ao tratar da crise da escola e dos
dispositivos de compensação identitária dos professores, associa tal
situação a uma de crise de recursos narrativos que permitem articular as
diferentes esferas das vivências profissionais: esfera pessoal,
profissional e institucional. Esta é uma crise que desloca o humano do
professor para um lugar marginal, como se o pessoal e o profissional
não convivessem dialeticamente. O trabalho com histórias de vida, em
direção oposta, se presta para desenvolver uma consciência individual e
coletiva, que se manifesta no fortalecimento da categoria docente.
Contribuindo para o quadro de degradação da falta de
reconhecimento docente, Tardif (2014, p. 243) chama atenção para o
fato de que f “ f q
último lugar na longa sequência dos mecanismos de decisão e das
q ” q q
alterado, “quando lhes for dado tempo e espaço para que possam agir
como atores autônomos de suas próprias práticas e como sujeitos
competentes de sua própria profissão” (idem).
Possibilitar tempo e espaço para que as professoras pudessem
refletir sobre seu trabalho e construir sua autonomia docente foi um dos
objetivos que tivemos em mente durante todo o percurso deste trabalho
e da realização do Seminário de Implicação e Pesquisa. Ao se referirem
à experiência vivenciada, as docentes apontam para esse sentimento de
recuperação de sua centralidade no processo educativo.
“Eu já participei de muitos seminários, eventos, congressos, mas neste aconteceu uma coisa pra mim inusitada, porque eu
não esperava me encontrar, voltar nas minhas origens, na
minha herança genética e social e me compreender! Estou feliz e me emociono porque fui tocada no meu ser. Eu não imaginei
quando fui convidada pra participar desse momento que iam trabalhar com a minha história, isso veio a acrescentar muito
pra mim, pessoa e claro, profissionalmente” (Catarina).
132
“O que este evento trouxe para mim é que eu percebi que o elemento fundamental do processo é o ser, é o eu, o humano
que está ali presente, porque a partir de uma folha em branco
que vocês nos forneceram a gente construiu toda a nossa história. E a partir desse momento a gente se percebeu como
ser construtor dessa história. Eu percebi a diferença entre
aquele seminário que a gente apenas assiste e esse que vai ser construído em conjunto passo a passo, isso ficou marcado pra
mim. [...] A sensação que eu tenho é que eu vim preparada pra
educar (Sarah).
Os relatos evidenciam que a capacidade de se perceber como
personagem central da história é algo que se produz nesses constantes
exercícios de narração e autonarração.
Essas experiências permitem perceber que os professores não
“ b ” G
197), mas estão imersos em contextos a partir dos quais compartilham
uma cultura, conhecimentos, valores e atitudes, com base nas
representações constituídas nesse processo que é, ao mesmo tempo,
social, subjetivo e intersubjetivo (idem). O relato da assistente técnico-
pedagógica, Beatriz é ilustrativo do pensamento objetivador e
tecnificador com o qual muitas vezes operamos nossas relações.
“A gente olha para a pessoa e parece que ela chegou pronta na escola, a gente desconhece toda essa trajetória, os percalços,
as dificuldades que passou”.
Não chegamos prontos e não estamos prontos, nunca!
Constituímo-nos diária e continuamente. Não somos seres lógicos,
somos subjetivos, seres de experiências e de sentidos, a um só tempo
individuais e coletivos, produzidos pela história e pela linguagem. E nos
entre-reconhecemos quando nos permitimos olhar o outro menos
apressadamente.
Para Flickinger (2010, p. 15), na contramão da visão objetivista
está a experiência estética. A mais detalhada descrição objetiva de uma
obra de arte, explica o autor, não capta aquele algo inqualificável que
nela nos fascina. O conteúdo do outro “ é q
abandonamos o olhar objetivador e nos entregamos à instigante e
[ ] ” (idem).
133
Este outro que se constitui no jogo da compreensão, portanto, fora de
uma lógica racional, fora também das relações de produção que nos
reificam e nos transformam em coisas. Somos humanos, algo óbvio que
parece precisar ser dito, lembrado.
Este humano que vive um processo de negação de
reconhecimento, como lembra o filósofo francês Alex Lainé (2009, p.
237). Ao tratar do desprezo dos sujeitos - modo característico das
sociedades capitalistas, com a exigência de rendimentos sempre mais
elevados e do humano visto como extensão da máquina - o autor
defende a ideia de que acompanhar relatos de vida constitui forma de
militância e resistência às formas de dominação. Isso se reflete na fala
da professora Maria Aparecida:
“Nessa correria que a gente vive, por causa da carga horária
que nós temos, e que é muito puxada, a gente acaba deixando de lado essas coisas tão boas sobre a nossa história, e agora é
um novo olhar sobre o que aconteceu”.
Na contramão desse processo, é preciso encontrar formas de
gerar uma contracultura, buscar um espaço em que possamos nos
mover, imprimir a nossa marca, fazer a história e percebermo-nos como
construtores dessa história. Trata-se, como atesta Bueno (2002, p.25),
“ f f
”
Isso envolve conceder aos professores, conforme descreve
Tardif (2014, p. 243), o status de sujeitos do conhecimento, de
verdadeiros atores, e não o de simples técnicos ou executores das
reformas da educação concebidas com base numa lógica burocrática top
and down58
, queixa tão presente nos discursos das docentes com as
quais trabalhamos.
Sabemos que existem limites que dificultam o movimento dos
professores dentro das instituições, mas é preciso reconhecer também
que, além de um poder do qual sofremos efeito, também o exercemos,
como vimos em Foucault. Se somos alvo, também somos veículo de
poder (DEACON; PARKER, 2011, p. 101) e como tal, agentes de transformação em nossos coletivos de vida e de trabalho. Esse poder,
58 De cima para baixo
134
que conforme Dreyfus e Rabinow (1995, p.244), ao recuperarem
Foucault, esclarecem, inclui um elemento importante: a liberdade.
O poder só se exerce sobre "sujeitos livres",
enquanto "livres" - entendendo-se por isso sujeitos
individuais ou coletivos que têm diante de si um
campo de possibilidade onde diversas condutas,
diversas reações e diversos modos de
comportamento podem acontecer.
É essa liberdade precisamente, que dá a condição de sermos
protagonistas de nossa ação docente, o que não ocorre sem que antes
tomemos consciência acerca de quem somos, de como nos constituímos.
“Centralmente, libertarmo-nos dos mecanismos hegemônicos da
sujeição exige atenção cuidadosa às nossas atuais posições de sujeito e
às formas pelas quais ”
(RABINOV, 1995, p.107).
Ao introduzirmos este trabalho de dissertação, demos ao grupo
de professores em formação o status de autores, atribuindo a seus
saberes equivalente relevância àqueles trazidos pelos teóricos invocados
ao longo do texto. Isso porque reconhecemos que, ao final das contas, é
sobre os professores que recai a missão de educar.
O destaque conferido às docentes assenta-se também no
entendimento de que o professor:
É um sujeito que assume sua prática a partir dos
significados que ele mesmo lhe confere, um
sujeito que possui conhecimentos e um saber-
fazer provenientes de sua própria atividade e a
partir dos quais ele a estrutura e a orienta
(TARDIF, 2014, p. 230).
Esses significados não são estáticos, são móveis e dinâmicos e
se moldam e configuram a partir da experiência e da reflexão sobre a
experiência, em um processo que é individual porque a história de cada
um é singular, mas é também coletivo, uma vez que nos constituímos
em interação e, ao mesmo tempo em que servimos de espelho,
refletimos o outro.
Recolocar a subjetividade do professor no centro do processo
educativo pressupõe possibilitar-lhe refazer a experiência de si,
compreendendo sua própria legitimidade nesse contexto. Desse modo,
135
dar-se conta de sua importância, de seu valor e de seu poder,
particularmente neste momento histórico em que seu papel ganha
destaque como responsável pelo processo de inclusão escolar, pode ser
promissor de algum tipo de transformação dessa realidade.
Neste trabalho esteve em jogo nosso esforço por mobilizar o
professor para reconhecer-se autor, capacidade com frequência
associada ao aluno. Mas como formar alunos com tal capacidade se os
professores assim não se reconhecem? Chegar a este resultado supõe
que cada docente, individualmente, se envolva no processo de inclusão a
partir do testemunho de suas histórias de vida e experiência, tornando
visíveis e inteligíveis suas contribuições, seu saber-fazer e suas
habilidades.
Nesse sentido, entendemos que o Seminário de Implicação e
Pesquisa pode ser compreendido como um mobilizador das identidades
docentes, na medida em que, possibilitando um espaço de interação, de
discussão, de valorização da experiência e de produção de sentidos
coletivos, provoca deslocamentos e novas leituras acerca do trabalho dos
ou das docentes e do processo de inclusão escolar que desenvolvem.
136
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O que importa na vida não é o fim nem o começo,
mas a travessia que se faz ao longo dela.
(Guimarães Rosa)
O objetivo deste trabalho foi ampliar a compreensão dos
elementos envolvidos nos processos de inclusão escolar articulando as
dimensões macrossociais e microssociais, a que correspondem, de um
lado, os aspectos históricos, sociais, culturais e políticos e, de outro, as
trajetórias sócio-históricas das docentes. Buscamos uma articulação do
individual com o social com vistas, a apreender a complexidade das
relações entre as docentes e os alunos da Educação Especial, a
esclarecer o modo como elaboram representações de si mesmas e
atribuem significados às suas experiências.
Procuramos manter uma abordagem clínico-sociológica na
medida em que se tratava de estudar particularmente as interações entre
os processos psicológicos e os processos sociais, entre o indivíduo que
é, ao mesmo tempo, produto e autor da história, que está inscrito entre a
reprodução e a mudança, que é contingenciado e que transforma.
Consideramos importante destacar a relação que estabelecemos
entre a abordagem socioclínica e o referencial teórico adotado,
especialmente a partir Gaulejac e Foucault. Para Gaulejac, o indivíduo é
um autor da história e, embora considere a existência de determinismos
históricos, compreende que as rupturas podem ocorrer a todo momento.
Nessa mesma direção, para Foucault, o poder deve ser entendido a partir
de uma relação flutuante que não pertence a ninguém e, ao mesmo
tempo, pertence a todos. Estamos sempre dentro do poder, sendo este
compreendido como uma força capaz de mobilizar a ação. Desse modo,
a possibilidade de rupturas e transformações está presente e é fortemente
identificada na obra dos autores.
De forma mais específica, este trabalho tinha uma dupla
intenção inicial. Queríamos, por um lado, demarcar os limites do
discurso do despreparo proferido pelas professoras, ampliando o
entendimento acerca do processo de inclusão a partir de dois pontos: 1) da dificuldade ou até impossibilidade de se compreender a inclusão
escolar quando desvinculada dos processos sociais e políticos mais
amplos, e 2) das práticas de normalização, disciplinamento e
enquadramento que, com frequência, incidem sobre a pessoa com
deficiência. Por outro lado, pretendíamos analisar em que medida a
137
recuperação das trajetórias sócio-históricas das professoras permitiriam
minimizar os determinismos e as contingências que atuam sobre o
processo de inclusão e seus sujeitos.
Para isso, apresentamos a docência como resultante da
experiência, caracterizada por dimensões existenciais subjetivas
relacionadas às histórias de vida, às experiências escolares anteriores e a
um sistema de valores, dentre outras dimensões a partir das quais os
professores constroem seus saberes, sua identidade profissional e
desenvolvem suas práticas.
A escola como organização é o espaço onde as pessoas se
situam em um coletivo de trabalho e integram uma categoria
profissional. Com certa frequência é sobre esse coletivo que incidem as
preocupações, os interesses e os investimentos dos gestores e das
políticas de formação.
A experiência considerada pela sociedade e também pela escola
como central, é aquela do profissional visto como sujeito do saber, do
fazer, do poder, da opinião, da informação, enfim, o sujeito do trabalho.
Não desmerecendo tal formação, uma vez que boa parte do nosso tempo
profissional foi investido assessorando professoras que atuam junto a
alunos com deficiência, não é a ela que nos referimos aqui. O que essa
experiência nos ensinou é que, circunscritas aos saberes técnicos e
teóricos, as práticas docentes no contexto da inclusão têm se mostrado
pouco eficazes. Nesses limites presenciam-se situações em que a
inclusão se manifesta pela presença física, pelo sentimento de desajuste
e pelo sofrimento psíquico por parte dos alunos e de suas famílias.
Agravando o quadro apresentado, há uma crença na
possibilidade universalizante da educação que, se por um lado permitiu
o acesso de pessoas com deficiências a um bem comum inquestionável,
a escola, de outro, expôs estas pessoas a mecanismos de disciplinamento
e normalização cada vez mais elaborados. Absorvidas pelas
metanarrativas inclusivas que atribuem à escola a gestão da chamada
“ ” b “ -
” FR in CORREIA, 2004, p. 222),
restam às professoras duas alternativas: ou tomam exclusivamente para
si a responsabilidade de incluir ou negam a diferença recorrendo, com frequência, a estratégias de controle e disciplinamento para contê-la e
à q b “ ”
processo.
138
Desse modo, utilizando-se de mecanismos sutis de
normalização, subvertem-se os objetivos pelos quais se estrutura e toma
corpo o discurso da inclusão, gerando-se novas modalidades de
“b ” f
depoimento da professora Raquel “Eu acho que nossa função como
segunda professora é muito importante, porque quando a gente não está
na escola esses alunos se transformam, eles não cumprem regras”. é é “ ” à
qual o aluno com deficiência vem sendo submetido. Ainda que isso
signifique em muitos casos a alternativa possível para se trabalhar, se
organizar e seguir adiante, tal situação é reveladora. Em grande parte
isso ocorre porque a diferença é tomada como o oposto da igualdade e
não como uma “
” G Não acatar regras, não responder
q q é “ ”
atribuídos às pessoas com deficiência, justificam-se porque a diferença
no sentido mais autêntico e justo do termo, com frequência não é
respeitada. Assim também, porque as professoras têm dificuldade de
engendrar novos espaços-tempos de convivência com a diferença, em
toda sua dimensão ingovernável, como lembra Roos (2011).
Somando-se a isso, as inúmeras demandas profissionais,
exigências e prescrições, que pesam enormemente sobre as condições
reais do trabalho docente, muitas vezes as professoras se resignam,
assumindo uma postura relativamente periférica dentro da escola. Como
f f f “[...] a gente não tem a quem recorrer, e você não pode se defender, você não tem direito à
defesa”. Esse sofrimento experimentado na solidão da sala de aula, com
pouco reconhecimento dentro e fora da escola fragiliza a identidade
docente.
Essa vulnerabilidade profissional atinge, de igual modo, os dois
grupos de professoras que pesquisamos. Entre as professoras do grupo
formado pelas regentes, em que a resistência e a impermeabilidade à
diferença mostrou-se maior, essa fragilidade decorre de um sentimento
de incompetência e incapacidade face à dissonância entre o ideal da
profissão e o seu exercício. Já, entre o grupo constituído pelas segundas professoras e pela professora do SAEDE, no qual se percebe um
envolvimento maior com os alunos com deficiência há, em
contrapartida, um sentimento de frustração que resulta dos esforços
empreendidos e, muitas vezes, não correspondidos. Nesse grupo
139
especificamente, a fragilidade da imagem docente contrasta com aquela
cristalizada pelo imaginário social que representa o professor da
Educação Especial como aquele dotado de um dom especial,
“ é ”
Confrontadas com as crescentes dificuldades para gerir o
processo de ensino e aprendizagem, as professoras deixam transparecer
as brechas e os descaminhos da inclusão: a falta de tempo para discutir
questões relativas às adaptações curriculares e à avaliação nas séries
finais do ensino fundamental; a falta e/ou pouco compromisso dos
professores regentes para com os alunos da Educação Especial (com
frequência agem como se o aluno não fosse de sua responsabilidade); a
sobrecarga de trabalho e a dificuldade para gerir o processo de ensino,
potencializada com a presença desses alunos em sala; a dificuldade em
se diagnosticar e expedir laudos comprobatórios da deficiência; o
elevado número de alunos com deficiência em sala; a supervalorização
dos conteúdos acadêmicos por parte dos professores regentes, em
detrimento do desenvolvimento de competências básicas, gerando um
f “ ” “
f ” RR 8 ;
grande contingente de professores regentes acerca das especificidades da
deficiência e das questões relativas à cognição destas pessoas, o que se
manifesta na fragilidade dos vínculos, em posturas inadequadas,
concepções e objetivos distintos para cada grupo de professores
(professor regente e segundo professor) e consequente desarticulação do
trabalho pedagógico.
Buscando trazer elementos para contribuir com o referido
cenário, continuamos nossa reflexão retomando a questão central desta
dissertação: de que maneira as trajetórias sócio-históricas de professoras
envolvidas com a inclusão de pessoas com deficiência permitem ampliar
a compreensão desse processo e minimizar o imaginário determinista
q f z “ ”!?
No contexto do seminário desenvolvido junto às docentes,
emergiram situações que indicaram um perfil de docência capaz de
acolher a diferença, promover algumas rupturas e dar ao professor o
status de autor e protagonista de sua ação docente. Essa é uma das ideias que buscamos sustentar neste trabalho, a
de que, embora não possamos operar transformações radicais, somos
dotados de poder e liberdade, o que nos permite construir pequenas
contra-hegemonias locais em nossos coletivos de trabalho.
140
Compartilhamos assim, com Larrosa (2009) a ideia de que outra
educação e outra pedagogia em geral não é possível, o que não significa
que as mudanças não ocorram em múltiplos lugares e de variadas
formas. Referindo- à b f “
entanto ela será sempre uma aposta individual e coletiva de seres
” ibidem. p.214).
Os depoimentos das professoras pesquisadas revelaram que um
dos elementos que possibilita ampliar o entendimento da inclusão e, ao
mesmo tempo situar as docentes como protagonistas, está vinculado a
um processo reflexivo que se instaura à medida que partilham as suas
histórias de vida que, por sua vez, sustentam sua experiência
pedagógica. Desse modo, por meio da recuperação de suas trajetórias, as
professoras foram levadas a um nível maior de consciência, o que
possibilitou se perceberem como produto da história e, de outro,
refletirem sobre a maneira como essa história nelas atua, ou seja, de se
reprogramarem e se reposicionarem diante de suas práticas.
Consideramos importante também os momentos de interação e
implicação nos quais as professoras perceberam que, embora cada uma
tivesse experiências de vida únicas, singulares, era possível sintonizar,
encontrar ressonância na experiência das demais, uma vez que
partilhavam o mesmo universo de trabalho, constituído de desafios e
contradições semelhantes e, nesse contexto, as histórias, dificuldades,
lutas e aspirações de cada uma, correspondiam, em alguma medida, à de
todas. A troca de experiências por meio das narrativas orais durante o
seminário, o entrecruzamento de vivências e histórias, os depoimentos
como os quais manifestaram reconhecimento mútuo e valorizaram a
vivência das demais, promoveram a recuperação da autoestima das
docentes, uma maior consciência de sua interdependência, bem como,
maior autonomia, fortalecimento e empoderamento do grupo enquanto
categoria de docentes envolvidas com a inclusão.
As narrativas que emergiram durante o Seminário de
Implicação e Pesquisa revelaram que as professoras detém saberes
específicos provenientes de suas experiências de vida e dos sentidos a
estas atribuídos, que mobilizam em suas práticas para enfrentar
situações e desafios cotidianos. Esse preparo, de certa forma insabido, via de regra é desreconhecido como conhecimento útil para o trabalho
docente, porém, ele permite às professoras se autorrepresentarem e
sairem da condição de meras receptoras de conhecimentos produzidos
por outrem. Ao partilharem esses saberes, seus conhecimentos formais
141
ganharam potência com as vivências pessoais, incorporando-se ao
repertório de saberes produzido por cada uma delas, o que conferiu às
docentes, conforme seus próprios depoimentos, o status de sujeitos do
conhecimento.
Ao descreverem suas trajetórias, refletirem sobre seus contextos
de trabalho e explicitarem publicamente suas dificuldades,
preocupações, inquietações e acertos, as docentes sentiram-se
encorajadas também a inovar, promover deslocamentos e a buscar
diferentes alternativas, recursos, estratégias, descobrindo o valor da
solidariedade, até então não descoberta. Consideramos que tal
ocorrência caracteriza uma importante dimensão criativa que pode ser
também representativa do empoderamento docente, que precisa desse
compartilhamento de experiências, para o qual há escasso espaço na
dinâmica das escolas.
Um outro aspecto verificado foi a possibilidade de as docentes
tomarem distância em relação aos discursos inclusivos, aos programas
oficiais, às prescrições, ao currículo, à sua formação universitária, aos
saberes cristalizados e às ideologias que perpassam suas experiências,
indicando uma dimensão crítica imprescindível ao trabalho docente.
Dimensão esta que surgiu a partir da oportunidade de alçarem suas
vozes, revisitando suas histórias de vida e relacionando episódios de
diversos momentos da biografia, que foram conectados a seus
sentimentos com relação ao trabalho que hoje realizam junto a alunos
com deficiência.
Consideramos importante na interação entre as professoras a
confrontação com o outro, verificada nos momentos em que narravam a
si próprias; o interesse despertado, a identificação, os sentimentos de
solidariedade evocados. Esses momentos possibilitaram o
desprendimento de si, o afloramento da sensibilidade e o
desenvolvimento da empatia. Pensamos que isso pode traduzir-se em
maior receptividade, acolhimento, disponibilidade e flexibilidade de
suas práticas junto aos alunos com deficiência, bem como incidir na
recusa às práticas de massificação e enquadramento frequentemente
constatadas, que podem ser substituídas pelo respeito à individualidade
e subjetividade de cada aluno. O caráter dialógico, característico do seminário é outro ponto
que merece relevo. Nos constituímos humanos fundamentalmente pela
interação e pelo diálogo e, a palavra não se define, nestes termos, pelo
seu caráter comunicacional, mas por múltiplas possibilidades. Assim
142
considerando, por meio do diálogo ocorreram situações significativas
em que as docentes refletiram, estabeleceram novas relações entre fatos
do passado e do presente, tomaram consciência sobre suas escolhas e
ações, deram sentido a frustrações, se reconheceram, se organizaram,
aprenderam e se posicionaram a partir da própria narrativa e da narrativa
do outro. Não foi um curso formal, mas um potenciar sua capacidade, ao
revisitar e recuperar seus itinerários, renovar-lhes os significados, o que
teve efeitos importantes na autoestima, de muitas abalada.
Tais manifestações se apresentaram igualmente, nos dois
grupos. No entanto, constatamos algumas especificidades que
emergiram durante o percurso da investigação.
Entre as segundas professoras e professora do SAEDE,
verificamos uma tendência por valorizar as relações afetivas que se
estruturam em torno de referenciais como o respeito, a solidariedade, o
afeto, a cumplicidade, o companheirismo em detrimento da apropriação
dos conhecimentos teóricos que envolvem suas práticas.
Nesse sentido, percebeu-se a existência de um saber-fazer
oriundo de suas experiências de vida que carece, no entanto, de maior
vinculação e confrontação com os conhecimentos acadêmicos
adquiridos na formação, saberes formais produzidos por outros autores.
Há entre esses professores, uma disposição maior do que nos
professores regentes, no que concerne aos aspectos criativos e à
mobilização de estratégias para se atingir determinados fins. Pode-se
constar uma posição de significativa intencionalidade à medida que elas
ressignificavam e transformavam as condições de trabalho para melhor
se adaptar, conforme narraram.
No caso dos professores regentes, em se tratando dos
conhecimentos dos quais se apropriam em sua prática no contexto da
inclusão, ocorre um processo inverso: há uma supervalorização dos
conteúdos de ensino e dos conhecimentos teóricos e uma minimização,
que podemos considerar como prejuízo dos aspectos associados à
capacidade de autoria docente. Neste caso, os aspectos que envolvem
mobilização de estratégias com vistas a facilitar o processo ensino-
aprendizagem são menos evidenciados.
Outro aspecto observado é que, por serem mais diretamente afetadas pelas demandas da inclusão, considerando que a elas cabe, ao
menos teoricamente, gerir a sa “ ”
com deficiência, entre este grupo de professoras aflora maior
consciência crítica em relação às determinações oficiais para inclusão, o
143
que não é observado no grupo constituído pelas segundas professoras,
que tomam para si o desafio de incluir. Percebe-se também no grupo das
professoras regentes uma atitude mais passiva, um menor envolvimento
em relação aos alunos com deficiência.
Todas essas dimensões emergiram de nosso trabalho de campo
e nos parecem particularmente esclarecedoras para entendermos este
período histórico que vivemos, no qual, conforme destacamos ao longo
da dissertação, há uma fragilização dos pressupostos de ação educativa
em função da responsabilização da escola pela inclusão de pessoas em
situação de desvantagem social.
Neste trabalho procuramos manter um raciocínio que buscou
situar os destinos individuais como resultantes de uma lógica sócio-
histórica e de uma lógica de historicidade, enfatizando os aspectos
subjetivos e identitários que muitas vezes são apagados do cenário
quando analisamos os fenônemos educativos. Tal ênfase representa uma
perspectiva de transformação da escola no sentido da centralidade e da
valorização da ação docente na comunidade escolar. Partilhamos,
portanto, com Gauleja 4 8 q “
apenas de ocupar os lugares disponíveis, mas também de contribuir para
produzi- ”
Desse modo, entendemos que evocar a experiência tem a
potência de transformar-se em uma arma de resistência, de criação e
enfrentamento dos desafios diante dos quais muitas vezes os professores
se consideram, e são considerados, pouco capazes, o que conduz a
passividade e imobilidade.
Recuperar as histórias de vida e valorizar a subjetividade
docente restitui a noção de que é possível mobilizar todos os recursos
disponíveis ao sujeito em prol do que quer e acha que deve fazer. Estão
postos nesse movimento a força do desejo e a ética, para além da postura
passiva de seguir diretrizes e recomendações abstratas que não foram
construídas levando em conta o ator social que é o professor, o único
que estará na linha de frente, na sala de aula regular inclusiva.
Nessas condições os docentes se empoderam e conquistam seu
protagonismo, o qual pode ser definido como um contrapoder que
demarca caminhos possíveis para quem parece ter pouco ou nenhum poder sobre as políticas educacionais.
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APÊNDICE
APÊNDICE A: CATEGORIAS OU TEMAS DE ANÁLISE
Categorias (temas) Elementos de Análise
Políticas de inclusão e o dia a
dia da sala de aula
As metanarrativas e a centralidade da
inclusão na dimensão pedagógica
A carga horária de trabalho docente e a
dificuldade para exercer a bidocência59
A defasagem de recursos
A avaliação do aluno com deficiência
intelectual X avaliação externa
A inclusão pela via da
normalização
Quem é o aluno com deficiência intelectual?
A diferença como variação da média e da
normalidade
A corrigibilidade, a vigilância e o
enquadramento como pressupostos da
inclusão
“
”
Histórias de vida, saberes docentes e
escolhas profissionais
Histórias de vida como prática reflexiva e
processo autoformativo
Histórias de vida como experiência de
protagonismo e empoderamento docente
Fonte: produção da própria autora (2016)
59 Caracteriza-se pelo trabalho colaborativo entre o professor regente da turma e
um professor de apoio da educação especial [...] trabalham juntos na classe
comum, dividindo a responsabilidade de planejar, avaliar e organizar as práticas
pedagógicas para atender às demandas colocadas pela inclusão de alunos com
necessidades educacionais especiais (GLAT & PLESTSCH, 2006, p. 24).