einstein negerplastik concinnitas [1]

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  • 163Negerplastik Carl Einstein

    Negerplastik1

    Carl Einstein2

    Analisando artefatos provenientes da frica como obras de arte (escul-

    turas, mscaras, tatuagem), os relacionando s tradies socioculturais

    das quais provm e ao devir da arte em sentido universal, so discuti-

    das questes referentes percepo e criao artstica, forma e espao,

    corpo e sociedade, bem como histria, crtica e teoria da arte.

    Arte da frica, escultura, arte moderna.

    Observaes sobre o mtodo

    No h, talvez, nenhuma outra arte que o europeu encare com tanta

    desconfiana quanto a arte africana. Seu primeiro movimento negar a prpria realidade

    de arte e exprimir a distncia que separa essas criaes do estado de esprito europeu

    por desprezo tal que chega a produzir terminologia depreciativa. Essa distncia e os

    preconceitos decorrentes tornam difcil e mesmo impossvel qualquer juzo esttico,

    pois tal juzo supe, em primeiro lugar, certa familiaridade. O negro, entretanto, sempre

    foi considerado ser inferior que podia ser discriminado, e tudo por ele proposto era ime-

    diatamente condenado como insuficiente. Para enquadr-lo recorre-se a hipteses evolu-

    cionistas bem vagas. Algumas delas se serviram do falso conceito de primitivismo, outras

    adornaram esse objeto indefeso com frases falsas e persuasivas, falavam de povos vindos

    do final dos tempos, alm de tantas outras coisas. Esperava-se colher por intermdio do

    negro um testemunho das origens, de um estado que jamais havia evoludo. A maior parte

    das opinies expostas sobre os africanos repousa sobre tais preconceitos construdos para

    justificar uma teoria cmoda. Em seus juzos sobre os negros o europeu reivindica um

    postulado, o de uma superioridade absoluta, de fato exagerada.

    Finalmente, nossa ausncia de considerao pelo negro corresponde apenas ausncia de

    conhecimento a seu respeito, o que s serve para oprimi-lo injustamente.

    Poderamos tirar a seguinte concluso das fotos apresentadas nesta obra:3 o negro no

    um ser no evoludo; uma cultura africana importante desapareceu; o negro atual corres-

    ponde a um possvel tipo antigo como, talvez, o fellah para o egpcio antigo.

    Certos problemas que se colocam para a arte moderna provocaram abordagem mais escrupulo-

    sa da arte dos povos africanos. Como sempre, a tambm, um processo artstico atual criou sua

    histria: em seu centro elevou-se a arte africana. O que antes parecia desprovido de sentido

    encontrou sua significao nos mais recentes esforos dos artistas plsticos. Descobriu-se que,

    raramente, salvo na arte negra, haviam sido postos com tanta clareza problemas precisos de

    Traduo Ins de Arajo.Reviso Roberto Conduru.Consultoria Leila Danziger.

    1 Ver nota 1 do texto de Roberto Conduru, Uma crtica sem plumas A propsito de Negerplastik de Carl Einstein, na pgina 155 desta edio de Concinnitas.

    2 Ver o texto aqui referido de Roberto Conduru, nas pginas 155 a 160.

    3 Trata-se das 119 reprodues de esttuas e mscaras contidas na primeira edio de 1915 (Verlag der Weissen Bcher, Leipzig). A ree-dio de 1920 (Kurt Wolff Verlag, Mnchen) conta apenas com 116 reprodues. Tais obje-tos so de origens diversas: frica, e, em me-nor medida, Madagascar, Oceania. Entretanto, no seu texto, Carl Einstein jamais se refere de modo preciso a essas obras de arte. (N.T.)

  • 164 concinnitas ano 9, volume 1, nmero 12, julho 2008

    espao e formulada uma maneira prpria de criao artstica. Resultado: o juzo at ento atri-

    budo ao negro e a sua arte caracterizou muito mais quem emitia tal juzo do que seu objeto.

    A esse novo tipo de relao respondeu sem demora uma nova paixo: colecionou-se a arte

    negra como arte: com paixo, ou seja, a partir de uma atividade perfeitamente justificvel,

    constituiu-se, recorrendo a antigos materiais, um objeto provido de nova significao.

    Esta breve descrio da arte africana no poder subtrair-se das experincias feitas pela

    arte contempornea, at porque o que assume importncia histrica sempre funo do

    presente imediato. Contudo, desenvolveremos tais relaes mais tarde a fim de tratar um

    tema de cada vez e para no confundir o leitor com comparaes.

    Os conhecimentos que existem sobre a arte africana so, no conjunto, parcos e impreci-

    sos: deixando-se de lado certas obras do Benim, nada est datado; vrios tipos de obras

    foram designados a partir do lugar em que foram encontradas, mas no acredito que isso

    seja de alguma utilidade. Na frica, as tribos migraram e se atacaram; alm disso, supe-

    se que ali, como em outros lugares, as tribos combateram por fetiches e que o vencedor

    se apropriou dos deuses do vencido para assegurar-se de sua fora e proteo. Estilos

    completamente diferentes so provenientes muitas vezes de uma mesma regio; logo,

    h vrias explicaes plausveis, sem que seja possvel decidir qual a melhor; neste caso

    supe-se que se trate de arte antiga ou recente, at de dois estilos que coexistiram ou,

    ento, que outra forma de arte tenha sido importada. Em nenhum caso, nem os conhe-

    cimentos histricos nem os conhecimentos geogrficos autorizam, no momento, oferecer

    a menor preciso sobre tal arte. Poderamos objetar que possvel estabelecer uma su-

    cesso cronolgica analisando o estilo e progredindo do mais simples ao mais complexo.

    Considerar-se-ia assim que no passa de iluso o fato de serem o simples e o original

    eventualmente idnticos; bem agradvel adotar a idia de que o ponto de partida e o

    mtodo do pensamento justificariam tambm a origem e a natureza do evento, embora

    todo comeo (atravs do qual, no entanto, percebo um incio individual e relativo pois

    no h como efetivamente constatar nada alm disso) seja extremamente complexo, j

    que o homem, mesmo em cada objeto, gostaria de exprimir muita coisa, coisa demais.

    Em conseqncia, parece em vo tentar dizer seja l o que for sobre a escultura africana.

    Tanto mais que a maioria exige ainda que se prove que essa escultura verdadeiramente

    arte. Logo, preciso desconfiar de quem continuar fazendo descrio puramente externa

    que jamais chegar a outro resultado seno dizer que um pente um pente, que nunca

    alcanar uma concluso geral, a saber, a qual conjunto pertencem todos esses pentes e

    todas essas bocas carnudas (utilizar a arte para fins antropolgicos ou etnogrficos a

    meu ver procedimento duvidoso, pois a representao artstica no exprime praticamente

    nada dos fatos aos quais se prende um tal conhecimento cientfico).

    Apesar de tudo, partiremos de fatos e no de sucedneos, de algo que se revela mais certo

    do que todo conhecimento possvel de ordem etnogrfica ou outra: as esculturas africanas!

  • 165Negerplastik Carl Einstein

    Excluiremos tudo que for objeto, eventualmente os objetos que procedem de uma relao

    com o ambiente, e analisaremos tais figuras apenas como criaes. Procuraremos ver se das

    caractersticas formais das esculturas resulta uma representao geral da forma anloga

    quela que se tem habitualmente das formas artsticas. Dois imperativos absolutos, entre-

    tanto, um a respeitar, outro a evitar: preciso ater-se viso e progredir no registro de

    suas leis especficas. Sem, em nenhum momento, substituir a viso ou a criao pesquisada

    pela estrutura de suas prprias reflexes: abstenhamo-nos de deduzir teorias evolucionis-

    tas cmodas e de equiparar o processo de pensamento com a criao artstica. preciso

    desfazer-se do preconceito de supor que os processos psquicos podem ser afetados por

    signos contrrios e que a reflexo sobre arte oposta que se refere criao artstica. Essa

    reflexo, muito pelo contrrio, indica um processo geral diferente que ultrapassa justamen-

    te a forma e seu universo para integrar a obra de arte num amplo devir.

    A descrio das esculturas como construes formais, contudo, tem por resultado algo

    muito mais importante do que a descrio dos prprios objetos; a discriminao objetiva

    ultrapassa uma criao dada, desviando-a de seu uso para consider-la no criao, mas

    reveladora de uma prtica fora de seu domnio. A anlise das formas, ao contrrio, reside

    no campo do dado imediato, pois no h mais do que poucas formas comuns a pressupor.

    Essas, no entanto, como objetos particulares, valem mais para a compreenso, j que,

    como formas, exprimem tanto os modos de ver quanto as leis da viso, impondo justa-

    mente um saber que permanece dentro da esfera do dado imediato.

    A possibilidade de fazer uma anlise formal apoiando-se sobre certos elementos especfi-

    cos da criao do espao e da viso, englobando-os, prova implicitamente que as criaes

    dadas so artsticas. Arriscamos talvez a objeo que uma tendncia generalizao e

    uma vontade preestabelecida ditaram de modo secreto tal concluso. falso, pois a forma

    particular investe os elementos vlidos da viso, justamente os representa, j que esses

    elementos no podem ser apresentados seno como forma. O caso particular, ao contrrio,

    nem sequer toca a prpria essncia do conceito; de forma mais exata, eles mantm um

    com o outro relaes de dualidade. precisamente o acordo essencial entre a percepo

    universal e a realizao particular o que produz de fato uma obra de arte. Alm disso,

    pensemos que a criao artstica to arbitrria quanto a tendncia, contudo neces-

    sria, a ligar num circuito de leis as formas particulares da viso, porque nos dois casos

    visamos a um sistema organizado e o alcanamos.

    O pictrico

    A incompreenso habitual do europeu pela arte africana est altura da fora estilstica

    desta ltima: essa arte, entretanto, no representaria um caso notvel da viso plstica?

    Pode-se afirmar que a escultura continental fortemente tecida de sucedneos pictricos.

    Na obra de Hildebrand Problema da forma4 encontramos o equilbrio perfeito entre o

    pictrico e o plstico; uma arte to marcante como a plstica francesa parece, at Rodin,

    4 Adolf von Hildebrand, Das Problem der Form in der bildenden Kunst, Strasburg, 1893. Li-liane Meffre explica que em sua anlise morfo-lgica Carl Einstein se fundamentada em duas noes centrais dessa obra: das Malerische (o pictrico) e das Plastische (o plstico). Referncia em Einstein, Carl La sculpture n-gre, trad. Liliane Maffre, Paris, ed.Harmattan 1998. p.23. (N.T.)

  • 166 concinnitas ano 9, volume 1, nmero 12, julho 2008

    esforar-se justamente em fazer desaparecer a plasticidade. Mesmo a frontalidade, na qual

    se v em geral clarificao estrita e primitiva da forma, deve ser considerada preenso

    pictrica do volume,5 porque a a tridimensionalidade est concentrada em alguns planos

    que reduzem o volume; enfatizam-se, assim, as partes mais prximas do espectador,

    ordenando-as na superfcie, considerando que as partes posteriores so modulaes aces-

    srias da superfcie anterior, que enfraquecida em sua dinmica. Reiteram-se os temas

    dos objetos posicionados frente. Em outros casos, substituiu-se o volume por equiva-

    lente concreto do movimento ou ento se escamoteou, por um movimento da forma,

    desenhada ou modelada, o essencial, a expresso imediata da terceira dimenso. Mesmo

    as experincias de perspectiva prejudicaram a viso plstica. Compreende-se, pois, com

    facilidade que, desde o Renascimento, os limites indispensveis e precisos entre escultura

    livre e o relevo sejam cada vez mais apagados e que a emoo pictrica que nasce em

    torno apenas de um volume material (a massa) invada toda estruturao tridimensional

    da forma. Conseqncia lgica: foram os pintores e no os escultores que levantaram as

    questes decisivas sobre a tridimensionalidade.

    O que explica com clareza que nossa arte, com tais tendncias formais, tenha atravessado

    um perodo de confuso total entre o pictrico e o plstico (o barroco) e que tal proce-

    dimento s tenha terminado com a derrota da escultura, que precisou, para conservar ao

    menos o estado emocional do criador e comunic-lo ao espectador, recorrer a meios in-

    teiramente impressionistas e pictricos. A carga emocional abolia a tridimensionalidade;

    a escritura pessoal a dominava. Essa histria da forma esteve necessariamente ligada a

    um devir psquico. As convenes artsticas passavam por paradoxos: o arranjo consistia

    em ter um criador no pice de sua afetividade diante de um espectador no auge da emo-

    o; a dinmica dos processos individuais dominava; estes ditavam lei e se fixavam com

    particular insistncia. O essencial encontrava-se, portanto, no que precedia ou se seguia,

    reduzindo-se a obra cada vez mais ao papel de transmissor de emoes psicolgicas; o

    que est em movimento no indivduo, o ato de criao e seu objeto, tomou formas fixas.

    Tais esculturas foram antes manifestaes de uma gentica do que de formas objetivadas,

    antes um contato fulgurante entre dois indivduos; na maior parte das vezes, era ao

    carter dramtico do julgamento sobre as obras de arte mais do que a elas mesmas que

    se atribua maior importncia. Isso representou uma necessidade de dissolver qualquer

    cnone significativo da forma e da viso.

    Procurou-se um desenvolvimento cada vez maior da plasticidade, uma exploso e uma mul-

    tiplicao de meios. Contra a ausncia real de plasticidade, a fbula do modelo tateado,

    ornado das plumas do realismo, era impotente; muito pelo contrrio, era ela justamente que

    confirmava a ausncia de uma concepo aprofundada e homognea do espao.

    Tal procedimento destri a distncia em relao aos objetos e s atribui importncia

    funo que eles conservam para o indivduo. Essa espcie de arte significa a acumulao

    potencial do maior efeito funcional possvel.

    5 Liliane Maffre, tradutora da verso francesa de Negerplastik, na qual esta traduo se ba-seou, explica que traduziu por volume, em trs dimenses e tridimensional os termos em alemo Kubisch e das Kubische. Ela observa que esses termos so empregados por Carl Einstein para definir um espao novo em trs dimenses e correspondem a uma nova apreenso do espao. Eles no podem ser traduzidos literalmente pela palavra cbico. Id.,ibid., p. 23. (N.T.)

  • 167Negerplastik Carl Einstein

    Vimos que este fator potencial, o espectador, fez-se virtual e aparente em algumas ten-

    tativas modernas. So raros os estilos surgidos na Europa que dele se descartaram, em

    particular o estilo romano-bizantino: todavia sua origem oriental est demonstrada e

    conhece-se igualmente sua passagem bastante rpida mobilidade (o gtico).

    O espectador foi integrado escultura da qual se tornou, a partir de ento, funo inse-

    parvel (por exemplo, para a escultura fundada sobre a perspectiva); tomando parte ativa

    na reviravolta dos valores, de ordem essencialmente psicolgica da pessoa do criador,

    quando no a contestava em seus julgamentos. A escultura era objeto de dilogo entre

    duas pessoas. O que deveria antes de tudo interessar a um escultor com tal orientao era

    determinar com antecedncia o efeito e o espectador; para antecipar o efeito e o testar,

    ele foi levado a se identificar com o espectador (como o fez a escultura futurista), e as

    esculturas deveriam ser consideradas perfrases do efeito produzido. O fator psicotempo-

    ral dominava completamente a determinao do espao. Para atingir o objetivo (na maior

    parte das vezes, alis, inconscientemente buscado), fabricou-se a identidade do especta-

    dor e do criador, pois s assim seria possvel um efeito ilimitado.

    significativo desse estado de coisas que se considere geralmente o efeito produzido

    sobre o espectador, mesmo que ele tenha fraca intensidade, reviravolta do processo

    criativo. O escultor submetia-se maioria dos processos psquicos e se transformava em

    espectador. No curso de seu trabalho, ele tomava continuamente determinada distncia

    de sua obra, que seria aquela do espectador, e modelava o efeito em conseqncia; ele

    deslocava o centro de gravidade para o dispor dentro da atividade visual do especta-

    dor e modelava por toques, para que s o espectador constitusse a forma verdadeira.

    A construo do espao foi relegada a procedimento secundrio, at estranho a esse

    domnio, ou seja, o da matria; o precedente a toda escultura, o espao em trs dimen-

    ses, foi esquecido.

    H alguns anos, vivemos na Frana uma crise decisiva. Graas a um prodigioso esforo

    da conscincia, percebeu-se o carter contestvel desse procedimento. Alguns pintores

    tiveram suficiente fora para se desviar de um mtier feito mecanicamente; uma vez des-

    ligados dos procedimentos habituais, eles examinaram os elementos da viso do espao

    para encontrar o que bem a poderia engendrar e determinar. Os resultados desse impor-

    tante esforo so bastante conhecidos. Naquele momento descobriu-se a escultura negra

    e reconheceu-se que, em seu isolamento, ela havia cultivado as formas plsticas puras.

    Costuma-se qualificar como abstrao o esforo desses pintores; impossvel, no entanto,

    negar que uma crtica radical de desvios e perfrases seja o nico meio de aproximar-se de

    uma apreenso imediata do espao. Isso, entretanto, essencial e distingue fortemente

    a escultura negra de uma arte que a tomou como referncia e adquiriu conscincia se-

    melhante sua; o que aqui desempenha o papel de abstrao l dado como natureza

    imediata. A escultura negra revela-se do ponto de vista formal como poderoso realismo.

  • 168 concinnitas ano 9, volume 1, nmero 12, julho 2008

    O artista atual no conduz sua ao apenas sobre a forma pura, ele a ressente ainda como

    oposio a sua histria anterior e agrega a seus esforos reaes excessivas; a crtica que

    ele faz necessariamente refora o carter analtico de sua arte.

    Religio e arte africana

    A arte negra antes de tudo determinada pela religio. As obras esculpidas so veneradas

    tal como o foram por todos os povos da Antigidade. O executante realiza sua obra como

    se ela fosse a divindade ou seu guardio, isto , desde o incio ele preserva uma distncia

    da obra que o deus ou seu receptculo. Seu trabalho adorao a distncia, e, desse

    modo, a obra a priori algo independente, mais poderosa do que o executante; ainda mais

    porque ele emprega toda a sua energia em sua obra e a ela (ele, o inferior) se sacrifica. Por

    meio de seu trabalho ele cumpre uma funo religiosa. A obra, como a divindade, livre e

    destacada de tudo; o arteso, como o adorador, encontra-se a uma distncia infinita. Ela

    jamais se mistura ao destino humano e, se o fizesse, seria como soberana e, mais uma vez,

    guardando suas distncias. A transcendncia da obra determinada e pressuposta pela

    religio. A obra criada na adorao, no temor a deus, e provoca efeitos iguais. Arteso

    e adorador so, a priori, psiquicamente idnticos, em sua prpria essncia; o efeito no

    reside na obra de arte, mas em seu carter divino posto como hiptese e incontestado. O

    artista no ter a pretenso de medir-se com deus e de visar produzir um efeito que

    dado com certeza e predeterminado. A obra, como busca de um efeito, perde, em conse-

    qncia, todo sentido, ainda mais porque os dolos so na maior parte das vezes adorados

    na obscuridade.

    A obra, fruto do trabalho do artista, permanece independente, transcendente e des-

    prendida de qualquer ligao. A essa transcendncia corresponde uma viso do espao

    que exclui toda funo do espectador; preciso oferecer e garantir um espao do qual

    se esgotem todos os recursos, um espao total e no fragmentado. O espao fechado e

    autnomo no significa aqui abstrao, mas sensao imediata. Esse fechamento s

    garantido quando o volume estiver plenamente realizado, quando nada mais for possvel

    acrescentar. A atividade do espectador no levada em considerao. (Quando se trata de

    pintura religiosa, esta ltima se limita inteiramente superfcie da imagem para alcanar

    igual objetivo. No se pode aceder a tal pintura nem pelo vis decorativo nem pelo orna-

    mental, que so suas conseqncias secundrias.)

    Eu disse que a tridimensionalidade deve ser expressa perfeitamente e sem restrio, que

    a viso predeterminada pela religio e reforada pelos cnones religiosos. Essa deter-

    minao de olhar produz um estilo que no submetido arbitrariedade do indivduo.

    Muito pelo contrrio, esse estilo fixado por cnones, e apenas as reviravoltas de ordem

    religiosa podem modific-los. O fiel adora, com freqncia, os objetos na obscuridade; ele

    , em suas devoes, completamente absorvido por seu deus e a ele entregue, a tal ponto,

    que no ter quase nenhuma influncia sobre a natureza da obra de arte, na qual ele nem

    mesmo presta ateno. Isso tambm ocorre quando se representa um rei ou um chefe de

  • 169Negerplastik Carl Einstein

    tribo; igualmente na efgie do homem do povo v-se um princpio divino, que se venera;

    aqui ainda ele que determinar a obra. Numa tal arte no h lugar para o modelo indi-

    vidual e o retrato, quando muito como arte profana e acessria, que praticamente no se

    pode afastar da prtica artstica religiosa ou ento que com ela contrasta, por ser domnio

    sem importncia, pouco considerado. A obra erigida como tipo da potncia adorada.

    O que caracteriza as esculturas negras uma forte autonomia das partes; o que tambm

    fixado por regra religiosa. A orientao dessas partes fixada no em funo do espectador,

    mas em funo delas mesmas; elas so ressentidas a partir da massa compacta, e no de um

    recuo, o que as enfraqueceria. assim que elas mesmas e seus limites vem-se reforados.

    Outro fato extraordinrio: a maioria dessas obras no tem base nem acessrios expositivos

    semelhantes. Isso poderia nos surpreender, pois em nosso esprito as esttuas so alta-

    mente decorativas. No entanto, o deus jamais representado de outro modo seno como

    um ser autnomo que no precisa de nenhuma ajuda. Mos piedosas e respeitosas no lhe

    faltam quando ele carregado em procisso por seus fiis.

    Tal arte raramente materializar o aspecto metafsico, j que para ela trata-se de evidente

    precedente. Ela precisa revelar-se inteiramente na perfeio da forma e nela concentrar-se

    com surpreendente intensidade, ou seja, a forma ser elaborada at que seja perfeitamente

    fechada sobre si mesma. Um poderoso realismo da forma vai aparecer, pois s assim entram

    em ao as foras que no chegam forma por vias abstratas ou da reao polmica, mas

    que so imediatamente forma. (O carter metafsico dos pintores atuais continua revelando

    a crtica, anterior, da pintura e entra numa descrio como essncia concreta e formal,

    atravs da qual o carter absoluto da religio e da arte, sua correlao rigorosamente cir-

    cunscrita, apaga-se em destrutiva confuso.) Num realismo formal que no entendemos

    como realismo de imitao a transcendncia existe; porque foi excluda a imitao; quem,

    entretanto, um deus poderia imitar, a quem poderia ele se submeter? Segue-se da um

    realismo lgico da forma transcendente. A obra de arte no ser percebida como criao

    arbitrria e superficial, mas, ao contrrio, como realidade mtica que ultrapassa em fora

    a realidade natural. A obra de arte real graas a sua forma fechada; sendo autnoma e

    superpoderosa, o sentimento de distncia impele a uma arte de prodigiosa intensidade.

    Enquanto a arte europia submetida interpretao pelos sentimentos e at pela forma,

    na medida em que o espectador levado a cumprir uma funo ptica ativa, a obra de

    arte negra, por razes formais e tambm religiosas, s tem uma interpretao possvel.

    Ela nada significa e no um smbolo; ela o deus que conserva sua realidade mtica

    fechada, na qual ele inclui o adorador, transformando-o tambm em ser mtico e abolindo

    sua existncia humana.

    Os aspectos finito e fechado da forma e da religio se correspondem, tanto quanto o

    realismo formal e religioso. A obra de arte europia tornou-se justamente a metfora

    Mscara antropomorfa. Artista pende. Repbli-ca Democrtica do Congo, madeira e fibras. / Cabea de relicrio. Artista fang betsi. Gabo, madeira, 23,2 cm. / Estatueta. Artista kunyi. Repblica Democrtica do Congo, madeira e vidro, 19 cm.

  • 170 concinnitas ano 9, volume 1, nmero 12, julho 2008

    do efeito, que incita o espectador a indolente liberdade. A obra de arte negra religiosa

    categrica e possui essncia penetrante que exclui toda limitao.

    Para ressaltar a presena da obra de arte, preciso excluir toda funo temporal, ou

    seja, impedir-se de girar em torno da obra, de tate-la. O deus no possui devir; o que

    seria contestar a natureza de sua existncia definitiva. Foi preciso encontrar forma de

    representao que se exprimisse imediatamente no material slido, sem o modelado que

    trai a mo mpia, que insulta pessoalmente o deus. A viso do espao que se manifesta

    em tal obra de arte deve absorver completamente o espao em trs dimenses e exprimir

    sua unidade; a perspectiva ou a habitual frontalidade so aqui proscritas; elas seriam

    herticas. A obra de arte deve oferecer a equao geral do espao, pois s quando exclui

    qualquer interpretao temporal fundada sobre as representaes do movimento ela se

    torna intemporal. Ela absorve o tempo, integrando em sua prpria forma o que ns vive-

    mos como movimento.

    Viso do espao em trs dimenses

    Trata-se de um fato: toda anlise abstrata, seja qual for o lugar que ela conceda viso,

    faz prova de independncia e, em virtude de sua estrutura especfica, no exprime todas

    as divergncias do devir artstico.

    Em primeiro lugar, trata-se de examinar qual a natureza formal da viso que est na

    base da escultura africana. Podemos ento descartar inteiramente o correlato metafsico,

    j que mostramos que ele era um elemento constitutivo da obra de arte e j que sabemos

    que precisamente da religio que ela tira sua forma absoluta.

    Assim, cabe-nos a tarefa de esclarecer do ponto de vista formal a viso que se manifesta

    nessa arte. Evitaremos o erro de mutilar a arte negra supondo que ela seja lembrana

    inconsciente de uma forma artstica europia qualquer, j que, por razes formais, a arte

    africana constitui a nossos olhos domnio bem delimitado.

    A escultura negra representa clara fixao da viso plstica pura. Para olhos ingnuos,

    a escultura, cuja tarefa restituir a tridimensionalidade, aparece como algo bvio,

    pois ela trabalha a massa, propriamente definida pelas trs dimenses. De sada

    essa tarefa revela-se difcil, quase insolvel; basta pensar que se deve fornecer, por

    meio da forma, no um espao qualquer, mas um espao em trs dimenses. Quando

    refletimos, somos tomados por emoo indescritvel; essas trs dimenses, que no se

    podem captar de um s lance, ser preciso figurar no por vaga sugesto ptica, mas,

    sobretudo, oferecendo expresso acabada e real. As solues europias que, confron-

    tadas estaturia africana, contam principalmente pelos inmeros expedientes, so

    familiares a nossos olhos, convencem de modo mecnico e por hbito. A frontalidade,

    os pontos de vista mltiplos, o modelado bem retocado e a silhueta escultural so

    seus meios usuais.

  • 171Negerplastik Carl Einstein

    A frontalidade escamoteia quase todo volume aos olhos do espectador e concentra toda

    fora expressiva em apenas um dos lados do trabalho. Ela organiza as partes que esto

    frente do objeto segundo um ponto de fuga e lhes confere certa plasticidade. A perspec-

    tiva naturalista mais simples a escolhida, e o lado mais prximo do espectador, aquele

    que normalmente o primeiro a orient-lo na vida concreta e no domnio psicolgico. Os

    outros aspectos, secundrios, sugerem, por ruptura de ritmo, a sensao que corresponde

    s representaes do movimento na tridimensionalidade. Desses movimentos abruptos,

    essencialmente ligados entre si pelo objeto, nasce uma idia de homogeneidade do espao

    que no se justifica sobre o plano formal.

    O mesmo ocorre para o espectador no que concerne silhueta, que, auxiliada de todas as

    maneiras possveis pelos truques da perspectiva, permite pressentir o volume. Se olhar-

    mos mais de perto, veremos que foi tomada emprestada ao desenho, que nunca um

    elemento plstico.

    Em todos esses casos encontra-se algum procedimento de pintura e desenho; a profundi-

    dade sugerida, mas raramente dada de modo imediato como forma. Tais procedimentos

    repousam sobre o preconceito de que o volume em trs dimenses seria mais ou menos

    garantido pela massa material, que uma emoo interior, ao percorr-la, ou uma indi-

    cao parcial de forma, bastariam para fazer existir o volume como forma. Tais mtodos

    querem, sobretudo, sugerir e significar a plasticidade em vez de tirar suas conseqncias

    lgicas. Desse modo, entretanto, dificilmente ser possvel, j que aqui o volume repre-

    sentado como massa e no diretamente como forma. A massa, todavia, no idntica

    forma, pois a massa, na verdade, no pode ser percebida em seu conjunto; a esses pro-

    cedimentos esto sempre ligados movimentos psicolgicos que decompem a forma em

    gnese e a anulam completamente. o comeo das dificuldades: fixar a terceira dimenso

    num s ato de representao visual e perceb-la como totalidade, de tal forma que ela

    seja apreendida como um s ato de integrao. Mas o que forma no volume?

    Obviamente ela precisa ser apreendida de uma s vez, embora no como sugesto ema-

    nando da matria; o que movimento deve ser fixado no absoluto. Os elementos situados

    nas trs dimenses precisam ser representados de modo simultneo, quer dizer, o espao

    dispersivo tem que estar integrado num s campo visual. A tridimensionalidade no pode

    simplesmente ser nem sugerida, nem expressa pela massa. preciso, ao contrrio, que ela

    seja concentrada numa presena definida, enquanto o que engendra a viso da tridimen-

    sionalidade, e que ressentimos habitualmente e de modo naturalista como movimento,

    seja expresso por forma imvel.

    Cada ponto de interseo das trs dimenses na massa pode ser infinitamente interpreta-

    do o que de sada parece opor dificuldades insolveis a qualquer interpretao unvoca

    e tornar impossvel qualquer esforo de totalizao. Mesmo a continuidade das relaes

    do ponto com a massa torna ainda mais difcil qualquer esperana de soluo precisa,

  • 172 concinnitas ano 9, volume 1, nmero 12, julho 2008

    ainda que tenhamos sido bem-sucedidos em sugerir ao espectador uma impresso homo-

    gnea precisa numa funo que se introduz gradativa e lentamente; nem a ordenao

    rtmica, nem a relao com o desenho, nem a multiplicao do movimento, por mais ricas

    que sejam, no conseguem nos convencer de que o volume a esteja concentrado numa

    forma imediata e completa.

    O negro parece ter encontrado soluo clara e vlida para esse problema. Encontrou, por

    paradoxal que seja, uma dimenso formal.

    A representao do volume como forma s com ela, e no com a massa material, deve

    a escultura trabalhar tem por resultado, de imediato, determinar o que constitui a

    forma; so as partes no visveis simultaneamente; elas devem ser reunidas com as partes

    visveis numa forma total, que o espectador determina num s ato visual, e corresponder

    a uma viso tridimensional estabelecida, a fim de que o volume, para no ser irracional,

    prove ser visvel e ter forma. O naturalismo ptico da arte ocidental no trata da imitao

    da natureza exterior; a natureza, aqui passivamente imitada, dada segundo o ponto de

    vista do espectador. Compreende-se assim o processo gentico, terrivelmente relativo,

    que se agrega maior parte de nossa arte. Esse se conformou ao espectador (frontalidade,

    imagem a distncia), e cada vez mais a criao da forma visual definitiva foi confiada a

    um espectador ativo e cooperativo.

    A forma uma equao como nossa representao; essa equao possui valor esttico se

    compreendida sem relao com elementos estrangeiros e de modo absoluto. Pois a forma

    significa essa identidade perfeita da viso e da realizao particular, as quais, em virtude

    de sua estrutura, coincidem perfeitamente e no possuem o tipo de relao que h entre

    o conceito e o fato particular. A viso engloba certamente vrios casos de realizao. No

    possui, entretanto, um nvel de qualidade na realidade a eles superior. Est claro que a

    arte representa um caso particular de intensidade absoluta e que deve engendrar a qua-

    lidade em toda a sua integridade.

    A misso da escultura formar uma equao que absorva totalmente as sensaes na-

    turalistas do movimento, e tambm a massa, como transpem para a ordem formal suas

    diversidade e sucesso. Esse equivalente deve ser total para que a obra de arte no seja

    mais ressentida como resultante de tendncias humanas opostas, mas antes como algo

    independente, absoluto e fechado.

    As dimenses do espao habitual so trs, embora a terceira, do movimento, seja apenas

    discriminada e no analisada em sua essncia. Dado que a obra de arte oferece um ex-

    trato simples da natureza, a terceira dimenso conhece uma repartio. O movimento

    representado por um continuum que compreende o espao em suas modulaes. Como a

    arte plstica fixa, essa unidade cindida, quer dizer, percebida em duas direes opostas

    e contm, desse modo, duas direes completamente diferentes sem valor no espao in-

  • 173Negerplastik Carl Einstein

    finito do matemtico, por exemplo. A profundidade e a tendncia frontalidade so, na

    escultura, dois modos totalmente distintos de engendrar o espao; elas no so diferentes

    sobre o plano linear, mas significam, sobretudo, diferenas entre formas fundamentais,

    quando no so fundidas de modo impressionista, quer dizer, novamente sob influncia

    de representaes naturalistas do movimento. Desse conhecimento resulta que a escultu-

    ra seja em certo sentido descontnua, ainda mais porque no podemos abrir mo do meio

    fundamental que representam os contrastes para criar o espao em sua totalidade. O vo-

    lume no deve ser ocultado como modelado sugestivo de segunda ordem nem introduzido

    como relao materializada, mas antes ser destacado como algo essencial.

    Aquele que observa uma escultura levado a crer que sua impresso se compe da viso

    e, alm disso, da representao que ele faz das partes dispostas mais em profundidade;

    um tal efeito, por sua ambigidade, no teria relao com a arte.

    Como ressaltamos, a escultura nada tem a ver com a massa naturalista, mas s com a cla-

    rificao da forma. Trata-se, pois, de figurar sobre as partes visveis as invisveis em sua

    funo formal, como forma; o volume, o coeficiente de profundidade, como eu gostaria de

    nome-lo, como forma; ele s verdadeiro como forma, sem mistura do concreto, a massa.

    As partes no devem ser figuradas de modo material e pictrico, mas, principalmente,

    de tal sorte, que a forma, que as torna plsticas e que dada pelo movimento natura-

    lista, esteja fixada e simultaneamente visvel. Cada parte deve encontrar sua autonomia

    plstica e ser deformada de modo a absorver a profundidade, enquanto a representao,

    como se o verso aparecesse, integrada do lado frontal, que possui, entretanto, funo

    tridimensional. Assim, cada parte um resultado da representao formal que cria o es-

    pao como totalidade e como identidade perfeita entre uma ptica individual e a viso, e

    que rejeita a escapatria do sucedneo que enfraquece o espao trazendo-o massa. Tal

    escultura fortemente centrada sobre uma face, dado que ela oferece, sem o deformar, o

    volume em seu conjunto, como resultante, enquanto a frontalidade acumula tudo sobre o

    primeiro plano. Essa integrao do elemento plstico engendra centros funcionais a partir

    dos quais ela se ordena; em torno desses points centrals6 [sic] do volume que se organiza

    naturalmente uma necessria e forte repartio que se pode qualificar de poderosa ascen-

    so autonomia das partes. compreensvel, justamente pelo fato de a massa naturalista

    no desempenhar nenhum papel, que a clebre massa compacta e integral das obras-

    primas do passado perca importncia; por outro lado, a figura aqui apreendida no como

    efeito, mas imediatamente em sua existncia espacial. O corpo do deus se subtrai ele

    o mestre s mos diligentes do arteso; o corpo concebido a partir de sua funo

    prpria. Censuram-se repetidamente nas esttuas negras os supostos erros de proporo.

    Compreendendo-se que a descontinuidade ptica do espao se traduz em clarificao da

    forma, em ordenao das partes que so, j que se trata de plasticidade, diversamente

    valorizadas segundo sua expresso plstica , no seu tamanho que determinante,

    mas muito mais a expresso do volume que lhes cabe figurar sem concesso. Todavia, h

    algo que o negro rejeita e em direo ao qual o europeu se deixa levar, pelo compromisso

    6 Points centrals: em francs no original. (N.T.)

    Casal sentado. Artista de um grupo tnico no identificado. Zmbia (H. van Geluwe), Angola meridional, (W. Fagg [informao pessoal]), madeira. / Casal. Artista de Ilhas Marquesas. Polinsia, madeira, 43 cm. / Tamborete sus-tentado por caritide. Artista luba. Repblica Democrtica do Congo, madeira e fibras.

  • 174 concinnitas ano 9, volume 1, nmero 12, julho 2008

    que ele aceita: fazer da modelagem, por interpolao, um elemento fundamental, pois

    esse procedimento puramente plstico tem a exata necessidade de distribuio rigorosa

    do volume. As faces so de algum modo funes subalternas, j que a forma deve ser

    destacada, concentrada e intensificada, para ser verdadeiramente forma, pois o volume

    representado de fato independente da massa como resultante e expresso. Apenas isso

    seria admissvel; pois a arte que depende da qualidade envolve uma questo de intensi-

    dade; o volume deve manifestar-se na subordinao das imagens como intensidade arqui-

    tetada. Este o momento de abordar o conceito de monumentalidade. Essa concepo

    certamente a das pocas que, carecendo de qualquer viso, se mediam os trabalhos aos

    palmos. Como a arte uma questo de intensidade, a monumentalidade como grandeza

    desaparece. H ainda outra coisa a eliminar. Jamais ser permitido abordar tais ordena-

    es plsticas por meio de interpolaes lineares; essa dmarche revela uma faculdade

    visual enfraquecida por lembranas conceituais e nada mais. Mas compreenderemos o

    realismo rigoroso do negro se aprendermos a olhar examinando como o espao delimitado

    da obra de arte pode ser imediatamente fixado. A funo da profundidade justamente no

    se expressa por medidas, mas pela resultante das orientaes contrastantes do espao,

    soldadas e no adicionadas umas s outras. Essa resultante nunca poder ser apreendida

    de modo global na representao do movimento oferecida pela massa; pois o volume no

    repousa em partes separadas, diferentemente situadas, mas, sobretudo, em sua resultante

    tridimensional, sempre percebida na totalidade, o que no tem nada a ver com a massa

    ou com a linha geomtrica. Ela descreve a existncia do volume como uma resultante

    absoluta, sem gentica, j que absorve o movimento.

    Depois dessa investigao da concentrao plstica, torna-se fcil explicar as conseqncias.

    Objetou-se com freqncia que as esttuas negras careciam do sentido das propores;

    outros, pelo contrrio, queriam ler nelas a estrutura anatmica de diferentes tribos. As

    duas coisas resolvem-se por si, pois o elemento orgnico no tem nenhum sentido par-

    ticular em arte, uma vez que ele apenas mostra a possibilidade efetiva do movimento.

    Igualando-se reflexo sobre arte e crtica artstica, ainda que se invertendo a ordem,

    construram-se teorias com conceitos sem nuanas como se de algum modo a arte decor-

    resse de um modelo do que fosse dedutvel. A condio prvia de tal processo j seria

    arte; no curso de uma anlise, jamais se deve abandonar o plano de seu objeto, seno

    falaremos de tudo menos do objeto em questo. Abstrato e orgnico so critrios (con-

    ceituais ou naturalistas) estranhos arte e, por essa razo, completamente exteriores a

    ela. Tambm se devem abandonar as explicaes vitais ou mecanicistas a propsito das

    formas artsticas. Ps largos, por exemplo, no so largos porque possuem a funo de

    carregar, mas porque o olhar inclinado para baixo tende, s vezes, a alarg-los ou porque

    procuramos, por contraste, um equilbrio com a bacia. Posto que a forma no est ligada

    nem ao elemento orgnico nem massa, a maioria das esttuas negras no possuem base

    (o orgnico necessita ora aqui e ora ali de uma base para produzir contraste de geometria

    e de densidade); quando h uma base, ela acentuada plasticamente por asperezas e

    outros meios.

  • 175Negerplastik Carl Einstein

    Retornemos, entretanto, questo das propores. Elas dependem da fora segundo a qual

    a profundidade pode exprimir-se a partir do coeficiente de profundidade pelo qual compre-

    endo a resultante plstica. A relao das partes entre si depende exclusivamente do valor de

    sua funo no volume. As partes importantes exigem apropriada resultante tridimensional.

    assim que se devem compreender as pretensas articulaes torcidas e as propores dos

    membros das esttuas negras; essa contoro descreve de maneira visvel e concentrada em

    que consiste o volume engendrado por duas direes contrastantes alm de bruscamente in-

    terrompidas; as partes distanciadas, que adivinhamos apenas, tornam-se ativas e funcionais

    em meio a uma expresso concentrada e unificada, e assim se convertem em forma, sendo

    absolutamente necessrias representao imediata do volume. A essas partes integradas,

    preciso subordinar os outros lados segundo uma rara coerncia. Eles no permaneceram,

    entretanto, material sugestivo e no trabalhado; mas tomaram parte ativamente na forma.

    Por outro lado, a profundidade torna-se visvel na totalidade. Essa forma, que idntica

    viso unificada, se exprime em constantes e em contrastes que, entretanto, no podem mais

    ser interpretados infinitamente. Ao contrrio, o duplo sentido da profundidade, ou seja,

    o movimento para frente e o movimento para trs, est entrelaado na prpria expresso

    tridimensional. Cada ponto do volume em trs dimenses pode ser determinado por duas di-

    rees; ele aqui integrado e fixado dentro da resultante tridimensional e, portanto, contm

    em si e no como relao intercalada os dois contrastes que produzem a profundidade.

    Pode-se, talvez, observar que na escultura negra, como em outras artes ditas primitivas,

    algumas esculturas so singularmente longas e magras: suas resultantes tridimensionais

    no so bastante acentuadas. Exprime-se aqui, quem sabe, a vontade irredutvel de apre-

    ender nessa forma delgada o volume em trs dimenses de modo completamente despo-

    jado. A impresso que se tem de que no h, em razo do espao ao seu redor, nenhum

    meio de acesso a essas formas delgadas, comprimidas e simples.

    Sobre as esttuas de grupo, acrescentarei apenas algumas linhas. Manifestadamente, elas

    confirmam a opinio exposta: o volume se exprime no pela massa, mas pela forma;

    seno essas esttuas seriam, como toda esttua perfurada, um paradoxo e uma monstru-

    osidade. Esse tipo de esttua representa o caso extremo que gostaria de nomear como

    efeito plstico a distncia; duas partes de um grupo no se comportam, olhando de perto,

    de maneira diferente da que o fazem duas partes distanciadas de uma mesma esttua.

    Sua unidade exprime-se na subordinao a uma integrao plstica, supondo-se que no

    haja simplesmente repetio do tema formal seja com efeito de contraste, seja com efeito

    adicional. O contraste apresenta o interesse de inverter o valor das coordenadas, e por

    isso mesmo tambm a justificao da orientao plstica. A justaposio, ao contrrio,

    mostra num s campo visual a variao de um sistema plstico. Os dois procedimentos so

    percebidos na totalidade, visto que se trata de sistema nico.

    Mscaras e prticas similares

    Um povo para o qual a arte, o elemento religioso e a moral possuem poder imediato, domi-

  • 176 concinnitas ano 9, volume 1, nmero 12, julho 2008

    nado e circunscrito por seus poderes, os far visveis sobre si mesmo. Tatuar-se converter

    seu corpo no meio e na finalidade de uma viso. O negro sacrifica seu corpo e lhe oferece

    nova intensidade; seu corpo de maneira visvel entrega-se ao grande Todo, e essa entrega

    reveste-se de uma forma sensvel, caracterizando uma religio desptica que reina sem pa-

    ralelo e um culto poderoso humanidade, a ponto de ver homem e mulher transformarem

    pela tatuagem seus corpos individuais em corpo coletivo; e desse modo intensificar a fora

    do erotismo. Qual no deixa de ser a tomada de conscincia que representa conceber seu

    prprio corpo como obra inacabada que transformamos prontamente! Para alm do corpo

    natural, a forma esboada pela natureza que tatuar refora, e a tatuagem alcana sua

    perfeio quando nega a forma natural e a substitui por uma forma imaginria superior.

    Nesse caso, o corpo , no mximo, tela e argila; ele se torna mesmo obstculo que pode

    provocar o mximo de criao de forma. Tatuar-se supe imediata conscincia de si e cons-

    cincia no menos forte da prtica objetiva da forma. Aqui se reencontra o que qualifiquei

    de sentimento de distncia, um dom prodigioso de criao objetiva.

    A tatuagem no passa de uma parte da objetivao de si mesmo, que consiste em exercer

    influncia sobre a totalidade de seu corpo, a produzi-lo de modo consciente em pblico no

    unicamente na dana, por exemplo, expresso imediata do movimento, ou no penteado,

    expresso imvel do movimento. O negro define seu tipo com tanta fora, que o transforma.

    Esse tipo intervm em todos os lugares assinando uma expresso que no se poder falsifi-

    car. Compreende-se que o homem que se sente gato, rio, condio climtica se transforma;

    ele aquilo que sente e assume as conseqncias sobre seu corpo demasiado unvoco.

    a propsito da mscara que o europeu, versado na psicologia e na arte do teatro,

    melhor compreende esse sentimento. O ser humano sempre se transforma um pouco,

    esforando-se, entretanto, em conservar certa continuidade, sua identidade. O europeu

    faz precisamente desse sentimento o objeto de um culto quase hipertrofiado; o negro, que

    menos prisioneiro do eu subjetivo e venera potncias objetivas, deve, para se afirmar ao

    lado delas, converter-se nessas potncias, justamente quando as festeja de maneira mais

    fervorosa. Mediante essa metamorfose, ele estabelece um equilbrio com a adorao que

    arrisca aniquil-lo; ele reza para deus, ele dana pela tribo em xtase e se transforma,

    por meio da mscara, nessa tribo e nesse deus. Essa metamorfose lhe permite apreender

    radicalmente o que exterior a ele; ele o encarna em si mesmo, e faz-se essa objetividade

    que reduz ao nada todo evento individual.

    Por isso a mscara s faz sentido se for inumana, impessoal, quando se trata de cons-

    truo purificada de qualquer experincia individual; possvel que o negro venere a

    mscara como divindade quando ele no a traja.

    Gostaria de dizer que a mscara o xtase imvel, e talvez tambm o fantstico esti-

    mulante sempre pronto para despertar o xtase, j que traz fixada em si a fisionomia da

    potncia ou do animal adorado.

  • 177Negerplastik Carl Einstein

    Poderamos surpreender-nos de descobrir que justamente as artes de forte dominncia

    religiosa prendem-se muitas vezes figura humana. Isso me parece fcil de conceber, uma

    vez que a existncia mtica independente da aparncia j convencional. O deus j est

    inventado, e sua existncia indestrutvel, seja qual for a aparncia que ele tome. Seria

    quase como contradizer esse sentimento artstico to radical sobre o plano da forma,

    esgotar-se no nvel dos contedos concretos e no consagrar todas as suas foras a adorar

    a forma a prpria existncia do deus. Pois apenas a forma na arte est altura do ser

    dos deuses. Talvez o fiel queira prender o deus ao homem ao represent-lo como tal, e

    talvez assim o faa por piedade; porque ningum mais egosta do que o fiel que tudo

    oferece ao deus, mas, sem o saber de fato, o faz homem.

    Cabe agora explicar tambm a expresso singularmente solidificada dos rostos. Essa rigi-

    dez nada mais do que o ltimo grau de intensidade da expresso, liberada de qualquer

    origem psicolgica; ao mesmo tempo, ela permite, sobretudo, a elaborao de uma es-

    trutura clarificada.

    Apresentei uma srie de mscaras7 que vai da arquitetnica simplesmente humana para

    ilustrar a diversidade de aptides da alma desse povo.

    Por vezes quase impossvel determinar o tipo de expresso que representa a obra de

    arte negra: nela se exprime ou se provoca o terror? Constatamos aqui um belo exemplo

    de ambigidade da expresso de sentimentos. Nossa prpria experincia nos ensina que

    duas sensaes opostas muitas vezes envolvem expresso idntica.

    As mscaras de animais me impressionam profundamente quando penso que o negro toma

    o aspecto do animal que, em outras circunstncias, ele mata. O deus reside tambm no

    animal morto, e talvez o negro tenha a o sentimento de sacrificar-se ele prprio quando,

    colocando a mscara do animal, paga seu tributo criatura abatida, e, graas a ela, faz-se

    prximo do deus; nela v a potncia que o extrapola: sua tribo. Talvez, metamorfoseando-

    se no animal morto, escape da vingana que de outro modo o perseguiria.

    Entre a mscara humana e a animal, h a que detentora do poder de autometamorfose.

    Abordamos aqui formas mistas que, apesar de seu contedo fantstico ou grotesco, mos-

    tram o equilbrio tipicamente africano. do fervor religioso ao qual no basta o mundo

    visvel, que se engendra um mundo intermedirio; e no grotesco afirma-se, ameaadora-

    mente, a disparidade entre os deuses e a criatura.

    No me deterei em interpretaes estilsticas da mscara negra. Vimos como o africano

    condensa as foras plsticas em resultantes visveis. Ainda nas mscaras exprime-se a

    fora da viso em trs dimenses que faz afrontarem-se as superfcies, que condensa todo

    sentido da parte anterior da face em algumas formas plsticas e que elabora em resultan-

    tes os menores aspectos capazes de expressar o espao em trs dimenses.

    7 Cf. nota 1. (N.T.)

    Me e filho. Artista yombe. Repblica Demo-crtica do Congo, madeira. / Esttua. Artista de um grupo tnico no identificado. Repbli-ca Democrtica do Congo, madeira, 67 cm. / Prisioneiro. Artista kanyok. Repblica Demo-crtica do Congo, madeira, 38,5 cm.