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Maria Luísa de Castro Vasconcelos Gonçalves Jacquinet
DOS MONUMENTOS DO DESAGRAVO DO SANTÍSSIMOSACRAMENTO: ARTE, PODER E ESPIRITUALIDADE NO
PORTUGAL DO ANTIGO REGIMEVolume I
Tese de Doutoramento em Letras, área de História, especialidade de História da Arte, orientada pelo ProfessorDoutor António Filipe Pimentel e pela Professora Doutora Maria Alexandra Gago da Câmara e apresentada àFaculdade de Letras da Universidade de Coimbra
Novembro de 2013
Maria Luísa de Castro Vasconcelos Gonçalves Jacquinet
DOS MONUMENTOS DO DESAGRAVO DO SANTÍSSIMOSACRAMENTO: ARTE, PODER E ESPIRITUALIDADE NO
PORTUGAL DO ANTIGO REGIMEVolume I
Tese de Doutoramento em Letras, área de História, especialidade de História da Arte, orientada pelo ProfessorDoutor António Filipe Pimentel e pela Professora Doutora Maria Alexandra Gago da Câmara e apresentada àFaculdade de Letras da Universidade de Coimbra
Novembro de 2013
IV
ÍNDICE GERAL
VOLUME I
Agradecimentos..............................................................................................................VIII
Sinopse................................................................................................................................X
Siglas e abreviaturas.......................................................................................................XIV
Introdução............................................................................................................................1
PARTE I
O NASCIMENTO DE UMA FAMÍLIA RELIGIOSA
1. Uma fundação num terreno fértil: a Venerável Maria do Lado.......................................7
2. Do desacato ao desagravo do Santíssimo Sacramento: contornos da piedade
eucarística...............................................................................................................20
3. Um longo processo fundacional.....................................................................................26
4. A Regra do Desagravo (O.S.C.)
4.1. Fontes normativas e textos legais....................................................................41
4.2. Regra e codificação material ..........................................................................50
PARTE II
O REAL MOSTEIRO DO LOURIÇAL: DO ESPÍRITO À MATÉRIA
1. Preexistências e substratos ............................................................................................59
2. O Mosteiro à época da fundação....................................................................................60
2.1. Perante o fato consumado ..............................................................................65
2.2. Um voto e uma obra alheia ............................................................................67
2.3. Um novo fôlego mecenático ..........................................................................71
2.4. Em busca de Manuel Pereira (C.O.), arquiteto .............................................79
V
3. Arte e espiritualidade ....................................................................................................80
3.1. Expressões arquitetónicas
3.1.1. Entre interior e exterior ...................................................................90
3.1.2. O templo ..........................................................................................91
3.1.2.1. Coros ..........................................................................................102
3.1.3. Em torno do templo .......................................................................106
3.1.4. Espaços de devoção .......................................................................108
3.1.5. Espaços de sobrevivência temporal ...............................................111
3.1.6. O claustro.......................................................................................113
3.1.7. O exterior da clausura ...................................................................114
3.2. Programa artístico e património móvel ........................................................116
PARTE III
A DIFUSÃO DO INSTITUTO DO LOURIÇAL
1. O reinado de D. Maria I e a recuperação da causa de Maria do Lado .....................126
2. O Recolhimento do Desagravo de Montemor-o-Novo
2.1. Os primórdios ...............................................................................................146
2.2. Acertos e desacertos do destino ...................................................................148
2.3. Sob as atenções da Corte ..............................................................................154
2.4. Da decadência à extinção.............................................................................158
2.5. Um longo estaleiro de obras .........................................................................161
2.6. O recolhimento: arquitetura e património integrado
2.6.1. O templo ........................................................................................168
2.6.2. Coros .............................................................................................169
2.6.3. Em torno do templo .......................................................................172
2.6.4. Espaços de sobrevivência temporal .............................................174
2.6.5. O claustro ......................................................................................175
2.7. Programa artístico e património móvel ........................................................176
VI
3. O Mosteiro do Desagravo de Vila Pouca da Beira
3. 1. O Desagravo em Vila Pouca da Beira .........................................................179
3. 2. Genoveva Maria do Espírito Santo e a ideia de fundar ............................180
3. 3. Uma longa história fundacional ..................................................................190
3. 4. Da fundação ao ocaso: retalhos de uma vida breve e atribulada ...........195
3. 5. Entre hospício e mosteiro: duas obras, uma vocação? .............................200
3. 6. O mosteiro: arquitetura e património integrado ..........................................205
3.6.1. Templo ..........................................................................................205
3.6.2. Coros .............................................................................................206
3.6.3. Em torno do templo .......................................................................208
3.6.4. Capelas devocionais ......................................................................208
3.6.4. Espaços de sobrevivência temporal ..............................................209
3.6.5. O claustro ......................................................................................210
3.7. Programa artístico e património móvel ........................................................211
4. O “Conventinho”
4.1. Preexistências e passagens de testemunho ...................................................214
4.2. O Campo de Santa Clara: um retorno simbólico ........................................225
4.3. De beatério a Real Mosteiro .........................................................................227
4.4. Um percurso de acentuado declínio .............................................................237
4.5. Uma obra num tempo de mudança ..............................................................242
4.6. Etapas e intervenientes .................................................................................245
4.7. Em torno da autoria ......................................................................................253
4.8. O mosteiro: arquitetura e património integrado...........................................260
4.8.1. O templo ........................................................................................262
4.8.2. Coros .............................................................................................268
4.8.3. Espaços de sobrevivência temporal ...............................................270
4.8.4. O claustro ......................................................................................272
4.8.5. Espaços de contato com o exterior ..............................................273
4.9. Programa artístico e património móvel .......................................................275
VII
PARTE IV
AS DERRADEIRAS FUNDAÇÕES DO DESAGRAVO
1. Do Pombalismo à República: apostas e desafios à vida regular..................................285
2. As Clarissas do Desagravo no contexto revolucionário .............................................286
3. A Casa do Desagravo da Cova da Moura ...................................................................301
4. O Colégio de Sanguedo ..............................................................................................305
5. Percursos de resistência...............................................................................................309
Considerações finais........................................................................................................316
Fontes e Bibliografia
1. Fontes...........................................................................................................................321
1.1. Fontes Manuscritas...................................................................................................323
1.2. Fontes iconográficas.................................................................................................336
1.3. Fontes impressas.......................................................................................................339
2. Bibliografia..................................................................................................................348
VOLUME II
REPERTÓRIO ICONOGRÁFICO
Nota introdutória.................................................................................................................II
Notas cronológicas.............................................................................................................III
Índice...................................................................................................................................X
Repertório iconográfico.......................................................................................................3
VIII
AGRADECIMENTOS
O inevitável balanço de que se reveste a consumação de um trabalho académico
traduz o discernimento e a ponderação de mais e menos-valias científicas, mas, não
menos, de créditos e dívidas pessoais e institucionais, que, contrariamente aos que apenas
se reconduzem à expressão grafada de uma tese, não contabilizam senão a mais-valia
nem respondem senão com a gratidão.
Gratidão que, em primeiro lugar, manifestamos ao Prof. Doutor António Filipe
Pimentel e à Prof.ª Doutora Maria Alexandra Gago da Câmara, nossos orientadores, cujo
empenho e sabedoria se revelaram essenciais para a consecução do que agora damos à
colação.
Gratos nos reconhecemos, naturalmente também, à Fundação para a Ciência e
Tecnologia, cuja fiança em nós depositada constituiu a garantia material da
exequibilidade desta tese.
Reconhecimento devemos, por certo, a todos aqueles que nos dispensaram direto
auxílio, expresso seja em conselhos ou sugestões, seja no acesso a fontes ou na
disponibilização de informações: à Prof.ª Doutora Sandra Costa Saldanha, ao Dr.
Joaquim Caetano, a D. Tiago de Meneses, ao Dr. Gonçalo Nemésio, ao Prof. Doutor José
Pedro Paiva, ao Prof. Doutor Francisco Pato de Macedo e às irmãs Clarissas do
Desagravo, nas pessoas da Madre Maria do Lado (OSC), Madre Fátima (OSC) e Madre
Maria José (OSC).
Pelo aplanar de dificuldades inerentes ao labor arquivístico, a que extensamente
recorremos, agradecemos à Dr.ª Fátima Farrica, à Dr.ª Odete Martins, ao Dr. Paulo
Tremoceiro e ao Dr. José Marques.
Pelo atenuar, através de um empenho feito também de boa-vontade, do peso das
não menos fatigosas andanças burocráticas a que o nosso percurso obrigou, agradecemos
reconhecidamente à Dr.ª Manuela Saraiva e ao Prof. Doutor Rogério Leal.
Pela amistosa solicitude, expressa aos mais diversos níveis, reconhecemo-nos
amplamente devedores à Prof.ª Doutora Maria Filomena Andrade, à Prof.ª Doutora Maria
de Lurdes Craveiro, à Dra. Ana Isabel Líbano Monteiro, ao Professor Doutor Pedro Vilas
Boas Tavares, ao Rev.º P.e Doutor António de Jesus Ramos, ao Prof. Doutor Saul
IX
António Gomes, ao Dr. Joaquim Eusébio, ao Prof. Doutor António Camões Gouveia e ao
Prof. Doutor Diogo Ramada Curto.
Especial reconhecimento devemos ainda ao Rev.º P.e António Maria Amaral (SJ),
pela sempre discreta e bondosa vigilância, aos amigos que de perto nos acompanharam, a
nossos sogros, Lucie Scheffen e Joseph Jacquinet, irmãos e a toda a nossa extensa
família, muito em particular a Maria Eduarda de Castro Vasconcelos, Alda Maria de
Castro Vasconcelos e Maria da Conceição de Castro Vasconcelos.
Àqueles a quem a gratidão não encontra em palavras fiel tradução, dedicamos o
presente trabalho: a nossos Pais, Maria de Fátima e Herculano, ao Marc, à Heloísa e à
Gabriela.
X
SINOPSE
Conquanto tibiamente abonado pela fortuna crítica, o Instituto do Desagravo do
Santíssimo Sacramento prefigura um fenómeno de relevância histórico-patrimonial não
despicienda, ao participar, como parte mas também como agente, de um tempo longo
que, inapelavelmente perpassado pelo eixo que uniu religião e poder, assinalou a vida
religiosa, cultural e política do Reino ao longo da Época Moderna e alvores da
Contemporânea.
Canonicamente inserida na Primeira Regra da Ordem de Santa Clara, a
Observância, que tão-só Portugal terá conhecido, viria a materializar-se na fundação
sucessiva, de norte a sul do país, de uma rede cenobítica marcada por uma origem,
carisma e vocação comuns.
Bem que sucessivamente confrontado com conjunturas adversas ao florescimento
da vida clausurada, o novel instituto contabilizaria seis fundações entre a primeira metade
de Seiscentos e o último quartel de Oitocentos, dando testemunho de uma resistência
institucional sem paralelo - que a revalidação canónica, ocorrida décadas após a extinção
formal, e já em pleno século XX, haveria de sufragar.
Crismado na origem pelo sentido e contornos de uma profanação eucarística, e
profundamente infundido pelo quadro cultural e espiritual da época em que sobreveio,
assinalado pela intensa devoção à Eucaristia e à Paixão de Cristo, pela influência da
teologia mística e pela indelével presença da Ordem franciscana, o Desagravo instituir-
se-ia, na íntima ligação entre piedade eucarística e integridade pátria, como manifesto
reparatório não apenas do Santíssimo Sacramento ofendido, quanto de desacatos cujo
espectro semântico se alargaria, passando a evocar, para lá de um atentado sacrílego
dirigido ao Altar, uma irreverência contra os sustentáculos morais da monarquia.
Ao cristalizar um fenómeno que se convertera em argumento, a memória da
impiedade e da sua venerável vidente ver-se-ia sucessivamente reivindicada e apropriada
como instrumento de legitimação. Tão religiosa e eclesiástica quanto política, a Regra
não ficaria, pois, alheia às inflexões da vida da diocese, do exercício do poder real ou, em
suma, do percurso individual ou coletivo de qualquer dos seus fautores.
XI
Instâncias privilegiadas de acolhimento deste particularíssimo "topos" devocional,
a arquitetura e a arte assumir-se-iam em parte como transposição material do carisma das
Clarissas da Adoração Perpétua. Não obstante o rigorismo doutrinal preconizado e a
natural diversidade do património material associável a cada um dos cenóbios, a
peculiaridade da enunciação estatutária refletir-se-ia numa não menos peculiar expressão
patrimonial. De recorte intrinsecamente programático, ficaria vertida na ideação do
espaço monástico, na incidência temática e no timbre devocional que crismariam o
recheio artístico, na criação, enfim, de uma iconografia eminentemente sui generis, que,
como matriz sigilar, cunharia cada monumento, conferindo-lhe simbolicamente
identidade e sentido de pertença.
Palavras-chave: Clarissas do Desagravo (OSC), Antigo Regime, devoção eucarística,
relações Igreja-Estado, património monástico, misticismo
XII
ABSTRACT
Although little contemplated by historiography, the Institute of Reparation of the
Blessed Sacrament (Desagravo do Santissimo Sacramento) represents an very
important and historically relevant phenomenon, as it stands out as part and as an agent of
an extended period of time, that marked, in terms of religion and power, the religious,
cultural and political dimension of the Portuguese Kingdom during the Modern Era and
the beginning of the Contemporary Period.
Canonically embedded in the First Rule of the Order of St. Clare, the Rule, which
only existed in Portugal, materialized in the successive creation of establishments
throughout the country, as a network of monasteries sharing a common origin, charisma
and vocation.
Despite having been successively confronted with the occurrence of adverse
situations to the flowering of the cloistered life, the new institute came to have six
establishments between the seventeenth century and the first half of the last quarter of the
nineteenth century. Therefore, it testified institutional resistance, as the canonical
revalidation proves, decades after the formal demise, in the twentieth century. Baptized in
its origin by the meaning and contours of a Eucharistic desecration and deeply infused
by the cultural and spiritual context of the era in which it appeared, characterized by an
intense devotion to the Eucharist and the Passion of Christ, by the influence of mystical
theology and the important presence of the Franciscan Order,
the Reparation represented, within the intimate connection between Eucharistic piety and
homeland integrity, a manifesto to repair not only the offended Blessed Sacrament, but
also the semantic ungodliness, which range would widen, resulting in not only a
sacrilegious attack directed at the Altar, but also an attack against the moral
underpinnings of the monarchy.
By crystallizing a phenomenon that had been converted into an argument, the
memory of impiety and its venerable seer would be successively claimed and
appropriated as an instrument of legitimization. The Rule, being not only religious and
ecclesiastical but also political, would end up revealing the changes in the life of the
XIII
diocese, the exercise of royal power or, in short, the individual or collective route of any
of its instigators.
As privileged ways to host this devotional "topos", architecture and art have taken
a partial place as the material representation of the charisma of the Poor Clares of
Perpetual Adoration. Notwithstanding the advocated doctrinal rigor and the diversity of
the material heritage associated with each of the monasteries, the specificity of the Rule
is also reflected in a particular patrimonial expression. Programmatic by nature, it
appears in the monastic space design, in the themes and devotions and in the filling and
creation of, in short, a sui generis iconography, which, as a seal, marked each
monument, giving it, symbolically, a sense of identity and belonging.
Keywords: Poor Clares of Reparation (OSC), Old Regime, Eucharistic
devotion, church-state relations, monastic heritage, mysticism
XIV
SIGLAS E ABREVIATURAS
Siglas
AC - Arquivo das Congregações
ADL - Arquivo Distrital de Lisboa
ADLRA - Arquivo Distrital de Leiria
AHMF – Arquivo Histórico do Ministério das Finanças
AHMMMN - Arquivo Histórico Municipal de Montemor-o-Novo
AHMOPTC - Arquivo Histórico do Ministério das Obras Públicas, Transportes e
Comunicações
AHPL - Arquivo Histórico do Patriarcado de Lisboa
AHSCMMMN - Arquivo Histórico da Santa Casa da Misericórdia de Montemor-o-Novo
AHSPL – Arquivo Histórico da Sé Patriarcal de Lisboa
AHTC - Arquivo Histórico do Tribunal de Contas
AML - Arquivo Municipal de Lisboa
ANTT - Arquivos Nacionais/Torre do Tombo
AUC - Arquivo da Universidade de Coimbra
BA - Biblioteca da Ajuda
BAC - Biblioteca da Academia das Ciências
BGUC - Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra
BNP - Biblioteca Nacional de Portugal
BNRJ - Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro
BPE - Biblioteca Pública de Évora
CML – Câmara Municipal de Lisboa
DGEMN - Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais
FBB - Fundação Bissaya-Barreto
GEO - Gabinete de Estudos Olisiponenses
IGP – Instituto Geográfico Português
XV
MNAA - Museu Nacional de Arte Antiga
MNMC - Museu Nacional de Machado de Castro
MF - Ministério das Finanças
MNEJ - Ministério dos Negócios Eclsiásticos e Justica
MOPCI - Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria
MR – Ministério do Reino
RGT - Registo Geral de Testamentos
TSO - Tribunal do Santo Ofício
Abreviaturas
art. – artigo
cfr. – confrontar, conferir
cit. – citado(a)
col. (s) - coluna(s)
Cód. – Códice
coord. - coordenação de, coordenado por
cx. – caixa
dir. – direção de, dirigido por
doc. – documento
ed. – edição, editor
fig.(s) – figura(s)
fl.(s) – fólio(s)
fot. aut. – fotografia(s) da autora
Lv. – livro
Mç. – maço
mss. – manuscrito
n.º - número
op. cit. – obra citada
p. - página
XVI
pp. – páginas
pref. – prefácio
s/d – sem data
s/l – sem local
ss. – seguintes
t. – tomo
trad. – tradução
v. - verso
Vd. – vide; ver
Vol.(s) – volume(s)
1
INTRODUÇÃO
Concluíamos, em meados de 2008, a nossa dissertação de Mestrado, consagrada
ao estudo de um exemplar do património religioso da segunda metade de Setecentos até
então envolto em cerrada névoa: o Mosteiro do Desagravo do Santíssimo Sacramento
de Lisboa, vulgo "Conventinho"1. No termo do longo percurso que trilhámos, fez-se-nos
claro que a expressão material cujo sentido procurámos restituir era fruto de um
processo multímodo onde variáveis artísticas, espirituais, culturais e mesmo políticas se
conjugavam. Imbricado em complexa tessitura conjuntural, o Conventinho emergiu
como pequena, embora significativa, parte de um todo mais amplo, representado por
uma rede cenobítica informada por uma mesma e particularíssima Regra, a qual o
estudo, porque de índole monográfica, não logrou senão devolver uma visão
panorâmica.
No final de um itinerário radica, pois, o início de um novo. Infundido por
precedentes e por eixos de continuidade, o trabalho que agora apresentamos conta não
somente com a orientação de quem, anos antes, orientara aquele outro, como com a de
quem fora parte essencial da sua avaliação - e que, antes disso ainda, nutrira, como nós,
a esperança de fazer do tema capítulo assinalado de um percurso académico.
Assumindo heranças, “Dos Monumentos do Desagravo do Santíssimo
Sacramento: arte, poder e espiritualidade no Portugal do Antigo Regime” não deixa,
porém, de reivindicar uma identidade própria ao ampliar o objeto de estudo, que agora
se estende à totalidade dos cenóbios da Regra, e ao propor uma revisão de pressupostos
e perspetivas, indispensável para dotar de pertinência e viabilidade a abordagem à
diversidade do lastro patrimonial e artístico de casas unidas "tão-só" pela pertença a
uma mesma família religiosa.
Exteriores à dinâmica estrita do trabalho académico, são vários os fatores que o
insuflam e robustecem. São disso exemplo as celebrações do tricentenário da fundação
1 Vd. Maria Luísa JACQUINET, Em desagravo do Santíssimo Sacramento: o “Conventinho Novo”.Devoção, memória e património religioso, 2 vols., Lisboa, s/n, 2008 [Dissertação apresentada àUniversidade Aberta para obtenção do grau de mestre em Estudos do Património; policopiado].
2
do Mosteiro do Louriçal, cenóbio que instituiria a Observância sobre a qual versaremos,
a recente reabertura do processo de beatificação de Maria do Lado, sua fundadora
mística, a proposta de classificação institucional ou de reconversão funcional de dois
dos exemplares edificados por nós contemplados, e, ainda, as comemorações do
centenário da República Portuguesa - e, por elas, o reemergir do tema, já de si candente,
das relações Igreja-Estado, onde o património monástico-conventual inevitavelmente se
enquadra.
Além disso, o tratamento arquivístico dos fundos eclesiais e monástico-
conventuais e a organização e disponibilização de espécies documentais pelas entidades
eclesiásticas suas detentoras, o crescente interesse pela inventariação e proteção do
património, mormente religioso - que vem ultimamente empenhando instituições
públicas e privadas -, a inserção da variável de género no seio da historiografia - que
progressiva a consistentemente vem dando voz ao feminino no espaço religioso -, e a
atenção novamente dispensada ao Concílio de Trento, que no presente se comemora,
constituem créditos a favor do rumo que entendemos tomar. Rumo que, favorecido pela
amplificação do conceito de património2 - onde já não apenas cabem os monumentos
atestatórios de grandes marcos da História ou da Arte -, se ancora no interesse em fazer
luz sobre um tema só parcelar e superficialmente tocado pela historiografia.
O estudo dos mosteiros e recolhimentos do Desagravo e do património que lhes
é intrínseco ou anexo conta, é certo, com elementos a que pode atribuir-se um carácter
referencial. Para além das obras de índole corográfica, que reconhecemos no Portugal
Antigo e Moderno, de Pinho Leal3, no Mappa de Portugal4, do Padre Batista de Castro
ou nos vários volumes do Inventário Artístico de Portugal5, dado à colação pela
Academia Nacional de Belas-Artes, merecem relevo alguns estudos sobre várias das
casas que nos ocupam. Enquanto, sobre o Conventinho, nos permitimos remeter para a
já referida dissertação de nossa autoria, evidentemente tributária de um acervo de
2 Cfr. Françoise CHOAY, A alegoria do património, Lisboa, Edições 70, 2000, p. 14.3 Vd. Pinho LEAL, Portugal antigo e moderno. Diccionario Geographico, Estatistico, Chorographico,Heraldico, Archeologico, Historico, Biographico e Etymologico de todas as cidades, villas e fregueziasde Portugal e de grande numero de aldeias, Vols. IV, V, XI, Lisboa, Livraria Editora de Matos Moreira& Companhia, 1875-1886.4 Vd. Baptista de CASTRO de (padre), Mappa de Portugal, Vol. III, 3ª edição, Lisboa, Tipografia doPanorama, 1870.5 Vd. Vergílio CORREIA, Inventário Artístico de Portugal. Distrito de Coimbra, Vol. II, ediçãoreorganizada e completada por A. Nogueira Gonçalves, Lisboa, Academia Nacional de Belas-Artes,1952; ESPANCA, Túlio ESPANCA, Inventário Artístico de Portugal. Distrito de Évora (zona Norte),Vol. I, Lisboa, Academia Nacional de Belas Artes, 1975; Gustavo de Matos SEQUEIRA, Inventárioartístico de Portugal. Distrito de Leiria, Vol. V, Lisboa, Academia Nacional de Belas-Artes, 1955.
3
anteriores e alheios contributos, sobre Vila Pouca constitui referência a Notícia sobre a
fundação do Convento do Desagravo do Santíssimo Sacramento de Vila Pouca da
Beira, de Diamantino Amaral6 e, a respeito do Louriçal, mantém-se incontornável a
Historia da fundação do Real Convento do Louriçal, do oratoriano Manuel Monteiro7.
O Desagravo, contudo, não se reduziu aos exemplares enunciados, mas - ao que
apurámos - a seis distintas fundações, de que parte se encontra, senão por recensear,
pelo menos por desvelar em profundidade. E, mesmo no que toca ao Louriçal e Vila
Pouca, não totalmente desamparados de respaldo bibliográfico ou documental, cremos
justificar-se uma análise mais ampla e mais crítica, não tão fielmente axializada pelo
discurso produzido acerca das origens canónico-processuais da fundação.
No entanto, mais que com a exiguidade ou incompletude do pecúlio
bibliográfico em relação ao objeto em si mesmo, deparamo-nos com o tipo de
abordagem que sobre esse objeto tem incidido, marcada que está pelo carácter
essencialmente unidisciplinar e tendencialmente descritivo. Daí que se revista de
oportunidade e sentido um enfoque capaz de explicitar a complexidade da criação
artística no plano de um contexto em que participam, num tempo mais ou menos longo
e num espaço também diversificado, religião, política e cultura material.
Com efeito, intensamente focada nas origens, a história das casas do Desagravo
assoma como inferência quase unívoca da celebrada profanação eucarística que, no
longínquo ano de 1630, acometeu o templo lisboeta de Santa Engrácia. Mas assoma, por
outro lado, obscurecida e desfocada pelo protagonismo que a memória e a História
outorgaram ao sacrilégio, à visão mística do mesmo por Maria de Brito e às mitificadas
obras do templo vandalizado.
À centralidade das origens soma-se, concomitante, a centralidade do monumento
que representa a instituição da Regra, o Mosteiro do Santíssimo Sacramento do
Louriçal. Deste, por sua vez, soergue-se o benefício mecenático de D. João V,
subsumindo-se a identidade do edifício material e espiritual na ilustração da
magnanimidade do soberano - materializada, como sabemos, num vasto e opulento
acervo edificado, em cujo elenco o Louriçal por certo não sobressai.
O Desagravo não se consubstancia, ademais, apenas num edifício ou num grupo
de edifícios. Sem pretendermos uma subordinação da expressão material à Regra ou,
6 Vd. Diamantino Antunes do AMARAL, Notícia sobre a fundação do Convento do Desagravo doSantíssimo Sacramento de Vila Pouca da Beira, 1972.7 Manuel MONTEIRO, Historia da fundação do Real Convento do Louriçal de religiosas CapuchasEscravas do Santissimo Sacramento, Lisboa, Oficina de Francisco da Silva, 1750.
4
indo mais longe, a subordinação casuística ou metodológica da Arte à História, não
deixamos de reconhecer a indissociabilidade de ambas na análise a que nos propomos.
Não apenas cada uma das fundações da Observância não representa uma aparição casual
e isolada, quanto, por outro lado, não objetiva, enquanto património, um fruto direto
seja da arte do seu tempo, seja, inequivocamente, da Regra professada.
Além disso, ao contrário de outras Ordens ou derivações de institutos regulares,
igualmente infundidas pelo carisma de Santa Clara e pela prossecução radical de um
ideário de pureza original - tal o caso das Coletinas e das Concecionistas de Santa
Beatriz da Silva -, cuja autonomia canónica é amplamente reconhecida, as Clarissas do
Desagravo parecem ainda gravitar num limbo de indefinição que, talvez mais que
institucional, seja essencialmente historiográfico, e que em tudo contradita o vigor do
seu itinerário.
Uma revisão da fortuna crítica representa, portanto, um primeiro passo no
sentido da visibilidade e da verosimilhança de um fenómeno que acreditamos até hoje
subavaliado. Os monumentos do Desagravo e o carácter eminentemente sui generis da
sua arte, reflexo da não menos peculiar Regra por eles observada, constituem, a nosso
ver, documentos de interesse maior para a compreensão do Portugal do Antigo Regime.
Na sua íntima ligação a estratégias espirituais da realeza e dos sectores tradicionais da
sociedade, o percurso desta declinação da Ordem Clariana caminhou pari passu com
momentos-chave da vida política e moral do país, de que foi tanto parte como agente.
Apesar dos tempos díspares das fundações e, por conseguinte, dos diferentes
contextos artísticos convocados, reputamos pertinente uma leitura transversal do
fenómeno criativo, que remeteríamos quer para a existência de uma regra comum, quer
para um também coerente meio de encomenda e de consumo estético, quer, ainda, para
a permeabilidade das comunidades religiosas à receção de influxos estéticos e artísticos.
Na busca de sentido da expressão material do Desagravo enquanto fenómeno
criativo complexo, resultante de um quadro histórico que ultrapassa o domínio do
estritamente edificado, privilegia-se, mais que o levantamento e inventariação do
património considerado, conformes a uma perspetiva essencialmente heurística, uma
abordagem analítica e interpretativa que permita compreender os cenóbios como objetos
integradores do todo – histórico-eclesiástico, ideológico e artístico - que enformou a sua
criação e existência. Daí que a reunião justaposta da história de cada um dos
monumentos ceda perante uma análise comparativa e crítica capaz de neles aferir uma
5
intencionalidade, um espírito e uma forma que, na sua inerente intercomunicabilidade,
lhes confira significado.
A complexidade metodológica que facilmente se adivinha do acima exposto
refletir-se-á, naturalmente, numa abordagem interdisciplinar - onde múltiplas vertentes e
ramos do saber histórico se conjugam - e no concurso operativo da cripto-histórica da
arte - essencial na leitura de um património severamente truncado, quando não
inexistente.
Das fontes primárias, que nos merecerão particular relevo, destacamos,
localizáveis na Torre do Tombo ou nos arquivos distritais, os processos de extinção das
Ordens emanados pelo Ministério das Finanças, os pareceres do Ministério dos
Negócios Eclesiásticos e da Justiça, atos notariais e registos de testamentos. Não de
menor importância se revestem os livros de Décimas, à guarda no Arquivo Histórico do
Tribunal de Contas, os manuscritos da Biblioteca da Ajuda e da Biblioteca Nacional do
Rio de Janeiro, a documentação patente no Arquivo Histórico da Direcção-Geral do
Património e nas secções de Reservados, Iconografia e Arquivo Histórico da Biblioteca
Nacional de Portugal. Algum interesse complementar merece igualmente a consulta do
Arquivo Histórico da Caixa-Geral de Depósitos e da Casa da Moeda. Atente-se, ainda,
na documentação canónica emanada pelos órgãos de natureza eclesiástica com
jurisdição sobre cada uma das fundações, nos documentos à guarda das paróquias em
que cada uma se inseriu, no acervo conservado pela Ordem Franciscana e,
evidentemente, nos fundos monástico-conventuais transferidos, tais como parte
considerável dos diocesanos, para os arquivos distritais respetivos.
O preenchimento do carácter geralmente lacunar da informação veiculada pelas
fontes de primeira ordem e a abrangência contextual pretendida levam a requerer o
contributo de fontes secundárias - literatura parenética, hagiológios, constituições
monásticas -, bem assim, e naturalmente, de estudos e da bibliografia geral de
enquadramento.
Acompanhando a evolução da família religiosa, o trabalho apresenta-se, no
respeito pela ótica adotada - cujo eixo se define no tempo longo e denso do Antigo
Regime português -, como uma espécie de álbum cuja compartimentação obedece a um
princípio de identidade biográfica. As origens e fundamentos do Instituto, a sua inserção
na Ordem de Santa Clara e o seu enquadramento na História Religiosa de Portugal
preenchem a secção inicial. Assentando nela, propõe-se, como segunda etapa, a análise
crítica dos particulares da encomenda e da expressão material daquela que se assume
6
como matriz do Desagravo, o Mosteiro do Louriçal. Os seus três primeiros frutos, as
circunstâncias que envolveram o seu nascimento e o seu significado histórico-artístico
reúnem-se, porque enquadrados numa mesma moldura ideológica e espiritual, na Parte
III. Significativamente inseridas no contexto da rutura secularizante que ditou a
supressão das Ordens Regulares no país, "As derradeiras fundações do Desagravo", com
que se põe fim à tese, assinalam o ocaso do Instituto tal como originalmente concebido
e revelam, em simultâneo, a sua capacidade de resistência moral e institucional. Ao
texto mencionado anexa-se, complementando e ilustrando o seu conteúdo e
sublinhando-lhe os contornos, um repertório iconográfico e, apensa, uma breve nota
cronológica.
O teor da perspetiva adotada, de par com a escassez bibliográfica e com a tibieza
dos vestígios materiais, coloca-nos perante um desafio tão estimulante quanto
arrevesado, tanto mais que enquadrado por um Doutoramento que, à História, pospõe a
especialidade em História da Arte.
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PARTE I
O NASCIMENTO DE UMA FAMÍLIA RELIGIOSA
8
PARTE I
O NASCIMENTO DE UMA FAMÍLIA RELIGIOSA
1. Uma fundação num terreno fértil: a Venerável Maria do Lado
Ao revelar, na sua incontornável História da Fundação do real Convento do
Louriçal, os primórdios daquele cenóbio e, concomitantemente, a observância adotada
pelas Clarissas do Desagravo do Santíssimo Sacramento, o Padre Manuel Monteiro
(C.O.) não hesita em avançar como motivo primeiro da obra a visão mística, pela Serva
de Deus Maria do Lado, do desacato da Igreja de Santa Engrácia. Assim o diz:
o modo porque esta serva do Senhor deo principio ao Recolhimento teve o
motivo, que diremos agora: Corria o anno de 1630, e nelle na noite da terça
para a quarta feira do dia quinze para dezasseis do mez de Janeiro succedeo
que em Lisboa se arrombou a Igreja de Santa Engracia, e quebrandose as mãos
á Imagem de S. Fructuoso, que estava no Altar mór, se arrombraõ as portas do
Sacrario, e se levou de hum Cofre de tartaruga, guarnecido de prata, o numero
de vinte e cinco Fórmas consagradas, e huma Hostia, e de outro vaso mais
pequeno doze Fórmas, tambem consagradas, e huma Hostia; levando-se mais a
fechadura do Sacrario, a Cruz do remate do vaso, que quebraraõ, as cortinas
brancas do Altar mór, huma toalha do Altar da Rainha Santa, e huma cortina
azul do de Santo Antonio.8
Não renunciando liminarmente ao nexo proposto pelo autor, cremos, no entanto,
beneficiar o entendimento da fundação revendo o seu ponto de partida, que acreditamos
preceder tanto o desacato quanto a visão do mesmo, e fazendo-o primeiramente incidir
sobre a vidente, Maria do Lado de Jesus9. Acerca desta, batizada no século como Maria
8 Manuel MONTEIRO (padre), História da Fundação do real Convento do Louriçal de religiosascapuchas, Escravas do Santissimo Sacramento, Lisboa, Oficina de Francisco da Silva, 1750, pp. 6-8.9 O que, nesta primeira parte do trabalho, deixamos expresso sobre Maria do Lado, encontra-se de formamuito aproximada vertido no artigo, de nossa autoria, "Direção espiritual, experiência mística e destinohagiográfico: Frei Bernardino das Chagas e a Venerável Maria do Lado", A Santidade, dossiê temático da
9
de Brito, nascida na Vila do Louriçal em 1605 e aí falecida em 1632, oriunda de uma
destacada família local, ligada por vínculos de amizade e serviço aos condes da Ericeira,
quase tudo o que se conhece interceta a biografia composta pelo seu confessor tendo
como pano de fundo a fecunda experiência da direção espiritual10.
Em qualquer das versões conhecidas de tal escrito ou de obras por ele
infundidas11, a vida da devota denuncia o ascendente referencial de um modelo de
santidade mística, feito da exploração do mundo interior através da prática continuada
da oração, meditação e contemplação e onde o maravilhoso, o sobrenatural, povoado de
êxtases, arrebatamentos, visões e profecias, prefigura a comunhão com o
transcendente12. Mas denota, mais que isso, o influxo de uma recomposição de
arquétipos e tendências, que casa mística e ascética, penitência e obras meritórias.
A renúncia ao mundo e o seguimento mimético de Cristo, caminho e espelho,
caminham pari passu com a procura d’Ele no recolhimento da alma e com o
cumprimento de uma missão gloriosa. São João da Cruz e Santa Teresa de Ávila
erguem-se, naturalmente, como pontos de fuga deste quadro referencial, mas, na vidente
do Louriçal, a centralidade do Mistério Eucarístico conferirá, vê-lo-emos, uma
coloração muito própria à sua experiência devota13.
No relato que se nos apresenta perfila-se uma existência onde a virtude não é
somente um caminho, mas uma vocação que preexiste a qualquer opção da maturidade.
Desde a infância à morte, a vida de Maria do Lado é perpassada por uma linha de
coerência onde, ao longo de sucessivos patamares, se firma a aproximação à bem-
aventurança. E em nome dessa coerência, onde não há espaço a dúvidas ou inflexões na
revista Lusitania Sacra, Tomo XXVIII, Lisboa, Centro de Estudos de História Religiosa/UniversidadeCatólica Portuguesa, julho-dezembro de 2013, pp. 75-95.10 Era filha de António do Rêgo e de Maria de Brito, pertencentes ambos à nobreza de província. Algunsdados biográficos respeitantes a Maria do Lado podem consultar-se em Fernanda FERREIRA (O.S.C.),Convento do Louriçal. Da profecia à actualidade, s/l, Edições de autor, 2001.11 A biografia original corresponderá à Relação e testemunho do pe spiritual da serua de Ds Maria deBritto. sobre o q sente de sua alma com licença da mesma serua do Snr (Cód. 90 da Biblioteca Nacionalde Portugal), manuscrito provavelmente de 1631 e à Vida de Veneravel Madre M. do Lado composta p.loM. R. P. Mestre Bernardino das Chagas seus Confessor Relig.º da ordem d N. P.e S. Francisco e nelleLente d’artes, e sagrada Theologia, (ANTT, Arquivo das Congregações, Livro n.º 1121). Tendo por baseos textos anteriores e o relato dos últimos meses de vida elaborado pelas irmãs de hábito da futuravenerável, nasceriam as versões oficiais da biografia de Maria de Brito, posteriormente impressas: a Vidada Veneravel Madre Maria do Lado; primeira instituidora do Convento do Louriçal, inserta na obra, jácitada, do padre oratoriano Manuel Monteiro, e o Compendio da Admiravel Vida da Veneravel MadreMaria do Lado, redigido pela então abadessa do Mosteiro do Louriçal e dado ao prelo em 176211.12 Cfr. Jose Luis SANCHEZ LORA, Mujeres, conventos y formas de la religiosidad barroca, Madrid,Fundacion Universitaria Española, 1988, pp. 199-211.13 Cfr. “Eucharistie” in M. VILLER, F. CAVALLERA; J. GUIBERT, op. cit., Tomo IV, Paris,Beauchesne, 1960, cols. 1553-1648. Sobre misticismo eucarístico, vd. cols. 1611-13.
10
fé, a infância assume-se já como pré-anúncio de virtude e como garantia de
incolumidade ao pecado. Porque também o acidental deve ceder perante a providência,
Maria do Brito nasce em dia de S. João Batista, o “maior dos nascidos”14. Com nove
anos, idade em que comunga pela primeira vez, decide consagrar-se a Deus e, com
dezasseis, em que fica órfã de mãe, reforça a renúncia ao mundo - e, por essa via, o
crédito na virtude -, fazendo voto de castidade. Toda a infância e primeira juventude
surgem, de resto, assinaladas pela inclinação às boas obras e pela prática da oração e
penitência. No brio com que nisso se empenha trai a futura beata a inspiração
redundante dos inúmeros exemplos de santidade propostos à imitação por uma obra que
tem como referência, o Flos Sanctorum15. O rigor com que mortifica o corpo compõe o
quadro, tão caro à época, da apetência para o mimetismo de Cristo na Sua Paixão -
mistério, aliás, em que Maria de Brito usa longamente meditar. Além de rigorosos
jejuns e duras disciplinas, usa três cilícios de ferro, deita água e cinza na comida para
não lhe sentir gosto agradável e dorme no chão sobre uma trave de madeira tendo como
pedra um travesseiro. Todo o consolo só em Deus deve encontrá-lo: eis um percurso de
ascese capitalizado, neste como noutros casos, pela presença atemorizadora do demónio
e pela impreparação cultural da penitente – elementos que, pela ideia de suscetibilidade
que denotam, não deixam de poder ser considerados como um argumentum a contrario
da genuinidade da alma da devota e da grandiosidade da sua missão.
Quando, assinalando o início da idade adulta, confia a direção da alma a
Bernardino das Chagas, uma nova etapa se abre na vida da jovem louriçalense. Etapa
que, apesar de representar o suceder natural de uma experiência propedêutica, une
agora, indissoluvelmente, o maravilhoso e o sobrenatural à caminhada rumo à beatitude.
A definição desse rumo privado implica a definição pública de um estatuto
consentâneo: Maria do Lado faz-se terceira de São Francisco negando, muito embora,
envergar o hábito16. Passará desde então a mover-se no terreno híbrido e movediço das
beatas, entre século e religião, numa oscilação por vezes titubeante entre a autoridade
paterna e o ascendente moral e psicológico do diretor de consciência17.
14 Manuel MONTEIRO (padre), op. cit., p. 231.15 Desconhecemos qual a verão ou edição deste santoral que Maria de Brito teria por referência. Podemossupor tratar-se de uma tradução portuguesa do compêndio de Pedro de Ribadaneira, S.J. (1527-1611).16 No entanto, curiosamente, nega envergar o hábito, invocando não corresponder isso à vontade do pai.17 Cfr. Adriano PROSPERI, Tribunali della coscienza. Inquisitori, confessori, missionari, Turim, Einaudi,1996, p. 523. A respeito da especificidade da condição das terciárias na sua relação com a vida devota,veja-se também Pedro Vilas Boas TAVARES, Beatas, inquisidores e teólogos. Reacção portuguesa aMiguel de Molinos, Porto, CIUHE, 2005, especialmente as páginas 135-153.
11
Convicto das qualidades da penitente - viria mesmo a dizer ter “achado uma das
Almas mais puras, e perfeitas, que hoje vivem no mundo”18 - Frei Bernardino apresta-se
a divulgar a sua convicção por vários cenóbios, como o de Santa Clara de Coimbra,
onde, aliás, pretende que a confessanda professasse para, admito-o sem reservas, “que
nele tivesse uma santa conhecida”19.
Encaminha-a de súbito para a via da oração mental, ao mesmo tempo que tenta
refrear-lhe os rigores da mortificação corporal. Sobre os resultados, tão evidentes
quanto imediatos, recordaria o religioso que, tendo-a instruído uma só vez na oração
mental, logo sentira ela os efeitos do que consistia a contemplação20. Na verdade,
prontamente “começou o Senhor a fazer-lhe grandes, e misteriosas mercês”, a primeira
das quais a visão “com os olhos da alma e do corpo”, de “Cristo com a cruz às costas
correndo-lhe o sangue pelo pescoço”21. A partir de então, a via do recolhimento
oferecer-lhe-ia um sem-número de favores, conduzindo-a, num aparente paradoxo,
através de revelações, visões e profecias, a desafiar as coordenadas do seu próprio agir,
lançando-a na esfera do outro, do tempo futuro, do espaço remoto.
Ao mesmo tempo que cultiva o fértil terreno da mística, o mestre intenta
direcionar as obras meritórias da beata, confiando-lhe a tarefa de as aplicar a três
grandes necessidades da Igreja: a libertação das almas do Purgatório, a salvação dos que
se encontram em pecado mortal e a exaltação do Santíssimo Sacramento. Numa
interessante concatenação entre boas obras e ascese, Maria do Lado decide por isso
colocar três diferentes espécies de cilícios e, à semelhança de São Francisco, repartir o
ano em quaresmas.
Uma missão gloriosa se confiava também à então ainda Maria de Brito, que o
mestre espiritual clamaria “ser uma das pedras fundamentais” em que Deus “quer
levantar novo edifício espiritual neste Reino para louvor e glória de seu santo nome”22.
18 ANTT, Manuscritos da Livraria, n.º 2523, Breve recompilação da vida da serva do senhor, maria dolado composta pelo muito venerável padre frei bernardino das chagas, seu confessor, religioso da ordemdo seráfico padre são francisco e nela lente de artes [...],fl. inum.19 Ibidem.20 Ibidem.21 Ibidem.22 ANTT, Arquivo das Congregações, Lv. 1121, Rellação, e testemunho…inserto em Vida de VeneravelMadre M. do Lado composta p.lo M. R. P. Mestre Bernardino das Chagas seus Confessor Relig.º daordem d N. P.e S. Francisco e nelle Lente d’artes, e sagrada Theologia, Louriçal, Convento do SS.moSacrm.to, 1755, fl. inum.
12
Teria por certo no horizonte Santa Teresa de Ávila e o “apostolado indireto” que, sem
renunciar à vida contemplativa, exerceu23.
Na jovem do Louriçal, tal investidura, que teria na mística um meio por
excelência, inicia-se significativamente com a visão do Anjo Custódio de Portugal. Em
semântica maniqueísta, o anjo revela-lhe, enlutado, dois diferentes cenários do reino,
um de miséria, outro de glória, enquanto uma segunda figura celeste a dirige para uma
igreja onde um grupo de religiosas, de que ela entende ser a prelada, reza em louvor do
Santíssimo Sacramento. Confiava-se a Maria de Brito uma missão salvífica: a glória –
ou resgate - de Portugal, garantida pela oração das monjas suas subordinadas, dela
dependia também.
O destino que se desenhava ganharia definição e consistência ao ritmo de
episódios sobrenaturais que, em catadupa, se sucederiam. É aqui que entra a revelação
da profanação eucarística ocorrida na noite de 15 de Janeiro de 1630 na igreja lisboeta
de Santa Engrácia. Num recolhimento, a jovem vê “junto a si o Cristo pregado em dois
madeiros, com uma corda ao pescoço […] e, com os olhos nela, muito sentido, e
magoado dizendo: Filha, compadece-te de mim, que agora me tornam a crucificar de
novo em Portugal”24. Coincidindo no tempo com o desacato de Santa Engrácia, Frei
Bernardino interpreta-a como visão do mesmo.
Uma motivação muito própria se adivinhava, porém, no ânimo deste frade
capucho, que, após ter pregado um inflamado sermão em desagravo do Santíssimo
Sacramento pelo atentado de Lisboa, fora impiedosamente atacado por um cristão-novo,
a quem o discurso, de timbre fortemente antijudaico, suscitara indignação25. Entretanto,
23 Na santa abulense, este apostolado, estribado num modelo porventura masculino de santidade heroica,traduziu-se numa militância evangélica contra a heresia exercida no respeito pela vivência claustral e pelavia da oração contemplativa, e exteriormente manifesta na reforma do Carmelo e na difusão dosmosteiros da Ordem. Cfr. Jodi BILINKOFF, “Woman with e Mission: Teresa of Avila and the ApostolicModel”, in Giulia BARONE, Giulia; Marina CAFFIERO; Francesco BARCELLONA, Modelli do santitàe modelli di comportamento. Contrasti, intersezioni, complementarità, 1.ª ed., Turim, Rosenberg &Sellier, 1994, pp. 295-305.24 Abadessa do Convento do Louriçal, Compendio da Admiravel Vida da Veneravel Madre Maria doLado, Lisboa, Oficina de Miguel Rodrigues, 1762, p. 50.25 O sermão fora pregado em Maiorca, pequena localidade a escassos quilómetros da Figueira da Foz, decujo convento franciscano Frei Bernardino era religioso. Cfr. História da Fundação..., pp. 34-35. Veja-setambém António de OLIVEIRA, O motim dos estudantes de Coimbra contra os cristãos-novos em 1630,Outubro de 2002. O autor revela que a revolta estudantil está fortemente ligada ao desacato cometidonaquele ano, o qual terá inclusivamente condicionado o seu detonar. A incitar à revolta não terão deixadode indiretamente concorrer certas pregações e manifestações de zelo particularmente exaltadas da parte dealguns eclesiásticos, como terá sido o caso do sermão de Frei Bernardino. Uma consulta do Desembargodo Paço, datada de 11 de Abril de 1630, citada pelo autor supra, refere: “O dezembargador Vasco FreireFerreira que está na cidade de Coimbra em diligencias do servico de Vossa Magestade deu conta por suacarta de 2 do prezente, de como estando hum frade, capucho da Ordem de Santo António do mosteiro da
13
a investida era espiritualmente revelada a Maria do Lado, por cuja intercessão o mestre
milagrosamente sobreviveria26.
Por outro lado, o fato de os pais de Maria do Lado terem contraído matrimónio
na paróquia de Santa Engrácia27, parece igualmente interpelar a casualidade desta
alocação do templo lisboeta no seio da remota vila louriçalense e a genuinidade e
espontaneidade do revelantismo que o caso enforma.
A via mística não deixaria, contudo, de orientar o percurso da beata, que,
também em espírito receberia a inspiração do modo de reparar a ofensa. A imagem de
dois anjos elevando aos céus um cálice e uma hóstia é lida pelo confessor como o
louvor e a honra que, no reino, da afronta haveria de resultar, pois, como sustenta,
“assim como da Sua Paixão e Morte tinham brotado todos os bens da humanidade,
assim, do ultraje recebido na Igreja de Santa Engrácia, em Lisboa, adviriam muitas
bênçãos para os homens”28 (Fig. I.2.).
É nesta altura que os fenómenos do íntimo adquirem uma clara conformação
externa: Maria de Brito decide, acompanhada por cinco companheiras igualmente
terceiras seculares, instituir um lausperene em que, de contínuo, se haveriam de alternar,
decisão que é secundada por nova visão do Anjo Custódio de Portugal, que lhe inspira
ser a exaltação eucarística a mais digna forma de desagravar impiedades29.
Com a introdução do desacato no espetro místico de Maria do Lado, a primitiva
inspiração de um quadro de vida religiosa, entretanto consolidada por novas revelações
e enaltecida pelo incontornável lausperene, ganha renovado sentido e é catapultada para
o patamar do glorioso.
Denunciando a imbricação entre santidade e política que, em registo messiânico,
se vai aclarando, sobre Maria do Lado, escudo protetor perante as ameaças à integridade
Figueira, pregando na segunda dominga desta coresma, na villa de Maiorga, que he perto da dita cidade,dissera alguas couzas, sobre a perfidia dos judeos, e que hum da mesma nação, dos que estavão na igrejafoi esperar o pregador ao caminho, e o espancou por respeito do que disse, pondolhe a espada nos peitos,e dizendolhe alguas demazias [...]”. O episódio daria brado na própria corte, logo se justiçando oresponsável. Simultaneamente, porém, várias vozes se ergueriam na crítica à imprudência de certaspregações, ainda que bem-intencionadas.26 Cfr. Compendio da Admiravel Vida da Veneravel Madre Maria do Lado, pp. 55-56.27 Ao contrário do que a bibliografia aponta, o casamento do pais de Maria de Brito não se celebrara naIgreja de Santa Engrácia, mas na Igreja de Santa Apolónia – pertencente, efetivamente, à paróquia deSanta Engrácia - como atestam os respectivos registos paroquiais. O assento tem a data de 24 deSetembro de 1604 e apresenta como testemunhos Francisco de Abreu, Pero da Costa, António deAlmeida, Gaspar Roiz e Aleixo da Fonseca. (ANTT, Registos Paroquiais de Lisboa, Santa Engrácia.Mistos, fls. 58-58v.).28 Compendio da Admiravel Vida…, pp. 92-93.29 Cfr. Irmãs Clarissas do Louriçal, Vida da Serva de Deus Madre Maria do Lado. Fundadora doMosteiro do Santíssimo Sacramento do Louriçal, Braga, Editorial Franciscana, 1981, p. 39.
14
pátria30, recaem desígnios tão grandiosos quanto “as perdas de Castela o levantamento
deste Reino e as felicidades dele”, que por “obediência de Seu Confessor” profetiza31.
Evocando o poder da militância religiosa na legitimação de argumentos políticos, diria
anos mais tarde o Padre António Vieira serem os templos do Santíssimo Sacramento “as
mais inexpugnáveis fortalezas das Cidades, & dos Reinos.”32
Tendo por pedra angular a assim designada “Vida Revelada”, seriam por
enquanto apenas espirituais as estruturas desta nova fortaleza. Em linha com um
paradigma penitencial e cristocêntrico, a existência observada por estas “Custódias
vivas do Diviníssimo Sacramento”, significativamente em número de trinta e três, seria
uma evocação constante, intrínseca e irremediável da Paixão de Cristo. Espelhos de
penitência, trajariam hábito “pardo” e “vil”, sobre o qual cairia um véu azul celeste, e,
pendendo do escapulário, o cálice e a hóstia; dormiriam sobre “dois madeiros”, uma
tábua para o corpo, um cepo como cabeceira. Constantes também os jejuns, cilícios e
disciplinas. Tão solene quanto a renúncia e por ela garantida, emergia o lausperene de
exaltação eucarística que, ajoelhadas e de mãos levantadas, haveriam as religiosas de
cumprir todos os dias, de dia e de noite, até ao fim dos tempos33.
Ao ser-lhe revelado o sacrilégio e, mais tarde, a forma de o reabilitar, a vidente
fazia-se providencialmente participante de uma tarefa de cunho militante em prol da
ortodoxia e da moralidade e legitimidade do reino. Com efeito, enquanto afronta contra
a Eucaristia, atribuída intempestivamente a um cristão-novo, o caso adentrava-se no
contexto da afirmação doutrinária do dogma eucarístico, importante ponto de cisão em
relação ao protestantismo, e contendia com candentes dissensões sociais e políticas
ligadas, desde logo, à questão judaica e à política filipina, acusada de favorecer os
cristãos-novos34. E, cumulativamente, intercetava uma associação histórica entre
destinos do reino e intervenção providencial e sancionatória do Divino Sacramento35.
30 Cfr. Ronald CUETO RUIZ, “La tradición profética en la monarquia católica en los siglos15, 16, y 17”,AAVV, Arquivos do Centro Cultural Português, Vol. XVII, Paris, Fundação Calouste Gulbenkian, 1982,p. 443.31 Decreto de comutação de licença para fundação (ANTT, Chancelaria de D. Pedro II, Lv. 34, fls. 146 v.– 147 v).32 António VIEIRA (padre), Sermão do Santissimo Sacramento pregado em 1645, in António VIEIRA(padre), Sermões, Lisboa, Oficina de João da Costa, 1679, p. 135.33 Manuel MONTEIRO, op. cit., pp. 190-198.34 Cfr. Paulo Varela GOMES, A cultura arquitectónica e artística em Portugal no séc. XVIII, Lisboa,Editorial Caminho, 1988, pp. 220-222. Retomando o autor citado, cfr. também Maria LuísaJACQUINET, Em desagravo do Santíssimo Sacramento: o “Conventinho Novo”. Devoção, memória epatrimónio religioso, Vol. I, Lisboa, s/n, 2008, pp. 19-22.35 Cfr. João Francisco MARQUES, A Parenética Portuguesa e a Restauração: 1640-1668. A Revolta e aMentalidade, Vol. I, Porto, INIC, 1989, pp. 106-107. O édito de graça de 1627, a ação dos prelados na
15
O caráter teoricamente elaborado da “Vida Revelada” denuncia manifestamente
o influxo de Frei Bernardino. Pois se as visões, no seu sincretismo, se afiguram pouco
claras e por vezes semeadas de pormenores indecifráveis, é o confessor que, instigando
por obediência a penitente a novas revelações, busca a chave da sua inteligibilidade e,
nessa base, estrutura teologicamente uma Regra - que desde logo reclama para a Ordem
de São Francisco -, dotando-a de aceitabilidade canónica. Mas nesta tarefa, que
reconhece arriscada, de cunhar sem mais uma nova Regra, o religioso não está afinal só:
uma visão da confessanda, em que São Francisco entrega a Regra a Frei Bernardino,
parece legalizar misticamente o seu papel, o qual, sendo de mediação, não deixa
também de ser de protagonismo.
Interessa repisar que a inscrição do desacato na vida mística de Maria do Lado é
tão redundante quanto central. Com efeito, nas revelações da Monja de Carrião,
afamada visionária castelhana, ela estaria já predestinada à visão do atentado. Quando,
consumido pelo nefando sucesso, Bernardino das Chagas empreende uma jornada a
Castela no encalço da resposta para o destino das hóstias profanadas, Madre Luisa de
Colmenares36 revela-lhe que as partículas haviam sido levadas por anjos e comungadas
por Maria do Lado37.
Apesar de, em sede própria, o processo ter corrido célere38, o religioso não
demandaria as instâncias oficiais, mas, como se estivesse perante uma questão de foro
misto, a um tempo real e sobrenatural, interpela curiosamente a via mística. Se aqui
vemos a imersão, que este tempo tão bem conheceu, do maravilhoso na vida quotidiana
e o peso da tradição profética, certo é que a simples associação de Maria de Brito a
figuras virtuosas ou a “santas vivas”, corresponde a confirmá-la na virtude.
No leito recebe em comunhão não mental mas real, por mãos de São Francisco e
de São Boaventura - significativamente pilares da fundação da Ordem Franciscana -, as
partículas profanadas no desacato de 1630 e a revelação do destino que os hereges lhes
Junta de Tomar, em Maio de 1629, e o novo édito de graça de 17 de Novembro de 1629 - exarado aescassos dois meses do desacato -, terão agudizado a malquerença contra a gente da nação, instituindo-seem simultâneo, como provação à sustentabilidade do jugo castelhano.36 Da mesma forma que a sua santidade era invocada por Soror Luisa de la Ascensión no Convento deCarrião ou, em Portugal, por uma certa “serva de Deus de Lisboa”, a proximidade do orbe seráficoestreitava-se naturalmente no encalço de visões e profecias, nas quais privava com anjos, santos e mesmocom Cristo, e firmava-se ulteriormente no discurso do confessor, que a comparava a São Paulo, NossaSenhora, São João, São Bernardo, Santa Teresa. (Cfr. Manuel MONTEIRO, pp. 332-349)37 ANTT, Manuscritos da Livraria, n.º 2523, Breve recompilação…, fl. inum.38 Cfr. Auto que se fez do caso de Santa Engrácia (ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição deLisboa, proc. 15952).
16
haviam dado39. Pese o que atestam os documentos - nem o desacato foi cometido pelo
seu alegado autor, o cristão-novo Simão Pires Sólis, por ele injustamente condenado,
nem as partículas saíram do Secreto do Santo Ofício, onde imediatamente após o
atentado foram arrecadadas40 -, a profecia da Monja de Carrião cumpria-se na mesma
dimensão – espiritual – em que fora invocada. Em consentâneo registo, e com claro
acento messiânico, desse leito de quase-morte anunciará Maria de Brito que “desta
Lusitânia há-de sair o Príncipe, que de novo a assenhoreie” e que “este Príncipe haja de
ser Português de nação”41.
Em estado de morte iminente, ungida por anjos, alheada de vontade, que
totalmente confia ao confessor, Maria de Brito é visitada por Cristo crucificado, que lhe
transmite da Chaga do Lado o copioso sangue que daí jorra, o qual ela recolhe,
estendendo-o por todo o mundo e cobrindo com ele os pecadores. Coroando esta
assunção radical, totalizadora, da Paixão, renuncia ao nome de batismo e, por
obediência do confessor, adota o de Maria do Lado42.
Procurando assumir plenamente o estatuto de que fora investida e, por certo, dar
disso exterior testemunho, emite votos em mãos de Frei Bernardino e dele recebe o
hábito da Ordem Terceira Franciscana, ao mesmo tempo que, com um grupo de beatas
igualmente confessandas do religioso, que só posteriormente tomarão hábito, institui, a
19 de março de 1631 um recolhimento em dependências da casa paterna43. Dando um
passo em frente no terreno institucional, e avocando a si a condição de prelada e mãe
espiritual, aceita como religiosas as demais beatas. Ratificando metaforicamente o
quadro composto, repetirá às companheiras ser o confessor a cabeça da Igreja, ela o
corpo e as suas irmãs de hábito os membros44.
Eis que uma vez mais se adverte o conflito entre vontade do céu e vontade do
Homem, entre oficial e oficioso, que o diretor reconhece, mas em relação ao qual ensaia
resposta: os votos não serão tão rigorosos quanto em religião, dirá, mas em causa está
39 Compêndio da Admirável Vida…, pp. 193-194.40 Certidão passada pelo notário, em virtude da ordem recebida dos senhores do Conselho Geral em lhesentregar o cofre - profanado na Igreja de Santa Engrácia, em 1630 - que se encontrava no Secreto daInquisição de Lisboa, ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, mç. 68, n.º 61.41 BNP, COD. 90, Relação e Testemunho…, fls. 67-68.42 Cfr. Manuel MONTEIRO (padre), op. cit. , pp. 44 - 45.43 Este recolhimento fundava-se, porém, com base numa forma de vida a que faltava ainda o necessárioreconhecimento e enquadramento canónico, como, aliás, Frei Bernardino não deixaria de reconhecer. (Vd.História da fundação...,, pp. 47 – 48). O Compêndio da admirável vida aponta como data da tomada dehábito o dia 13 de Abril de 1631.44 ANTT, Manuscritos da Livraria, n.º 2523, Breve recompilação…, fl. 114.
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uma regra espiritual, da alma, a que todos podem aceder entregando o governo dela a
um pai espiritual45.
Entretanto, a 28 de abril de 1632, verifica-se o anunciado trânsito da Madre, que
receberá como mortalha o hábito que o confessor envergara quando atacado em Maiorca
por um cristão-novo. É após a morte que a ideia da fundação religiosa ganhará
densidade. Ao recolhimento já existente, embrião do futuro mosteiro, refere-se
significativamente o confessor como “casa que desejo perpetuada” e da qual se não
perca a memória “até ao fim do mundo”. Em carta às recolhidas alude mesmo a vendas
e permutas de terrenos e a obras que à data se fariam na capela, coro, altar e até
sepultura – de Maria do Lado, subentende-se46. Evidenciando o seu total envolvimento
no projeto, remata, numa tirada tão genuína quanto comovedora: “tenho já hábito novo
[e] sapatos, ontem me chegaram dois mil reis que o guardião me mandou para uma
túnica que hei de fazer para me vestir todo de novo quando abrir os alicerces a nossa
capela e lhe lançarem a primeira pedra.”47
No horizonte de Frei Bernardino estaria, presumimos, mais um monumento à
consagração da memória e santidade de Maria do Lado que uma casa destinada a
albergar uma observância vocacionada para o desagravo perpétuo do Santíssimo pelo
caso de Santa Engrácia, muito embora qualquer das ideações pudesse conduzir a um
mesmo resultado.
No entanto, qualquer intento de validação canónica da bem-aventurança da
Madre conheceria o desfavor da hierarquia eclesiástica: uma visita do Ordinário de
Coimbra atalharia cerce a aclamação de santidade, proibindo sob pena de excomunhão
que se falasse em público ou em privado das suas virtudes e dons sobrenaturais, ficando
a Maria do Lado vedada a comunhão diária e a escolha de confessor Em ação
conjugada, o comissário dos Terceiros retiraria àquela e suas companheiras o hábito da
Ordem Terceira que, é certo, oficiosamente envergavam. O juízo popular, esse, faria jus
à sua consueta volubilidade, julgando como simulação o que pouco antes proclamara
como manifestação da graça. Maria de Brito chegaria mesmo a ser comparada a
45 ANTT, Arquivo das Congregações, Lv. 1121, Vida de Veneravel Madre M. do Lado composta p.lo M.R. P. Mestre Bernardino das Chagas seus Confessor Relig.º da ordem d N. P.e S. Francisco e nelle Lented’artes, e sagrada Theologia, fl. 162.46 ANTT, Manuscritos da Livraria, n.º 2523, op. cit., fl. inum.47 Ibidem.
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afamados embusteiros da época, como a freira da Anunciada, Inês da Gama ou
Domingos Velho48.
O primeiro núcleo de devoção, sediado ainda em propriedades do pai Maria do
Lado, não cessou quando, em 1631, as ações do visitador do bispado e do comissário da
Ordem Terceira Franciscana determinaram a cessação do culto e a proibição da
utilização dos hábitos e insígnias com os quais até então as recolhidas se
paramentavam49.
As diligências de que, em 1631, o caso foi alvo, seriam reforçadas, entre os anos
de 1633 e 1634, por parte do Cabido de Coimbra e da Inquisição50. Não tanto a
santidade enquanto experiência individual e íntima em relação a Deus estava em causa,
quanto a forma, não superiormente sancionada, que, como fato de domínio público,
configurava. Bastos argumentos teriam os custódios da ortodoxia para lançarem mãos
da sua autoridade: no Louriçal, viriam a encontrar uma casa religiosa não superiormente
aprovada, onde uma forma de vida – recordemos a Vida Revelada – que jamais
conhecera chancela eclesiástica era praticada por religiosas cuja profissão se fizera
também à margem dos cânones. Da mesma forma que os estatutos da casa, o hábito das
Escravas do Santíssimo Sacramento e a insígnia que ostentavam não conhecera superior
sufrágio. Ademais, dezenas de pinturas alusivas a êxtases, visões, morte e revelações da
fundadora espiritual distribuíam-se pelas divisões do recolhimento, no que poderia
entender-se como avocação indevida de um estatuto canónico de santidade. Com efeito,
o edifício temporal e espiritual que em torno da madre se erguia, continuava a enfermar
de um carácter putativo, desenvolvendo-se quase invariavelmente ao arrepio do
estritamente instituído.
48 Nas recomposições biográficas em análise, este episódio não é nunca ocultado, atribuindo-se-lhemesmo o valor de um elemento que sublinha, pelo seu contraste, a legitimidade da experiência devota quese entende enaltecer. Cfr., por exemplo, Compendio da Admiravel Vida…, p. 347. É significativo que ocontrolo sobre os sacramentos, neste caso a Eucaristia e a Penitência, servisse a um tempo comopenalização e como caução sobre a ortodoxia de uma existência mística.49 Veja-se o processo respetivo em ANTT, Inquisição de Coimbra, Livro nº 291 (Cadernos do promotor),fls. 830-940.50 AUC, Cabido da Sé de Coimbra, Cx. de documentos avulsos, Autos de Maria do Lado. A provisão quedeterminou a devassa do caso e a elaboração do sumário de testemunhas tem a data de 1 de Dezembro de1633 e é assinada pelo cónego António Álvares, pelo deão Bento Pereira de Melo, pelo chantre D. Jorgede Castro, por João de Figueiredo, Pêro Tavares e Francisco de Andrade. De 9 de Abril de 1634 é o autode execução, realizado pelo arcediago Bento de Almeida, provisor do bispado de Coimbra, da pastoralonde consta a decisão tomada pelo cabido com base nas averiguações ordenadas.
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E, nesta matéria precisa, as normas conheceriam importantes desenvolvimentos.
Se as Constituições Sinodais do bispado de Coimbra51 reservavam aos prelados a
aprovação em matéria de edifícios religiosos e o Concílio de Trento frisava a
necessidade da aprovação episcopal de manifestações de culto e veneração, o breve de
13 de Março de 1625 do Papa Urbano VIII interditava o culto e veneração de santo a
defuntos sem exame e inquirição do Ordinário e aprovação da Santa Sé. E sucessivos
decretos papais viriam entretanto sufragar a prerrogativa da autoridade eclesiástica em
matéria de santidade e precisar os termos da introdução das causas, considerando aí
como “obstáculo perentório” o “culto indebito”52.
Da devassa ordenada pelo Cabido de Coimbra resultaria, pois, o compulsivo
encerramento do recolhimento e a expulsão das recolhidas, além da proibição de
quaisquer manifestações de culto a Maria do Lado. Ordenada seria ainda a interdição de
publicações e a publicitação de fenómenos sobrenaturais, a retirada e parcial destruição
das imagens existentes no beatério, a entrega das insígnias, e, por fim, a remoção, do
túmulo da Venerável, de tudo quanto indiciasse uma veneração só aos santos devida.
Pelas presunções que deles resultaram contra Frei Bernardino, os autos seriam pouco
mais tarde remetidos ao Santo Ofício, não resultando porém em qualquer denúncia53.
Ocorreria perguntar se a rigidez da postura do Cabido de Coimbra, então sede vacante,
não seria porventura relacionável com a ausência da figura individual do antístite, cujas
orientações pastorais, devoções ou idiossincrasias poderiam eventualmente pesar sobre
a posição adotada.
51 Constituiçoens synodaes do bispado de Coimbra, feitas e ordenadas em synodo pelo illustrissimoSenhor Dom Afonso de Castelo Branco Bispo de Coimbra, Conde de Arganil do Conselho Del Rey N. S.[…] impressas em Coimbra, anno 1591, e novamente impressas no aano de 1730 […], Coimbra, RealColégio das Artes da Companhia de Jesus, 1731. p. 212 O Título XIX, relativo à "fundação e reparaçãode Igrejas, Mosteiros, e Ermidas, e da fábrica, e ornamento delas", refere, na sua primeira Constituiçãoque "não se pode edificar Igreja, Mosteyro, nem Hermida, nem levantar Altar sem licença dos Prelados,& sua aprovação." ( p. 212 da edição de 1731).52 Cfr. Giuseppe dalla TORRE, “Santità ed economia processuale. L’esperienza iuridica da Urbano VIII aBenedetto XIV”, in Gabriella ZARRI, Finzione e santità tra medioevo ed età moderna, Turim, Rosenberg& Sellier, p. 235.53 Vd. ANTT, Inquisição de Coimbra, Livro nº 291 (Cadernos do promotor), fls. 830-940.
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2. Do desacato ao Desagravo do Santíssimo Sacramento: contornos da piedade
eucarística54
A recensão, de que inicialmente partimos, da linearidade das origens
fundacionais do Louriçal proposta por Manuel Monteiro, não se traduz, evidentemente,
em descartar o papel catalisador da profanação de Santa Engrácia, mas tão-só em
redimensioná-lo, fazendo-o imergir no profícuo terreno espiritual assinalado pela
prossecução, por Maria de Brito, de um modelo de santidade claustral de perto
caucionada pela direção espiritual de Bernardino das Chagas.
Não podemos, com efeito, reservar ao desacato um valor casual ou meramente
episódico, pois que as suas aflorações e consequências virão a cruzar-se em
profundidade com a história da fundação monástica. Vejamo-lo um pouco mais de
perto.
De todos os atentados sacrílegos ocorridos em Portugal, foi talvez o de Santa
Engrácia o de que maior ressonância auferiu55. Entendido como manifesto da ira divina
pela impiedade dos homens56, dele sairia injustamente inculpado um certo Simão Pires
Sólis, cristão-novo57, intempestivamente condenado à morte de fogueira em sentença
que um erudito do tempo definiria como a “mais iniqua que se havia dado depois da
Paixão de Christo Nosso Senhor”58.
54 Parte do que analisamos neste ponto fora já antes tratado na Parte I da nossa dissertação, já aquireferenciada (Em desagravo do Santíssimo Sacramento: o “Conventinho Novo”. Devoção, memória epatrimónio religioso, Vol. I.).55 Frei João de S. Boaventura, na obra que ao tema especificamente dedica, demonstra ter sido amplo oseu espetro cronológico e vária a sua geografia. Ao primeiro desacato, ocorrido em 126655 na paroquialde Santarém, ter-se-ão seguido os de Coimbra (1362), Capela Real (1552), Porto (1614), Santa Engrácia,naturalmente, Odivelas (1671), Palmela (1779) e, já em Oitocentos, Montemor-o-Velho e Braga. Cfr.João de S. BOAVENTURA (frei), Breve noticia dos desacatos mais notaveis acontecidos em Portugaldesde a sua fundação até agora, e o Sermão do Desaggravo pelos ultimos, comettidos neste mesmo anno,Lisboa, Impressão Régia, 1825.56 Tendo ocorrido em noite de inclemente procela, o sacrilégio pareceu confirmar certas observaçõesmatemáticas segundo as quais o ano de 1630 se revelaria “fatal no mundo” e “prodigioso na terra” , sendopor isso entendido como castigo divino e, como tal, acolhido com redobrado terror. Cfr. Manuel ÁlvaresPEGAS, Tratado Histórico e Jurídico sobre o sacrílego furto, execrável sacrilégio que se fez em aParoquial Igreja de Odivelas, Termo da Cidade de Lisboa, na noite de dez para onze do mês de Maio de1671, Madrid, 1678, p. 33.57 A iniquidade da sentença viria pouco mais tarde a confirmar-se. Um condenado à morte em Orensepelo furto de alfaias numa igreja, terá confessado o crime e referido a inocência de Sólis. (Vd. RibeiroGUIMARÃES, Ribeiro GUIMARÃES, Sumário de vária história, Vol. I, Lisboa, 1872, pp. 82 – 83.)58 Por Acórdão da Relação de 31 de Janeiro de 1631. (Cfr. António Joaquim MOREIRA, Colecção dasmais célebres sentenças das Inquisições de Lisboa, Coimbra e Gôa, Vol. I, 1863, fls. 146 – 149v.). Atranscrição completa da sentença encontra-se ainda noutros escritos, como em Ribeiro GUIMARÂES,
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A culpabilização, célere e escorreita, de um cristão-novo, remete
inevitavelmente para a tensão que se fazia então sentir em relação à “gente da nação”.
Neste sentido, resumiria Freire de Oliveira que, naquela ocasião, todas as classes sociais
estavam “muito irritadas com os christãos novos, porque elles tinham tido recursos e
manha bastante para obterem d’el-rei D. Filippe a carta regia de 17 de Novembro de
1629, que era enormidade!”. Restabelecendo a livre saída do reino dos cristãos-novos,
medida já intentada em anterior édito de graça59, o diploma conheceria acérrima
oposição60. Não admira, portanto, que se tivessem acendido as iras dos povos, na
colorida expressão de Freire de Oliveira, e, simultaneamente, feito recrudescer a
acrimónia em relação ao governo de Castela, convertida agora em “profundo rancor e
em odio declarado”61.
Mais que a ordem instituída, o desacato atingiu em primeira mão o Santíssimo
Sacramento, não inocentemente instituído como intermediário do mal-estar geral. Em
causa estava a ofensa à divindade transubstanciada, cerne da devoção eucarística então
profundamente enraizada no reino e fora dele. Gozando de elevado favor muito antes de
Trento62, o culto do milagre eucarístico viu-se reafirmado e reavivado em consequência
das disposições exaradas por aquele concílio ecuménico, que, na sua sessão XIII,
estabeleceria a presença real de Cristo nas partículas consagradas (sub species),
decretando a legitimidade do seu culto e da veneração do Santíssimo exposto no
tabernáculo63. Tal premissa, importa repisar, fora amplamente contestada pelo
protestantismo durante o século XVI, representando um ponto fulcral de cisão em
relação à doutrina católica. A recuperação desse fundamento e o renovado alento
Summario de varia historia, Vol. I, Lisboa, 1872, pp. 79 - 84, ou nas já citadas obras de Álvaro Pêgas edo Padre Manuel Monteiro.59 O édito previa a livre saída dos cristãos-novos do reino e a possibilidade de habilitação para cargos ehonras seculares.60 Trata-se do édito de graça decretado por carta régia de 26 de Junho de 1627. A fação integristainterporia vigorosa resistência à aplicação do diploma. Ter-se-ia formado a partir do congresso realizadoentre maio a agosto de 1629 em Tomar (no Convento de Cristo), reunindo teólogos, bispos, juristas eletrados em torno do édito de 1627 e da questão dos cristãos-novos.61 Eduardo Freire de OLIVEIRA, Elementos para a História do Município de Lisboa, 1.ª Parte, Tomo III,Lisboa, Tipografia Universal, 1887, p. 338.62 A festa do Corpo de Deus, por exemplo, fora instituída em 1246, em Liège, enquanto a devoção dasQuarenta Horas teve início em Milão, em 1527. A primeira irmandade do SS.mo foi criada em Roma naIgreja dominicana de Santa Maria sopra Minerva, sendo aprovada pelo papa Paulo III em 1539. (Cfr.JoãoFrancisco MARQUES, “A renovação das práticas devocionais”, in Carlos Moreira AZEVEDO (dir.),História Religiosa em Portugal, Vol. II, Lisboa, Círculo de Leitores, p. 568).63Cfr. Alfonso Rodríguez G. de CEBALLOS, “Liturgia y configuración del espacio en la arquitecturaespañola y portuguesa a raiz del Concilio de Trento”, in AAVV, Aunario del Departamento de Historia yTeoría del Arte, Madrid, Universidad Autonoma de Madrid, Vol. III, 1991, p. 43. A sessão foi realizadaem 1551.
22
insuflado ao culto e veneração eucarísticas devem ver-se, portanto, no quadro da
vocação disciplinar e catequética contrarreformista e da afirmação doutrinal do próprio
catolicismo.
Profundo e abrangente foi o alcance das decisões conciliares a respeito do
dogma eucarístico, e foi-o de tal forma que a piedade, as manifestações e a arte religiosa
acabaram por tomar daí em diante, e por vários séculos, caminhos diferentes64.
Capaz de orientar o culto e ritos da Igreja e a espacialidade dos templos, o
Milagre Eucarístico ergue-se, com o caso de 1630, como corolário de um sentimento
compósito que justificará a conversão do desagravo numa arma contra uma impiedade
cujo espetro ultrapassará a sindicância exclusivamente pastoral. Atingidos tinham sido,
portanto, dois inexoráveis sustentáculos do poder: a nobreza - que em parte se revia no
ideário integrista – e a Eucaristia – a que o Reino desde sempre dispensara uma devoção
de carácter verdadeiramente fundacional65.
A reparação da impiedade ficaria cometida à então criada Confraria dos
Escravos do Santíssimo Sacramento, composta por cem fidalgos pretensamente
representantes das mais ilustres famílias do reino. Em sermão pregado pelo caso de
Santa Engrácia, diria, a propósito, o Padre Diogo de Areda, que “esta obrigação [de
reparação] corre muy particularmente a nobreza deste Reyno, porque pello mesmo caso,
que avultaõ mais no poder, devem de avultar mais na piedade, & na Religiaõ.”66
O rei, naturalmente, não ficaria alheio a esta reunião de Grandes. Primeiro entre
pares, Filipe III de Portugal declara, por carta de 11 de julho de 1631, haver por bem
aprovar a ereção da confraria e assentar-se nela e tomá-la debaixo de sua proteção67.
Sob a égide do escravo protetor, que não deixou de se associar a um manifesto cujas
premissas em parte visavam a sua própria ação governativa, toda a ulterior realeza de
Portugal se alistou neste exército de desagravo ao Santíssimo Sacramento.
Ao longo dos tempos, pela Confraria passaram membros de casas tão sonantes
como, entre outras, as do Louriçal, Cadaval, Távora, Vila Nova de Cerveira, Angeja,
64 Cfr. Jean DELUMEAU, Le catholicisme, p. 50, apud João Francisco MARQUES, “A renovação daspráticas devocionais”, p. 563.65 Veja-se, a propósito, Atentados sacrílegos, devoção eucarística e afirmação do poder no Portugal doAntigo Regime. Os casos de Santa Engrácia, Odivelas e Palmela, texto que apresentámos ao Encontro deJovens Investigadores em História Moderna em 2009 (a publicar nas respetivas atas).66 Diogo de AREDA, Sermão que o Padre Diogo de Areda da Companhia de Jesu, fez na Igreja deSancta Justa na cidade de Lisboa, estando o Sanctissimo Sacramento em publico, pello caso que socedona igreja da sancta Engracia da mesma cidade, Lisboa, Oficina de Pedro Craesbeeck, 1630, fl. 12 v.Julgamos ser este o primeiro sermão do desagravo impresso pelo caso de Santa Engrácia.67 AHSPL, Irmandade dos Escravos do Santíssimo Sacramento, Livro do Acordos de 1631 (Lv. 55), fl.3v.
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Lumiares ou Barbacena. Não deixando de associar-se ao poder representado por esta
reunião grandes, figurariam inclusivamente nos assentos as assinaturas de Paulo de
Carvalho e Mendonça e de seu irmão, o Marquês de Pombal.
Com os Escravos, o desagravo tomaria uma feição celebrativa e laudatória que
viria a traduzir-se em duas realizações a vários títulos grandiosas: o Tríduo do
Desagravo e, mais tarde, as Obras de Santa Engrácia. Dos festejos, com assento nos
anais da história religiosa do país, realizados nos dias 16, 17 e 18 de janeiro para
expiação do desacato, oferece-nos o Anno Historico uma tão precisa quanto colorida
descrição:
Todos os annos [os Escravos do Santíssimo] o festejão trez dias, com
luzidissima pompa, […], e nelles, trazem publicamente sobre o peito, pendente
de hum listão encarnado, huma Medalha com os sinaes da sua escravidão, de
que muito de prezão, como devem. Neste primeiro dia, faz a festa a Capella
Real, com assistencia dos Reys, e Infantes; No Segundo, e terceiro, a fazem
varias Religioens por seus turnos, e quasi todas vão em comunidade adorar o
sacramento a diversas horas dos tres dias; Na tarde do ultimo, assistem outra
vez as Pessoas Reays, e na Procissão (com que se dá fim á festa), levam as
primeiras varas do Palio.68
Em 1632, porém, a incumbência da Confraria, até então circunscrita às
celebrações festivas, ao culto e adorno da capela-mor e ao provimento do prior69,
estender-se-ia ao domínio arquitetónico, passando a envolver a reconstrução da capela
profanada70. Talvez não seja descabido lembrar que 1632 corresponde à data do trânsito
de Maria do Lado e, concomitantemente, à construção e consolidação de uma memória
68 Francisco de SANTA MARIA, Anno historico, diario portuguez, noticia abreviada de pessoasgrandes, e cousas notaveis de Portugal, Vol. I, Lisboa, Oficina de Domingos Gonçalves, 1744, p. 103.69 AHSPL, Livro do Acordos de 1631 (Lv. 55), fl. 4.70 Lembramos que sobre os responsáveis pela derrocada impendeu o ónus da construção da igreja nova.Ora, figuram entre os oficiais que aí trabalhavam João Antunes, como mestre pedreiro, ao lado de ManuelPinheiro e António Pereira. Aires de Carvalho sublinha que D. Francisco de Sousa era irmão do arcebispoD. Luís de Sousa, embaixador de D. Pedro II em Roma, e preconizador da fação integrista. Esta novaigreja constituiria, pois, uma reafirmação da vitória do Santo Ofício sobre as pretensões dos cristãos-novos e uma continuidade simbólica do desacato cometido em 1630. (Cfr. Aires de CARVALHO, Asobras de Santa Engrácia e os seus artistas, pp. 36-38).
24
por meio de uma obra arquitetónica. Na aparente coincidência, quem sabe não se
esconda um nexo de causalidade.
A ideia de dar expressão edificada à expiação de uma ofensa ao Santíssimo não
seria incomum à época, encontrando inclusivamente suporte na literatura. Refletindo, no
Capítulo IV da sua Historia Sacra del Santissimo Sacramento Contra las Heregias
destos tiempos, sobre as impiedades perpetradas contra a Eucaristia, Frei Alonso de
Rivera preconizaria “que se deve hazer alguna obra señalada y permanente, como
edificar algun templo en honra del tal desacato”, precisando mesmo
Que adonde se cometiô el delito ay sea la satisfacion. Y assi cõviene q. en
semejantes casos se haga una obra señalada, en honrra del sanctiss.
Sacramento, cõviente a saber un templo muy sumptuoso cõforme a la calidad de
la villa ô del lugar aonde sucedió el escandalo: por ser los t plos las obras
exteriores del culto y adoraciõ latria, devida totalmente a Dios. 71
Mas a extensão do desagravo conhecerá outra expressão ainda, protagonizada
por uma curiosa declinação feminina da irmandade dos cem nobres. As Escravas do
Santíssimo Sacramento, a quem nos referimos, surgiriam, não casualmente, por mão de
D. Isabel de Bourbon, primeira mulher de D. Filipe III, ele próprio irmão e primeiro
protetor da recém-criada Confraria dos Escravos, e compor-se-iam igualmente por
membros da mais distinta nobreza72. "Louvar e servir a Nosso Senhor Jesus Cristo
Sacramentado, em desagravo do sacrilégio que cometeram os hereges na Igreja de Santa
Engrácia”73 constituía a finalidade desta associação, sediada na Igreja do Mosteiro da
71 Frei Alonso de RIVERA, Historia Sacra del Santissimo Sacramento Contra las Heregias destostiempos, Madrid, Luis Sanchez Imprensa de su Magestad, 1626, p. 111. Frei Alonso era pregador geral daOrdem de S. Domingos. Vd. Paulo Varela GOMES, op. cit., p. 236.72 No momento presente, é Escrava Protectora D. Isabel de Herédia, representante da Casa Realportuguesa. Para além das rainhas, numerosas princesas e infantas pertenceram à irmandade, como refereRafael Marçal em “Um grande desacato cometido há mais de 300 anos e cuja lembrança perdura. Asobras de Santa Engrácia e a Instituição das Escravas do Santíssimo Sacramento”, Arquivo Nacional,Lisboa, Ano 10, Vol. 20, n.º 519, p. 813.73 Rafael MARÇAL, op. cit., p. 813. O autor cita o compromisso, possivelmente o primeiro, do qualpoucas outras notícias haverá. A irmandade reger-se-ia, mais tarde, pelos Estatutos reformados editadosem 1914.
25
Encarnação das Comendadeiras de Avis, em Lisboa, e cujo primeiro compromisso data
de 165174.
Entre as festividades e devoções de que se incumbiam, salienta-se, pela
magnificência, um oitavário de desagravo ao Santíssimo Sacramento, com início na
tarde do dia de Corpus Christi75. Segundo a História dos Mosteiros, em cada dia da
festa ficava o “Senhor exposto das tres horas ate as seys, com muzica”, sendo “o ornato
da igreja […] o melhor que possa ser, no que as Irmãs porám todo o cuydado, nam se
izentando alguma de servir o melhor que poder”76. Celebrada com a mais fulgente
pompa, da festa faria também parte uma majestosa procissão que percorria os claustros
ao som de cânticos litúrgicos, precedida das recolhidas e das moças de coro, trajando
estas últimas, “uns mantos brancos dos quais se destacava a cruz floreteada da Ordem
de Aviz”77.
74 Interessa notar que o Mosteiro da Encarnação, depois de arruinado por um incêndio nos anos 30 deSetecentos, foi reedificado por D. João V. Veja-se, sobre o caso, António Caetano de SOUSA, HistóriaGenealógica da Casa Real Portuguesa, Tomo VIII, Coimbra, Atlântida-Livraria Editora, Lda., 1951, p.137.75 Durval Pires de LIMA, História dos Mosteiros, Conventos e Casas Religiosas de Lisboa, Vol. II,Lisboa, Imprensa Municipal, 1972, p. 438. Os estatutos de 1914 referem que, dentro do Oitavário, é navéspera do dia de Corpo de Deus que realmente se comemora o desacato de 1630, sendo esta “a chamadafesta principal da Irmandade” (Vd. Estatutos reformados da Irmandade das Escravas do SantissimoSacramento do Mosteiro da Encarnação da Ordem Militar d’Aviz, Lisboa, Tipografia Pessoa, 1914, Art.º12, p. 11).76 Durval Pires de LIMA, op. cit., p. 438.77 José Pinto de AGUIAR, “Uma visita ao Convento da Encarnação”, Olisipo, ano XVII, n.º 67, Julho de1954, p. 124.
26
3. Um longo processo de Desagravo: a fundação do Mosteiro do Louriçal
3.1. Os primórdios
Na existência de um "modo de vida" de feição monástica, de uma comunidade
observante e de uma sede física, assentavam, subordinadas à vocação específica da
fundação, encarnada por Maria do lado, as bases do Mosteiro do Louriçal. Sobre o local,
investido de natureza prodigiosa, onde a Venerável nascera, vivera e morrera se
ergueriam, qual extensão simbólica do seu próprio corpo, os fundamentos da novel
observância. Esclarece o Padre Manuel Monteiro que o templo terá ficado situado sobre
o local do nascimento da fundadora, posto que
Como aquelle sitio era o em que a serva de Deos nascera, pareceo justo que
assim como nelle dera principio á vida, e á regularidade, que nelle se
observada, se trasladasse para elle o seu corpo, o que se fez no dia 30 de Agosto
do anno de 1652.78
As adversidades canónicas e institucionais não lograriam inibir o fulgor do
projeto, mas talvez antes espicaçá-lo. Como vimos, a constituição desta nova "religião"
funcionava como atestado em favor da santidade da sua venerável fundadora.
Materialmente, o recolhimento lograria sobreviver graças aos bens deixados pelo
pai de Maria do Lado, por seus tios, Ana Cordeira e Afonso da Mota e pelas
contribuições que, em jeito de dote, seriam creditadas pelas primeiras recolhidas79.
Em 1638, Catarina do Sacramento, Filipa das Chagas e Maria Baptista, três das
beatas que haviam dado corpo à incipiente vida comunitária instituída em vida de Maria
do Lado, fundam uma capela pela qual se daria enquadramento legal à gestão do
património cenobítico80. A escritura correspondente revela abertamente que as
recolhidas
78 Manuel MONTEIRO, op. cit., p. 54.79 Veja-se a documentação relativa a propriedades e bens do Convento do Louriçal em ANTT, Arquivodas Congregações, mç. 32, mct. 10.80 Cfr. Parecer de João Lourenço de Almeida de Sousa sobre a obrigação de capela instituída porCatarina do Sacramento, Filipa das Chagas e Maria Baptista em 1638. O parecer tem a data de 1766.(ANTT, Arquivo das Congregações, mç. 32, mct. 10).
27
Desejavão fazer neste Lugr. do Lourical hum Mostr. de Freiras, ou ao menos
hum Recolhimen.to, e q. p.ª esta obra tinhão feito doação entre vivos valedoura
de todos os seos bens, havidos, e por haver.81
Um mosteiro estava, portanto, no horizonte das religiosas e de Frei Bernardino -
a um tempo confessor e procurador daquelas e mentor, ele próprio, da obra. Ao
possibilitar-se, portanto, a receção de bens, provindos, neste caso, das doações
dispensadas pelas postulantes, não só se viabilizava a ampliação da comunidade, quanto
a ampliação do edificado. Vários são os documentos que o atestam. Em 1643, Maria da
Trindade, pretendendo ingressar no recolhimento e dedicar-se ao serviço de Deus,
assina escritura de doação, em nome da capela do Santíssimo Sacramento ereta no
recolhimento, de todos os seus bens presentes e futuros às três recolhidas acima
designadas e a todas as mais que lhes sucedessem por morte. A doação, com função e
natureza de dote, formalmente realizada na casa das “Donzellas Recolhidas
companheiras no serviço de Nosso Senhor”, teria como fim o sustento da candidata e o
aumento e assentamento das obras da casa. Seguir-se-lhe-iam, em idênticos moldes, as
doações de Sezília do Sacramento (julho de 1660), Serafina do Sacramento, meia-irmã
de Maria do Lado (março de 1665), Francisca do Espírito Santo e Catarina de Santo
António (dezembro de 1669). Mais tarde, em dezembro de 1704, não estando o
mosteiro ainda canonicamente fundado, assinam escritura de dote os pais da noviça Inês
Maria do Lado do Menino Jesus. O ato notarial tem lugar na "portaria" do recolhimento
e nele é já feita referência à figura da "madre regente", claros atestados do
robustecimento institucional do cenóbio82.
Objetivo e certeiro, o Padre Manuel Monteiro resume e complementa a
inventariação que ensaiámos. Dirá que as pessoas da localidade
naõ só concorreraõ com o que tinham para a nova fabrica, e sustentação della,
mas hum seu irmaõ [de Maria do Lado], que era o P. Francisco da Cruz […],
deo o que podia pertencer-lhe para o novo Recolhimento, cujo exemplo seguiraõ
81 Ibidem.82 Sobre os bens e propriedades do primitivo Recolhimento, vd. ANTT, Arquivo das Congregações, mç.32, mct. 10.
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as mais recolhidas, fazendo todas os seus bens comuns, como os fieis da
primitiva Igreja.83
Além deste concurso de bens provindos das recolhidas e de Francisco da Cruz,
informa ainda que, para o “novo edifício”, o jesuíta dará “grande calor, agenciando
esmolas, que com as que davão os moradores da Villa, naõ só se fez a Casa, mas a
Igreja.”84
Através de dotes, doações ou legados, o beatério sobreviverá materialmente,
numa primeira fase, graças à família de Maria do Lado. Na hierarquia de créditos,
António do Rego, pai da fundadora, assume-se como figura cimeira. A ele pertencia a
casa onde se instalou o recolhimento e, em grande parte, os créditos aí vertidos dele
derivavam, tendo presente que grande parte da sua descendência - e, por conseguinte, da
sua herança - viria a ingressar no novel recolhimento. As suas quatro filhas, nelas
incluída Maria do Lado, a segunda mulher, e algumas netas e bisnetas, terão garantido,
ao longo de largos anos, o funcionamento da casa, a que os filhos, Padres João Soares e
Francisco da Cruz terão aportado não só benefício material quanto espiritual85.
O limbo institucional que envolveu a alba do recolhimento, no tempo
coincidente com a vacância da Sé episcopal de Coimbra, conheceu uma substancial
alteração a partir do provimento daquela, efetivado em 1638, com o advento do bispo D.
João Mendes de Távora. Aos 28 de Abril de 1640, data aniversária da morte de Maria
do Lado, era solenemente colocada a primeira pedra da Igreja do Recolhimento. Não
casualmente dedicada ao Santíssimo Sacramento, ver-se-ia finalmente sagrada em
164686. Note-se, num aparte, e a acentuar a discutibilidade da eficácia do controlo
exercido pela autoridade eclesiástica, e, no seu reverso, a vitalidade desta fundação
espontânea, que Bernardino das Chagas já rezava missa no recolhimento e nele
instituíra como solene o dia das revelações do desacato87.
83 Manuel MONTEIRO, op. cit., pp. 50-51.84 Idem, ibidem, p. 51.85 Veja-se o estudo de Sílvia ALEXANDRE, O Convento do Santíssimo Sacramento do Louriçal.Doações, compras, rendas (1630-1800), elaborado no âmbito do Seminário de Licenciatura emConservação e Restauro - Ramo de Arte Lusíada apresentado ao Instituto Politécnico de Tomar, Tomar,s/n, 2001. Vejam-se especialmente as páginas 6 a 14.86 Cfr. Manuel MONTEIRO, op. cit., p. 51.87 ANTT, Manuscritos da Livraria, n.º 2523, Breve recompilação da vida da serva do senhor, maria dolado composta pelo muito venerável padre frei bernardino das chagas, seu confessor, religioso da ordemdo seráfico padre são francisco e nela lente de artes [...], fl. inum.
29
Mais tarde, a 24 de Janeiro de 1659, e provavelmente a instâncias do Padre
Francisco da Cruz, de reconhecida influência na corte pontifícia, o Papa Alexandre VII
(1655-1667) concede indulgência plenária à “irmandade, ajuntamento ou congregação
de Terceiras de S. Francisco do Louriçal”88.
Foram paulatinos, mas perseverantes, os passos dados no sentido da consecução
do almejado mosteiro e, concomitantemente, da consagração canónica da Regra. No
entanto, a um novo período de aparente estagnação, novamente coincidente com
vicissitudes inerentes à vida institucional da diocese, cuja sede vagara entre 1646 e
1668, e com o corte de relações entre Portugal e a Santa Sé, sucederia, assinalando-lhe o
termo, o governo pastoral de D. Frei Álvaro de São Boaventura89.
Nesta altura, um renovado alento insufla a história do recolhimento. A 18 de
agosto de 1673, um breve de Clemente X, concede a posse de sacrário à igreja do
recolhimento. Em 19 maio de 1674, D. Frei Álvaro coloca solenemente o Santíssimo na
igreja, em ato que seria tomado como providencial porque assertivo de uma profecia de
Maria do Lado, por Deus inspirada a ver
naquelle sitio huma Igreja feita para seu Senhor Sacramentado, muito armada,
e cheirosa, e que por hum especial Breve do Summo Pontifice vinha colloca
nella o Santissimo Sacramento hum bispo da Religioaõ Serafica, cujas feiçoens
descrevia com miudeza.90
Diz-nos ainda Manuel Monteiro que o bispo
favoreceo muito aquella Casa em quanto lhe durou a vida, porque comprou a
área para se lhe fazer huma bastante cerca, que murou toda á sua custa; e para
mayor largueza, tinha ajustado a compra da casa da Misericordia por huma
88 Meio-irmão de Maria de Brito, o padre jesuíta Francisco da Cruz viria a destacar-se pela erudição e agozar de amplo reconhecimento junto da Cúria Romana, na qual assistiu enquanto revisor dos livros daCompanhia de Jesus, e, não menos, junto da corte, como bem atesta o seu estatuto de mestre e confessorde D. João V. Viria a falecer em Lisboa, na Casa Professa de S. Roque, em janeiro de 1706. (Veja-se, apropósito, António FRANCO (SJ), Imagem da virtude em o noviciado da Companhia de Jesus no RealCollegio de Jesus de Coimbra, no qual se contem as vidas, e virtudes de muytos Religiosos, que nestaSanta Caza foraõ Noviços, Tomo II, Coimbra, Real Colégio das Artes da Companhia de Jesus, 1719, pp.679-681).89 Cfr. Manuel MONTEIRO, op. cit., p. 58.90 Idem, ibidem.
30
Escritura publica, que celebrou com o Magistrado da Vila, e com obrigação de
fazer outra, que he a que hoje existe, á qual tinha ja aberto os alicerces, quando
lhe sobreveyo a morte, que lhe impedio o designio de fabrica hum sufficiente
Convento.91
Importante avanço terá conhecido a construção em tempos de D. Frei Álvaro, de
forma tal que, ao falecer, em janeiro de 1683, a construção da Igreja da Misericórdia do
Louriçal, cujo primitivo edifício seria incorporado no perímetro monástico, começara já
então a erguer-se. De resto, uma escritura de 1682 relativa a casas de residência do
confessor das religiosas do Convento e, do ano seguinte, uma certidão de sisa, parecem
denotar uma franca progressão da empreitada92.
Não seria inusitado em D. Frei Álvaro o favor dispensado ao Louriçal. Da índole
benfazeja do antístite dá-nos o Padre Manuel Fialho viva nota:
Comprou o que chamavam paço do Conde e o deu para casa de convertidas.
Desde os primeiros fundamentos levantou o convento de Religiosas de
Sendelgas e grande parte do do Louriçal. No Santo retiro do Buçaco, dos
Religiosos Carmletias Descalços, fundou vinte ermidas e uma para si, tôdos com
seus retábulos e imagens da Paixão do Senhor; a todas ajuntou aposentos para
viverem Religiosos.93
Encantado com uma missa que dele ouviu, D. Pedro, ainda príncipe, nomeá-lo-ia
Bispo de Elvas. Depois de ter passado pela diocese de Viseu, e vagando o bispado de
Coimbra, foi prontamente feito seu prelado. O Padre Fialho adianta ainda ter executado
“muitas obras de ornato das casas de Deus”, orientando as obras da Sé de Coimbra,
levantando a Igreja da freguesia de S. João e beneficiando a construção da capela-mor
da igreja do colégio da Companhia de Jesus. “Em todos os Bispados", dirá "foi tido por
91 Idem, ibidem, pp. 58-59. Tais termos seriam na prática reproduzidos no Decreto de comutação delicença para fundação, ANTT, Chancelaria de D. Pedro II, Lv. 34, fls. 146 v. – 147 v., que refere que obispo “fizera h a grande cerca bem murada, e tinha prometido acabar e dottar o convento e haver asLicenças, o que pela morte atalhou.”92 Certidão de sisa (1683), ADLRA, Convento do Louriçal, Certidões (ADRLA/Dep. VI/25/A/2).93 António FRANCO (padre; S.J.), Évora ilustrada. Estraída da obra do mesmo nome do P.e ManuelFialho, (publicação, prefácio e índices de Armando de Gusmão), Évora, Edições Nazaré, 1945, p. 200.
31
homem Santo, grandíssimo esmoler, consigo tão parco, que de um capote que tinha 24
anos mandou fazer uns calções, achando que tirava aos pobres o que se gastaria em os
novos.” Não admira que, à morte do prelado, de cuja grandeza e extremada abnegação
correria a fama, vários prodígios se tenham registado94.
A D. Frei Álvaro, falecido a 19 de janeiro de 1683, sucederá na sede episcopal
de Coimbra D. João de Melo, que, segundo o Anno Historico, terá feito “grande parte
do mosteiro de Louriçal”, seguindo porventura, no todo ou em parte, as diretrizes do
anterior prelado. É sob o novo antístite que, 6 de janeiro de 1688, se concede licença
para a fundação monástica95.
Sabemos pela História da Fundação que, por Alvará de 16 de Agosto de 1688,
D. Pedro II atendera à pretensão, invocada por D. Fernando de Menezes, 2.º conde da
Ericeira, de converter em mosteiro o velho recolhimento das terceiras franciscanas. Para
tal, fora servido comutar a licença anteriormente dispensada ao fidalgo para a ereção de
um convento de Agostinhos na Ericeira, intento que, por alguma razão, ficara sem
efeito. Desejando “antes da sua morte fazer a Deos algum serviço”, e tendo em conta a
grande fé nos milagres e profecias de Maria de Brito, que deixara “declaradas por
obediencia de Seu Confessor as perdas de Castella o lovantamento deste R.no e as
fellicidades delle”, D. Fernando propunha-se retomar a obra meritória de D. Frei Álvaro
de São Boaventura que, à sua custa, “fizera h a grande cerca bem murada, e tinha
prometido acabar e dottar o convento e haver as Licenças, o que pela morte atalhou.”
Assim, e “por em todo aquelle Bispado nem os cercumvisinhos haver convento algum
da primeira Ordem e tendo este congrua para se sustentar” - para além da esmola
perpétua concedida pelo conde “todos os annos vinte e quatro mil rs. em dinheiro, hum
moyo de trigo outro de milho e meyo moyo de feyjões, e azeite p.ª a Lampada do
Santissimo Sacramento” -, o rei não hesitaria em subscrever o propósito do seu valido96.
Também a D. Fernando se deveria a construção da arca fúnebre destinada a
celebrar, na morte, a memória de Maria de Lado. Instalado sob a capela-mor da igreja
do antigo beatério, o monumento, destinado a conservar as cinzas da Venerável, exibia
o epitáfio que a devoção do conde fizera compor97. Teria este fidalgo larga motivação
94 Idem, ibidem, pp. 199-201.95 Manuel MONTEIRO, op. cit, p. 80.96 Decreto de comutação de licença para fundação, ANTT, Chancelaria de D. Pedro II, Lv. 34, fls. 146 v.– 147 v.97 Cfr. Manuel MONTEIRO, op. cit, p. 80. Para além de outros cargos, D. Fernando exerceu os de gentil-homem da câmara do infante D. Pedro, deputado da Junta dos Três Estados, vereador do Senado deLisboa, regedor da Casa da Suplicação e de conselheiro de Estado. Vd. Afonso Eduardo Martins
32
para tais desempenhos, bastando para tal considerar as muitas profecias com que a
Madre agraciara alguns dos seus familiares. Sobre D. Henrique de Menezes, seu pai,
Maria de Brito vaticinara que “despois della morrer, havia [...] de entrar em artigo de
morte: e que por milagre, e intercessaõ sua havia de ser livre della.” Desta e “de muitas
outras mercês de Deos, que este Fidalgo recebeu por seus merecimentos, passou
certidaõ firmada com o seu nome.”
Além disso, à empresa aclamatória, glosada no profetismo de Maria do Lado,
estavam também intimamente ligados os Ericeiras. Frei Martinho do Amor de Deus
refere, a propósito, que D. Henrique e D. Fernando de Meneses "se haviaõ retirado"
para o Louriçal "com o sentimento de ver o Reyno de Portugal tyrannizado por
Castella". Mais tarde, porém,
Quando menos se esperava, chegou ao Louriçal a noticia da felice acclamaçaõ
delRey D. Joaõ o IV no primeiro de Dezembro de 1640, ordenando-se a D.
Fernando que fizesse acclamar ao novo Rey nos lugares circumvizinhos; o que
fielmente executou chegando a Lisboa no mesmo dia, em que os Reys tinhaõ
vindo de Villa Viçosa para a sua Corte.98
Já a D. Álvaro de Menezes, irmão de D. Fernando, a madre curara da iminente
cegueira, profetizando ficar “livre de todos os males” e “viver para fazer muitos
serviços” a Deus.99 Resta lembrar que, ao templo lisboeta de Santa Engrácia, e à
devoção que aí se celebrava se ligaram, por gerações sucessivas, os representantes de tal
Casa, que D. João V elevaria ao marquesado na pessoa de D. Luís de Menezes100. E é,
precisamente, no seio da nobre Confraria, das Obras de Santa Engrácia e de uma
fulgurante devoção eucarística que iremos situar D. Luís de Meneses em tão curioso
quanto elucidativo panegírico. Assim profere D. José Barbosa, autor do mesmo:
ZÚQUETE, Nobreza de Portugal e do Brasil, Vol. II, Lisboa, Representações Zairol, Lda., 1960, pp.560-562.98 Martinho do AMOR DE DEUS (O.F.M), Escola de Penitência, caminho de perfeição, estrada segurapara a vida eterna, Lisboa Ocidental, Oficina dos Herdeiros de António Pedroso Galrão, 1740, pp. 573-474.99 Compendio da Admiravel Vida da Veneravel Madre Maria do Lado, pp. 477-478.100 Veja-se o Livro dos Acordaõs de 1761 (Lv. 58), conservado no AHSPL. Dos fls. 10 e 10v. consta,nomeadamente, uma listagem de irmãos mesários que, à época – compreendida entre 1653 a 1807 -,exerciam o cargo de Secretários de Estado.
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No anno de 1672 tocou ao Conde da Ericeira Dom Luiz de Menezes, como
Irmaõ novo, conforme o estilo daquella Real Irmandade, armar a Paroquia de
Santa Engracia, aonde a Nobreza de Portugal com o titulo de escrava do
Santissimo Sacramento celebrava naquelle tempo o desaggravo do mesmo
Senhor sacrilegamento roubado naquella Paroquia em a noyte de 16 de Janeiro
de 1630. Era taõ vasta, como nobre a idea do Conde, e para adornar a Igreja
descobrio huma novidade, que atè agora naõ teve semelhante. Mandou formar
no tecto da Igreja hum Firmamento com todas as Constellações, e Planetas,
representando tudo, como se vè no Globo, com ouro, e luzes furtadas. O Sol
encobria a Custodia com tal arte, que ao tempo de se expor o Senhor, se
começava a mover taõ regulada, e vagarosamente, que ao tempo de se encerrar
o Sacramento, que era perto da noyte, fechava o seu circulo no mesmo ponto,
em que lhe dera principio. Era geral em todos a admiraçaõ de taõ agradável
vista; mas ao Conde ainda se fez mais agradável o que no terceiro dia lhe disse
um Clerigo de conhecida virtude, chamado o P. Manoel Dias, porque lhe
prometeo da parte daquelle Sacramentado, e Desaggravado Senhor, a quem
servira com tanto obsequio, e com tanta despeza, hum filho no mez de Janeiro
seguinte. Para lhe dar credito o dezejo do Conde naõ era necessario, que fosse
tambem fundada no conceito commum de toda a Corte a opiniaõ daquelle
Sacerdote101
Parecendo acompanhar o processo de constituição da elite titular da dinastia de
Bragança - que, na análise de Nuno Monteiro, terá coincidido com a transferência das
respetivas residências para a corte e tido por base a remuneração dos serviços prestados
à monarquia, muitos dos quais ligados ao desempenho militar durante as guerras da
Restauração102 - o percurso dos representantes da Casa do Louriçal terá paralelamente
representado o estreitamento do elo entre a Corte e a vila do Louriçal, ao criar uma
apetência para a causa protagonizada pela Venerável Maria do Lado.
101 D. José BARBOSA, Elogio do Illustrissim. e Excellent. Senhor D. Francisco Xavier de Menezes IVConde da Ericeira, Lisboa, Oficina de Inácio Rodrigues, 1745, pp. 17-18.102 Cfr. Nuno Gonçalo Freitas MONTEIRO, Elites e poder. Entre o Antigo Regime e o Liberalismo,Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2003, p. 111. Como vimos, tanto D. Pedro II como D. João V,ambos fundadores e protetores do novo mosteiro de clarissas, tiveram como nobres de seu grandevalimento D. Fernando de Menezes e seu descendente D. Luís, 1.º Marquês de Louriçal.
34
Com D. Pedro II, este processo ganharia o vigor que não lograra alcançar nos
reinados precedentes, pondo fim a um hiato de cerca de meia centúria que suscitaria nos
mentores da causa o temor da inexequibilidade das profecias da Venerável. A mesma
meia centúria, aliás, a que correspondera a estagnação das obras de Santa Engrácia até
que o Pacífico desse expressão material à sua identificação com a causa103. É
interessante que, ao restabelecimento do Tribunal do Santo Ofício, a 22 de agosto de
1681, se sigue, a 31 de agosto de 1682, a colocação solene da primeira pedra da nova
Igreja de Santa Engrácia, projeto do arquiteto João Antunes.
Recorde-se que foi também este o monarca que, por decreto de 5 de junho de
1663, tomou o Santíssimo Sacramento como “protector das armas portuguesas” e, de
seguida, consignou a prestação anual, por um período de dez anos, de uma esmola de 4
mil cruzados para as obras da capela-mor do templo profanado104. Mais tarde, em 1699,
viria a instituir como protetor do "género do tabaco" o Santíssimo Sacramento da
freguesia de Santa Engrácia, para as obras de cuja paroquial passaria a fazer doação
anual de 100.000 réis daquele género105.
Nesta intrincada mas previsível teia, não deixariam também de marcar presença
as Escravas do Santíssimo Sacramento, a quem a fama de virtudes da serva de Deus
levaria D. Isabel de Castro106, comendadeira do Mosteiro da Encarnação, a solicitar a
Frei Bernardino uma relíquia da madre107. Em anexo à almejada relíquia, o frade
encarregar-se-ia de enviar, saída de seu punho, uma súmula biográfica da prodigiosa
confessanda108.
A devoção a Maria do Lado, a proximidade de D. Fernando e de D. Frei Álvaro
de São Boaventura constituirão seguramente parte do contexto que animou D. Pedro II a
assumir a direção dos destinos do recolhimento, propondo-se convertê-lo em mosteiro
clausurado, para além de beneficiar anualmente a construção com seis mil cruzados. De
modo tal que,
103 A capela-mor de Santa Engrácia encontrava-se em construção havia 41 anos - até que, em 19 defevereiro de 1681, na sequência de uma noite de violento temporal, acabaria por desabar, arrastandoconsigo a destruição de parte do templo.104 Por decreto de 7 de Junho de 1663. AHSPL, Livro do Acordos de 1631 (Lv. 55), fls. 76 – 77.105 Idem, ibidem, fl. 133 v. Contém a cópia do Alvará régio (de 10 de Dezembro de 1703).106 Julgamos tratar-se da mulher do 1.º conde da Ericeira, D. Diogo de Menezes, este último tio do 2.ºconde D. Fernando.107 Cfr. Manuel MONTEIRO, op. cit., pp. 330-331.108 Idem, ibidem, pp. 333 – 349.
35
sem reparar em despesa, que certamente havia de ser grande, mandou ao
Louriçal o P. Francisco da Cruz, e com elle hum insigne Architecto daquelle
tempo, chamado Joaõ Antunes, que em muitos edificios sumptuosos desta Corte
tinha acreditado o seu nome com os primores da arte; e este, tomando as
medidas necessarias, fez a planta, e em fim se lançou a primeira pedra para a
obra no dia de Santa Francisca Romana a 9 de Março de 1690 […].109
Por breve de 24 de Maio de 1692, do Papa Inocêncio XII110, a primitiva casa de
terceiras franciscanas é elevada à regular observância. O documento dá resposta ao
pedido de Serafina do Sacramento (1634-1697), "Superiora, e mais donzelas do
Recolhimento das Virgens Seculares da Vila do Louriçal", para que o Santo Padre
aprove os estatutos do futuro mosteiro e nomeie as fundadoras - Soror Helena da Cruz,
do Convento da Esperança de Lisboa ou, na sua falta, Soror Cecília Sebastiana, do
Mosteiro da Conceição de Beja, ambas religiosas de Santa Clara, em conjunto com
outras duas ou três Irmãs da mesma Ordem e Instituto, a nomear pelo Núncio
Apostólico ou, na sua falta, pelo Bispo de Coimbra. Anuindo parcialmente à pretensão
das recolhidas, o Pontífice encarrega D. João de Melo de redigir os estatutos da casa,
determinando a sua sujeição canónica à Primeira Regra da Ordem de Santa Clara e às
Constituições de Santa Coleta e a especificidades regulamentares consentâneas com a
"Vida Revelada"111.
Apesar de substantivo, o impulso não garantiria a consumação da fundação,
como bem revela a Biblioteca Lusitana quando circunstanciadamente alude a esta fase,
em relato que espontânea a abertamente sublinha o quanto um processo de alcance
institucional se faz de estreitos contatos individuais. Assim o expressa:
Ultimamente quem com mayor empenho intentou concluir taõ gloriosa empreza,
foy o P. Francisco da Cruz Jesuíta, Mestre, e Confessor do nosso Sereniífimo
Monarcha D. Joaõ o V. o qual depois de ter collegido todas as noticias
dispersas pelas obras dos que lhe precederaõ neste assumpto, adquirio outras
muito copiosas na Curia Romana, quando nella assistio pelo espaço de sete
109 Idem, ibidem, p. 60.110 Prevê-se igualmente que a fundação seja feita por duas religiosas clarissas do Mosteiro da Conceiçãode Beja, passadas primeiro pelo Convento da Esperança, em Lisboa.111 Cfr. Manuel MONTEIRO, op. cit., pp. 80-81.
36
annos com o lugar de Revisor dos livros da Companhia de JESUS. Naõ chegou
a concluir esta obra, porque a morte envejosa do applauso, que della lhe havia
resultar, o privou da vida na Casa professa de S. Roque a 29 de Janeiro de
1706. O ardente dezejo de que esta obra se continuasse, impellio ao
Excellentissimo Conde da Ericeira D. Francisco Xavier de Menezes dignissimo
Censor da Academia Real, cujo nome serà sempre memorável nos Fastos da
erudição Sagrada, e profana para pedir instantemente aos Padres Jesuitas lhe
quizessem dar os M. S. do P. Francisco da Cruz, que benignamente concederão
por retribuição ao singular afecto, de que a Companhia era devedora a este
Cavalhero112.
A dilação temporal da empreitada concitaria, de fato, nova ação promotora do
Padre Francisco da Cruz, que, confessor do então ainda príncipe D. João113, convocou
sabiamente a santidade da irmã junto de quem poderia materialmente secundá-la,
apelando com êxito às instâncias próprias das construções votivas. Relata o Padre
Manuel Monteiro
succedeo que o Principe adoecesse gravemente, e que os Medicos nos 5 de
Fevereiro do anno de 1700 o mandassem sacramentar [...]. A ancia, com que [o
padre Francisco da Cruz] dezejava a sua melhoria, ou, o que he mais provavel, a
Providencia Divina lhe suggerio que desse a beber a Sua Alteza huma pouca de
terra da sepultura da serva de Deos sua irmãa [...]. Assim o fez, e dando
tambem a Sua Alteza huma Cruz, que fora da mesma serva do Senhor, Sua
Alteza bebeo a terra, beijou a Cruz, e pendurando-a á cabeceira fez juntamente
voto a Deos Nosso Senhor, e á sua serva, de que, livrando com vida, e saude
daquella doença, e chegando a tempo, em que o pudesse fazer, fundaria o
Convento, a que ella déra principio e o dotaria, e ornaria á sua custa.114
112 Diogo Barbosa MACHADO, Biblioteca Lusitana, Lisboa, Tomo II, Oficina de António Isidoro daFonseca, 1747, pp. 139-140.113 Idem, ibidem, pp. 61 e ss.114 Idem, ibidem.
37
O voto, assinado pelo príncipe a 18 de Janeiro de 1702 – significativamente num
dos dias em que os Escravos, com o selo régio, celebravam o Tríduo do Desagravo em
Lisboa –, assumiu feição legal através do Alvará de 20 de Abril de 1707, pela qual se
estabeleceu igualmente a concessão pelo monarca de uma tença anual de 2400 réis, a
aplicar, enquanto dotação, tanto para a “fabrica delle, como p.ª o sustento das d.as
Religiosas”.115 O diploma refere a intenção de “acabar o convento” que se “principiou a
fundar”, e não a de o fundar ab initio, aspeto que, a vários títulos, mais adiante
explicitados, se nos afigura essencial. Estabelece ainda a lotação da casa, fixando em
trinta e oito religiosas o número máximo de religiosas, as quais entrariam sem dote,
posto que, declara o monarca, “sou obrigado a darlhes sustentação”116.
Mas D. João V proveria ainda de outra forma à fundação, dotando a casa com
várias alfaias litúrgicas minuciosamente anotadas em decreto de 18 de novembro de
1707117. Uma relação da Prata que o mesmo s.r mandou dar ao mesmo Convento do
Louriçal revela a doação de uma "custódia grande", dois cálices e respetivas patenas,
um vaso para a comunhão, uma porta para o sacrário, uma porta para o comungatório,
um Cristo crucificado, uma sacra, um evangelho e um lavabo, seis castiçais grandes
para o altar-mor, seis jarras com seus ramos, três lâmpadas, umas galhetas com seu
prato, um gomil, e prato de credência, um turíbulo e uma naveta, uma estante para o
altar-mor, uma caixa para hóstias, uma campainha e seis varas para o pálio. Já o Infante
D. Francisco ofereceria "quatro bons piveteiros", o Infante Dom António, uma boa
casula, o Infante D. Manuel, dois ciriais, e a Infanta D. Francisca, dois tocheiros.
A este, que constitui um valioso repositório de obras de arte sacra, o rei aduz
paramentos têxteis, supomos que de correspondente valia material, que constam da
listagem de Ornamentos que o mesmo senhor mandou dar para o mesmo Convento do
Louriçal118. A leitura do inventário devolve-nos textualmente: um ornamento de tela
branca com seu pálio, um ornamento de tela carmesim, cinco ornamentos de damasco
das cinco cores da igreja, a saber, branco com seu pálio, carmesim, verde, roxo, negro,
um cortinado de damasco franjado de ouro para as festas, um cortinado para o altar-mor
de damasquilho franjado de retros para o ordinário, e de ruão para os mais altares, seis
alvas boas com suas rendas, e amitos, doze toalhas para o altares, doze corporais, doze
115 BNP, Secção de Reservados, Mss. [cx.] 10, n.º1 – Collecção de cartas e outros papeis (D. João III aD. Pedro II), 55 v.116 Ibidem.117 Ibidem, 56 v.118 Ibidem, pp. 57-57 v.
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sanguinhos, doze toalhinhas de mãos, seis missais, livros para o coro das freiras, três
sinos e a alcatifa119.
O templo estaria, pois, disposto para, a 8 de maio de 1709, receber as quatro
fundadoras canónicas - Madres Arcângela dos Serafins Evangelista, Maria Teresa do
Sacramento, Maria de Jesus Evangelista e Maria de Santa Ana - que, no termo de longa
e morosa jornada iniciada no Mosteiro do Calvário de Évora, nele ingressavam
solenemente120. Não é casual esta proveniência eborense, já que tal cenóbio não só
pertencia ao padroado régio, quanto nele se professava a Primeira Regra da Ordem de
Santa Clara.
Primeiramente recebidas na Igreja Matriz por D. António de Vasconcelos e
Sousa, bispo-conde de Coimbra, as monjas, acompanhados pelo Cabido e músicos da
Sé, seriam encaminhadas para a portaria do mosteiro. Já na clausura, o prelado
procederia à Eleição da Abadessa e dos demais cargos conventuais e sufragaria a Regra
e constituições a observar. No noviciado, ingressariam entretanto as antigas beatas do
velho recolhimento: Francisca de Jesus, Mariana de Santa Clara, Inês Maria do Lado,
Josefa do Menino Jesus, Maria do Carmo e Domingas de Jesus. Pouco mais tarde, a 1
de junho, o monarca indigitava as três primeiras religiosas admitidas a tomar hábito:
Teresa de Jesus Maria, Cândida Maria e Inácia Teresa121. Com a definição deste
primeiro quadro institucional, dava-se mote à vida monástica.
Da busca do sentido desta recém-fundada derivação do sentimento religioso,
emerge também a presença da Ordem franciscana, cujo desenvolvimento em Portugal
foi crescente desde a sua medieva implantação122. Na verdade, se o desagravo girou em
torno da coroa e de seus mais próximos representantes e servidores, onde foi produzido
e cultivado, doutrinalmente foi assumido pela Ordem Franciscana, tão próxima, ela
mesma, daquele primeiro núcleo. Numa ocasião em que o zelo e a piedade se
mostravam particularmente acesos no todo dos cristãos, os franciscanos não deixariam
119 Ibidem.120 É interessante notar que estas religiosas passaram pelo Convento da Esperança, em Lisboa, antes deseguirem para o Louriçal. Pese a dotação concedida pela Infanta D. Maria, a comunidade religiosa doCalvário observava estritamente a primeira Regra de Santa Clara, renunciando, por isso, ao sustento a quea sua fundadora procurara prover. (Cfr. História da Fundação..., p. 87). Do mesmo convento lisboetasairiam também, quase oitenta anos mais tarde, algumas das madres fundadoras do Mosteiro doDesagravo de Lisboa.121 Curiosamente, só por Breve do Papa Clemente XI, de 27 de junho de 1715, é concedida a graça de orei e seus sucessores na Coroa nomearem as noviças.122 A propósito da evolução da Ordem no nosso país, veja-se Fernando Jasmins PEREIRA, “Implantaçãoe desenvolvimento da ordem franciscana em Portugal”, O Franciscanismo em Portugal. Actas, Conventoda Arrábida, 1994.
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de revelar protagonismo. De fato, a ofensa à Eucaristia contundia a intensa devoção
eucarística característica dos irmãos pobres, levando quantas vezes a práticas de
extremada crueza. Curiosamente, as partículas consagradas da profanação de Santa
Engrácia seriam dadas a Maria do Lado, já o vimos, por mãos franciscanas: por São
Francisco e São Boaventura, pilares da fundação da própria Ordem. Antes disso, porém,
já as recolhidas haviam abraçado, a instâncias de Frei Bernardino, a Ordem Terceira,
dentro da qual fariam mais tarde votos públicos, e a que se manteriam fiéis ao serem
integradas na sua segunda Ordem, que teve em Santa Clara um exemplo sublime de
devoção ao Santíssimo Sacramento123.
Oportunamente, Eugenio d’Ors faz notar “a influência franciscana, vasta e
intensa, iluminando toda a civilização portuguesa renascida, no que se refere às ideias,
como em todo o reportório das formas”124. Pondo o acento na ação de D. João V
enquanto mentor de tão larga influência, a Dedicatória do Claustro Franciscano de Frei
Cláudio da Conceição explicita:
He de V. Magestade tudo o de que se constitue este Claustro Serafico, não só
por edificado no seu Reyno, e Conquistas, como tambem pelo singular disvelo,
com que trata de sua conservação, e augmento; assim o publicão as grandiosas
esmolas, com que a todas as Casas da Religião socorre, jà para a reedificação
de humas, e jà para a nova erecção de outras, que a não ser isto a todas tão
comum, muito sufficiente prova erão desta verdade o Real Convento de Mafra, o
Mosteiro do Louriçal que àlem de o dotar com seis mil cruzados cada anno,
outras ponderaveis esmolas tem recebido, como de presente se vé na de
quarenta e cinco mil cruzados, que para complemento do seu Templo lhe
destinou [...]. Não só no material deste Claustro se conhece o vigilante cuidado,
com que o repára, mas juntamente no espiritual e muito, que atende a seu
mayor auge, e serviço de Deos. Não he menos attendivel o especialissimo amor,
com que sempre zeloso trata V. Magestade do explendor deste Serafico Edificio,
123 Santa Clara tem como principal atributo uma custódia, alusão ao milagre que obrou quando, fazendo-se acompanhar de um cofre com a Eucaristia, conseguiu afastar os sarracenos que se preparavam paratomar a cidade de Assis (ou, noutra versão, o Mosteiro de São Damião). Sobre este aspecto específico daiconografia de Santa Clara, vd. Rosa GIORGI, Symboles et cultes de l’Église, trad. de Chantal Moiroud,Paris, Éditions Hazan, 2005, p. 49.124 Eugenio d’ORS, O Barroco, trad. de Luís Alves da Costa, Lisboa, Vega, 1990, pp. 122-123. Colhemosinspiração do estudo de António Filipe Pimentel, que cita esta mesma passagem da obra do autor catalão.Cfr. PIMENTEL, Arquitectura e poder. O Real Edifício de Mafra, Lisboa, Livros Horizonte, 2002, p.122.
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porque são innumeraveis as graças com que o faz mais brilhante, e lustroso;
[...]; e sobre tudo o haver-se V. Magestade constituido, não só Patrono, àlem de
Senhor, porèm juntamente Filho Terceiro daquelle seu tão amado Pay, e nosso
Patriarca o Serafim humanado S. Francisco125.
Para a promoção do Instituto do Louriçal convergiria, naturalmente também, a
devoção régia consagrada ao Santíssimo Sacramento. Diria, a respeito, Manuel
Monteiro:
Naõ podia deixar de promover o Divino culto quem tanto ama a
Sabedoria, sabendo que toda a Sabedoria traz de Deos o seu principio, e
recebendo-a do Senhor della, recebeo a de o saber obsequiar: Escondido, e
invisivel no Sacramento, o adora, como se o vira, e o crê, como se o naõ vira,
Lynce para adorá-lo, cego para crê-lo, como hum processional triumpho
incomparável, e em nenhuma outra parte visto, acompanha este Augustissimo
Sacramento, julgando que pompa taõ magnifica, e decorosa ainda he pequena
para obsequio da Magestade Sacramentada; porque a mede pela grandeza
propria, e pela Divina.
Edificou no Louriçal hum Convento de Religiosas Capuchas, Escravas
do Santissimo Sacramento, e lhe consignou a renda necessária, para que livres
do cuidado das temporalidades, se applicassem aos Divinos louvores, que nellas
saõ perennes. Pareceo-lhe pouco honrar a virtude; quis fomentá-la para que
crescesse, sustentá-la para que subsistisse.126
125 Frei Apolinário da CONCEIÇÃO, Claustro Franciscano, erecto no Dominio da Coroa Portugueza, eestabelecido sobre dezeseis Venerabilissimas Columnas, Lisboa Ocidental, Oficina de António Isidoro daFonseca, 1740. O excerto apresentado foi extraído da Dedicatória (não paginada).126 Manuel MONTEIRO, Elogios dos Reys de Portugal do nome de Joaõ, traduzidos Na línguaPortugueza dos que compôs na Latina o Padre Manoel Monteiro, Lisboa, Oficina de Francisco da Silva,1749, pp. 121-122
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4. A Regra do Desagravo (O.S.C.)
4.1. Fontes normativas e textos legais
Sob o signo de devoções e afinidades espirituais reiteradamente seladas, o
Mosteiro do Louriçal assumiu uma Regra que, não obstante informada pelo carisma dos
frades menores, extraiu do contexto próprio em que emergiu e da renovação do
monaquismo feminino pós-tridentino uma importante condição de dinamismo e
originalidade.
O Desagravo surgiu, com efeito, num tempo longo e especialmente rico,
assinalado a montante pelo influxo renovador da Reforma Católica e, a jusante, pelo
ápice de um declínio que, desde meados de Setecentos, foi calando no seio da Igreja.
Ao impulso doutrinal e catequético tridentino, não ficaram evidentemente
alheias as Ordens femininas, sobre as quais aspetos candentes bastamente se
contemplaram na sessão XXV do Concílio. Impôs-se e generalizou-se a clausura,
redefiniram-se critérios de entrada em religião, estabeleceram-se limites de detenção de
propriedade e cometeu-se à autoridade diocesana a caução e vigilância da observância
do preceituado através da visita aos mosteiros. Ao incidir também sobre a veneração de
relíquias e imagens sagradas, sobre a prática sacramental e litúrgica, sobre a natureza
pedagógica da imagem e a expressão que a mesma deveria tomar, Trento logrou uma
penetração incontornável na vida regular, que o controlo exercido pelo corpo
eclesiástico e, internamente, pela hierarquia regular cumulativamente assegurou127.
Sob o espírito da Reforma Católica, várias casas e famílias religiosas nasceram e
várias outras se reformaram. No continente nacional, a vida de contemplação em
clausura e sine proprio terá ganho cerca de quarenta cenóbios, de que as Ordens
Franciscana, nas suas diferentes famílias ou jurisdições, Carmelita Descalça e
Concecionista reivindicam o protagonismo128.
Contudo, se Trento se impôs ao todo do universo cenobítico, não por isso
determinou a uniformidade do mesmo. E, à suposta heterogeneidade entre casas de
fundação anterior e posterior à Reforma, soma-se, em plano sincrónico, a diversidade
entre observâncias e entre casas de uma mesma Regra.
127 Vd., no que respeita à arte, José Fernandes PEREIRA, "O barroco do século XVIII", AAVV, Históriada arte portuguesa, vol. III, Lisboa, Círculo de Leitores, 1995, pp. 12-27.128 Vd., sobre o tema, o Capítulo IV ("Ordens Religiosas"; pp. 129-201) de Fortunato de ALMEIDA,História da Igreja em Portugal, Vol. II, Porto/Lisboa, Livraria Civilização Editora, 1968.
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É no seio desta diversidade que devemos avaliar o Desagravo, cuja identidade
resulta não tanto de cada um dos seus aspetos específicos, mas da peculiaridade do seu
conjunto. Esta especificidade, elemento certamente abonatório no contexto da afirmação
do Instituto no seio de uma Igreja reformada e, naturalmente, no quadro - competitivo -
das demais Ordens regulares, seria reivindicada pelas emergentes clarissas, que, no
Compendio da Admiravel Vida da Veneravel Madre Maria do Lado, afirmam
claramente:
Posto que se professe aqui a primeira Regra de Santa Clara, os Estatutos sam
particulares, e mui distinctos dos que se observam nos mais conventos da
mesma Reforma. Temos huma Regra particular, que he a nossa vida, á qual
chamamos Vida Revelada.”129
Fator distintivo e legitimador da vida claustral, a "Vida Revelada" crismava a
identidade das monjas do Desagravo. Misticamente revelada à fundadora, a existência
observada por estas “Custódias vivas do Diviníssimo Sacramento”, significativamente
em número de trinta e três, seria uma evocação constante, intrínseca e irremediável da
Paixão de Cristo. Espelhos de penitência, trajariam hábito “pardo” e “vil”, sobre o qual
cairia um véu azul celeste, e, pendendo do escapulário, o cálice e a hóstia; dormiriam
sobre “dois madeiros”, uma tábua para o corpo, um cepo como cabeceira. Constantes
também os jejuns, cilícios e disciplinas. Tão solene quanto a renúncia e por ela
garantida, emergia o lausperene de exaltação eucarística que, ajoelhadas e de mãos
levantadas, haveriam as religiosas de cumprir todos os dias, de dia e de noite, até ao fim
dos tempos130.
Veiculado por Frei Bernardino, o carisma franciscano informava, como vemos, a
estrutura do novel Instituto. Com efeito, a vida das irmãs deveria
ter por regra as principaes couzas, q. N. P.e S. Franc.co tinha por devoção, q.
jejuaraõ as sete quaresmas como elle fazia naõ comendo ás sestas feiras, nem
129 O excerto consta de uma das notas introdutórias do Compendio da Admiravel Vida da VeneravelMadre Maria do Lado, Lisboa, Oficina de Miguel Rodrigues, 1762.130 Cfr. Manuel MONTEIRO, op. cit., pp. 190-198.
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nos dias de jejum da Igr.ª q. padecesse morte, e chegasse a cozinha só tres dias
da quaresma131.
Esta forma de vida superiormente outorgada terá orientado a vida das beatas do
recolhimento nos primeiros tempos. Quando D. Frei Álvaro pretendeu reduzir o
recolhimento a casa clausurada, é provável que tenha pensado em converter esta
primária formulação em estatutos subordinados ao preceituado pelo Concílio de Trento
e pelas Constituições Sinodais aplicáveis132.
Segundo sabemos, os primeiros textos legais destinados ao cenóbio terão sido
elaboradas, por ordem episcopal, pelo Padre Francisco da Cruz (S.J.) 133, e, mais tarde
revistos pelo também jesuíta Padre Manuel de Oliveira. Assim refere António Franco,
dando largo ênfase ao protagonismo do meio-irmão da Venerável:
Porem a memoria mais ilustre, que de si deixou este Padre, foi o Convento do
Sacramento do Louriçal de Religiozas da primeira observância de Santa Clara,
sogeito ao Bispo de Coimbra. [...] Esta [Maria do Lado] vivendo ali com grande
exemplo, & retiro, foi ordenando suas cazas a modo de Convento, a que o Padre
Cruz assistia com esmolas, athe que o Serenissimo Rey Dom Joaõ Quinto se fez
fundador deste Mosteiro, por memoria, & honra do Padre Cruz seu Mestre, que
lho recõmendara. [...] O Padre lhe deixou feitas suas constituições, que depois
se approvaram, & porque se governam. […] Em 24 de Abril de 1711 fizeram
profissam as primeiras Noviças. Assistio o Bispo de Coimbra Dom Antonio de
Vasconcellos, entre outras pessoas de letras assistiram por petiçaõ do Bispo o
nosso Padre Manoel de Oliveyra. Lente de Prima de Theologia em o nosso
Collegio, & o Padre Antonio Galvam, Lente de Prima de Moral. Ao Padre
Manoel de Oliveyra cometteo o Bispo antes de as approvar, as constituições,
131 Manuel MONTEIRO, op. cit., p. 195.132 Vd. Constituiçoens synodaes do bispado de Coimbra, feitas e ordenadas em synodo pelo illustrissimoSenhor Dom Afonso de Castelo Branco Bispo de Coimbra, Conde de Arganil do Conselho Del Rey N. S.[…] impressas em Coimbra, anno 1591, e novamente impressas no aano de 1730 […], Coimbra, RealColégio das Artes da Companhia de Jesus, 1731.133 Sobre Francisco da Cruz, veja-se Constituições das Religiosas da primeira Regra de Santa Clara doConvento do Louriçal, mencionadas em Diogo Barbosa MACHADO e Bento José de Sousa FARINHASummario da Bibliotheca luzitana, Lisboa, Oficina de Antonio Gomes, 1786, p. 67. Tenha-se ainda emconta Diogo Barbosa MACHADO, Biblioteca Lusitana, Vol. II, pp. 139-140.
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que fizera o Padre Cruz, nellas somente pareceo cercear alguns preceitos, pera
livrar as Religiozas de escrúpulo.134
A aprovação canónica dos estatutos, cremos que os redigidos por Francisco da
Cruz - as Constituições das Religiosas da primeira Regra de Santa Clara do Convento
do Louriçal, a que se terá perdido o rasto135 -, ficaria garantida pelo breve de Inocêncio
XII de 24 de maio em 1692 e pela autorização episcopal de D. João de Melo. O
documento pontifício esclarece que o recolhimento “foi fundado com autoridade do
Ordinário, debaixo da Regra da Terceira Ordem de S. Francisco e de Sta. Clara”, que os
estatutos foram dados a ver e rever aos cardeais da Santa Sé e que, atendendo no seu
parecer e no “voto e resolução” do bispo de Coimbra, que remeteu aos ditos cardeais,
ficam os ditos estatutos, “revistos e aprovados pelo mesmo” cardeal Pedro Mateus,
confirmados e aprovados com autoridade apostólica, “ficando tudo o que se observa em
contrário, írrito nulo e inválido”.
Desta superior chancela terão saído as Constituiçoens e Leys porque se häo de
governar as Religiosas do Convento do Santíssimo Sacramento do Louriçal da
Primeira Regra de Santa Clara da Jurisdicçäo Ordinaria do Illmo. Sr. Bispo de
Coimbra136, documento manuscrito que terá inspirado as homónimas constituições,
editadas em 1822 e destinadas a cada um dos mosteiros da observância.
Contudo, a fundação canónica do Mosteiro, em 1708, irá refletir-se numa pelo
menos pretensa anulação, por provisão do bispo-conde D. António de Sousa Coutinho,
dos anteriores estatutos até que novos estatutos se redigissem. Uma provisão do bispo,
de 4 de março de 1709, assim estatui:
134António FRANCO (SJ), Imagem da virtude em o noviciado da Companhia de Jesus no Real Collegiode Jesus de Coimbra, no qual se contem as vidas, e virtudes de muytos Religiosos, que nesta Santa Cazaforaõ Noviços, Tomo II, Coimbra, Real Colégio das Artes da Companhia de Jesus, 1719 (sobre Franciscoda Cruz, pp. 679-681). Do mesmo teor que este texto, há, do mesmo autor: FRANCO, António (SJ), AnoSanto da Companhia de Jesus em Portugal. Nas memórias breves e ilustres de muitos homens insignesem virtudes com que Deus a enriqueceu, distribuídas pelos meses e dias de todo o ano, 1.ª ed., Porto,Biblioteca do “Apostolado da Imprensa” Editora, pp. 43-44.135 Cfr. Fernando Félix LOPES, Fontes Narrativas e Textos Legais para a História da OrdemFranciscana e Portugal, Madrid, 1949, p. 200). As Constituições e leis por que se hão de governar asreligiosas..., impressas em Coimbra em 1822, repetem-se para todos os mosteiros do Desagravo, sendotambém observadas nas demais casas não regrais inspiradas naquela observância.136 Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Existe com a cota I-13,04,006 [000568].
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fazemos saber que se por nos constar, que as Constituições feitas, e aprovadas
por Autoridade de nosso antecessor o Ill.mo Sr. D. Joam de Mello que se
observarem no mesmo Conv.to dirigido por authoridade Ap.ca ordinária, e Real
se não poderiam inteiramente guardar por serem desuzas, e em parte
impraticaveis, o que se nos fez certo por votos de pessoas devotas e virtuozas e
pella deligencia, com que tambem as mandamos rever em nossa prezença;
portanto conformandonos Com Seu parecer nos rezolvemos a suprillas, e
recolhellas anos, emquanto não fazemos especiais Constituições, e estatutos p.ª
o dito Conv.to, em que logo que nos for possivel poremos em execução.137
O mosteiro ficará, pois, sujeito à Primeira Regra da Ordem de Santa Clara, às
Constituições de Santa Coleta e a especificações várias que remetem para a "Vida
Revelada", tais como a obrigação do lausperene de oração mental ou vocal diante do
Santíssimo no Coro e a dedicação, por uma religiosa ou noviça nomeada semanalmente,
de uma missa, coroa de Nossa Senhora ou disciplinas por intenção do monarca ou da
Casa Real.
Manuel Monteiro dirá, sem reservas, que a comunidade se rege por estatutos
dispostos por D. António de Sousa Coutinho,
que os consultou com muitas pessoas doutas, e virtuosas, e entre ellas com os
Padres Francisco Pedrozo, e Antonio de Faria desta Congregação [do
Oratório], cujas virtudes, e letras foraõ bem notorias; e dellas tinha Sua
Magestade taõ alto conceito, que para as suas Reaes determinaçõens se dignava
de os honrar, ouvindo o seu parecer, e muito especialmente no que pertencia a
esta fundaçaõ do Louriçal.138
137 Copia da Provizam, q. o Ill.mo Bispo Conde mandou passar sobre a Regra, e Constituições, que hamde guardar as Religiosas. A cópia, datada de 4 de Março de 1709, foi redigida por Francisco MacielMalheiro, da Câmara Eclesiástica de Coimbra. Encontra-se inserta no Auto de chegada das M.esFundadoras ao Convento do Sm.o Sacramento de V.ª do Louriçal, e Elieçam de Abb.ª que fés o Ill.moBispo Conde, de 8 de Maio de 1709. (Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, Ms. 546, fls. 143-146).138 Manuel MONTEIRO, op. cit., pp. 141-142.
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Esta mudança - que parece insinuar certa transferência da influência dos jesuítas
em prol dos oratorianos - representa, cremos, não um voto a favor da cristalização da
matriz da Regra, emanada na "Vida Revelada", mas a necessidade de uma superior
adaptação a um registo plenamente institucionalizado e funcional. Tornava-se não só
urgente dotar de aceitabilidade canónica o viver das religiosas quanto também provê-lo
de exequibilidade, no respeito, contudo, pelo património espiritual da casa.
A Ordem de Santa Coleta seria, na altura, a que permitiria a melhor coordenação
entre o ideal originário das clarissas e a Primeira Regra de Santa Clara. Além disso, era
uma Regra que representava uma reforma dentro da Ordem de Santa Clara no sentido
do regresso à pureza das origens. Ivo Carneiro de Sousa faz notar, a propósito, a
importância de D. Leonor na introdução não só das Coletinas, como da própria 1.ª
Regra de Santa Clara (através da introdução da primeira). À rainha terá cabido obter do
Papa Alexandre VI a bula que novamente institucionalizou a opção pela Primeira Regra,
e permitiu fixar o número de religiosas em trinta e três139.
Nas Clarissas do Desagravo, a definição da vida claustral ficava complementada
pelo Manual de Ceremonias, de 1708, referente à “forma de lançar os Habitos,
Profissoens, Capitulos”, documento pela data corresponde aos primórdios da vida
monástica. O Compendio de Ceremonias, de 1736, de âmbito bem mais extenso, deverá
ter substituído aquele primeiro Manual, parecendo refletir o desenvolvimento dessa
mesma vida e corresponder, também pela sua datação, ao final das obras do cenóbio140.
O Compêndio, elaborado pelo então confessor das religiosas, revela igualmente o
respeito pelo substrato anterior de práticas e rituais. O seu autor dirá mesmo no Prólogo
que "Em tudo, o que escrevi, fiz particular estudo de me ajustar com os Cerimoniaes
mais reformados da nossa Ordem, e com os custumes santos, com que VV.RR. foraõ
educadas.”141
Apenas se conhece hoje a edição de 1822 do texto das Constituições, que repete
o mesmo conteúdo para os três mosteiros da mesma Ordem: Louriçal, Lisboa e Vila
Pouca da Beira. Estas normas constituirão seguramente uma reimpressão atualizada das
Constituições concebidas ou aprovadas por D. João de Melo e aprovadas em 1692,
sendo, no entanto, posteriores a 1715, data do breve de Clemente XI, nelas citado. Terão
139Trata-se de uma Bula de Alexandre VI datada de 3 de maio de 1501. Cfr. Ivo Carneiro de SOUSA, "Arainha D. Leonor e a introdução da reforma colectina da Ordem de Santa Clara em Portugal", AAVV, Lasclarisas en España y Portugal: Congreso Internacional, Salamanca, 20-25 de septiembre de 1993.Actas., Vol. II, pp. 1033-1071 (p. 1043).140 O Compendio é anterior a 1736, tendo sido formalmente aprovado a 10 de outubro de 1735.141 Compendio de Ceremonias, Prólogo.
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sido estas, portanto, que sairão da provisão de D. António Caetano de Sousa, podendo,
no entanto, ter integrado alterações entretanto sugeridas pelo bispo de Coimbra D.
Miguel da Anunciação nos anos 50 de Setecentos. É o que concluímos da existência,
anexa a uma cópia, datada de 1752, dos Estatutos assinados por D. João de Melo, de
documento de reforma dos mesmos elaborada por D. Miguel142.
Bem mais tardio, o Kalendario Geral Para o uso dos Religiosos Observantes, da
Santa Provincia de Portugal, e de todos aquelles, que usão do Kalendario da mesma
Provincia. Junta-se no fim o q. pertence ás Religiozas da Conceição, e do Desaggravo,
e mais algumas particularidades, manuscrito com data de 1858 de que poucas
informações detemos, reflete a adaptação das antigas Constituições a um período no
qual, em termos estritamente canónicos, estas não poderiam já ser observadas, ao
mesmo tempo que dá testemunho da manutenção, conquanto oficiosa, da vida religiosa
sob o carisma do Desagravo143.
Mosteiro da Contrarreforma, o Louriçal e, evidentemente, as casas afiliadas,
integra uma definição estrita de clausura, que em concreto remete para Constituição
Sacrosanctum do Papa Urbano VIII e para as Constituições de Gregório XIII144. Não
apenas vista como forma de controlo, a clausura assume-se como natural inferência de
uma absoluta e inapelável união com Deus, já que as religiosas "tanto mais vivirão
unidas com Deos, quanto se julgarem mortas para com o mundo”145.
Igualmente radical era a vivência da pobreza. O despojamento, que se refletia na
impossibilidade de ingresso com dote e de detenção individual de tenças, juros ou
esmolas, mas apenas na posse coletiva de bens a título exclusivo de esmola, bem assim
na inexistência de serviçais, tinha como reverso uma total dependência institucional em
relação a doadores e beneméritos146.
Já a ação cautelar e morigeradora sobre a vida religiosa no seu concreto derivava
da dependência jurisdicional em relação ao prelado diocesano, a quem se cometia a
execução de visitas pastorais e a implementação da confissão e direção espiritual.
142 "Uma reforma à luz dos estatutos, dada por frei Miguel, Bispo de Leyria". Este documento é anexo àsConstituições existentes na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e tem a cota I-13,04,006 [000568].143 Kalendario Geral Para o uso dos Religiosos Observantes, da Santa Provincia de Portugal, e de todosaquelles, que usão do Kalendario da mesma Provincia. Junta-se no fim o q. pertence ás Religiozas daConceição, e do Desaggravo, e mais algumas particularidades, 1858. Existe na Biblioteca ProvincialFranciscana de Lisboa/Seminário da Luz.144 Constituições e leis, pp. 56-58.145 Idem, ibidem, pp. 60-61.146Idem, ibidem, p. 31.
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Mas, a estes que glosarão preceitos comuns a tantas outras casas regulares
imbuídas do espírito reformista, as recém-fundadas Clarissas do Desagravo aduziriam
substanciais particularidades, definidas, na sua essência, pelo percurso da sua própria
fundação. À intimidade, evidente e intrínseca, com o carisma franciscano, somava-se a
intensa ligação aos mentores históricos, aspeto com particular expressão no capítulo dos
sufrágios, que o mosteiro prometia dedicar à "Alma do Senhor Rei D. Pedro II e seus
Sucessores, que forem falecendo147.
Mas seria no capítulo da prática ritual e devocional que o novel instituto se
salientaria. À devoção a São Francisco, a Santa Clara, a Santo António, a Nossa
Senhora da Conceição, a São Miguel Arcanjo ou a Maria do Lado somava-se,
naturalmente a devoção ao Santíssimo Sacramento, que se revestia de aparatosos
contornos rituais. Além da prática do lausperene de Adoração148, merece destaque o
Tríduo do Desagravo que, festejado nos dias 16, 17 e 18 de janeiro, fixa a fidelidade à
memória do desacato de 1630. Contemplado no Compêndio de 1736, no capítulo
relativo às Procissões149, por ele tomamos conhecimento de que a comunidade religiosa
celebrava o tríduo e da forma própria que este deveria assumir. Nos dois primeiros dias,
havendo exposição do Santíssimo, era rezado o ofício divino “no Coro a Matinas, e
Vesperas, na mesma fórma, com que se costuma rezar nas Festas de primeyra Classe, e
com as mesmas Ceremonias, e numero de Cantoras”. De igual modo se cantava em
“todos dos tres dias o […] Te Deum laudamus” e se comemorava a Eucaristia “tanto a
Vesperas como a matinas” entoando-se a respetiva antífona “com toda a Solemnidade.”
A procissão tinha lugar no último dia, a 18 de Janeiro, aproximando-se, na sua essência,
da celebração do Corpus Christi150. Saía o cortejo da igreja e percorria, precedido pelo
padre confessor que, sob o pálio, levava a custódia, as ruas da vila, regressando
novamente ao templo. No seu interior, e no tempo em que durasse a procissão, a
cantora-mor recitava o Pange lingua. Antes do encerramento do Senhor, num gesto que
tanta comoção suscitava, o sacerdote benzia os fiéis com a custódia.
Enquanto festa religiosa, o tríduo reveste uma capacidade única de congregação.
Em torno do desagravo, que soleniza e comemora, une num mesmo tempo e sob uma
147 Idem, ibidem, p. 110.148Idem, ibidem, p. 78.149 Sobre o tríduo, vd. Valerio do SACRAMENTO (frei), Compendio de ceremonias escripto para o usodas Religiosas Capuchas do Real Convento do Santissimo sacramento do Louriçal, Coimbra, Oficina deLuís Seco Ferreira, 1736, pp. 149 - 150.150 A descrição da procissão encontra-se no parágrafo referente à celebração do Corpus. (Cfr. Valério doSACRAMENTO (frei), Compendio de ceremonias... pp. 143 - 144).
49
mesma matriz contextos e vivências tão díspares como as que vemos associadas aos
Escravos do Santíssimo, nos grandiosos faustos que exibem na capital, às irmãs
Escravas, no recolhimento do Mosteiro da Encarnação e, por fim, na pungente
homenagem da comunidade clariana.
50
4.2. Regra e codificação material
Na linha de Braunfels, segundo o qual numa instituição monástico-conventual a
Regra é, depois das Sagradas Escrituras, o mais importante objeto de meditação, e a arte
e o espaço do cenóbio combinam o mais puro idealismo com o mais estrito
funcionalismo151, não deixaremos de olhar o Desagravo como concreção material e
espacial do desagravo enquanto ideal evangélico e programa espiritual. E, como
interpretação da Regra de acordo com o espírito dos tempos152, vê-lo-emos também, na
sua intrínseca funcionalidade, como uma realidade mutável que busca adaptar-se a
realidades - ligadas a condicionalismos canónicos, económicos e inclusivamente
urbanísticos -, que a vivência comunitária passa sucessivamente a incorporar.
Ser a presença viva do divino sofrimento a fim de o reparar – fulcro do
desagravo do Santíssimo - é uma assunção radical que a arquitetura deve o mais
amplamente testemunhar. Cumpre-nos, pois, averiguar a transposição que o Desagravo
representa e o alcance da expressão que configura.
Conquanto informem a arquitetura e lhe infundam significado, os preceitos
regrais não por isso se instituem como premissas das quais, por si sós, se possa deduzir
a definição planimétrica e volumétrica do edifício, pelo que vários fatores e invariáveis
deverão ser também tomados como proposições na conformação de um tal resultado.
Apesar de indelevelmente informada pela observância, o templo, pela excelência
da sua função e, talvez também pela sua abertura ao culto público, revela maior
permeabilidade a condicionalismos vários, desde o gosto particular do fundador e
mentores da construção às correntes artísticas em presença e à complexa circunstância
da encomenda.
No entanto, as constituições são claras a respeito de certos aspetos relativos à
contenção decorativa, definindo-se o número de altares da igreja, estatuindo-se sobre a
sobriedade das vestes das peças de imaginária e proibindo-se taxativamente à abadessa,
sob pena de privação “de voz ativa e passiva para sempre”, despesas superiores a dois
mil reis anuais com imagens, capelas, sacristia e igreja153. Determina-se, na verdade,
que na "Igreja não haja mais de tres Altares, como está determinado nos estatutos
151Cfr. Wolfgang BRAUNFELS, Monasteries of de Western Europe. The architecture of the orders,Princeton, Princeton University Press, pp. 9-12.152Cfr. BRAUNFELS, op. cit., pp. 9-12.153 Cfr. Constituições e leis, p. 30.
51
Collectaneos [Est. Sta. Colecta, cap. 2]; estes estejão sempre decentemente ornados e
paramentados, segundo as cores, que manda a Rubrica do Missal Romano.” Ademais,
as imagens de Cristo, Nossa Senhora e santos anjos não deverão expor-se “vestidas nos
hábitos de algumas Religiões, nem de outra fórma, que a que se estipula, por costume
antigo, usar na Igreja”. Proíbe-se ainda que “daqui em diante se não admittão no
Convento, ou na Igreja mais Imagens de vestidos.”154 Nas capelas interiores, na igreja e
sacristia deveria igualmente evitar-se "toda a superfluidade assim nos gastos como no
numero, e vestidos das Imagens.” Uma vez mais, sob pena de ficar “privada de voz
activa e passiva para sempre”, a abadessa deveria abster-se de consentir despesas com
imagens, capelas, sacristia e igreja, que ultrapassassem anualmente os dois mil réis155.
Enquanto dotados de carga simbólica, os elementos imagéticos deveriam
secundar a temperança das emoções e não suscitar indevidas sublimações, como os
estatutos bem reconhecem ao proibir às religiosas o cuidado das imagens ou de algum
altar por mais de um até dois anos, “para que a devoção continuada não venha a
degenerar em vicioso apego com distrahimento do espirito.”156
A separação entre comunidade e sacerdote e fiéis, decorrente do regime e voto
de clausura, implicou a existência de uma série de mediadores materiais cuja conceção
representa um discurso em si mesmo. Separados da "igreja de fora", desenvolviam-se,
em posição diametralmente oposta ao altar-mor, os coros, alto e baixo, que permitiam a
um mesmo espaço o acolhimento de vivências ancoradas em paradigmas
necessariamente dissemelhantes.
Referem as Constituições que a “Grade do Coro alto terá o comprimento e altura
necessaria, e será de ferro, e bastantemente apertada, e pela parte de dentro terá portas
com duas fechaduras, cujas chaves terá uma a Abbadeça, outra a Sacristãa, e só se
abriráo para os Officios Divinos.” Quanto às portas do mesmo coro, “terão duas rotolas,
ou gradinhas, para que estando fechadas, se possa ouvir Missa do Coro, e ver o que se
passa de noite na Igreja [e] entre as portas e grade haverá uma cortina preta, que tome
todo o vão, e só [se] poderá correr para ouvir Missa, ou Sermão, e quando o Santissimo
estiver exposto.” 157
Foi a emergência destes coros que levou à eleição do acesso lateral do templo
em detrimento da entrada axial, que naturalmente se manteve nas casas do ramo
154 Idem, ibidem, p. 29.155 Idem, ibidem, p. 30.156 Idem, ibidem, p. 29.157 Idem, ibidem, pp. 68-69.
52
masculino da Ordem. Em abono da clausura, foi ainda criado um antecoro (presente,
neste caso, em ambos os coros) como meio de suavizar a transição entre espaços de
distintas naturezas.
Era neste “coro de cima”, em tempos chamado “igreja de dentro” - e que muitos
mosteiros conceberam, no quadro da importância que a época barroca dispensou à
liturgia, como “autênticas obras de arte total em que a arquitetura e escultura, a pintura e
outras artes se aliam para criar um conjunto unitário de exaltação da religiosidade da
ordem”158 –, que as religiosas, em absoluto recato, rezavam o ofício divino (sem, no
entanto, recorrerem ao cantochão ou ao órgão, proibidos pela Primeira Regra, mas
apenas ao rabecão, de acordo com o “modo capucho”). E era também aí que, revezando-
se, se devotavam “de joelhos, com as mãos levantadas” ao sagrado lausperene, a que
poderiam dedicar oração mental ou vocal, “conforme a sua devoção, ou conselho, que
tiverem do Confessor.”159
Testemunhando a mesma separação canónica que o seu homónimo do piso
superior, o coro baixo apresentar-se-ia igualmente cerrado por grade de ferro cujas
partes laterais eram providas interiormente por duas portas, fechadas estas a duas
chaves, e por “um encerado negro posto de tal arte, que possa levantar-se, ou tirar-se em
todas as funções, excepto á Communhao, que será só o que baste para este effeito.”160
Para além de acolher o comungatório, aberto de um dos lados do gradeamento, o
coro estava especialmente vocacionado para a receção e acolhimento de ocasiões
solenes ou de carácter extraordinário – cerimónia de profissão das noviças, práticas e
exortações das visitas canónicas, capítulos de culpas, eleições, discussão ou assinatura
de alguma informação quando não possível no confessionário ou locutório -, conquanto
pudesse prever algumas exceções desde que informadas pelos devidos rigores. Daí que
a possibilidade de falar abrindo a porta da grade só seria viável desde que o interlocutor
fosse “algum Principe da Igreja; quaes são os Senhores Bispos, Arcebispos Patriarchas e
Cardeaes"161.
Adstritos ao coro baixo e ao tipo de função que lhe fora consignado, situavam-
se, “abertos lateralmente à grade”, os confessionários, acerca dos quais a Regra comum
às várias casas do Desagravo ditara:
158 Nelson Correia BORGES, op. cit., p. 55.159 Constituições e leis..., pp. 71-74.160 Idem, ibidem, pp. 70-71.161 Idem, ibidem, pp. 70-71.
53
Haverá dois, ou tres Confessionarios na parte, que ficar mais commoda, e um
delles terá tambem commodidade para nelle se fazerem as visitas, dos quaes as
chaves da parte de dentro terá a Abbadeça, e da parte de fóra, de um delles, o
Padre Confessor, e dos outros a mesma Abbadeça162.
Participantes da sacralidade do todo, desenvolviam-se ainda, conexas à igreja,
dependências das quais, salvo a informação sobre a sua própria existência, pouco ou
nada nos chegou. A sacristia estaria também munida da respetiva roda163, que
fisicamente mediava a comunicação entre a sacristã do mosteiro e o sacristão ou, em
lugar deste, o padre, confessor ou capelão.
Da Sala do Capítulo, divisão normalmente dotada de um retábulo com a
representação dos patriarcas da Ordem164, apenas sabemos ser utilizada uma vez por
semana, salvo nos raros casos em que, por alguma razão maior, se convocava
extraordinariamente o capítulo. Aí se ouviam as culpas e acusações e se aplicavam os
castigos e penalidades. Era esse também o espaço em que se comemoravam os
benfeitores e se procedia às eleições.
A necessidade de comunicação entre a clausura e a realidade que lhe é exterior
justifica a solicitude da arquitetura monástica na criação de uma série de pontos
habilmente ideados a fim de proporcionar a abertura da claustra em salvaguardando a
observância dos preceitos regrais.
Corporizando esta ideia de abertura condicionada, surge-nos, em primeiro plano,
a portaria, significativamente desdobrada em “portaria de fora” e “portaria de dentro”.
Também designada como vestíbulo, este espaço funcionava, em certa medida, como
cartão-de-visita para quaisquer estranhos à clausura. Ao teor dos estatutos, a portaria
seria dotada de “duas portas, uma para a Cerca, outra para o interior do Convento”, para
além de uma outra porta que fechava “para o interior do Convento todas as casas da
Portaria, Grade e Roda”165. A portaria conduzia à casa da roda que, de forma controlada,
permitia a receção de objetos e bens provindos dessa outra dimensão do viver. Acerca
desta roda da portaria, postulam as Constituições dever ser feita de tal sorte que “não
caiba uma pessoa, nem de fóra se possa ver cousa alguma”.
162 Idem, ibidem, pp. 85-86.163 Idem, ibidem, pp. 130-131.164 Cfr. Nelson Correia BORGES, op. cit., pp. 52-53.165 Constituições e leis..., p. 47.
54
Espaço exclusivo das casas religiosas femininas, o locutório, ou grade, estaria
munido de “grades de ferro, e pontas do mesmo para fóra, e por dentro [...] duas latas de
metal, ou folha de Flandres do mesmo tamanho, quasi unidas, com pequenos buracos
para passarem as vozes, em fórma que nada se veja por elles”. Haveria, ademais, “um
panno, ou véo pregado” a recobri-las, enquanto as latas estariam “tão fixas e pregadas
na parede", para que jamais se conseguissem tirar "sem artificio de pedreiro, ou
Carpinteiro”166. Mesmo no contacto com estranhos à comunidade, tornava-se assim
possível preservar e perseverar na clausura, até porque a conceção do locutório previa
um certo distanciamento entre ambas as grades, para além de que, por via de regra, as
visitas estavam limitadas aos pais e parentes próximos, sendo mesmo a estes interditas
em determinadas épocas do tempo litúrgico167.
Como modo complementar de controlar a comunicação, a arquitetura proveu-se
de uma cela contígua à roda e à grade, sobre a qual se determina “que de dia possão
assistir a Porteira, Companheira e Escuta da semana, de tal sorte, que estando nella,
possão ouvir e ver o que a Porteira diz e faz na Roda”168. A porta da clausura, por sua
vez, não deveria nunca ser aberta “antes de nascer o sol, nem depois de ser posto”. Só o
prelado, visitador, confessor, aliviador, médico e cirurgião poderiam ter-lhe acesso, mas
sempre na companhia da abadessa ou vigária e de duas discretas. De resto, quaisquer
assuntos a tratar com clérigos apenas teriam lugar no locutório, grade ou confessionário,
pois que todos os outros locais da clausura estavam sujeitos a preceitos especiais.169
Em consonância com os rigores praticados, estava também vedado o alívio que a
existência de um mirante poderia eventualmente proporcionar. De facto, nenhum
mosteiro de religiosas do Desagravo o haveria de possuir, preferindo-se remeter os
momentos de recreação e lazer ao espaço limitado pela cerca, onde o contacto com a
natureza propiciaria o necessário desanuviamento das monjas, evitando
simultaneamente expô-las à visão do mundo exterior.
Ainda assim, o tempo de recreação seria rigorosamente controlado, obedecendo
a um calendário próprio e a regras de conduta que incluíam a proibição de estar a sós, de
tocar ou cantar.170 Contrariando a tendência que se ia fazendo sentir desde o século
166 Idem, ibidem, p. 48.167 Nelson Correia BORGES, op. cit., p. 44. O autor apresenta como exemplo a Quaresma e o Advento,épocas em que seria proibido qualquer contacto com o exterior.168 Constituições e leis..., p. 49.169Idem, ibidem, p. 50.170 Constituições e leis..., pp. 100-101.
55
XVII, em que a vivência do rigor preconizado pela Reforma Católica conduziria ao
merecimento de uma certa aliviação, o Desagravo parece tê-la em grande medida
dispensado, revelando uma vivência muito própria do conceito de clausura.
Pode concluir-se, pois, que, no Desagravo, a abertura ao exterior – entendida
numa aceção ampla que contemplava o próprio recinto intramuros -, se assumiu como
cedência a uma estrita necessidade em relação à qual a arquitetura se dotou dos mais
habilidosos expedientes. Afinal, nem mesmo perante espaços quase exclusivamente
acessíveis às religiosas o mosteiro faria qualquer espécie de cedência, prevendo, para
além da dita roda a intermediar a cerca e o núcleo clausurado, a existência de grades de
ferro a cerrar todas as janelas que caíssem para o exterior do mosteiro171.
Integrariam o espaço da clausura trinta e três celas individuais pertencentes às
também idealmente trinta e três religiosas que comporiam a pequena comunidade das
Clarissas do Desagravo. Propiciadora do recolhimento, da meditação e do absoluto
silêncio, a individualidade das celas não representava qualquer negação ao ideal de vida
comunitária172, daí que as Constituições que, em relação ao tema, dedicam extensas
linhas do seu rigoroso clausulado, preconizem o regime de rotatividade na ocupação dos
cubículos, a possibilidade da sua abertura pelo exterior e a quase absoluta privação de
bens a que pudesse imputar-se qualquer apego pessoal173.
De seu, as religiosas teriam apenas roupa, livros espirituais (previamente
aprovados pelo confessor) e breviários, instrumentos de mortificação (umas disciplinas
e dois cilícios) e de lavor (penas, linhas, agulhas, dedal e tesoura) e, a insinuar um plano
mais intimista mas inteiramente controlado, uma “arquinha com chave”, onde poderiam
guardar papéis relativos à sua “consciência e espírito”, e cujas dimensões não
ultrapassariam os dois palmos de comprimento e um e meio de altura e largura.
Imagem de severidade, as celas compunham-se, de resto, por uma série de
objetos a todas comuns. Uma barra como cama, um cepo como cabeceira e dois lençóis
de estamenha (aos quais, em caso de necessidade, se juntaria um cobertor) formavam o
local de repouso, enquanto uma “banquinha tosca”, uma “gaveta aberta” destinada à
roupa e uma “cortiça, ou esteira grossa” como assento completavam o mobiliário do
171 Idem, ibidem, p. 59.172A adoção de celas individuais, que propicia o isolamento, o silêncio e a meditação, tornou-secanonicamente possível a partir de 1666, data da bula In Suprema do papa Alexandre VII. Apesar disso,já anteriormente várias casas haviam instituído tal prática. Diz-nos o autor que, apesar “de autorizadas ascelas individuais, nem por isso os dormitórios deixaram de ser espaços comuns. As divisórias das câmarasdeviam justapor-se de forma contígua, para que os preceitos da Regra pudessem ser bem observados.”(Cfr. Nelson Correia BORGES, op. cit., p. 47).173 Sobre as celas, vd. Constituições e leis..., pp. 35-39.
56
cubículo. Uma candeia, uma caldeirinha de barro ou estanho para água benta, uma cruz
de madeira, um crucifixo e uma pintura de Nossa Senhora - “devota, sem guarnição,
molduras, nem outro ornato algum precioso” - perfariam os objetos admitidos na singela
divisão. Por fim, e como garantia de uma utilização não desviante da estrita
funcionalidade prevista para tais dependências, destinadas acima de tudo ao repouso,
oração e exercícios espirituais, rematariam os pertences aí colocados uma vassoura e
“alguma cousa, em que por ordem da Abbadeça [as religiosas] se occupem no trabalho
das mãos”. Nestas celas, onde a individualidade está presente quase só na solução
arquitetónica adotada, dormiam, vestidas, as monjas do desagravo, fazendo sua a prática
comum das religiosas da primeira Regra de Santa Clara.
Como forma de salvaguardar a necessária distância entre estes dois patamares do
viver em religião, as noviças dispunham de instalações que quase lhes permitiam um
sustento autónomo. Dormitórios com celas individuais - pois que “a divisão das Cellas
conduz muito para a decencia e honestidade, e para que as noviças desde logo
apprendão a amar a solidão e retiro, meio muito conveniente para se darem melhor á
Oração, Lição espiritual, e Lavor de mãos”174 -, uma cozinha e um oratório ou altar
eram os espaços destinados àquelas que se preparavam para solenizar a pertença à
Regra175.Na noviciaria, espaço provisório e propedêutico - naturalmente proporcional às
dimensões da comunidade e à grandeza do mosteiro -, onde o ânimo para abraçar a
religião se construía dia-a-dia, nenhuma das professas estava igualmente habilitada a
entrar, exceção apenas feita à abadessa ou vigária176.
Conquanto previsse, através da sua específica orgânica espacial, os passos da
ascese moral e espiritual e do estatuto religioso, o mosteiro reconhecia a não linearidade
dos mesmos, dotando-se de espaços onde, no espetro oposto à observância, se
contemplava a infração e os seus diversos graus de gravidade. Para além da “casa da
penitência”, lugar especificamente destinado ao cumprimento das penas de reclusão,
uma outra cela ou “casa” podia afazer-se a finalidades corretivas, cuja aplicação,
definida normalmente pela abadessa, podia merecer, em casos particularmente gravosos,
o aval do prelado ou visitador177.
174 Idem, ibidem, p. 139.175Idem, ibidem, pp. 210-211. A independência da noviciaria e a evitação do contato com a restantecomunidade eram garantidas por espaços favorecedores de certa autonomia: celas, sala de estudo e aula,sala capitular, capela, cozinha, refeitório, instalações para a higiene individual – casa da água, lavatório esecreta. (Cfr. Nelson Correia BORGES, op. cit., p. 50).176 Idem, ibidem, p. 65.177 Idem, ibidem, p. 182.
57
Da mesma forma que a transgressão moral, o estado de doença encontrava
resposta na arquitetura do Desagravo que, para tal, se dotara de enfermaria e de
refeitório próprio. Na enfermaria firmava-se uma vez mais a separação entre professas e
não professas, já que só aí caberiam as religiosas, reservando-se às noviças o tratamento
nas dependências que lhes estavam destinadas178.
O mesmo rigor que orientava os passos das religiosas, fazia-se igualmente sentir
no refeitório e cozinha. Nesta última, todas se revezavam, sem qualquer hierarquia, nos
trabalhos respetivos, enquanto no refeitório as constituições postulavam que todas
comessem “sob igual tratamento”. Antes e depois das refeições seria rezado o salmo De
Profundis, que acreditamos tivesse lugar numa dependência específica anexa ou
contígua ao refeitório, a qual significativamente tirava do salmo a sua própria
designação.179
O calendário litúrgico e celebrativo das clarissas refletia-se também nas
dependências ligadas à alimentação – apelando à natural interdependência entre os
domínios espiritual e corpóreo –, onde a eminência de certas práticas impunha
alterações (feitas costumes através dos tempos) à rotina. Assim, nos quarenta dias
seguintes a 16 de Janeiro – dia em que, com toda a solenidade, era lembrado o desacato
de Santa Engrácia -, findo o jantar, as graças seriam concluídas no coro, Casa do
Capítulo ou no lugar a que estas clarissas designaram por “loginha do amor”. Já no
último desses dias, concluíam-se as graças no refeitório180.
Secundando o princípio segundo o qual todo o tempo que não fosse tomado com
a religião sê-lo-ia com o trabalho, já que este impedia o ócio a que tantos males
frequentemente se associavam, o mosteiro surge-nos dotado de um importante núcleo
oficinal ou, em linguagem contemporânea, ocupacional. O trabalho emergia
efetivamente como necessário contraponto de uma vivência desapiedadamente austera,
ao mesmo tempo que como garante da perseverança nessa mesma austeridade.
É neste sentido que devemos considerar a “casa do lavor” onde as religiosas, a
fim de evitarem “fazer fóra do Convento o que se puder fazer dentro”, se dedicavam ao
trabalho corporal, à leitura de livros espirituais, à reflexão sobre o exercício de alguma
virtude e a tarefas várias em prol de toda a comunidade181.
178 Idem, ibidem, p. 135.179 Idem, ibidem, pp. 102-103. O De Profundis poderia igualmente corresponder a um espaço próprio,anexo ou contíguo ao refeitório, onde tinham lugar orações próprias rezadas antes e depois das refeições.180Idem, ibidem, p. 97.181 Idem, ibidem, pp. 99-100.
58
À leitura ou à simples guarda de livros, estaria ainda afeta a livraria, de cuja
supervisão ficava encarregue a vigária do coro. Pelo seu próprio teor em termos de
conteúdo bibliográfico, assim como pelos objetivos inerentes à sua utilização,
deveremos também atribuir-lhe um carácter de apoio e consolidação da vertente mais
estritamente espiritual da vida monástica, se é que qualquer espaço monástico,
entendido na sua relação com os demais, não conduz e se reconduz, ele próprio, para tal
fim.
59
PARTE II
O REAL MOSTEIRO DO LOURIÇAL: DO ESPÍRITO À MATÉRIA
60
PARTE II
O REAL MOSTEIRO DO LOURIÇAL: DO ESPÍRITO À MATÉRIA
1. Preexistências e substratos (Figs.II.2.-16)
Como um palimpsesto, a definição material do Mosteiro do Louriçal foi sendo
sucessiva e cumulativamente formada por acrescentos, aposições e aproveitamentos,
num processo que, admitamos descontínuo, se terá estendido por um século, desde os
anos 30 de Seiscentos aos anos 30 de Setecentos.
O primitivo recolhimento, instituído a 19 de março 1631, não mais seria que a
reverberação mnemónica da santidade de Maria do Lado, intermediariamente dotada de
corporeidade. Sobre o espaço de oração, mortificação e trânsito da beata se estabeleceu
a casa que haveria de crismar a autoridade canónica do emergente Instituto. A este
primeiro núcleo, materialmente assegurado pelo pai da fundadora, familiares e devotos
locais, Frei Bernardino das Chagas aporia os primórdios edificados de um templo,
preexistência possível daquele cuja primeira predra se lançava em 1650 e que, em 1646,
recebia consagração.
Ao assumirem simbolicamente a origem do Instituto, os espaços físicos da
Venerável determinariam a alocação do templo, axializado pela presença do túmulo da
celebrada fundadora. É, uma vez mais, a clareza e simplicidade de Manuel Monteiro
que nos revela os trâmites desta geografia alegórica:
Como aquelle sitio era o em que a serva de Deos nascera, pareceo justo que
assim como nelle dera principio á vida, e á regularidade, que nelle se
observada, se trasladasse para elle o seu corpo, o que se fez no dia 30 de
Agosto do anno de 1652.182
Os réditos garantidos por via dos ingressos de recolhidas, de doações e esmolas
terão garantido a manutenção do recolhimento e, porventura, a sua eventual ampliação
ou melhoramento. Haveria, no entanto, que esperar pela assunção de D. Frei Álvaro de
182 Manuel MONTEIRO, op. cit., p. 54.
61
São Boaventura na sede episcopal de Coimbra para que as obras do edifício
conhecessem renovado influxo. Ao antístite se deverá, como vimos, uma substancial
ampliação do cenóbio, a execução da cerca e a incorporação, no perímetro cercado, da
antiga Igreja da Misericórdia183. À morte do sucessor de D. Frei Álvaro, D. João de
Melo - o qual, segundo o Anno Historico, terá feito “grande parte do mosteiro de
Louriçal” -, os trabalhos deveriam andar próximos do seu termo184.
O posterior patrocínio direto de D. Fernando de Meneses e de D. Pedro II
traduzir-se-ia arquitetonicamente na encomenda de uma nova planta a João Antunes,
planta essa que as fontes referem compreender a nova edificação monástica, sem no
entanto aludirem claramente à previsão de um templo. De monta e gabarito seria a obra
ideada, pelo menos a atentar no discurso enfático de Manuel Monteiro, para quem D.
Pedro,
sem reparar em despeza, que certamente havia de ser grande, mandou ao
Louriçal o P. Francisco da Cruz, e com elle hum insigne Architecto daquele
tempo, chamado Joaõ Antunes, que em muitos edificios sumptuosos desta Corte
tinha acreditado o seu nome com os primores da arte; e este, tomando as
medidas necessarias, fez a planta185.
Quaisquer que tenham sido, e qualquer que tenha sido o seu grau de abstração,
foram de Antunes os planos que presidiram ao edifício cuja primeira pedra solenemente
se lançava em cerimónia de 6 de março de 1690. A obra, porém, deverá ter conhecido
substanciais impasses, estando longe da concluída em 1700, como invoca, um tanto
dubiamente, a Crónica Seráfica, ao avançar que, “ainda assim naõ teve effeito esta
fundaçaõ até ao de 1700. Neste anno [1700, presume-se], se deo principio á fundação do
Mosteiro”186. Embora coubesse indagar o que entendia dizer o cronista ao referir-se a
fundação, não restam dúvidas de que, à data a que se reporta, o edifício careceria de
completude.
183 Idem, ibidem, pp. 58-59.184 Francisco de SANTA MARIA, op. cit., vol. II, p. 285.185 Manuel MONTEIRO, op. cit., p. 60.186 Jerónimo de BELÉM, Chronica Serafica da Santa Provincia dos Algarves…, Parte I, Livro III, pp.138-141.
62
Vários personagens entram nesta primeira empreitada centrada no traçado
antuniano. Tirando partido de proximidades e não saindo senão de mãos religiosas, o
Padre Francisco da Cruz contrata como administrador D. Francisco de Lousada
Ribadaneira, a quem caberá importante papel na concretização do risco. Apesar de o seu
estatuto na obra se ter alterado a partir de 1708, a assistência à mesma prolongou-se
desde a última década de Seiscentos até, pelo menos, 1712.
Encontrava-se D. Francisco em Estremoz quando D. Pedro II o chamou a Lisboa
e, “pelo grande conceito, que delle fazia o Soberano, lhe entregou a administração do
Mosteiro do Louriçal, seis legoas ao Sudueste da Cidade de Coimbra, que intentava
fundar”187. Mas é D. Gastão José da Câmara Coutinho - com cuja "devota diligencia
negociou os melhores interesses daquella fundação, em que o piedoso Fidalgo teve
grande parte, pelo que a seu respeito obrou”188 - quem servirá de intermediário entre o
monarca, Francisco da Cruz e Francisco de Lousada189.
Não suscita estranheza a presença de D. Gastão José da Câmara Coutinho (1662-
1736), cortesão que, aos muitos cargos ocupados, posporia o de vedor da Casa da
Rainha D. Maria Sofia de Neuburg e de D. Maria Ana de Áustria, de quem fora também
estribeiro-mor190. Aos 34 anos, fez-se terceiro franciscano, consagrando-se por
confissão pública a Deus191. Notáveis seriam as suas virtudes, a justificar “aquella
continua assistência nos Conventos, sempre que se achava dezembaraçado, aquelle
grande conhecimento, e particular trato com todas as pessoas de virtude”192.
A figura de D. Francisco de Lousada não se oferece, contudo, a tão linear
recorte. Nobre galego de ilustre família, antes de ingressar na Ordem Terceira de São
Francisco, de que viria repetidamente a ocupar o lugar de Ministro, fora capitão da
Guarda dos Reis Católicos. Abandonara a Galiza na sequência de um crime que aí
cometera e que o incompatibilizara com a família, vindo a encontrar abrigo, em 1665,
ao serviço das armas portuguesas. Como capitão de infantaria, serviu no Alentejo nas
Guerras da Restauração, vindo aí a desempenhar “a esperança que prometera em se
187 Idem, ibidem.188 Idem, ibidem.189 Cfr. Manuel MONTEIRO, op. cit., pp. 68-69.190 Cfr. António Caetano de SOUSA, História genealógica da casa real portuguesa, Tomo X, Coimbra,Atlântida-Livraria Editora, Lda., 1953, p. 485.191 Cfr. António da GRAÇA (Frei), Oraçaõ fúnebre nas exéquias do Excelentissimo Senhor Gastaõ Jozéda Camara Coutinho, celebradas pela Veneravel Ordem Terceira da Penitencia no Real Convento de SãoFrancisco da Cidade de Lisboa Occidental em 25 de Setembro de 1736, Lisboa, Officina da Musica deTheotonio Antunes Lima, 1736, pp. 13-14.192 Idem, ibidem, pp. 32-33.
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offerecer a militar por esta Coroa.”193 Naturalizou-se português, casou e viveu em
Estremoz. As contradições que conhecera em vida teriam como reverso a exemplaridade
das virtudes e do desempenho profissional, o que talvez justifique a biografia que sobre
ele se escreveu e a animosa fiança nele depositada pelo monarca194.
No volteface existencial de D. Francisco, sobressai, uma vez ainda, a
atratividade da Ordem franciscana no acolhimento dos mais díspares percursos
existenciais, de que nos dá oportuna nota Franscico Pereira da Silva no seu Caminho
dos terceiros seráficos para a Celestial Patria. Aí refere o "sagrado empenho da Divina
Omnipotendia, em dignificar esta Terceyra Ordem, dando-lhe Santos celebres em todos
os estados, de que se compõem”. E exemplifica:
As classes de homens, que vivem fóra da Religião, hábeis para professar esta
Terceyra Ordem, se reduzem a Ecclesiasticos, casados livres; os estados das
mulheres se contam em casadas, viúvas, virgens, e livres. E para q. cada hum, e
cada hua, cada qual na sua classe, tivesse nesta Ordem hum espelho, e
exemplar de consumada perfeyçaõ, parece que fez empenho a Divina
Omnipotencia de dar logo algum Santo Canonizado, ou Beatificado pela sua
Igreja em cada hum dos sobreditos estados. […] em todo o grào, e jerarquia de
pessoas seculares lhe há dado tantos, e taõ celebres Santos, que pòde competir
nesta excelencia com muytas Religiões aprovadas de seculos inteyros de
fundação.195
Escassíssimas são as fontes conhecidas sobre o evoluir da obra no período
marcado pela administração de Ribadaneira. Em concreto, há registo de que, em 1704,
Francisco da Cruz, enquanto procurador das recolhidas, compra “três moradinhas de
casas huma de sobrado com seu quintal na rua do Castelo de fronte do Recolhimento”,
sendo que estas casas “davam da parte nascente com as casas de Manuel da Mota da
193 Manuel MONTEIRO, op. cit., p. 71.194 Uma religiosa da Ordem Terceira de Estremoz terá mesmo redigido a biografia de D. Francisco deLousada. Tê-la-á de seguida entregue a uma religiosa daquela Província, “mas depois de lida algumasvezes neste Convento de Xabregas, levou o mesmo caminho, que tem levado outras similhantesmemorias.” (Cfr. Jerónimo de BELÉM, op. cit., p. 139.)195 Francisco Pereira da SILVA, Caminho dos terceiros seráficos para a Celestial Patria, LisboaOcidental, Oficina da Música, 1736, pp. 76-78.
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Silva e do norte e poente com a rua pública”196. Procurar-se-ia terrenos para alargar o
perímetro do futuro mosteiro, adaptando-o às suas preanunciadas necessidades? É
possível. Estaria este contrato plenamente subordinado ao plano de João Antunes? Fica
a suposição.
Também em relação ao templo é pouco o que conhecemos, mas cremos,
contudo, poder hipotizar que, entre a data da sua dedicação e a do ingresso das
religiosas, tenha assistido a obras de melhoramento ou mesmo de ampliação. De forma
documentalmente sustentada, sabemos apenas que, em 1727, seria dotado de altar-mor,
de dois altares colaterais e de três capelas laterais197, uma delas dedicada a Santo
António a outra a Nossa Senhora da Conceição. Sob o altar-mor encontrar-se-ia, desde
1652, o corpo, depositado em campa rasa, da venerável fundadora198.
Frei Agostinho de Santa Maria refere, no Santuario Mariano, que, na primeira
igreja do mosteiro - aquela cuja primeira pedra fora lançada a 28 de abril de 1640 - “se
colocou logo huma devotíssima Imagem da Rainha dos Anjos Maria Santissima, a quem
derão o titulo de Sua Purissima Conceição”, precisando, à época em que escreve (i.e., c.
de 1712), que a mesma se encontra colocada “em hum Altar colateral da parte do
evangelho sobre uma repreza, porque ainda não tem retábulo”199. O fato de, naquela
data, os altares se encontrarem desprovidos de estrutura retabular parece conferir
oportunidade à futura intervenção joanina.
Estes breves dados não nos permitem avaliar as preexistências com que João
Antunes se terá deparado quando se debruçou sobre a obra, nem avaliar o plano que terá
riscado na sua integridade. O que foi complemento ou substituição, o que se terá
saldado por continuidade ou por rutura, cabe não tanto no domínio da tese quanto da
hipótese.
196 Trata-se de uma escritura de venda lavrada a 15 de maio de 1704. Nela, Francisco da Cruz assume opapel de procurador das recolhidas, sendo mencionado como “mestre dos senhores Prinsipes e m.e[morador] no seo Convento de sam Roque destta Cidade”. (ADLRA, Convento do Louriçal, Escrituras -Dep. VI/25/A/2).197 O documento especifica: “E continuando a vestoria, se achou que tendo a Igreja Altar Mor, e douscollaterais, e mais três Capellas” (AUC, Cabido de Sé de Coimbra, Processo de Non Cultu, fl. inum).198 Autto d’abertura da Sepultura da serva de deus, Maria do Lado, documento de 1651 inserto noProcesso de beatificação da Madre Maria de Brito ou Maria do Lado ” (AUC, Cabido da Sé de Coimbra,documentos avulsos).199 Cfr. Frei Agostinho de SANTA MARIA, Santuario Marianno e Historias das Imagens Milagrosas deNosso Senhora…, IV, pp. 661-663.
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2. O Mosteiro à época da fundação
2.1. Perante o fato consumado
A 8 de maio, dia da Aparição do Arcanjo São Miguel, “bem proprio na verdade
para tambem apparecerem naquele sitio huns espiritos todos Angelicos, pelo que tinhaõ
de candidos, e fervorosos”200, ingressavam solenemente no mosteiro as suas quatro
fundadoras canónicas, tendo a acolhê-las cerimónia barroca de obra de arte total. Pois se
as orações “costumadas em actos similhantes” recitadas pelo deão, oportunamente
paramentado com capa de asperges, “enternecia os ânimos”, já a igreja “attrahia os
affectos”. Seriam estas, sem dúvida, as legítimas expetativas do Magnânimo, como bem
anota Manuel Monteiro na preciosa e sedutora descrição que sobre o ato nos oferece:
Estava ella vistosa, e magnificamente armada, e o Throno, e Altar mór taõ rico,
como magestoso; porque El Rey nosso Senhor e Suas Altezas tinhaõ dado hum
grande numero de excelentes peças de prata, em que entravaõ muitas
sobredouradas, e quase todas com o escudo das Armas Portuguezas das
Sagradas Quinas. As paredes cobriã-se com admiráveis sedas, e armaçoens
preciosas, em que competia o vistoso com o magnifico, ardia no Throno, na
banqueta, e nos Altares muita cera; e as boninas, espalhadas pelo pavimento,
assimillavaõ huma bem matizada alcatifa, sobre as que Sua Magestade
mandara. Em fim os odoríferos perfumes elevavaõ as sentidos á contemplação
do Gloria, da qual a Igreja parecia uma representação na terra201.
Não seria esta, contudo, a igreja pretendida pelo rei, por muito que se lhe tivesse
associado ao acabar de fundar, dotar e ornar o novo cenóbio202. E, tal como o templo,
também o mosteiro enfermaria de um caráter contingente, atenta a necessidade de ser
“proporcionado ao Instituto que o havia habitar”, razão pela qual “se coarctou a
liberalidade Real, querendo que cedesse em veneração de pobreza a sua magnanimidade
200 Manuel MONTEIRO, op. cit., p. 108.201 Idem, ibidem, pp. 112-113.202 Idem, ibidem, pp. 61 e ss.
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generosa.”203 A transigência de D. João V perante o ideário regular não duraria, porém,
muito tempo. Apesar de a feição material da casa atingir foros de definitividade sob este
monarca, o início da caminhada da comunidade marcou também o início da obra régia
que, tal como a vida religiosa, contava com um estrato que a montante a ultrapassava e
que conheceria, a jusante, novos contributos. Como vimos, num processo que se terá
estendido por uma centúria, fazendo arco desde os anos 30 de Seiscentos aos anos 30 de
Setecentos, foi sendo paulatinamente sedimentado um substrato construtivo feito por
sucessivos acrescentos, aposições e aproveitamentos. E este, que foi um processo de
aglutinação e partilha de vontades e incumbências, traduziu-se naturalmente também na
partilha de atribuições de glória e de menções honrosas.
O templo que serve de palco à majestosa solenidade descrita é, provavelmente, a
velha igreja cuja primeira pedra fora lançada em 1640, dedicada em 1646, e onde,
entretanto, várias alterações se terão verificado204.
203 Idem, ibidem, p. 84.204 Manuel MONTEIRO, op. cit., pp. 50-51.
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2.2. Um voto e uma obra alheia
Um inquietante embora breve interregno terá marcado os anos imediatamente
anteriores a 1708, data em que o “principal do edifício”205 se daria por concluído. Por
alturas da doença fatal de D. Pedro II, verifica-se um longo afastamento de D. Francisco
de Lousada, que, em virtude de prolongada enfermidade, se manterá em Lisboa206. A 29
de janeiro de 1706, falece o padre Francisco da Cruz e, a 9 de dezembro de 1706, partirá
o rei. Os infaustos acontecimentos darão moto e espaço à revivificação do projeto
monástico.
Firmando, uma vez mais, a sua condição de intermediário e de hábil negociador
de vontades, D. Gastão José apresenta a D. João V os documentos que, relativos à obra,
Francisco da Cruz por morte lhe confiara. Fosse pelo mérito da causa, fosse pelo do
intermediador, ou, o mais provável, pela conjugação de ambos, o jovem monarca
não só mostrou vontade de dar cumprimento ao seu voto, mas com efeito
mandou passar Alvará assinado de sua Real maõ, em que declarou, que tomava
debaixo da sua Real protecçaõ o Convento.207
Não se limitando a uma declaração de intenções, o rei ordenou a Ribadaneira
que “partisse logo para o Louriçal, e desse à obra o possivel calor, e para a sua
subsistência fez passar as ordens necessarias.”208 Tão pressurosa diligência alinhava-se
com um afã construtivo que percorreria todo o longo reinado do Magnânimo - no qual,
como nunca até então, se “apostaria na força dos meios visuais”209-, e inseria-se numa
lógica de afirmação e legitimação do poder real.
De fato, na primeira metade do século XVIII, assiste-se a uma intensa atividade
artística diretamente fomentada pela Coroa210, enquadrada num movimento mais amplo
de renovação cultural e largamente beneficiária da exploração aurífera brasileira211.
205 Jerónimo de BELÉM, op. cit., p. 140.206 Manuel MONTEIRO, op. cit., p. 73207 Idem, ibidem, p. 74.208 Idem, ibidem, pp. 70-72.209 António Filipe PIMENTEL, “Os grandes empreendimentos joaninos”, AAVV, Triunfo do Barroco,Lisboa, Centro Cultural de Belém, 1993, pp. 31-37 (p. 31).210 Idem, ibidem.
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Sobrevinda no termo de um longo período de beligerância e de isolamento
cultural, a arte promovida por D. João V traduziria a aproximação à cultura das cortes
europeias, corporizando uma internacionalização resultante da importação e apropriação
de fórmulas do barroco erudito europeu. Parafraseando António Filipe Pimentel, “a
grande referência estética e mesmo psicológica do Magnânimo seria sempre a Roma
barroca e pontifícia.”212 A renovação artística então operada, consubstanciada, em
termos estritamente arquitetónicos, num ecletismo barroco de especial influxo italiano,
viria, no entanto, a casar-se com a tradição nacional, dando origem a “uma síntese
original.”213
Mas o fôlego régio cruzava-se com iniciativas outras, a que em larga medida se
associavam as Ordens Religiosas, e insuflava-se com a intensa renovação das práticas
litúrgicas e devocionais, com a afirmação de santos nacionais e com a própria
religiosidade do monarca, na sua fidelidade a heranças de patrocínio artístico. Várias
são as obras que o testemunham. De origem votiva e destinadas a corporações religiosas
que se entendia beneficiar, destacam-se a Igreja do Menino Deus, iniciada em 1711 para
as Mantelatas de S. Francisco de Xabregas, o Convento de Nossa Senhora e Santo
António de Mafra, mandado edificar na mesma data para os franciscanos arrábidos ou,
mais tardio, o Palácio-Convento das Necessidades, destinado aos oratorianos de Lisboa.
Na arte patrocinada pelo monarca, a existência de um substrato construído e de
práticas artísticas que os mestres, formados em período anterior, consigo transportavam,
traduziu-se em obras que, inevitavelmente, denunciam sínteses e tensões. A ideia de
transição a que este panorama apela acentua-se, além disso, com o desaparecimento, no
último quartel de Seiscentos, de muitos dos melhores artistas e engenheiros que haviam
participado em obras de vulto da capital, como a Igreja de São Vicente de Fora, os
conventos de Santo Antão, do Desterro, de São Francisco da Cidade, de Santos-o-Velho
ou a Igreja de Santa Engrácia214. Neste contexto de charneira deveremos, portanto, ler a
abordagem joanina ao Mosteiro do Louriçal.
É tíbia, no entanto, a intervenção régia nesta fase, que corresponde a uma
necessidade real e a uma incumbência de cunho hereditário infundida pela fidelidade a
211 Idem, ibidem.212 Idem, ibidem. p. 32.213 Idem, ibidem.214 Vd., sobre a questão, o já citado artigo de António Filipe PIMENTEL (“Os grandes empreendimentosjoaninos”, pp. 31-37) e o artigo de Ayres de CARVALHO, “A acção mecenática joanina e a Romapapal”, inserido igualmente em AAVV, Triunfo do Barroco, Lisboa, Centro Cultural de Belém, 1993, app. 71-95.
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um voto. Com efeito, a intervenção traduz o cumprimento exato dos termos da
promessa formulada em 1700 e ratificada sete anos depois215. Herdada a incumbência,
cunhada agora com o selo votivo, herdavam-se também os artífices. Se João Varela de
Abreu – que, por alvará de 29 de abril de 1708, substitui Ribadaneira na administração
da obra - escapa a este cenário, refiramos, para aí de novo o reposicionarmos, que foi a
impossibilidade do anterior agente a ditar o seu recrutamento e que a sua condição de
cortesão provinha do anterior reinado216. Apesar de não ter, ao que supomos,
introduzido inovações à construção, a intervenção do desembargador – que o rei
convocara por ser grande “a sua devoção ao Convento” e grande “a sua intelligencia da
Architectura” – revelou-se essencial, pois que “em breve tempo se pôs o edifício capaz
de ser habitado”217.
O diálogo entre a comunidade, agora canonicamente regida, e o espaço,
finalmente definido, que lhe fora destinado, revelou necessidades e reclamou
ajustamentos. Assim se justifica a queixa das religiosas perante a dificuldade em utilizar
água nas "oficinas"218. Foi breve, embora não imediato, o atendimento a tal apelo, como
se depreende das palavras do cronista, que naturalmente enfatiza a liberalidade régia: “e
este descómodo, que constou a Sua Magestade, quiz o dito Senhor obviar, naõ tardando
em remediá-lo, mais que aquelles anos, que tardou em sabê-lo.”219
É neste contexto que entra em cena o enigmático personagem Manuel Pereira,
arquiteto oratoriano de quem o rei se socorre a fim de resolver o problema de
abastecimento de água ao mosteiro. A ele se deverá o aqueduto do Louriçal, que de
pronto traçou e, mais tardia, a “obra nova" da casa220.
Tornar-se-ia previsível ver João Antunes de novo implicado nos trabalhos, mas,
para além de não sabermos precisar a sua cronologia exata – e, portanto, aferir a real
possibilidade de intervenção do arquiteto régio, que viria a falecer em 1712 -, cremos
ver na indigitação de Manuel Pereira, que mais à frente nos ocupará com o devido
cuidado, um voto de confiança na ainda pouco estudada tradição construtiva dos
215 Cfr. Manuel MONTEIRO, op. cit., pp. 61 e ss.216 Vd. ANTT, Registo Geral de Mercês, Mercês de D. Pedro II, liv. 7, fl. 228 e ANTT, Registo Geral deMercês, Mercês de D. Pedro II, liv. 16, fl. 356.217 Manuel MONTEIRO, op. cit., pp. 82-83.218 Idem, ibidem, p. 206.219 Idem, ibidem.220 Idem, ibidem, p. 207.
70
Oratorianos e em alguém que, parafraseando a lhaneza de Manuel Pereira, tinha
experiência do que era comunidade221.
Não sabemos se por ser grande o “descómodo” assinalado pelo cronista, se por
grande a liberalidade do rei ou o empenho do artista, a intervenção se saldou num
robusto aqueduto de arcarias que, ao longo de 350 metros, se estendiam desde uma
mina até à cerca do cenóbio, alimentando ainda um chafariz público localizado na
vizinha Rua do Castelo222. Certo é que a obra resolveu o problema das religiosas,
agradou ao rei e firmou o estatuto do arquiteto.
221 Idem, ibidem.222 Idem, ibidem.
71
2.3. Um novo fôlego mecenático
As intervenções arquitetónicas que assinalaram os alvores da vida regular ter-se-
ão prolongado pelo menos até 1712, data em que na obra localizamos ainda, embora
formalmente desinvestido do estatuto que inicialmente lhe coubera, D. Francisco de
Lousada Ribadaneira223. E, muito embora no desconhecimento de melhores registos, é
de crer que, até 1734, em que nova empreitada terá lugar, trabalhos vários, de maior ou
menor monta, possam ter-se verificado.
Com efeito, o processo de beatificação de Maria do Lado, retomado em 1726, e
no âmbito do qual o cabido de Coimbra comete uma vistoria ao mosteiro224, deverá ter-
se refletido a nível construtivo, como a presença da data de 1726 no lavabo da sacristia
pretensamente indicia. A ideia de celebrar a memória da fundadora, em que se inscreve
o depósito no mosteiro dos restos mortais daquela, terá decerto implicado o repensar do
espaço monástico – ou, pelo menos, das divisões afetas ou anexas a uma veneração que,
se já previamente existente, ganharia agora todo um novo fôlego.
A data incisa naquele lavabo tem inspirado várias propostas de datação da igreja,
como a que apresenta o Inventário Artístico225 e os Tesouros Artísticos226, que a
estendem mesmo ao revestimento azulejar do templo. Embora crendo que a natureza
conjetural da hipótese deva ser realçada, é contudo de pensar que a encomenda do
lavabo - coincidente com data tão significativa para o Instituto – possa não ser vista
isoladamente. Seria estranho que, a ter existido, uma revivificação material do mosteiro,
alavancada pela retoma daquele processo de beatificação, tivesse legado tão ínfimo e
desgarrado testemunho material e que, só em 1734, a renovação se tivesse efetivado.
Sabemos, de fato, que a ideia de uma nova construção estaria no pensamento de D. João
V antes dessa data, atento o fato de, em 1733, a igreja se encontrar indisponível227.
Lembremos, no entanto, que o processo canónico não conheceu imediata
consecução. A documentação de que se constituía ter-se-á, ao que consta, estranhamente
223 As fontes não são consensuais em relação ao significado dos conceitos de superintendência eadministração e aos limites práticos avocáveis a cada um deles.224 Processo de beatificação da Madre Maria de Brito ou Maria do Lado AUC, Cabido da Sé deCoimbra, documentos avulsos.225 Cfr. Gustavo de Matos SEQUEIRA, Inventário Artístico de Portugal. Distrito de Leiria, Lisboa,Academia Nacional de Belas Artes, 1995, p. 112.226 Cfr. José António Ferreira de ALMEIDA (coord.), Tesouros artísticos de Portugal, Lisboa. Selecçõesdo Reader's Digest, 1976, p. 374.227 AUC, Cabido da Sé de Coimbra, documentos avulsos, Inquirição da vida de Maria do Lado doLouriçal. Num documento de 1733, aparece referência a uma reunião feita na Igreja da Misericórdia e jánão na igreja do mosteiro, onde até então sistematicamente se realizava.
72
perdido em Roma. Lembremos, bem assim, que esses foram anos de difícil
comunicação entre a Corte de Portugal e a Cúria Pontifícia, determinada pelo corte de
relações com a Santa Sé de junho de 1728228. Não vislumbramos, pois, qualquer
veleidade no aventar que um projeto de engrandecimento estivesse na mira do rei – e
das religiosas e de quem diretamente, como os Ericeiras, se revia na causa da Venerável
– e que, só nos anos 30, tenha encontrado condições para plenamente se realizar.
Sabemos mesmo que
No Claustro de 22 de Abril de 1728 se leo uma Carta de S. M., na qual
Ordenava á Universidade que escrevesse a S. Santidade, referindo-lhe as
virtudes, e acções heróicas em que floreceo a Venerável Serva de Deos Maria
do Lado, natural do Louriçal, pedindo-lhe instante, e humildemente se dignasse
deferir á sua Beatificação com toda a brevidade; e se assentou fizesse a Carta o
Padre Mestre Fr. José Caetano, Lente da Cadeira Pequena de Escritura.229
Uma nova obra emergiria, não já a finalização de algo idealizado por outrem.
Para o justificar, tomemos de empréstimo a súmula explicativa de José Fernandes
Pereira:
D. João V devia certamente ter presente os preceitos da ética aristotélica que
referem o seguinte: a magnanimidade mostra-se nas grandes coisas e o
magnânimo é incapaz de pequenas acções; a magnanimidade é inseparável da
grandeza e o mesmo se pode dizer da beleza que não se concebe senão num
grande corpo; o pequeno pode ser grandioso e bem proporcionado mas não
verdadeiramente belo.230
228 Cfr. Fortunato de ALMEIDA, História da Igreja em Portugal, Vol. II, Porto/Lisboa, LivrariaCivilização Editora, pp. 345-349.229 Jornal de Coimbra, 1819, Lisboa, Impressão Régia, n.º 77, p. 192230 José Fernandes PEREIRA, "O barroco do século XVIII", AAVV, História da arte portuguesa, vol. III,Lisboa, Círculo de Leitores, 1995, p. 52.
73
A estas premissas acresçamos ainda o preceituado no Método Lusitano de Luís
Serrão Pimentel, que glosaria a “supremacia do novo (a obra feita de raiz) sobre o velho
(a obra transformada)” 231.
A nova empreitada entroncava com o influxo renovador em que se perfilavam,
em data próxima, significativas intervenções de renovação ou engrandecimento que
compreenderiam o Convento de Mafra, o Mosteiro de São Vicente de Fora, a Igreja do
Menino Deus, o Mosteiro de Santa Clara-a-Nova de Coimbra, o Mosteiro das
Comendadeiras de São Bento de Avis e a capela-mor da Sé de Évora. E não esqueçamos
ainda que, em novembro de 1733, “El Rey tem resoluto acabar a Igreja de S.ta Engracia
com brevidade, e fazella mayor”, posto que não aprovava a “Igreja por pequena.”232
Aludindo à natureza do mecenato joanino, Francisco Xavier da Silva sintetiza,
eloquente: “a construção de hum Templo póde ser desejo de adquirir a gloria do
fundador, mas o edificar muitos, he evidencia e efeitos de culto”233. Nesta lógica de
glórias recíprocas, participa também o Louriçal.
Ao partilhar com tais obras o espírito da encomenda, o Louriçal com elas
partilharia alguns dos seus artistas e oficiais: António Andrade do Amaral trabalhara na
renovação do mosteiro de Santa Clara-a-Nova; aí estivera também, como arquiteto,
Carlos Mardel, que executaria, em São Vicente de Fora, a Capela das Onze Mil
Virgens; Bellini, por seu turno, colaborara nesta última obra com o mestre húngaro e,
igualmente, em Mafra. Da mesma forma, é do escultor paduano o retábulo pétreo da
Igreja do Menino Deus234.
A “igreja nova” e os demais espaços abraçados pela vaga de magnanimidade
joanina participariam, contudo, de um contexto artístico de coloração já diferente da que
timbrara as primeiras intervenções do reinado. Veiculado por uma nova geração de
artistas, o barroco internacional áulico impunha-se e, com ele, a estética italianizante235.
231 José Fernandes PEREIRA, “Arquitectura religiosa”, in, José Fernandes PEREIRA (dir.), Dicionárioda Arte Barroca em Portugal, Lisboa, Editorial Presença, 1989, pp. 43.232 Um plano, conquanto não executado, terá mesmo sido traçado. O autor refere, sem citar fontes, que oano de 1733, “segundo entrevemos nas notícias dum cronista anónimo e coevo, poderia ter sido o maisdanoso para a integridade do belo conjunto de Santa Engrácia, mas felizmente o plano nunca seexecutou”. Ayres de CARVALHO, Dom João V e a arte do seu tempo, Vol. I, Lisboa, Ed. do Autor,1962, p. 163.233 Francisco Xavier da SILVA, Elogio funebre e histórico de D. João V, Lisboa, Régia Oficina Silviana,1750, apud José Fernandes PEREIRA, "O barroco do século XVIII", op. cit., p. 51.234 Vejam-se os já referenciados artigos de António Filipe PIMENTEL, “Os grandes empreendimentosjoaninos”, pp. 31-37 e de Ayres de CARVALHO, “A acção mecenática joanina e a Roma papal”, pp. 71-95.235 Sobre o tema, vejam-se, entre outras, as referências citadas na nota supra.
74
As obras de renovação do mosteiro serão, numa linha de continuidade,
adjudicadas a Manuel Pereira, mas nelas não divisamos já uma ação apenas de
mecenato, mas, pelo nível de personalização da comitência, de verdadeiro patronato. O
ajuste necessário que a ideia de “edificar nova Igreja, a qual fosse proporcionada em
tudo ao Convento”236 traduz, respeita menos à dissonância entre o templo e a casa
monástica que ao desajuste entre mentor e obra. Do intento, pois, de a fazer espelhar a
grandiloquência da vontade régia, resultou não apenas a substituição do templo, quanto
intervenções noutras partes do cenóbio, a reconfiguração urbanística da própria vila e o
aumento da côngrua do confessor.
De fato, o rei encontraria modo de contornar os entraves que, na primeira
intervenção, se haviam colocado à sua liberalidade. A vontade régia impôs-se sobre as
prerrogativas da Ordem Religiosa e tornou negociável o que por princípio não o é.
Processo semelhante se verificara em Mafra, onde as alterações ao plano primitivo,
contendendo com o modelo conventual havia muito tipificado pelos arrábidos, exigiram
a emissão de um parecer jurídico pelo arcipreste de Lisboa a fim de que os frades
aceitassem a obra que o rei pretendia consignar-lhes237. Ainda à semelhança de Mafra,
também no Louriçal se pretendeu beneficiar uma Ordem a que os monarcas se achavam
desde havia séculos ligados e que nunca a nível arquitetónico fora por eles
beneficiada238.
Para a nova fábrica, o soberano terá consignado quarenta e cinco mil cruzados,
supondo-se neles contemplada a igreja, torre do relógio, noviciado “e outras mais
porçoens do Convento”239. Mas também as religiosas e o confessor seriam beneficiados:
a 6 de novembro de 1733, um mandato da Junta da Casa de Bragança, oferecia
mensalmente às religiosas 150 000 réis por tempo de cinco anos a contar desde 1 de
Novembro de 1733240, enquanto, por alvará de 10 de junho de 1733, se aplicava
perpetuamente ao mosteiro um padrão de 90 000 réis anuais da Tesouraria dos Portos
Secos para aumento da côngrua do confessor, anteriormente cifrada em 150 000 réis241.
Pode considerar-se, face ao exposto, que as obras, iniciadas em finais de 1733,
estavam idealmente escalonadas, prevendo-se que terminassem em cinco anos, o que, de
236 Manuel MONTEIRO, op. cit., p. 208.237 O parecer teria data de 1730.238 José Fernandes PEREIRA, "O barroco do século XVIII", op. cit., p. 62.239 Manuel MONTEIRO, op. cit., p. 210.240 Mandato da Junta da Casa de Bragança a respeito do Convento (ADLRA, Convento do Louriçal,Decretos).241 Data de 6 de maio de 1733 a cópia do decreto pelo qual essa primeira consignação foi feita. (ADLRA,Convento do Louriçal, Decretos).
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fato, aproximativamente sucedeu, vindo a igreja, já completa, a ser benzida a 27 de
outubro de 1739242.
Um contrato celebrado a 19 de outubro de 1734 entre o mosteiro e a Câmara do
Louriçal243 abona, uma vez mais, em favor da fidedignidade histórica da obra de
Manuel Monteiro. A ideia de que o atual templo pudesse ser uma sobrevivência da
construção iniciada a 1640 é aqui rotundamente negada, o que, no entanto, não coloca
de lado a hipótese, que mais adiante avançaremos, de a planta ter colhido inspiração de
um eventual plano de João Antunes.
O acordo revela com clareza o teor das transformações. Registada ficaria a
demolição das “casas” do procurador do mosteiro, Rev.º P. António de Azevedo, de um
lagar pertença de Manuel da Mota da Silva, de uma casa que servia de estrebaria,
propriedade de Manuel Fernandes244, de várias construções incluídas na cerca monástica
– uma casa que servia de “Barrela”, um telheiro que servia de carpintaria e o mais que
fosse necessário das casas que serviam de palheiro. Mas as alterações exigiriam ao
mosteiro correlativas incumbências: a edificação de muros, o respeito pelo desafogo de
determinadas áreas, a construção de vias, etc.245
Mais que um jogo de contrapartidas e compensações pretensamente absolutas, as
obras significaram um novo diálogo com a ordem urbana e com a comunidade. Toda a
rua que ia do Padrão até à Misericórdia seria demolida pela abertura do novo
arruamento; um “rocio grande” seria construído defronte do templo “em ordem a ficar o
Convento de todo desafogado.” Era a igreja – e, por antonomásia, o mosteiro – que se
impunha sobre a vila, reivindicando um estatuto de axialidade que, até então, só
espiritualmente gozara.
Mas, se a bênção do templo data de 27 de uutubro de 1739, as obras só mais
tarde se darão por findas, como atesta um ofício de 14 de junho de 1741, enviado pelo
Cardeal da Mota ao Corregedor de Coimbra, pondo termo, em nome do rei, ao embargo
que a Câmara do Louriçal havia lançado sobre os trabalhos246. Seria o embargo
resultante de algum incumprimento? Seria resposta deslocada a contenda antiga?
Ignoramo-lo. Não era esta, porém, a primeira vez que a Câmara acautelava zelosamente
242 Manuel MONTEIRO, op. cit., p. 108. A 5 de novembro de 1739, o Doutor Manuel Pereira Rebelo,cónego da Sé de Coimbra e vigário capitular do bispado faz doação de 40000 reis ao mosteiro paracompra de bulas da cruzada a favor das religiosas. (ADLRA, Convento do Louriçal, Escrituras).243ADRLA, Convento do Louriçal, Escrituras.244 Ibidem.245 Ibidem.246 Ibidem.
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os seus direitos: o mesmo se passara, tantas décadas antes, em relação à sepultura de
Maria do Lado247.
No delineado contexto de encomenda, não suscitaria estranheza a escolha dos
artistas chamados a intervir. O Irmão Manuel Pereira, a quem ficaria cometida a planta
do templo, estivera já ligado ao Louriçal. Em seu abono diz Manuel Monteiro ser
“insigne na Arte da Arquitectura", pessoa "de quem Sua Majestade se fiava,
encarregando-lhe todas as suas Reaes obras, como lhe tinha encarregado a planta, e
medição desta”. Além disso, já o vimos, era grande a “experiência que o Arquitecto
tinha do que é Communidade”248. Como membro de uma Ordem Regular, seria,
portanto, um interlocutor particularmente destro das necessidades de uma comunidade
religiosa. Não era inusual, aliás, as Ordens disporem de membros versados em
arquitetura, a quem cometiam os seus trabalhos, o que naturalmente abonava em favor
da fidelidade da obra aos preceitos canónicos249.
Enquanto a Manuel Pereira coube o risco da igreja, ao desembargador António
Andrade do Amaral - que, em simultâneo, dirigia uma outra obra de cariz similar, a
renovação do Mosteiro de Santa Clara-a-Nova de Coimbra - caberia, igualmente por
escolha régia, a superintendência da obra e, mais tarde, a finalização da empreitada250.
A obra dos retábulos e a escultura retabular, seguramente mais tardia que o risco
e construção do templo, seriam confiadas a Carlos Mardel e a António Bellini de Pádua,
ao tempo igualmente ligados a outros grandes empreendimentos régios251. A pintura
azulejar, por último, seria, ao que parece, dada a Valentim de Almeida, um dos
exponentes da azulejaria joanina252.
António Andrade do Amaral tem a maior importância neste todo, pois supomos
ser ele que, continuando a incumbência de Manuel Pereira, cujos planos acreditamos
anteriores a 1733, renova a feição do templo ao chamar Bellini e Mardel para a feitura
247 A sepultura de Maria do Lado havia ficado na Capela de Nossa Senhora da Graça, Igreja matriz doLouriçal, apenas a título de depósito e num prazo de vinte anos.248 Manuel MONTEIRO, op. cit., p 207.249 Como destaca Nelson Correia BORGES, «O barroco joanino», História da Arte em Portugal. Dobarroco ao rococó, Vol. 9, Lisboa, Edições Alfa, p. 34.250 Manuel MONTEIRO, op. cit., p 210.251 Veja-se, a propósito, Sandra SALDANHA (coord.), O Mosteiro de S. Vicente de Fora – Arte eHistória, Lisboa, Centro Cultural do Patriarcado de Lisboa, 2010, pp. 189-207.252 A atribuição foi feita pela primeira vez por José Meco e, no seu encalço, glosada por Joaquim VitorinoVideira EUSÉBIO, Les cycles d’azulejos de l’église du couvent de Louriçal (Portugal) attribués àValentim de Almeida (1692-1779), dissertação de Mestrado em História da Arte apresentada àUniversidade de Monreal, 2010 e por Maria Luísa JACQUINET em O Mosteiro do SantíssimoSacramento do Louriçal: memória e comemoração, texto da conferência apresentada no âmbito dasComemorações do Tricentenário da fundação do Convento do Louriçal, Maio de 2010 [não publicado].
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dos altares. Em meados de Setecentos, época em que escreve Manuel Monteiro, estaria
a erguer-se, segundo risco de António Andrade do Amaral, a capela-relicário que
converteria a fim devocional a antiga “casa do amor”, divisão na qual Maria do Lado se
recolhia em mortificações. A data de ideação deste espaço poderá fazer-se coincidir
com a data que presidiu às intervenções dos anos Trinta. Na autoria de Andrade do
Amaral - “curioso de arquitectura”, neto de ourives253 e tendo no curriculum um longo e
intenso contato com a arquitetura monástica -, talvez possamos ver uma possível relação
com o Mosteiro conimbricense de Santa Clara-a-Nova, que, sob sua superintendência,
receberia uma capela-relicário dedicada à Rainha Santa.
Já completo, o mosteiro viria a receber benefícios menores cuja data e autoria
impossível se nos torna hoje precisar. Pelo significado do seu enquadramento na
estrutura espacial e devocional, salientemos duas peças oferecidas por D. José I: uma
imagem processional de Nossa Senhora da Boa Morte, uma das principais devoções da
casa e da vila do Louriçal, e uma pintura de Emanuel Alfani retratando Maria do Lado
destinada a cobrir “a boca da tribuna quando esta grande alma conseguir o culto dos
altares”254.
Conquanto a encomenda de D. José I traia o caráter hereditário que, em linha
direta, assinalou também a intervenção paterna, há, com o Magnânimo, um ensejo claro
de superação de preexistências, conseguido, em grande medida, pela substituição e
sobreposição do edificado e pela apropriação de referentes simbólicos.
No seio do que prefiguramos como um firme afã de mudança, vertido numa
série descontínua de campanhas de obras, ergueu-se um monumento que traduz a
interceção e o diálogo, mais harmonioso nuns casos e menos noutros, entre várias
correntes e gostos artísticos. Na difícil lisibilidade da obra, avultam elementos que
parecem assinalar os seus diferentes influxos: o frontão que encima o portal da portaria,
por muito que, ao ostentar a data de 1708, reivindique o investimento joanino, remete
para um vocabulário decorativo que dele se arreda e que tanto difere do portal da “igreja
nova”, fruto da segunda campanha promovida pelo rei. Igual considerando poderá
aplicar-se à planta poligonal do templo, cuja planimetria invoca, de facto, a obra de João
253 Segundo apurámos através da Diligência de habilitação de António de Andrade do Amaral a familiardo Santo Ofício (ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Conselho Geral, Habilitações Incompletas, doc. 208 eANTT, Tribunal do Santo Oficio, Conselho Geral, Habilitações, António, mç. 70, doc. 1391).254 A pintura consta do espólio do Museu Nacional de Machado de Castro, em Coimbra.
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Antunes255. Remetendo para plano anterior ao patrocínio do Magnânimo, anotamos
ainda o nicho que sobrepuja o arco cruzeiro e em que repousa uma imagem de um dos
guardiães do mosteiro, S. Miguel Arcanjo. A sua gramática parece, uma vez mais,
apelar ao risco antuniano e, no geral, a várias realizações seiscentistas. Por outro lado, e
independentemente da sua autoria ou datação, os azulejos que por completo revestem as
superfícies parietais do templo, em programa típico de pequena igreja monástica,
contrastam com a estética italianizante e erudita do sistema retabulístico dos altares de
mármore.
Somos tentados a admitir que a chamada igreja nova tenha sido fruto de um
tempo longo de gestação que acabou por integrar parte do risco de João Antunes,
alterações e aposições idealizadas pelo Irmão Manuel Pereira, e, sob Andrade do
Amaral, a decoração arquitetónica e escultórica dos altares.
Em suma, a obra do Louriçal, não obstante a coerência apostólica e a aparente
estaticidade inerentes à Regra observada, acusa, a nível arquitetónico, uma
multiplicidade de planos de que a análise das particulares circunstâncias da encomenda
favorece a desambiguação. No meio do que hoje se nos apresenta como um acervo por
vezes dissonante de espaços que denunciam o inexorável curso do tempo e o conflito
entre imperativos funcionais e a preservação material, soergue-se, como matricial fator
de coerência e continuidade, a memória indelével da veneranda fundadora.
255 Sobre João Antunes, veja-se a síntese de José Fernandes Pereira, que assina, no Dicionário da ArteBarroca em Portugal (José Fernandes PEREIRA (dir.), Dicionário da Arte Barroca em Portugal, Lisboa,Editorial Presença, 1989), a entrada relativa ao arquiteto (pp. 33-36).
79
2.4. Em busca de Manuel Pereira (C.O.), arquiteto
Tornemos a Manuel Pereira e às múltiplas questões que a sua intervenção
oferece. Os méritos que o monarca lhe reconhecia justificariam a fiança que se lhe
depositava? Terá a sua intervenção sido subsidiária de uma suposta anterior planta saída
do punho de João Antunes? Em caso afirmativo, quais os limites da criação artística
consignáveis ao oratoriano? Tentemos respondê-lo aventando uma indagação sobre este
enigmático personagem.
À semelhança de várias personalidades da arquitetura da primeira metade de
Setecentos - e, evidentemente, não só -, cuja feição a historiografia não logrou ainda
resgatar da neblina do tempo, Manuel Pereira afigura-se-nos ainda hoje como um
mestre tão enigmático quanto - e porquanto - infimamente conhecido.
Reclamando de igual modo uma definição de contornos se encontram nomes
com os quais o percurso daquele arquiteto curiosamente se cruza: D. Francisco de
Lousada Ribadaneira, o Cardeal da Mota, António Andrade do Amaral ou, ainda, e
embora bem mais estudado, João Antunes, cuja biografia artística não deixa ainda hoje
de suscitar questões256.
É no desfasamento entre o teor das palavras que sobre o arquiteto oratoriano
versam e aquilo que, afinal, dele sustentadamente se conhece que assenta o que
designámos como "enigma". Ao que acrescem dados do labor historiográfico que, no
encalço de esclarecer atribuições, têm por vezes redundado na reformulação de dúvidas.
A questão é tão real quanto redundante. De fato, a imprecisão biográfica de
Manuel Pereira, ao tornar nebulosas atribuições de autoria, obscurece a análise do
objeto artístico e vicia a avaliação do mérito de eventuais obras a ele atribuídas ou
atribuíveis, condicionando, por essa via também, outras possíveis atribuições. A tanto
acresce a tendência para aglutinar, por similitude de nomes ou designações, figuras de
recorte identitário igualmente incerto, tal o caso do pintor de azulejos P.M.P. e do Padre
Manuel Pereira, capelão da rainha D. Catarina de Bragança257.
256 Veja-se, a propósito, o elucidativo estudo de Paulo Varela GOMES, Arquitectura, religião e políticaem Portugal no século XVII: a planta centralizada, Porto, Faculdade de Arquitetura, 2001.257 Salientamos o interesse dos contributos de Rosário Carvalho para o estabelecimento de um cuidadoso"ponto de situação" sobre a biografia artística de P.M.P. e, por associação, do Irmão Manuel Pereira. Vd.Maria do Rosário CARVALHO, A pintura do azulejo em Portugal (1675-1725): autorias e biografias.um novo paradigma, 2 vols., Lisboa, s/n, 2012 [Tese de doutoramento em História da Arte apresentada àFac. de Letras da Univ. de Lisboa], pp. 276-278.
80
Enquanto até cerca de 1989258, a Manuel Pereira C.O. se associava tão-só a
intervenção no aqueduto e reformulação setecentista da igreja do Mosteiro do Louriçal,
mais recentes investigações alargariam o âmbito da sua atividade ao Palácio dos
Marqueses de Olhão, em Lisboa, à Capela da Rainha Santa Isabel, em Estremoz, ao
mosteiro lisboeta de Santa Marta, ao retábulo da Ermida de São Sebastião da Moita, ao
retábulo-mor da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa ou, ainda,
ao portal da Igreja da Misericórdia de Torres Vedras.
Com efeito, até então, apenas uma fonte parecia consignar inequivocamente a
Manuel Monteiro a autoria de uma obra arquitetónica: a História da Fundação do Real
Convento do Louriçal, redigida pelo também oratoriano Padre Manuel Monteiro259.
Nela, porém, só aquele cenóbio de Capuchas emerge como fruto explícito do seu estro
criador. A investigação sucessivamente levada a cabo por Luísa Arruda assinalaria, com
base documental, a atividade do oratoriano no Palácio do Marqueses de Olhão entre
1717 e 1724, onde se encarregaria da medição das obras de carpintaria e pedraria260.
Conquanto não formalmente associado ao risco do edifício, Manuel Pereira, que num
dos documentos assina como “arquitecto das obras da Congregaçaõ do Oratório nesta
cidade de Lisboa", poderá, aventa a autora, ter tido responsabilidade na nova planta e no
desenho do portal do palácio261.
Mais se expandiria o espetro de ação do religioso ao propor-se a sua
identificação com o reputado pintor de azulejos conhecido pela sigla com que timbra os
seus trabalhos: P.M.P.262. É igualmente Luísa Arruda quem o sugere, fazendo notar a
presença de um azulejo deslocado da autoria do mestre monogramista no Palácio dos
Marqueses de Olhão263, circunstância que ganharia significado tendo em conta que, no
contexto da estreita ligação entre arquitetura e azulejaria, nos locais onde P.M.P. labora,
258 Socorremo-nos da data da primeira edição do Dicionário da Arte Barroca em Portugal (dir. de JoséFernandes PEREIRA, Lisboa, Editorial Presença, 1989), onde António Filipe Pimentel assina o verbetesobre Manuel Pereira (p. 350).259 Vd. Manuel MONTEIRO (padre), História da Fundação do real Convento do Louriçal de religiosascapuchas, Escravas do Santissimo Sacramento, Lisboa, Oficina de Francisco da Silva, 1750.260 Cfr. Luísa ARRUDA, “O Palácio de Xabregas. Do Legado do Tristão da Cinha às grandes obras doséculo XVIII, Claro-Escuro. Revista de Estudos Barrocos, n.ºs 6-7, Maio/Novembro de 1991, Lisboa,Quimera, pp. 151-161.261 Transcreve-se parcialmente um documento do Arquivo dos Marqueses de Olhão assinado em Lisboa24 de Setembro de 1724 (Idem, ibidem, p. 154).262 Cfr. Luísa ARRUDA; Teresa Campos COELHO, Convento de S. Paulo de Serra de Ossa, Lisboa,Edições Inapa, 2004, p. 38.263 Cfr. Luísa ARRUDA, Azulejaria barroca portuguesa: figuras de convite, Lisboa, Inapa, 1993, p. 90.
81
se pressente "a presença de um arquitecto que alterou espaços ou que pretende
sensibilizá-los com a presença monumental dos painéis."264
Ganhava consistência a figura de Manuel Pereira, que a autora designaria como
"freire oratoriano e Capelão da Rainha", personalidade "de Arquitecto amador,
decorador e mestre pintor que colaboraria ou mesmo estaria associado a uma grande
oficina de azulejos de Lisboa" - hipótese, esta última, avançada por Vítor Serrão com
base em documentação que liga um sacerdote de nome Manuel Pereira ao ladrilhador
António Antunes e ao pintor de azulejos Dionísio Pacheco265. Na documentação notarial
identificada e analisada em primeira mão por Vítor Serrão, o sacerdote surgiria
referenciado, salienta Rosário Carvalho, como “clérigo do Hábito de São Pedro e
Capelão da Sereníssima Rainha da Grã-Bretanha” e morador na Rua de São José266.
Sobre o mestre que nos ocupa passaria, portanto, a convergir a condição de
capelão da rainha da Grã-Bretanha e a identidade do também enigmático P.M.P., num
espetro laborativo que se estenderia da arte azulejar ao desenho arquitetónico e à
superintendência de obras.
Paralelamente, enquanto arquiteto tracista, a sua atividade ganharia fôlego ao
atribuir-se-lhe o risco do claustro novo do Mosteiro de Santa Marta, executado entre
1701 e 1705 em suposta parceria com João Antunes267, o desenho do retábulo-mor da
Igreja matriz de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa, segundo contrato de 2 de
fevereiro de 1716268, o do portal da Igreja da Misericórdia de Torres Vedras269, datado
de 1718 e, enfim, o do retábulo da Ermida de São Sebastião da Moita, obra de 1725270.
Mas o alargamento do leque de atribuições estender-se-ia ainda à Capela da Rainha
264 Idem, Convento de S. Paulo de Serra de Ossa, p. 37.265 Idem, ibidem, p. 38. A autora remete para Vítor SERRÃO, História da Arte em Portugal - o Barroco,Lisboa, Editorial Presença, 2003, p. 221. As cotas dos documentos que, na investigação de Vítor Serrão,permitem esta associação são: ANTT, C.N.L., n.º 15 ofício A (antigo 7 ofício A), Cx. 83, Livro de Notasn.º 448, fl. 54v.-56 e ANTT, C.N.L., n.º 15 ofício A (antigo 7 ofício A), Cx. 84, Livro de Notas n.º 463,fl. ilegível (apud Rosário CARVALHO, op. cit., p. 276).266 Cfr. Rosário CARVALHO, op. cit., p. 276.267 Cfr. Vítor SERRÃO, O Arquitecto Maneirista Pedro Nunes Tinoco. Novos documentos e obras (1616-1636), Separata do Boletim Cultural da Assembleia Distrital de Lisboa, III Série, n.º LXXXIII, 1977,Lisboa, pp. 25-27 e Vítor SERRÃO, História da Arte em Portugal - o Barroco, p. 177.268 Cfr. Manuel BRANCO; Paula CORREIA; Paula FIGUEIREDO; Filipa AVELLAR; Lina OLIVEIRA,“Igreja Matriz de Vila Viçosa/Igreja de Santa Maria do Castelo/Igreja de Nossa Senhora da Conceição”,Inventário do Património Arquitectónico, Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana,1993/2006/2007 (URL: www.monumentos.pt).269Cfr.Vítor SERRÃO, op. cit., p. 177.270 Cfr. Idem, ibidem, p. 177.
82
Santa Isabel, em Estremoz. Já assinalada com base documental por Túlio Espanca271, a
informação seria retomada e desenvolvida por Maria de Lurdes Cidraes272, que
reformula a hipótese, avançada por Vítor Serrão, de que o oratoriano pudesse inclusive
ser o programador daquele pequeno templo273.
Seria sem dúvida sedutora esta amplificação de trabalhos adjudicáveis ao mestre
ao criar um aparentemente mais sólido enquadramento a qualquer das suas supostas
obras, não fosse assentar numa confusão identitária decorrente da homonímia entre o
irmão congregado e o sacerdote e oficial ou arquiteto do mesmo nome e da paronímia
(ou "pseudo-paronímia") entre aquele e o pintor de azulejos P.M.P. - credenciada, neste
último caso, por uma associação aproximativa.
Suscitar-nos-ia reserva a identificação do irmão leigo da Congregação do
Oratório – que, e porquanto tal, não deveria atribuir-se a designação de “padre” – com o
clérigo do Hábito de São Pedro (i.e., secular), capelão de D. Catarina, detentor do
mesmo nome. Motivados a uma indagação arquivística mais aprofundada, veio pois a
constar-nos que, deste eclesiástico, falecido a 10 de março de 1719274, nada há que o
associe ao Oratório e, de igual modo, a qualquer das obras mencionadas. E, muito
embora ligado ao Mosteiro de Santa Marta, a cujo confessor viria aliás a deixar vários
bens em testamento275 e em cuja paróquia seria sepultado, reputamos incerta, embora
possível, a sua associação às obras daquele cenóbio, como incerta, senão improvável, a
atribuição a Manuel Pereira (C.O.) da autoria da remodelação setecentista do claustro
monástico276.
Em relação ao mestre responsável pelas obras do Louriçal, assumimos trata-se
da figura localizada por Luísa Arruda na remodelação do Palácio dos Marqueses de
271 Cfr. Túlio ESPANCA, Inventário Artístico de Portugal – Distrito de Évora (zona Norte), Vol. I,Lisboa, Academia Nacional de Belas Artes, 1975, p. 85. O autor refere o Códice CLXV – I – 8, fl. 40,guardado na Biblioteca Pública de Évora.272 Cfr. Maria de Lurdes CIDRAES, Os Painéis da Rainha, Lisboa, Edições Colibri/Câmara Municipal deEstremoz, 2005, p. 26.273 Cfr. Idem, ibidem, p. 26. Em nota, refere que Vítor Serrão sustenta a hipótese de que o religioso possaser também o autor da tradução anónima do Tratado de Pozzo, escrita em Santarém no ano de 1730.274 ANTT, ADL (Arquivo Distrital de Lisboa), Registos Paroquiais, Paróquia de São José, Óbitos, Cx. 22,Lv. O2, fl. 60 v.275 ANTT, RGT (Registo Geral de Testamentos), Lv. 159, fls. 62 -77 e 77-82 v. O testamento é de 20 deJunho de 1718, datando a sua abertura de 9 de março de 1719.276 Do fundo do Mosteiro de Santa Marta consta, conforme salientado por Vítor Serrão, um recibo deManuel Pereira relativo à obra de reconstrução do claustro. Este, porém, não certifica o mestre comoautor da obra, antes o coloca como mediador da execução da mesma. Vd, a propósito, Vítor SERRÃO, OArquitecto Maneirista Pedro Nunes Tinoco..., p. 26. O documento, uma nota de quitação de 15 desetembro de 1705, a que entretanto acedemos, é assinado por um "p.e Manoel Pereira", o qual não poderácorresponder ao irmão leigo do mesmo nome (cota atual: ANTT, ex-A.H.M.F., Cartórios dos Conventos,Convento de Santa Marta de Jesus, cx. 203, mç. 188, doc. 1).
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Olhão e por Túlio Espanca - e, no seu encalço, por Lurdes Cidraes -, nas obras da capela
estremocense da Rainha Santa Isabel277.
Pelas razões apontadas, a associação ao mestre azulejador apresenta-se-nos
questionável: Manuel Pereira não teria, repisamos, avocado a si a qualidade de professo
da sua Ordem, que o monograma P.M.P claramente reclama. Ademais, e bem que
reconhecendo o interesse e coerência dos argumentos avançados por Luísa Arruda, a
ligação do dito pintor ao Palácio de cujas obras o oratoriano foi medidor reveste-se de
caráter essencialmente especulativo.
Em concreto, apurámos documentalmente que Manuel Pereira ingressou como
noviço na Congregação do Oratório de Lisboa a 8 de setembro de 1689, tendo, portanto,
feito parte da primeira comunidade portuguesa de oratorianos cuja clausura em 1668 se
iniciava278. Como leigo, estado que jamais alterou, veio a falecer a 18 de julho de
1749279. Passado um ano do noviciado, trocou Lisboa por Estremoz, para onde terá sido
chamado, assim sustenta Lurdes Cidraes, a fim de integrar a comunidade afiliada que aí
então se fundava280.
No fundo documental do convento oratoriano de Nossa Senhora da Conceição
de Estremoz, que hoje se conserva na Biblioteca Pública de Évora, o nome de Manuel
Pereira surge várias vezes em registos de contas e encomendas. Com data de 2 de
Outubro de 1706, dá-se nota de que "enviou o Irmão M.el Per.ª a conta do azulejo do
Oratorio, das linhas de ferro da Casa da Rainha Sta., q. empregou com outras despesas
tocantes á Casa"281. De 1706 é um documento do próprio relativo ao "Azulejo q.
mandey fazer p.ª o Oratorio"282. Por fim, em registo de 1707 atesta-se que teria a haver
"pelo custo de duas pias de pedra da Arrabida p.ª a Igreja da Rainha Santa", de "duas
277 Cfr. Lurdes CIDRAES, op. cit., p. 26.278 ANTT, CORL, Casa do Espírito Santo, mç. 12, "Lista de Noviços e Congregados e datas de entradana Congregação". Na “Lista de todos os P.es e Irmaõs q. tem havido na Congregação e antiguid.e em q.entretaraõ”, incluída no maço anteriormente referenciado, faz-se menção a um “ir. Manoel Pereyra”, comindicação à margem de que é “Leygo”. É o único, aliás, desse nome.279 ANTT, CORL, Casa do Espírito Santo, mç. 12, “Noticia tirada do livro de Obitos dos dias em quemorreraõ os P.es e Irmaõs desta Congregaçaõ.”280 Cfr. Lurdes CIDRAES, op. cit., p. 26. A assinatura do irmão, sustenta, é uma das que constam do“Termo em que se declara a fundação do primeiro governo desta congregação”, registado no "Livro daseleições da Congregação do Oratorio da villa de Estremoz" (BPE, Lv. 2, 1697-1707, fls. 148).281 BPE, Convento de Nossa Senhora da Conceição de Estremoz, Cód. CII/1-24, fl. 72.282 BPE, Convento de Nossa Senhora da Conceição de Estremoz, Cód. CII/1-24, fl. 99 v. Manuel Pereiraterá encomendado ao oleiro Miguel de Azevedo azulejos de brutesco, 64 azulejos brancos e 24 alveares,tendo-os dado a pintar a Manuel dos Santos e encarregando, por sua vez, Braz Barradas "do corte q. fezem Lx.ª no azulejo".
84
canastras de pedras de brurnir", de "dois sacos de pó de pedra" e de vários outros
materiais relativos a obras283.
O acrisolamento identitário que aventámos permite-nos, antes de mais, recentrar
a pesquisa sobre Manuel Pereira C.O. ao estabelecer limites para o que efetivamente lhe
é adjudicável, mas não por isso nos isenta de dificuldades. Com efeito, quer no Palácio
dos Marqueses de Olhão, quer no Oratório de Estremoz, quer, ainda, na Capela da
Rainha Santa, o arquiteto não surge formalmente como responsável por qualquer risco,
mas antes como medidor ou, de algum modo, como intermediário. Da mesma forma, e
apesar de supostamente autor das obras de renovação do Louriçal nos anos 30 de
Setecentos, é-nos difícil, face à complexidade da empreitada, avaliar a sua real
intervenção. Se, por um lado, a planta do templo parece remeter para o traçado do
primeiro arquiteto do mosteiro, João Antunes - no pressuposto de lhe pertencer o risco
da Igreja do Menino de Deus284-, por outro, os trabalhos iniciados por Pereira foram
concluídos pelo superintendente dos mesmos, o desembargador e "curioso de
arquitetura" António Andrade do Amaral285.
Além disso, e pese embora o respaldo referencial oferecido pelos trabalhos a que
podemos associar o irmão de São Filipe Néri, afigura-se-nos por ora difícil detetar-lhe
um cunho ou estilo próprio. Como vemos, os dados que, até ao momento e até certo
ponto, nos permitiram dá-lo a conhecer, não nos habilitam, porém, a torná-lo
reconhecível.
Mas algumas ilações podemos, seguramente, extrair deste ainda preliminar
rastreio. Firma-se-nos - além da relevância, óbvia, do clero regular para a arte
monástico-conventual -, a perceção da ligação de Manuel Pereira às empreitadas
arquitetónicas conduzidas pelos Congregados de Estremoz, bem assim a incidência,
essencialmente alentejana, da geografia da sua atividade. A reflexão tecida por Paulo
Varela Gomes a propósito da construção da igreja dos Congregados de Estremoz286
enriquece, sem dúvida, o significado deste ensaio de contextualização. Sublinhando o
relevo dos religiosos para a arquitetura alentejana, aventa o seu envolvimento em
“eventuais primeiros desenhos para a nova Capela-mor da Sé de Évora" e nos projetos
283 BPE, Convento de Nossa Senhora da Conceição de Estremoz, Cód. CII/1-24, fl. 77 v.284 Reitera a dúvida de outros autores sobre a paternidade daquela obra Gabriel Jorge Andrade Costa em"Pintura e arquitectura: notas de leitura", ARQUIPÉLAGO. História, 2ª série, vol. 1, nº 1, Universidadedos Açores, 1995, pp. 333-350.285 Desenvolvemos a questão enunciada na tese de Doutoramento que de momento preparamos. Sobre oMosteiro do Louriçal, a já citada obra de Manuel Monteiro continua sendo a fonte mais rica e elucidativa.286 Cfr. Paulo Varela GOMES, “Fachadas de Igrejas Alentejanas entre os séculos XVII XVIII”, Penélope.Fazer e desfazer a História, n.º 6, 1991, pp. 2-40.
85
de 1744 para a Câmara Municipal do Redondo. O fôlego dos religiosos iria, contudo,
mais além: a fachada (inconclusa) da Igreja dos Oratorianos de Estremoz ter-se-ia
mesmo inspirado na face ocidental do templo lisboeta de Santa Engrácia287, paradigma
do primeiro barroco de feição internacional em território português.
No percurso de Manuel Pereira, aduziremos ao teor daquelas reflexões o
benefício que D. João V dispensou ao Oratório, alinhado, sem dúvida, com a intensa
atividade artística que, diretamente fomentada pela Coroa, percorrerá todo o seu longo
reinado288. O Magnânimo, a quem ficará a dever-se a construção do Palácio-Convento
das Necessidades, destinado aos Oratorianos de Lisboa, terá, com efeito, beneficiado
significativamente a Capela da Rainha Santa, pertença dos Congregados, que
incorporou no real padroado e a que concedeu rendas e alfaias sumptuárias289.
O mesmo em relação ao Louriçal, que, como casa de sua especial estima e
proteção, o soberano (re)funda, dota, enobrece e arquitetonicamente afaz à sua
"magnanimidade generosa"290. Vislumbramos, pois, Manuel Pereira em ambiência
timbrada pelo influxo régio, o que certamente terá imprimido cunho próprio à sua
atividade, quer esta se tenha desenvolvido na Corte de Lisboa quer na periferia. Fosse
pelo mérito intrínseco da sua obra, fosse pela pertença a um instituto religioso
fortemente acarinhado pelo rei - ou, o mais provável, pela convergência de ambos os
fatores -, Manuel Pereira ver-se-ia, como vimos, incumbido da "planta e medição" da
obra de renovação do Louriçal (ou de parte desta), tal como antes o havido sido de todas
as mais obras joaninas291.
Iremos curiosamente localizar D. Francisco de Lousada Ribadaneira na
Congregação do Oratório de Estremoz, cruzando funções e incumbências com o Irmão
Manuel Pereira. Disso nos dão prova certos documentos do já citado fundo do Convento
de Nossa Senhora da Conceição. Numa conta de Manuel Pereira podemos ler: "Por
dinhr. q lhe mandey dar ao Irmão M.el dos Santos por letra de 13 de 8bro p.ª este o
enviar a D. Fr.º de Lousada Ribadaneyra."292 Outros assentos contabilísticos há, estes do
próprio D. Francisco, que claramente o assinalam como intermediário ou oficial das
287 Idem, ibidem, p. 33.288 Cfr. António Filipe PIMENTEL, “Os grandes empreendimentos joaninos”, in Centro Cultural deBelém (org.), Triunfo do Barroco, Lisboa, Centro Cultural de Belém, 1993, pp. 31-37 (p. 31).289 Cfr. Túlio ESPANCA, op. cit. p. 85.290Cfr. Manuel MONTEIRO, op. cit., p. 84.291 Idem, ibidem.292 BPE, Convento de Nossa Senhora da Conceição de Estremoz, Cód. CII/1-24, fl. 72.
86
obras levadas a cabo pelos oratorianos293. Igualmente curiosa é a presença de certo João
Antunes, canteiro, nas obras cujos registos em tal livro se anotam294. Mas, tornando a
Ribadaneira e ao traçado do seu percurso, em que Lisboa, Estremoz e Louriçal assomam
iniludivelmente como polos, caberia indagar de alguma sua eventual influência na
escolha, junto do rei, de Manuel Pereira para a obra do Louriçal.
À medida que nos aproximámos de Manuel Pereira, da sua obra e contexto
laborativo - e concomitantemente, de artistas, obras e contextos outros com os quais
aqueles se cruzam e/ou confinam - vimos possivelmente surdirem mais questões que
firmarem-se certezas.
Tal como o artista, também o contexto em que operou parece enfermar de algum
caráter de indefinição e/ou reclamar um delineamento, questão que, se a um tempo é
histórica, é-o outrossim historiográfica. A morte de João Antunes, em 1712, criara um
vazio no panorama arquitetónico oficial, onde gravitariam várias personalidades
artísticas menores295. Caberia a Manuel Pereira o papel de veículo de um “Barroco
nacional de resistências”, representado, na dinâmica síntese de Vítor Serrão,
maioritariamente por “padres-arquitetos”, desenvolvido à margem do eixo introduzido
por Antunes e seus seguidores e caraterizado pela fusão ou interceção mais ou menos
conseguida de invariantes vernaculares ou tradicionais296?
Mas a ligação do irmão néri a encomendas de índole cortesã e ao fulgor
mecenático do Magnânimo não levaria antes a inseri-lo no “centro” artístico do país,
quem sabe na dupla transição entre a arte patrocinada por D. Pedro II e a de seu herdeiro
e sucessor e, no interior desta última, entre as primeiras empreitadas régias e as
representativas de um Barroco Internacional mais assumido? Talvez neste panorama de
transição e de contornos ainda incertos tenha assento a personalidade, também ela em
construção, de Manuel Pereira (C.O), arquiteto.
293 BPE, Convento de Nossa Senhora da Conceição de Estremoz, Cód. CII/1-24, fl. 73. Trata-se de umaconta de D. Francisco de Lousada Ribadaneira de 12 de outubro de 1703. Recebe dinheiro de um alfaiate.294 Refere o documento: "Por dinher.º q lhe mandey dar por letra a D.os da Silva recibido aqui de JoãoAntunes canteyro das nossas obras em 5 de Jan.ro de 1704." (BPE, Convento de Nossa Senhora daConceição de Estremoz, Cód. CII/1-24, fl. 72.)295 Cfr. Vítor, SERRÃO, op. cit., p. 185.296 Idem, ibidem, p. 177.
87
3. Arte e espiritualidade
Enquanto, até aqui, a arqueologia das obras monásticas foi feita entretecendo
registos parcelares e inferências várias, sobre a configuração material do mosteiro,
podemos socorrer-nos novamente da descrição ensaiada por Manuel Monteiro cerca de
década e meia após o termo das obras principais. O edifício compor-se-ia, di-no-lo, de
um perfeito quadro [quadrado], com bastantes cellas para o numero de 33.
Religiosas de Coro, e mais algumas para as conversas, todas com luz suficiente;
com hum claustro espaçoso, com oficinas proporcionadas aos ministerios de
Religiosas Capuchas, com enfermaria, e refeitório nella, para as
convalescentes; e huma grande baranda, que cahe sobre a cerca, a qual tinha
abundancia de agoa, de arvores silvestre, e de fructa297. (Fig. II.I)
Objetivo e isento de requebros, o quadro traçado pelo cronista seria bem mais
elucidativo que o oferecido pelo delegado do Tesouro da repartição de Fazenda do
Distrito de Leiria, que, em ofício de 1 de fevereiro de 1911, refere, sobre o cenóbio, ser
“Mosteiro antigo e pesado como em geral eram todos”.298 Mas o relato de Monteiro
não apenas é mais completo, quanto sublinha um valor intrínseco a uma casa religiosa: a
funcionalidade. A chave da correta definição do espaço está, pois, na adequação entre o
espaço e as necessidades da comunidade que o habita.
Esta justeza não se bastou, naturalmente, com a mera concordância entre espaço
disponível e lotação da comunidade. A austeridade da vida impôs, por um lado, uma
sobriedade estética que se revela tanto externamente, nas fachadas do conjunto
monástico, quanto em grande parte do espaço interno, com exceção das zonas nobres
por excelência, como o templo, coros, casa do capítulo ou santuário. Já a exemplaridade
da casa na sua luta contra a heresia e a heterodoxia e no cumprimento das normas
conciliares, sublinhou, por outro lado, a expressividade dos mecanismos arquitetónicos
inerentes à clausura.
Além e aquém de tudo isso, o Louriçal foi obra também de preexistências. De
um substrato material, por um lado, patente nos vários estratos construtivos que
297 Manuel MONTEIRO, op. cit., p. 83.298 Ofício da Repartição da Fazendo do Distrito de Leiria, ANTT/AHMN, cx. 1939.
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converteram à estrutura clausurada o primitivo recolhimento de terceiras, naturalmente
vertidos em diferentes tendências e influxos artísticos. Por outro, de um substrato
humano que, formado por terceiras e professas, se traduziu na viabilidade física de
acolher a transição entre duas comunidades canonicamente díspares. Mas, ainda, de um
substrato simbólico, que fez da celebração da memória de Maria do Lado um eixo
identitário com iniludíveis repercussões imagéticas. Neste sentido, o mosteiro oferece-
nos redundantes invocações da fundadora mística, cuja memória se reivindica através da
marcação simbólica dos espaços da sua vivência física e espiritual, como bem o provam
as capelas construídas em lembrança de especiais benefícios divinos, ou a incorporação
da casa onde vivera e da quase anexa Igreja da Misericórdia, palco de tantos prodígios.
O cenóbio não se limitou, porém, a acolher espaços ou objetos, converteu-os
mesmo em matéria de culto: o túmulo da fundadora seria primitivamente instalado sob o
altar-mor e o seu oratório privado daria pretensamente lugar a uma capela-relicário.
Tirando partido do poder da imagem, a iconografia não ficaria alheia ao projeto de
reivindicação memorial, retomando imagens de visões e profecias, possivelmente muito
próximas às velhas pinturas destruídas por ordem eclesiástica.
Resultando, ainda, de uma confluência de vontades, refletidas em substituições,
aposições ou complementaridades, que em seu torno se aglutinaram, o Louriçal é, por
tudo, uma obra complexa cuja compreensão convoca um conjunto multímodo de linhas
de análise.
Oferecendo uma sugestiva imagem de austeridade, o edifício apresentava-se
exteriormente como uma mole pétrea de dimensão sóbria, assinalada pela simplicidade
de paredes planas pontuadas descontinuamente por janelas gradeadas de verga reta e por
portas desornamentadas, exceção feita à portaria e ao ingresso do templo.
A sul do conjunto, desenhava-se a fachada lateral da igreja, desenvolvida no
sentido poente-nascente, e parte do muro da cerca. Confinando com o extremo oeste do
templo, erguia-se a torre sineira, conferindo alguma imponência a um conjunto no geral
pouco expressivo. Uma sucessão de vãos outrora gradeados dava corpo à fachada norte,
em cujo extremo se abria, na perpendicular, uma vistosa portaria. Fechavam a nascente
o conjunto, prolongando-o a sul e norte, os elevados muros da cerca monástica.
Intercetam de algum modo a austeridade do todo a decoração profusa e pesada
do portal da portaria, onde avulta um denso frontão em que enrolamentos de volutas
enquadram as armas reais -, e a molduração, mais sóbria, do portal do templo, onde
centralmente emerge, relevado, o emblema sigilar do Instituto: a Exaltação do
89
Santíssimo Sacramento. A par destes breves apontamentos decorativos, animava a
fachada o jogo dos volumes criado pela justaposição de espaços altimetricamente
dissemelhantes. Tirando partido de alguma transparência a estrutura interna –
promovida pela severidade decorativa das fachadas –, parece-nos, efetivamente, divisar
um conjunto formado pela articulação geométrica de diferentes blocos.
Eis, de relance, a imagem de uma instituição fechada, espacialmente centrípeta,
que, em certo sentido, se desenvolve sobre e para o interior de si mesma. E, se
considerarmos que o aqueduto, no termo de uma aparatosa travessia de 350 metros de
arcarias por entre a vila e terrenos circunstantes, entroncava com a mole ensimesmada
do cenóbio, teremos um impacte visual mais contundente ainda299.
Era no reverso destes muros que, sob o signo da clausura, se codificava o viver
cenobítico. As divisões, distribuídas por dois pisos, agregavam-se por núcleos
funcionais. No piso térreo, abriam-se a portaria com locutório e, em redor do claustro, a
cozinha, refeitório, capelas devocionais e salas atualmente inidentificáveis. A
hospedaria e casa do capelão situavam-se a norte do perímetro cercado e, a sul, o
templo, em torno do qual gravitava o confessionário, sacristia e sala do capítulo300. A
casa do confessor, independente do conjunto embora a ele contígua, prolongava a leste
o alçado da igreja e confinava com a cerca. Esta última, com capela, desenvolvia-se a
oriente do conjunto, abrigando, no seu interior, poço, horta e pomar. No piso superior,
percorriam o claustro as celas das religiosas. A poente, ficava o noviciado, com sua
capela, a casa do presépio, o cartório e o santuário. A enfermaria, a sul dos dormitórios,
abria para a cerca.
Em torno de dois núcleos – templo e claustro –, parece, pois, assentar a dinâmica
arquitetónica da casa. Os espaços adjacentes à igreja pública – coros, sacristias e
comungatórios – contatavam com a clausura através de um desdobramento de si
mesmos que assume também uma dimensão altimétrica. Coro alto e coro baixo,
antecoros, sacristia de fora e de dentro são exemplos de estruturas que servem o
mecanismo da clausura. Devemos, no entanto, apor aos anteriores um terceiro núcleo,
cujo valor simbólico assume, de algum modo, uma função distributiva: a antiga
residência de Maria de Brito. Se, por um lado, comunica com o coro baixo, por outro,
299 Sobre o aqueduto, veja-se Cecília MATIAS; Teresa FERREIRA (atualizações), "Aqueduto doConvento do Louriçal", 2008-2012(http://www.monumentos.pt/Site/APP_PagesUser/SIPA.aspx?id=26532)300 Primitiva sala do capítulo (hipótese em aberto).
90
comunica com o claustro. Nenhuma das suas fachadas é exterior, antes se encontra
totalmente imersa no perímetro cercado da clausura.
3.1. Expressões arquitetónicas
Acolhendo perpetuamente a vida sob princípios e regras estritos, o mosteiro
codifica espaços definidos antes de mais pela funcionalidade. Assim, mais que um
itinerário que reproduza uma deambulação pelos espaços monásticos feita por um
inventariante externo, sigamos como critério a natureza do viver cenobítico, para
analisar, ancorando-nos pragmática e aproximativamente na tipologia proposta por
Nelson Correia Borges301: o espaço litúrgico e de oração, o claustro, os pontos de
contacto com o exterior, os espaços de recreação e lazer e os locais de sobrevivência
temporal.
3.1.1. Entre interior e exterior (Figs.II.17.-35.)
O regime de clausura compõe um vocabulário de uma impressividade quase
maniqueísta, subordinando o contato com o exterior a uma zelosa reserva em relação ao
mesmo. Se a clausura se justifica enquanto reverso do século, a arquitetura assegura o
cumprimento de tal nexo no recurso aos mais ardilosos expedientes.
Verdadeiro diafragma, a porta regular, ou da portaria, constituía o único acesso
entre mundo e religião. Aberta perpendicularmente à fachada norte do conjunto, dela se
destaca o portal, robusto, pesado, de aparência seiscentista. O lintel e ombreiras,
decorados por “dupla série de caixilhos retangulares e quadrados” dispostos em
alternância, perfazem a aparência mais sólida que elegante deste ingresso302.
Ornamentando o frontão, a data incisa (1709) e as armas reais invocam o início da vida
monástica e a proteção régia de que dependia. Hoje incompleta, à decoração primitiva
deveria faltará a coroa régia a encimar o escudo, dos anjos a ladeá-lo e, possivelmente a
sustentá-lo, uma cabeça de anjo alado. Não passando de uma reconstituição hipotética, o
301 Idem, ibidem, pp. 35-55.302 Cfr. Maria José Guerreiro CABRITA, O Convento do Santíssimo Sacramento do Louriçal. Os espaçostemporal e espiritual, Tese de Seminário da Licenciatura em História da Arte, Coimbra, s/n, 1993,policopiado, p. 19.
91
conjunto aproximar-se-ia de outros do seu género - como, significativamente, o do
portal da igreja lisboeta de Santa Engrácia.
No interior da portaria, uma divisão retangular, coberta por abóbada de aresta e
decorada com silhar de azulejos, estabelece a comunicação com o interior do mosteiro
através da roda e da portaria de dentro, que, por sua vez, conduz ao locutório ou grade.
3.1.2. O templo (Figs.II.43-51)
Definindo, em certa medida, um contraposto em relação aos demais espaços
monásticos, timbrados pelo caráter funcional e pela correspondência estrita a uma Regra
que impunha o despojamento, o templo, espaço sagrado por excelência e corolário de
todo o programa espiritual da casa, apresentava um valor decorativo que não passaria
despercebido ao olhar pouco informado do inventariante de 1911, que a respeito
profere: “apesar da minha incompetencia, creio ser digna da melhor conservação tal é a
preciosidade dos seus mármores e azulejos que a reveste.”303 Talvez da convicção deste
delegado do Tesouro tenha origem a proposta de classificação do templo como
monumento nacional que, a 16 de maio de 1939, viria a efetivar-se304.
É este, efetivamente, o lugar onde a riqueza artística tem a primazia e onde a
casa revela particular permeabilidade a condicionalismos outros – correntes artísticas,
gosto particular do encomendante - que não a rigorosa obediência aos cânones rigoristas
do Instituto. Lugar que congrega a comunidade de fiéis leigos e a comunidade religiosa,
que reúne homens e mulheres, é também nele que se assiste ao Mistério da Palavra e da
Transubstanciação. Eis, por tudo, um espaço de comunhão e convergência em torno de
uma mensagem que encontra na expressão artística um veículo por excelência.
Construído posteriormente ao demais conjunto edificado, apresenta em planta
uma pronunciada rotação angular em relação aos eixos definidos pelo claustro – que
respeitam, aliás, o alinhamento viário em que igualmente se inscreve a antiga casa da
fundadora.
A entrada pública, como é usual em mosteiros femininos de clausura, faz-se
lateralmente, tendo a enquadrá-la um portal de molduração simples encimada no frontão
303 ANTT, AHMF, Convento do Desagravo do Santíssimo Sacramento do Louriçal de Leiria, cx. 1939.304 Pelo Decreto n.º 29 604, Diário do Governo, 1.ª série, n.º 112, de 16 de maio de 1939, o imóvelconstituído pela "Igreja do Convento do Louriçal, com os dois coros da mesma e o claustro contiguo" éclassificado como Monumento Nacional.
92
por um medalhão que glosa o tema da exaltação eucarística, reproduzindo as visões da
veneranda instituidora da casa.
É notória a diferença entre os dois portais do mosteiro, mas não podemos afastar
categoricamente João Antunes dos antecedentes da nova realização. De fato, o arquiteto
de D. Pedro II desenhara, em 1693, a fachada da Igreja do Santíssimo Sacramento, em
Lisboa, onde um medalhão de igual insígnia e recorte semelhante encima o portal
principal. Apesar de a peça que atualmente se contempla ter presumivelmente saído do
punho de Manuel da Costa Negreiros, parece-nos lícito supor ter-se inspirado na
primitiva criação antuniana que, em 1796, no contexto da reconstrução do templo após
o Terramoto de 1755, veio a substituir305.
Também em relação à planta do templo, a presença do arquiteto régio deve ser
equacionada. Um eventual traçado de Antunes poderá ter servido de fonte à igreja nova
de Manuel Pereira ou, em alternativa, partes da igreja antiga, hipoteticamente
resultantes de uma por enquanto ignota intervenção antuniana, poderão ter sido
reaproveitadas no novel edifício.
De fato, o novo espaço assemelha-se planimetricamente a várias das obras
riscadas por Antunes. As plantas poligonais, ou de ângulos cortados, já havia tempo
eram usadas. O modelo de nave que tipificam terá caracterizado as igrejas portuguesas
do último decénio de Seiscentos306, de que são exemplos a Igreja do Menino Deus,
riscada provavelmente por Antunes, assim como várias outras obras do autor, mas
também a Igreja de São João Batista de Campo Maior (1734), da autoria de João Soares,
projeto igualmente patrocinado por D. João V. Quem sabe a flexibilidade de um
eventual plano de Antunes ficasse a dever-se a uma também eventual abstração do
projeto, situação que, na obra do mestre, encontraria estreito paralelo com Santa
Engrácia307.
Aproxima-nos uma vez mais da obra do arquiteto de D. Pedro II o nicho, com
aletas e enrolamentos, que sobrepuja o arco cruzeiro da igreja, e onde pontifica a
presença guardiã de S. Miguel Arcanjo. Não obstante, a nave retangular não apresenta
um octógono perfeito, mas, pela presença do coro, na parte fundeira, um semi-octógono
305 A respeito da Igreja do Santíssimo Sacramento, poderá encontrar-se informação atualizada emhttp://www.monumentos.pt/Site/APP_PagesUser/SIPA.aspx?id=4044, em resenha da autoria de TeresaVale, Carlos Gomes (1996) e atualização de João Machado (2005).306 Paulo Varela GOMES, op. cit., p. 302.307 Vd. a circunstanciada análise de Ayres de CARVALHO em As obras de Santa Engrácia e os seusartistas, Lisboa, 1971.
93
conseguido pelo seccionamento dos dois vértices onde repousam os altares que
flanqueiam o arco triunfal.
O que se nos apresenta não é já o vasto salão com capelas superficiais e, no topo,
uma caixa como capela-mor, evolução do tipo “jesuíta”, de nave única, de capelas
intercomunicantes nas ilhargas, com ou sem transepto e cúpula, esquema este eleito
pelas Ordens religiosas desde o séc. XVI308. Dentro do padrão de nave única e
unificação espacial, a que apreciamos é uma igreja que parece acusar preferencialmente
uma influência mais erudita, provinda, quem sabe indiretamente, de São Vicente de
Fora. Esta última, de cruz latina, apresenta cabeceira em forma de cruz grega com
cúpula sobre pendentes fechando a capela-mor309.
Independentemente da sua filiação ou modelo de inspiração, a planta do Louriçal
reflete, sem dúvida, o desejo de criar um espaço unificado e intimista. O efeito
conseguido parece corresponder à junção de duas plantas: uma, de planta quase
octogonal, formando o corpo; a outra, de planta centrada, formando a capela-mor. O
transepto, inscrito e inserido na capela-mor, denota, com efeito, esse esforço de
unificação espacial. A capela-mor, encimada por cúpula, funcionaria quase como um
pequeno templo-santuário de função memorial: para além de espaço de celebração do
Milagre Eucarístico, assumir-se-ia como sede comemorativa da memória da fundadora,
cujo túmulo - significativamente em forma de altar - aí pontificava.
A respeito do modelo de cúpula hemisférica, neste caso decorada com caixotões
de cantaria, Nelson Correia Borges refere tratar-se de uma “solução adoptada em raros
exemplares nacionais, como na matriz de Penamacor ou na Misericórdia de Viana do
Castelo.”310 Nos anos 30 de Setecentos, porém, o modelo em causa havia já sido
ensaiado, e não apenas em espaços de planta centralizada, como Santa Engrácia, mas
noutros mais, como São Vicente de Fora311.
Coerente em termos estéticos e espirituais, a cúpula do templo clariano
apresentava, decorando os pendentes, a imagem pictórica dos quatro Apóstolos,
mensageiros da Palavra. No altar-mor, por seu lado, a tribuna abrigava um “panno de
camarim pintado a oleo representando a adoração do SS. Sacramento por duas
308 Nelson Correia BORGES, «O barroco joanino», História da Arte em Portugal – Do barroco aorococó, Vol. 9, Lisboa, Edições Alfa., p. 34.309 Cfr. Sandra SALDANHA (coord.), O Mosteiro de S. Vicente de Fora – Arte e História, Lisboa, CentroCultural do Patriarcado de Lisboa, 2010, p. 125.310 Nelson Correia BORGES, «O barroco joanino», op. cit., p. 34.311 Cfr. Sandra SALDANHA, op. cit., pp. 77-153.
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religiosas”312. A tela oferece-nos uma das poucas representações imagéticas das
Clarissas do Desagravo, que, com véu azul celeste e custódia no escapulário, aí se
encontram, não tanto em adoração eucarística, quanto participando da elevação da
custódia por dois anjos, no que constituíra a visão fundadora de Maria do Lado313.
Associando-se a este motivo central, um anjo eleva um ramo de açucenas, enquanto de
uma lamparina se eleva fumo que envolve a cena superior. No extremo direito da
composição, ergue-se a estátua de uma religiosa ostentando uma cruz. Tratar-se-á de
Maria do Lado, cuja profecia se rememorava e cuja autoridade, por conseguinte, se
sufragava? Estranhamente, a tela não corresponde à descrição da pintura de Emanuel
Alfani, que supostamente se destinaria ao mesmo local314.
As imagens escultóricas de dois serafins de grande dimensão ladeiam
simetricamente o altar-mor. Empunhando, numa das mãos, um escudo e, na outra, uma
lança, vigiam e custodiam alegoricamente o Altar. “Regem Angelorum Dominum” - eis
a inscrição que o escudo ostenta -, eles são, efetivamente, os mais habilitados dentro da
hierarquia celeste a atender a tal função.
Duas capelas laterais e duas colaterais abriam simetricamente ao longo da nave
da igreja. Muito semelhantes entre si e replicando, a pequena escala e de forma
simplificada, a estrutura retabulística proposta pelo altar-mor, apresentavam retábulo
polícromo - branco, preto, rosa e amarelo - de mármores provenientes de Lisboa.
Formado por arco de volta perfeita, interrompido na zona central, apresenta painel
ladeado por pilastras e, em frentes delas, por colunas de capitéis coríntios, que suportam
um frontão limitado por volutas, da autoria de Carlos Mardel, e composição escultórica
- os anjos dos acrotérios e os relevos de temática Eucarística dos tímpanos - de António
312 ADLRA, Convento do Louriçal, Relaçao das alfaias, vasos sagrados e mais objectos […] que em 23de maio de 1878 se começaram a avaliar.313 A tela, cuja descrição consta dos inventários relativos à supressão da casa, encontra-se ainda hoje nomosteiro.314 É pouco o que se sabe deste pintor, que nem Cyrillo nem Taborda referem. Nuno Saldanha anota a suaimportância para o “desenvolvimento da pintura ítalo-romana de Setecentos, nomeadamente no percursoestilístico que se desenha na transição dos classicismos das duas metades da centúria, ou seja, entre oclassicismo e o neoclassicismo dos finais do século XVIII”. Terá tido atividade em Portugal entre 1730 e1746. Tanto em Portugal como em Itália terá sempre estado associado a encomendas de envergadura,sendo em Roma muito conhecido. Em Portugal, esteve ligado a Mafra (convento) e à Catedral de Évora.A sua atividade no país deve ver-se no contexto da vinda de artistas italianos para Portugal a instâncias deD João V e, ainda, às obras do ciclo de Mafra. Poderemos, pois, associar a Alfani, Bellini e Mardel ummesmo veio estético e uma mesma motivação mecenático-artística. Cfr. “Emanuel Alfani (act. 1730-1746)”, Joanni V. Magnifico. A pintura em Portugal ao tempo de D. João V. 1706-1750, Lisboa, IPPAR,1994, pp. 397-400.
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Bellini de Pádua. O conjunto, cujo coroamento recorre ainda a enrolamentos, grinaldas
e festões, denunciaria, segundo Horácio Bonifácio, o influxo palladiano315.
Os altares laterais abrigariam as impressionantes imagens escultóricas dos
padroeiros da Ordem, São Francisco e Santa Clara316, enquanto os colaterais acolheriam
Nossa Senhora da Conceição, da parte do Evangelho, e Jesus Cristo, na da Epístola317.
Segundo Francisco Leite de Faria318, a santa de Assis poderia ter sido esculpida
no sul da Alemanha ou nos Países Baixos, ou, se em Portugal, por artista formado
nalguma daquelas regiões. Qualquer atribuição é, por enquanto, conjetural, mas o fato
de Cyrillo atribuir uma imagem de Santa Clara a Bellini e Fernandes Pereira consignar
ao mesmo mestre uma imagem de São Francisco, levaria a consignar hipoteticamente ao
escultor paduano a autoria dos dois seráficos fundadores319. Por extensão, também os
serafins do altar-mor poderiam ser obra de Bellini, muito embora a hipótese autoral aqui
aventada intercete necessariamente a heterogeneidade qualitativa bastamente
reconhecida ao percurso laborativo deste mestre320.
A disjunção que se afere entre a natureza do labor arquitetónico e escultórico dos
retábulos, e, com ela, a não coincidência das respetivas autorias não á clara aos olhos de
vários historiadores. Cyrillo refere que Bellini seria o único escultor naquele tempo em
Portugal capaz de trabalhar o mármore321. E, de fato, segundo Teresa Vale, que refere
que Bellini estaria a trabalhar nos retábulos do Louriçal entre 1737 e 1739, os trabalhos
do escultor “denunciam o domínio das duas linguagens artísticas, uma concepção
simultaneamente arquitectónica e escultórica” 322. A dupla formação, como escultor e
315 Horácio BONIFÁCIO, Polivalência e contradição: tradição seiscentista: o Barroco e a inclusão desistemas eclésticos no séc. XVIII: a segunda geração de arquitectos, Tese de Doutoramento em Históriada Arquitectura apresentada à Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa, Lisboa,1990 [policopiado], p. 234.316 Atualmente constantes do acervo do Museu Nacional de Machado de Castro, em Coimbra.317 Hoje em dia, apresentam as imagens de São José e o menino e da Imaculada Coração de Maria e, dolado sul, o Sagrado Coração de Jesus e a Imaculada Conceição. O Inventário Artístico refere, no entanto,que os “dois altares colaterais são dedicados, um a São Francisco, e outro a Santa Clara”. (p. 112)318 Cfr. Francisco Leite de FARIA, Santa Clara e as Clarissas de Portugal, Lisboa, Instituto daBiblioteca Nacional e do Livro, 1994, p. 23 apud Joaquim EUSÉBIO, op. cit., p. 42.319 Joaquim Eusébio refere tratarem-se possivelmente de obras de Bellini (Cfr. Joaquim EUSÉBIO, op.cit., p. 42.)320 Idem, ibidem.321 Cfr. Joaquim EUSÉBIO, op. cit., p. 41.322 Teresa Leonor VALE, "João António Bellini de Pádua: a mobilidade de um escultor italiano emPortugal no século XVIII: parcerias artísticas e encomendadores", Artistas e artífices e a sua mobilidadeno mundo de expressão portuguesa, Colóquio Luso-Brasileiro de História da Arte, Porto, Faculdade deLetras da Universidade do Porto, 2007, p. 505 apud Joaquim EUSÉBIO, op. cit., p. 41.
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arquiteto, fariam de Bellini um interlocutor particularmente eficaz para uma encomenda
que previa uma articulação íntima entre escultura e arquitetura323.
Várias obras dão, porém, testemunho de uma tal repartição de créditos e
autorias. A Capela do Cardeal da Mota, no Mosteiro de São Vicente de Fora, por
exemplo, que com o Louriçal apresenta evidentes similitudes formais, documenta a
mesma divisão de trabalhos324. Ademais, o labor de Bellini limitou-se, em vários casos,
à componente escultórica de um retábulo ou de um altar, como ocorreu no altar-mor da
Catedral de Évora, no da Igreja do Colégio de Santo Antão-o-Novo ou no retábulo-mor
da Igreja de S. Domingos de Benfica325. Curiosamente, e tal como Carlos Mardel,
interveio no Mosteiro de Santa Clara-a-Nova, em Coimbra326. Não nos parece, portanto,
infundada a fiança depositada na palavra de Manuel Monteiro, que atribui a Carlos
Mardel a arquitetura dos retábulos e a Bellini a sua decoração327.
A intervenção do escultor italiano tem, contudo, suscitado dúvidas mesmo no
que toca à obra do Louriçal. A propósito, Joaquim Eusébio sugere dever-se-lhe a
realização dos retábulos ou, na esteira de Fernandes Pereira, a direção da respetiva
empreitada, assumindo colaboradores menores a feitura das peças mais imperfeitas328.
Na verdade, as imperfeições anatómicas de certos anjos contrastariam com a excelência
da execução das imagens dos santos franciscanos329. À ausência de melhores
esclarecimentos, não podemos eximir à paternidade de Bellini a execução de trabalhos
de mais duvidosa mestria, situação, aliás, que não seria, como dissemos, inédita ao
conjunto da sua produção330.
O risco da capela-mor é, por certos autores, atribuído a Carlos Mardel, o qual,
como arquitecto do Sereníssimo Estado de Bragança a supervisionar obras na
vila de Ourém, daquele património, foi designado para intervir no Louriçal, não
323 Cfr. Teresa Leonor VALE, op. cit., p. 517, apud Joaquim EUSÉBIO, op. cit., p. 42.324 Cfr. Horácio BONIFÁCIO, Polivalência e contradição…., 1990 [policopiado], pp. 352-3. O autorrefere o documento notarial patente em ANTT, Cartório Notarial de Lisboa n.º 11, lv. 548, fl. 70. Estarepartição de contributos foi também notada por Sandra Saldanha.325 Compôs, no entanto, a totalidade de vários retábulos: o da Capela da Quinta de Santa Bárbara, emConstância, o de Nossa Senhora da Boa Morte da Igreja de Nossa Senhora da Conceição de Santarémentre 1734 e 1739.326 Nelson Correia BORGES, «O barroco joanino», História da Arte em Portugal – Do barroco aorococó, Vol. 9, Lisboa, Edições Alfa., pp. 98-99.327 Cfr. Sandra SALDANHA (coord.), O Mosteiro de S. Vicente de Fora – Arte e História, Lisboa, CentroCultural do Patriarcado de Lisboa, 2010, p. 125.328 Cfr. Joaquim EUSÉBIO, op. cit., p. 42.329 Idem, ibidem.330 Idem, ibidem.
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muito distante daquela vila – constituindo, portanto, um dos seus primeiros
trabalhos ao sabermos que chegou a Portugal a 1733.331
Não poderemos secundar a afirmação sem reservas, nem mesmo após recurso a
aproximação formal, e estranhamos que Manuel Monteiro, que tão abertamente
mencionou autorias, não o tenha referido neste caso. No entanto, e pelo que acima
afirmámos, não afastamos o arquiteto húngaro da ideação do retábulo do altar-mor.
Numa perspetiva de conjunto, a teatralidade e a unificação espacial que
reconhecemos à igreja, afiguram-se-nos potenciadas pelo revestimento azulejar que, por
completo, recobre as paredes até ao arranque da cobertura. Mas a iluminação joga
também importante papel nesta que é, afinal, uma "unificação bipartida”. Na capela-
mor, a luz jorra da cúpula e da janela aberta sobre o braço sul do transepto. Na nave,
entra pelos vãos do lado do Evangelho, mas também pelos que se abrem sobre as
capelas colaterais, convergindo para o interior do templo.
Mas este é um espaço unificado também pela coerência do programa
iconográfico, de que o revestimento azulejar assume, pela sua extensão e substância, o
protagonismo. Tirando partido da sobriedade planimétrica, os painéis azulejares, da
provável autoria de Valentim de Almeida, dividem-se em dois planos pela cimalha,
apresentando-se como um eloquente discurso alegórico, no qual a figuração superior
parece sufragar e infundir sacralidade à que lhe é espacialmente inferior, estabelecendo
com ela um estreito e íntimo paralelismo.
Para a coerência – simbólica, narrativa, doutrinal -, concorre de forma cruzada e
cumulativa o tema, o lugar confiado aos painéis, a relação simbólica e hierárquica que
estabelecem entre si e com o crente presente no templo. E, ainda, o diálogo entre os
azulejos e outros elementos decorativos da igreja: a imaginária, a pintura do retábulo do
altar-mor e, evidentemente, a figuração que reveste a abóbada da nave única (Figs.II.52-
64).
Envolvidas por cercaduras de concheados, mascarões, guirlandas, pilastras e
capitéis, "putti" e serafins, as cenas compõem quatro ciclos narrativos divididos em
altura e segmentados longitudinalmente pela natural fronteira arquitetónica que separa a
nave da capela-mor. No primeiro, episódios da Paixão de Cristo - O lava-pés, A descida
331 Cfr. José de Monterroso TEIXEIRA, “O Sagrado e as Festas”, O Triunfo do Barroco… pp. 220-221.
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da cruz, A Flagelação, O coroamento de espinhos, Cristo com a cruz às costas, Cristo
na cruz332, sobrepujam cenas da vida de S. Francisco333 - O crucifixo fala a São
Francisco, A estigmatização, A aprovação da Ordem Franciscana, A última comunhão
de São Francisco, A fundação da Ordem Terceira por São Francisco, A tentação de
São Francisco, O Papa Nicolau V perante o cadáver de São Francisco. Medalhões com
emblemas da Ordem seráfica servem de rodapé aos painéis do primeiro registo,
enquanto outros representando as insígnias da Paixão suportam graficamente as cenas
do segundo nível.
Na capela-mor, episódios da vida de Nossa Senhora - A Apresentação da
Virgem, O Casamento da Virgem, A Visitação e A Anunciação, encimam narrativas da
vida de Santa Clara - São Francisco dá a Forma de Vida a Santa Clara; São Francisco
recebe Santa Clara; O lava-pés; Milagre da multiplicação dos pães; Santa Clara põe
em fuga os Sarracenos; Milagre do azeite. O mesmo jogo retórico entre narrativa e
simbólica que o revestimento da nave propõe é igualmente reiterado neste novo
discurso, que, de temática mariana e clariana, aparece pontuado não já com os atributos
da Paixão ou da Ordem de São Francisco, mas com os símbolos de Nossa Senhora: o
sol, a lua, o cipreste, a estrela, a rosa e o vaso de flores.
A circunscrição arquitetónica patente na relação entre nave e capela-mor – em
que assenta a divisão entre ciclos femininos e masculinos, na sugestiva adjetivação de
Joaquim Eusébio334 -, corresponde efetivamente à separação entre dois mundos, secular
e regular. Ao espaço público - a igreja de fora - corresponderia a iconografia masculina;
ao privado - a capela-mor -, e porque relativo a uma casa feminina, o ciclo
correspondente.
De fato, o estreitamento visual propiciado pela capelas colaterais e o arco
triunfal assegura intencionalmente a separação desses dois mundos e desses dois
distintos, embora interligados, pontos de vista335. Se o “século” tinha como ponto de
fuga o altar-mor e, a envolvê-lo, na mesma razão hierárquica, as figurações de Cristo e
de São Francisco, já as monjas, da tribuna do altar-mor, tinham perante si o altar-túmulo
dedicado a Maria do Lado, encimando pelas figurações da Virgem e, abaixo delas, pelas
332 Joaquim Eusébio refere que o imaginário da Paixão deve ter sido enriquecido pelas Revelações deSanta Brígida da Suécia (séc. XIV), que terão aportado detalhes de extremo dramatismo ao sofrimento deCristo, o que poderá corresponder à vontade, sentida pelo próprio artista, de melhor transmitir umamensagem (Cfr. Joaquim EUSÉBIO, op. cit., p. 48.).333 As representações de São Francisco seguem alguns dos passos da Vida de São Francisco, embora apretensão de transmitir uma mensagem secundarize o valor da verosimilhança hagiográfica.334 Cfr. Joaquim EUSÉBIO, op. cit., pp. 58-59.335 Idem, ibidem.
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de Santa Clara336. Em escalonamento hierárquico, enunciador da relação
humano/terreno e divino/celeste, se exibiam as padroeiras canónicas do mosteiro.
O programa azulejar tira, pois, claro partido de uma concatenação entrecruzada
de paralelismos. Cristo, na Sua Paixão, é exemplo para São Francisco, como bem ilustra
Joaquim Eusébio ao aproximar a Agonia no Jardim das Oliveiras da Agonia de
Francisco no Monte Alverne, ou o descimento da Cruz do corpo estigmatizado de São
Francisco337. Mas o santo de Assis é outrossim exemplo para Santa Clara. O mesmo
ascendente que em relação a ele tem Cristo, tem-no Francisco em relação a Clara. Tal
como Francisco escuta Cristo crucificado, Clara escuta Francisco. E é Francisco quem
dá a Regra a Santa Clara. Mas Clara toma também diretamente o exemplo de Cristo: tal
como Ele, lava os pés às demais discípulas, no que vemos a humildade e a assunção do
estatuto de prelada e, tal como Cristo, manifesta virtualidades taumatúrgicas338, na
multiplicação dos pães e no Milagre do Azeite339.
A coerência retórica deste discurso mais não faz que repisar a plena inscrição
canónica do percurso das clarissas. Significativamente, não são quaisquer passagens da
Vida de Cristo que inspiram o caminho dos santos franciscanos, mas apenas os da Sua
Paixão. Não apenas a hagiologia de São Francisco a isso apelaria, quando o carisma
espiritual da casa, devotada ao Sacramento do Altar. Cristo, através do Seu sofrimento
redentor, dá testemunho de santidade e funda a Igreja. Este caráter fundador está
igualmente presente nos relatos de vida dos dois santos franciscanos, incidentes
precisamente sobre a caminhada - não isenta de provações, como dão manifesto a
Tentação de São Francisco e A Tentação do Demónio - que ambos trilham desde a
decisão de assumir plenamente o testemunho de Cristo até à assunção do estatuto de
fundadores de um família religiosa340.
Com efeito, da relação mimética em relação a Cristo, os santos franciscanos
colhem a legitimidade e a santidade da sua caminhada, cujo corolário é, não tanto a
profissão religiosa, quanto a fundação de uma nova Ordem. Estribado numa relação
especular cujo vértice é, evidentemente, Cristo, Francisco assume um caminho cujo
336 Idem, ibidem.337 Idem, ibidem.338 Idem, ibidem, pp. 60-61.339 Presumivelmente evocativa das Bodas de Canaã (Cfr. Joaquim EUSÉBIO, op. cit. p. 61)340 As histórias dos dois santos franciscanos, na opinião de Joaquim Eusébio, seguem de perto os relatosdas principais etapas da sua vida, desde a tomada de decisão de se consagrarem a Deus, daí, por um efeitode mimetismo, aparecerem num mosteiro em que as monjas tomaram a mesma decisão. E, de fato, é aconsagração a uma causa perene, assumida como alter-Christus, que aqui está em causa e que, por seulado, a igreja consagra. (Cfr. Joaquim EUSÉBIO, op. cit. Anexo, p. LVIII)
100
exemplo, por sua vez, transmite a Clara. Nesta, contudo, o testemunho deriva também
diretamente de Nossa Senhora, cuja vida totalmente se reconduz a Deus Encarnado.
O caráter fundacional do programa manifesta-se com particular clareza na
representação da génese da Ordem de São Francisco nos seus três distintos ramos341: a
Ordem dos Frades Menores (OFM) - Aprovação da Regra de Ordem Franciscana -, a
Ordem de Santa Clara (OSC) - São Francisco dá a Forma de Vida a Santa Clara, O
Papa Inocêncio III confirma a Regra da Ordem das Clarissas e Santa Clara recebe a
visita do bispo de Ostia - e a Ordem Terceira de São Francisco (OTSF) - Fundação da
Ordem Terceira por São Francisco342. A reiteração da presença da Ordem de Santa
Clara, bem assim a da ideia de uma chancela canónica da Ordem através das suas várias
instâncias de autoridade, parece invocar a história da fundação do Mosteiro do Louriçal
e das Clarissas do Desagravo e, por conseguinte, convocar a sua presença como
elemento para a compreensão do discurso iconográfico do templo.
Há, na verdade, componentes desta narrativa que, em lugar de expressos, apenas
se subentendem. É neles localizamos Maria do Lado e a Regra do Desagravo. Com
efeito, o paralelismo a que atrás aludimos perfaz-se, a nosso ver, com esta presença, que
constitui afinal o ponto de fuga do programa idealizado. Não estranhamos, portanto,
que, numa análise panorâmica ou simplesmente menos atenta, vários autores tenham
visto nos painéis do transepto cenas da vida da Venerável343. É ela, efetivamente, a
instituidora da família religiosa que a fundação do mosteiro representa; é a sua memória
que se cultua num altar-túmulo situado em plena capela-mor; são as suas visões que se
invocam na pintura do altar-mor.
Acreditamos, pois, ser a legitimação da nova observância capucha o eixo
temático da mensagem ideográfica do templo. De fato, a Vida Revelada a Maria do
Lado poderia perfeitamente corresponder ao discurso glosado pelos vários elementos
imagéticos do templo. Na revelação – convertida em documento canónico – , se refere
que a observância futuramente instituída derivaria das três Ordens de São Francisco –
que, efetivamente, se ilustram nos painéis. Por outro lado, a vida espiritual da Venerável
assenta primordialmente no seguimento de Cristo na Paixão, mas toma também como
341 Tal como bem refere Joaquim Eusébio. Cfr. Joaquim EUSÉBIO, op. cit., pp. 60-61.342 Seguimos o esquema apresentado por Joaquim Eusébio na sua esclarecedora dissertação.343 Nos Tesouros Artísticos, diz-se que a decoração azulejar se prolonga pelo transepto em nova série quealude à vida da venerável Soror Maria do Lado (Cfr. José António Ferreira de ALMEIDA (coord.), op.cit., p. 374.) O Inventário Artístico assim o sustenta também, afirmando que, no transepto, “figuram-sepassos da vida da Venerável Maria do Lado […] em duas séries de painéis.” (Cfr. Gustavo de MatosSEQUEIRA, op. cit., p. 112).
101
modelos a Virgem e os dois santos de Assis. Como São Francisco em relação a Santa
Clara, frei Bernardino das Chagas dera a Regra a Maria do Lado, assim como lhe
aceitara os votos e lhe cortara o cabelo. Tal como Santa Clara, cuja vida conheceria bem
pelo Flos Santorum e cuja devoção recomendou às companheiras, Maria do Lado
evidenciara qualidades taumatúrgicas conotadas com o milagre eucarístico: a visão do
desacato, a multiplicação dos cereais à hora do seu enterro. Por fim, definira-se como
custódia viva do Santíssimo, a exemplo de Nossa Senhora, recebendo por mão de santos
a sagrada comunhão344.
Mas a mensagem azulejar insere-se num discurso mais amplo ainda, composto
outrossim pelo aparato decorativo da totalidade da igreja. No altar-mor, ocuparia a
tribuna o quadro ou de Emanuel Alfani ou o da Exaltação do Santíssimo Sacramento
por duas religiosas, assim como as representações, de cunho fortemente milagroso, das
vidas consagradas da Virgem e de Santa Clara. Se, no corpo da igreja, as esculturas dos
dois santos franciscanos e de Cristo e Nossa Senhora ocupam os altares, na cabeceira, é
a invocação da fundadora a pontificar. Aí emerge a súmula conclusiva do programa
iconográfico: a consagração de uma nova família religiosa que tem Maria do Lado
como fundadora.
Sobre a nave abobadada ergue-se, metaforizando a esfera celeste, a composição
a fresco do teto. Envolvida por cercadura de cartelas e intercalada, de cada um dos
lados, pelo busto de quatro doutores da igreja - Santo Agostinho, São Gregório, São
Jerónimo e Santo Ambrósio -, dela sobressai o medalhão central. A custódia, ao centro,
elevada por dois anjos e ladeada por querubins, afigura-se superiormente enquadrada
pela Santíssima Trindade e, inferiormente, pelo seu suporte terreno: São Francisco, São
Boaventura e Santa Clara. Atrás da santa de Assis, vislumbram-se, quase ocultos, os
rostos de duas religiosas que, contrariamente a Clara, usam véu azul celeste e não
ostentam resplendor. As Veneráveis Maria do Lado e Maria Joana, as mais aclamadas
religiosas da casa e, portanto, as suas mais legítimas representantes, poderiam, quem
sabe, corresponder às diminutas figuras que timidamente assomam por detrás dos santos
de Assis.
Lembrando que as gravuras de Adriaen Collaert inspiraram parte da figuração
azulejar do templo345, não afastaríamos a hipótese de a composição do teto, de autoria e
344 Aludimos à passagem em que a Venerável recebe das mãos de S. Francisco e de S. Boaventura aspartículas do desacato de Santa Engrácia (Cfr. Compêndio da Admirável Vida…, pp. 193-194.)345 Vd. Joaquim EUSÉBIO, op. cit., passim.
102
fontes de inspirações por ora ignotas, ter colhido influxo de alguma incisão do mestre
flamengo que, em data desconhecida, executa uma “Adoração do Santíssimo
Sacramento”, cuja composição central apresenta um esquema compositivo semelhante e
onde, outrossim, os Padres da Igreja – mas, desta feita, São Paulo, Santo Ambrósio,
Santo Agostinho e São Jerónimo - ocupam os quatro ângulos346.
Embora não saibamos precisar a data de realização da composição que vimos
analisando, podemos estabelecer similitudes formais com outras realizações associadas.
A nível estilístico, é notória a semelhança com o teto da Igreja do Menino Deus347,
muito embora não haja, no Louriçal, elementos de perspetivação arquitetónica. As
cartelas laterais, aliás, que recorrem a motivos rococó, poderiam remeter para trabalho
da segunda metade de Setecentos, aproximando-nos de algumas composições de Pedro
Alexandrino348.
É de estranhar que Manuel Monteiro, ao descrever minuciosamente a igreja, e
reportando-se a meados de Setecentos, não se tenha referido ao teto. Se a tanto
acrescermos que a Pedro Alexandrino foi incumbida a pintura dos tetos de várias
divisões do Conventinho do Desagravo, a que adiante aludiremos com a devida
circunstância, talvez nele possamos ver o possível pintor do teto da igreja do
Louriçal349.
3.1.2.1. Coros (Figs.II.65-77)
O coro alto prolongava a oeste a nave única do templo, com a qual comunicava
através de grade sobre cuja conceção e usos as Constituições minuciosamente
346 Biblioteca Real de Bruxelas (Albertine), Secção de Iconografia, S.I. 642, 4.º. Um referência e imagemda gravura pode encontrar-se em Ann DIELS; Marjolein LEESBERG (org.), The New Hollstein Dutch &Flemish Etchings, Engravings and Woodcuts 1450-1700. The Collaert Dynasty, Parte IV, Sound &Vision Publishers, 2005, p. 22. O mesmo tema, a Apoteose da Eucaristia com os Quatro Doutores daIgreja (Santo Ambrósio, São Jerónimo, São Gregório Magno e Santo Agostinho, se encontra representadona Igreja de Nossa Senhora da Pena, em Lisboa, obra atribuída a Jerónimo da Silva (at. 1700-1753). (Cfr.Vítor dos REIS, O rapto do observador: invenção, representação e percepção do espaço celestial napintura de tectos em Portugal no século XVIII, vol. II, Lisboa, s/n, 2006 [Tese apresentada à Faculdade deBelas-Artes da Universidade de Lisboa para obtenção do grau de Doutor em Belas-Artes (Teoria daImagem); policopiado], p. 130.347 A João Nunes de Abreu, discípulo de Baccherelli, se deve a autoria da composição pictórica, a qual, noentanto, não terá correspondido ao plano ideado por João Antunes.348 A respeito destas, veja-se a já citada tese de Vítor dos Reis.349 Foi-lhe cometida a execução do painel do teto da capela-mor e do teto da Capela do Senhor Morto.
103
preceituavam350. No interior desta área retangular, de dimensões concordantes com a
lotação da comunidade e, portanto, necessariamente sóbrias, dispunha-se o cadeiral das
monjas, simples e sem espaldar. À simplicidade desde recheio apunha-se um denso
revestimento de azulejo azul e branco, que vestia de alto a baixo as superfícies parietais,
e sobre o qual se erguia, qual véu cerúleo, a cobertura abobadada de cantaria, finamente
pintada sobre fundo azul celeste.
Dois nichos se abriam frente a frente nas paredes. Acolhia, o da fundeira, uma
imponente imagem de madeira estofada e policromada de Nossa Senhora Prelada, oferta
de D. João V. Defronte desta e dir-se-ia espelhando-a, avultava Santa Clara, de menores
dimensões, em nicho trilobado sobre a grade. Não é difícil entender a presença destas
imagens: a Nossa Senhora fora concedido o estatuto de padroeira e prelada perpétua do
mosteiro351; Santa Clara, por seu lado, era a fundadora da Ordem professada.
Embora isento do fulgor artístico de outros exemplares da época352 e
postergando, uma vez mais, a representação pictórica, o coro alto do Louriçal apresenta
uma notável consistência na mensagem que propõe, e para a qual tira partido da
conjugação feliz dos elementos escultóricos, das representações azulejares, da pintura
do teto e mesmo do programa artístico apresentado pela igreja de fora, com a qual
inevitavelmente comunica.
O revestimento cerâmico centra-se em temática veterotestamentária, Êxodo e
Livro de Josué, culminando discursivamente na Conquista da Terra Prometida. As cenas
representam Abraão e Melquisedeque, ou os Pães da Proposição; a Batalha do Vale de
Sidim; Moisés e Séfora; Moisés fazendo brotar a água do rochedo; o Sacrifício de
Moisés no altar; A vinha miraculosa, ou Josué e Caleb353. No espaço que ocupa, o texto
azulejar evocaria talvez a origem da caminhada das religiosas, investidas, como Josué,
de uma missão radical assente num pacto com o Criador. Para além de “iniciático”, este
é também um espaço taumatúrgico e de oração, em torno, desde logo, do Santíssimo
Sacramento. O mistério pascal, presente nos episódios relativos à Páscoa judaica,
evocaria talvez a Ressurreição.
Sobre este cenário de índole pré-eucarística, ergue-se, completando-o, a mancha
azulada da cobertura abobadada, onde motivos fitomórficos estilizados ornamentam
350 Cfr. Constituições e leis..., pp. 68-69.351 Cfr. Manuel MONTEIRO, op. cit., p. 153.352 Cfr. Nelson Correia BORGES, op. cit., p. 55.353 Nem todos os azulejos são visíveis, sendo que parte está tapada por parte do cadeiral das monjas. Sãocertamente imagens tiradas de gravuras, possivelmente de Rubens.
104
uma profusa composição alegórica de temática eucarística e mariana. Dividido em
quatro secções, a cada uma corresponde um atributo mariano - lua, arco-íris, estrela, sol.
Quatro outros, estes de índole eucarística são, por sua vez, contornados por oito
símbolos de temática ora eucarística ora mariana.
Os tons azulados e as linhas sinuosas e delicadas do teto, de par com o seu
intrincado simbolismo, onde até a aritmética parece entrar, e com a luz coada pelo
gradeamento férreo das janelas, participam na criação de uma atmosfera quase feérica.
Aí, incondicionalmente, tudo evoca Deus e apela ao testemunho pela santificação.
Mas, como referimos, a igreja de dentro é parte de um todo mais amplo. A
divisão dos ciclos azulejares presentes na igreja – entre registo franciscano/hagiográfico
e registo divino - reproduzem-se segundo a mesma lógica altimétrica nos coros, onde a
temática pré-eucarística, presente no coro alto, encima a temática antoniana do coro
baixo. A ele nos refiramos de seguida.
Justificando a plausibilidade do ingresso lateral do templo, o coro baixo, situado
na face diametralmente oposta à capela-mor, tendo de um dos lados o ante coro baixo e,
do outro, o confessionário, encontrava-se separado do templo – conquanto
planimetricamente o prolongasse - por grade de ferro provida lateralmente de portas.
Animava esta câmara retangular, iluminada por dois vãos rasgados na espessa
parede norte e encimada por cobertura de madeira pintada sem efeito de menção, um
rico conjunto azulejar que, por completo, lhe recobria as paredes. Enquanto extensão
planimétrica e funcional da igreja de fora, e não obstante o aparatoso diafragma que
dela o cindia, o coro baixo prolongava o recurso cerâmico da restante igreja,
comunicando com o todo em termos de formulário artístico.
Complexo, esse prolongamento integra não apenas o tipo de revestimento e a
gramática decorativa das cercaduras, quanto a divisão simbólica proposta na igreja de
fora, apresentando, no respeito pelo “registo hagiográfico” – aí representado por São
Francisco e Santa Clara - alguns milagres de Santo António. Figurava na parede sul o
Milagre da Mula e a Pregação aos Peixes; na parede este, O Manjar Envenenado; a
norte, A Cura da Criança e A Conversão dos Gentios; na parede fundeira, por fim, um
amplo nicho – outrora possivelmente um altar - exibia Santo António livrando o pai da
forca. A decoração cerâmica estendia-se ao intradorso das janelas, revestindo a base
com azulejo de padrão e as restantes faces por painel com vaso de flores ladeado
simetricamente por aves.
105
Não é ocasional a escolha da temática azulejar. Exprime, como acima notado,
uma coerência semântica em relação ao sistema iconográfico dos restantes espaços da
igreja, não deixando, contudo, de revelar a especificidade desta nova divisão, reservada
à comunidade religiosa. Santo franciscano, António é também um santo português e
santo de que Maria do Lado era particularmente devota354 – tal como, aliás, D. João V,
que à sua menção hagiográfica dedicaria o Convento de Mafra.
Num espaço privado, a presença deste santo, ao refletir um ensejo de
proximidade, pareceria cunhar de timbre nacional a identidade franciscana da nova
Ordem, e, simultaneamente, infundir o seu exemplo taumatúrgico junto das religiosas.
Mas reflete igualmente a vivência do compartimento, sublinhando-lhe a eficácia
funcional: espaço de conversão e consagração onde dois sacramentos, comunhão e
profissão religiosa, tinham sede, o coro baixo acordava-se com os portentos do
retratado, capaz de interpelar as consciências e de desafiar até a morte e o limbo da
descrença em prol da exaltação da Fé.
O denso programa imagético da igreja criou um espaço fortemente proselítico
centrado na doutrinação através da mensagem figurada. Articuladas com os locais a que
se associam, as imagens respondem a diferentes perspetivas e propõem distintas
leituras, embora comunguem de um mesmo espírito e de uma mesma linguagem.
Embora não filiado no sistema decorativo que caracteriza grande número de
igrejas monásticas da época, idealmente “caracterizado pela conciliação entre o dourado
da talha, o azul e branco dos azulejos e os vermelhos e roxos das pinturas e panos”355, o
templo não desmerece em eficácia programática.
Não deixa de ser significativo o declinar do modelo das “igrejas de ouro” em
favor de um ecletismo que denuncia o influxo da Barroco internacional que as grandes
empreitadas joaninas consagram. Igualmente de monjas contemplativas da Primeira
Regra de Santa Clara, o Mosteiro da Madre de Deus de Lisboa, por exemplo, conjuga
em exuberância o azulejo, pintura e talha dourada. Da mesma forma, as obras de João
Antunes dedicadas a institutos regulares, como a Igreja do Menino Deus, articulam a
presença maciça do mármore com a talha e a pintura dos altares, e mesmo a única igreja
supostamente traçada por Manuel Pereira não dispensa, a pontuar um profuso
354 Existem várias referências à particular devoção antoniana de Maria do Lado, que ficará tambémmarcada pelos prodígios ocorridos na Ermida de Santa António. Aí terá tido, em êxtase, nova revelaçãorelativa à fundação do mosteiro. (Cfr. Compendio da admiravel vida da venerável madre Maria do Lado,p. 276).355 Nelson Correia BORGES, "Conventos", in José Fernandes PEREIRA (dir.), Dicionário da ArteBarroca em Portugal, pp. 133-136.
106
revestimento azulejar, o concurso daqueles dois elementos. Mais que um acordo com o
carisma rigorista da observância, esta opção parece sobretudo traduzir a abertura à
novidade artística conseguida por via da encomenda régia.
3.1.3. Em torno do templo (Figs.II.78-89)
Adstrito ao tipo de função consignado ao coro, o confessionário abria-se
contiguamente à grade daquele, correspondendo a um pequeno compartimento separado
da igreja pública por porta munida de genuflexório e membrana metálica furada
permitindo a comunicação. De acordo com as Constituições, outros confessionários
haveria, em locais, porém, que nos são hoje desconhecidos. Em relação a qualquer deles
– como em relação a quaisquer outros espaços de confim entre mundo e clausura -, a
Regra glosava o costumado zelo, prevendo a existência de duas chaves: uma, que abriria
por dentro, detida pela abadessa; a outra, pelo lado oposto, de posse do padre
confessor356.
Os comungatórios desenvolviam-se, naturalmente, paredes meias com a igreja e,
seguindo a configuração daquela, no respeito pela dinâmica espacial da clausura,
abrindo-se ora no piso térreo, - na grade do coro baixo e numa das faces laterais da
capela-mor –, ora no andar superior, quase tangencialmente à tribuna da mesma
capela357. O acesso aos comungatórios, salvo o do coro baixo, era feito por um corredor
aberto paralelamente à parede norte do templo, do qual recebia luz, mas de cuja visão a
comunidade ficava vedada.
Enquanto os primeiros espaços se definiam unicamente pela pequena abertura
que caracteriza funcionalmente o comungatório, o último, a confirmar-se a identificação
que aventámos, corresponderia a um estreito e ínfimo mas interessante cubículo
totalmente revestido de azulejo. De estilo semelhante aos azulejos do templo, o
revestimento apresentaria cenas alusivas à Comunhão: de um dos lados, um sacerdote
dispensando as sagradas partículas a um grupo de mulheres, enquanto uma figura
masculina lê o que supomos tratar-se de uma passagem bíblica; do lado oposto, um
356 Cfr. Constituições e leis..., pp. 85-86.357 O comungatório do andar superior destinar-se-ia à comunhão das enfermas, segundo Maria JoséCabrita estando hoje transformado em sala de passagem que antecede o santuário. (Cfr. Maria JoséGuerreiro CABRITA, op. cit., p. 19.)
107
eremita debruçando-se sobre um livro aberto, parecendo meditar sobre alguma
passagem358.
No topo da cabeceira, projetando a leste o perímetro sagrado, desenvolvia-se a
sacristia. A contiguidade funcional e orgânica com o espaço público redundou no seu
desdobramento em sacristia de fora e de dentro, esta última ligada diretamente à
clausura. O Santuário Mariano assim o confirma quando, aludindo à velha imagem de
Nossa Senhora da Conceição, diz ter esta permanecido milagrosamente imaculada,
muito embora sujeita ao fumo que provinha da cozinha quando se encontrava exposta
na sacristia que lhe era contígua359.
Seria provisória, como acima vimos, a permanência da portentosa imagem na
sacristia360, mas outras obras terão composto a ambiência deste espaço tradicionalmente
não isento de referentes artísticos. Em obra pictórica, aí estariam representados: D. João
V, Santa Maria Madalena, São José, Santa Rita de Cássia e Santa Teresa e várias
imagens de Nossa Senhora361.
Além disso, o revestimento azulejar do templo estendia-se a ambos os espaços
da sacristia, onde painéis de azulejo azul e branco de robusta e densa cercadura
enquadravam motivos de albarradas. Da sacristia de fora merece ainda nota o lavabo
pétreo onde, inscrita, figura a data de 1726 – o que, já o vimos, se tem prestado a várias
ilações. Numa sucessão de espaços comunicantes e de comunicações condicionadas,
desenvolvia-se, a leste, e ocupando o extremo nascente do conjunto, a casa do
confessor, de que pouco sabemos.
Utilizada uma vez por semana ou com caráter extraordinário, a Sala do Capítulo,
pela função a que se consagrava, revestia-se de solenidade, devendo por norma situar-se
nas imediações do templo. Identificar hoje o lugar que lhe correspondera àquele espaço
resulta, uma vez mais, num exercício de suposições em que a hipótese avançada por
Maria José Cabrita, porventura a mais credível, se enquadra: a sala do capítulo primitiva
situar-se-ia em divisão anexa ao antecoro-baixo, hoje totalmente descaraterizada e
358 As imagens, incompletas e, nalguns pontos, bastante entrecortadas e fruto, cremos, de acoplagens, nãonos permitem melhores conclusões.359 Cfr. Frei Agostinho de SANTA MARIA, Santuario Marianno e Historias das Imagens Milagrosas deNosso Senhora…, Vol. IV, fl. 663.360 A imagem, aliás, existia desde a construção da primitiva igreja do recolhimento (Cfr. Frei Agostinhode SANTA MARIA, op. cit., fls. 661-663).361 O inventário do Arquivo Histórico do Ministério das Finanças refere um total de 8 painéis: um retratode D. João V, três de Nossa Senhora, Santa Maria Madalena, São José (ANTT, AHMF, Convento doDesagravo do Santíssimo Sacramento do Louriçal, cx. 1939). Já o inventário presente no ArquivoDistrital de Leiria dá conta de: um quadro de Santa Rita de Cássia, de Santa Teresa, São José, NossaSenhora, vários santos em meio corpo (ADRLA, Convento do Louriçal, Inventários).
108
adaptada a sala de arrumações362. De igual modo, nada se sabe acerca dos valores
estéticos do compartimento que, nas casas monásticas, usualmente se dotava de retábulo
com a representação dos patriarcas da Ordem363.
3.1.4. Espaços de devoção (Figs. II.80-90)
Invocando a origem e fundamento do cenóbio, o local onde terá vivido Maria do
Lado e onde terá tido sede o primitivo recolhimento apresenta-se hoje como uma
pequena casa de dois andares composta, no andar inferior, por capela e, no superior, por
duas pequenas salas – que terão correspondido ao quarto e oratório de Maria de Brito -
sem iluminação direta, dotadas de altares de talha.
Provavelmente de decoração posterior ao trânsito da madre, ambas as divisões
apresentam teto de madeira pintada e painéis de azulejo revestindo as paredes. O teto do
oratório, de caixotões, exibe cartelas onde figuras mitológicas e elementos geométricos
e vegetalistas enquadram símbolos da Eucaristia: coração, pão, trigo e videira.
A capela de Maria do Lado, no piso térreo, primitivo espaço de oração e
mortificação, corresponde hoje a um pequeno compartimento sem luz natural, animado,
de um lado, por um altar e, de outro, por vitrinas modernas que servem atualmente um
propósito memorial e museológico onde, como relíquias, se expõem antigos pertences
da Venerável. Apelidada pelas religiosas como “Casa do Amor”, e descrita como
estância “mais retirada da familia”, foi incorporada no mosteiro e tomada como lugar de
culto, devoção e peregrinação364. Seria natural a conversão deste espaço em capela-
relicário, que, no entanto, viria a ser construída, possivelmente em virtude de desajuste
planimétrico, no andar superior365.
Sobre o santuário que efetivamente se construiu, composto de capela-relicário,
precedida de antecâmara, escreve sugestivamente Gustavo de Matos Sequeira:
tudo era pobreza no convento, salvo o riquíssimo santuário de preciosas e
insignes relíquias e imagens de escultura – as peças de escultura e pintura
362 Maria José CABRITA, op. cit., p. 82.363 Cfr. Nelson Correia BORGES, “Arquitectura Monástica Portuguesa na Época Moderna”, pp. 52-53.364 Manuel MONTEIRO, op. cit., p. 245.365 Segundo opinião, que nos parece defensável, da Madre Abadessa do Mosteiro de Clarissas doDesagravo de Montalvo, Madre Maria do Lado.
109
seriam de uma religiosa habilidosa; já o risco arquitectónico seria de um
professor de Leis na Universidade e curioso da arquitetura.366
Conheceria certamente paralelo noutras capelas-relicários que, desde a segunda
metade de Seiscentos, se vinham instituindo, nomeadamente em espaços monástico-
conventuais367. Vejamos o que dela escreve Manuel Monteiro:
Actualmente [meados de Setecentos, presume-se] se está reduzindo a huma
Capella, que he architectura do Dezembragador Antonio de Andrade do
Amaral, de ordem Jonica, oitavada, com Capellinhas nos panos de cada oitavo,
e dentro de cada huma hum mausoléo, com Urna para relíquias, que fará hum
vistoso Pantheon.368
E era, efetivamente, um panteão que pretendia instituir-se. E, porque espaço
dedicado à celebração dos mortos, ligado simbolicamente a planta centrada. Capela
octogonal, coberta por cúpula oitavada fechada por florão, albergava sete diferentes
altares-relicário rematados por frontão interrompido formado por volutas. O conjunto,
de madeira pintada imitando pedra marmoreada e decorado com motivos de talha
dourada, remete já para o rococó. Talvez pudéssemos ver na Capela do Palácio de
Queluz algumas das soluções aqui delineadas – na cúpula, nos mármores fingidos, no
tipo de aplicação da talha.
Na divisão que servia como antecapela, várias peças de talha se dispunham, tais
como altares com maquinetas e berlindas envidraçadas, a imagem processional, em urna
vítrea, de Nossa Senhora da Boa Morte369, assim como “imagens conventuais (Meninos
Jesus revestidos, e outras), e quadros de caixilhos fundos, com flores doiradas e ramos
de papel, estampas coloridas de imagens”370.
366 A capela conservaria relíquias de São Bonifácio e de outros santos da Ordem. (Cfr. Gustavo de MatosSEQUEIRA, op. cit., p. 112.)367 É o caso do Mosteiro de Alcobaça, cuja capela, edificada entre 1669-1672, seria integrada na SacristiaNova, ficando localizada no respetivo topo.368 Manuel MONTEIRO, op. cit., p. 245.369 Não repugnaria pensar que a escultura tivesse saído do punho de Bellini, que, além das intervenções jáassinaladas no mosteiro, risca, entre 1738-1740, a capela da Boa Morte na Sé de Beja, como capelafunerária e muito semelhante às laterais do Louriçal.370 Cfr. Gustavo de Matos SEQUEIRA, op. cit., p. 112
110
É bem possível que a capela-relicário tenha sido pensada nos anos trinta, de
quando data a intervenção de Andrade do Amaral como superintendente das obras do
mosteiro. E é também possível que este estatuto não seja impermeável ao trabalho de
criação artística e que, desde o início, a vontade de Amaral tenha dialogado, no plano da
conceção artística, com a de Manuel Pereira. A dissemelhança estilística desta pequena
obra em relação aos valores plásticos que a observância vinha firmando não significará
a introdução de uma nota de descontinuidade se atentarmos na plasticidade e
permeabilidade da arquitetura monástica ao acolher trabalhos cronológica e
estilisticamente díspares e espaços com dinâmicas funcionais distintas.
Capelas, altares, e imagens sagradas distribuíam-se pela clausura, assinalando
devoções e secundando o registo espiritual da casa. Destas marcações simbólicas,
sobressairiam, naturalmente, as evocações da fundadora em “algumas Capellas
consagradas á memoria dos especiaes benefícios, que naquelles lugares recebera de
Deos Senhor Nosso esta sua serva”, que “teve sempre para a veneraçaõ esta Casa a
preferência”.371
Se hoje, pelas alterações que o tempo operou, nos é difícil rastrear os antigos
espaços de devoção, podemos, no entanto, e bem que de forma aproximada, ter noção
de alguns dos objetos de devoção. Igreja e capelas interiores acolhiam imagens sagradas
entre as quais se contavam, em elenco do último quartel de Setecentos372, o Senhor dos
Passos, o Senhor das Misericórdias, Soror Maria Joana, o Senhor da Vida, a Venerável
Maria do Lado, a Senhora da Boa Morte, o Senhor Menino do presépio, Santo António,
o Santíssimo Sacramento e Nossa Senhora da Consolação. Algumas destas imagens
teriam capela própria, embora o documento em que nos baseamos apenas refira a do
Senhor dos Passos e a de Nossa Senhora da Consolação. Se o montante das esmolas
auferidas nos permite aferir da intensidade do culto, ficamos com a noção de que, com
larga distância das demais, teria a preferência o Senhor das Misericórdias, seguido da
Senhora da Boa Morte373.
371 Manuel MONTEIRO, op. cit., p. 245.372 ANTT, Arquivo das Congregações, liv. 424. O livro foi mandado rubricar pelo provisor e visitadorcomissário do bispo-conde, Manuel de Almeida de Carvalho.373 Fr. Manuel de S. Dâmaso escreve, em data a precisar, um opúsculo intitulado A imagem do SenhorJesus das Misericórdias. Portentoso e Raro Prodígio da Milagrosa Imagem do Senhor dasMisericórdias, do Real Mosteiro das Religiosas Filhas de S. Francisco e Servas do SantíssimoSacramento do Louriçal. A revista O Archeólogo português (Vol. 25, Museu Etnográfico Português,1921, p. 177) refere, a existência, no mosteiro, de um "Registo do Senhor Jesus das Misericordias e aveneravel Maria do Lado, Fundadora do Louriçal". A informação é reiterada por Luís Chaves emSubsídios para a História da Gravura em Portugal, Coimbra, s/n, 1927, p. 187.
111
Patente ainda nos nossos dias, a Capela do Senhor do Passos, desembocando
diretamente sobre o claustro, corresponde a uma pequena divisão de planta
quadrangular, revestida nas paredes por azulejo de padrão e encimada por cobertura
abobadada profusamente pintada. Junto a uma das paredes está colocada a
impressionante imagem processional do Senhor dos Passos.
Apesar de atualmente muito retocada, a pintura do teto merece que se lhe faça
menção. Dividida em caixotões decorados por robustos motivos fitomórficos, exibe, em
pequenas cartelas circulares no centro de cada um, símbolos relativos ao Mistério Pascal
- coroa de espinhos, cruz, instrumentos da Paixão, cordeiro místico, chicote, cruz com
escada e cálice. Não só a iconografia se acordava com o sentido da imagem do Senhor
dos Passos, quanto, assim nos parece, a localização da capela, a dar diretamente para o
claustro, onde, no interior da clausura, serviria a procissão respetiva.
Não seria esta a única imagem monástica de Cristo em Passos de Sua Paixão,
mas de todas seria sem dúvida a mais significativa, tanto mais que mereceu condigno
acolhimento em capela apropriada. Ao Cardeal da Mota se deveu a iniciativa de todo o
conjunto arquitetónico e decorativo. O desconhecimento dos termos exatos em que se
terá verificado a intervenção de Pedro da Mota e Silva não constitui qualquer exceção à
dinâmica de créditos construtivos do mosteiro. Ignoramos, na verdade, se, do plano
arquitetónico, enquanto encomenda com caráter extraordinário, tenha ficado incumbido
o Irmão Manuel Pereira, responsável pelo traçado da igreja, mas, havendo lugar para a
dúvida, caberia lembrar que o Cardeal da Mota encomendava, em 1740, a Carlos
Mardel, a Capela de Santo António (ou das Onze Mil Virgens) no Mosteiro de São
Vicente de Fora e que Mardel trabalhava na igreja do Louriçal nos anos 30.
3.1.5. Claustro (Figs.II.36-42)
Supostamente situado no local de implantação da antiga Igreja da Misericórdia,
e incorporando a sua memória ao sobrepor-se-lhe arquitetonicamente, o claustro
apresentava uma dupla e cumulativa densidade simbólica. Quando, numa das biografias
de Maria do Lado, se escreve, em alusão a uma sua profecia que “a igreja da
Misericórdia, que então era, havia de ficar no coração do convento, como ficou na
112
quadra do claustro”374, podemos concluir que a incorporação no claustro da dita igreja
corresponde ao avocar a si a sacralidade desse espaço, como se de espécie de chão
místico se tratasse, mas também ao cumprimento de uma profecia da fundadora cuja
verosimilhança pesava em favor da sua santidade.
Esta centralidade “canónica” confiada ao claustro acordava-se, efetivamente,
com o significado reservado a este espaço no conjunto monástico. Situado a noroeste do
templo, instituía-se, no seu apelo centrípeto, como polo organizador e aglutinador de
espaços - e também memórias -, que, em seu torno e em altura se distribuíam. A sul, a
Capela do Senhor dos Passos, o De Profundis, e, ocupando a quadra leste, o refeitório,
enquanto, ao longo do sobreclaustro avarandado, corriam as trinta e três celas destinadas
às professas. Para o centro da pequena área retangular do claustro, assinalado pela
volumetria radial da fonte, se abriam arcos de volta perfeita estribados em pilares
toscanos que abrigavam, no interior e a toda a volta, uma galeria de abóbada de aresta
com cinco tramos por ala.
Sóbrio nas dimensões e no aparato decorativo, o claustro exibia elementos de
interesse não despiciendo. Da fonte, de bacia octogonal formada pela interceção do
círculo e do quadrado, as faces planas eram paralelas às alas do claustro e as curvas aos
seus ângulos. Sobre uma base cuja secção replica exatamente a forma da bacia,
encimada por enrolamentos, se ergue uma espécie de obelisco, bojudo na base, de
quatro faces decoradas geometricamente em baixo-relevo, entre as quais assomam
quatro cabeças de anjo que dispensam a água. O jogo de elementos planos e curvos,
entre superfícies côncavas e convexas e em que se incluem figuras geométricas
compostas confere, juntamente com os elementos decorativos – anjos, volutas - graça e
dinamismo a esta peça central.
De gramática semelhante, inserida numa das paredes do claustro e com
comunicação com a sacristia, encontra-se instalado um lavabo de decoração geométrica
e vegetalista, encimado pelo que seria inicialmente um frontão com volutas ladeado nos
extremos por pequeno pináculo.
374 Compendio da Admirável Vida da Venerável Madre Maria do Lado, p 468.
113
3.1.6. Espaços de sobrevivência temporal (Figs.II.94-96)
No primeiro piso, contornando a toda a volta a perímetro do claustro,
perfilavam-se, ao longo de um extenso corredor, as trinta e três celas individuais das
também idealmente trinta e três professas do Desagravo. Dando diretamente sobre a
galeria avarandada do sobreclaustro, daí recebiam iluminação e para aí, exclusivamente,
projetavam o olhar. Entendido como itinerário a ser vivido, pois que a consolidação na
fé se faz também no percurso, o corredor exibia em cada um dos seus quatro ângulos
altares com pinturas devocionais, hoje por extremo alteradas por sucessivas repinturas.
Paralelamente à ala nascente do claustro e correspondendo-lhe quase totalmente
em extensão, desenvolvia-se o refeitório monástico, ampla divisão retangular iluminada
por uma série de janelas abertas de um dos lados e encimada por firme cobertura
abobadada. Ao longo das paredes, distribuíam-se bancadas e mesas de mármore com
robustos pés configurando volutas, enquanto, num dos topos, se erguia um púlpito
igualmente marmóreo. Na parede confinante com a cozinha, abriam-se postigos ou
ministras para passagem dos alimentos. Na parede oposta, abria-se, por seu turno, o De
Profundis, sala ampla abobadada onde, antes e depois das refeições, eram rezadas
orações próprias375.
Em ordem a garantir o necessário afastamento daquelas que canonicamente
haviam abraçado a religião, a noviciaria – a que, à exceção da abadessa ou vigária,
nenhuma das professas poderia aceder376 - situava-se a certa distância dos cubículos das
professas, provendo-se de instalações capazes de garantir um sustento quase
autónomo377. Dormitório, refeitório e capela comporiam este conjunto funcional onde
certamente fruste seria a presença artística, havendo apenas notícia de um oratório de
madeira com um quadro a óleo de S. Francisco378.
A vida de clausura não se confinava, evidentemente, ao perímetro do mosteiro,
antes se projetava para um espaço exterior cuja exclusividade ou quase exclusividade de
acesso lhe garantia a natureza claustral. Referimo-nos à cerca, às “partes envolventes
375 Constituições e leis..., pp. 102-103.376 Idem, ibidem, p. 65.377 Constituições e leis..., pp. 210-211. A independência da noviciaria e a evitação do contacto com arestante comunidade eram garantidas por espaços favorecedores de certa autonomia: celas, sala de estudoe aula, sala capitular, capela, cozinha, refeitório, instalações para a higiene individual – casa da água,lavatório e secreta. (Cfr. Nelson Correia BORGES, op. cit., p. 50).378 Cfr. Relação das Alfaias, vasos sagrados e mais objectos pertencentes ao Convento do Desagravo doSantíssimo Sacramento da Villa do Louriçal e que em 23 de Maio de 1878 se começou a avaliarADLRA, Convento do Louriçal, documentos avulsos.
114
dos edifícios, mais ou menos vastas, isoladas do mundo exterior por meio de altos
muros”379. É pouco o que sabemos acerca deste local, seja pela escassez documental,
seja pela dificuldade de vermos na atual cerca um reflexo idóneo do seu passado, sujeita
que foi a múltiplas alterações que o terreno só longinquamente regista380. Prolongando a
leste o conjunto e delimitada exteriormente por vasta e alta superfície murada, a cerca
do Louriçal estender-se-ia primitivamente até à mãe-d'água, abrigando no seu interior,
pinhal, pomar, horta, pombal, moinho, celeiro, tanque, aviário e oficinas. A cerca não
garantia apenas sustento material ou corpóreo, prestando-se também a servir de
retaguarda espiritual, ao oferecer à comunidade a possibilidade de recreação e distração
e, não menos, de oração e meditação, como a existência de uma capela leva a concluir.
3.1.7. O exterior da clausura
Não pertencentes à clausura mas a ela anexas tanto espacial como
funcionalmente, várias estruturas se desenvolviam. Documentação oitocentista381 revela
a existência de um “colégio”, servindo para habitação de criadas, confrontando com as
ruas públicas e, a poente, com a habitação do capelão, sendo dotado de pátio e forno
próprios. Há igualmente registo de uma pequena casa para habitação dos pobres,
confinante com a rua pública e com propriedades particulares.
Documentos mais antigos dão conta de construções servindo de palheiro e
cavalariça, contíguas a propriedades pertencentes à Misericórdia da Vila, bem como da
existência de uma hospedaria e da casa de residência do confessor, situada esta a
nascente do antigo recolhimento. Seria dotada de quintal, tanque de água, pomar, pátio,
currais e abegoarias. Já a casa da residência do capelão, com pátio, confinaria de todos
os quadrantes com as ruas públicas382.
379 Nelson Correia BORGES, Arte monástica em Lorvão: sombras e realidade, Vol. I, Lisboa, FundaçãoCalouste Gulbenkian, 2002, p. 336.380 Diria Martin Curty que “não há arte mais efémera que a dos jardins, cuja traça pode desaparecer numcurtíssimo lapso de tempo, sem deixar o mais pequeno vestígio, como se nunca tivesse existido". (Jose A.MARTIN CURTY, Los Jardines Cerrados, Santiago de Compostela, 1987, pp. 9-10 apud BORGES, Artemonástica em Lorvão, p. 343).381 Cfr. Inventário de 13 de abril de de 1859 (ANTT, AHMF, Convento do Desagravo do SantíssimoSacramento do Louriçal, cx. 1939).382 Vejam-se, designadamente, as escrituras de venda de 5 de maio de 1682 (ADLRA, Dep. VI/25/A/2) ea de 30 de agosto de 1691 (ADRLA, Dep. VI/25/A/2).
115
Uma vez mais, as fontes em que nos apoiamos – tão parcelares quão
cronologicamente díspares -, de par com as alterações espaciais sofridas, apenas nos
permitem concluir da variedade espacial e funcional destas estruturas anexas ao viver
monástico e, eventualmente, da sua localização aproximada383.
383 A casa do confessor, construída na sequência das obras dos anos Trinta, mantém a mesma posiçãorelativa que a que tinha anteriormente.
116
3.2. Programa artístico e património móvel
Incidente sobre a arquitetura e, anexamente, sobre o património integrado, o
itinerário até ao momento traçado incluiu, no entanto, pelo reconhecimento de valor
para a definição dos espaços do viver religioso, menção a parte do património móvel.
Mesmo considerando integrar uma dinâmica parcialmente alheia ao espírito da Regra,
cujas ressonâncias materiais nos propusemos em primeira linha explorar, o recheio
artístico merecer-nos-á, contudo, espaço próprio384. Como veremos, uma perspetiva
panorâmica lançada sobre o mesmo devolver-nos-á a imagem de um programa de
assinalável coerência.
No Desagravo, os textos regrais não se limitam, como é sólito suceder, a apelar
para a necessidade de uma contenção decorativa; a concordância entre o espírito do
lugar e a sua tradução material enquanto inferência do cumprimento dos estatutos é,
neste caso, tão contundente quanto explícita. Remetendo para considerações
precedentemente tecidas, lembremos que, versando sobre a pobreza e bens temporais, o
Capítulo V das Constituições estabelece o número limite de altares da igreja, estatui
sobre o ornamento das imagens e recomenda mesmo que as “imagens de Cristo, Nossa
Senhora e santos anjos” não devam expor-se “vestidas nos hábitos de algumas
Religiões, nem de outra fórma, que a que se estipula, por costume antigo, usar na
Igreja”385. Proíbe, ademais, que “se não admittão no Convento, ou na Igreja mais
Imagens de vestidos”, que nenhuma religiosa cuide das imagens ou de algum altar “por
mais de um até dois anos”, por forma a evitar “que a devoção continuada não venha a
degenerar em vicioso apego com distrahimento do espirito.” Nas capelas interiores,
igreja e sacristia, determina ainda que “se evite toda a superfluidade assim nos gastos
como no numero, e vestidos das Imagens.” À abadessa, sobre quem recai o espinhoso
ónus de zelar pela observância de todo este programa de restrição iconográfica e
evitação sensorial, cumpre interditar despesas com imagens, capelas, sacristia e igreja
extraordinárias ou superiores a dois mil reis anuais, sob pena de ficar “privada de voz
activa e passiva para sempre”386.
384 Cfr. Panayota VOLTI, Les couvents des ordres mendiants e leur environnement à la fin du MoyenÂge. Le nord de la France e les anciens Pays-Bas méridionaux, Paris, CNRS Éditions, 2003, pp. 252-255. A autora refere, a propósito, a influência da arquitetura monástica na conceção das igrejasparoquiais. Esta influência estaria ligada a um fator de proximidade, manifestando-se, por isso mesmo,sobretudo na arquitetura mendicante.385 Conforme determinação de Urbano VIII (Cfr. Constituições e leis..., p. 29).386 Constituições e leis..., pp. 23–32.
117
Não implicando a impermeabilidade do recheio artístico a estilos e tendências
artísticas nem se traduzindo em termos de qualidade de execução, a Regra e as
Constituições não deixaram, porém, de condicionar a configuração da arte monástica
nas opções temáticas, no nível de ostentação, na quantidade ou mesmo em
particularidades formais.
Fiquemos com as notas que Manuel de Macedo Coutinho387, então diretor do
Museu de Arte Antiga, teceu acerca do recheio artístico do Louriçal388. O convento, dir-
nos-á, “é pobrissimo em mobílias, louças e outros valores sumpturarios”. Os quadros da
entrada contígua à portaria careceriam de qualquer importância, exceção feita a um
“Cristo pregado na cruz”, de grandes dimensões, que o diretor afirma ser o mais
importante quadro do cenóbio. Destituídas de valor, também as pinturas da sacristia.
Destas, o retrato de D. João V, muito embora devendo ser considerado "mais como
cópia que como original", mereceria ser arrecado no museu pelo seu "valor
documental". Quanto aos painéis existentes na clausura, "de baixíssimo valor", apenas
se salientariam pela qualidade um conjunto de quadros de pequena dimensão.
Também de boa qualidade seriam as pinturas sobre cobre representando S.
Pedro negando Cristo, Cristo exposto aos insultos da plebe e a Flagelação, colocadas
em nichos em substituição de outras obras subtraídas no tempo das Invasões Francesas.
Sobre a "grande tela representando duas freiras em oração e no alto da
composição uma gloria de anjos", que ocupava o camarim do altar-mor, dirá o
conservador: "Não me pareceu absolutamente destituida de merecimento; o colorido é
vigoroso e harmonico, desconfio no entanto que o quadro soffreu qualquer tentativa
barbara de restauração”.
A ourivesaria escaparia a este panorama de qualidades sofríveis e percursos
duvidosos. Relevo merecia a custódia, "de prata dourada, grande e rica em pedrarias",
que Macedo Coutinho revela ter sido "oferecida às freiras por famílias nobres do reino,
a fim de substituir uma outra menos rica materialmente, mas de maior valor artístico
que fora roubada pela soldadesca por ocasião da primeira invasão de Bonaparte."
387 Manuel Maria de Macedo Pereira Coutinho Vasques da Cunha Portugal e Menezes (1839 –1915) foiconservador do então Museu Nacional de Belas Artes e Arqueologia, futuro Museu Nacional de ArteAntiga, a partir de 1911.388 MNAA, Arquivo Dr. José de Figueiredo, Cx. 4, Pasta 3, doc. 7.6. O documento data de 26 de maio de1887. Macedo Coutinho assina como conservador e secretário do Museu.
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Com interesse estético, também, a cruz processional de prata, do tempo de D.
João V, e um cálice de meados do séc. XVIII, sobre o qual o diretor se detém,
descrevendo-o como
cálice, grande, de prata dourada, lavrado com ornamentação historiada de
figuras simbólicas, alternando com baixos-relevos de composição histórico-
religiosa e tendo em um dos lados da base, o escudo das armas de Portugal
encimado por uma corôa fechada.
Atestando o valor que lhe atribui, refletirá ser "deveras lastima que permaneça
discuramente desterrado e ignorado em localidade tão remota um objecto artistico que
deveria occupar logar condigno no museu."389
Não pondo de lado as apreciações, por certo abalançadas, de Macedo Coutinho,
procuremos olhar o Louriçal também para lá do valor estético e artístico consignável
aos seus bens, atendo-nos antes à relação dos mesmos com o espírito da encomenda.
No templo, acordavam-se ao programa iconográfico e espiritual as imagens, já
atrás aludidas, dos santos padroeiros da Ordem, S. Francisco e Santa Clara. Ocupando,
ao que se supõe, os altares laterais, estas imagens, quase de tamanho natural390, de
madeira de cedro estofada, policromada e dourada, avultariam pela qualidade e
expressividade barroca da sua pose (Figs.II.99-100). Destacar-se-iam ainda as figuras
dos serafins, imponentes e hieráticas, ladeando simetricamente o altar-mor; de São
Miguel Arcanjo, pontificando em nicho sobre o cruzeiro; de Cristo (ou do Coração de
Jesus) e da Imaculada Conceição391 - ou, à data do inventário de 1859, de S. Francisco
de Paula e S. Francisco de Borja392. Na "igreja de dentro", pontificavam as esculturas de
Nossa Senhora Prelada e de Santa Clara, estabelecendo uma ponte, invisível para a
Século, entre espaço de oração (o coro alto) e espaço de consagração (a capela-mor),
onde, em discurso azulejar, se desenvolviam os temas da Virgem e da santa de Assis.
389 Seguimos, até aqui, o documento acima referido (MNAA, Arquivo Dr. José de Figueredo, Cx. 4, Pasta3, doc. 7.6.).390 Relaçao das alfaias, vasos sagrados e mais objectos […] que em 23 de maio de 1878 se começaram aavaliar, ADLRA, Convento do Louriçal.391 Ibidem.392 Inventário de 1859 (ANTT, AHMF, Convento do Desagravo do Santíssimo Sacramento do Louriçal,cx. 1939).
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A imagem processional do Senhor dos Passos e de Nossa Senhora da Boa Morte,
bem assim a imagem do Senhor das Misericórdias (Figs.II.81 e 88), do Senhor da
Vida393 (Figs.II.85-87), de São José394, uma Pietà e várias representações de Cristo
crucificado perfariam aquilo que, do espólio escultórico do Louriçal, nos informam os
registos textuais ou visuais. Não pecando certamente pela exaustividade, fornecem,
contudo, dados valiosos de que as peças em si mesmas são omissas. Das crucifixões
assinaladas, uma, seiscentista, de cerca de três metros de altura, formada por imagem de
estanho e cruz de madeira feita de troncos de árvores, teria um impacte visual sem
dúvida assinalável395.
Não abandonando a perspetiva meramente panorâmica – que outra aqui não
caberia -, verificamos a consistência da inserção da escultura no espaço, no interior do
qual complementa um programa iconográfico de que participam elementos vários,
assim como a sua correspondência a devoções que envolvem toda a comunidade local e
de que o mosteiro reivindica o estatuto de sede – o que, como vimos, ao convocar a
devoção dos crentes, refletir-se-ia positivamente nas receitas da casa.
Mesmo que a dinâmica gerada em torno das imagens pudesse eventualmente
contender com as exigências de rigor preconizadas pelos estatutos e caucionadas pela
sindicância avisada da abadessa, a função catequética adstrita à figuração estava
salvaguardada. Talvez por corresponder ao período da fundação da casa e,
simultaneamente, à sua época áurea, a escultura date quase exclusivamente de
Setecentos, dando testemunho de um elevado nível artístico que reflete a excelência dos
seus executantes e a autoridade dos encomendadores.
Particularmente sujeitas a deslocações e descaminhos mesmo antes da extinção
do cenóbio, as obras pictóricas de que temos conhecimento podem não espelhar
fielmente o conjunto daquelas que efetivamente terão partilhado o espaço monástico396.
Integradas na arquitetura, porque pinturas retabulares, contam-se a tela de Emmanuel
Alfani (c. 1720-1730) representando a Madre Maria do Lado e uma outra similar que, à
data do inventário de 1858, cobriria a tribuna do altar-mor, sendo descrita como “panno
de camarim pintado a oleo representando a adoração do SS. Sacramento por duas
393 Inventário de 1859 (ANTT, AHMF, Convento do Desagravo do Santíssimo Sacramento do Louriçal,cx. 1939).394 De algumas peças, tem-se notícia não pela sua descrição ou menção em inventários, mas pela listagem,nos mesmos, dos seus resplendores respetivos.395 Encontra-se no Museu Nacional de Machado de Castro.396 Várias pinturas e outros objetos haverá que não passaram pelo escrutínio de inventários nem seencontram em qualquer instituição museológica. Uma recente mostra de objetos, realizada no Mosteiro doLouriçal, comprova-o claramente.
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religiosas”397. De muito desigual qualidade, pelo menos na aparência, ter-se-ão
supostamente substituído no local a ambas destinado.
Exemplares de património integrado contam-se também os quatro painéis a óleo,
hoje em dia muito alterados, colocados nos nichos que assinalavam os ângulos do
corredor em que se abriam as celas das professas (Figs.II.12-13).
Na sacristia concentrava-se a maior quantidade de pinturas. Cruzando os dados
de dois inventários de data próxima, concluímos terem aí estanciado pelo menos oito
obras398: um retrato de D. João V, uma representação de Santa Maria Madalena –
possivelmente uma Santa Maria Madalena de Josefa d’Óbidos (1634?-1684) -, uma de
São José, de Santa Rita de Cássia, de Santa Teresa e três de Nossa Senhora.
Parte das obras mencionadas terá transitado, em início de Novecentos, para o
Museu Nacional de Machado de Castro, em cujos inventários se registam dezassete
pinturas provenientes do Louriçal: Nolle me tangere (séc. XVII); Adoração do Sagrado
Coração de Jesus (séc. XVIII), Anjos Músicos (1750-1796), Cabeça de São João
Batista (1625-1675), Cristo crucificado (séc. XVIII), Fuga para o Egito (sécs. XVI-
XVII), Madre Maria do Lado (1720-1730), Madre Maria do Lado/O Anjo e a Doadora
(1750-1799); Nossa Senhora do Rosário (sécs. XVII-XVIII), Purgatório (1826), S.
Francisco de Assis (1650-1699), Santa Quitéria (sécs. XVI-XVII) e quatro
representações da Virgem com o Menino, sendo uma de Luis de Morales (1515-1587), e
uma outra, setecentista, com invocação associada de Nossa Senhora da Guia399.
Uma relação da Academia Real de Belas Artes, assinada em 1887, noticia, por
seu lado, a transferência para tal entidade de várias das obras posteriormente dadas à
guarda do Museu Nacional de Arte Antiga, e sobre as quais incidira o olhar crítico do
Dr. Macedo Coutinho. Julgamos ver, nos quadros pintados sobre cobre, parte de uma
série dedicada à Paixão de Cristo, eventualmente inspirada em gravuras seiscentistas de
Hieronymus Wierix, por seu turno decalcadas de pinturas de Bernardino Passeri, que
sabemos terem pertencido ao mosteiro400.
Parte das reflexões tecidas a respeito do recheio escultórico adaptar-se-iam ao
breve panorama pictórico aqui parcelarmente esboçado, em que de igual modo
397 Relaçao das alfaias, vasos sagrados e mais objectos […] que em 23 de maio de 1878 se começaram aavaliar, ADLRA, Convento do Louriçal.398 Cfr. Relaçao das alfaias, vasos sagrados e mais objectos […] que em 23 de maio de 1878 secomeçaram a avaliar, ADLRA, Convento do Louriçal e o Inventário de 1859, integrante do processo deextinção do mosteiro, hoje patente em ANTT, AHMF, cx. 1939. Além destes, um inventário adicionalseria feito com data de 22 de maio de 1878 (ADRLA, Convento do Louriçal).399 Vd. Fichas técnicas do Museu Nacional de Machado de Castro.400 Documentos provenientes do Convento do Louriçal, BNP, Secção de Reservados, Cód. 8921.
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pressentimos, nalguns exemplares, o elevado nível de execução e um partido estético
que remeteria para os centros artísticos de então. Compreendendo um arco temporal
mais amplo, estendido desde o século XVI até à centúria de Oitocentos, a pintura regista
mesmo exemplares anteriores à fundação da casa - a apontar, embora não
necessariamente, para a existência de um espólio proveniente do antigo recolhimento.
O programa pictórico organiza-se em torno da temática da Penitência e do
sacrifício redentor de Cristo - expressa, nomeadamente, nas representações da Paixão e
de Santa Maria Madalena –, mas, não menos, ao redor dos grandes referentes
simbólicos do mosteiro: a Adoração do Santíssimo Sacramento, Maria do Lado como
fundadora espiritual e D. João V, fundador material.
Do elenco apresentado, vários são, não estranhamente, os quadros alusivos à
visão fundadora de Maria de Brito, que teria visto “dous Anjos mui formosos e
gloriosos, que iam levando da terra para o Ceo o Santissimo Sacramento”401. Não só
presente nas pinturas que retratam a Venerável, mas noutras, porventura menos óbvias,
como a de Pasquale Parente, identificada sob o título de Anjos Músicos, mas cujo tema
corresponderia mais exatamente à Exaltação do Santíssimo Sacramento por anjos
músicos.
Em versão mais ou menos essencial ou mais ou menos compósita, o tropo
iconográfico do Desagravo surge, aliás, não só na pintura nem mesmo só no mosteiro:
vemo-lo tanto no teto da igreja, quanto no medalhão que encima o portal da mesma,
quanto em peças de cerâmica onde serve de timbre identificativo, quanto em inúmeros
trabalhos conventuais, quanto, ainda, nas insígnias dos hábitos das monjas e nas
insígnias dos Escravos do Santíssimo de Santa Engrácia – que, no entanto, lhe associam
a evocação do desacato, conseguida pela figuração do sacrário arrombado402 (Fig. I.3).
Lembremos, a propósito, o substrato iconográfico do mosteiro, alimentado pela
reevocação sistemática do ascendente carismático de Maria de Brito. É certo que
muitas, senão a maioria, das figurações existentes no primitivo recolhimento não
401 Abadessa do Convento do Louriçal, Compendio da admiravel vida da Veneravel Maria do Lado,Lisboa, Oficina de Miguel Rodrigues, 1762, p. 54.402 Cfr. Artur LAMAS, “O desacato na Igreja de Santa Engrácia e as insígnias dos” Escravos doSantíssimo Sacramento”, O Archeologo Português, Vol. X, Lisboa, Imprensa Nacional, 1905, p. 237. Noreverso, estava contida a inscrição: “Louvado seja o Santíssimo Sacramento” (Fig. 3). Artur Lamas que aestes raros espécimes da medalhística dedica um interessante trabalho, reconhece que a sua iconografiareproduz as visões da Madre Maria do Lado cujas revelações do desacato de 1630 estão na génese dafundação do Mosteiro do Louriçal.
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lograram superar o escrutínio eclesiástico403, mas não por isso deixaram de ultrapassar o
crivo da memória. Também porque vertidas em fonte literária pelas biografias ou notas
biográficas que sobre a Venerável se compuseram, converteram-se em elementos
passíveis de sucessivas reapropriações.
Um nutrido repertório iconográfico, inspirado em episódios portentosos da vida
da fundadora, rechearia o pequeno beatério. Dados a pintar a Gaspar Barbosa, mestre
local, por Frei Bernardino das Chagas, os quadros representariam raptos - alguns dos
quais presenciados pelo próprio pintor -, e visões de Maria do Lado404.
A inquirição de Gaspar Barbosa, realizada no âmbito da ação preventiva
desencadeada pelo Cabido de Coimbra nos anos 30 de Seiscentos, reveste-se do maior
interesse. Por ela sabemos que, na câmara em que a beata falecera, sobrepujava um altar
um quadro representativo do seu trânsito. Dispunham-se, junto ao leito, várias pessoas
e, à cabeceira, o confessor. Já numa "loja escura", as paredes se mostravam preenchidas
de pequenos quadros representativos das mais diversas visões e episódios da vida da
fundadora. Num deles, figurava Maria do Lado cosendo uma almofada e tendo a sua
primeira visão: o aparecimento de Cristo num globo, episódio que assinalaria a sua
opção de renúncia ao mundo. Num outro, representava-se a visão da profanação
eucarística de Santa Engrácia com um grupo de homens armados. A representação de
Simão Sólis, suposto responsável pelo sacrílego atentado, ardendo em labaredas de
fogo, constituía mais uma das elucidativas pinturas do recolhimento, a que se somavam
a visão do confessor num púlpito com um grande sinal vermelho na face, e uma imagem
de São Pedro e São Paulo ostentando um cofre aberto, e dizendo a Maria do Lado que
dele não constava nenhuma das partículas furtadas porque ela as havia todas
comungado405.
A iconografia destes primórdios místicos do Desagravo viria a achar-se ainda na
casa do pintor, onde se conservava, talvez em execução, um painel representando Nossa
Senhora com os braços estendidos, cobertos por um manto, e debaixo dos quais
figuravam algumas religiosas, de que se destacava, ajoelhada, Maria do Lado,
ostentando no hábito, como insígnia, o cálice e a hóstia, e sobre cuja cabeça repousava a
403 ANTT, Inquisição de Coimbra, Lv. 291 (Cadernos do Promotor, 1.ª série, Caderno 6, 1601-1638), fls.830-940.404 Idem, fl. 846.405 Idem.
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mão de Nossa Senhora. Integravam ainda o quadro as significativas presenças de São
João Batista e do cordeiro406.
Acreditamos que a vigilância eclesiástica tenha condicionado a identidade
iconográfica do Desagravo. Não tanto pela imposição de modelos preconcebidos, mas
pela subordinação da expressão de certos temas aos limites da sua aceitabilidade
canónica e, de forma menos óbvia, pelo eventual escrúpulo gerado em torno do caso.
Bem que limitada à figuração de alguns - poucos - tropos, não podemos concluir que a
mensagem por eles transmitida não tenha gozado de difusão ou beneficiado de
tratamento criativo. Para além de que, como deixámos dito a respeito do programa
azulejar do templo, acreditamos existirem no Louriçal mensagens subliminares e o
recurso a meios sub-reptícios de as transmitir.
São parte de uma herança centenária de contornos místicos, a que
invariavelmente subjaz a radicação sacrificial da glória e a natureza redentora do
sofrimento, as insígnias usadas pelas religiosas no escapulário, as múltiplas
representações da Exaltação Eucarística e, não menos, da profanação de Santa Engrácia.
A iconografia compósita de desacato e desagravo surge, cremos que pela
primeira vez, nas celebradas insígnias dos Escravos do Santíssimo Sacramento, onde,
no anverso, figurava um sacrário arrombado ladeado por anjos, sobre o qual se erguia,
radiosa, uma custódia (ou cálice, consoante a versão) e, no reverso, a inscrição
“Louvado seja o Santíssimo Sacramento”407. Conhece-se mais que uma versão destes
raros espécimes da medalhística, que entre si apresentam pequenas variações. Só uma
reproduz com exatidão os termos da visão da madre do Louriçal, em que, sem adições
iconográficas, um par de anjos eleva para o céu o cálice com a sagrada hóstia408.
Num mosteiro do tempo Barroco, consagrado ao louvor, veneração e exaltação
da Eucaristia, não seriam inexpressivas as peças destinadas ao altar. Com uma
referência à custódia principal rematemos, pois, esta breve incursão pela arte do
Desagravo. Sem dúvida majestosa, sobre ela se debruçaram João Couto e António
406 Idem, fls. 924-925.407 Cfr. Artur LAMAS, “O desacato na Igreja de Santa Engrácia e as insígnias dos” Escravos doSantíssimo Sacramento”, O Archeologo Português, Vol. X, Lisboa, Imprensa Nacional, 1905, p. 237.408 Esta versão poderá corresponder a uma adaptação posterior da iconografia das medalhas motivada peloconhecimento da vida da beata ou da intensificação do interesse pela sua fama de santidade. Sobre avisão, veja-se Abadessa do Convento do Louriçal, Compendio da admiravel vida da Veneravel Maria doLado, Lisboa, Oficina de Miguel Rodrigues, 1762, p. 54.
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Nogueira Gonçalves409 numa análise em tudo contrastante com o discurso insonso e
desencantado dos inventariantes, que tecnicamente identificam “uma custódia de prata
dourada ornada com diferentes pedras”410. Transferida para o Museu Machado de
Castro, onde hoje se encontra, corresponde a uma aparatosa composição formada por
base triangular profusamente decorada – com volutas, motivos vegetalistas, denticulado,
molduras enriquecidas com símbolos eucarísticos –, e ladeada simetricamente por dois
anjos orantes, sustentando uma haste decorada com motivos idênticos aos da base, sobre
a qual se ergue um hostiário em forma de sol radiado, ornado com cabeças de anjo e
coroado por cruz ponteada por pedras verdes, rosa e brancas411.
409 Cfr. João COUTO; António N. GONÇALVES, A ourivesaria em Portugal, Livros Horizonte, p. 169;António Nogueira GONÇALVES, Estudos de Ourivesaria, Paisagem Editora, 1984, pp. 260-264. O autorpropõe neste estudo que a autoria do trabalho tenha coincicido com a da custódia de Vila Pouca da Beira.410 Vd. Relação das Alfaias, vasos sagrados e mais objectos pertencentes ao Convento do Desagravo doSantíssimo Sacramento da Villa do Louriçal e que em 23 de Maio de 1878 se começou a avaliarADLRA, Convento do Louriçal, documentos avulsos, cx. 19G-5.411 Sobre a custódia, veja-se o estudo de António Nogueira GONÇALVES, António NogueiraGONÇALVES, Estudos de Ourivesaria, Paisagem Editora, 1984, pp. 260-264.
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PARTE III
A DIFUSÃO DO INSTITUTO DO LOURIÇAL
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PARTE III
A DIFUSÃO DO INSTITUTO DO LOURIÇAL
1. O reinado de D. Maria I e a recuperação do Desagravo
Corolário de um processo multímodo, em que aspetos doutrinários, espirituais,
culturais e mesmo políticos se conjugam, o Mosteiro do Louriçal não se esgota nem
reduz no êxito da sua própria caminhada individual; antes faz da consagração
institucional estímulo para a realização dos generosos ensejos de quem à causa se
associa - seja a comunidade religiosa que, no interior dos muros do cenóbio, lhe dá
corpo, seja de quem do exterior o ampara e dele recebe benefício.
Por mais que informado por um carisma doutrinário rigorista, que o faria
desaconselhado a pretendentes de condição física ou espiritual mais débil e pouco
atrativo aos olhos de muitas mulheres cuja vida devesse passar pela profissão religiosa,
o cenóbio continha em si a chave da sua própria difusão. Não se fundava com ele um
mosteiro, mas uma família religiosa, de que naturalmente se esperavam frutos e que,
dada a parca lotação prevista para cada casa e, muito especialmente, o impacte
carismático do Instituto, rapidamente converteria uma esperança ou expetativa numa
real necessidade.
Nos sonhos proféticos de Maria de Brito, vertidos mais tarde na Vida Revelada,
já essa pretensão se vislumbrava. De fato, "em notaveis, e mysteriosas vizões, e
revelado por muitos modos", se faria claro que, sendo a Regra confirmada no céu, o
seria também na terra, e que por ela "se havia de reformar toda a Igreja pouco a pouco, e
havião de resultar grandes bens a este Reyno"412. Mais tarde glosada no alvará de D.
João V, que formaliza o desejo de que “se multipliquem os lugares, em que
profundamente [o sacramento eucarístico] seja venerado”413, a intenção ganha em
projeção e exequibilidade - muito embora do texto legal não possamos inequivocamente
inferir um ensejo de multiplicação de casas do Desagravo, mas apenas de polos de
devoção eucarística de que o Louriçal se institui como arquétipo.
412 MONTEIRO, História da Fundação…., p. 198.413 Alvará, pelo qual o Senhor Rey D. Joaõ V tomou debaixo da sua Real protecçaõ o Convento doLouriçal, apud MONTEIRO, História da Fundação…., p. 78.
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Não será, contudo, tanto no contexto da fundação e dos trâmites que a
precederam que a ideia ganhará em consistência. É mais tarde que o que parece não
mais configurar que uma ténue enunciação de intenções se cristalizará e converterá em
mote, vindo a ser inclusivamente reinvocada já depois de consumada a instituição de
três cenóbios da observância. Em carta de 17 de maio de 1819, Frei Francisco da Cruz,
religioso do Convento de Santo António, solicitando a aprovação de uma nova
fundação, argumenta ser a mesma essencial
para se realizarem os ard.es desejos de sua pr.a Fundadora a Veneravel Maria
do Lado sobre a multiplicação das Cazas, ou Conv.tos do Dezagravo, e athe p.ª
se realizarem os seus annuncios propheticos sobre isto m.mo a resp.to da
felicid.e de Portugal quando as cazas do Desagravo se augmentassem414.
Se a ideia surdira confusamente dos assomos de presciência da fundadora,
assumiria a posteriori a forma de uma equação perfeita.
A difusão das casas do Desagravo seria, de fato, uma realidade, quer tenha
conhecido o concurso sobrenatural de uma profecia, quer tenha sido fruto de uma
necessidade histórica e da reunião, também histórica, de condições conducentes à sua
concretização. Duvidamos, no entanto, ter dependido, pelo menos exclusivamente, de
um surto revivificador sentido no seio da comunidade louriçalense, crendo antes estar
ligado a focos isolados de devoção para cujo robustecimento institucional a novel
observância viria a ser convocada pelo prestígio de que, mesmo nos mais recônditos
meios, passaria a auferir.
Do ponto de vista institucional, porém, só a partir dos anos Sessenta de
Setecentos, mas muito particularmente no último quartel daquela centúria, o dito
acréscimo viria a concretizar-se. Até à extinção - provisória415- da observância, sob o
regime liberal e, sucessivamente, sob a I República, várias casas se estabeleceriam: em
Montemor-o-Novo (1764?), em Lisboa (1783), em Vila Pouca da Beira (1791),
novamente em Lisboa, à zona chamada da Cova da Moura (1825) e, na tardia data de
414 Processo referente a representação das madres abadessas dos três conventos do Desagravo doSantissimo Sacramento a Sua Majestade…, Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro - Divisão demanuscritos (I-32, 23, 004, n.º 9).415 A observância, uma vez extinta, viria a ser canonicamente revalidada em 1958. (Vd. António MontesMOREIRA, op. cit., p. 227).
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1875, em Sanguedo, Santa Maria da Feira. A recuperação tardia dos estatutos do
Louriçal e do ideário espiritual neles vertido seria tudo menos casual, como
procuraremos demonstrar.
Dificilmente uma Regra se expandiria sem dar mostras concretas da sua
robustez. E o Louriçal, que contava nos fundamentos fragilidades de monta, deveria
contrapor-se-lhes oferecendo compensatória e supletivamente provas de vitalidade e de
consagração. A ambiência religiosa do reino proporcionar-lhe-ia confortável respaldo.
Do contexto em que se implantara avulta, na verdade, o incremento das vocações
religiosas - praticamente contínuo até ao terceiro quartel do século XVIII -, resultante da
renovação das práticas religiosas propugnadas por Trento, do revigoramento das Ordens
antigas e da introdução de novas Ordens ou observâncias416. No terreno mais específico
da espiritualidade, registava-se, em traços largos, a permanência dos grandes eixos e
tendências que, a esse nível, haviam caracterizado os séculos XVI e XVII417.
Desenvolvia-se a vida monástica e a espiritualidade ascética, crescia a influência das
biografias de santos, monges, missionários mártires e fundadores de Ordens religiosas,
difundiam-se manuais e livros de oração e multiplicavam-se as publicações de caráter
devocional418. Mantinham-se os modelos e práticas de oração, o relevo da direção
espiritual e a incidência devocional, assinalada pela devoção ao Sagrado Coração de
Jesus, que passaria a dominar o século XVIII, a Nossa Senhora - nomeadamente sob a
invocação da Imaculada Conceição -, à Eucaristia, à Paixão de Cristo e às Sagradas
Chagas. Centrais e definidores da vida religiosa do Setecentos, emergiam, enfim, a
imitação de Cristo e o desprezo das coisas do mundo419.
Contudo, a adesão maciça aos caminhos da salvação não resultaria
necessariamente no aprimoramento geral da prática e do sentimento religioso.
Relaxação e superficialidade não deixariam de pontuar o reverso do panorama religioso
416 Cfr. José Pedro PAIVA, “Os mentores”, in Carlos Moreira AZEVEDO (dir.), Dicionário de HistóriaReligiosa de Portugal, Vol. II, Lisboa, Círculo de Leitores, 2000, pp. 201 – 202.417 Cfr. VILLER, M., CAVALLERA; F.; GUIBERT, J. de, Dictionnarie de spiritualité ascétique etmystique doctrine et histoire, Tomo XII, Paris, Beauchesne, 1986, “Portugal” (sécs. XVI-XVIII), cols.1958 a 1973. Cfr., em especial, o artigo de Maria de Lurdes Belchior e José Adriano de Carvalho, a cols.1968-9.418 Cfr. Idem, ibidem.419 Cfr. MARQUES, op. cit., p. 570. Em relação ao tema e, particularmente, à imagem de São Franciscocomo efígie de Cristo - “alter Christus” -, veja-se também Carlos Javier Castro BRUNETTO,Franciscanismo y arte iberica en Brasil, Santa Cruz de Tenerife, 1996. Na verdade, a contemplação dolado aberto de Cristo e o seguimento do exemplo d’Ele instituíam-se como vias para a conversão,redenção e aperfeiçoamento, ao mesmo tempo que conduziam à reflexão sobre as consequências dopecado e a importância da penitência.
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e moral de entre finais do séc. XVII e primeiras décadas da centúria sucessiva420. Será,
pois, na reação a um tal quadro que veremos emergir a Jacobeia e um dos seus mais
vigorosos sequazes, D. Miguel da Anunciação, bispo-conde de Coimbra (1741-1779).
Movimento e homem cruzam-se iniludivelmente com a história do Instituto do Louriçal.
Tomando de empréstimo as palavras de João Pimentel Lavrador, diríamos,
sobre a Jacobeia, tratar-se do
ideal da vida religiosamente perfeita no seu afastamento do mundo, comum a
ascetas e místicos de todos os tempos, que muitas ordens religiosas abraçaram e
que os jacobeus pretendiam, agora, difundir dentro da sociedade como meio de
regeneração e salvação.421
Insistindo nos fins últimos, na crença em Deus, na corrupção do homem, no peso do
pecado, na crítica à magnificência do culto, na desconfiança perante “violências
diabólicas” e perante a prática da comunhão frequente422, preconizava a oração, a
penitência, a confissão, a austeridade dos costumes e o regresso à mística clássica como
veículos de perfeição423.
Iniciado com os Eremitas de Santo Agostinho, o movimento expandir-se-ia a
várias outras Ordens ou setores da religião424, vindo a ser amplamente acolhido no
Convento do Varatojo no último quartel do Seiscentos, por obra de Fr. António das
Chagas. Na que chegaria a designar-se como “Jacobeia do Varatojo”, viria a merecer
inestimável relevo Fr. Gaspar da Encarnação (1685-1752), no século D. Gaspar
Moscoso da Silva, “que se tornou cabeça da jacobeia em sentido lato”425. De distinta
família, aparentado de D. João V e pessoa da estreita confiança e proximidade do
monarca, depois de acumular cargos e títulos vários - foi doutor em cânones em
420Veja-se, a propósito, João E. Pimentel LAVRADOR, Pensamento teológico de D. Miguel daAnunciação. Bispo de Coimbra (1741-1779) e renovador da diocese, 1.ª edição, Coimbra, Gráfica deCoimbra, 1995.421 Cfr. João E. Pimentel LAVRADOR, op. cit., pp. 122-123.422 Vd., a respeito dos caminhos da perfeição preconizados pela Mística Clássica, a súmula de PimentelLAVRADOR op. cit.. p. 126.423 Cfr. António Pereira da SILVA (OFM), A Jacobeia, movimento de renovação da Igreja em Portugalno século XVIII, Separata de Estudos Teológicos, s/n, 1964, pp. 5-7.424 Dele viriam a destacar-se, entre outros, Frei Francisco da Anunciação, Frei Gaspar da Encarnação e,ainda, D. Miguel da Anunciação.425 A respeito do Sigilismo, veja-se o estudo de António Pereira da SILVA, A questão do sigilismo emPortugal no século XVIII: história, religião e política nos reinados de D. João V e D. José I, Braga, Ed.Franciscana 1964.
130
Coimbra e reitor daquela universidade, deão da Sé de lisboa, sumilher da cortina e do
conselho do rei - recolheu-se no Varatojo, onde, em 1715, tomou hábito e, um ano mais
tarde, professou. D. João V chamá-lo-ia para reformar o mosteiro conimbricense de
Santa Cruz. De missão em Coimbra, em 1727, influenciou vários crentes, levando-os a
optar pela vida religiosa. Encontrava-se entre eles o futuro bispo de Coimbra, D. Miguel
da Anunciação que, em 1728, ingressa na Congregação dos Cónegos Regrantes426.
Poderíamos, nestes pressupostos, aventar que duas vias de influência fariam
convergir o ideário jacobeu sobre os destinos do Louriçal: a jurisdição ordinária, pelas
mãos de D. Miguel da Anunciação e a jurisdição provincial, derivada da pertença das
clarissas à família franciscana e garantida pela ligação ao Convento do Varatojo. No
entanto, o papel do prelado conimbricense, pelo teor da ação reformadora que
empreendeu e pela natureza da dependência jurisdicional do mosteiro, merece ser
sublinhado.
Reformador e o impulsionador de uma nova espiritualidade, o antístite assumiu-
se igualmente como reformador da sua diocese. Visou responder à ignorância do clero e
à difusão do Iluminismo, criou o Seminário de Coimbra e os arciprestados427. Deu
especial atenção à direção espiritual e à oração mental como meios de formação
espiritual, cuja prática intensamente defendeu junto de conventos e paróquias428. O
magistério de D. Miguel ficará assinalado pela enérgica tomada de posição no contexto
de questões candentes como o Sigilismo, a influência dos autores afetos ao Iluminismo
e o poder absoluto do Estado429. No seu confronto "seja com o poder da Inquisição, seja
com o poder do Estado", visaria antes de mais a defesa da jurisdição episcopal430.
É sobre este pano de fundo, aqui traçado de forma porventura impressionista,
que emerge e se desenvolve a vida monástica do Louriçal, na qual as notas de vitalidade
genericamente se pressentem até finais do reinado de D. João V. Expresso, consoante já
notado, no domínio da arquitetura, manifestar-se-ia outrossim no terreno da devoção, da
prática religiosa, das vocações e dos recursos materiais.
426 Cfr. João E. Pimentel LAVRADOR, op. cit., pp. 463-466.427 Idem, ibidem, pp. 463-466.428 Idem, ibidem, pp. 455-457. Os autores espirituais em que se fundamenta são os nomes mais célebresda mística e dos tratados de espiritualidade do século XV e XVI: Santa Teresa de Ávila, São João daCruz, São Francisco de Sales, Fr. Luís de Granada, Fr. Manuel Bernardes, etc.429 Idem, ibidem, p. 459. O autor considera não existir “rasgo próprio em alguma questão controversa.” Sealgo de original houvesse, seria o de fomentar a Jacobeia, o que não deixa, segundo o autor, de estar nalinha da renovação espiritual empreendida por muitas outras personalidades.430 Idem, ibidem.
131
As contradições sobrevindas na alba da vida regular não passariam, afinal, de
um percalço graças à animosa ação de D. António Caetano de Sousa431. O regresso de
duas das fundadoras canónicas ao seu mosteiro de origem, ao inviabilizar admissões e o
provimento de lugares, colocaria, de fato, no horizonte a ameaça do definhamento da
vida monástica, circunstância que imediatamente suscitou o zelo de prelado. Em carta
dirigida ao Padre António de Faria (CO), a quem consultava em matérias de gravidade,
haveria de relatar: "movido de superior impulso, fuy ao Louriçal, elegi Abbadessa,
professey Noviças, enchi o regimen temporal, e espiritual do Mosteiro"432. Destas
inspiradas diligências, inteirar-se-ia D. Gastão José da Câmara que, fazendo jus ao
estatuto de mediador que tão ciosamente assumiu, prontamente se encarregaria de as
transmitir ao rei433. Um período de vitalidade se iniciava no Mosteiro do Louriçal.
Enquanto o Livro das Fazendas da Capela registava o incremento das receitas
monásticas, o Livro em que se lançam os termos das entradas434 atestava o
robustecimento numérico da comunidade e assinalava o alargamento geográfico da
influência do Instituto, para o qual convergiam candidatas provindas não já das
imediações regionais da casa. O Liber Mortuorum435, por seu turno, revelava, dentro de
uma chave de leitura que interessar sublinhar, a progressão espiritual do cenóbio. Nela
nos detenhamos, embora não com a profundidade que em sede outra se reclamaria.
A notícia que acompanha o assento das religiosas falecidas não deixa
aparentemente dúvidas acerca da edificação da vida monástica. Do amplo rol de
percursos exemplares que o documento nos oferece, poucos foram aqueles que lograram
passar o crivo do tempo e os muros do convento. A alguns deles se refere o Padre
Manuel Monteiro na Memoria de algumas religiosas que falleceraõ no Real Convento
do Louriçal com opinião de virtude436 que acopla à sua História da Fundação437.
431 Manuel MONTEIRO, op. cit., pp. 143-145.432 A carta, datada de 18 de maio de 1711, encontra-se inserta nas páginas 145-149 da História daFundação de Manuel Monteiro.433 Vd. nota anterior.434 Vd. Livro em que se lançam os termos das entradas das Noviças que tomam o hábito neste RealConvento do SS.mo Sacramento da Vila do Louriçal que começa a servir no princípio da sua fundaçãono ano de 1709, BNP, Secção de Reservados, Códice 11066.435 Vd. Liber Mortuorum, ANTT, Arquivo das Congregações, Livro 1103.436 Cfr. Manuel MONTEIRO, op. cit., pp. 360-509.437 Bem que numa leitura desatenta, os exemplos assinalados revelam os modelos ou critérios de virtudede quem lhes avaliou a existência monástica, mas também o sentido e limites da beatitude num mosteirode contemplativas de clausura. Ressuma claramente desta exposição de Manuel Monteiro uma intençãode enaltecer a fundação joanina e a Regra do Desagravo, associando-a a exemplos de vida gloriosa que,de algum modo, permitam sancionar a bondade do Instituto e dos seus diretos patrocinadores.
132
Das dezasseis religiosas que, desde a fundação à data da redação da obra, são
merecedoras de homenagem, contam-se, como que a sublinhar a santidade da própria
casa, três das fundadoras canónicas - Arcângela dos Serafins Evangelista, Maria Teresa
do Sacramento e Maria de Jesus Evangelista - e a primeira das abadessas que àquelas se
seguiu, Maria Antónia de Jesus, que chegaria mesmo a despertar a devoção popular438.
Poucas seriam, contudo, pelo menos ao que sabemos, aquelas que viriam a beneficiar de
efetivos processos de beatificação ou canonização. Desafiariam a máquina da memória
e do esquecimento ou a volubilidade das devoções ou simplesmente a tibieza dos
empenhos, Maria do Sacramento, Maria Doroteia e Maria Joana.
Não se conhecendo qualquer processo relativo a Soror Maria do Sacramento,
conhece-se, no entanto, um manuscrito intitulado Vida e morte da Madre Maria do
Sacramento439. O assento que da sua morte se fazia revela abreviadamente os
predicados que a póstuma memória escrita lhe consignaria440. Nascida a 15 de Abril de
1708, de pais nobres, natural de Alverninha, Alcobaça, D. Maria Bárbara de Portugal,
seu nome no século, desde cedo mostrara desejo de prosseguir vida ascética e
despojada. Sabendo da virtude e rigores praticados no Mosteiro Louriçal por uns
comerciantes chegados ocasionalmente daquela vila, que lhe haviam dito que as “freiras
erao h mas Santas, que semper estavaõ em oraçaõ que faziaõ mtas esmollas que
ninguém as via nem lhes falavaõ e que eraõ m.to penitentes e observantes”, decidiu
ingressar no cenóbio, onde durante doze anos seria professa e onde revelaria rara
humildade e caridade, dons de profecia e desprezo de si e das coisas do mundo441. Viria
a falecer a 9 de abril de 1745. Manuel Monteiro, que com o seu nome termina o elenco
das merecedoras de timbre de santidade, dedica-lhe cerca de meia centena de páginas,
que remata significativamente impetrando que “nos façamos benemeritos destes seus
438 Viria a falecer a 2 de novembro de 1729. Foi a primeira abadessa depois das fundadoras. Exemplo devirtude, revelaria extremada obediência, paciência, humildade, caridade para com os necessitados e umtotal desprendimento de si. A paciência com que haveria de padecer a provação da doença e dasatribulações da alma, crismariam a santidade do seu percurso. De fato: “Purificou-a Deos Senhor N. nocrysol da tribulação, dando-lhe a padecer naõ só trabalhos exteriores, e do corpo, senaõ tambem unsinteriores, e do espirito: mas neste mesmo tempo lhe dava a conhecer o muito que a favorecia, porquepara todos a corroborava com huma constancia, e fortaleza, mayor que se podia esperar do seu sexo”(Manuel MONTEIRO, op. cit., p. 410). Quando morreu, o seu corpo ficou totalmente flexível einexplicavelmente recoberto de estranhos sinais. A veneração que em seu torno se criou viria mesmo a serreprimida pela autoridade eclesiástica. Ficaria sepultada na campa n.º 2 do claustro monástico (LiberMortuorum, ANTT, AC, Lv. 1103). Vd., igualmente, Manuel MONTEIRO, op. cit., pp. 406-413.439 BGUC, Ms. 53. pp. 91-92. O documento não se encontra datado.440 Liber Mortuorum, ANTT, AC, Lv. 1103, fl. 10.441 BGUC, Ms. 53. pp. 91-92.
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[da madre] premios nesta vida, e dos que tem reservado para os escolhidos na sua
Gloria.”442
Interessante é também o caso de Soror Maria Doroteia ou, quem sabe, Doroteia
Maria443. Nascera em 1686, de pais nobres. Fora para a corte assistir o Infante D.
Francisco, que muito estima por ela nutria. Acesa a vocação religiosa, chegar-lhe-ia
informação sobre o Mosteiro do Louriçal,
de cuja observancia, e austeridade rigorosa chegava á Corte, e ao Paço a
noticia; e naõ só se ouvia com edificaçaõ, e assombro, mas se contava como
cousa rara, e sobre as forças da natureza: eraõ porém estes mesmos rigores,
que a todos causavaõ espanto, os que mais inflammavaõ o seu espirito, desejoso
de abraçar hum modo de vida, que considerava, quanto mais austero, mais
perfeito.444
Foi perfeita a sua vida de religiosa e portentosa a sua existência post mortem.
Não só manteve a aparência de vida uma vez falecida, como obrou copiosos prodígios,
relatados em fonte literária pelo confessor445. A esta religiosa cremos respeitar um
processo sobre a vida, graças e dotes sobrenaturais de que se encarregaria D. Miguel da
Anunciação446.
Depois de Maria do Lado, foi, contudo, Maria Joana a religiosa que mais
aclamação mereceu447. Viria a falecer em 25 de março de 1754, no termo de uma
existência marcada pela prática da mais extremada penitência. Dos muitos favores
divinos com que seria bafejada - e que por modéstia ciosamente dissimulava -, conta-se
a previsão mística do Terremoto de 1 de novembro de 1755, que por certo alimentaria a
pretensão de que viesse a ter assento no orbe seráfico. De fato,
442 Manuel MONTEIRO, op. cit., p. 509.443 Liber Mortuorum, ANTT, AC, Lv. 1103, fl. 32.444 Manuel MONTEIRO, op. cit., pp. 433-434.445 Idem, ibidem, p. 434.446 Processo sobre a vida, graças e dotes sobrenaturais da madre Soror Maria Doroteia, inserto na pasta"D. Miguel da Anunciação e o Convento do Louriçal" (AUC, VI, 1E, 6, 3). A 1.ª sessão inicia-se a 21 dejunho de 1756.447 Memorias da vida e virtudes de Serva de Deus Soror Maria Joana, Religiosa do Convento doLouriçal, ANTT, Conselho Geral do Santo Ofício, Lv. 62.
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em huma carta sua escrita talvez annos antes da sua morte, diz que o Senhor lhe
revelou confusamente o que succedeu neste Reino, e com maior catástrofe em
Lisboa, no primeiro de Novembro e mil Setecentos sincoenta e cinco. Vio com a
lus profetica obscura o successo, e com lus ainda mais clara vio a causa [...]448
Ao registar o seu trânsito no Liber Mortuorum, Soror Francisca Maria, escrivã, desvela
que o intento conhecia formulação prévia: “naõ me dilato com mais larga notissia", diz,
"q esperamos ver breve m.te dar-se a inpresa a sua prodegioza Vida"449. E, de fato, em
1762, dava-se ao prelo, novamente sob o magistério de D. Miguel da Anunciação e a ele
dedicada, a Memoria da vida, e virtudes da serva de Deus Soror Maria Joanna450, da
autoria do confessor, Frei José Caetano. Em escritos anteriores, porém, terá assentado a
obra editada: na Breve relaçaõ da vida, e morte prodigiosa da Madre Soror Maria
Joanna nossa irmã, que faleceu a 25 de Março deste presente anno de 1754 neste nosso
Convento de Louriçal451 e/ou nas Cartas que escreveu a seu confessor para noticia da
sua consciência, e por preceito do mesmo a Serva de Deos Soror Maria Joanna452.
No registo de exemplos de vida perfeita, emerge um paradigma de beatitude que
totalmente se alinha com o contexto espiritual da época e que o mosteiro zelosamente
reproduz. Desprezo do mundo e de si, humildade radical, perseverança na experiência
mística, mas, sobretudo, na ascese por meio da mais requintada penitência, são aspetos
que codificam o ideário de perfeição religiosa preconizada nas primeiras décadas de
vida da casa. Mas, nas entrelinhas do discurso, pressente-se também a intenção de
propor como paradigmáticos os exemplos aí apresentados, e, por sinédoque, de
apresentar o mosteiro, alfobre de virtudes, como modelo, ele mesmo, de santificação.
Difundir a opinião de virtude de uma religiosa convertia-se, pois, na creditação
do nome do Instituto, tarefa naturalmente propiciada pela natureza dos benefícios,
448 Frei José CAETANO, Memórias da vida e virtudes da serva de Deus Soror Maria Joana, Lisboa,Oficina de Miguel Rodrigues, 1762, p. 225.449 Liber Mortuorum, ANTT, AC, Lv. 1103, fl. 17.450 José CAETANO (frei), Memoria da vida, e virtudes da serva de Deus Soror Maria Joanna, Lisboa,Oficina de Miguel Rodrigues, 1762.451 Patente na Biblioteca da Ajuda e proveniente da Biblioteca dos Oratorianos das Necessidades. Editadoem Lisboa em 1754 pela Oficina de Manuel Coelho Amado (BA, 55-II-36, nº 10).452 Cada uma das 57 cartas faz-se acompanhar de um comentário possivelmente redigido pela abadessa.(BGUC, Ms. 1802). A fl. 1, enuncia-se como título: “cartas da Servade Deos Sor Maria Joanna p.ª o SeoConfessor”. Este livro é praticamente desconhecido, não constando, segundo nota à margem escrita alápis, nem da Biblioteca Lusitana nem do Dicionário Bibliográfico. O manuscrito 1592, não datado, ésemelhante ao 1802, embora mais incompleto. Dele não consta, estranhamente, a carta n.º 57 (Vd. BGUC,Ms. 1592).
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projetados no tempo e no espaço pela intercessão milagrosa das religiosas - que
sabemos terem sido pródigas em mediá-los - e capitalizados pelo peso social de muitos
dos agraciados453.
A par de outras vias, constituíam repositórios mnemónicos de excecional alcance
as biografias e apontamentos históricos. Em prol do Desagravo do Louriçal, e à parte as
obras já referidas, consideremos a já nossa familiar Historia da fundação do Real
Convento do Louriçal de religiosas Capuchas Escravas do Santissimo Sacramento, do
padre oratoriano Manuel Monteiro454 e o Compendio da Admiravel Vida da Veneravel
Madre Maria do Lado, redigido pela então abadessa do Mosteiro do Louriçal e dado ao
prelo em 1762455. E vários dados biográficos, quer de Maria do Brito456, quer de Maria
Joana, baseados naquelas obras, terão entretanto circulado em crónicas e hagiológios457,
garantindo-lhe ampla difusão.
Das muitas vidas referidas ou mesmo aclamadas como virtuosas, poucas viriam
a ser alvo de inquirição com vista à atestação de santidade. Mais estranho, contudo, é
que dos poucos processos de beatificação efetivamente iniciados, nenhum tenha
alcançado êxito, mesmo quando sucessivamente reativado. Partilha este panorama o
processo de Maria do Lado, cujo sucesso – ou falta dele – poderá ter pesado no
resultado de outras causas relativas ao mesmo mosteiro e/ou na decisão de as constituir
como expedientes supletivos.
Iniciado em 1633, mas atalhado no ano seguinte, o processo da Venerável Madre
ver-se-ia reativado em 1727 sob o sólido valimento de D. João V. Ironicamente, uma
vez enviada para a Cúria Romana e Sagrada Congregação dos Ritos, a documentação
processual perder-se-ia, acarretando a suspensão da causa por período não inferior a
duas décadas, no termo das quais - quem sabe se no encalço de prodígios ocorridos no
453 Manuel MONTEIRO, op. cit., pp. 350-358.454 A secção da História da Fundação dedicada à biografia de Maria de Brito situa-se entre as páginas231 e 331. (Vida da Veneravel Madre Maria do Lado; primeira instituidora do Convento do Louriçal).455 Baseado nos manuscritos de Bernardino das Chagas e nos relatos das beatas que com a Venerávelconviveram, por seu turno compilados neste Compendio da Admiravel Vida, viria a lume, em edição de1981, elaborada pelas irmãs clarissas do Louriçal, a Vida da Serva de Deus Madre Maria do Lado.Fundadora do Mosteiro do Santíssimo Sacramento do Louriçal.456 Estranhamente, da única obra que foge à autoria religiosa, não só se perdeu o rasto, como jamais éexplicitamente referenciada por qualquer das biografias citadas. Sairia da pena do fidalgo louriçalenseAmaro Vasques de Castelo-Branco Henriques sob o título de Breve e verdadeira Noticia da portentosavida, & admirável morte da Veneravel serva de Deos Maria do Lado & da Fundação do seu Convento doSantissimo Sacramento da Villa do Louriçal. A obra encontra-se referenciada por Barbosa Machado noSummario da Bibliotheca luzitana.457 Dados sobre a vida de Maria do Lado podem ver-se, por exemplo, na Crónica Seráfica de FreiFernando da Soledade, no Agiologio Lusitano de Jorge Cardoso ou, ainda, no Livro em que contem tudo oque toca à Origem, Regra, Estatutos, Ceremonias, Privilegios, & Progressos da sagrada Ordem Terceirada Penitencia de N. Seraphico P.S. Francisco de Frei Luís de São Francisco.
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mosteiro por intercessão de Maria do Lado na doença de uma monja, a 24 de maio de
1745 -, seria reativado, agora sob o magistério de D. Miguel da Anunciação. A 16 de
agosto de 1746 teria lugar a primeira de uma série de 50 sessões do processo de genere,
vita et moribus458. Três décadas passariam, no entanto, até que, em 1779459, novo alento
fosse impresso à causa. Até então, quaisquer ações eventualmente empreendidas não
lograriam concitar o anelado reconhecimento canónico. De pouco valeriam as
informações dos processos anteriores, a que agora deveriam apor-se argumentos sólidos,
tais como prodígios manifestados em data posterior aos anos 40 de Setecentos460.
Certamente contraproducente seria tomar como relevantes dados do primeiro
assomo processual de Seiscentos, contaminados, que estavam, de insanáveis vícios de
forma. Quando, no último quartel de Setecentos, a causa é reativada, o Promotor da Fé
sentencia
a fama de Santidade de Maria do Lado comessou tres annos antes de sua morte,
quando por uso e costume da Curia se requer ao menos o espaço de dez annos;
prova a sua pouca humildade [...] e provou tãobem que toda afama de Santid.e
saio de Fr. Bernardino das Chagas.
O dito promotor não poderia senão concluir que os ditos processos "pouco ou nada
fazem para o Cazo de que se trata."461 Mas mesmo o processo instaurado em 1727 e
retomado em 1747 por mão de D. Miguel da Anunciação não estaria isento de
fragilidades, chegando mesmo o relator de um sumário referente à causa a opinar:
458 Processo de beatificação da Madre Maria de Brito ou Maria do Lado, AUC, Cabido da Sé deCoimbra, documentos avulsos (III, 1.ª D, 7-2 [extremo direito] B). O processo seria levado por NicolaoPyaggio, “correyo a Seriço de Sua Mag.de Portugueza Natural da Cidade de Genova […] eu proprioespecialmente deputado p.ª Levar a Roma o transunto”. A causa é dita sempre, no âmbito destesdocumentos, como sendo de beatificação e canonização. Retomando não as diligências seiscentistas, onovo processo contaria com o suporte da documental que servira ao processo dos anos vinte deSetecentos, tendo implicado a extração servatis servandis e o traslado do Arquivo da Câmara Episcopalde Coimbra dos documentos originais, a que foram apostas algumas emendas.459 Processo de beatificação da Madre Maria de Brito ou Maria do Lado, AUC, Cabido da Sé deCoimbra, documentos avulsos (III, 1.ª D, 7-2 [extremo direito] A, Capilha 2).460 Os Autos de Deligencia assim o explicitam. A inquirição sobre a fama da Santidade deveria incidir“assim no tempo pasado como no prezente da Serva de Deus Madre Maria do Lado” e “ sobre algunsfactos prodigiozos que o mesmo Deus tenha obrado por intercessão da dita Sua Serva do anno de mil esete Centos e quarenta e oito em diante.” Vejam-se os Autos de deligencia feita p.ª o fim da Beatificaçãoda Madre Maria do Lado fundadora do Recolhimento do Villa do Louriçal que hoje he Convento deReligiozas professas da primeira Regra de Sta. Clara, com o tittulo do Santissimo Sacram.to, 7 dedezembro de 1779, patentes no processo de beatificação acima referido.461 Veja-se a nota anterior.
137
e creio ser principalm.te deste processo [de 1727], que o Promotor da Fe forma
as suas advertencias e duvidas, ás quaes o Promotor da causa Thomas Maria
Salvatorio acha tanta força que confessa nao puder responder a algumas dellas
e aconselha que se desampare a causa.
Constantemente atualizada deveria ser a devoção e, a alavancá-la, os milagres.
Seria tão tíbia a devoção e tão frouxos os portentos a ponto de justificarem tão pertinaz
renitência? O que terá pesado em favor de tais impasses e dificuldades? Estar-se-ia
perante a conjuntura de crise que nos aparece invocada no registo de entrada da
postulante Maria do Carmo, em que a demora - de vários anos - da sua admissão,
verificada apenas em 1776, é justificada pelas " revoluções do Reino”? Ou, em sentido
inverso, seria antes a pretensão desajustada, por demasiado elevada, aos argumentos
apresentados? E, nesse caso, o que terá abonado em prol da defesa de algo
comprovadamente assente sobre tão frágeis alicerces?
Dificilmente não associaríamos ao reinado de D. José I e à governação
pombalina as dificuldades assinaladas, não refutando, muito embora, a continuidade da
ligação histórica entre a Coroa e o Desagravo, detetável na decisão régia de concluir as
obras de Santa Engrácia462, na oferta, pelo monarca, da imagem de Nossa Senhora da
Boa Morte e da pintura de Emanuel Alfani ao mosteiro ou, invertendo os sujeitos da
ação, na dedicatória ao rei, pelas religiosas, da biografia das Veneráveis Maria do Lado
e Maria Joana.
Em certa medida, e em termos genéricos, pode dizer-se que a política
prosseguida no reinado de D. José não favoreceu a consolidação e o enriquecimento da
complexa trama que teve o desacato como pretexto. Ao pretender consolidar e
robustecer o poder do Estado, na esteira do despotismo esclarecido e da doutrina
regalista, atingiu, de uma parte, a nobreza titular, que sabemos ter constituído a alma da
confraria dos cem nobres e, de outra, a classe eclesiástica, a quem condicionou e
subtraiu poder de ação. Foi no seio de uma tal lógica de ação que decorreu a prisão de
462 Embora tenha sido sob a égide de D. José I que a Confraria dos Escravos foi largamente admoestadapela gestão perdulária dos seus recursos. (Vd. “Avizo do secretr.º de Est.º Sebastião Joze de Carv.º eMello [...]”, in Miscellânea de varios papeis, Tomo I, fls. 88 v– 89, Academia das Ciências, Série Azul,n.º 307).
138
D. Miguel da Anunciação, que há pouco vimos como intérprete da causa da madre do
Louriçal463.
Além do restabelecimento do beneplácito régio, decretado em 1765, da expulsão
da Companhia de Jesus e do Núncio Apostólico, do corte das relações com Roma,
verificado entre 1760 e 1770, da reconfiguração do mapa eclesiástico de Portugal, da
criação da Real Mesa Censória, que transferia a censura sobre o ensino e publicações do
pelouro da Igreja para o do Estado - que sumária e genericamente ilustram a política
pombalina no que toca à clerezia464 -, importa sublinhar certas medidas decretadas por
Pombal para a compreensão deste período de inexorável transformação da História da
Igreja em Portugal465.
Visando a reafirmação da soberania do Estado secular sobre a Igreja e da
soberania portuguesa face ao poder papal, a política religiosa do Marquês centrou-se,
em parte, na redução do peso económico da Igreja através da libertação da propriedade
dos ónus que sobre ela impendiam. Neste contexto se pode ler a legislação
desamortizadora e desvinculadora promulgada nomeadamente entre 1766 e 1770466.
Com efeito, se já então as leis civis proibiam ou limitavam a amortização eclesiástica, o
Concílio de Trento viria autorizar a posse de bens de raiz pelas Ordens religiosas. Como
é sabido, da propriedade vinculada dependia, em grande parte, o sustento material das
corporações de mão morta, que usufruíam, pela instituição de missas perpétuas, assente
na crença no Purgatório, um rendimento temporalmente ilimitado467. De fato, a gestão
patrimonial dos bens das almas escolhido por muitos fiéis corresponderia, precisamente,
ao "modelo organizacional que supostamente protegia, para a eternidade, o património
das grandes famílias: o do morgadio."468 Na súmula de Laurinda Abreu
463 A prisão do bispo foi motivada pela emissão de motu proprio de uma pastoral, sem submissão ao realbeneplácito. A pastoral foi exarada a 8 de Novembro de 1768 e, um mês depois, foi o prelado feitoprisioneiro em Pedrouços. (Cfr. José Pedro PAIVA, A Igreja e o poder, in Carlos Moreira AZEVEDO(dir.), História Religiosa de Portugal, Vol. II, Lisboa, Círculo de Leitores, 2000, p. 173). Focamos, emtermos próximos, este ponto, na nossa dissertação de Mestrado, já várias vezes citada, a pp. 74-75.464 Vd., a propósito, José Pedro PAIVA, “A Igreja e o poder”, in AZEVEDO, Carlos Moreira (dir.),História Religiosa de Portugal, Vol. II, Lisboa, Círculo de Leitores, 2000, pp. 135-185). Vd., também,Laurinda ABREU, "As relações entre o Estado e a Igreja em Portugal na segunda metade do séculoXVIII: o impacto da legislação pombalina sobre as estruturas eclesiásticas", in Ana Leal FARIA, IsabelDrummond BRAGA, Problematizar a História. Estudos de História Moderna. Homenagem a Maria doRosário Themudo Barata, Casal de Cambra, Caleidoscópio, 2007, pp. 645-673. A questão, uma vez mais,encontra-se em registo próximo tratada em JACQUINET, Em desagravo do santíssimo Sacramento.., pp.74-75.465 Cfr. Laurinda ABREU, op. cit. pp. 645-673.466 Idem, ibidem.467 Idem, ibidem.468 Idem, ibidem.
139
A eficácia com a que lei foi aplicada fez com que, em 1777, à morte de D. José I,
portanto, a estrutura patrimonial em que se erguera parte do poder económico
da Igreja, nomeadamente das ordens religiosas, paróquias e confrarias (de
leigos ou não) estivesse irremediavelmente minada.469
Entretanto, o reinado josefino presenciaria a destruição da capital pelo terramoto
e maremoto de finais de 1755, a justificar, por si só, a premência dada à reconstrução
das zonas afetadas em detrimento da fundação de novos edifícios, mormente de
natureza religiosa. Apontando no sentido do adiamento de qualquer outro projeto de
arquitetura religiosa não enquadrável no plano arquitetónico e urbanístico definido,
estaria, para além do peso económico da reconstrução, o arrastamento temporal das
obras e a paulatina insinuação dos ideais iluministas e, com eles, uma crescente
laicização470.
Invertendo a perspetiva de análise e olhando o Louriçal a uma escala
aproximada, apercebemo-nos sobremodo do peso de que se revestiu a ausência de D.
João V e da sua atenta vigilância; das consequências concretas do corte das relações
com a Santa Sé no que tange a processos dependentes da boa comunicação com a Cúria
romana; da perseguição movida contra os jacobeus; da prisão, a 8 de dezembro de 1768,
desse expoente da Jacobeia que foi D. Miguel da Anunciação - e que, até 1775, ficaria
praticamente incomunicável -; enfim, do destino da Casa dos Ericeiras-Louriçais, que,
em 1743, D. Francisco, segundo marquês, viria a achar "reduzida a tal consternação e
miséria que apenas sabia por hum Orçamento que as dívidas hereditárias chegavam a
trezentos mil cruzados"471.
No que respeita à nobreza, com efeito, e à sua constituição, interessa atentar nas
medidas, legislativas ou não, de limitação das regalias e a perseguição movida a certos
nobres conotados com a oposição ao poder de Pombal ou envolvidos no atentado a D.
José. Apesar de crescentemente relativizada, a atuação do pombalismo em relação à
469 Idem, ibidem, p. 650.470 Cfr. José-Augusto FRANÇA, Lisboa Pombalina e o Iluminismo, Lisboa, Bertrand Editora, 1977. Oestilo pombalino, que reconhecemos nas chamadas igrejas da reconstrução, acabam efetivamente porespelhar o pragmatismo e racionalidade impressos no projeto de reconstrução.471 ANTT, Desembargo do Paço, Corte, mç. 2064, n.º 21, apud Nuno MONTEIRO, O crepúsculo dosgrandes. A casa e o património da aristocracia em Portugal (1750-1832), Lisboa, ImprensaNacional/Casa da Moeda, 1998, p. 375.
140
nobreza não deixou de abalar profundamente, sobretudo no terceiro quartel de
Setecentos, o estatuto daquele grupo472.
Mas o que pareceria ser um contexto que não consente refúgio, viria,
naturalmente, a mostrar-se revisível. Com a subida ao trono de D. Maria I, a sorte de D.
Miguel da Anunciação alterar-se-ia radicalmente, permitindo a pressurosa recuperação
de causas asfixiadas sob o pombalismo. Nelas se inscreve, precisamente, a reativação do
processo de beatificação de Maria de Brito, que o antístite desencadeia enviando, em
1779, um requerimento a Roma.
Apelando novamente a um quadro de referência geral, notemos que o reinado
mariano, ao contrário do anterior, foi altamente propício à causa que nos ocupa. Os seus
primeiros anos terão mesmo configurado uma ação de desagravo a várias das medidas
tomadas pela governação paterna, e, bem que o alcance do conceito de “Viradeira”
tenha sido objeto de uma revisão historiográfica que implicou a relativização dos seus
termos e alcance, não é de excluir que uma reação efetiva tenha assinalado o exercício
de poder por D. Maria I, atingindo com particular acuidade o domínio social e religioso.
A esta luz pode ser considerado o processo de reabilitação de figuras e doutrinas
anteriormente visadas pela ação pombalina ou a assinatura de concordatas com Roma,
como a que estabeleceu o Tribunal da Comissão Pontifícia e Régia, a indiciar certa
recuperação do poder eclesiástico473.
À semelhança de D. João V, também D. Maria I daria bastas provas de
liberalidade em relação aos frades menores, como bem demonstra Frei Vicente Salgado
no Compendio Historico da Congregação da Terceira Ordem de Portugal, ao escrever:
Governando porém esta Ordem o R.mo Confessor do Senhor Infante, e Rei D.
Pedro III, e Ministro Geral Fr. José Maine, conseguiu do Santo Padre Pio VI, à
instancia da Piissima Rainha Reinante D. Maria I, izentar esta Congregação de
Portugal de ser sugeita aos Ministros Geraes da Observancia, pella Bulla,
Apostolicae fedis auctoritas, de 29 de Fevereiro de 1780, e pela Bulla Cum Nos
472 A respeito da evolução e constituição da nobreza neste período, vd. Nuno Gonçalo MONTEIRO, Elitese Poder. Entre o Antigo Regime e o Liberalismo, Lisboa, ICS, 2003, pp. 105 - 138 e, do mesmo autor,“Pombal e a aristocracia” in AAVV Camões. Revista de Letras e Culturas Lusófonas, n.º 15-16, 2003, p.41. O autor apresenta uma súmula conclusiva da ação política de Pombal no que respeita à nobreza,debruçando-se não só sobre as disposições normativas que dele emanaram como de opções de diferentenatureza que igualmente afetaram o grupo social em questão.473 Cfr. José Pedro PAIVA, op. cit., p. 176. O parágrafo segue, em termos aproximados, o texto da nossadissertação, acima mencionada, a p. 75.
141
hodie, do mesmo anno ordenou huma nova Regra tirada da que foi approvada
por Nicolau IV e Leão X, chamando a esta Provincia, Congregação da Terceira
Ordem Regular da Penitencia de Portugal [...].474
Mas a aproximação ao exemplar testemunho de D. João V no que tange ao
sentimento religioso encontrará outras ocasiões mais de se manifestar475. Lembremos a
profunda devoção eucarística do Magnânimo e a forma eloquente de que se revestiu no
quadro da profanação da igreja do convento jesuíta de Setúbal:
quando no anno de 1715, na Igreja do Collegio dos Padres da Companhia da
Villa de Setubal, succede o execrando desacato, que naquella Igreja se fez [...]
pertendeo logo desaggravar ElRey, vestindo-se de pezado luto com toda a
Familia Real, e Corte, e foy em Procissaõ no dia 15 de Abril da Sé de Lisboa,
acompanhado dos Infantes, do Nuncio do Papa, o Embaixador de França, e de
todo o Clero, e Religioens à Igreja de S. Roque com grande devoçaõ e
reverencia476.
Coincidindo com o fôlego insuflado à causa do Louriçal, novo atentado
sacrílego ressoa no reino: a 14 de maio de 1779, dia da Ascensão, a Ermida de São João
Baptista, então matriz da paróquia de Santa Maria, vila de Palmela, é impiedosamente
profanada477. Segundo noticia o Padre Clemente Monteiro Bravo, em carta dirigida a D.
Maria I, a igreja
474 Vicente SALGADO (frei), Compendio Historico da Congregação da Terceira Ordem de Portugal,Lisboa, Off. de Simão Thaddeo Ferreira, 1793, pp. 115 – 116.475 Frei António CORREA (O.S.A.), Oração do desaggravo do Corpo de Jesus Christo em Palmela,sacrilegamente ultrajado …, Lisboa, Régia Oficina Tipográfica, 1780, p. 17. Curiosamente, e ainda quementora da comemoração, a Irmandade dos Escravos não financia o desagravo de Palmela, correndo afesta pela “Real Capella”. (BNP, Secção de Reservados, Coleção Pombalina, fls. 365 v. – 368.).476 António Caetano de SOUSA, História Genealógica da Casa Real Portuguesa, Tomo VIII, Coimbra,Atlântida-Livraria Editora, Lda., 1951, pp. 138-139.477 Cfr. João de S. BOAVENTURA (frei), Breve noticia dos desacatos mais notaveis acontecidos emPortugal desde a sua fundação até agora, e o Sermão do Desaggravo pelos ultimos, comettidos nestemesmo anno, Lisboa, Impressão Régia, 1825, pp. 17-19.
142
se achou roubada, segundo dizem, por tres ladrões, que espoliando-a quasi de
toda a prata, e alfaias, e por ella diffundindo os Santos Oleos, deixando as
Ambulas com as bôcas em terra, passárão ao horrendo attentado de abrirem o
Sacrario, donde levárã hum Cofre com huma Hostia, e cinco Fórmas
consagradas, nelle depositadas, e huma Pixide, com cento e tres Particulas
consagradas, deixando além disso muitas dispersas pelo Altar do mesmo
Sacramento.478
Atenta ao menor assomo de impiedade, a soberana, particularmente devota do Mistério
da Fé, deu solicitamente início às ações expiatórias, impondo um rigoroso luto de nove
dias e promovendo um “Triduo Solemnissimo, e Procissão digna da Real
Magnificencia, d'Adoração, e Desaggravo”, apenas comparável à celebração do Corpus
Christi479. Já em 1781, ordenará a celebração de uma missa anual em memória da
funesta ocorrência480.
Seria este o terceiro - e último - desacato a que se associariam os Escravos do
Santíssimo de Santa Engrácia, firmando, enquanto porta-vozes dos valores da coroa, a
relação entre política régia e devoção eucarística, entre poder e religião, que outras
profanações entretanto sobrevindas não terão logrado estabelecer ou sequer despertar.
Patrocinado, ao invés dos demais festejos, diretamente pela família real, o novo tríduo
seria, contudo, zelosamente organizado pela irmandade, que anualmente elegia os
procuradores e pregadores para cada uma das três celebrações a que diretamente se
ligava: Santa Engrácia, Odivelas e Palmela481.
478 Cfr. Idem, ibidem, p. 18479 António José Correia VELLEZ, Elogio Funebre da Fidelissima Rainha, e Senhora Nossa, D. Maria I.Prégado nas reaes exequias celebradas na Igreja Cathedral d’Elvas, em 13 de Agosto de 1816. Dedicadoá Magestade Fidelissima de Nosso Rei, e Senhor, D. João VI, Lisboa, Impressão Regia, 1817, pp. 16-17.Veja-se também o Aviso de 8 de Junho de 1780 (BNP, Secção de reservados, Coleção Pombalina, fl.365v. – 368).480 Cfr. João de S. BOAVENTURA (frei), op. cit., pp. 19-20. Igualmente prontas foram as diligênciastomadas no sentido de justiçar os responsáveis, Francisco Rodrigues, Manuel da Silva, João BaptistaCardoso e José António da Luz. Aos três primeiros, a sentença, ditada a 17 de Maio de 1780, reservaria amorte de garrote e cremação do cadáver, depois do costumado corte das mãos; ao último, cúmplice dodelito, caberia morte por enforcamento e posterior corte da cabeça, que seria exposta no local do crime.(p. 19)481 AHSPL, Livro dos Acordos, Tomo II, (Lv. 56), fl. 121. A organização da Festa do Desagravo dePalmela, embora imputada à Confraria dos Escravos, não chegou, ao que pensamos, a implicar aconcessão de qualquer esmola por parte dos mesários. Nos livros das pautas, estas festas não aparecemcontabilizadas. Da mesma forma se explicita, em relação a determinado ano, que a festa de Palmela“correu pela Real Capella” (Vd. também Lv. 59, fl. 28).
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Interessante é notar que, apesar dos diferentes contextos convocados e da
evolução da própria confraria e da condição da nobreza, o tributo legitimador do Divino
Sacramento a Portugal surge como um leitmotiv sistematicamente atualizável, como
bem revela a evocação contida num dos sermões pregados pelo infausto caso de
Palmela:
Não vos esqueçais de hum povo, que conserva a terna, e agradavel lembrança
da preferencia, que Vós no Campo de Ourique, pendente da Cruz, em seu
primeiro Monarca, e em seus Successores, como se fosse o vosso Israel
Christão, lhe destes sobre todos os póvos da terra482.
Da mesma forma, e dirigindo-se à nobreza - pois que, “quem he mais illustre,
deve ser mais Christão" -, Manoel de Macedo Pereira Vasconcelos clama do púlpito:
Em huns tempos, tristes tempos! Em que do Septemtrião se levanta huma nuvem
de chamados Filosofos, que ingratos ao leite, com que forão alimentados,
conspiraõ contra os nossos mais Sagrados Mysterios, querendo descobrir pela
razão o que he superior á razão: que obrigação vos [à nobreza] não corre, não
só de rebateres, mas que envergonhares esta raça infame de viboras com o
vosso exemplo, e igualmente com as vossas acções: este he o caracter, que
distingue sempre os Portuguezes, a fidelidade ao seu Deos, a fidelidade aos seus
Principes. Animados deste exemplo, lancámos fóra os Sarracenos das terras que
possuimos, erguendo sobre as despedaçadas luas Mahometanas o Trono, que
gloriosamente occupa e pia, e magnifica D. Maria Primeira483.
Sem podermos perentoriamente concluir que o caso esteja na origem do
movimento de recuperação a que nos vimos referindo, devemos pelo menos tomá-lo
482 Frei António CORREA (O.S.A.), Oração do desaggravo do Corpo de Jesus Christo em Palmela,sacrilegamente ultrajado …, Lisboa, Régia Oficina Tipográfica, 1780, p. 26.483 Manoel de Macedo Pereira VASCONCELOS (padre), Sermão verdadeiro do Padre Manoel deMacedo no desaggravo do Sacramento, prégado na presença de suas Magestades, e Altezas na sua RealCapella de nossa Senhora da Ajuda em o anno de 1779, offerecido ao Ex.mo e Rev.mo Senhor D. JoséMaria de Mello, bispo confessor de Sua Magestade, e Inquisidor Geral do SantoOfficio, Lisboa, Oficinade Simão Tadeu Ferreira, 1791, pp. 19-20.
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como sua parte e agente, à vista do que parece ser a especial vocação e virtualidades dos
atentados sacrílegos enquanto sintomas e sinais que diagnosticam um mal que se faz
urgente reparar. Isso mesmo conclui insinuadamente Manuel Bernardes Branco quando,
após seriar os mais célebres desacatos em Portugal cometidos, e anotando com afetada
estranheza a ausência de semelhantes irreverências entre 1745 e 1779, equaciona:
O reinado de D. João V terminou em 1750. O de D. Maria I começou em 1777.
O intervallo entre estes dois é o reinado de D. José: repare-se para estas datas,
e para as datas da lista.484
Replicando o caso de Santa Engrácia, também Palmela concitaria o empenho
mecenático da família real, pelo menos a dar como certa uma novena de desagravo que,
sem requebros, assere:
o Senhor D. João V tanto apreciava o desaggravo do SS.mo Coração de Jesus,
que edificou no Louriçal um Mosteiro de Religiosas [...] e a Senhora D. Maria I
e D. Pedro III o Mosteiro e Magnifica Basilica do SS. Coração de Jesus [...]
sendo de muita edificação o sentimento, que mostrárão pelo desacato
commetido em Palmella em 1780, mandando vestir de pesado luto a Côrte e
Reino, e fazer uma solemnissima processão em desaggravo, que
acompanháraõ.485
Recorde-se que a devoção ao Sagrado Coração de Jesus, que terá dominado o
século de Setecentos, e a cuja honra D. Maria I consagrou o Convento e Basílica da
Estrela, fora já cultivada no reinado de D. João V.486
484 Manuel Bernardes BRANCO, Portugal na Epocha de D. João V, 2.ª edição, Lisboa, Livraria deAntónio Maria Pereira, 1886, p. 116.485 Novena em reverente desagravo ao Sagrado Coração de Jesus pelos desacatos contra seu amor nosantissimo Sacramento da Eucaristia, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1838. A novena deveria serfeita uma vez por mês para desagravo pelos “ultrages, que no Santissimo Sacramento sóffre o amavelCoração de Jesus”.486 A intenção piedosa de D. Maria I terá sido amplamente secundada pelo seu confessor, Frei Inácio deSão Caetano, arcebispo de Tessalónica, o qual significativamente ao “Augustissimo Sacramento tributavaas mais reverentes, e cordeaes adorações, e sentia vivamente qualquer irreverencia que visse nosChristãos, ainda que fosse inadvertida. (Manoel da SANTO AMBROSIO, Epitome da vida doEscellentissimo e Reverendissimo Senhor D. Fr. Ignacio de S. Caetano, Lisboa, Regia Oficina
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Quando, no encalço das diligências carreadas por D. Miguel da Anunciação, D.
Maria I e D. Pedro III recebem carta da cúria pontifícia dando nota da necessidade de
"suprir a falta que nasce do lapso de tempo decorrido" desde a abertura do processo
"athe ao prezente” e de atestar que a fama de santidade de Maria do Lado se acha "athe
ao presente augmentada”487, interpelados na sua consciência, imediatamente se
associam à causa, beneficiando com a sua munificência a intensificação do culto e
expiação eucarísticos e o recrudescimento das sedes que os animavam.
E, se o processo de beatificação haveria de distender-se em sucessivas
irresoluções, parecendo enfermar do fatídico anátema que acometera as obras de Santa
Engrácia, medrariam contudo as fundações monásticas (ou para-monásticas), que,
aparentemente estribadas na autorização ultramontana de famas de santidade, acabariam
por dispensá-la, usufruindo apenas de um contexto a ambos os propósitos favorável. E é
num quadro em que o sentimento de impiedade se agudiza, e em que o Iluminismo, as
Invasões francesas e a insinuação das ideias liberais entram na mira da reação da Coroa
e da classe devotada ao seu serviço, que florescerá a família do Desagravo. Sobre ela
nos debruçaremos de seguida.
Tipográfica, 1791, p. 137.) A respeito do culto do Coração de Jesus durante o reinado joanino, veja-seMaria do Céu de Brito Vairinho BORRÊCHO, D. Maria I: a formação de uma rainha, Lisboa, s/n, 1993,p. 147 e ss.487 Processo de beatificação da Madre Maria de Brito ou Maria do Lado, AUC, Cabido da Sé deCoimbra, documentos avulsos (III, 1.ª D, 7-2).
146
2. O Recolhimento do Desagravo de Montemor-o-Novo
2.1. Os primórdios
Por alvará de 27 de julho de 1749, D. João V deferia a petição apresentada por
Catarina de Cardenes Sotomaior, Maria de Atalaia e Sousa e Liz, Bernarda Maria da
Veiga Cidade, Catarina do Nascimento e outras religiosas terceiras do hábito de São
Francisco da Vila de Montemor-o-Novo488. Intentavam elas a fundação de um
recolhimento ou conservatório junto à Ermida de Nossa Senhora da Luz, em que
pudessem viver em comunidade segundo a Regra de Santa Clara tal como observada no
Mosteiro do Salvador de Évora489. A casa seria materialmente garantida e a construção
financiada pelas beatas, que se dispunham a "aplicar o que tinhão p.ª esta obra", e por
beneméritos; como igreja, as religiosas disporiam da Ermida de Nossa Senhora da Luz,
de que a irmandade aí estabelecida cedia o usufruto e administração; o recolhimento,
esse, seria erguido junto à ermida, em "pedaço de terra do rocio" cedido pelos oficiais
da Câmara. Sujeito a clausura, o cenóbio ficaria sujeito à real jurisdição e ao governo da
Misericórdia da Vila, devendo prestar contas à Provedoria da Cidade de Évora.
Reunidas estavam as condições para a exequibilidade da pretensão: comunidade,
estatutos, sede e sustento.
Animaria a demanda a vontade de regularizar e institucionalizar uma
organização de beatas que brotara supostamente de forma espontânea e cujas
motivações primeiras, por certo complexas, nos são hoje difíceis de precisar. Atentemos
nas Notícias sobre a fundação e história do Recolhimento, redigidas por Francisco
Inácio do Coelho Barbosa, mesário da Confraria da Luz.
No ano de 1742 h a Irmaã terceira profesa de S. Francisco natural da Cidade
de Évora e naturalizada por sua assistência de muitos anos nesta villa chamada
Catherina do Nacim.to intentando por serviço de D. fundar nella hum
recolhim.to ou Convento em q. o mesmo Sñr. fosse louvado de dia e de noute e
488 O alvará de D. Maria I, de 7 de Janeiro de 1779, confirma a mercê do avô, D. João V, de 27 de julhode 1749, pela qual se funda o recolhimento e se faz cessar a administração da capela pela Misericórdia.Vd. ANTT, Chancelaria de D. Maria I, Lv. 80, fl. 150. Uma transcrição do documento pode encontrar-seem BNP, Secção de Reservados, mss. 237, n.º 39.489 O Mosteiro do Salvador seguia a Segunda Regra da Ordem de Santa Clara, de clarissas urbanistas.Veja-se, a propósito, o Livro em que se trata da fundação deste Convento do Salvador da cidade deÉvora, datado de 1674 e patente na BNP - Secção de Reservados, COD. 16.
147
consultando com outras Irmaas o seu intento e com alguãs pessoas doutas, que
lho aprovaraõ, passou a Corte de Lisboa490
A impetração não conheceria, no entanto, imediato deferimento. Catarina do
Nascimento faleceria a 13 de março de 1748 sem ver concretizado o seu sonho
fundador491. Sem conhecermos a génese da motivação da beata, temos contudo a anotar
que a instituição de uma casa religiosa consagrada ao louvor perene do Santíssimo
Sacramento não constituía, à época, caso insólito. Não igualmente únicos eram os
exemplos de cenóbios femininos criados a partir de experiências religiosas individuais.
Recordemos, além disso, que em 1747 se reativava o processo de beatificação de Maria
do Lado do Louriçal, o que poderá ter favorecido seja a autorização régia da fundação
montemorense seja, e simultaneamente, o incremento da memória da Venerável.
Mas outros exemplos igualmente inspiradores poderiam ter infundido ânimo à
ação desta terceira eborense, e, desde logo, experiências geograficamente próximas,
como a de Violante de Jesus Maria, que viria a fundar ou beneficiar vários institutos
regulares do Alentejo e Algarve492. Ainda à semelhança de tantos outros casos, também
Catarina do Sacramento não agiu de forma completamente isolada, tendo recebido do
Padre Francisco Negreiros Alfeirão493, desembargador da Relação Eclesiástica e pessoa
da estima particular de D. Pedro III, não só a direção espiritual quanto um empenho
firme e ativo na concretização do seu intento494.
490 Vd Arquivo Municipal de Montemor-o-Novo, Recolhimento do Santíssimo Sacramento de NossaSenhora da Luz, Notícias sobre a fundação e história do Recolhimento, fl. 20.491 Cfr. Francisco LAMEIRA; Sílvia FERREIRA, “As diversas campanhas de obras retabulares da igrejada Misericórdia de Montemor-o-Novo, in Jorge FONSECA (coord. científica); Augusto MoutinhoBORGES (coord. artística), A Misericórdia de Montemor-o-Novo. História e Património, Montemor-o-Novo, Santa Casa da Misericórdia de Montemor-o-Novo/Tribuna da História, 2008, pp. 147-172. A p.170, apresenta-se o “Retrato da Madre Catarina do Nascimento, reformadora do Hospício de NossaSenhora da Luz, pintura a óleo sobre tela, anónima, de meados do século XVIII, com a legenda: M.IRMAA CATHERINA DO NACIM. MORADORA EM A VILLA DE MONTEMOR O NOVO DEEDADE DE 60 ANNOSAQL FALLECEO EM LXª EM 13 DE MARSO DE 1748 ANNOS”.492 Cfr. Joaquim José da Rocha ESPANCA, Memórias de Vila Viçosa, ou Ensaio da História desta vilatranstagana, corte da sereníssima Casa e Estado de Bragança, desde os tempos mais remotos até aopresente, segundo o que pode coligir seu autor, Vila Viçosa, Câmara Municipal de Vila Viçosa, 1983, pp.69-73.493 Cfr. Gustavo de Matos SEQUEIRA, Inventário artístico de Portugal, Vol. V, Lisboa, AcademiaNacional de Belas-Artes, 1955, p. 300. Vd., também, Pinho LEAL, Portugal Antigo e Moderno, Vol. V,Lisboa, Livraria Editora de Mattos Moreira & Companhia, 1875, p. 497.494 Alberto Mendonça TAVARES, “Notas para o estudo do clero paroquial do arcebispado de Évora noano de 1755”, Revista de Ciências Históricas, Porto, Universidade Portucalense, Vol. I, 1986, pp. 261-288. Num Mappa dos clérigos que actualmente se achão pelo districto do Arcebispado de Evora neste
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2.2. Acertos e desacertos do destino
A morte da fundadora e irregularidades verificadas na gestão das obras do
cenóbio, cujos materiais em pouco tempo se reuniram, terão provocado um impasse
profundo na história do novo instituto, a que só nos anos Sessenta se imprimiria
renovado alento. A 16 de Junho de 1760, D. Inês Maria de Sousa Tavares Barreto,
mulher de José Luís de Vila Lobos e Vasconcelos, lançava a primeira pedra do
recolhimento de que se instituía como primeira benfeitora495.
Reativado o estaleiro, os trabalhos prosseguiam em setembro de 1763, altura em
que três beatas do Recolhimento do Redondo, que certo negócio conduzira a Montemor,
decidem indagar sobre as obras então em curso no sítio da Luz496. Esta passagem
encetará um novo capítulo na vida do cenóbio montemorense. Duas das ditas beatas,
Joana Rita Custódia do Sacramento, natural de Tavira, e Inês Catarina do Carmo, de
Évora, criada, esta última, sob a direção da Irmã Catarina do Nascimento, acabam por
permanecer no recolhimento e, mais tarde, por integrar o grupo das quatro fundadoras
canónicas de um novo claustro do Desagravo, o Conventinho de Lisboa497.
Especialmente preparadas em termos espirituais, por via da sua estadia no Convento da
Esperança de Beja, darão início à clausura voluntária no recolhimento sob o signo dos
estatutos do Mosteiro do Louriçal498. A elas se ficará também a dever o implemento das
obras, parte das quais consta que heroicamente executadas por suas próprias mãos.
Só após esta visita, tida não estranhamente como providencial499, o recolhimento
conhecerá existência institucional, sendo sua primeira regente uma das duas
"fundadoras ocasionais", Joana Rita Custódia. É também este o momento em que o
Instituto do Louriçal extravasa os limites jurisdicionais da diocese de Coimbra para se
implantar numa sede marcada por um contexto religioso seguramente distinto.
Primeiro cenóbio de clarissas da vila e segundo de religiosas, o recolhimento
representou a última casa regular acolhida por Montemor500. Neste cenário de sugestiva
anno de 1775 (Vol. I, p. 285) aparece referenciado Francisco de Negreiros Alfeirão, com a idade de 84anos, não estando, porém, “aprovado para confessar”.495 Notícias sobre a fundação e história do Recolhimento, fl. 23. (Arquivo Municipal de Montemor-o-Novo, Recolhimento do Santíssimo Sacramento de Nossa Senhora da Luz).496 Ibidem.497 Ibidem (nota à margem).498 Ibidem, fls. 23-24.499 Ibidem.500 Cfr. Pinho LEAL, Portugal antigo e moderno. Diccionario Geographico, Estatistico, Chorographico,Heraldico, Archeologico, Historico, Biographico e Etymologico de todas as cidades, villas e fregueziasde Portugal e de grande numero de aldeias, Vol. V, Lisboa, Livraria Editora de Matos Moreira &
149
aridez, quem sabe o Convento das Beatas, como passaria a ser localmente conhecido,
não terá atendido a alguma carência espiritual ou mesmo social eventualmente sentida.
Com a sua fundação, porém, não só o beatério viria a inserir-se numa dinâmica que
extravasava o âmbito regional e o cunho quase individual do projeto primitivo, como
viria a integrar a vila em mais amplos circuitos de comunicação.
A aproximação ao Desagravo, veiculada pelas beatas do Recolhimento do
Redondo, denuncia a influência do Instituto mas também a capilaridade e plasticidade
destas instâncias congreganistas ainda institucionalmente embrionárias. A divulgação da
obra do Padre Manuel Monteiro e de Frei José Caetano, centradas na exemplaridade das
virtudes praticadas no Mosteiro do Louriçal e por ele representadas, terá conhecido
papel de indubitável relevo. Na decisão sobre a Regra a observar, o bom nome do
Instituto parece, de fato, ter superado o peso da austeridade em que os estatutos
inapelavelmente se concretizavam.
Para a compreensão da estagnação do recolhimento entre finais dos anos 40 de
Setecentos e 1760 e do impasse novamente verificado entre esta última data e 1763,
talvez não seja descabido reevocar os efeitos das medidas pombalinas sobre as
fundações religiosas, o corte de relações entre Portugal e a Santa Sé e, ainda, a
ocorrência da chamada Guerra Fantástica, que, no início dos anos 60, ameaçou o país501.
Uma vez findo este breve período de suposta beligerância, ter-se-á verificado um
movimento de reabilitação dos institutos regulares, que, em certos casos, terá ficado a
cargo de missões específicas protagonizadas por religiosas sob orientação dos
respetivos diretores de consciência ou dos superiores provinciais. O percurso de soror
Violante de Jesus Maria avulta, neste contexto, como caso ilustrativo. Ingressada no
Mosteiro da Esperança de Beja em 1750, daí sairia, sem jamais ter chegado a professar,
ao fim de seis anos por ordem do seu diretor de consciência, que a incumbira de fundar,
renovar ou organizar recolhimentos ou beatérios502. O Recolhimento do Redondo seria
um deles, outro, o de Montemor-o-Novo, o qual, porém, soror Violante não chegaria a
Companhia, 1875, p. 497. Montemor-o-Novo tinha dez ermidas, uma delas a de Nossa Senhora da Luz.Como conventos, contava com um de frades franciscanos, de frades domínicos (de Santo António dePádua), de frades agostinhos descalços, de frades de S. João de Deus, de eremitas descalços de São Paulo;de freiras domínicas (de Nossa Senhora da Saudação) e com o chamado Convento das Beatas.501 Nome pelo qual ficou conhecida a participação de Portugal na Guerra dos Sete Anos (1756-1763).Desenrolou-se entre 9 de maio e 24 de novembro de 1762.502 Cfr. Joaquim José da Rocha ESPANCA, Memórias de Vila Viçosa, ou Ensaio da História desta vilatranstagana, corte da sereníssima Casa e Estado de Bragança, desde os tempos mais remotos até aopresente, segundo o que pode coligir seu autor, Vila Viçosa, Câmara Municipal de Vila Viçosa, 1983, pp.69-73.
150
visitar, por lhe ter sido entretanto ordenada a renovação de um conservatório de Tavira
que sofrera com o Terramoto503.
Pelo registo das suas fatigosas andanças, sabemos que o então arcebispo de
Évora, D. Frei Miguel de Távora, não se mostrava afeto à ideia da instituição de novas
casas regulares, tendo apenas anuído à renovação do beatério de Redondo, previamente
iniciada por certa terceira carmelita. Sabemos igualmente que Violante de Jesus se
dirigiu à capital a fim de pedir licença para a fundação, tendo aí ficado hospedada por
período de um ano em casa da Marquesa de Angeja504, à qual caberia a angariação das
esmolas necessárias à almejada fundação.
O contato com a Marquesa de Angeja, possivelmente D. Francisca de Assis,
coloca Soror Violante e os seus empreendimentos na esfera social da corte e, por seu
intermédio, quem sabe na da própria Coroa. Poderíamos perguntar-nos se não teria sido
a Marquesa de Angeja e os meios da capital em que, durante um ano, aquela religiosa
passaria a mover-se, a veicular-lhe o conhecimento do Instituto do Louriçal e a
sensibilizá-la para a causa do Desagravo, cujas anuais celebrações com tanta pompa se
comemoravam na capital.
Sem nos desviarmos do registo da suposição, diríamos que, ao regressar ao
Alentejo, Soror Violante terá instituído no Redondo a modo de vida observado no
Louriçal, por sua vez transmitido a Montemor pelas beatas que, vindas do Redondo, aí
se instalaram por fim. Lembremos, ainda, que à Marquesa de Angeja se irão dever os
primórdios da ereção do Mosteiro do Desagravo de Lisboa, cuja fundação contaria com
duas religiosas do montemorense Recolhimento da Luz. E lembremos, por fim, que
Soror Maria Joana, uma das mais aclamadas veneráveis louriçalenses era – como
Catarina do Nascimento - originária de Évora.
Também o Mosteiro de Louriçal se terá ressentindo, pelo menos no que respeita
à lotação da comunidade, deste quadro de instabilidade. Os documentos registam que,
em 1760, uma única noviça ingressou na comunidade e que nenhuma nova entrada se
verificou até 1764, ano em que quatro noviças tomam hábito. Pode isto ser uma
coincidência, mas pode também atestar tanto a dificuldade nos ingressos, quanto, a
partir de 1763, a saída de religiosas para a nova fundação de Montemor, onde, em 1764,
503 Idem, ibidem.504 Idem, ibidem.
151
ingressavam cinco religiosas do Louriçal505. Curiosamente, em 1770, registava-se a
entrada da Irmã Catarina Clara de Assis, que viria mais tarde a fundar o “Recolhim.to
de S.ta Engracia” (i.e., o Conventinho)506.
A renovação empreendida pelas recolhidas do Redondo iria revelar-se rica de
implicações, seja espirituais, seja, no seu encalço, arquitetónicas e artísticas. Juntamente
com o primeiro grupo de ingressadas507, e após suplantadas iniciais dificuldades
logísticas, as beatas determinaram seguir os Estatutos do Louriçal, que, até então, só de
forma porventura incipiente observariam.508
Em 1764, de fato, só o primeiro dormitório se achava acabado, sendo o espaço
insuficiente para acolher as recolhidas postulantes. A partir de então, construíam-se
comungatório, cozinha, refeitório, despensa, casa da grade, casa da veleira, coro e
“portas para todas as oficinas”509. O acolhimento canónico da observância brotaria deste
acerto feliz de necessidades materiais e espirituais. Como tal
Vendoce com toda a comodidade pª os seos Exercicios e dezejando exercitarce
com mayor fervor no serviso de Deos dezejarão todas seguir os Estatutos do
Real Convento do Santissimo Sacramento do Louriçal, e sendo dificultozo o
poderemse alcançar, foi Deos servido dar meyos p.ª isso, e trasladandose lhe
ficou a Copia, q. arisca observão, sem a menor discrepancia.510
Seria grande a fama do Instituto, de tal modo que
de varias Provincias deste Reyno principiarão a concorrer pessoas q. com
notaveis empenhos dezejavaõ acompanhalas sem que as intimidace a aspereza
505 Os livros dos votos do Louriçal revelam o seguinte: apenas houve um ingresso em 1760; depois, só em1764, se registam ingressos, sendo de 4 noviças. Em 1764, ingressavam em Montemor 5 novas religiosas.(Cfr. Memória dos votos dos cinco e dos dez meses das aprovações ou reprovações das noviças doconvento, 1711/1843, ANTT, Arquivo das Congregações, liv. 1104).506 Idem.507 A 25 de julho de 1764, ingressam no recolhimento, já observando o novo regime, Bárbara Teresa deSanta Ana, em religião Bárbara Joaquina do Sacramento, a que se seguem, no mesmo ano, as profissõesde mais quatro recolhidas. Depois das fundadoras, entram Filipa Margarida de Cristo, de Montemor-o-Novo, a 2 de janeiro de 1764; entra depois, Joaquina Maria das Chagas, de Olivença, ainda em 1764; nomesmo dia, foi admitida a Rita de Cássia da Piedade, no século Tita de Cássia de Albuquerque, natural deLisboa. Elegeu-se como prelada Joana Rita Custódia do Sacramento. (Cfr. Notícias sobre a fundação ehistória do Recolhimento, fl. 24).508 Ibidem, fl. 24 v.509 Ibidem.510 Ibidem.
152
da vida, o rigor das penitencias, e obrigação continua do Coro, o pouco
descanço sobre húa cortiça, e os ordinarios exercicios q. lhe são indespensaveis
como hé a abstinencia da carne em todo o anno, o jejum cotidiano, e todas
sestas feiras a pam, e agoa andarem descalças, e húa só tunica sem nunca a
despirem.511
Não só fecunda era a afluência e ampla a sua geografia de origem, quanto díspar
a sua extração social. Das poucas indicações conclusivas sobre as origens sociais das
postulantes, algumas há, contudo, que permitem concluir que a abnegação radical não
era repudiada por pessoas materialmente abonadas, como seria o caso de Josefa de
Jesus, ingressada em 1764, que tinha em Montemor "parentes de Nobreza distinta"512.
A atração exercida pelo Instituto suplantava, de resto, a consciência do seu teor
sacrificial, o qual não fugia nem mesmo aos olhos de contemporâneos. "Parece
incrivel", dir-se-ia, "q. segundo os Estatutos, q. as Irmãas recolhidas observaõ a risca no
seu Recolhim.to em q. se prohibe não possão entrar para elle pessoas de menos de
quimze nem mais de trinta annos tempo em q. mais convida o Mundo as creaturas com
a liberdade da vida" houvesse "tantas pessoas" a abraçar "huma vida táo austera, e
riguroza pera viverem a Divina Providencia sem poderem ter rendas, ou couza
propria"513. Mas quem sabe se o rigorismo, a "estética do sangue", não exerceria mais
fascínio que repulsa sobre o universo espiritual feminino514.
A nível local, a institucionalização do cenóbio entroncava com a dinâmica
específica de entidades centenárias às quais estava administrativamente ligado: a
Misericórdia da Vila, que o governava, e a Confraria de Nossa Senhora da Luz, em cuja
sede o templo monástico se sediara. Se, em relação à Misericórdia, a falta de autonomia
iria resultar em permanentes tensões a nível administrativo, no que toca à Confraria, a
interação, aparentemente pacífica, incidiria sobretudo na organização de espaços
comuns.
Quando, a 23 de março de 1769, as recolhidas fazem petição ao provedor e mais
mesários da Misericórdia a fim de ficaram a ser governadas pela Misericórdia, nada
511 Ibidem, fls. 24 v. - 25.512 Ibidem, fl. 25.513 Ibidem, fl. 26.514 Vd., a propósito, Jose Luis SANCHEZ LORA, Mujeres, conventos y formas de la religiosidadebarroca, Madrid, Fundacion Universitaria Española, 1988, p. 244.
153
mais impetravam, afinal, que a observação de uma das cláusulas presentes do alvará de
D. João V que, em 1749, instituía o Conservatório. Esta situação expressaria
simplesmente que apenas em 1769 a vida comunitária se regulamentava e se constituía
em clausura. Na verdade, e segundo o alvará de fundação, a administração dos bens da
Confraria da Luz pelas recolhidas do Conservatório ficaria condicionada ao
cumprimento efetivo da clausura e ao caráter permanente do recolhimento - isto é, à sua
estabilidade institucional515.
No entanto, só por escritura de 16 de agosto de 1777, a Confraria da Luz cederia
a administração dos seus bens a favor da regente e recolhidas do Real Conservatório do
Santíssimo Sacramento e Luz516. A situação arrastar-se-ia ainda no tempo, vinda apenas
a ser legalmente solucionada por alvará de 7 de janeiro de 1779, em que a rainha, D.
Maria I, confirmava certas graças concedidas às recolhidas por D. João V no remoto
documento emitido três décadas antes517. Não obstante, e curiosamente, a quezília
administrativa só após a morte do juiz da confraria conheceria definitiva solução. Tal
juiz era, efetivamente, o confessor das recolhidas, circunstância que, alegadamente, as
impedia de assumir a administração. Assim, em Mesa de 13 de dezembro de 1809, e
perante a pretensão, avançada pela Confraria, de eleger novo juiz, as recolhidas
intercetam veementemente o projeto, alegando a obrigatoriedade de se observar a
vontade da soberana. A partir de então, assumiriam finalmente a administração518.
515 ANTT, Chancelaria de D. Maria I, Lv. 80, fl. 150 (Alvará de confirmação, 7 de Janeiro de 1779).516 Instrumento de cessão e desistência de administração com data de 16 de agosto de 1777 (BNP, Secçãode reservados, mss. 218, n.º 71).517 Até 1779, as recolhidas, por alguma razão, não teriam executado convenientemente as disposiçõescontidas no alvará de D. João V de 1749, que lhes permitia a administração da Igreja da Confraria da Luz.518Livro das ementas da Confraria de Nossa Senhora da Luz, fl. 38. A reunião da Mesa da Confraria datade 13 de dezembro de 1809 (AHSCMMN, Confraria de Nossa Senhora da Luz).
154
2.3. Sob as atenções da Corte
A ação conjugada de D. Maria I e de D. Pedro III iria revelar-se a vários títulos
decisiva. Por ela se recuperava e atualizava a vontade manifestada em 1749 por D. João
V. Na verdade, o alvará mariano de 7 de janeiro de 1779 não mais fez senão tornar
exequíveis as disposições joaninas, o que passou também por contornar entraves
normativos entretanto sobrevenientes. Atendendo à proibição de retenção de bens de
raiz por corpos de mão morta, o provedor da comarca de Évora sequestrara, em nome da
Coroa, os bens da Misericórdia. Certeiro, o alvará mariano ordenaria à comarca a
restituição às recolhidas dos bens da capela administrada pela Misericórdia519.
Só também no reinado mariano, a observância do Louriçal se revestiria de
estatuto canónico, passando o recolhimento, sujeito até então ao governo da Santa Casa,
ao domínio da jurisdição ordinária520. Ainda assim, os vínculos com a Misericórdia
manter-se-iam, pelo menos no que respeita ao fornecimento de assistência médica. Uma
carta da regente e recolhidas explicita bem a complexidade institucional inerente seja à
existência canónica da casa, seja ao seu governo. Nela lembra que, em 1780, D. Pedro
III incumbira o senhor cardeal Cunha, arcebispo de Évora, de
tomar posse deste Recolhim.to sugeitando-nos a ele naõ já como Terceiras de S.
Franc.º, mas sim renovando os voctos, e com promeça de Clauzura, e observar-
mos a Regra Reformada de Sta. Clara na forma q. praticaõ as Religiozas da
Villa do Louriçal, e em consequência diso passo logo a dar-nos os mesmos
Estatutos do Louriçal q. actualm.te observamos afazer, e ordenar Actas
Capitulares, a Vizitarnos por Comissaõ q. deu ao Sr. Bispo de Villa Viçoza, por
naõ poder vir de Lx.ª dahi por diante todos os seus sussessores praticaraõ o
mesmo, ora vizitando-nos, Ora dando ordens, Ora Reformando abuzos, ora
emviando-nos as ordens q. S. Mage.te lhes invia diretam.te p.ª elles as
intimarem a esta caza, as quais todas temos recebido por esta via á excessaõ
das q. foraõ remetidas a Sta. Casa, p.ª continuar afazer-nos a esmola das
Diettas [...]521
519 ANTT, Chancelaria de D. Maria I, Lv. 80, fl. 150.520 BNP, Secção de reservados, mss. 239, n.º 63.521 Ibidem.
155
Seguramente por via da ambiência cortesã de que passara a fazer parte, o
recolhimento viria a receber o apoio de D. Pedro Fortunato de Meneses, Principal da
Santa Igreja Patriarcal de Lisboa que, em 5 de agosto de 1779, fazia doação, a título de
esmola e obra pia, de 2 moios de trigo e 1 de cevada anuais, provindos da sua herdade
da Amoreirinha, termo de Montemor-o-Novo, para sustentação e alimento da
comunidade522. Na mesma linha se registavam impostos de herdades da Casa Real e do
falecido Marquês de Angeja523.
Recordemos ainda que, em 1779, o casal régio se dispunha a reiniciar a causa da
beatificação de Maria do Lado e que viveria com profunda compunção o desacato de
1779, tomando a iniciativa de reincentivar as devidas ações expiatórias. A recuperação
deste impulso devocional não passaria despercebida às recolhidas de Montemor que, em
documento não datado, enaltecem as virtudes da fundadora, que pretendem ver, através
da beatificação, alistada no “Cathálogo das Heroinas”524.
Mas o exemplo de D. João V iria mais longe em D. Maria I e D. Pedro III. Num
inventário de bens, deparamos com a “dotação de Sua Magestade o Snr. D. João VI” de
800.000 réis anuais e a administração de uma capela de que fez mercê a rainha D. Maria
I Nele se informa, além disso, que
o sñr. D. Pedro 3 q. completou as obras deste Ideficio e emquanto vivo deu as
[às] abitantes todo o necessario assim no sustento como […] nos mesmos
generos em q. se pedião e a sim o continuou a fazer Sua Magestade a Sñr. D.
Maria I. O Sñr D. João VI querendo continuar com os mesmos secorros na
subsistencia do Dito recolhimento e suas abitantes por sua ordem Mandou
sabre [saber] o q.to seria nesesario anualm.te p.ª sustentalas das Ditas abitantes
se conservarem na Regular Observancia. Mandando emtão assentar na folha da
Menza da Serenissima Caza do Infantado a mencionada quantia de 800000 por
522 BNP, Secção de Reservados, mss. 241, n.º 48. Trata-se de uma cópia de uma carta de confirmação einsinuação, de 25 de Janeiro de 1791, em que se confirma a doação, por escritura, do foro de dois moiosde trigo e um de cevada imposto na herdade da Moreirinha cita na freguesia de Santa Sofia, termo dacidade de Montemor-o-Novo. Foi doador o Principal D. Pedro Fortunato de Meneses. A escritura constadas notas do Tabelião António da Silva Freire, de 5 de Agosto de 1779, vindo a ser posteriormenteretificada em 14 de Dezembro de 1789, nas notas de Lucas Evangelista de Sousa Pereira Valente. Odocumento autêntico encontra-se nas Chancelarias Régias, Livro dos Ofícios e Mercês, fl. 74, Lisboa, 26janeiro 1791.523 Relação do Emventario q. se fes neste recolhimento..., BNP, Secção de Reservados, mss. 241, n.º 23.524 BNP, Secção de Reservados, mss. 241, n.º 70.
156
anno sendo estes pagos, todos os tres mezes 20000 e nesta forma se recebe ate o
fim de Dezembro de 1831. 525
Mesmo indiretamente, o papel do rei consorte emerge: a lápide sepulcral de
Francisco de Negreiros Alfeirão, “fundador benéfico” do recolhimento, revela que este
foi, por suas virtudes, merecedor de “particulares estimações do piíssimo e fidelíssimo
rei D. Pedro III, que em memória do varão benemérito mandou pôr esta lápide”526.
A figura de Francisco de Negreiros não é ocasional e alguns dados da sua
biografia permitem situar melhor o recolhimento no contexto dos poderes em que se
movia. No seio “da atmosfera de ódio a Pombal” se integram certas ações de Negreiros
Alfeirão, nomeadamente uma conspiração contra o Marquês ou contra o próprio D. José
I. Opina António Ferrão que tal conspiração teria
ramificações várias pelo país desde o padre Malagrida até ao padre Iluminato,
padre Francisco de Negreiros Alfeirão – de Montemór-o-Novo, Francisco
Xavier Teixeira, o Harés, o abade de Pinheiro, Gonçalo Cristóvão “hum
Humburgues.527
É difícil, em face de tais argumentos, não entrever nas ações de Negreiros
Alfeirão o mesmo espírito conservador que informou o reinado da Piedosa. No plano
dos benefícios materiais dispensados ao Recolhimento, recairia, pelo menos
nominalmente, sobre D. Pedro III a maior parte das despesas feitas. Por disposição
testamentária528, o rei deixava dezassete mil cruzados para o fundo do pretenso mosteiro
e, para o mesmo, 6.800$000 réis a título de legado pio. Para obras, ornamentos da igreja
525 Relação do Emventario q. se fes neste recolhimento..., BNP, Secção de Reservados, mss. 241, n.º 23.526 Gustavo de Matos SEQUEIRA op. cit., p. 300. Por uma questão gráfica, optámos por transcrever ainscrição em cursivo e, por coerência, atualizámos também a grafia. Francisco de Negreiros Alfeirão foisepultado na nave da ermida Faleceria a 11 de fevereiro de 1778527 Cfr. António FERRÃO, O marquês de Pombal e os “meninos de Palhavã”, Coimbra, Imprensa daUniversidade, 1923.pp. 69-70. Os meninos de Palhavã, infantes D. José e D. António, seriam, segundo oautor, “os principais, senão únicos, chefes de tal conluio.”528 Testamento, inventário e partilhas dos seus bens aprovados por Decreto de 24 de Novembro de 1791;Autos do Inventario e Partilha dos Bens da Herança do Augustissimo S.or Rey D. Pedro o Terceiro.Dispozições Testamentarias com que faleceo o Aug.mo Sr. Rey D. Pedro o Terceiro no dia 25 de Mayode 1786, as quais foraõ aprovadas por Decreto da Raynha N. Snr.ª., ANTT, Gaveta 16, mç. 3, n.º 1.
157
e vestuário, entre outros, legava um montante de 5073$885 réis, pago pelo Cofre da
Real Casa, pelo Cofre das Igrejas Vagas e pela Junta da Real Casa do Infantado529.
Com o tempo, porém, a sustentação da casa viria a reclamar o apoio régio, a que
a monarca anuiria através de provisão de 16 de julho de 1799, pela qual concedia
licença para que as religiosas pedissem esmola pelo reino, por mais um ano, a fim de
proverem a despesas de ornato e culto divino. Mas também as necessidades espirituais
das recolhidas encontraram na ação conjugada de D. Pedro III e D. Maria I uma sólida
garantia. Com a passagem à obediência ordinária, o arcebispo ficaria incumbido de
prover o lugar de confessor das recolhidas, além de que a comunicação institucional
passaria a ser feita entre Casa Real, arquidiocese e Recolhimento530.
529 Conta do que se tem Despendido Com as Obras do Recolhimt.º de MonteMor, desde 2 de Outubro de1783, athé o prezt.e,, documento de 11 de Agosto de 1791, assinado em Lisboa por José Coelho Barros.(ANTT, Gaveta 16, mç. 3, n.º 1).530 Fundação, e Regalias da Serenissima Casa, e Estado do Infantado dos Reinos de Portugal, eAlgarves, fl. inum. (ANTT, Ministério do Reino, Casa do infantado, Expediente da Casa do infantado,mç. 392).
158
2.4. Da decadência à extinção
Não sabemos se, no ânimo das primeiras recolhidas, se contava a pretensão de
fundar um mosteiro de clausura, mas a clausura voluntária, adotada quando da chegada
das renovadoras do Recolhimento do Redondo, e mesmo a configuração arquitetónica
da casa religiosa resultante das obras supostamente iniciadas em 1760, levam a pensar
que o reconhecimento institucional proporcionado pela passagem de uma condição
putativa a uma condição efetiva de regular observância tenham persistentemente
animado as intenções das beatas do Desagravo e Luz.
Longo seria, porém, o processo, a justificar que, na já tardia data de 9 de maio de
1802, as regentes supliquem a D. João VI a conversão do conservatório em mosteiro,
pedindo para tal o aumento das rendas, a fim de perfazer o fundo tido como suficiente, e
a anulação da cláusula, contida em diploma de D. Maria I, que impedia tal conversão.
Num estranho longo prazo de irresolução se manteria questão igualmente
candente: a da administração dos bens. Até dezembro de 1809, o recolhimento não
detinha ainda a administração dos bens e rendimentos da Confraria da Luz, que
constava como condição no alvará joanino de 1747.
Por outro lado, arrastava-se também a fragilidade dos meios materiais ao dispor
da casa. Em atenção ao estado de indigência que se faria sentir, uma provisão e 27 de
setembro de 1811 permitia às recolhidas a detenção da renda anual dos 46 alqueires de
trigo deixados em testamento por certa Dona Maria Joaquina Antónia Semeda Telles531.
E o mesmo estado de depauperamento aparece invocado em provisão de 7 de novembro
de 1817, pela qual D. João IV permite às recolhidas, a fim de proveram a despesas com
ornato e culto divino, pedir esmola através de um donato por qualquer parte do reino532,
permissão que viria a ser reafirmada em alvará de 2 de dezembro de 1819533.
Até à extinção de fato, o ritmo e a premência das necessidades não abrandará. E
se outros elementos não houvesse, bastaria, a comprová-lo, ter em mente as disposições
que sobre o beatério incidiriam: a 7 de setembro de 1825, D. João VI ordenava que a
Mesa da Santa Casa da Misericórdia de Montemor-o-Novo socorresse as recolhidas na
doença; um alvará de D. Maria II, datado de 14 de fevereiro de 1849, concedia às
suplicantes a possibilidade de reterem os censos e pensões legados pelos testadores
531 BNP, Secção de Reservados, mss. 238, n.º 12. A certidão seria passada a 24 de Janeiro de 1812, tendopor base um documento do régio (ANTT, Registo Geral de Mercês, Lv. 10, fls. 229).532 BNP, Secção de Reservados, mss. 240, n.º 58.533 BNP, Secção de Reservados, mss. 242, n.º 22.
159
Dona Maria Isabel da Paz e Fernando José Galego, pelo fato de as religiosas não
deterem os meios necessários de sustento534. Não só do domínio temporal, quanto
também espiritual, eram as necessidades da comunidade, que, a 16 de junho de 1831, a
roga o benefício da aliviação (confissão), de que havia muito estaria privada535.
A desventura seria, porém, compensada por algum alento, advindo,
nomeadamente, de legados, cuja receção os monarcas permitiram através da alteração
pontual do âmbito de aplicação de leis gerais. Um prenúncio de bonança parecia
adivinhar-se em 1840, ano em que as já quatro comunidades do Desagravo – Louriçal,
Montemor, Lisboa e Vila Pouca da Beira – dividem entre si 3000 cruzados, e, mais
tarde, quando voltam a repartir soma de idêntico valor536. Tardia, esta benéfica
circunstância já pouco afetaria o cenóbio, que, a 23 de novembro de 1858, regista a sua
derradeira tomada de hábito, a de soror Maria Teresa537. Nessa altura, a vida cenobítica
conhecia sério definhamento, sendo a casa ocupada por apenas sete religiosas538.
A decretada supressão ganhava fôlego: a 25 de outubro de 1866, era assinado o
auto de avaliação do edifício com todas as suas pertenças e, a 27 de Março de 1878, um
ofício da regente ao administrador do concelho anunciava o abandono do edifício, a
verificar a 1 de abril de 1878. Doravante, a história da Recolhimento do Desagravo e
Luz converter-se-ia na história de uma instituição passada, da mesma forma que a sua
estrutura física cederia perante finalidades e propósitos em tudo diferentes dos que a
haviam primariamente animado. O espaço claustral via-se agora disputado pela
Misericórdia da vila, que nele pretendia instalar um hospital e, simultaneamente, pela
534 Alvará de D. Maria dado a 14 de fevereiro de 1849, que, por sua vez, remete para decreto de 21 dejunho de 1848 (BNP, Secção de Reservados, mss. 205, n.º 46).535 Apetição da regente, de 16 de junho de 1831, seria positivamente atendida (BNP, Secção deReservados, mss. 238, n.º 59).536 Em 1840, dividiu-se pelas 4 comunidades do Desagravo 3000 cruzados, que, no entanto, não deveriamser gastos. Anos mais tarde, em 1863, repartiram-se os restantes 3000 cruzados (BPE, Convento doSantíssimo Sacramento. Montemor-o-Novo, Pasta VI, documentos avulsos).537 Registava-se a 23 de novembro de 1858, a última tomada de hábito, da Irmã Maria Teresa. Não serefere se chegou a professar, o que ainda acontecera com a Irmã Antónia Cândida, que ingressaria a 21 deNovembro de 1855 e no mesmo ano professaria (AMMN, Notícias sobre a fundação e história doRecolhimento, fls. 35 v.).538 Um relatório do Ministro e Secretário de Estado dos Negócios Eclesiásticos e Justiça, de dezembro de1858, regista a permanência de 7 religiosas, com 42, 48, 49, 50, 62 e 69 anos de idade. As despesas doconvento cifravam-se em 3.154$450 e os valores, com a inclusão de imóveis, ascenderiam aos40.306$200. (António Alberto BANHA DE ANDRADE, Subsídios para a História da Arte no Alentejo.Reconstrução da Matriz e construção das igrejas do Hospital Velho e da Misericórdia de Montemor-o-Novo, com o Roteiro da arte gótico e manuelina do Concelho, Caderno n.º 10, Lisboa, Edição do Grupodos Amigos de Montemor-o-Novo e da Academia Portuguesa de História, p. 18).
160
Câmara. Com a extinção, o mundo secular impunha-se, inexorável, sobre as ruínas do
Convento das Beatas539.
A relação nem sempre harmoniosa com a Misericórdia terminaria com o
reconhecimento de mérito das pretensões desta última, que, por Lei de 6 de maio de
1879, assiste à cedência do edifício do Recolhimento para instalação de um hospital540.
À época, a casa parecia perfazer os requisitos de quem a reclama: “Está em estado de
ruínas, nada rende, consta ser foreira á Confraria do Santissimo da Matriz d’esta vila em
1:000 reis, que á annos não recebe por não haver rendimento”541. A 6 de agosto de
1882, inaugurava-se solenemente o novo Hospital de Santo André.
Os bens, avaliados primeiro542, seriam dispostos pouco depois. A 26 de
dezembro de 1878, assina-se o Auto de entrega das alfaias, vasos sagrados, paramentos
e mais objetos pertencentes ao culto, ficando os objetos de natureza cultual à guarda do
P.e João Joaquim de Sousa Romeiras543. Os objetos de uso comum seriam
arrematados544. Outros terá havido, vendidos com vista a angariar fundos para a
conversão do cenóbio em unidade hospitalar545.
539 A 1 de abril de 1878, verificava-se a extinção do recolhimento pelo abandono do mesmo por parte dastrês recolhidas que o habitavam. (Vd., BPE, Convento do Santíssimo Sacramento e Luz, Lv. 2).540 No Diário do Governo, n.º 180, de 13 de Agosto de 1881, é publicada a decisão da instalação dohospital no antigo recolhimento. Em ata de 14 de outubro de 1880, a casa é considerada pertença daMisericórdia, que imediatamente procede ao arrendamento da cerca. Veja-se, a propósito da reconversão,António Alberto BANHA DE ANDRADE, op cit., pp. 17-21.541 A decência do edifício à Misericórdia de Montemor-o-Novo é determinada por por Lei de 6 de Maiode 1879. Sobre as transformações efetuadas na consequência da reconversão do espaço, vejam-setambém, para as datas em questão, os Livros de Atas da Misericórdia de Montemor-o-Novo, conservadasno Arquivo Histórico da Santa Casa da Misericórdia daquela vila. Sobre a mesma matéria, tenha-se aindaem conta o Livro da conta geral de todas as receitas e despesas da obra do novo hospital no extinctoRecolhimento das Beatas d'esta Villa, de 1881, constante do mesmo arquivo.542 O auto de avaliação tem a data de 28 de maio de 1878. (Vd. BPE, Convento do Santíssimo Sacramentoe Luz, Lv. 2).543 Auto de entrega das alfaias, vasos sagrados, paramentos e mais objetos pertencentes ao culto (Vd.,BPE, Convento do Santíssimo Sacramento e Luz, Lv. 2).544 A 27 de abril de 1879, proceder-se-ia à arrematação dos objetos de uso comum do recolhimento. (Vd.,BPE, Convento do Santíssimo Sacramento e Luz, Lv. 2).545 Cfr. BANHA DE ANDRADE, op. cit., pp. 17-21.
161
2.5. A obra
A obra de arquitetura, supostamente terminada em finais de Setecentos, será o
resultado da sobreposição de sucessivas campanhas onde se inscrevem múltiplas
vontades, propósitos e gostos, mas o resultado também da articulação de distintos
modos de conceber e utilizar um espaço - protagonizados pelas recolhidas do
Desagravo, nos seus diversos níveis institucionais, e pelos confrades de Nossa Senhora
da Luz - que as circunstâncias tornaram comum. À ambiência ou mesmo a contextos
artísticos diferentes, somam-se, pois, na definição espacial, funcionalidades distintas.
Ao implantar a sua igreja no templo-sede da Confraria, e não tendo isso
implicado a desafetação do mesmo, o Recolhimento da Luz encetou um diálogo não
apenas com o seu percurso histórico, quanto também com o da Confraria.
Tendo presente que o substrato material da edificação das beatas montemorenses
remonta a meados de Quinhentos, época em que, a cargo da Confraria, se levantou o
templo e seus anexos, encontramo-nos perante um tempo longo a nível de cultura
artística, que se estende entre meados da centúria de Quinhentos e finais da de
Setecentos.
À data da construção da primitiva ermida confraternal, Montemor-o-Novo
partilhava do contexto artístico de Évora, então importante centro artístico, ou, nas
palavras de Vítor Serrão, "centro aristocrático por excelência, enobrecido pelas estadias
da corte, com fortalecida produção humanística e literária, e toda uma série de
empreitadas realengas ordenadas com destino aos seus edifícios religiosos e civis"546. A
ambiência erudita, o desafogo económico, o mecenato, terão favorecido a presença de
grandes artistas, quer chamados de Lisboa, quer, mais tarde, naturais da região547, e o
influxo, mais ou menos pronunciado, das correntes e estilos artísticos em voga. Diz-nos
Vítor Serrão que, entre o reinado de Filipe III e Afonso VI, terão ascendido a cento e
cinquenta os artistas e artífices que exerceram a sua atividade em Évora548. Até ao
século XVII, pontificavam o Maneirismo e o tardo-maneirismo e, com a
Contrarreforma, o Maneirismo reformado - aquele que, infundido pela renovação
546 Vítor SERRÃO, A pintura proto-barroca em Portugal, 1612-1657, 2 vols, Dissertação deDoutoramento, 1992, Vol. 1, p. 491, apud Maria Isabel do Rosário VICENTE, “Pintura Mural da AntigaSala Capitular da Irmandade de Nossa Senhora da Luz de Montemor-o-Novo. Um breve estudoiconográfico e artístico”, Almansor. Revista de Cultura, n.º 14, Câmara Municipal de Montemor-o-Novo,2000, p. 107.547 SERRÃO, op. cit., p. 491, apud Maria do Rosário VICENTE, op. cit., p. 107.548 Idem, ibidem.
162
estética derivada da doutrinação e catequização tridentinas, viria a redundar no
protobarroco549.
Evidentemente muito distinto é o panorama artístico em que a construção regular
se ergueu, o que remete para o complexo panorama plástico dos tempos do Marquês de
Pombal e da corte mariana, em que difícil se torna falar numa unidade estilística, tanto
mais a nível regional. Se, no plano europeu, domina o Rococó, que em Portugal viria a
manifestar-se de forma pouco consistente e assimilada a um plano meramente
ornamental550, assiste-se na capital ao perfilar de duas tendências antagónicas,
representadas, uma, pelo Palácio e Quinta de Queluz e expressão da vida e do gosto da
corte, e plasmada a outra na arquitetura da Lisboa do pós-terramoto, de cariz burguês e
utilitário, expressão assumida do pensamento iluminista que o marquês de Pombal terá
transporto e atualizado para a reconstrução setecentista da cidade551.
As principais obras marcadas pela iniciativa régia, em que devemos incluir a
última campanha de obras do Recolhimento de Montemor, surgem à margem da política
artística pombalina552, sendo em parte beneficiárias da herança construtiva dos tempos
de D. João V, que o período mariano procurou reabilitar. O Convento e Basílica do
Sagrado Coração de Jesus, obra emblemática do reinado da Piedosa, instalar-se-ia não
casualmente no Casal da Estrela, local já anteriormente visado para a construção do
majestoso Palácio-Convento de Mafra, de que a obra mariana colhe a grandiosidade, a
localização cimeira, importantes aspetos da forma e inclusivamente os artistas553.
Mas Montemor interseta, num plano mais reduzido de análise, o mecenato
artístico de D. Pedro III, pródigo na beneficiação de templos, conventos e palácios. Ao
tempo das obras do cenóbio alentejano, da Casa do Infantado saíam verbas para
trabalhos que então se realizavam no Palácio da Bemposta, no Palácio de Queluz, na
Igreja Matriz de Nossa Senhora da Purificação, em Bucelas ou na Quinta de Caxias554.
549 Cfr. Vítor SERRÃO, op. cit., p. 161.550 Cfr. José Fernandes PEREIRA, “Rococó”, in José Fernandes PEREIRA (dir.), Dicionário da ArteBarroca em Portugal, pp. 416-421.551 Sobre o tema, vd. a obra de José-Augusto FRANÇA, Lisboa Pombalina e o Iluminismo, Lisboa,Bertrand Editora, 1977 e, do mesmo autor, A reconstrução de Lisboa e a arquitectura pombalina, 3ªedição, Lisboa, Biblioteca Breve, 1989.552 Idem, ibidem, pp. 110-111.553 Cfr. António Filipe PIMENTEL, Arquitectura e poder. O Real Edifício de Mafra, Lisboa, LivrosHorizonte, 2002, p. 123.554 Relação dos Pagamentos feitos pela Thezouraria Geral da Serenissima Caza do Infantado, depois dedia 25 de Mayo de 1786, em que faleceo o Augustissimo Snr. Rey D. Pedro 3.º, por Folhas, Decretos, eMandatos da Junta da Serenissma Caza, pertencentes a Ordenados, Juros,Tensas, e Outras Dividas, quese estavão devendo athé ao dito dia. (ANTT, Gaveta 16, mç. 3, n.º 1). Conclui-se que Montemor-o-Novonão estaria incluído à data em tal orçamento.
163
No seio deste quadro genérico, vejamos como se enquadra a obra da Luz.
Encomendado no último quartel do século XVI pela Confraria de Nossa Senhora da
Luz, instituída em 1578, o edifício só em 1597 passaria a servir-lhe como sede555. Os
primeiros contratos surgiriam a 10 de julho de 1585. A António Fernandes, canteiro,
seria adjudicada por 6500 réis a obra do portal principal da igreja, a executar em pedra
branca e brunida de Estremoz, enquanto a António Luís, pedreiro, e ao também pedreiro
João Gomes, se cometeria a construção do resto da igreja556. Por 40 mil réis, se
encomendaria a Ascenso Fernandes, entalhador de Évora, a feitura do retábulo do
altar557, e, por 70 mil réis, se ajustaria com Fernando Gomes, pintor régio, a pintura e
douramento do retábulo558. Templo e anexos dar-se-iam em breve por terminados, a
ponto de se inaugurarem a 29 de julho de 1597.
Só em 1643 se registam novidades referentes à obra, dando conta de um trabalho
de consolidação confiado a Francisco Fernandes Salgado559. Em 1685, 20 de janeiro,
Francisco Ferreira, pedreiro, compromete-se a construir o átrio da igreja, obra que
eventualmente refletiria o ensejo da confraria encomendante em projetar o relevo social
de que auferia560. Várias décadas mais tarde, em 1718, e traduzindo uma clara alteração
de gosto, é mandado fazer a Manuel de Araújo um novo retábulo, “de relevado” e sua
tribuna, obra que só terminaria em abril de 1739, contando com o contributo
complementar de José Gomes, dourador de Montemor-o-Novo, a quem se confiou o
douramento do retábulo e tribuna561. De fato, os irmãos foram de opinião de que o
“Altar da Snrã estava muito antíguo, e como tal menos vistoso e desejando pollo ao
moderno fazendo a Snrã em Lugar mais decente em q. estivera colocada”. Esta
alteração não resulta apenas de uma vontade renovadora isolada, mas também da
555 Cfr. Notícias sobre a fundação e história do Recolhimento, AMMN, Recolhimento do SantíssimoSacramento de Nossa Senhora da Luz, fls. 8 - 8v.556 Estes dois últimos eram de Montemor-o-Novo, mas António Fernandes vinha de fora. (Cfr. Notíciassobre a fundação e história do Recolhimento, fls. 15 e 16.)557 Cfr. Notícias sobre a fundação..., fl. 17.558 O último pagamento teria data de 29 de julho de 1597 (cfr. Notícias sobre a fundação..., fl. 17 v.).559 Ibidem, fl. 18.560 Ibidem.561 Até 1736 data, o retábulo encomendado a Manuel de Araújo não se encontraria ainda concluído,mandando-se, portanto, dourar e terminar o retábulo e tribuna. Em abril de 1739, a obra do retábulo eradada como acabada, contando com o contributo de José Gomes, dourador. (Notícias sobre a fundação...,fl. 19 v.).
164
possibilidade concreta de a realizar. E sabemos, a propósito, que um certo João Ferreira
Cidade terá oferecido cem mil réis à Confraria a fim de beneficiar a dita obra562.
Novamente sobre altares e sob um propósito estético iria incidir a empreitada
sucessiva: em junho de 1746, determinava-se que os altares colaterais fossem postos “a
face” de modo a ficarem “sem os vaons abertos mas tapados”. E, na mesma data, fala-se
em finalizar o douramento do retábulo da capela-mor563.
Contígua à ermida pela parte norte e leste, erguer-se-ia o convento das beatas. A
marcação do terreno devolve-nos a imagem de um quadrilátero irregular de 40 varas por
64 e 29 por 32. Estabelecidos os limites, encetavam-se as encomendas. A Domingos da
Costa, canteiro, se dava a executar, em pedra branca de S. Tiago, os quatro portados,
lavrados e brunidos, da “casa da portaria”: porta principal, porta regular e, mais
pequenas, a porta da grade e a da casa da irmã veleira. A seu cargo ficaria ainda a
colocação das “pedras da roda”564 o lavramento e assentamento da cantaria de "pedra
parda" para cunhais, janelas, frestas, portados, degraus, lancil e enchelaria565.
Em menos de seis meses, noventa e seis moios de cal, os portados principais já
executados, mil e onze carretadas de pedra de alvenaria e “muita quantidade” de pedra
de cantaria parda estavam reunidos566. Embora prestes a iniciar, as obras ficariam
adiadas por conta de inusitadas ocorrências: vários materiais terão sido furtados e vários
outros, emprestados, não terão sido pagos ou tê-lo-ão sido muito tardiamente567. A
primeira pedra, só em 16 de junho de 1760 se lançava. A direção dos trabalhos e autoria
do risco caberiam a António Rodrigues, que contava com um certo José Rodrigues,
mestre alvanéu de alcunha “O Castelhano”, como colaborador568.
A obra terá começado pelo primeiro dormitório da parte ocidental, próximo da
portaria. À data de 25 de setembro de 1763, que assinala a chegada das três beatas do
Recolhimento do Redondo, os trabalhos prosseguiam, tendo ficado a cargo daquelas
parte do revestimento do chão do coro e do dormitório569. Até 1764, de fato, só o
562 A obra deveria estar finalizada até ao dia de Nossa Senhora da Luz de 1738, embora só o tenha ficadomais tarde, sendo para tal fixado outro prazo, o dia da Padroeira de 1740. (Cfr. Notícias sobre afundação..., fls. 9v. -10).563 Livro das ementas da Confraria de Nossa Senhora da Luz, fl. 11. O reunião da Mesa da Confraria datade 4 de junho de 1746. (AHMMN, Confraria de Nossa Senhora da Luz).564 Cfr. Notícias sobre a fundação..., fl. 22.565 Ibidem.566 Ibidem, fls. 22v - 23.567 Cfr. Notícias sobre a fundação..., fl. 23.568 Ibidem.569 Ibidem, fl. 23.
165
primeiro dormitório, então composto de nove celas, se encontrava terminado, sendo o
espaço insuficiente para acolher as recolhidas postulantes570.
Porventura não tanto em obediência a uma planificação definida, mas a
necessidades sentidas na utilização concreta no espaço, as obras tenham avançado.
Assim se compreende que, perante "os grandes imcomodos que as Irmaãs recolhidas
padeciao em terem de hir comungar a Igreja em Comunidade, e a falta de Ofecinas
necessarias para a sua vivenda, se determinou continuar com ellas"571. Será, pois, desta
necessidade sentida internamente que se executarão o comungatório, cozinha, refeitório,
despensa, casa da grade, casa da veleira, portas para todos as oficinas e o ladrilho do
coro e todas as demais dependências. Às intervenções dos anos Sessenta se deverá, ao
que julgamos, a parte mais substancial da definição arquitetónica do cenóbio, no que
tange, pelo menos, à sua funcionalidade.
O processo de obras parece não ter contendido substancialmente com a dinâmica
da Confraria da Luz, cujas Atas não refletem preocupações de monta a tal respeito.
Apenas a 1 de março de 1767, uma reunião dos mesários noticia que Bernarda Maria da
Veiga Cidade doa à Confraria da Luz duas casas térreas situadas na frontaria do Rossio
para guarda dos materiais da obra do “recolhimento novo”572.
Entre 1783 e 1791, verifica-se nova campanha de obras, desta vez resultante da
vontade e patrocínio direto de D. Pedro III. Pretendia-se, assim o cremos, adaptar o
local ao seu novo estatuto canónico e simbólico que advinda do cumprimento, agora
institucional, dos Estatutos do Louriçal e da associação à família real e a figuras gradas
da nobreza e clero, de que se contam Negreiros Alfeirão, Vilalobos e Vasconcelos, D.
Pedro Fortunato de Meneses e os marqueses de Angeja-Vila Verde. Substanciais terão
sido os benefícios aportados pela munificência régia, traduzidos seja em obras e
ornamentos, seja na dotação da comunidade.
A 11 de Agosto de 1791, a Conta do que se tem Despendido Com as Obras do
Recolhimt.º de MonteMor, desde 2 de Outubro de 1783, athé o prezt.e573 indica que o
rei fez extrair do Cofre das Igrejas Vagas, dos rendimentos da Casa do Infantado e do
Cofre do Grão Priorado do Crato um total estimado de 5073$885 réis. A 27 de
novembro de 1783, o Cofre das Igrejas Vagas decreta a aplicação de certa soma para
570 Ibidem, fl. 25 v.571 Ibidem, fls. 24-24 v.572 Ibidem, fl. 28.573 Documento inserto em Relações feitas nos Contos da Seren.mo Casa do Infantado… (ANTT, Gaveta16, mç. 3, n.º 1).
166
obras, o mesmo se verificando em 17 de março de 1784. A 24 de março de 1786 se faz
sair do Cofre do Grão Priorado do Crato determinado montante a aplicar ao mesmo fim.
Já a 8 de julho de 1784, novo decreto do Cofre das Igrejas Vagas consigna dinheiro para
ornamentos. Nesta passagem de verbas, terão funcionado como intermediários Frei José
Maine, Geral da Ordem Terceira da Penitência e confessor do rei D. Pedro III e Frei
António Baptista574.
Quando, à morte do rei, em 1786, se procede a indagações sobre o
recolhimento575, cremos, apesar de o resultado das mesmas nos ser estranho, que grande
parte da obra estivesse já executada. Com efeito, pela Relação dos Pagamentos feitos
pela Thezouraria Geral da Serenissima Caza do Infantado, relativos a data posterior a
25 de maio de 1786, conclui-se que Montemor-o-Novo não estaria já contemplado no
orçamento576.
Seria, no entanto, curta a vida do edifício cenobítico. A pretensão de converter o
seu espaço em unidade hospitalar, acarretou, evidentemente, substanciais alterações. Em
1881, a necessidade de financiar os trabalhos levou à praça vários objetos tanto do
recolhimento quanto do hospital. No lote de objetos vendidos, contam-se portas e
janelas, galerias, objetos de cantaria e madeira, lajes de granito, várias carretadas de
pedra, vergas de mármore para janelas, pedras, rótulas, uma barra de madeira, varões de
ferro, pedras e cachorros de cantaria.
Em contrapartida, as compras registam, entre outros, ladrilhos, mosaicos, grades
de ferro, ferragens de vários feitios, tijolos, camas de ferro, enxergões e travesseiros,
tábuas de casquinha em gesso, um fogão, um relógio de parede, várias barricas de gesso
e ventiladores de registo577. A reconversão era efetiva: entre 5 de novembro de 1881 e 2
574 É possível tratar-se do terceiro franciscano Frei António Baptista Abrantes, capelão da armada econfessor de D. Carlota Joaquina. Terá embarcado para o Brasil em 1807, com a família real, vindo afalecer no Rio de Janeiro em 1813.575 A fim de dar execução às disposições testamentárias de D. Pedro III e de lhes dar a melhor aplicação, éemanado, a 2 de outubro de 1786, um aviso dirigido ao juiz de fora de Montemor-o-Novo, ordenandoindagações pedidas pelo Infante D. João, futuro D. João VI, sobre o recolhimento. (ANTT, Casa doInfantado, Lv. 845, fls. 49-49 v.)576 Cfr. Relação dos Pagamentos feitos pela Thezouraria Geral da Serenissima Caza do Infantado, depoisde dia 25 de Mayo de 1786, em que faleceo o Augustissimo Snr. Rey D. Pedro 3.º, por Folhas, Decretos,e Mandatos da Junta da Serenissma Caza, pertencentes a Ordenados, Juros,Tensas, e Outras Dividas,que se estavão devendo athé ao dito dia (ANTT, Gaveta 16, mç. 3, n.º 1). O elenco dos pagamentosrefere-se a obras e serviços na Bemposta, Queluz, Igreja Matriz de Nossa Senhora da Purificação, emBucelas, Caxias e outros, mas não ao Conservatório da Luz.577 António Alberto BANHA DE ANDRADE, Subsídios para a História da Arte no Alentejo.Reconstrução da Matriz e construção das igrejas do Hospital Velho e da Misericórdia de Montemor-o-Novo, com o Roteiro da arte gótico e manuelina do Concelho, Lisboa, Edição do Grupo dos Amigos deMontemor-o-Novo e da Academia Portuguesa de História (Caderno n.º 10), 1980, p. 20.
167
de agosto de 1882, eram colocadas portas e janelas novas, cantaria, soalho, ladrilho e
telhado novo e construídas duas enfermarias578.
No pálido vestígio do antigo recolhimento que atualmente apreciamos, reforça-
se a evidência do valor das fontes na restituição teórica e abstrata de um passado.
Precedendo em várias décadas o nosso olhar579, a Descrição do edificio do antigo
recolhimento de Nossa Senhora da Luz prefacia, reportando-se a 14 de agosto de 1940,
a índole das transformações cujo resultado nos é hoje dado observar. O documento
refere uma "Propriedade urbana situada na rua das Beatas da vila de Montemor-o-
Novo", constando de "altos e baixos e uma cerca". Sobre o espaço interno, informa:
No rez-do-chão tem 20 divisões e uma dependencia, pateo com cisterna e
uma cerca ou quintal murado; achando-se neste pavimento o vestibulo,
secretaria, casa do guarda-portão, cosinha, despensa, Banco, casas de banhos,
prisões, arrecadações, quartos particulares, dormitorio e refeitorio dos
LAZAROS, Farmacia e Laboratorios e duas capelas.
No 1.º antar tem 10 divisões que compreendem as enfermarias de cirurgia e
medicina, 1 quarto para Irmãos da Misericordia, sala de operações, dita de
observação, sala de aparelhos de Raios X, enfermaria da MATERNIDADE e
gabinete anexo.
No 2.º andar tem 5 divisões para alojamento das Irmãs Religiosas,
dormitorio das Empregadas e casa da Rouparia.
Tem agua e instalação electrica.
Tomando como pano de fundo a imagem impressiva que o documento reflete,
tentemos auscultar e, sempre que possível, analisar, a obra que o enigmático mestre
António Rodrigues580 pretendeu elevar, bem assim aquela que, querida pela Irmandade
da Luz, foi mais tarde assumida pelas religiosas do Desagravo.
578 AHMMN., Livro das Actas de 1872-1880, fls. 3 e 27 v.579 Descrição do edificio do antigo recolhimento de Nossa Senhora da Luz (Convento das Beatas), noqual está instalado desde o ano de 1882 o "HOSPITAL CIVIL DE SANTO ANDRÉ" da mesmaMisericordia, documento assinado da Direção-Geral da Fazenda Pública datado de 14 de agosto de 1949(Arquivo Histórico da Misericórdia de Montemor-o-Novo, Correspondência da Misericórdia, armárioXIII).580 Não poderá tratar-se de António Rodrigues, arquiteto ligado à Casa Real durante o reinado de D.Sebastião e parte da dinastia filipina. Poderíamos, no entanto, associá-lo ao risco da igreja encomendada
168
2.6. O edifício (Figs. III.1.1.-4)
Ao olharmos hoje para o Recolhimento da Luz, deparamo-nos com um edifício
desarticulado e compositamente descaraterizado pelas alterações que sucessivamente
sofreu. Dando a sul e poente para o Largo das Portas do Sol e a norte e nascente para o
rossio da vila, o edifício apresenta, como tantos outros do seu género, fachadas
desornamentadas de que apenas se destacam as molduras, pouco trabalhadas, dos vãos,
os cunhais de pedra a contrastar com a restante superfície murada e o jogo dos volumes
arquitetónicos que perfazem o todo da mole edificada.
Da parte sul do conjunto, atualmente marcada por uma sucessão de quatro
alçados contíguos de altura crescente, destacava-se, mais elevada, a fachada da igreja,
aberta lateralmente por portal de molduração simples e sobrelevada pela pequena
escadaria que assinalava a entrada pública do espaço sagrado, projetando-a sobre o
largo. A parte oeste definia um corpo contínuo, desenvolvido na horizontal, de onde
apenas sobressaía o portal, simples, e hoje em dia renovado, da antiga portaria, erguido
por breve escadaria. A fachada norte oferece idêntico panorama, apenas se notando, na
diversidade das molduras dos vãos - umas mais trabalhadas ou mais antiquadas que
outras - as diferentes épocas e propósitos subjacentes às intervenções sofridas. Na
fachada oriental, em novo suceder de volumes e alturas, notam-se as diferentes
dimensões das janelas, inicialmente gradeadas, que se abrem ao nível do piso térreo.
Construções recentes apõem-se a este alçado, desfigurando-o, mas deixando muito
embora visível o que terá constituído parte da antiga cerca monástica.
O interior, a que dava acesso a portaria, desenvolvia-se maioritariamente em
torno do claustro. Ao nível do rés-do-chão, abriam-se, tornejando aquele largo central, a
casa de entrada (ou portaria), a casa da irmã rodeira, casa da roda, locutório, capelas
devocionais, cozinha, refeitório, casa do capítulo, despensa, celeiro (este com porta para
a cerca), casa de arrecadação e casa de amassaria. O claustro, para onde convergia a
maior parte das divisões, apresentava dois andares. De planta quadrangular, era formado
por quatro corredores abertos por arcaria sobre o jardim, onde um piso cimentado e os
vestígios de uma velha cisterna substituem hoje o espaço antes ocupado por diversas
árvores de fruto.
pelos Confrades da Luz no último quartel de Quinhentos, pressupondo, para tal, alguma imprecisãoinerente ao documento compulsado.
169
No primeiro piso, por seu turno, dispunham-se "muitas pequenas Capellas com
imagens"581, quatro dormitórios abertos por portas e janelas para o sobreclaustro,
enfermaria e cozinha respetiva, arrecadações "com altares e formas d'igreja pelos santos
que continhão"582 e, naturalmente, dormitórios e "respectivas cellas"583.
O segundo piso albergava dois outros dormitórios e “casas” e nele se abriam
duas varandas, uma das quais comunicando com a torre sineira. As alas superiores das
faces nascente-norte terão sido, segundo o Inventário Artístico, bastante alteradas em
finais de Oitocentos com a construção de quartos e enfermarias584. Assim se terão
perdido os quatro dormitórios comuns, a enfermaria e cozinha privativa e, no segundo
andar, outros dois dormitórios e diversos gabinetes úteis que davam, todos, "para as
varandas corridas da quadra e possuíam alguns oratórios decorados por altares de
imaginária devocional"585. O perímetro cercado terá, por seu lado, acolhido cavalariças,
palheiro e terreno cultivável, parte do qual com árvores de fruto586.
O templo, contíguo à quadra sul do conjunto, constituía um núcleo funcional e
volumetricamente individualizável em torno do qual gravitavam, no plano inferior, a
sacristia e coro baixo e, ao nível de um primeiro andar, tribuna e coro alto.
2.6.1. O templo (Figs. III.1.5-14)
Antes das intervenções dos anos 60 e, evidentemente, antes também das
intervenções produzidas por vontade e a expensas de D. Pedro III, a igreja deveria
corresponder à descrição do pároco de Montemor-o-Novo, que dela informa ser um
templo magnifico asim no âmbito que ocupa, como na altura athé a abóboda,
he toda pintada do mesmo tempo por hum pintor de ElRey chamado Fernão
Coelho [Gomes?], e o mesmo dourou o retabolo da Capela mor, onde estava a
Senhora, que se conservou athé o ano de 1718 que estando muito arruinado
mandarão os oficiais da Confraria fazer outro, e dourar, onde se conserva hoje
581 "Auto de avaliação do Edificio do Convento das Recolhidas de Nossa Senhora da Luz, denominadoConvento das Beatas desta Villa, com todas as suas pertenças", BPE, Convento do SantíssimoSacramento. Montemor-o-Novo, Lv. 2, fls. inum.582 Idem.583 Idem.584 Cfr. Gustavo de Matos SEQUEIRA, op. cit.,p. 301.585 Idem, ibidem.586 Idem, ibidem.
170
a Senhora dentro de huma tribuna; tem mais dois altares hum da parte do
Evangelho onde se acha colocada a imagem de São Grigorio Papa, e o da parte
da Epistola se venera a de Santa Catherina, da mesma parte do Corpo da Igreja
está outro altar, todo de madeira liza porem pintado ao moderno onde
colocarão os moços solteiros desta villa huma perfeitissima imagem de Senhora
Santa Anna, que festejão no seu dia e véspera. No anno de 1685 mandarão os
Irmãos que servião fazer um átrio a porta da Igreja, para onde se sobe por
cinco degraós de pedra no comprimento de toda a frontaria que não só fás boa
entrada para ella, mas tão bem ficou dando gála, a mesma Igreja. Tem esta
Confraria hoje sete capelas com sete capelães que na dita igreja dizem missa
que pagos eles lhe fica de rendimento noventa e sinco mil reis, fora as esmolas
com que os fieis concorrem que são avultadas, que tudo se gasta no hornato da
igreja.587
No seguimento da intervenção régia de finais de Setecentos, o ingresso, que
originalmente deveria ter sido frontal – só assim se explica que os degraus que
antecediam a entrada ocupassem o “comprimento de toda a frontaria”588 –, poderá ter
dado lugar ao espaço do coro baixo e, por conseguinte, ter sido aberto ao nível do corpo
da igreja, como, aliás, se tornava corrente em casas femininas de clausura. O
pretensamente novo portal apresenta linhas sóbrias nos perfis moldurados e cornija reta,
assentando igualmente sobre pequena escadaria de seis degraus de mármore branco de
Estremoz. A janela que o sobrepuja será, segundo o Inventário Artístico, da reforma de
D. Maria I589.
A planta é retangular e a nave única, de dimensões sóbrias (13 por 7,95 metros)
e dividida “em quatro tramos engalanados com friso de tríglifos, métopas e pilastras de
enrolamento”590. De grande altura, o templo recebe discreta iluminação lateral, sendo
587 "O Concelho de Montemor-o-Novo nas Memórias Paroquiais de 1758. Descripção da Villa de MonteMor o Novo pello que partence a Igreja Matriz", Almansor, n.º 3, 1985, pp. 151-153 apud Maria Isabel doRosário VICENTE, “Pintura mural da antiga sala capitular da Irmandade de Nossa Senhora da Luz deMontemor-o-Novo. Um breve estudo iconográfico e artístico”, Almansor, n.º 14, 2000, pp. 101-208 (p.166).588 Idem, ibidem.589 Cfr. Gustavo de Matos SEQUEIRA, op. cit., p. 299.590 Idem, ibidem.
171
suportado por abóbada de meio canhão decorada com medalhões e tabelas florais de
estuque colorido591.
A cabeceira apresenta falso cruzeiro e três capelas de arcos semicirculares,
estando duas vazias à exceção da capela-mor. O altar-mor, com arco de volta perfeita,
tem retábulo de talha dourada com colunelos salomónicos e tribuna e trono "de
prospectos totalmente revestidos dos habituais elementos ornamentais de ensambladores
da escola portuguesa do tempo dos reis D. Pedro II-D. João V."592 O retábulo, iniciado
em 1718, terá substituindo um anterior, saído, como acima vimos, das mãos do pintor
régio Fernão Gomes.
Do lado do Evangelho, salienta-se um púlpito com dossel e baldaquino, de
“talha dourada, palmar e envieirada"593 e o altar do Calvário. Este último, que, em finais
de Setecentos, substituiu o primitivo altar de Santa Ana, apresenta retábulo de talha
dourada e marmoreada cujo tímpano exibe os atributos da Paixão594. Do lado da
Epístola, de data e estilo distintos do anterior, destaca-se, por sua vez, o altar a que
primitivamente terá pertencido uma pintura a óleo do Salvador do Mundo, de
"características setecentistas"595.
Sobre a cimalha - que Matos Sequeira descreve como sendo "decorada por
luneta de tabelas com albarradas flóricas, escaioladas, de nítida inspiração barroca,
italianizante, sotoposta pela pintura circular" da Virgem com o Menino596 -, ergue-se
um medalhão com o atributo do Instituto, a Exaltação do Santíssimo Sacramento. É de
crer, naturalmente, que seja resultante dos benefícios aportados por D. Pedro III, a quem
se deverão igualmente os painéis murais que figuravam lateralmente, representando o
Calvário e a Deposição de Cristo no túmulo.
Importante espólio iconográfico se acharia associado ao templo, pelo menos a
atentar no Inventário realizado à data da extinção do recolhimento597. Em imaginária
encontram-se recenseados São Francisco, Santa Clara, Nossa Senhora das Dores,
Senhora da Luz, São José, São Gregório, Santa Ana, Senhor das Chagas, Coração de
591 Idem, ibidem. O autor diz que essa decoração corresponderá a um arranjo de c.ª de 1790.592 Idem, ibidem.593 Idem, ibidem.594 Cfr. Gustavo de Matos SEQUEIRA, op. cit., p. 299.595 Idem, ibidem.596 Idem, ibidem, p. 300. Segundo o autor, os frescos da cimalha da empena pertencerão ainda à primeiracampanha prévia à reforma de 1717.597 "Auto de avaliação do Edificio do Convento das Recolhidas de Nossa Senhroa da Luz, denominadoConvento das Beatas desta Villa, com todas as suas pertenças", BPE, Convento do SantíssimoSacramento. Montemor-o-Novo, Lv. 2, fls. inum.
172
Jesus, Nossa Senhora das Brotas, Santa Luzia, Santa Gertrudes e São Francisco de
Paula. Curiosamente, as obras pictóricas aí presentes não foram alvo de inventariação
ou, pelo menos, deste processo específico de recenseamento patrimonial. Seriam em
parte mantidas in loco, porquanto parte de uma estrutura que não fora desativada.
A antiga vida monástica não mais aflora senão como enviesada reminiscência: as
grades dos coros foram tapadas598, enquanto para a parte fundeira do templo foi
deslocado o cadeiral que anteriormente pertencera ao coro alto.
2.6.2. Coros (Figs. III.1.11 e 13)
Enquanto a existência de coro baixo, ocupando o espaço supostamente reservado
a uma antiga galilé599, subsiste como hipótese, a presença do coro alto não suscita
dúvidas. A ele pertenceriam, à data do documento que elenca o seu espólio material,
uma estante de coro, vinte e dois retábulos, dois crucifixos, um crucifixo grande, uma
imagem de Santo António, de São Pedro, de São Domingos, do Senhor dos Passos e
várias imagens de Nossa Senhora600.
2.6.3. Em torno do templo (Figs. III.1.24-29)
Por detrás da cabeceira do templo abria-se a sacristia e, contígua a ela, o que
suporíamos tratar-se da sacristia de dentro. É pouco o que conhecemos destes espaços
de sacralidade anexa e de dimensão exígua, não obstante o inventário da extinção do
cenóbio601 nos devolva uma noção do seu recheio artístico, que contaria com um quadro
598 Gustavo Sequeira refere que haveria pinturas a tapar a grade: uma Última Ceia, com data provável de1700 e uma efígie de Catarina do Nascimento. Em relação a esta, esclarece ter sido oferecida ao Museuda Vila de Montemor-o-Novo em 1932, "pelo solicitador Fontes, que o possuía no seu escritório daCidade de Évora." (Cfr. Gustavo de Matos SEQUEIRA, op. cit., p. 299.) No presente, existe um retrato dafundadora no dito museu, embora um outro, semelhante - admitimos que reprodução - continue a exibir-se no parede sul do templo.599 Ibidem.600 Um dos inventários refere, sem as especificar, a existência de 4 imagens de Nossa Senhora, enquantoum segundo elenca uma imagem de Nossa Senhora e uma outra de Nossa Senhora da Soledade. (Cfr."Auto de entrega [...] das alfaias, vasos sagrados e mais objectos [...]", BPE, Convento do SantíssimoSacramento. Montemor-o-Novo, Lv. 2).601 Idem, ibidem.
173
representando Santa Catarina602, um outro a Verónica, avaliado em mil réis, o Calvário
(da igual valia) e, por fim, quatro quadros "com coroas", avaliados no seu conjunto em 4
mil réis.
Comummente designada como casa ou sala do capítulo603, a pequena divisão
anexa a um dos lados da cabeceira da igreja, dando para o claustro, poderá, no entanto,
corresponder ao resultado da reconversão de uma antiga estância da Confraria da Luz,
quem sabe a Casa do Despacho, em comungatório. A janela que se abre na parte leste,
tapada posteriormente pela aposição contígua da cozinha, daria primitivamente para o
exterior, de onde receberia iluminação natural. Segundo o Inventário Artístico, uma
grade intermediaria a comunicação com o templo, de cuja dinâmica litúrgica e
sacramental não deixaria, portanto, de participar604.
Desta pequena divisão, é-nos dado apreciar a cobertura abobadada, de dois
tramos nervurados, inteiramente revestidos de pinturas a fresco, de intenção clássica,
onde se exibem grinaldas de flores, açafates, querubins, brutescos, cariátides, sagitários,
faunos e centauros, separados por rosetas e pingentes605, e onde, centralmente pontifica
a insígnia JHS. No pano central, figura uma pomba, representação do Espírito Santo,
rodeada de putti e de motivos vegetalistas. Nos panos triangulares da abóbada, em
número de seis, veem-se motivos zoomórficos, ferroneries e decoração vegetalista com
elementos de grotesco. A conjugação de elementos sacros e profanos, porém, traduziria
"um certo direccionamento para o brutesco", típico de finais de Quinhentos e
consentâneo com o "maneirismo reformado" de recorte tridentino606.
Igualmente decorados são os panos da cimalha, que ostentam painéis pintados a
fresco, estes de temática exclusivamente religiosa, novitestamentária: São Gregório607,
as Tentações de Jesus608 - que aqui surgem de forma compósita num só painel -, a Cura
602 Idem, ibidem.603 Cfr. Gustavo de Matos SEQUEIRA, op. cit., p. 299.604 Idem, ibidem.605 Idem, ibidem.606 Maria Isabel do Rosário VICENTE, op. cit., p. 149. Dada a relevância dos elementos vegetalistas e aimportância relativa dos motivos pagãos, que tendem a ficar remetidos a uma mera função decorativa.607 Vítor Serrão e João Santos sustentam tratar-se de S. Pedro. Já Túlio Espanca defende ser S. GregórioPapa (Cfr. VICENTE, op. cit., p. 129.) Atendendo ao fato de que os atributos representados podem,segundo Maria Isabel Vicente, corresponder indistintamente a ambos, inclinamo-nos para que seja S.Gregório, já presente em imagem na igreja, no altar lateral da parte do evangelho e, por certo, santo dadevoção local ou dos encomendantes. Além disso, após o Concílio de Trento, S. Gregório tornou-se opatrono das confrarias piedosas.608 Ativemo-nos ao trabalho mais recente, já várias vezes aqui referenciado, de Maria do Rosário Vicente,op. cit., pp. 132-133.
174
do paralítico em Betsaida609, Jesus e a Samaritana, Milagre de Santo António610. No
topo da sala, contornando o que outrora terá correspondido a pequena janela, vê-se São
João Evangelista em Patmos611.
É-nos difícil encontrar unidade nos temas representados não obstante a sua
sistemática incidência crística e o seu comum acento taumatúrgico. Os santos
prefigurariam uma espécie de alter-Cristos pelo mimetismo - no milagre da cura e na
tentação do deserto - do exemplo d'Ele. S. Gregório, por seu turno, patrono das
confrarias, representaria o timbre devocional da irmandade. Maria do Rosário Vicente
anota, com interesse, que as cenas correspondem, qualquer delas, a "curas espirituais
e/ou físicas bem a propósito das funções de uma Irmandade, a assistência física e
espiritual."612 A composição, pobre e algo primária no seu conjunto, tem sido atribuída
a Fernão Gomes613, a quem se cometera a pintura e douramento de um dos retábulos da
igreja, e, nesse entendimento, deverá ser naturalmente datada de cerca de 1590.
2.6.4. Espaços de sobrevivência temporal
Contígua a este peculiar compartimento, situava-se a cozinha, hodiernamente
por completo transfigurada, mas que, segundo o Inventário Artístico614, seria ainda do
período seiscentista e corresponderia a sala dividida por coluna granítica da ordem
toscana, com pavimento de laje, poço e pias de blocos de mármore branco615.
Contíguas, e dando também para o claustro através de portas, situavam-se a
despensa, a casa da amassaria e o celeiro, que estranhamente se interporiam entre duas
divisões normalmente contíguas, a cozinha e o refeitório, ou o que cremos dele restar.
Supostamente localizado na ala oriental do claustro, este último apresentava planta
retangular e cobertura abobadada. Matos Sequeira reconhece-lhe o habitáculo da irmã
609 A identificação desta cena não é consensual. J. Santos refere tratar-se de uma cena caritativa demisericórdia (1996, p. 117), enquanto Serrão (1982) a identifica com "Noli me tangere". (apud Vicente, p.134). Também Vicente sustenta que a cena não está totalmente de acordo com a sagrada escritura, nãodeixando, porém, de lhe atribuir o tema em questão.610 Cena cuja iconografia não corresponderia também integralmente à história do santo.611 Diferente é a leitura de Matos Sequeira, que refere: a Ressurreição de Lázaro, a Boa Samaritana, S.João Evangelista em Patmos, São Gregório e Cristo tentado pelo Demónio na figura de santo eremita.(Cfr. Gustavo de Matos SEQUEIRA, op. cit., p. 301).612 Maria Isabel do Rosário VICENTE, op. cit., p. 150.613 Cfr. Gustavo de Matos SEQUEIRA, op. cit., p. 301. O autor data-a de cerca de 1590.614 Idem, ibidem.615 Idem, ibidem.
175
leitora assim como a existência, no chão, desirmanadas, de "várias placas de mármore
com algarismo árabes (até ao n.º 14)", que o autor aventa ser "talvez marcação antiga de
lugares das religiosas."616 Sem termos tido oportunidade de as visualizar, perguntamo-
nos, muito embora, se não seriam antes lápides sepulcrais anteriormente existentes no
claustro e posteriormente convertidas à funcionalidade própria de um pavimento de
refeitório.
2.6.5. O claustro (Figs. III.1.15-19)
Sobre este último617, cuja configuração terá advindo das primeiras obras dos
anos Sessenta de Setecentos, é de salientar a sobriedade clássica das linhas e o aspeto
despojado que percorre o que nos é dado ver como um espaço constituído por pátio
central, antigo jardim, assinalado centralmente pelos vestígios de uma cisterna, e
contornado por dois pisos de galerias, hoje fechadas por portas e janelas vítreas e
encimadas por terraço. A galeria inferior, coberta por abóbada de cinco tramos
suportados em pilastras, abria-se sobre o pátio por arcos de volta perfeita isentos de
qualquer elemento ornamental.
616 Idem, ibidem, p. 301.617 Matos Sequeira refere pertencer "às empreitadas decretadas pelo desembargador da RelaçãoEclesiástica dr. Francisco de Negreiros Alfeirão, c.ª 1760" (Idem, ibidem, p. 301).
176
2.7. Programa artístico e património móvel
Necessariamente superficial e inacabada por via do teor inconsistente dos
vestígios e da índole compósita da obra, a análise da arte deste recolhimento alentejano
conduz-nos a anotações imprecisas e inconcludentes.
Os efeitos, mais ou menos impressivos, das alterações institucionais e da
sucessão de etapas de encomenda convocam a questão da dinâmica regional da
produção artística, da articulação de diversas matrizes de gosto e, num outro plano, da
plasticidade de uma casa monástica para o acolher. Se, a nível arquitetónico, a questão
parece mais facilmente evidenciável, tentemos auscultar as inflexões que o recheio
artístico, localizado designadamente no templo, sacristia e casa do capítulo, nos permite
detetar a fim de averiguarmos os termos e limites de uma "arte do Desagravo" em
Montemor-o-Novo.
A concentração de obras de arte patente no coro alto aproxima o recolhimento de
tantos outros espaços tipologicamente semelhantes da Modernidade618, embora
evidentemente nada nos diga da sua eventual coerência programática, que o
desconhecimento completo de informações sobre os vinte e dois retábulos619 que terão
decorado as suas paredes e sobre algum eventual património integrado não ajuda por
certo a clarificar.
Seria, contudo, de supor tratar-se de um programa coeso, próprio de um espaço
que não terá traído a sua vocação primária. Para tal nos aponta a imaginária, incidente
em parte sobre a temática da Virgem, adequada certamente a um espaço monástico
feminino e à devoção a Nossa Senhora, sobremaneira cultivada na Época Moderna620. A
presença, por outro lado, de Nossa Senhora da Soledade e do Senhor dos Passos, quem
sabe se de forma associada, remete para o temário da Paixão, igualmente não estranho à
época em apreço e à Regra do Desagravo. O mesmo se diria a respeito de Santo
618 Vd. Natália Marinho Ferreira ALVES, “A Apoteose do Barroco nas Igrejas dos Conventos FemininosPortugueses”, separata da Revista da Faculdade de Letras, 2.ª série, Vol. IX, Porto, Faculdade de Letras,1992, pp. 369-383.619 Expõe-se atualmente, ao longo das paredes do templo, um conjunto de telas de igual dimensão, quedeverão ter constituído uma série subordinada à mesma temática. Podemos também supor teremcorrespondido ao recheio pictórico anteriormente constante do coro alto.620 Cfr. VILLER, M., CAVALLERA; F.; GUIBERT, J. de, Dictionnarie de spiritualité ascétique etmystique doctrine et histoire, Tomo XII, Paris, Beauchesne, 1986, “Portugal” (sécs. XVI-XVIII), pp.colunas 1958 a 1973 (artigo de BELCHIOR, Maria de Lurdes; CARVALHO, José Adriano de). (Cols.1968-9).
177
António, santo nacional e franciscano, a que o Mosteiro do Louriçal dedica a
iconografia do seu coro baixo.
Análise semelhante poderá aplicar-se à sacristia, cujo espólio identificado, de
caráter essencialmente pictórico, assenta na temática da Paixão, bem patente na
Verónica e em quatro representações do Calvário. A presença de Santa Catarina, a quem
o templo consagrava um altar, introduz um elemento de coerência, quer tenha ou não
derivado de encomenda da Confraria da Luz.
Já a igreja oferece um panorama híbrido, que reflete a conjugação de duas
lógicas de utilização e de um suceder de campanhas de obras. As esculturas dos
padroeiros da Ordem, São Francisco e Santa Clara, substituíram intencionalmente as de
São Gregório e Santa Catarina. Ignoramos se esta última terá sido inicialmente querida
pela Confraria da Luz, se colocada posteriormente após a autorização de fundação do
cenóbio concedida por D. João V. Neste último caso, poderíamos ver em Santa Catarina
uma alusão hagiológica à fundadora, Catarina do Nascimento.
Apesar desta substituição de referentes simbólicos, a presença de uma fase pré-
monástica é notória. Ela não foi, aliás, negada, antes apenas e em parte deslocalizada.
São Gregório consta do inventário de bens da igreja, da mesma forma que Santa Ana, de
antiga devoção local dos rapazes solteiros da vila e cujo retábulo foi substituído pelo do
Calvário. A escultura de Nossa Senhora da Luz, que reporta diretamente à invocação do
templo-sede da Confraria do mesmo nome, aí consta também. E Nossa Senhora das
Brotas é santa de devoção regional621.
Já as representações escultóricas do Sagrado Coração de Jesus, de Nossa
Senhora das Dores e do Senhor das Chagas remetem claramente para as beneficiações
de D. Pedro III e para a consagração do Instituto. Sublinha-se o carisma sacrificial
caraterístico desta família religiosa e o acolhimento de uma devoção particularmente
querida do rei e de D. Maria I, que em Lisboa erguia o primeiro templo da Cristandade
consagrado ao Coração de Jesus622. O mesmo se diga a respeito do altar do Calvário,
com seu retábulo de talha dourada e marmoreada exibindo no tímpano os símbolos da
Paixão, e dos painéis representando o Calvário e a Deposição de Cristo no túmulo. Por
621 O culto nasceu em Mora, onde se construiu um templo com a menção hagiográfica de Nossa Senhoradas Brotas, o qual se converteria em importante centro de peregrinação. (Vd. Túlio ESPANCA,Inventário Artístico de Portugal, Vol. IX (Distrito de Évora, Zona Sul), Lisboa, 1978.622 Referimo-nos à Basílica da Estrela. Uma vez que não conhecemos a imagem em si nem a invocaçãoprecisa que se esconde sob a designação de "Santa Gertrudes", ficamos na dúvida de saber se a presençado Coração de Jesus se poderá articular com a figura de Santa Gertrudes.
178
fim, a Exaltação do Santíssimo Sacramento, lema e atributo do instituto religioso623,
consagraria, coroando a cimalha, a nova intencionalidade artística e religiosa aposta ao
templo dos Confrades da Luz.
623 O Inventário chama-lhes “veneração” (op. cit. p. 300).
179
3. O Mosteiro do Desagravo de Vila Pouca da Beira
3. 1. O Desgravo em Vila Pouca da Beira
Com a fundação do Mosteiro do Desagravo de Vila Pouca da Beira, o Instituto
do Louriçal, se a um tempo se expandia, a outro credenciava a sua presença na diocese
de Coimbra, cuja jurisdição eclesiástica abraçava ainda aquela remota vila da Beira
Alta. Não abandonaria, de igual modo, a condição periférica, parecendo prefigurar uma
corrente de piedade que, por circuitos próprios, ganhava forma nas faldas dos centros
urbanos e dos grandes polos de decisão e poder - dos quais, no entanto, se alimentava.
À semelhança das casas anteriormente criadas, também a de Vila Pouca
conheceria na origem uma vontade fundadora individual, que, inflada de zelo, se
sentiria interpelada pela ideia de instituir um modo de vida próprio de cariz
eminentemente rigorista. À semelhança, também, das suas precedentes, a fundação
arrastar-se-ia longamente, devendo esperar pelo auxílio de um monarca ou de um
prelado para lograr instituir-se num tempo adverso ao recrudescimento da vida
monástica. E, da mesma forma que o Mosteiro do Louriçal, a nova fundação nasceria,
pelo menos no discurso que sobre ela versa, do afã de desagravar o Santíssimo
Sacramento ofendido em novel atentado sacrílego624.
Mas os paralelismos não se opõem à unicidade nem evidentemente limitam o
interesse em dá-la a conhecer. Sobre a casa que, hodiernamente, e após alterações
funcionais de monta, acolhe uma unidade hoteleira, não abundam os estudos, mas estes,
embora escassos e fragmentários na perspetiva que adotam, são contudo precisos e
elucidativos, merecendo-nos, portanto, indúbia referenciação625.
624 ANTT, Chancelaria de D. Maria I, Lv. 14, fls. 256 v – 257.625 Vd. Vergílio CORREIA, Inventário Artístico de Portugal. Distrito de Coimbra, Vol. II, ediçãoreorganizada e completada por A. Nogueira Gonçalves, Lisboa, Academia Nacional de Belas-Artes, 1952,pp. 184-185. Veja-se, também, o estudo de Diamantino Antunes do AMARAL, Notícia sobre a fundaçãodo Convento do Desagravo do Santíssimo Sacramento de Vila Pouca da Beira, 1972. Mais recente, olaborioso trabalho da Fundação Bissaya-Barreto na coleção e tratamento de fontes, das quais em parteficou depositária, deve ser justamente destacado.
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3. 2. Genoveva Maria do Espírito Santo e a ideia de fundar
Nascia em abril de 1732 Genoveva Maria do Espírito Santo, filha de Maria
Viegas e de João de Abrantes ou Abranches. A 1 de maio daquele ano era batizada na
Igreja de São Sebastião de Vila Pouca da Beira626. Descrita invariavelmente como
pessoa rústica, a Genoveva se deveria não só a iniciativa da fundação, quanto a garantia
da sua sustentabilidade material. António de Vasconcelos, na sua Árvore Franciscana,
sumariza enfaticamente:
Uma pobre pastora de Vila-Pouca, analfabeta, rústica e boçal, mas inflamada
em amor de Deus e animada por inspiração do alto, foi o instrumento de que
nosso Senhor se serviu para realizar essa obra.627
E prossegue:
De que meios dispunha ela para realizar a sua obra? Nenhuns. Sem ter um
palmo de terra sua, sem possuir dinheiro algum, sem instrução, mal sabendo
falar a linguagem rude da região, passava a vida com a roca à cinta a fiar,
guardando ao mesmo tempo algumas ovelhas.
Quanto à forma de angariar fundos, esclarece:
Deambulou por todo Portugal, e ela, a pobre pastora, que até ali não sabia
exprimir-se senão com grande rudeza, apresenta-se em toda a parte, em todos
os meios, inclusive na côrte pedindo e obtendo audiência da rainha, falando
com os magnates, e a sua palavra tinha a virtude de convencer, de persuadir, de
obter esmolas, algumas avultadas.628
626 Cfr. Diamantino Antunes do AMARAL, op. cit., pp. 21-28.627 António de VASCONCELOS, "A árvore franciscana plantada e frutificando na Diocese de Coimbra",Coimbra, 1926, Estudos, nº. 5, 1926, p. 404.628 Idem, ibidem, pp. 404-405.
181
Não de diferente teor são as palavras do Abade de Miragaia que, destacando
Genoveva Maria do Espírito Santo como uma das mais notáveis figuras da vila,
refere629:
Sendo uma pobre e analfabeta pastora, resolveu fundar um convento, e tanto
lidou que percorreu grande parte do nosso País esmolando. Foi inclusivamente
ao Rio de Janeiro duas vezes, quando ali se achavam D. João VI e a família rela
portuguesa; mas teve a satisfação de ver o seu tão querido convento feito, com
uma majestosa igreja e uma linda cerca.630
Mas o que terá movido Genoveva Maria a empreender este curso aparentemente
contínuo - embora não inglório - contra obstáculos de difícil superação? Qual a essência
do seu heroísmo? As referências conhecidas, de autoria maioritariamente eclesiástica,
apontam para um eixo definido, por um lado, pelo desígnio divino e, por outro, e a
desencadear o primeiro, pela ocorrência de um desacato na igreja paroquial de São
Sebastião, de que Genoveva, contando à época somente onze anos de idade, se terá
fortemente ressentido. Sem pôr em causa a verosimilhança de um influxo superior,
questionamo-nos, no entanto, sobre a univocidade da ligação que entre o sentimento
despertado pela profanação de setembro 1743 e a empresa fundacional se estabelece631.
Ela aparece-nos enunciada pela primeira vez na provisão régia que autoriza a fundação
e que, com base numa simples aposição de circunstâncias, justifica a anuência à
pretensão. Diz, pois,
que naquela vila, no mês de Setembro de mil setecentos quarenta e três, um
sacrílego ladrão cometera o horroroso desacato roubando o sacrário da Matriz,
tratando irreverentemente as sagradas formas que nele se achavam632
629 Augusto PINHO LEAL, Portugal antigo e moderno. Diccionario Geographico, Estatistico,Chorographico, Heraldico, Archeologico, Historico, Biographico e Etymologico de todas as cidades,villas e freguezias de Portugal e de grande numero de aldeias, Vol. XI, Lisboa, Livraria Editora de MatosMoreira & Companhia, 1886, p. 911.630 Idem, ibidem.631 O desacato de 1743 não parece ter tido qualquer ressonância longinquamente próxima da que foiauferida pelos casos de Santa Engrácia, Odivelas, Palmela ou outros mais. Desconhecemos mesmoqualquer sermão do desagravo que ao episódio respeite ou qualquer nota bibliográfica que lhe tenha sidodedicada.632 ANTT, Chancelaria de D. Maria I, Lv. 14, fls. 256 v – 257.
182
e, seguidamente, que
junto à mesma vila, em muito pequena distância, havia uma pequena capela de
Jesus, Maria e José, de grande e antiga devoção com um bom rossio e adro da
mesma capela e junto a esta se acham umas propriedades compradas com
esmolas, com o intento de se fundar nelas um convento de religiosas do mesmo
instituto do Real Convento do Santíssimo Sacramento da vila do Louriçal, na
qual se empregassem trinta e três religiosas continuamente em Lausperene na
presença do Santissimo Sacramento da vila do Louriçal, no qual se
empregassem trinta e três religiosas continuamente em Lausperene na presença
do Santissimo Sacramento, rogando ao mesmo Senhor pelos que estão em
pecado mortal, pelas almas do Purgatório e pela minha real vida, saúde e
prosperidade do meu Reino.633
Mais que uma relação direta, que poderá até ter existido, parece-nos ver na
referência a este desacato um argumento cuja eficácia ia sendo creditada pelo êxito de
casos semelhantes. Lembremos apenas que, a 14 de maio de 1779, antecipando um ano
a provisão, se dava em Palmela a profanação da ermida de São João Baptista, episódio
que despertou fortemente a comoção da rainha. Além disso, só cerca de trinta anos após
o episódio de Vila Pouca, Genoveva Maria - contando já quarenta anos - terá revelado
abertamente a intenção de fundar um convento onde se praticasse o lausperene
eucarístico634. Não lhe seriam estranhos, nem aos que a rodeavam, seja o fervor
eucarístico, seja os desacatos, seja a paixão por eles provocada, seja, ainda, a forma
tradicional de os reparar, que incluía desde cerimónias de louvor e expiação à edificação
de locais de culto e devoção.
Que a ideia existisse já, subliminar, no ânimo da devota e que, entretanto, se
fosse robustecendo com a idade e o itinerário religioso, e por via, também, do prestígio
633 ANTT, Chancelaria de D. Maria I, Lv. 14, fls. 256 v – 257.634 No início dos anos Setenta de Setecentos registam-se já documentos relativos à aquisição depropriedades pela devota. Vd. AUC, Convento do Desagravo de Vila Pouca da Beira, Genoveva-Declarações, Escrituras de Capitais mutuados certidões de missas, provisões régias, testamentos,arrendamentos, certidões de pagamentos de sisa, etc. (AUC, III, 1D, 10, 1, 23).
183
auferido pelo Instituto do Louriçal - pertencente, aliás, à mesma diocese - e da crescente
veneração à madre sua instituidora, é hipótese não negligenciável. Por muito que
Genoveva Maria não tivesse sido, como Maria do Lado, vidente do sacrilégio, mas
apenas sua expetadora passiva, a superveniência da profanação de 1743 colocava-a no
encalço da beata louriçalense, cuja imagem não deixara seguramente de se lhe perfilar
no horizonte. E, por mais que a instituição de uma família religiosa não estivesse
inscrita nos seus confessos ensejos, ao fundar uma casa do Desagravo, fazia-se fiel
continuadora da obra da Venerável.
Conquanto fundadora, Genoveva não chegou nunca a professar ou, assim se crê,
sequer mesmo a emitir votos simples. O seu mérito não tem fiel expressão no estatuto
que passaria a auferir. Como zeladora do mosteiro, coube-lhe dar todos os passos
tendentes a garantir a fundação, traduzidos estes na angariação de verbas para a
construção do edifício e para a constituição de um fundo monástico adequado à lotação
e condições de vida da comunidade. À falta de outros meios, não mais lhe restaria que
recorrer a esmolas dispensadas pela boa vontade alheia. Terá começado a esmolar “de
porta em porta e de aldeia em aldeia”635, chegando mesmo a interpelar a Corte, então
refugiada no Brasil, aonde se terá dirigido e de onde terá regressado com joias doadas
por D. Carlota Joaquina636. António de Vasconcelos dá viva nota do intrépido percurso
da beata.
Dirigindo-se no Porto a um comerciante rico, mas avaro, pediu-lhe uma esmola
para a construção do convento, que se propusera erguer. O comerciante achou
graça ao sonho pueril e irrealizável da pobre mendiga, e, para a despedir,
serviu-se duma fórmula que afinal correspondia a uma recusa: prometeu-lhe
que, quando ela tivesse o seu convento concluido de paredes, lhe daria toda a
telha necessária para a cobrir. Agradeceu, muito satisfeita, esmola tão
generosa, e disse que lhe viria dar aviso, quando tal ocasião chegasse.
Decorreram anos, e eis que um dia, não cogitando o comerciante em tal, nem
sequer se lembrando já do episódio da mendiga fundadora, lhe aparece esta a
participar que as paredes do convento estavam concluidas, e por isso lhe
lembrava a promessa feita. De bôa ou má vontade, cumpriu hornadamente a sua
635 Diamantino Antunes do AMARAL, op. cit., pp. 21-28.636 Vergílio CORREIA, Inventário Artístico..., Vol. II, p. 184. As joias doadas por D. Carlota Joaquinaterão, de acordo com o Inventário, sido aplicadas na execução de uma valiosa custódia. (Vd. A. NogueiraGONÇALVES, A Custódia de Vila Pouca da Beira, Porto, 1948).
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palavra, e deu esmola muito avultada, que chegou para os telhados de todos os
edifícios.
Quando o convento já funcionava, havia bastantes anos, precisou ela de
dinheiro para completar e adornar a magnifica igreja conventual: mais uma ve
resolve recorrer à côrte. Mas esta havia-se refugiado no Brasil: não hesita, vai
a Lisboa, consegue embarcar em um navio que se dirigia às terras de Santa
Cruz, apresenta-se ao príncipe regente D. João e à princesa D. carlota
Joaquina, que muito a estimaram, e regressa com largos donativos, entre os
quais algumas joias da princesa, a fim de serem aplicadas a uma custódia, para
as exposições do Santíssimo.637
Este relato de registo quase efabulatório parece, no entanto, não trair a realidade.
Em 1774, a beata compra as primeiras terras, cujos rendimentos dirige à fundação
monástica. No documento notarial, em que se diz moradora na cidade de Coimbra,
refere ter adquirido
duas terras no sitio de onegas, mais outra no citio das tigeirinhas, mais outras
duas a S. Joze mais outra no sitio do dospinheiro a Bernardo de Masedo mais
outra a sua cunhada Izabel no mesmo sitio mais dois olivais na corte sarrana,
mais outro no val do coval, mais outro no sitio das barrocas, hum soito no sitio
dado barqueiro, mais outro o asude Mendes mais outro no sitio do val do gogão
cujas confrontasoins constarão dos titulos que tenho no meu poder.638
Quanto à proveniência do dinheiro, esclarece ter provindo de
dinheiro que derão certas pesoas e aplicaraõ o dito dinheiro e as ditas
propriedades e os seus rendimentos para se dar prinsipio a um recolhimento
637 António de VASCONCELOS, "A árvore franciscana plantada e frutificada na Diocese de Coimbra",Coimbra, 1926, Estudos, 5, 1926, pp. 405-406.638 AUC, Convento do Desagravo de Vila Pouca da Beira, Escrituras de Capitais mutuados certidões demissas, provisões régias, testamentos, arrendamentos, certidões de pagamentos de sisa, etc.. A escritura,autógrafa, é de 21 de Outubro de 1774.
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que do instituto do Lourisal se pertende fazer na mesma minha terra de Vila
Pouca ou nas suas vezinhansas.639
Especificamente para as obras terão sido canalizados capitais provindos de "João
Luiz do Porto e as mais esmollas certas que vinhão de Lixboa Coimbra e mais partes
para ellas." João Luís seria, concluímos, o reticente mas benfazejo comerciante
portuense a cuja caridade Genoveva apelara640.
Mas o empenho da zeladora terá ido mais longe, assim como os seus frutos.
Genoveva terá comprado bens e juros para o convento a partir de doações de dinheiro e
de bens de raiz. Várias são as declarações que o atestam, referindo a posse de terras,
soutos, tapados, chãos, partes de soutos, entre outros641.
Uma vez erigido canonicamente o mosteiro, todos os bens arrecadados por
Genoveva transitariam para a abadessa. Uma declaração de 13 de junho de 1793 afirma,
com efeito, que Genoveva Maria
como Zeladoura que tem sido e he da obra do Convento do desagravo do
Santissimo Sacramento desta Villa tem feito varias compras e dado dinheiro a
Rezam de Juro com as esmollas e promessas que tem dado varias pessoas fieis
devotos pera a mesma obra os quais fazendas e juros ella dita Ginuveva Maria
do Espirito tem ademenistrado como Zeladoura do mesmo Conventoe por não
terem vindo as Relegiozas e agora como se acham no ospicio lhe emtregua
todos os bens a comunidade e Abadesa por seu procurador per a
ademenistrarem por suas pessoas do seu Procurador. 642
Pelo mesmo ato, a beata desiste da administração dos bens e, pouco mais tarde,
fica desobrigada dos encargos relativos à obra, que transitam para as religiosas. A
639 Idem, ibidem.640 Uma nota não assinada na declaração de Genoveva assim o diz, esclarecendo ainda que "depois que asreligeozas vieraõ que foi em 1791 a Genoveva naõ se metia com as obras nem pagava aos officiaes: massim as Religeozas pelo Procurados e Capellao o Pe. Joao Lopes".641 AUC, Convento do Desagravo de Vila Pouca da Beira, Genoveva-Declarações, Escrituras de Capitaismutuados certidões de missas, provisões régias, testamentos, arrendamentos, certidões de pagamentos desisa, etc. (AUC, III, 1D, 10, 1, 23).642 Idem.
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Genoveva Maria e a sua irmã, Josefa Maria Viegas, caberá, como contrapartida, o
usufruto perpétuo de determinadas propriedades643. Fica-nos a impressão de que o
protagonismo de Genoveva radique essencialmente no caráter mediador da sua ação. A
propósito, refere António de Vasconcelos:
Entretanto a bôa Genoveva, a santa e corajosa fundadora do mosteiro, vivia
pobre e humildemente abrigada à sombra da árvore que plantara, passando os
dias na igreja a assistir aos ofícios litúrigos e a rezar, ou sentada à portaria do
mosteiro a fiar na sua roca.644
Mas, diversamente do que expressa o autor, Genoveva Maria não terá ficado "à
sombra da árvores que plantara", pelo menos a atentar num pedido que dirige ao rei a
fim de estabelecer uma casa de educação em Vila Pouca da Beira. A provisão régia de
28 de setembro de 1818645, que autoriza a fundação, não esclarece, porém, o estatuto da
suplicante nesta nova empresa, mas não nos repugna pensar que tenha sido, uma vez
mais, de mediação646.
Por certo no afã, bem que legítimo, de enaltecer autor e obra, e na necessidade
de dar sentido a um fenómeno marcado por importantes lacunas de informação
histórica, se tenha incorrido num discurso que explora a polarização entre a
precariedade dos meios e a grandiosidade dos fins. Não se interpondo, como vimos,
totalmente à realidade, o relato anda longe, contudo, de a esgotar.
Impõe-se, antes de mais, esclarecer que a carência cultural da beata poderá ser
uma realidade, mas não o seu analfabetismo, como prova uma declaração em que de seu
punho assina, já que, confirma-o o tabelião, sabe ler e escrever A sua pobreza e
desproteção social são igualmente fictícias. Pertenceria, ao que consta, a família de
643 É procurador do convento Gaspar Afonso da Costa. O anterior tinha sido João Lopes da Costa, capelãodaquela comunidade. 28 de Outubro de 1794. A 28 de outubro de 1794, emite-se uma outra declaração (a4.ª) feita após provisão do bispo-conde, que ordena ao Cónego José Simões de visitar o ainda entãohospício das religiosas. (AUC, III, 1D, 10, 1, 23).644 António de VASCONCELOS, op. cit., pp. 407-408.645 ANTT, Registo Geral de Mercês, D. João VI, liv.13, fl.97v. A casa ficaria sujeita à administração doProvedor da Comarca da Guarda e, a 26 de abril de 1826, por portaria régia, submetida à jurisdição dobispo de Coimbra646 A provisão é precedida pela portaria régia de 22 de agosto de 1818.
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grandes proprietários da vila, detentores, alguns deles, de elevados cargos na Igreja,
Justiça, Administração concelhia, e mesmo no serviço régio647.
O conhecimento, tão acidental quanto feliz, das Memorias da Fundação do
Recolhimen.to e Convento do Dezagravo do Santissimo Sacramento de Vila Pouca da
Beira, manuscrito de arquivo privado datado de 1792, permitem-nos uma mais fiel
aproximação aos primórdios da fundação. Com base nele, várias ilações pudemos
extrair, atenuando, pelo menos em parte, as inconsistências que ressumam das
informações até hoje coligidas648.
A ligação de Genoveva Maria ao Mosteiro de Vila Pouca e a sua opção pela vida
religiosa será tudo menos espontânea e taxativa. Acometida de inexplicável inquietação
e insatisfação interior, abandonará a casa paterna com destino a Coimbra, onde será
hospedada pelo Reverendo Dr. Maurício Dias de Matos. Contaria, na altura, cerca de
vinte anos. No dia em que soa o desacato de Vila Pouca, encontra-se em Coimbra, o que
nos leva a duvidar da justeza da data apontada para a ocorrência do sacrilégio, 1743 e,
simultaneamente, da agudeza do sentimento que a jovem consta ter experimentado.
É invariavelmente em ambiente piedoso que em Coimbra se move: no Mosteiro
de Santa Clara tomará contato com o seu primeiro confessor, um religioso franciscano
que aí pregava na sequência do Terramoto de 1755. Será ele quem lhe diz: "E porque se
não recolhe? Se não tem meios, fale ao Senhor Bispo."649
Passará, mais tarde, à direção espiritual de D. José Sexto, cónego regrante de
Santo Agostinho do Mosteiro de Santa Cruz, falecido em odor de santidade. Por
intermédio de um padre do Seminário de Coimbra, conseguirá do bispo D. Miguel da
Anunciação a licença para ingressar em qualquer dos conventos da diocese.
Aspirando, no entanto, a vida penitente e despojada, é aconselhada pelo
confessor a recolher-se no Isento do Mosteiro de Santa Cruz, onde virá a permanecer
cerca de três ou quatro anos. Pelo mesmo confessor é incumbida de encontrar um local
647 Cfr. António Correia GÓIS; Francisco GÓIS (co-aut.), O Convento do Desagravo do SantíssimoSacramento (1780-1889), Vila Pouca da Beira, Junta de Freguesia de Vila Pouca da Beira, 2012, p. 79.648 As Memorias da Fundação do Recolhimen.to e Convento do Dezagravo do Santissimo Sacramento deVila Pouca da Beira, da autoria do Desembragador Francisco António Duarte da Foncesa MontenhaOliveira e Silva, cavaleiro professo na Ordem de Santiago, encontram-se anexas à obra supracitada deAntónio Correia Góis, a pp. 262-272. Sobre este documento, sem dúvida precioso, António Góis refereter sido "cedido por gentileza de Monsenhor Leal Pedrosa, Dr. Luís Batista, e convento do Louriçal." (Vd.GÓIS, op. cit. p. 82, nota 37).649 Memorias da Fundação do Recolhimen.to, fl. 7 v.
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para instalação de uma casa religiosa que um grupo de homens pretendia instituir para,
assim se escreve, "applacar a Ira de Deos"650.
Até ao momento, não se lhe pode assinalar qualquer ideário de vida comunitária
e, tanto menos, consignar-lhe qualquer iniciativa onde a Ordem a observar estivesse
longinquamente prevista. Aliás, esta última virá a ser explicitamente sugerida ao
confessor de Genoveva por um lente de Cânones, Dr. António José Correia. Diria o
próprio que "convinha tratar de huma Fundação com o Instituto do Louriçal onde se
choracem as maldades do mundo"651. Recordemos, uma vez mais, que naquele mosteiro
vivera Soror Maria Joana, a qual, pouco antes de morrer, vaticinara o Terramoto de
1755 e que a diocese de Coimbra se empenhava à época na beatificação desta e de uma
outra religiosa da casa, assim como na reabertura do processo de beatificação da
fundadora mística da Regra, Maria do Lado.
Na fundação proposta a Genoveva Maria, serviria de intermediário junto do
bispo o carmelita descalço Frei José Caetano, o mesmo que, nos anos 20 de Setecentos,
fora instituído como mediador entre D. João V e o Papa no âmbito da reativação do dito
processo canónico.
Genoveva terá estado 19 anos entre o Isento de Santa Cruz e o seu retiro de Vale
de Mó, próximo do Bussaco, aonde se dirigia pela Quaresma e Advento. Ao longo deste
período, conhecerá a perseguição do pároco do local, que inclusive a denunciará ao
Santo Ofício e, da mesma forma, a hostilidade de certa mulher, que ameaçaria mesmo
acusá-la ao Marquês de Pombal como fanática e embusteira.
A ideia do mosteiro parece, portanto, alheia às suas prioridades, vindo apenas a
ser considerada de forma consistente quando a beata torna a Vila Pouca, e,
curiosamente, não de forma espontânea, mas por sugestão de outrem, certo Roque
Eduardo de Abreu Castelo Branco, capitão-mor da vila. Genoveva concordará na
instituição de um recolhimento, para cuja construção destina o lugar de S. José, em
parte confinante com terrenos de que é proprietária. O assentimento de D. Miguel da
Anunciação não se faria, naturalmente, esperar. Preparado no campo religioso, o terreno
desbravava-se agora no plano material. Genoveva iniciaria então o processo de
angariação de fundos, seguramente mediado e aplanado pelos contatos que a longa
estadia em Coimbra lhe terá proporcionado. De fato, o retorno à terra natal não
significou a quebra de laços com Coimbra e com a ambiência religiosa que aí pulsava,
650 Ibidem, fl. 9 v.651 Ibidem, fl. 10.
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destacando-se no favorecimento desta continuidade Fr. Inácio de S. José, natural de Vila
Pouca da Beira e anteriormente residente em Coimbra652. Sobre ele recaíram as
primeiras diligências com vista à fundação, o estabelecimento de uma comunicação
privilegiada com D. Miguel da Anunciação e, inclusive, a escolha do arquiteto
responsável pelo risco do edifício monástico, Fr. Francisco de Jesus Menino, irmão
leigo do não longínquo convento franciscano do Senhor Santo Cristo da Fraga.
Ignorada pelo pecúlio bibliográfico até agora oficial está também a mística que
envolveu grande parte destes antecedentes fundacionais, onde natural e sobrenatural
caminham novamente lado a lado. Dos muitos exemplos que caberia enunciar, citemos
apenas dois: estando Genoveva em Coimbra, encontra inesperadamente certa quantia de
dinheiro no chão da casa que habita. A conselho do confessor, doa-a aos pobres. A
soma, porém, mesmo que distribuída com a maior liberalidade, acaba por sobrar,
permitindo a compra do terreno da casa. Já em Vila Pouca, o licenciado João Viegas,
presbítero secular e parente da beata, sendo grande devoto de umas imagens da capela
sobre a qual se viria a edificar o cenóbio, terá muitas vezes anunciado à população que
aí se dirigia: "Vocês ahinda hãode ver aqui couzas grandes!"653.
O itinerário da devota e, por ele, os destinos do mosteiro, encontram-se
fortemente entretecidos pela conjuntura moral e política do reino de que emerge,
evidentemente, a Jacobeia. Foi no seio desta reforma, da prisão do bispo de Coimbra,
enfim, da turbulência religiosa que acompanhou o governo do Marquês de Pombal, que
vemos surdir a identidade religiosa de Genoveva. E, nesse contexto, coube-lhe um papel
ativo, não apenas pelas iniciativas que, de motu proprio, empreendeu, quanto pelas
missões de que foi investida.
Obra de vários autores, fruto da convergência de várias vontades e de diferentes
motivações, o Mosteiro de Vila Pouca não deixaria de ser devedor a Genoveva Maria,
cuja memória não parece, estranhamente, ter ecoado substancialmente no interior da
fundação, onde a aparente ausência de referências ou representações imagéticas da beata
assinala uma truncatura num discurso que se pretenderia coerente.
652 Será este o primeiro confessor do mosteiro.653 Memorias da Fundação do Recolhimen.to fl. 6 v.
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3. 3. Uma longa história fundacional
Quando surge, em ou através de Genoveva Maria, a intenção de fundar, de que
beneficiaria Vila Pouca da Beira? Pequena freguesia do concelho de Oliveira do
Hospital, distrito e bispado de Coimbra, situada em local isolado, entre as Serras da
Estrela e do Açor, Vila Pouca seria destituída de qualquer visibilidade654. Fá-lo
inclusive notar o autor do Portugal Antigo e Moderno, que refere exclamativamente que
"Na Chorographia Portugueza, na Geographia Historia de Lima e no Por. S. e Profano
nem o titulo d'esta parochia se encontra!" Na mesma linha, prossegue: "O Flaviense
deu-lhe 126 fogos em 1852 - e J. A. d'Almeida 131 em 1866."655
As memórias paroquiais referem não existirem conventos na freguesia, nem
tampouco Misericórdia. Como templos, contar-se-ia apenas a igreja paroquial, "pequena
e humilde", uma capela pública da invocação de S. Miguel e uma outra particular656. O
mosteiro instituído por Genoveva instalar-se-ia, portanto, em terra de erma periferia.
Não cremos ter sido fruto de uma necessidade coletiva ou geral emitida por uma voz
individual, o que, no entanto, não desmerece o valor moral e social de que viria a
usufruir. De fato, a dar como certa a opinião de Pinho Leal, a casa passaria a representar
um marco da identidade local, que ficaria irremediavelmente associada à figura
veneranda de Genoveva Maria e à dinâmica impressa pelo cenóbio. "O edificio mais
notavel d'esta parochia é o convento" ditará o autor, anotando ainda ser a igreja "ampla,
majestosa e muito bem tractada"657.
Quando, em dezembro de 1779, a Câmara, Nobreza e Povo de Vila Pouca da
Beira requerem à rainha licença para a fundação monástica, a maior parte dos bens
necessários estaria certamente já arrecadada. Na autorização de D. Maria I, dada em
documento de finais de 1779 e ratificada por provisão de 24 de Fevereiro do ano
seguinte658, fica claro estarem reunidas as condições necessárias à fundação. Não só o
654 Pinho LEAL, op. cit., p. 910. Em 1840, pertencia ao concelho de Avô, extinto em 1855, vindonovamente a passar ao de Oliveira do Hospital. A povoação estava na margem direita do rio Alva.Banhavam-na três pequenos ribeiros: Cal, Corga e Pombal.655 Diccionario geographico das provincias e possessóes portuguezas no ultramar; em que se descrevemas ilhas, e pontos continentae que actualmente possue a corôa portugueza, e se dão muitas outrasnoticias dos habitantes, sua historia, costumes, religião e commercio, Porto, Tipografia de Sebastião JoséPereira, 1852, p. 249.656 Pinho LEAL, op. cit., p. 910.657 Idem, ibidem.658 ANTT, Chancelaria de D. Maria I, Lv. 14, fls. 256 v – 257.
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motivo e a bondade da pretensão estavam satisfeitas, quanto o plano material
assegurado. Oferecia-se, pois,
a capela, o seu adro e rossio que serviam para a área do convento e igreja; que
mais se ofereciam as propriedades a ela contíguas, para a cêrca, hortas e
pomar com bastantes águas para os ministérios do convento e cêrca.
Além disso, a obra beneficiaria de avultadas ofertas. De fato, para a
fatura da mesma obra se ofereciam todas as madeiras de graça, como também
de graça todo o carreto da pedra que se achava no mesmo sítio; e para a
manufactura da obra se ofereciam muitas e avultadas esmolas que se achavam
prometidas de pessoas pias e abonadas que estavam prontas para as entregarem
havendo licença minha para se fazer a obra.
Quanto ao fundo, que poderia ser futuramente aumentado, oferecia-se, para o
iniciar, treze mil e quinhentos cruzados "em fazendas e dinheiro". E, para a sustentação
das irmãs, davam-se "côngruas vitalícias que as mesmas deviam levar de suas casas" e
uma "esmola de cincoenta mil reis para os gastos da igreja e sacristia."659
O processo parecia correr célere. Embora a vida em comum remontasse a 1777,
conforme uma relação dos gastos do cenóbio leva a concluir660, a 5 de maio de 1780,
uma escritura consagrava a "doação irrevogável que fazem a Câmara, Nobreza e mais
Povo deste concelho de Vila Pouca, da cedência da Capela de São José, com suas áreas
e mais pertences, móveis e terreiro, na mão de Genoveva Maria do Espírito Santo."661 A
18 de agosto de 1780, o bispo-conde concedia licença para que se desse início à obra
segundo planta previamente aprovada662. Pouco depois, a 6 de outubro do mesmo ano,
659 ANTT, Chancelaria de D. Maria I, Lv. 14, fls. 256 v – 257.660 Diamantino AMARAL, op. cit., p. 23.661 Escritura de doação que faz a Câmara, Nobreza e Povo de Vila Pouca da Beira, na mão da ZeladoraGenoveva Maria do Espírito Santo, para o Convento a fundar naquela vila. (AUC, Convento doDesagravo de Vila Pouca da Beira, Genoveva-Declarações, Escrituras de Capitais mutuados certidões demissas, provisões régias, testamentos, arrendamentos, certidões de pagamentos de sisa, etc.).662 Provisão de 18 de agosto de 1780 (AUC, Convento do Desagravo de Vila Pouca da Beira, Genoveva-Declarações, Escrituras de Capitais mutuados certidões de missas, provisões régias, testamentos,arrendamentos, certidões de pagamentos de sisa, etc.).
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lavrava-se escritura de arrematação e fiança da obra do convento entre Genoveva Maria
e o mestre de obras João da Silva e seus companheiros663. Entretanto, uma concessão
régia permitia o noviciado de recolhidas de Vila Pouca no Mosteiro do Louriçal, "para
nele se educarem no costume da religião"664.
Contudo, entre este primeiro surto de diligência e a ereção canónica do cenóbio
cerca de uma década mediaria. Com efeito, só a 27 de maio de 1791 uma provisão do
bispo-conde D. Francisco de Lemos Faria Pereira Coutinho autorizava, a fim de dar
início à fundação de Vila Pouca, a saída do Mosteiro do Louriçal de Soror Maria
Bárbara, Soror Maria do Lado, Soror Maria da Sagrada Família, Soror Maria de Santa
Rita e de quatro noviças. Madre Maria Bárbara era nomeada fundadora e as noviças -
Mariana do Lado, Maria do Sacramento, Maria do Coração de Jesus e Maria de Nossa
Senhora -, admitidas a tomar hábito. A 29 de setembro de 1791 tem início a vida
clausurada, embora não ainda no edifício monástico, que não se encontraria terminado,
mas num hospício provisório.
Uma petição, certamente antecedente da dita provisão, que a Câmara e Nobreza
de Vila Pouca da Beira dirige ao bispo, esclarece que
para as Religiozas habitarem emquanto senão completa o dito Convento, [se]
tem preparado hum bom Hospicio, com sua Capélla, e Cerca murada com todos
os trastes necessarios, assim para os cultos Divinos, como par aa comodidade
temporal das Religiozas com toda a decendia, e resguardo, como consta da
revista, que no mesmo Hospicio se mandou fazer pelo Juizo Ecleziastico.665
Os entraves que o processo fundacional conheceria não estão relacionados com a
vontade régia, mas, curiosamente, com a avaliação episcopal. A ele cabia, de acordo
com o Concílio de Trento e com as constituições sinodais do bispado de Coimbra aferir
da exequibilidade da fundação, que, aliás, iria caber no âmbito da jurisdição diocesana.
663 AUC, Convento do Desagravo de Vila Pouca da Beira, Genoveva-Declarações, Escrituras de Capitaismutuados certidões de missas, provisões régias, testamentos, arrendamentos, certidões de pagamentos desisa, etc.664 Idem, ibidem, p. 18665 Petição da Camara e Nobreza de Vila Pouca da Beira ao Bispo, s/data (AUC, Convento do Desagravode Vila Pouca da Beira, Genoveva-Declarações, Escrituras de Capitais mutuados...)
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O acordo que, num primeiro momento, D. Francisco de Lemos Faria Pereira
Coutinho concedeu foi estranhamente seguido pela reserva de quem o viria a substituir.
Reserva essa que, de igual modo, parecia pôr em causa a ascendência decisória da
rainha, que havia autorizado o estabelecimento e que, por beneplácito, nomeara as suas
canónicas fundadoras666.
O processo de avaliação das condições de fundação mereceria parecer favorável
do promotor João António de Sousa Negrão, que em relatório informará que as
"suplicantes satisfizeram todos os requisitos faltando o risco da obra que está sendo
elaborado"667. É na passagem dos autos para a Câmara Eclesiástica que se verificará o
embargo. Duas circunstâncias poderão estar na base desta inflexão: o bispo-conde
delega no Doutor Manuel de Jesus Pereira, provisor do bispado, a resolução dos
assuntos relativos à fundação e o promotor João António de Sousa Negrão é substituído
no cargo que ocupa pelo Desembargador Bernardo Pessoa Varela de Faria668.
Em causa estava a sustentação do mosteiro, que dos autos resultava instável ou
deficitária. À circunstância de se tratar de uma comunidade feminina, somava-se a
distância de núcleos populacionais que pudessem prover-lhe ao sustento. Toda a sorte
de incongruências processuais, e outras, seria destacada. Do aturado escrutínio
exercitado pelo cabido, salientava-se a incoerência entre a revisão de receção de dotes e
a obediência a uma Regra que à partida os dispensava. A questão era, efetivamente,
pertinente: as religiosas não pretendiam apenas construir um convento, mas sustentar
também a sua comunidade, o que contrastava com a anunciada pretensão de fundar um
instituto em altíssima pobreza, onde não houvesse bens em comum ou nem rendas
vitalícias, mas apenas as esmolas dos fiéis669.
Entretanto, D. Maria I reveria a cláusula, contida na provisão de licença para
fundação, segundo a qual o fundo do mosteiro deveria converter-se em padrões de juro
reais ou na construção de casas nas ruínas de Lisboa, permitindo, por provisão de agosto
666 A 24 de julho de 1780, a Câmara pede a nomeação de uma terceira fundadora, Soror Maria do Lado.Nessa altura, as obras do hospício já se encontram realizadas, dispondo o mesmo de condições paraclausura.667 Relatório do promotor, que refere que os "suplicantes satisfizeram todos os requisitos faltando o riscoda obra que está sendo elaborado". (AUC, Convento do Desagravo de Vila Pouca da Beira, Genoveva-Declarações, Escrituras de Capitais mutuados...).668 Em outubro de 1782, o promotor João António de Sousa Negrão seria substituído no cargo peloDesembargador Bernardo Pessoa Varela de Faria. Como faz notar Diamantino Amaral, "com a mudançadas pessoas que haviam de resolver os assuntos, mudou também o modo de apreciar as questões."(AMARAL, op. cit., p. 23).669 Diamantino AMARAL, op. cit., p. 101 e ss. Remete para Relação dos Título juntos aos inquérito de13 de maio de 1783 (AUC, Convento do Desagravo de Vila Pouca da Beira, Documentos diversos).
194
de 1783, a manutenção de tal fundo em bens de raiz670. No entanto, o desbloqueio da
situação dar-se-ia apenas em 1791, novamente por mãos de D. Francisco de Lemos, que
autorizaria o ingresso das fundadoras mesmo antes de perfeito o fundo monástico671.
670 AMARAL, op. cit., pp. 27-28. A licença para a fundação, transcrita na obra referenciada, consta daChancelaria de D. Maria I, Lv. 14, fls. 256 v - 257.671 A provisão do bispo-conde D. Francisco de Lemos Faria Pereira Coutinho, deferindo o ingresso dasreligiosas no Hospício de Vila Pouca, tem a data de 27 de maio de 1791 (AUC, Convento do Desagravode Vila Pouca da Beira, Genoveva-Declarações, Escrituras de Capitais mutuados...).
195
3.4. Da fundação ao ocaso. Retalhos de uma vida breve e atribulada
A 29 de setembro de 1791 dava-se início à vida comunitária com o ingresso das
religiosas no hospício que, até 3 de maio de 1801, data em que transitariam para o novo
edifício, lhes terá precariamente servido como sede672. Já nas instalações provisórias se
denunciavam, porém, dificuldades internas acentuadas. Não por outra razão, a então
abadessa, Soror Maria Bárbara, pede para que as noviças que aí se encontram possam
professar aos seis meses de noviciado, já que, para além de si, se contavam apenas três
outras religiosas professas, e
porque as ditas Religiozas são poucas, e já de idade avançada, e com alguns
achaques que as impocibilitaõ para idoniamente suprirem os Cargos, e
Ministérios da Religião no que padecem graves imcomodos assim no temporal
como prejuizos e decadencia no espiritual, e observancia das Leys prescritas.673
O pedido seria deferido pela Câmara Eclesiástica. Da mesma forma, e ao
contrário do que rezavam os Estatutos, as religiosas entravam com dote674.
Aos rigores materiais far-se-iam corresponder os rigores ditados pela obediência
às Constituições, como bem refere o bispo-conde de Coimbra, D. Manuel de Bastos
Pina, que, a respeito da visita pastoral realizada em 1875, não se coíbe de desabafar:
Assim, pois, n’estes tempos de frio egoismo, e quási só de gozos e prazeres
materiaes e de interesses mundanos, são summamente consoladores,
enternecem e edificam tamanhos prodigios de abnegação, de caridade e de
heroismo, que só a religião sancta de Jesus Christo é capaz de inspirar: e nós
damos a Deus muitas graças por nos conceder a mercê de termos nas terras da
Beira, que constituem a parte maior do nosso Bispado, um convento tão
venerado pelos Fieis, e que é um verdadeiro modelo na perfeição da vida
672 Termo da Mudança e Tresladação das Religiozas (AUC, III, 1D, 10, 1, 23).673 Aprezentação de hum indulto Apostolico, para no Convento de Vila pouca da beira poderem professaraos seus mezes de Noviciado as Noviças declaradas na Supplica, debaixo da condição do mesmo Indultoexpreça, 26 de março de 1792. (AUC, III, 1D, 10, 1, 23).674 Conta dos dotes q. se tem recebido das Relig.as q. vierão p.ª esta Fundação (AUC, III, 1D, 10, 1, 23).
196
religiosa e na practica das virtudes christãs, cuja fragrancia se derrama por
todos aquelles contornos, com proveito assás conhecido para a conservação dos
bons costumes, para o bem dos proximos e para a salvação das almas.675
Faz ainda notar, sublinhando a "abnegação e dedicação sublime e quase sobre-
humana" da comunidade, que
não se compreende nem se acredita hoje no século que estas senhoras, quase
todas velhas, e com quatro doentes e de todo impossibilitadas, levem a
abnegação e a piedade a ponto de cumprirem com o máximo rigor as
obrigações todas do seu santo instituto [...]. Para descansarem e se confortarem
de tantos trabalhos, fadigas e vigílias têm apenas para habitação uma casa em
um país frio, exposta aos rigores do norte, húmida, muito velha, crivada de
buracos e sem conforto de qualidade algum [sic], a não ser a enfermaria; para
a alimentação, comida de magro todo o ano, jejum quase sempre e pão e água
para a ceia, para vestuário, um hábito de burel sobre o corpo, atado na cinta
com um cordão de S. Francisco e um pano preto por cima da cabeça e da cara,
tanto de Verão como de Inverno; para dormida uma pequena cela com uma
grande cruz de madeira, algumas tábuas nuas postas sobre dois bancos, uma
coberta de burel e um cepo com uma cavidade no meio, onde reclinam a
cabeça; e para recreio e distração, a penitência e o silêncio contínuos.676
Aparentemente anacrónicas, as condições extremas descritas seriam, afinal, o
melhor argumento contra o estiolamento moral do tempo, revestindo-se, por isso
mesmo, de eminente utilidade. Assim o lemos no discurso do antístite, que exclama ser
o convento
675 Carta citada por Pinho LEAL, Portugal Antigo e Moderno, Vol. XI, Lisboa, Livraria Editora de MattosMoreira & Companhia, 1886, pp. 910-913.676 A carta do bispo-conde encontra-se transcrita por Pinho LEAL, op. cit., pp. 910-913. Veja-se também,sobre a mesma, António de VASCONCELOS, A árvore franciscana plantada e frutificada na Diocese deCoimbra, Coimbra, 1926, Estudos, n.º 5, 1926, pp. 385-440 e RAMOS, António de Jesus RAMOS, Obispo de Coimbra D. Manuel Correia de Bastos Pina, Coimbra, Gráfica de Coimbra, 1995, pp. 304-307.
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tão venerado pelos fiéis e que é um verdadeiro modelo na perfeição da vida
religiosa e na prática das virtudes cristãs, cuja fragrância derrama por todos
aqueles contornos, com proveito assaz conhecido para a conservação dos bons
costumes, para o bem dos próximos e para a salvação das almas.
Querido pelo povo, o mosteiro beneficiaria outrossim da estima dos bispos de
Coimbra e de pessoas de elevada condição. A D. Francisco de Lemos se deve a doação
de grande parte do vestuário litúrgico e de várias alfaias, entre as quais um inventário
elenca: um cálice de prata, um turíbulo de prata com naveta e colher, duas chaves de
prata do sacrário, uma coroa de prata da Senhora do Patrocínio, uma banqueta de
madeira dourada, um Cristo de Marfim e seis castiçais de casquinha branca677.
Sucedendo a D. Francisco na sede episcopal, D. Manuel de Bastos Pina irá
suceder-lhe, senão exceder-lhe, no zelo por aquela casa religiosa. Chegará a invocar
haver "declarado a estas religiosas que elas nunca teriam fome enquanto o seu pastor
tivesse alguma coisa"678. É ele quem oficia ao Ministério dos Negócios Eclesiásticos
dando conta da situação a que as religiosas se encontravam reduzidas e que se bate por
que o governo garanta às freiras um subsídio anual "com que pudessem atender às suas
necessidades sem precisarem de esmolas"679. Em carta ao cabido de Coimbra, refere
mesmo que
Todas estas coisas referimos e expusemos nós ao ministro dos Negócios
Eclesiásticos, e tencionamos chamar em tempo oportuno a atenção [...] para
esta casa religiosa, que, embora um pouco mais remediada hoje, ainda vive de
esmolas, e em tempo já chegou a tais apuros, que as religiosas se alimentavam
de leitugas e saramagos!
Da esfera cortesã, não menores foram as atenções. Começariam com D. Maria I,
como acima deixámos dito, e prosseguiriam com D. Carlota Joaquina, que ao mosteiro
677 Fundação Bissaya-Barreto, Mosteiro do Desagravo de Vila Pouca da Beira, Arrolamento e Inventáriodos Bens da Igreja da Paróquia de Vila Pouca da Beira. Concelho de Oliveira do Hospital. Distrito deCoimbra., doc. de 6 de dezembro de 1915., p. 2 e pp. 6-7.678 Cfr. António de Jesus RAMOS, O bispo de Coimbra D. Manuel Correia de Bastos Pina, Coimbra,Gráfica de Coimbra, 1995, p. 306.679 Cfr. Idem, ibidem.
198
deixaria algumas das suas joias para serem aplicadas na custódia principal680. Não
cessando com o decreto liberal de extinção das Ordens Religiosas, teriam ainda
expressão no alvará de 16 de Junho 1840, em que D. Maria II toma debaixo da sua real
e imediata proteção o cenóbio de Vila Pouca.
Possivelmente não isolado no seio da nobreza cortesã, foi o caso de D. Joana
Bernarda de Sousa Lencastre e Noronha, 11.ª Marquesa das Minas, a expensas de quem,
supõe-se que em cumprimento de um voto, no "exemplarissimo Convento de Villa
Pouca da Beira se faziaõ cinco festas annuaes de Desaggravo"681.
Mas a estima que uns dispensavam, mesmo que revestida de amplo poder
temporal e espiritual, não logrou vingar sobre o efeito, adversativo, das medidas
governamentais de feição anti-congreganista. O mosteiro seria fruto e presa das
contradições do seu próprio tempo.
Antes ainda da legislação liberal, e cerca de uma década passada sobre o início
da vida comunitária no novo edifício monástico, a comunidade será fortemente abalada
pela Invasões Francesas. Significativamente, será a partir de então que os registos
paroquiais assinalam o enterramento na igreja monástica de pessoas que não apenas
confessores, capelães e sacristãos do cenóbio. Um dos livros de óbitos da freguesia de
Vila Pouca da Beira regista, com data de 31 de janeiro 1852, uma sepultura no
"Cemiterio do Convento deste Lugar"682.
Sem possibilidade de se renovar em virtude da inibição de emissão de votos,
decretada em 1833, a comunidade extinguia-se a 2 de Julho de 1889683 na sequência do
falecimento da sua última professa. Desafetado, o espaço monástico seria ampliado e
adaptado a hospital civil. Mais tarde, por volta de 1928, nele se instalaria o Posto
Agrário do Alto Mondego, que, porém, em 1935 se extinguia. Após um incêndio que
viria a afetar parte da antiga estrutura monástica e da igreja, o espaço acolheria um
680 Vergílio CORREIA, op. cit., p. 184. As joias doadas por D. Carlota Joaquina terão, de acordo com oInventário, sido aplicadas na execução de uma valiosa custódia. (Vd. A. Nogueira GONÇALVES, "ACustódia de Vila Pouca da Beira", Porto, 1948).681 Fortunato de SÃO BOAVENTURA, Oração sagrada nas exéquias da Sra. D. Joana Bernarda deSousa Lencastre e Noronha, Lisboa, Tipografia de Bulhões, 1827, p. 32, nota de rodapé. Numa oraçãofúnebre pregada no Conventinho Novo de Lisboa, onde seria sepultada, fica patente a sua dedicação aosmosteiros desta observância. Diz-se, pois, que “No exemplarissimo Convento de Villa Pouca da Beira sefaziaõ cinco festas annuaes de Desaggravo, á custa da Excellentissima Sra.ª Marqueza, que pedia humsegredo inviolável, que forçosamente se revelou depois da sua morte [...].”682 A 21 de junho de 1812 é sepultado na Igreja do Convento das Religiosas João de Abranches (AUC,Registos paroquiais, Mistos, Lv.2, Vila Pouca da Beira, 1812, fl. 56 v.). Mesmo anteriormente, em 21 defevereiro de 1804, José Inocêncio Soares de Brito é enterrado na igreja das religiosas (AUC, RegistosParoquiais, Mistos, Lv. 2, Vila Pouca da Beira, 1804, fl. 49).683 Cfr. Diamantino Antunes do AMARAL, op. cit., p. 49.
199
colégio de religiosas doroteias que, encerrado em julho de 1939, daria lugar, poucos
anos mais tarde, a um recolhimento de religiosas dominicanas contemplativas. Em
1952, o edifício dava sede à colónia de férias "Ar e Sol"684, passando no presente, e
após vicissitudes outras, a albergar uma unidade hoteleira inserida na rede Pousadas de
Portugal, integrando o grupo das Pousadas Históricas685.
684 A Fundação Bissaya-Barreto aí se instalaria entretanto.685 A respeito das alterações mencionadas, veja-se a documentação patente na Fundação Bissaya-Barretorelativa ao mosteiro.
200
3.5. Entre hospício e mosteiro: duas obras, uma vocação?
A configuração definitiva do mosteiro espelha, de forma mais ou menos direta
ou mais ou menos verosimilhante, o processo histórico da sua fundação, embora a sua
reconstituição teórica venha antes de mais interpelar as transformações aportadas pela
sua supressão e desafetação. É, portanto, na leitura do vestígio/fragmento e da nota
história e documental - também ela fragmentária e residual - que tentaremos responder
ao que foi e ao que quis ser o Mosteiro do Desagravo de Vila Pouca da Beira.
Sobre a planta que, em agosto de 1780, a provisão do bispo-conde D. Francisco
de Lemos de Faria Pereira Coutinho considerava aprovada, poderemos aventar tratar-se
do risco presumivelmente executado por Frei Francisco de Jesus Menino, embora não
possamos asseverar ter sido esse suposto traçado a presidir ao edifício cuja primeira
pedra em maio de 1791 se lançava. Seja ou não assim, quando, a 3 de maio de 1801, as
religiosas ingressaram no mosteiro, as obras estariam por concluir, como afere a
visitação então realizada686. Espaços inconclusos e provisórios seriam ainda notados em
visita pastoral de 24 de agosto de 1815687, que anota não estar ainda pronto o
comungatório da capela-mor e dever ser alteado em "cinco palmos" o muro da botica
que, considerado baixo, não propiciaria a correta observância da clausura688. Já na alba
da extinção, em cerca de 1885, o abade de Miragaia noticiava que, apesar da sua
amplitude, suficiente para "numerosa comunidade", o "edifício ficou incompleto"689.
Não só ficou incompleto o edifício, como não foi o único a cumprir as funções
de cenóbio das religiosas do Desagravo. Com efeito, a vida cenobítica iniciara-se antes
mesmo de 1780 no assim designado hospício onde o Instituto do Louriçal terá quase
desde o início servido de Regra. Nele ingressariam, a 29 de Setembro de 1791, oito
religiosas provenientes do mosteiro louriçalense, instituindo supostamente a vida
monástica em moldes estritamente canónicos. Diferentemente informadas pelo padrão
de vida regular, hospício e mosteiro constituem porventura interpretações de um ideário
espiritual em evolução.
686 Cfr. Auto de Vestoria no Convento Novo de Vila Pouca (AUC, III, 1D, 10, 1, 21-2).687 AUC, Convento de Vila Pouca da Beira, Livro dos Capítulos das Visitas no Convento do Desagravodo Santissimo Sacramento de Vila Pouca da Beira, 1815.688 AUC, Convento de Vila Pouca da Beira, Livro dos Capítulos das Visitas no Convento do Desagravodo Santissimo Sacramento de Vila Pouca da Beira, Visita de 24 de agosto de 1815.689 Pinho LEAL, op. cit., p. 910.
201
Enquanto recolhimento provisório, o hospício terá ficado à margem do circuito
artístico que, tendo por eixo a Corte, passaria, de algum modo, a unir as diversas
fundações da observância. No entanto, ao sediar a vivência da Regra, passou a dar dela
legitimador testemunho. No espetro oposto, o mosteiro alinhou-se com as correntes
artísticas de finais de Setecentos, na charneira entre Rococó e Neoclássico, e à estética
cultivada no reduto cortesão. Mas enquadrou-se também numa diocese onde a arte
monástica de clarissas pontificava em mosteiros como Lorvão, Ceiça, Santa-Clara-Nova
e Louriçal. E, por outro lado, entroncou com a arte praticada na região que, não
oferecendo uniformidade nem sendo atribuível a "uma única lareira", nas palavras
vivazes de Túlio Espanca, seria "aquecida principalmente pelas chamas do foco
coimbrão", e simultaneamente acalentada por "outros fogos da ambiência beiroa."690
O hospício, tornando a ele, tem interesse não apenas porque local de
acolhimento de uma experiência comunitária, mas também porquanto preexistência de
uma experiência que viria posteriormente a constituir-se, por muito que em diferente
sede. A visita que, em 22 de agosto de 1782, o comissário do bispado efetua ao local
oferece-nos uma eloquente descrição daquele que qualificaríamos como sucedâneo
provisório do Desagravo de Vila Pouca.
Aberto por porta pública, o oratório, "pequenino", encontrava-se bem "forrado e
caiado". No seu interior, o altar apresentava frontal de madeira entalhado e dourado "de
huma parte com pinturas de festa, e da outra pintado de cor roxa para o tempo do
Advento, e Quaresma". Esse mesmo altar teria banqueta de talha dourada, sobre a qual
estavam o sacrário, píxide, castiçais pequenos, dois de lata amarelos novos e dois de
estanho já usados, uma imagem de Cristo crucificado "mui devota com seu Resplendor
de prata", de São João Batista, de São Vicente Ferreira e uma, de menores dimensões,
representando Nossa Senhora da Conceição. A mesma banqueta servia de suporte a
duas "laminas primorozas", uma representando a Virgem e a outra a Verónica. Sobre a
dita banqueta abria-se um nicho, "sufficientemente guarnecido, e pintado", onde
assentavam as imagens, também "mui devotas", estofadas e encarnadas, de Jesus,
Maria, José. De ambos os lados do nicho, abria-se um outro mais pequeno, a que faltava
ainda a pintura, e onde figuravam as imagens de São Francisco, do lado do Evangelho, e
de Santo António, da parte da Epístola, "bem estufadas, e encravadas". Entre as alfaias
litúrgicas e objetos de culto que a descrição engloba, refiramos uma "Custodia de prata
690 Vergílio CORREIA, António Nogueira GONCALVES, Inventário Artístico de Portugal, Distrito deCoimbra, 1953, p. 11.
202
profumada de ouro feita á Romana, e primorozamente lavrada" e - curioso pela
evocação do cofre de prata de Santa Engrácia, de tão semelhante descrição - "hum cofre
piqueno de tartaruga fina por fora exarvado cor de pérola por dentro com sua chave, e
fechadura de prata". Ao oratório não faltava comungatório e "hum raro" para
confessionário. A comunicação como uma incipiente clausura seria feita por vão onde
"ficam os crivos que hão de servir de grades do coro". Talvez anexa à capela, ficaria
uma "cazinha pequenina" para aí "se comfessarem, e comungarem as religiozas", e
outra, contígua, servindo de sacristia. Próxima à mesma capela e separada desta por
"raros, ou crivos", uma outra divisão se desenvolvia.
Doze celas, refeitório, cozinha com chaminé, despensa, casa da roda e "casa de
commuas" compunham, de resto, o modesto hospício, a que não faltava uma pequena
cerca tapada com "bons muros, fortes e altos" que albergava no interior duas casas
térreas boas para acomodação de víveres691.
O estado da casa que, durante cerca de três décadas serviu de habitação
provisória às religiosas, legitimaria, na descrição que dele se faz, a pretensão das
religiosas a uma radical mudança de instalações. No decurso da visita pastoral realizada
ao novo mosteiro, a 13 de abril de 1801, o primitivo cenóbio é dado como espaço
lúgubre, onde as irmãs vivem em "grande consternação", porquanto "parte delle se acha
arruinado, e em outros sitios ameaçando grave ruina"692.
Apesar de argumentar a favor da mudança, a ruína, em si mesma, não a terá
implicado. O edifício, conquanto configurasse uma casa de clausura, fora concebido
como provisório, além de que, pelas próprias dimensões - lembremos a lotação da
comunidade -, não se poderia adequar à vivência dos Estatutos do Louriçal, nem poderia
reivindicar, pela sua pobreza material, o estatuto de casa de proteção régia que timbrava
as fundações do Desagravo. O seu recheio, além disso, não nos permite estabelecer um
nexo consistente com a espiritualidade específica da observância, por mais que a
imagem de São Francisco possa denunciar a ascendência franciscana e o cofre de
tartaruga indiciar hipoteticamente uma evocação do desacato de 1630.
O hospício instituído por Genoveva Maria mostrava-se, contudo, consentâneo
com os objetivos para que havia sido criado e, assim nos parece, com o contexto em que
se inseria. Talvez não casualmente tenha acolhido no nicho central do altar-mor do
691 Cfr. Auto de Vestoria no Convento Novo de Vila Pouca (AUC, III, 1D, 10, 1, 21-2).692 Ibidem, fl. 2.
203
oratório, as imagens de Jesus, Maria, José, evocando uma antiga devoção local - a qual
aliás, o mosteiro haveria igualmente de secundar.
É incerto o destino desta sede provisória. Ao referir-se à empresa construtiva,
António de Vasconcelos refere:
A construção ia-se fazendo pouco a pouco, à medida que as esmolas o
permitiam. Edificou-se primeiro uma casa, que havia de servir para residência
do capelão e para hospício ou hospedaria; e entretanto iam subindo
morosamente as paredes das casas destinadas à clausura. Decorria então o
último quartel do século XVIII.
Pouco depois, esclarece:
Cêrca de dez anos se conservou a comunidade na instalação provisória do
hospício. A primeira admissão de noviças, feita já na casa própria, foi a 29 de
junho de 1801. A mudança pois realizara-se entre o meados de 1799 e o meado
de 1801. 693
Esta reconversão do hospício em hospedaria, estrutura ainda hoje materialmente
identificável, não parece levantar dúvidas. Sabemos, contudo, que Genoveva Maria
instituiu em 1818 uma casa de educação em Vila Pouca da Beira. Teria ela aproveitado
a antiga construção, auspicando aumentá-la? Uma visita pastoral realizada a 27 de
janeiro de 1835 dá conta de que a casa tinha dívidas, estava em muito mau estado e não
se encontrava sequer acabada. A capela não conheceria "estado de nella se cellebrar o
Santo Sacrificio da Missa", o segundo piso, estaria apenas "meio solhado" e o fumo da
cozinha devassava quase todas as divisões. O primeiro andar, ainda que dispondo de
693 António de VASCONCELOS, A árvore franciscana plantada e frutificada na Diocese de Coimbra,Coimbra, 1926, Estudos, 5, 1926, p. 406.
204
"boas grades de ferro", não tinha vidros nem compartimentos. E, enfim, o que estava
feito era "hum terço da obra que se tinha em vista fazer".694
694 "Auto de Vezitação da Caza d'Educação de meninas de Villa Pouca da Beira na forma da ordem daIllustrissima e Reverendissima Junta, ao diante junta" (AUC, Convento do Desagravo de Vila Pouca daBeira, Livro dos Capítulos de Visitas no Convento do Desagravo do Santissimo Sacramento de VilaPouca da Beira, 1815; AUC, III, 1D, 10, 1, 21).
205
3.6. O mosteiro: arquitetura e património integrado
Diferente seria a configuração do mosteiro, já erguido sob o influxo da proteção
régia e do empenho firme do episcopado. Surgiria no sítio chamado de S. José, em
terrenos onde anteriormente se situara uma capela de antiquíssima devoção local da
invocação de Jesus, Maria e José, e sobre áreas com ela confinantes - adro, rossio e
várias outras propriedades - que, no seu todo, permitiriam a construção da cerca e a
existência, no seu interior, de uma horta e pomar695.
As obras, supostamente iniciadas em 1791 a partir de um traço cuja autoria
poderia eventualmente dever-se a um certo mestre João da Silva, referido em
documento de 1780696, e talvez jamais finalizadas, resultariam num conjunto formado
por igreja, dependências conventuais e, no interior da cerca murada, por quinta e
hospedaria.
O edifício compunha-se de dois andares, articulando-se a planta em torno de um
claustro quadrangular aberto por arcaria. Das fachadas quase nuas da igreja e da
portaria, situada perpendicularmente à primeira, apenas se destacam, avivando as
superfícies parietais, os portais cuja decoração aponta para finais de Setecentos. Aberto
lateralmente, o portal da igreja, de linhas retas e ladeado por pilastras, era inicialmente
coroado por medalhão com o emblema eucarístico, sobre o qual se erguia, por sua vez,
um amplo janelão flanqueado simetricamente por um nicho. Perpendicularmente à
fachada do templo, abria-se a portaria, de onde avultava um pesado portal ladeado por
pilastras e sobrepujado por frontão curvo, em "estilo regional do fim do período
setecentista."697
3.6.1. Templo
O templo monástico, cuja planta longitudinal a fachada reflete, abria
lateralmente para a via pública. No interior, a nave única apresentava cobertura
abobadada de volta perfeita, primitivamente pintada, de madeira assente em sanca de
695 Cfr. Provisão de licença para fundação, ANTT, Chancelaria de D. Maria I, Lv. 14, fls. 256 v - 257.696 AUC, Convento do Desagravo de Vila Pouca da Beira, Genoveva-Declarações, Escrituras de Capitaismutuados certidões de missas, provisões régias, testamentos, arrendamentos, certidões de pagamentos desisa, etc.697 Cfr. Vergílio CORREIA, op. cit. p. 185.
206
cantaria698. Dominava a igreja o altar-mor, de onde sobressaía um retábulo de talha
branca e dourada com tribuna e trono do Santíssimo Sacramento ladeado pelas estátuas
dos fundadores da Ordem, S. Francisco e Santa Clara.
Cada um dos lados do arco cruzeiro alojava um robusto altar colateral de
decoração semelhante ao altar-mor. Do lado da Epístola, figurava a imagem de Santo
António e, do lado do Evangelho, a da Sagrada Família - a invocar a antiga capela de
Jesus, Maria e José699.
Diferentes configurações terá conhecido a igreja que, à data da extinção, exibia
no altar principal a imagem da Sagrada Família, ladeada pela de São Francisco e Santa
Clara, e, no altar colateral do lado do Evangelho, uma imagem da Senhora das Dores e,
no da Epístola, a imagem de Santo António700.
Um púlpito de madeira entalhada animava, de cada um dos lados, as paredes
desornamentadas da nave, onde se abriam também duas janelas gradeadas por onde a
luz jorraria abundante701. No Inventário de 1858, a igreja seria avaliada em 5.200$000.
Ainda que persistindo na incerteza relativa ao autor do risco, parece-nos de
assinalar a semelhança formal entre o trabalho arquitetónico dos altares do templo do
Convento de Fraga e os do Mosteiro de Vila Pouca, no que poderá entender-se como
indício em favor de uma atribuição de autoria.
3.6.2. Coros
Na parte fundeira do templo localizava-se o previsível coro baixo, divisão com
bastante luz, separada da chamada "igreja de fora" por grade de ferro miúda com
espigões para fora e pano preto por dentro onde se abria pequena janela servindo de
698 O forro (teto) é de volta perfeita, e, na opinião do visitador, "está muito bem pintado e decente." (Vd.Visita de 1801, AUC, III, 1D, 10, 1, 21).699Baseámos estas breves notas sobre o edifício na descrição apresentada no já várias vezes referenciadoInventário Artístico (pp. 184-185).700Auto de deposito, 16 de agosto de 1889, fl. 6 (ANTT, AHMF, Convento do Desagravo de Vila Poucada Beira, cx. 1893).701 Fundação Bissaya-Barreto, Mosteiro do Desagravo de Vila Pouca da Beira, Arrolamento e Inventáriodos Bens da Igreja da Paróquia de Vila Pouca da Beira. Concelho de Oliveira do Hospital. Distrito deCoimbra., doc. de 6 de dezembro de 1915, p. 2. São Francisco, Santa Clara, São Sebastião, São Lourenço,Nossa Senhora das Dores, Santo António, Sagrada Família (Jesus, Maria, José), outra Sagrada Família,São Bento, Senhora do Patrocínio, Senhor dos Passos e Senhor Morto.
207
comungatório702. Um crucifixo sobre a porta e, de um dos lados desta, um quadro
representando o Nascimento do Salvador e, do outro, a Adoração dos Reis Magos,
perfaziam o que conhecemos da decoração deste espaço.
Sobre ele, abria-se o coro alto, igualmente comunicante com o templo por grades
de aparato semelhante às do seu correspondente altimetricamente inferior703. Acedido
pelo interior, antepunha-se-lhe, contígua, uma pequena estância, ou antecoro, com
oratório contendo um crucifixo de marfim e uma imagem de São Bernardo, figura que,
pela tradicional associação à devoção às Sagradas Chagas, se enquadraria perfeitamente
num espaço preparatório do louvor perene do Santíssimo Sacramento704.
No interior, os "bancos de encosto pintados", peças essenciais à prática religiosa
adstrita a este espaço, surgiam acompanhados por recheio decorativo de evidente
aparato e impacte cénico. A um oratório com quadro da Anunciação de Nossa Senhora,
"pintura muito perfeita", somava-se um altar de talha dourada onde figuravam as
imagens de Santa Rosa, Santo António e São Sebastião, e "todo cheio de Relíquias
preciosas e de baixo da Urna huma perfeita Immagem do Senhor Morto"705 e um outro
altar com imagem da Senhora do Patrocínio.
A presença daquele primeiro trio de imagens sacras não será casual, podendo
remeter, de algum modo, para a matriz identitária do cenóbio: a São Sebastião era
dedicada a igreja cujo altar fora em tempos profanado, argumento, afinal, da fundação;
Santa Rosa - supomos que de Viterbo -, terceira franciscana contemporânea dos
fundadores da Ordem, seria eventualmente figura inspiradora para a comunidade,
também nascida no seio daquela observância; Santo António, por fim, não deixaria de
constituir um importante referente simbólico enquanto santo franciscano português
amplamente acarinhado e fortemente ligado ao Mosteiro do Louriçal. Compunham o
recheio artístico treze pinturas de diferentes santos, uma delas, um óleo representando
Nossa Senhora do Pranto. Por fim, sobre o arco do coro, assomava a imagem de Cristo
crucificado706.
702 Cfr. Auto de Vestoria no Convento Novo de Vila Pouca (AUC, III, 1D, 10, 1, 21-2).703 As janelas do coro eram gradeadas, assim como as dos "topos do Refeitorio e todas as mais doConvento tem grades de rotola miúda, e vidraças." (Cfr. Auto de Vestoria no Convento Novo de VilaPouca (AUC, III, 1D, 10, 1, 21-2).704 Ibidem.705 Ibidem.706 A auto de vistoria refere a existência, sobre o arco do coro, de um oratório com Cristo Crucificado.
208
3.6.3. Em torno do templo
Adjacente ao templo e à sua sacralidade, a sacristia, pequena estância retangular
situada por detrás da capela-mor, albergava um arcaz, um oratório com crucifico de
madeira, seis "pequenos quadros encaixilhados"707, uma imagem de Nossa Senhora da
Conceição, relíquias, duas banquetas e alfaias litúrgicas várias708. Enquanto espaço de
comunicação, daria, por um lado, acesso ao claustro e, por outro, à torre sineira.
3.6.4. Capelas devocionais
Não apenas ao templo se confiava culto e devoção, mas também a capelas,
altares e oratórios que, de forma mais ou menos previsível e mais ou menos móvel,
pontuavam o espaço cenobítico e a experiência religiosa, individual e coletiva. Além
das peças que assinalámos enquanto parte de divisões específicas, os inventários
registam duas capelas devocionais formando divisões autónomas, consagradas uma ao
Senhor das Misericórdias e, a outra, ao Senhor dos Passos709.
Da primeira, destacar-se-ia o altar com crucifixo pequeno representando o
Senhor das Misericórdias, uma imagem de Nossa Senhora em marfim, uma de São
Domingos e uma outra de Nossa Senhora da Apresentação. Um oratório de madeira em
talha dourada, contendo as imagens dos Apóstolos assistindo à morte da Virgem,
comporia, por fim, o recheio daquele espaço.
A segunda capela, por seu lado, acolheria uma imagem do Senhor dos Passos
com a cruz às costas. É significativa a temática referida que, glosando temas fortemente
acarinhados pelo Mosteiro Louriçal, extraem legitimidade da ligação simbólica que
desta forma robustecem com a casa-mãe.
707 Auto de entrega dos bens da igreja da freguezia de Vila Pouca da Beira, à comissão encarregada doculto católico da mesma freguezia, 6 de julho de 1930 (Fundação Bissaya-Barreto, Convento de VilaPouca da Beira).708 Auto de deposito, 16 de agosto de 1889, fl. 4 (ANTT, AHMF, Convento do Desagravo de Vila Poucada Beira, cx. 1893).709 Cfr. Auto de Vestoria no Convento Novo de Vila Pouca (AUC, III, 1D, 10, 1, 21-2).
209
3.6.5. Espaços de sobrevivência temporal
Disposta perpendicularmente à fachada da igreja, a portaria, enquadrada por
portal de saliente verga curva, conduzia ao interior da clausura monástica, composta por
refeitório, cozinhas, cartório, enfermaria, botica, dormitórios, sala do capítulo, casa do
noviciado e outras dependências. Como espaço de charneira entre o mundo e a clausura,
a portaria mostrava, na sua complexidade e robustez, a garantia de uma permeabilidade
intrinsecamente condicionada. Dividia-se em portaria de fora e portaria de dentro,
comunicando esta última com o locutório, munido de grade de ferro miúda com pontas
para fora e por dentro uma lata picada e pano710. A roda, de que se dotava, estabelecia
também a cega comunicação pretendida. Campainha e sino para tocar as horas
canónicas perfariam o aparato da divisão, ornada artisticamente com três quadros de
elucidativo temário de matriz crística e sacrificial: Nossa Senhora da Piedade,
Circuncisão e Santíssimo Sacramento711.
Do interior clausurado, a tibieza das fontes não nos permite um inventário, mas
tão-só uma breve e incompletíssima enunciação. No piso térreo, situavam-se, talvez de
forma contígua, a cozinha, com seu fogão e ministra, o refeitório, com nove bancadas
compridas de pinho712, e o De Profundis. No primeiro piso, abriam-se trinta e sete celas
individuais com janelas de vidro e grades férreas, em cujo interior apenas caberia "huma
pobre barra, hum sépo a cabeceira e humas mantas, huma Cruz, e hum Excabello."713
Neste andar, ainda, situava-se a enfermaria, com oratório e duas pinturas a óleo, uma de
S. José, outra de Santo António. O edifício compor-se-ia, além disso, de uma casa de
lavor e de recreação, de cárceres "e todas as mais offecinas necessarias a huma Caza
Regular." No exterior, abria-se uma cerca "para desafogo das religiosas, cercada de
muros muito altos, e fortes, que dificultozamente por elles se pode violar a clauzura."714
Separado das dependências conventuais, ficaria a hospedaria, ligada por muro e
portão ao alinhamento da igreja, formando o largo interior da torre do templo, que
acolhia o tanque ainda hoje aí existente.
710 Cfr. Ibidem.711 Cfr. Ibidem.712 Inventario addicional dos bens pertencentes ao Convento do Desaggravo de Villa Pouca da Beira,1889 (ANTT, AHMF, Convento de Vila Pouca da Beira, cx. 1893).713 Cfr. Auto de Vestoria no Convento Novo de Vila Pouca, fls, 1v. AUC, III, 1D, 10, 1, 21-2).714 A pequena cerca que, em 1801 o visitador, descrevia "a seu tempo se há de formar maior, segundo asbalizas, que agora se achão dispostas".
210
3.6.6. Claustro
Articulando a disposição dos espaços da clausura, que em seu redor e ao nível
dos seus dois pisos se desenvolviam, o claustro, de minuta dimensão, formava um
"quadro perfeito" composto por em arcada simples, apilastrada, de quatro arcos por
lado, atualmente envidraçados e sobreposta por galeria avarandada, ou sobreclaustro715.
As colunas da ala nascente, que hoje lhe vemos, refere o autor do Inventário Artístico,
não serão originais, mas "da obra hospitalar"716.
Tal como outras partes do mosteiro, também o claustro não estaria completo à
data da trasladação das religiosas. A visita efetuada a 13 de abril de 1801 assinalava
que, estando já os arcos formados, a varanda não se achava feita por falta de tijolos para
a construção das abóbadas que a suportariam. Curiosamente, ao preconizar o ingresso
da comunidade no novo mosteiro, o visitador desvaloriza a incompletude da obra, a
qual, em sua opinião, "se pode concluir independentemente da parte que ocupão as
religiozas, por não terem necessidade de servidão por aquele sitio e ficarem separadas
delle"717.
715 Cfr. Auto de Vestoria no Convento Novo de Vila Pouca (AUC, III, 1D, 10, 1, 21-2).716 Cfr. Vergílio CORREIA, op. cit. p. 185, p. 184.717 Cfr. Auto de Vestoria no Convento Novo de Vila Pouca (AUC, III, 1D, 10, 1, 21-2).
211
3.7. Programa artístico e património móvel
O teor das reflexões propostas a respeito do sistema iconográfico do Louriçal e
de Montemor-o-Novo não difere substancialmente do que a análise histórico-artística do
mosteiro de Vila Pouca da Beira suscita, o que, uma vez mais, firma a legitimadora
aproximação à matriz institucional da observância.
Os temas da Vida, Paixão e Morte de Cristo assumem um papel destacado na
representação pictórica e escultórica, e não apenas pela quantidade das peças a que se
associam, mas também pelo relevo simbólico de que elas se revestem pela sua ligação
intrínseca a espaços "maiores" de veneração - como, a propósito, o Senhor dos Passos, o
Senhor Morto e o Senhor das Misericórdias bem o atestam.
Igualmente sobressalientes são os santos fundadores da Ordem franciscana e os
seus referentes maiores, como, e antes de mais, Santo António. Sob diversas
invocações, Nossa Senhora aparece como tema recorrente, previsível tendo em conta o
culto mariano que marcou esta e outras épocas, mas, não menos, a sua inserção numa
casa religiosa feminina cuja sede instituíra a Virgem como padroeira. Da mesma forma,
Nossa Senhora da Conceição estabelece um nexo direto com a primeira fundação, cuja
prelada mística recomendara o seu culto. E as diversas Piedades sublinham, ligando-se
ao tema-chave do sofrimento redentor de Jesus, a tónica sacrificial do Desagravo.
A apropriação de referentes mnemónicos ligados à particularidade do contexto
de fundação da casa deteta-se outrossim em Vila Pouca. São Sebastião, padroeiro da
paróquia profanada, e Jesus, Maria, José, figuras de devoção local junto de cuja ermida
o mosteiro se instalou, pontificam, não casualmente, na igreja monástica.
Uma representação pictórica do Santíssimo Sacramento aparece referenciada
numa listagem de bens datando de 1889718. Não sabemos a que espaço terá pertencido,
embora creiamos que a igreja pudesse tê-la acolhido com superior propriedade. Não
seria esta a única alusão figurativa à invocação do Instituto, que encontra sede até em
peças de cerâmica de uso comum onde o símbolo eucarístico pontua como timbre de
pertença719.
718 Auto de deposito, 16 de agosto de 1889, fl. 5 (ANTT, AHMF, Convento do Desagravo de Vila Poucada Beira, cx. 1893).719 Inventario addicional dos bens pertencentes ao Convento do Desaggravo de Villa Pouca da Beira,1889. Com o n.º 38, são elencados quarenta vasos de louça Vandeli, alguns com o Emblema doSantíssimo Sacramento (ANTT, AHMF, Convento do Desagravo de Vila Pouca da Beira, cx. 1893).
212
Várias são as representações que faltaria identificar. Na verdade, a rarefeita
perceção que hoje temos da iconografia da casa parece destacar a ausência da figuração
dos seus benfeitores. Retratos das pessoas régias a quem créditos seriam legitimamente
devidos, assim como de Maria do Lado e Genoveva Maria do Espírito Santo fazem-se
presentes pela ausência As pinturas da igreja e os trezes quadros de santos do coro alto
mereceriam, neste contexto, atenta indagação.
Nesta breve incursão pelos significados da representação imagética não
deixaremos de incluir a alusão a uma peça a vários títulos axial, onde simbolicamente se
cristaliza e acrisola o sentido da espiritualidade do cenóbio: a custódia principal. Não
passaria ela despercebida ao olhar apurado de Nogueira Gonçalves, mas nem tampouco
ao rastreio, por certo de bem menos douto registo, de um inventariante oficial, que, com
despretensiosa precisão, elenca uma
custodia de prata dourada, cravejada de differentes cores, com um topazio
grande na base e na parte superior um laço de pedras brancas de maior valor
do que as disseminadas por toda ella, e dentro tem um semicirculo, cravejado de
pedras brancas preciosas, ás quaes se attribue muito valor720
A peça não constaria do inventário elaborado à data da extinção da casa, em
1858, mas de um elenco de Bens subtrahidos ao Inventário organisádo em 1870721,
onde, com o n.º 19, aparece "Uma custodia de prata de grande valor". Esse valor,
evidentemente não só monetário, mas também estético, justificaria a musealização do
objeto, hoje patente no Museu Nacional de Machado de Castro, em Coimbra. E, se é a
"institucionalização" da peça que nos permite hoje conhecê-la, é o valor cultual e
simbólico primitivos que nos devolve o seu verdadeiro sentido.
No elucidativo artigo que à custódia consagrou, Nogueira Gonçalves esclarece
que o recurso ornamental às pedras preciosas se reveste de "duplo carácter",
confirmando o que identifica como "tradição das religiosas."722Sem elementos para
resgatar concetualmente tal tradição, podemos tentar aproximar-nos dela considerando
720 ANTT, Auto de deposito..., O auto de depósito dos bens, datado de 16 de agosto de 1869, fl. 4.721 Trata-se de um inventário adicional realizado em 1870. Bens subtrahidos ao Inventário organisádo em1870. A custódia é descrita mas não avaliada.722 Cfr. A. Nogueira GONÇALVES, "A Custódia de Vila Pouca da Beira", Ourivesaria portuguesa.Revista Oficial do Grémio dos Industriais de Ourivesaria do Norte, Porto, s/n, 1.º trimestre de 1948, p.13. Veja-se, na mesma linha, Vergílio CORREIA, op. cit., Vol. II, p. 184.
213
que as joias foram oferta da rainha D. Carlota Joaquina e que, aplicadas à custódia,
cumprem uma missão a um templo decorativa e, a outro, simbólica, de consagração de
uma ligação histórica entre a Coroa e o Instituto do Desagravo.
As gemas, com efeito, terão sido apostas a uma peça que, em princípio, não
estaria concebida para as enquadrar. O seu grande número, sustenta Nogueira
Gonçalves, poderá corresponder à quantidade oferecida A denunciar também o caráter
quase votivo da encomenda, a parte cimeira e a inferior do hostiário ostenta "joias ou
elementos inteiros de joias correntes, de adorno feminino." Da mesma forma, certos
elementos seriam de origem brasileira, como o "grande topázio da base e os numerosos
rubis-balais do hostiário."723
Mas a ideia de uma "tradição das religiosas" parece insuflar-se perante a
coincidência não só da época de fabrico quanto ainda do mestre das custódias do
Louriçal e de Vila Pouca, ambas executadas em cerca de 1810-18 por um ourives
possivelmente do Porto, identificado pelas letras MS da punção724. Apesar das
dissemelhanças, as peças comungam certos aspetos, como a base triangular, a irradiação
solar do hostiário e a aposição sonante de pedras preciosas.
Em termos formais, Nogueira Gonçalves refere tratar-se de obra de estilo
neoclássico, encontrando-se "naquela fase de evolução em que desapareceram os
ornatos concheados e seus naturais companheiros, para se manterem, dentro das novas
linhas clássicas, certos recortes de inspiração anterior."725 Admite que certos aspetos da
decoração, como as cabeças de querubins, sejam posteriores, e que o corpo do hostiário,
onde anteriormente "se entrançavam espigas de trigo e parras ou querubins brincavam
em massas de nuvens, ficou espesso, só rebordado de linhas curvas". Contudo, diz ainda
o mestre, "apesar das "indecisões na compreensão das novas formas e da ligação com os
temas antigos, a custódia saiu elegante."726
723 A. Nogueira GONÇALVES, op. cit., p. 13.724 Idem, ibidem, p. 12.725 Idem, ibidem.726 Idem, ibidem, p. 13.
214
4. O “Conventinho”727
4.1. Preexistências e passagens de testemunho
Sob o contexto favorável que, ao longo do último quartel de Setecentos, deu
forma aos mosteiros de Montemor-o-Novo e Vila Pouca da Beira, ergue-se em Lisboa,
no local onde cerca de século e meio antes ocorrera o desacato de Santa Engrácia, um
novo monumento ao Desagravo. Passaria o vulgo a designá-lo “Conventinho Novo” ou,
mais correntemente ainda, “Conventinho”, no que, vislumbrando a referência a um
edifício modesto, subentendemos o cotejo com um outro que, na mesma altura, se
erigia: o monumental conjunto da Estrela.
O novel cenóbio erguia-se canonicamente em 1783, por mãos da Infanta D.
Maria Ana Francisca Josefa (1736-1813), secundogénita de D. José I e de D. Mariana
Vitória. Não diferindo da história das demais casas da observância até agora analisadas,
também ele conheceu um substrato fundacional complexo, erguendo-se sobre as
preexistências de um beatério onde as Constituições do Louriçal já oficiosamente se
praticavam.
Em 1781, uma carta enviada ao Papa Pio VI impetrando a fundação leva-nos a
supor ser antiga a pretensão enunciada728. O documento revela, com efeito, que até ao
“anno de 1781 ainda se não conceguio fundar similhante Conv.º de dezagravo no
mesmo Lugar onde em Lisboa se cometteu o mencionado delicto.” Não seria
naturalmente alheia a este afã a reativação do processo de beatificação de Maria do
Lado, como o atesta, aliás, um documento ao arguir que “desde a compilação do
Processo tem passado perto de 50 anos”, pelo que urgia “suprir a falta que nasce do
lapso de tempo decorrido desde a d.ª compilação athe ao presente.”729
Mas a carta enviada ao pontífice esclarece também que uma casa do Desagravo
havia já sido criada. De fato,
727 Parte substancial do conteúdo desta secção, relativa ao Conventinho, é inspirada na nossa dissertaçãode mestrado, ao longo do texto várias vezes referenciada. Contudo, o que de momento apresentamosreflete, evidentemente, o resultado do trabalho de que, no âmbito da preparação do Doutoramento, fomosrealizando, plasmado seja em novos dados, seja na maturação da análise de conteúdos, seja, ainda, naadoção de diferentes perspetivas de abordagem.728 Cfr. Petição dirigida ao Papa Pio VI solicitando autorização para a fundação da Convento de santaEngrácia ao Cpo. de Santa Clara, Arquivo da Universidade de Coimbra, Colecção Jardim de Vilhena,Cartas diversas, Cx. XII, capilha 223.729 O documento citado faz parte dos Autos de Maria do Lado conservados no Arquivo da Universidadede Coimbra, AUC, Cabido da Sé de Coimbra, Cx. de documentos avulsos AUC, III, 1.ª D-7-2).
215
a piedade Real, e Christaã, e de pessoas dos prim.os grandes da Corte, tem
ideado, e principiado hum Conv.º Similhante ao do Louriçal da mesma Regra,
Instituto, e Observancia, Aonde haja o mesmo continuo dezagravo ao SS.mo
Sacram.º, e com effeitto se acha a obra já com bastante aumento, e vivem dentro
dos seus muros alguãs Donzellas em Clauzura, exercitando o mesmo modo de
Vida do Convento do Louriçal.
O recolhimento passaria quase despercebido pela bibliografia, seja porque a sua
existência foi efetivamente breve, institucionalmente precária e materialmente pouco
expressiva, seja pelo parco relevo que a historiografia usa conceder aos antecedentes
das fundações monásticas.
A mais antiga referência histórica ao edifício, patente nos Monumentos sacros
de Gonzaga Pereira, não assinala a “proto-fundação” a que o documento alude, antes
informa perentoriamente que a criação do mosteiro se verificou em data muito posterior
ao terramoto de 1755, segundo projeto riscado em 1766 por Reinaldo Manuel dos
Santos730. Mais ou menos fielmente, a referência seria retomada pela maior parte dos
textos posteriores731.
Manuel Bernardes Branco732, em breve nota histórica inserta em 1866 n’O
Panorama733não oblitera, contudo, a memória do pequeno beatério, cuja fundação diz
corresponder ao cumprimento de um voto a favor da saúde da marquesa de Angeja.
Sabemos, efetivamente, que D. Francisca de Meneses, casada em segundas núpcias com
o 3.º Marquês de Angeja, padeceu de uma enfermidade cuja gravidade é evocada em
curiosa correspondência endereçada por Manuel Joaquim, médico, a D. Pedro José de
Noronha. Nela se refere a “doença espasmódica” da paciente que, em certo episódio, a
levaria a estar "32 horas sem engolir" e "mais de 40 sem falar"734.
730 Cfr. Gonzaga PEREIRA, Monumentos sacros de Lisboa em 1833, Lisboa, Biblioteca Nacional, 1927,p. 309. Esta referência é repetida, como que à laia de mote, por quase toda a bibliografia consultada.731 Veja-se, por exemplo, Norberto de ARAÚJO, Peregrinações…., pp. 83-84, ou Manuela BIRG,“Convento do Desagravo”, in SANTANA, Francisco; SUCENA, Eduardo (dir.), Dicionário da Históriade Lisboa, Lisboa, 1994, pp. 331-332.732 Vd. do mesmo autor, a Historia das Ordens Monasticas em Portugal, Vol. I, Lisboa, Livraria Editorade Tavares Cardoso & Irmão, 1888, pp. 122-124.733 Cfr. Manuel Bernardes BRANCO, “O Conventinho de Desagravo de Lisboa”, O Panorama, Vol. XVI,Lisboa, 1866, pp. 409-410.734 BNP, Secção de Reservados, Cód. 1467, Correspondência de Francisco António Ferreira da Silva[manuscrito por Ordem dos Frades Menores], fls. 2-2v. A carta não está datada, mas depreende-se que,
216
A investigação arquivística confirma a menção de Bernardes Branco e sublinha-
lhe o interesse. Dá-se, pois, notícia de que, a 17 de Outubro de 1778, o Marquês de
Angeja, por intermédio do arquiteto Mateus Vicente de Oliveira, seu procurador,
compra a Bartolomeu de Aranda e Angelina Maria Riba uma propriedade no Campo de
Santa Clara735. Desse primeiro contrato não muito tempo decorrerá até que D. Pedro
José de Noronha Camões doe “vocalmente” às religiosas do Mosteiro do Louriçal a dita
propriedade onde, entretanto, várias benfeitorias haviam sido feitas736. Pelo contrato de
ratificação da doação, de 22 de Março de 1790737, concluímos que a cedência oral terá
tido lugar pouco antes da morte do marquês, que sabemos ter ocorrido em Março de
1788, data em que o recolhimento se havia já convertido em casa clausurada738. O
contrato informa, de fato, que
dispois passando o mesmo Marquez […] a formar no mesmo predio hum
recolhimento, com sua Irmida, em que se fez grande despeza com essas
bemfeitorias proprias da sua fazenda, duou tudo vocalm.te ás dittas
Religiozas.739
A fundação e dotação terão, contudo, sido iniciativas de D. Francisca de Assis, a
quem o Cardeal-Patriarca D. Fernando de Sousa e Silva concede, por documento datado
de 23 de Abril de 1779, licença para a ereção de um recolhimento e ermida no Campo
de Santa Clara740. A visita canónica ao local, cometida ao Beneficiado Caetano Alberto
pelas datas dos documentos que a antecedem e a subseguem, deva ser do início de 80 de Setecentos.Sabe-se que também D. Pedro José sofria, pela mesma altura, de uma grave moléstia que o levaria àmorte em 1788.735 ANTT, Cartório Notarial de Lisboa n.º 5 A, Lv. 53, fls. 9 v. – 10 v.736ANTT, Cartório Notarial de Lisboa n.º 11, Lv. 711, fls. 13v-14v. Trata-se de um instrumento deratificação da doação. Assina-o o Marquês de Angeja, D. José de Noronha, D. Francisca de Almada, suamulher, e D. Francisca de Assis, mãe do primeiro.737A mesma doação é ainda confirmada em documento de 26 de Junho de 1790, por carta de confirmaçãode doação de D. Maria I. Às destinatárias da doação cabem as propriedades compradas, já elas combenfeitorias, como todas as benfeitorias mandadas realizar por D. Pedro José de Noronha, 3.º marquês deAngeja. (ANTT, Chancelaria de D. Maria I, Lv. 35, fl. 283).738 No Inventario dos bens pertencentes ao supprimido convento do Dessaggravo, elaborado em Abril de1911, aparece listada uma “escriptura de venda feita ao Marquez de Angeja d’umas casas no Campo deSanta Clara”, com data de 17 de Outubro de 1778. Surge-nos ainda, com data de 22 de Março de 1790,uma “escriptura de doação do edifício do recolhimento do Desaggravo celebrada pelo Marquez de AngejaDom Jose de Noronha a favor da Abbadessa e mais religiosas do convento”. IANTT, AHMF, Inventáriodos bens pertencentes ao supprimido convento do Desaggravo, vulgo o Conventinho, situado no Campode Santa Clara, fls. 77-78.739 ANTT, Cartório Notarial de Lisboa n.º 11, Lv. 711, fl. 14.740 AHPL, Registo Geral, Lv. 377, fls. 160-161.
217
Duarte, concluiria que a ermida se encontrava "nos termos de se poder no ditto logar
celebrar o santo sacrificio da Missa”. Do documento que lhe correspode, consta, na
verdade, que
ella [D. Francisca de Assis] tem huma propriedade de cazas junto a incompleta
Igreja de Santa Engracia, huma das quais dezeja por Sua devocão aplicar para
o culto divino pois pella Sua forma já feita tem capacidade para Ser Ermida,
com porta publica aonde se possão ajuntar os Fieis a toque de Camp.
[campainha] para assistirem ao Santo Sacrificio da Missa; e por. q. esse fim tem
frontaes, vestimentas, e todo o precizo para na mesma Ermida se celebrar,
pertende q. V. Em.ª Mande examinar, e vezitar a ditta casa, e os paramen.tos e
achando se tudo decente, haja a mesma Caza por Ermida erecta, p.ª o dote da
qual obriga a Sup.e a Sua caza a quatro Mil reis por anno como pella
constituição se requer741
A nova comunidade de terceiras franciscanas nascia a 2 de Maio de 1779 com o
ingresso das quatro primeiras recolhidas, que imediatamente dariam início ao
lausperene, aberto com a luzida celebração de D. Manuel, irmão da fundadora.
Sustentadas sobretudo graças a esmolas dos fiéis, viriam, com o tempo, a totalizar o
número de 15742.
Não vemos na fundação em si mesma deste beatério caso assinalável pela
especificidade. Nem a origem votiva nem a conotação social ou a incidência devocional
suscitam estranheza. De resto, a escolha dos Estatutos do Louriçal e o local de
implantação são entre si consentâneos, como possivelmente o são em relação à
promessa de D. Francisca, cujo restabelecimento poderia mesmo dever-se à intercessão
milagrosa da Venerável Maria do Lado - o que seguramente abonaria em favor da causa
da beatificação desta última743.
741 Idem, ibidem.742 Cfr. Manuel Bernardes BRANCO, O Panorama, Vol. 16, 1866, p. 409. Vd., também, DiárioIllustrado, Ano II, n.º 191, 9 de Janeiro de 1873.743 Autos de Maria do Lado AUC, Cabido da Sé de Coimbra, Cx. de documentos avulsos (AUC, III, 1.ªD-7-2). A somar a tantas outras graças que, pela mesma altura, lhe foram atribuídas e de que adocumentação não deixa de dar amplo testemunho.
218
Cabe, antes de mais, considerar que a construção firma o registo relacional que
ligava a Irmandade dos Escravos e o templo profanado e que unia os claustros do
Desagravo aos seus mentores, protetores e fundadores744. Quando o marquês adquiriu as
propriedades do Campo de Santa Clara auferia de um estatuto social e político
altamente favorável, tendo passado a assumir, sob D. Maria I, uma posição cimeira na
governação do Estado. Substituiria, juntamente com D. Tomás Xavier de Lima,
visconde de Vila Nova de Cerveira, o Marquês de Pombal na pasta do Reino, assumiria
a presidência do Real Erário e uma série de outros cargos, de entre os quais o de gentil-
homem da real câmara e de deputado da Junta dos Três Estados, do conselho da rainha
D. Maria I e do conselho da guerra745.
A sólida inserção na elevada esfera dos negócios do reino encontra reflexo na
partilha de práticas e de valores em que vemos enquadrar-se o culto protagonizado pela
irmandade dos nobres de Santa Engrácia. Ora, sabemos terem sido vários os membros
da casa de Angeja a integrar, ao longo de décadas, a associação dos cem fidalgos. E
sabemo-los igualmente pertencentes, pelo menos nalguns anos, à elite dos doze
mesários encarregues da direção da Irmandade. Entre 1773 e 1790, os Angeja/Vila
Verde746 seriam por seis vezes contemplados com o lugar de tesoureiro. D. Pedro José
assumi-lo-ia em 1773 e 1781, e D. José de Noronha em 1776, 1782, 1784 e 1790747.
O empenho afincado que tal casa dispensara à causa de Santa Engrácia,
particularmente expressivo no último quartel de Setecentos coincide temporalmente
com o processo de criação do Recolhimento do Campo de Santa Clara.
Desconhecemos se no horizonte de D. Francisca de Assis estava a conversão do
recolhimento em mosteiro, mas o Instituto do Louriçal e a memória do desacato de 1630
não lhe seriam por certo estranhos. Lembremos também que a Marquesa de Angeja
hospedara na capital, por período de um ano, Soror Violante de Jesus, figura
indiretamente ligada à fundação do Recolhimento de Montemor-o-Novo, de onde viria
744 No caso do mosteiro do Desagravo, nem sempre o estatuto social das fundadoras espirituais coincidiucom a nobreza de corte. No entanto, o sucesso das fundações ficou a dever-se, em grande medida, aopatrocínio que o instituto passou a auferir e de onde avultam as pessoas reais e outras próximas ou mesmoligadas ao serviço régio. (Vd. Exame de religiosas de vários conventos de Lisboa, 1753-1793, AHPL,mss. 571).745 Cfr. Afonso Eduardo Martins ZÚQUETE, “Angeja (Marqueses de)”, Nobreza de Portugal e do Brasil,Vol. II, Lisboa, Representações Zairol, 1960-1989, pp. 281-284. Na pasta do Reino, substituiu o marquêsjuntamente com D. Tomás Xavier de Lima, visconde de Vila Nova de Cerveira.746 Em 1779, era tesoureiro Francisco Xavier de Menezes Breyner e escrivão o Conde de Tarouca(Recibos da Irmandade dos Escravos do Santíssimo Sacramento de Santa Engrácia, GEO, MS-Mç1012/1017).747 Como testemunham os documentos existentes no arquivo da Sé Patriarcal.
219
mais tarde a sair soror Catarina Clara de Assis com vista a integrar o grupo de
fundadoras do Conventinho de Lisboa748.
Não restam dúvidas de que D. Maria Ana Josefa se tenha associado ou
sobreposto à incumbência da marquesa quase no dealbar do pequeno recolhimento, o
que coincidiria, aliás, com a morte de D. Francisca de Assis. Não repugna vislumbrar,
por detrás desta convergência de vontades, a profanação eucarística de Palmela, que
cunharia também a origem do Convento do Sagrado Coração de Jesus à Estrela.
A existência de um Recolhimento do Desagravo no mesmo local onde pouco
depois se fundaria o mosteiro do mesmo nome, aparece inequivocamente documentada
num conjunto de manuscritos avulsos relativos à construção do cenóbio, com datas
compreendidas entre 1780 a 1804749. Por eles sabemos que, em finais de 1780, se
trabalhava ainda na edificação do beatério, a que se refere uma “conta e recibo de
Mateus Vicente de Oliveira”, de 9 de dezembro aquele ano, respeitante à “obra do
Recolhimento do Desagravo do SS. Sacramento sito no Campo de Santa”. Os Livros de
Décimas da cidade de Lisboa permitem-nos, por outro lado, revalidar a preexistência do
recolhimento, fornecendo-nos adicionalmente indicação sobre a data da sua edificação,
compreendida, ao que apurámos, entre 1778 e 1779750.
Eram múltiplas, ao templo, as obras pias que absorviam as atenções da corte
mariana, intenta a dotar os palácios da fé751 de uma expressividade consentânea com o
teor do seu arraigado sentimento religioso. Não só ocupava a soberana a intervenção em
grande número de casas religiosas danificadas pelo Terramoto de 1755 e ainda não
totalmente reconstruídas, quanto a fundação de novos claustros para o clero regular. Se,
de todos eles, é a Igreja e Convento do Sagrado Coração de Jesus a obra mais
emblemática, merecem também destaque, pelo seu número e pelos pressupostos da sua
difusão, os monumentos ao desagravo do Santíssimo.
Considerado apenas como fruto da piedade da Marquesa de Angeja, o
recolhimento não nos suscita questões maiores, mas enquanto antecedente direto do
748 Curiosamente, em 1770, ingressa a Irmã Catarina Clara de Assis, que viria mais tarde a fundar o“Recolhim.to de S.ta Engracia”.749 BA, 54-X-17, fls. 124-202 e BA, 54-XI-38, fl. 40.750 O edifício apenas aparece registado em 1779. No entanto, posto que os dados remetem para o início doano civil a que o livro diz respeito, é natural que a construção estivesse já em curso no ano anterior, nãosendo porém abrangida pela décima. A partir de 1779 a propriedade, nas Décimas da Cidade, passa a serdesignada como “Propriedade em que se acha fundado o Recolhimento do Desagravo do Smo.ºSacram.to”. (AHTC, Livros de Décimas. Cidade de Lisboa, Lv. 432 AR de 1779, fl. 46)751 Esta mesma expressão é usada por Germain BAZIN na sua obra Les palais de la foi. Le monde desmonastères baroques. Italie, Pays Ibériques, France, Friburgo, Office du Livre/Paris, Ed. Vilo, 1981.
220
Conventinho, apresenta-nos várias interrogações. Como articular aquele empenho com a
intenção de D. Maria Ana? Que significado teve este pequeno beatério como
preexistência do mosteiro que sobre si se instituiria? Qual o significado e a natureza da
transição que se operaria entre as duas entidades? Ensaiemos de seguida uma resposta
tentando precisar os particulares desta fundação.
É difícil saber se a infanta tirou partido de uma conjugação favorável de
circunstâncias, se, ao invés, a sua condição de fundadora foi o resultado dessa mesma
conjugação. De igual modo, desconhecemos se ao fundar, dotar e ornar o Conventinho,
ela o fez em primeira mão, se como intermediária de uma intenção que transcendeu o
espetro da sua vontade individual.
Ao salientar as figuras de D. Maria Francisca, futura rainha, e de D. Maria
Benedita, futura princesa do Brasil, a historiografia confia a D. Maria Ana um papel
inevitavelmente secundário. Além disso, o que a infanta artisticamente nos legou,
sempre no âmbito estrito da ambiência palaciana, fê-lo as mais das vezes de forma
conjunta, em regime de coesa solidariedade familiar752. A tanto acresce que, de qualquer
das irmãs, seria fisicamente a menos abonada753. Piedade e apetência para as artes são,
no entanto, notas que qualquer dos autores - biógrafos da coroa, estrangeiros mais ou
menos íntimos da corte e outros mais - lhe acentuam. Henrique de Campos Ferreira
Lima, em Princesas artistas encomia o estro criativo da princesa, reproduzindo mesmo
várias das suas obras754. José da Cunha Taborda diria, por seu turno, que “honrava os
pinceis com grande credito”755, enquanto o Marquês de Resende faria elegantemente
notar que, “em vez das graças exteriores do corpo reluziam a bondade interior da alma,
e um grande talento para a pintura e para a musica”756. E, na linha, Joaquim de
Vasconcelos informava que a infanta deixara nome “como artista amadora muito
distinta nas artes do desenho e da musica.” 757
752 Aludimos, a título de exemplo, às pinturas executadas para a capela do Palácio de Queluz ou às queornam um dos altares laterais da Basílica da Estrela. Qualquer destas obras teve a participação conjuntadas filhas de D. José.753 BA, 51-X-31, fls. 153-154. Por carta de 9 de Outubro de 1736, dirigida pelo jesuíta João BaptistaCarbone a Manuel Pereira de Sampaio, dava-se “noticia do feliz parto da Sñra Princeza, q. succedeo namesma menhãa [de 7] do corrente p.las 3 horas e meia depois da meya noite”. O acontecimento, porém,não era merecedor de “gosto completo porq. não foi filho varão, como se desejava”.754 Vd. Henrique de Campos Ferreira LIMA, Princesas artistas. (As filhas de El-rei D. José), Coimbra,Imprensa da Universidade, 1925.755 José da Cunha TABORDA, Regras da arte da pintura, Lisboa, Imprensa Régia, 1815, p. 249.756 Marquês de RESENDE, “Descrição e recordações históricas do Paço e Quinta de Queluz", Panorama,série 3, Vol. IV, n.º 27, Lisboa, 1855, pp. 211.757 Joaquim de VASCONCELOS, “Arte decorativa portuguesa”, in AAVV, Notas sobre Portugal, Vol. II,Lisboa, 1908, p. 204.
221
Apenas afloradas nos dados de carácter biográfico, as virtudes morais e
religiosas de D. Maria Ana não seriam alheias à sua produção artística. Frei Francisco
da Mãe dos Homens, na Oração fúnebre que em sua memória compôs, refere
justamente o fecundo casamento entre o sentimento religioso e a produção estética,
anotando
o enthuziasmo poderizissimo da verdade, a vivissima paixão de se enriquecer
das qualidades do espirito, que a fizerão entregar á meditação, que a
exercitarão com tão feliz rezultado no desenho, na pintura, na muzica, e nos
lavores, obras primas de gosto.758
Manuel Bernardes Branco afirma que também a encomenda de D. Maria Ana
terá correspondido ao cumprimento de um voto feito em razão da cura de grave
enfermidade759. Sabemos, efetivamente, que a violenta epidemia de gripe que em 1782
grassou no reino, atingiu fortemente D. Maria Ana, assim como parte da família real760,
mas não deixamos de acusar com estranheza as semelhanças, flagrantes, entre este e o
caso da Marquesa de Angeja. A propósito da fundação, o mais avultado
empreendimento da Infanta D. Maria Ana, diz-nos ainda Frei Francisco da Mãe dos
Homens:
o nosso século reunindo em si todo o veneno da impiedade antiga, e moderna,
ampliando o Apostolado de huma filosofia impudente, e mizeravel, soltou os
diques á maldade, e offereceu monstros, que ouzarão atentar contra a Pessoa,
Corpo, Sangue, e Divindade de Jezus Christo, [...]. Palmella, Santa Engrácia, e
outros templos havião dado rebate á piedade, que o Pão dos Anjos, o Augusto
758 Frei Francisco da Mãe dos HOMENS, Oração fúnebre que nas exequias da Serenissima SenhoraDona Maria Anna..., Rio de Janeiro, Impressão Regia, 1813, pp. 28-29.759 Cfr. Manuel Bernardes BRANCO, O Panorama, Vol. 16, 1866, p. 410.760 Cfr. Caetano BEIRÃO, D. Maria I. 1777-1792. Subsídios para a revisão da história do seu reinado,2.ª edição, Lisboa, Empresa Nacional de Publicidade, 1934, p. 49. O autor faz menção, em nota, a váriascartas da rainha remetidas para a infanta D. Maria Ana, qualquer delas conservada no Arquivo Geral deSimancas. O seu estado despertou inclusive o cuidado da rainha, como o atestam várias cartas escritas nodecurso de 1782 à própria infanta, e outras de 1783 e 1784 enviadas a D. Pedro III e a sua prima D. MariaJosefa, em que agradece o interesse manifestado pela saúde da irmã, cuja recuperação não se havia aindaentão verificado. (Cfr. Caetano BEIRÃO, op. cit., pp. 49, 433 e 436).
222
Sacramento dos nossos altares fora confundido com o pó do pavimento,
aggravado, e insultado por mãos sacrilegas761.
Perante tal, prossegue o orador:
Faltão-me expressões para vos figurar o zelo, que roía as entranhas da
Sereníssima Senhora Infanta com estas considerações. Lagrimas de sangue
eram pequeno desafogo á sua religiosa ternura: orações proprias não
satisfazião o dezejo, que ella tinha de ver desaggravado o objecto da sua maior
devoção.762
Em resultado, escolhe a infanta:
Imitar o plano, que a piedade do Senhor Rei Dom Pedro III, havia executado em
Montemor o Novo, sacrificar seus apanágios, suas posses, levantar hum
Mosteiro, hum templo, em que até á consumação dos séculos se desaggravasse
o Augusto Sacramento Eucarhistico: eix-aqui, como se satisfaz o amor, a
devoção da Sereníssima Senhora Infanta763.
A natureza supostamente votiva do primeiro momento criador assimila-se agora
à grandeza moral do argumento. Numa alusão precisa às convicções da infanta, os
Elogios que no faustosissimo dia em que cumpre annos informam que:
O espirito de novidade, espirito perigoso, como o detesta? Naõ se alucinando
V.A. com as brilhantes côres, com que esses chamados filosofos enfeitando os
seus escriptos tem maculado a maior parte de nossos dogmas, querendo com a
razaõ as mais das vezes escurecida com as suas preocupações dilacerar [...].
761 Frei Francisco da Mãe dos HOMENS, na Oração fúnebre..., p. 24.762 Idem, ibidem.763 Idem, ibidem, pp. 24-25.
223
Volteres, Rossóz, mil outros por mais que com o verníz de huma locução amena
doireis o mortifero veneno, vos estais proscriptos da livraria de S.A764.
Ante as investidas cada vez mais cerradas contra os valores em que se escorava a
monarquia, o Conventinho assumiu-se como expressão de uma necessidade de
ressarcimento e, por isso mesmo, simultaneamente como testemunho de uma
inadimplência. Resta saber por que não reivindicou a rainha tal manifesto de desagravo,
imbuído, para mais, de tão substantivo interesse simbólico. A essa invocação em parte
terá correspondido ao consagrar a sua munificência à grandiosa obra da Estrela,
contemporânea do pequeno cenóbio clariano.
Para além de substanciar a instituição de uma nova devoção765, a Basílica
representou o favor da rainha pela Ordem do Carmelo - mendicante, tal como a de Santa
Clara - e pelo seu convento, de que o arcebispo de Tessalónica, D. Frei Inácio de São
Caetano se assumiria como elo privilegiado. Curiosamente, e à semelhança do
Conventinho, representou também, num tempo adverso de encruzilhada, a retoma de
uma herança centenária - note-se que a intenção da construção de um convento à Estrela
remonta ao reinado de D. João V, assim como o Recolhimento de Montemor-o-Novo766
- e a retórica afirmação de uma vivência evangélica cada vez mais anacrónica. E, tal
como o Conventinho, ideado certamente muito antes, a Basílica e o beatério, cuja
construção nascera de um voto realizado em 1760 e pouco depois satisfeito, teve de
esperar o final do consulado pombalino para se erguer numa área e segundo um estilo
que abertamente repudiavam o ideário urbanístico preconizado pelo marquês e as
conotações ideológicas que lhe subjaziam767.
Seja tanto fruto de um contexto quanto de uma intenção individual, D. Maria
Ana dedicou-se à obra como casa de sua especial devoção. Uma carta enviada do Rio de
Janeiro a 22 de Maio de 1813 deixa-nos, não obstante o caráter quase oficial do
conteúdo, uma súmula interessante. Diz-se, pois, que
764 Elogios que no faustissimo dia em que cumpre annos a Serenissima S.ra Infanta D. Maria Anna...,Lisboa, Oficina de Antonio Gomes, 1789, pp. 13 – 14.765 Sobre o tema, vd. Nuno SALDANHA, “A «Quinta Chaga» de Cristo - A Basílica das CarmelitasDescalças do Coração de Jesus à Estrela”, in AAVV, Monumentos, n.º 16, 2002.766 A respeito desta ideia em particular, vd. António Filipe PIMENTEL, Arquitectura e poder. O RealEdifício de Mafra, Lisboa, Livros Horizonte, 2002, p. 123.767 Esta perspetiva é exaustivamente tratada em José-Augusto FRANÇA, Lisboa Pombalina e oIluminismo, Lisboa, Bertrand Editora, 1977.
224
A morte da Senhora Infante Dona Mariana foi a todos geralmente sensível, e a
todos foi bem patente a sua exemplar e edificante Virtude: muitos dias antes de
falecer fez as suas últimas Disposições, em que ao depois se viu a ternura do
Seu Coração a benfício de quantos e quantas participavam das Suas esmolas.
Deixou todos os Seus Criados e Criadas no mesmo arranjo, e gozando dos
mesmos interesses, como se estivesse viva. Deixou todas as suas jóias, vestidos e
galas às suas Freiras de Santa Clara de Lisboa, assim como a Sua grande
Quinta de Corroios, e todo o mais dinheiro, que se lhe achasse por sua morte.
Às 9 1/2 horas da noite expirou, assistida do Seu Confessor e Caeplão, que eram
os Padres Manzzoni e Joaquim Dâmaso.768
768 SANTOS MARROCOS, Luís Joaquim dos, Cartas do Rio de Janeiro. 1811-1821, Biblioteca Nacionalde Portugal, Lisboa, 2008, p. 188.
225
4.2. O Campo de Santa Clara: um regresso simbólico
Ao instalar-se no Campo de Santa Clara, o Instituto do Louriçal desagravou uma
memória que, pelo menos no plano arquitetónico, à míngua se alimentava do empenho
inconsistente da Irmandade dos Escravos de Santa Engrácia. De fato, o local de
implantação é tudo menos casual: aí, paredes meias com a paroquial profanada, haviam
sido encontradas as partículas do desacato de 1630. O valor simbólico desta espécie de
chão místico reacendia-se agora com o desacato de Palmela, a cujo desagravo os
Escravos do Santíssimo significativamente se associaram.
Secularmente animado pelos festejos de Janeiro, a que a presença da família real
emprestava o mais soberano tom, e pela presença imponente da inacabada Igreja de
Santa Engrácia, o Campo de Santa Clara contaria com uma valência social e urbanística
que cabe assinalar. De feição arrabaldina, definindo, desde os primórdios, o limite
oriental da urbe, o sítio ficaria marcado pela presença do medievo Mosteiro de Santa
Clara769 e pelo cunho aristocrático impresso pela iniciativa da Infanta D. Maria,
fundadora da paróquia de Santa Engrácia. Até ao século XVIII, e sobretudo neste,
registar-se-ia um contínuo desenvolvimento a que a dimensão e projeção social das
obras da paroquial acentuara o cunho de nobreza. Várias foram as construções que,
entretanto, ratificariam tal carácter, instituindo-se em simultâneo como presenças de
incontestada valia arquitetónica: o Palácio Barbacena, da autoria de Manuel da Costa
Negreiros, o Palácio Lavradio, pertença do primeiro patriarca de Lisboa, D. Tomás de
Almeida770, o Palácio Resende, o Palácio Sinel de Cordes ou ainda, um pouco mais a
sul, o dos Teles de Melo771.
769 O mosteiro foi fundado em 1292 por D. Inês Fernandes na zona da Trindade, sendo transferido doisanos mais tarde para o Campo de Santa Clara, então um descampado designado “Campo da Forca”.Desde os seus primórdios, o mosteiro - de clarissas urbanistas ou da segunda Regra de Santa Clara -, foragrandemente beneficiado pela coroa e papado, possuindo, ao mesmo tempo, inumeráveis riquezas. (Vd.Durval Pires de LIMA, História dos Mosteiros, Conventos e Casas Religiosas de Lisboa, Vol. II, Lisboa,Imprensa Municipal, 1972, pp. 231 - 258).770 José Fernandes PEREIRA, “O barroco do século XVIII”, in PEREIRA, Paulo (dir.), História da arteportuguesa, Vol. III, Lisboa, Temas e Debates, 1995, p. 151. O autor refere mesmo que estes doisprimeiros palácios, Barbacena e Lavradio, “consagravam definitivamente o Campo de Santa Clara comouma zona residencial da nobreza”.771 Vd., a propósito, Irisalva MOITA, “Campo de Santa Clara” in ALMEIDA, Fernando (dir.),Monumentos e edifícios notáveis do distrito de Lisboa, Vol. V, Tomo II, Lisboa, Junta Distrital de Lisboa,1975, pp. 179-183.
226
Ao irromper do terramoto de 1755 e, ao invés de extensas áreas da cidade, parte
do largo não sofreu danos significativos772, ficando inclusivamente intacta a
problemática Igreja de Santa Engrácia, de cuja solidez tanto se duvidara. O cataclismo
terá mesmo beneficiado o desenvolvimento urbano do local, que acabaria por servir
como refúgio a muita da população que ficara desprovida de habitação ou de meios e
para quem a instalação provisória foi dando lugar à definitiva. Cumprida a profecia de
soror Maria Joana773, temia-se, logo após, o cumprimento de novo vaticínio segundo o
qual o 1.º de Novembro de 1756 aportaria devastações semelhantes às verificadas no
ano imediatamente anterior774.
Em 1779, data em que o Recolhimento do Desagravo se instalou em terrenos de
Bartolomeu de Aranda, das ruínas do velho Mosteiro de Santa Clara, desmoronado com
o Terramoto de 1755, não sobravam senão longínquos vestígios775. A destruição de uma
casa de culto com o peso que tivera Santa Clara leva a que o Conventinho, também de
clarissas, ainda que de diferente regra, possa ser olhado como resposta supletiva ao
vazio espiritual originado por tal perda. Ainda que espacialmente, e contrariamente ao
que vulgarmente se invoca, não tenha substituído o vetusto mosteiro, há que notar que,
em consequência do terramoto, as casas religiosas da zona oriental da cidade ficaram
seriamente afetadas, tal o caso do Mosteiro de Santa Apolónia e do da Madre de Deus,
para só citar os cenóbios de clarissas776, circunstância que poderia pesar em favor da
necessidade da criação de um novo espaço cultual e litúrgico. Se a tal acrescermos que a
Ermida de Nossa Senhora do Paraíso que, desde 1630, servia de paroquial à freguesia,
sofreu danos com o terramoto, e que o templo inacabado em pouco beneficiava, pelo
menos diretamente, a prática religiosa, devemos reconhecer a existência de uma
situação ou sentimento de carência que, nesse plano, o Conventinho tenha vindo bem
que tardiamente suprir.
772 Já o Mosteiro de Santa Clara ruiu quase por completo, vitimando centenas de pessoas, como descreveo Padre Baptista de Castro no Mappa de Portugal, Vol. III, p. 275. Diz, a respeito: “O seu famosoTemplo, que era hum monte de ouro, e na grandeza excedia a todos os dos mais Mosteiros, ficoutotalmente prostrado [...]. O Coro de cima, que era hum Paraiso na terra, tambem se abateo”.773 Cfr. José CAETANO (Frei), Memórias da vida e virtudes da serva de Deus Soror Maria Joana, pp.224-225.774 Cfr. Pinho LEAL, op. cit., p.169775 Cfr. Irisalva MOITA, op. cit., pp. 179-183. s ruínas tinham já dado lugar a instalações fabris denatureza militar, fundadas por Pombal, restando apenas parte de um arco da antiga igreja e a lembrançaplanimétrica do claustro, cujos eixos a estrutura usineira parcialmente respeitou. Em terrenos que lhespertenciam foram também edificados, no extremo poente do Campo, a Fundição de Cima, no topo de cujoportal se exibe a data de 1762.776 Cfr. Joaquim Moreira MENDONÇA, Historia universal dos terremotos que tem havido no mundo deque ha noticia, desde a sua creação até o seculo presente..., Lisboa, Oficina de António Vicente da Silva,1758, p. 139.
227
4.3. De beatério a Real Mosteiro
Ao avocar a si a incumbência de fundar o mosteiro, D. Maria Ana passará
também a prover-lhe ao sustento. A somar a outros favores materiais, ao Conventinho
serão aplicados os rendimentos da chamada “Quinta d’Água”, propriedade rústica sita
em Corroios, adquirida justamente no ano, 1790, em que se dera forma legal à
propriedade das religiosas do Desagravo sobre o edifício do antigo recolhimento.
Em resposta à carta de 1781777, que exortava ao estabelecimento, no local do
desacato, de um monumento ao seu desagravo, o Papa Pio VI emite, com data de 15 de
Janeiro de 1782, o breve reconhece autoridade apostólica ao novel mosteiro, estabelece
a transferência de quatro religiosas778 provindas do Louriçal e determina a observância
dos mesmos estatutos que regiam este último779. Eis, em excerto, os termos em que o
faz:
Mariannae Infantis in es ipsomet Loco ubi delictum [...] fuit commissum novum
erigatur Monasterim, hinc a praedicto monasterio de Louriçal dilectas in
Christo Filias Mariam de Jesu, Mariam de Nostra Domina, Mariam Candidam,
et Mariam de Sacra Familia Moniales expresse professas discti Monasterii ad
hoc novum Monasterium in Civitate Ulisiponensi erectum seu erigendum una
cum iisdem statutis ac Legibus alias ut probatur Apostolica Autorictate
confirmatis transferri summo pare desiderit. Nobis propterea humulitater
supplicari fuit, ut in praeminis opportune providere, et, ut infra indulgere de
Benegnitate Apostoloca dignaremur. [...] Datum Romae apud S. Petrum Sub
Annelo Piscatoris diae XV. Jannuarii. MDCCLXXXII. Pontificatus Domini Anno
Septimo780.
777 Cfr. Petição dirigida ao Papa Pio VI solicitando autorização para a fundação da Convento de santaEngrácia ao Cpo. de Santa Clara, Arquivo da Universidade de Coimbra, Colecção Jardim de Vilhena,Cartas diversas, Cx. XII, capilha 223.778 Num Termo de Obediência, de 23 de Outubro de 1783, é pormenorizadamente descrito o cerimonialde prestação de obediência das quatro irmãs transferidas do Mosteiro do Louriçal a fim de fundarem onovo mosteiro. (Vd. José do Nascimento BARREIRA (padre), Breve história do Convento do Desagravo.O “Conventinho” de Lisboa, Lisboa, Editorial Franciscana, 1965, p. 34).779 Cópia deste documento encontra-se no Arquivo do Mosteiro do Imaculado Coração de Maria, emLisboa, instituição herdeira do Conventinho (José do Nascimento BARREIRA (padre), op.cit.).780 Breve do Papa Pio VI para fundação do Mosteiro do Desagravo de Lisboa, fl. 1. Arquivo do Mosteirodo Imaculado Coração de Maria de Lisboa. (O texto completo do breve corresponde ao Doc. V do Anexodocumental).
228
Por se achar “acabado de edificar” e a fim de “ser povoado de Religiosas, que
professem por Principal Instituto o Culto do [...] Santíssimo Sacramento”, D. Maria I,
pelo decreto de 28 de julho de 1783, autoriza a fundação do mosteiro, declarando ter
sido erigido com aprovação e licença régias781. Por decreto de 20 de outubro se
determina a posse da Coroa sobre o mosteiro e o direito de padroado perpétuo782.
Ficaria deste modo garantida a proteção régia e “todas as Regalias Prerogativas, e
Preminencias, e mais qualidades de que por direito gozão os Padroados da Coroa”783.
A 21 de Outubro de 1783, um decreto do cardeal-patriarca consagra
canonicamente a fundação. Nele se especifica que:
Por estar completo o Conv.to do Dezaggravo do SS.mo Sacramento fundado no
Campo de S.ta Clara desde Cid.e, e serem transferidas p.ª o mesmo Conv.to
algumas religiozas p.ª fundadoras do Mostr.º do Louriçal no Bisp.º de Coimbra,
por Autoridade Apostolica, e visto q. o n.º das d.as Religiozas não he sufficiente
p.ª se proceder a Elleição canonica da prelada, e mais officiais triennaes, e por
ser da Nossa Jurisdição o mencionado Conv.to novam.te edificado conforme as
Constituições por q. se governão as mesmas Religiozas. Nomeamos para Abb.ª a
M.e Maria Cândida, p.ª porteira a Marianna de Jezus, p.ª Mestra das noviças a
M.e Maria da Sagrada Família: cujos cargos servirão por tempo de trez annos,
na Conformid.e das Referidas Constituições: E mandamos ás Religiozas lhes
obedeção nos seus respectivos empregos.
Dando expressão ao processo acima descrito, entrariam solenemente no
mosteiro, acompanhadas de seis noviças, as fundadoras canónicas, soror Maria Cândida,
781 ANTT, Desembargo do Paço, Corte, Estremadura e Ilhas, Mç. 2167, doc. 105. Entretanto, umaprovisão do cardeal-patriarca D. Fernando I, assinada a 19 de outubro de 1783, atesta a visita canónica àigreja, mosteiro, clausura e demais dependências - espaços que considera estarem conformes àsdeterminações do Concílio de Trento e Mandato Apostólico -, e concede licença para o ingresso dasfundadoras. (AHPL, Lv. 13, fls. 26 v-27.).782 BA, 54-X-7, fl. 126. Uma provisão régia de igual conteúdo guarda-se no ANTT, Chancelaria de D.Maria I, Lv.24, fl.67.783 Auto de posse, fl. 252, ANTT, Gavetas, Lv. 50, cx. 33.
229
soror Maria de Jesus, soror Mariana de Jesus784 e soror Maria da Sagrada Família785.
Sobre o percurso de receção das fundadoras, vale a pena atentar na circunstanciada e
colorida notícia publicada n’O Seculo de 17 de Janeiro de 1905:
Pouco depois de terminar a sua construcção [do Conventinho] parte das
recolhidas do Louriçal installaram-se n’elle, sendo transportadas em coches da
casa real e acompanhadas até Lisboa por damas da côrte e por tudo quanto
havia de mais distincto no clero e na nobreza. Foi um verdadeiro
acontecimento. O apparatoso cortejo poz-se a caminho para Lisboa,
descançando na primeira noite de viagem em Leiria, onde houve grandes
festejos. A segunda noite foi em Torres Vedras, na quinta do sr. marquez de
Penalva786, onde foram recebidas com grandes demonstrações de regosijo,
mandando aquelle titular collocar na capella do seu palacio uma lapide
commemorativa da passagem por ali das recolhidas, as quaes no dia seguinte
entraram em Lisboa, alojando-se nas dependencias do convento. Na capital
foram recebidas pela nobreza, clero e povo e no dia immediato tomaram posse
do convento, onde houve grandes festas, a que assistiram o rei e a côrte. As
referidas festas foram feitas com a pompa usual d’aquellas epocas, não se
falando durante muito tempo n’outra coisa.
A estes dados, acrescenta a Gazeta de Lisboa que, à entrada das madres do
Louriçal, “vierão assistir SS.MM. e AA. celebrando pontificalmente o Excellentissimo
Principal Mello na nova Igreja que havia sido benzida, e se tinha celebrado nella pella
primeira vez no dia 20” do mesmo mês787.
A vida da nova comunidade regral ficou em primeira linha marcada pela herança
do Mosteiro do Louriçal e pela Regra que aí se cumpria, formal e textualmente
plasmada nas constituições que o regiam, mas também pelas circunstâncias próprias da
sua fundação e pelo contexto oferecido pela sua implantação - que não apenas
784 O breve de fundação do Papa referenciava, em lugar do nome de soror Mariana de Jesus, o de Mariade Nossa Senhora.785 Supplemento á Gazeta de Lisboa, n.º XLII, 24 de Outubro, 1783.786 Em 1795, o Marquês de Penalva assumia o cargo de escrivão da Irmandade dos Escravos doSantíssimo Sacramento, sendo tesoureiro D. Antão de Almada. (Cfr. Recibo da Irmandande do Escravosdo Santíssimo Sacramento de Santa Engrácia, CML/GEO MS-Mç 858).787 Supplemento á Gazeta de Lisboa, n.º XLII, 24 de Outubro, 1783. A chegada das religiosas ter-se-ádado, segundo a notícia, no dia 22 de Outubro, e a entrada no mosteiro, no dia seguinte.
230
significou uma reconciliação com a história do local, quanto uma abertura à receção de
manifestações a posteriori dessa mesma história.
Ao período de assunção das comemorações públicas deverá referir-se uma
notícia do Diário Illustrado de 9 de Janeiro de 1873, segundo a qual “em tempos mais
antigos saía da egreja d'este Convento uma procissão á meia noite de 16 de janeiro, em
desagravo do Sacramento ultrajado nos sitios de Santa Engracia”788. Esta prática seria
mais tarde abandonada. Reportando-se a 1861, Manuel Lopes de Fernandes, precisa que
“hoje [em vez dos antigos festejos] sómente se faz a commemoração, estando o Sagrado
Lausperene na igreja das freiras de Santa Clara."789 A este modelo de comemoração,
onde a exuberância primitiva dá lugar à solenidade do ofício e liturgia, alude O Século
de 17 de Janeiro de 1905:
A festa do Desaggravo, que hontem se realisou na egreja do convento do mesmo
nome, ao Campo de Santa Clara assistiram numerosos fieis, tendo começado a
missa solenne ao meio dia, a qual foi celebrada pelo rev. Affonso Alves de
Sousa, acolytado pelo rev. Pompeu e pelo sr. Joaquim Eloy da Silveira. Ao
Evangelho pregou o rev. conego Conceição Borges; de tarde, ás 6 horas, houve
sermão e terço de Bemditos. O templo achava-se magnificamente ornamentado
com plantas, flores e grande profusão de lumes. As festas continuam hoje e
amanhã790.
No quadro deste complexo processo de receção e apropriação de um passado,
deparamo-nos com a curiosa notícia contida num Aviso da Intendência Geral de Polícia
dirigido a 11 de Janeiro de 1833 à Irmandade dos Escravos. À margem do documento,
aparece manuscrito o destinatário: “Ill.mo e Ex.mo Sr. Juiz e mais Mesarios do
Irmandade do [sic] Escravos do Santissimo Sacramento do Convento do
788 Cfr. Manuel Bernardes BRANCO, “Conventinho de Desagravo em Lisboa”, Diário Illustrado, Ano 2,n.º 191, 9 de Janeiro de 1873, Lisboa, 1873, p. 14.789 Manuel Lopes de FERNANDES, Memória das medalhas e condecorações portuguezas e dasestrangeiras com relação a Portugal, Lisboa, Tipografia da Academia das Ciências, 1861, p. 11.790 O Século, n.º 8280, Terça-feira, 17 de Janeiro de 1905. O Século, n.º 8280, de 17 de Janeiro de 1905.A notícia que reportamos, intitulada "A festa do Desaggravo", não faz menção de autoria.
231
Desaggravo”.791 Estranhamente, reportando-se à data em que redige os seus
Monumentos Sacros, Gonzaga Pereira reflete:
Neste templo [do Conventinho] não ha Irmandades, e seria muito proprio aver
huma Irmandade d'Escravos do Santissimo, para quoadjuvar a conservação do
devino culto, pois que sem religião não pode nenhum ente gozar da perfeita
felecidade.792
Mais adensa as incertezas a referência a uma “Irmandade dos Escravos do Santíssimo
Sacramento do desacato de Odivelas”, que teria igualmente sede no novo templo
clariano, como refere um alvará de D. João VI. Ignoramos estar ou não perante a mesma
irmandade, mas lembramos que o desacato de Odivelas não tem expressão nas
celebrações organizadas pelas religiosas793.
Herdeiras históricas do desagravo pela profanação de Santa Engrácia, as
religiosas do Conventinho e, em primeiro lugar, a Infanta D. Maria Ana, instituíram-se
igualmente herdeiras e depositárias de objetos simbólicos, dos quais se destaca o
famoso cofre de tartaruga que, assim como as partículas consagradas, a tradição rezava
haverem sido escondidas no local onde mais tarde se erigiria o mosteiro794. Neste
sentido, um documento inserto no Inventário da fábrica do Santíssimo Sacramento de
Santa Engrácia , informa que:
A abbadeca do Convento do Dezaggravo do SSmo Sacramento [...] sitto no
Campo de Sta Clara [...] certifico como recibi da Irmandade do SSmo.
Sacramento da fregª de Sta Engracia h cofre de tartaruga chapeado de prata
que he o mesmo em que estavão as particulas, quando se fez o rroubo e o
horrivel Sacrilegio, e a dª Irmandade mo entregou e de-o por lhe constar com
certeza ser esta a vontade de S. Mag.de e da Serenissima Infanta D. Maria
Anna, e por ser o convento erigido em Desaggravo do mesmo sacrilegio [...] e S.
791 O documento encontra-se anexo ao Livro dos Acórdãos […] que tem principio em dous de Novembrode 1761 (AHSPL).792 Gonzaga PEREIRA, op. cit., p. 310.793 Não nos surge, com data de Maio – recorde-se que as festas de Odivelas eram celebradas a 11 destemês - qualquer referência festiva no Kalendario de 1858.794 Miguel de Azevedo EBORENSE (frei), Jesus Christo no Santissimo Sacramento da Eucharistia...,Tomo I, p.198, apud Arthur LAMAS, op. cit., p. 234.
232
Alteza em recompensa deo a Irmandade outro cofre de prata doirado por dentro
[...]. Lx ª Convento do Desaggravo do SSmo Sacram.to. 16 de Janeiro de 1785
Sor. Maria de Jesus Abbª. 795
Pinho Leal viria mais tarde a confirmar que “o cofre onde estavam as particulas,
que era de tartaruga, cintado de prata [...], ainda existe no convento do Desaggravo”796.
Aludindo ao cofre cedido pela Infanta como contrapartida direta da solicitude
dos irmãos, o Inventário dos bens daquela Irmandade dá-nos, no entanto, a perfeita
noção do valor simbólico da peça original.
Parece trabalho de Macau. Foi offerecido á Irmandade pela Princesa D. Maria
Anna, filha d'El-Rei D. José, em troca do cofre de tartaruga, em que se
commetteu o celebre desacato de Santa Engracia a 15 de janeiro de 1630. O
cofre pertencia á Irmandade; esta reclamou e a Princeza, que construiu o
convento do Desaggravo, vulgo Conventinho, para desaggravo do desacato,
pediu para que elle ficasse no convento. A Irmandade concordou. Quando ha
pouco acabou o Convento a Irmandade pediu ao governo o cofre para o
conservar na egreja como reliquia historica; o governo concedeu, mas a
commissão respectiva não o entregou por não saber, onde este estava!797
No interessante processo negocial que envolveu o advento, afirmação e
permanência do Conventinho no âmbito da paróquia de Santa Engrácia reconhecemos,
em maior ou menor grau, a presença e peso da Coroa. O vínculo estabelecido entre a
realeza e as clarissas - que vimos remontar às origens do próprio Instituto do Louriçal e
que, portanto, reconhecemos aprioristicamente estabelecido -, e o jogo de contrapartidas
que daí adviriam, alicerçou-se diretamente, no caso específico do Conventinho, no
estatuto de fundadora e protetora auferido por D. Maria Ana, e na incorporação do
795 Arquivo Histórico da Paróquia de Santa Engrácia, Inventário da fábrica do Santíssimo Sacramento deSanta Engrácia, Lv. 3, fl. 13, nota à margem. Quanto ao centenário cofre de tartaruga, muito mais haveriapara dizer, pois longa e atribulada foi a sua história. Crê-se ser este o cofre que actualmente se encontraarrecadado numa das dependências da Igreja Paroquial de Sta. Engrácia.796 Pinho LEAL, Portugal antigo e moderno, Vol. IV, Lisboa, Livraria Editora de Mattos Moreira &Companhia, 1874, p. 213.797 Inventário dos bens da Irmandade do SS. Sacramento da freguesia de Santa Engracia, 1917, Arquivoda Paróquia de Santa Engrácia, Lv. 5, fl. 8.
233
edifício no real padroado. Quanto à liberalidade da fundadora, a Oração fúnebre
pregada em sua memória oferece-nos interessantes esclarecimentos:
como não quer edificar sobre area, volta-se a sua Augusta Irmã [...] para que
lhe conceda empregar suas preciozidades em obzequio do seu Deos. [...]: forão
joias, que excedião oito mil e mais cruzados, com que ella annualmente acudia
a todas as precizões daquellas Religiozas: forão outros socorrros, que a sua
religioza emulação não consentia prestassem alheas mãos: forão as immensas
sommas empregadas na fabrica, utensilios, e adornos do templo, e do convento.
[...] E quando os direitos da fundação, as suas liberalidades, a sua piedade, a
sua Regia qualidade a autorizavão ao Padroado, cede-o ao Throno, entrega o
seu governo espiritual ao Ordinario, e só reserva para si tudo, o que podia ser
objecto da sua cordeal caridade798.
Apesar de todo o crédito merecido, materialmente traduzido nas jóias e
rendimentos e dispensados pela infanta, na esmola régia e em legados pios799, a
subsistência da comunidade acusaria, logo após o falecimento da fundadora, a 16 de
janeiro de 1813, uma inquietante instabilidade. Assim se explica que, no ano seguinte, a
abadessa e religiosas do mosteiro requeiram a satisfação dos trinta alqueires de trigo
concedidos de ordinária, a par de oito moios de milho, por D. Maria I, alegando que
“precizão a continuação desta esmola”800. Seguramente no intuito de atenuar a opressão
sentida pela comunidade, D. João VI, ainda príncipe regente, toma diligências, por
decreto de 22 março de 1814,
798 Francisco da Mãe dos HOMENS, Oração fúnebre pregada por Fr. Francisco da Mãe dos Homens,pp. 26-27.799 D. Joana Berarda, 8.ª marquesa das Minas e 11.ª Condessa do Prado, foi uma das benfeitoras nãoapenas no mosteiro de Lisboa (onde seria sepultada) como também do seu congénere de Vila Pouca daBeira. Isto mesmo nos indica Fortunato de São Boaventura na Oração sagrada nas exéquias da Sra. D.Joana Bernarda de Sousa Lencastre e Noronha, Lisboa, Tipografia de Bulhões, 1827: “Naõ foi debaldeque a ditosa Marqueza das Minas preterido o jazigo do seus maiores, pedia o mais humilde de vossaIgreja, e vos amou com tal extremo, que muitas vezes repetio naõ haver no mundo lugares que pudessemagradar-lhe, senaõ dous a saber o deserto dos Antões, e Arsenios, e os Conventos do Desaggravo.”800AHPL, Manuscritos avulsos (sobre conventos.). A esmola dos oito moios de milho, concedida pelarainha, foi determinada pelo Alvará de Ordinária de 31 de Agosto de 1787. (ANTT, Chancelaria de D.Maria I, Lv. 32, fl.).
234
não só para que [as religiosas] possão perpetuamente reter, e incorporar no seu
Patrimonio os Bens de raiz, Apolices, e Padrões de Juro Real, que já possuem
[...] mas tambem os que houverem de adquirir com o produto das Joias que pela
mesma Infanta lhes forão doadas no valor de desoito contos quatro centos
desaseis mil trezentos e sessenta reis.801
Instituindo-se agora, para além de usufrutuárias, como proprietárias dos bens e
rendimentos que a infanta lhes destinara – através de um expediente que lhes permitiu
contornar o preceito canónico de renúncia à propriedade -, as religiosas passaram a
enfrentar diretamente a decadência geral da vida monástica, deixando de poder contar
com o valimento firme dos agentes que até aí vinham provendo à sua sustentação.
Receberiam ainda, em legado testamentário, os 480 réis deixados por morte de D. Maria
Benedita, a mais elevada soma que a princesa deixaria a um convento, apenas
equiparada à dispensada com o Mosteiro da Madre de Deus802.
A indiciar a pobreza que se insinuava, e a enunciar o efeito perverso da
dependência em relação à Coroa, lê-se, numa relação de bens e dívidas de 1830, que
"Este Mosteiro prezentemente tem m.to diminutos rendimentos por q. o seo forte foi
estabelecido do Erario e da hi coazi nada recebe prezentemente”803. Apesar da
precariedade económica e do decréscimo paulatino das vocações804, a perfeição da vida
religiosa não terá sido afetada, como faria notar um parecer emitido em março de 1823
pela Comissão Eclesiástica:
A Commissão quando contempla a dignidade e Perfeição com que neste
Convento se dezempenha a vida Religioza não pode deixar de dizer, que sem
duvida he huma das Corporações Religiosas, que mais digna se torna da
Contemplação dos Fieis, pelo respeito que lhes infunde, em huma vida tão
edificativa, e não duvida manifestar a maior satisfação quando vê que se
801 ANTT, Desembargo do Paço, Corte, Estremadura e Ilhas, Mç. 2184, cx. 2011. Do mesmo teor que odecreto mencionado é a provisão de 26/11/1820 (ANTT, Chancelaria de D. João VI, Lv. 35, fls. 6 v. – 7).802 ANTT, Gavetas, gaveta 16, mç. 3, n.º 10. A abertura do testamento data de 18 de Agosto de 1829.803 Segundo um documento que contém uma relação de bens, rendimentos e dívidas do Conventinho.(AHPL, Documentação avulsa relativa a conventos, Relação de todas as religiosas...).804 Em 1830, a comunidade já não perfazia o número de trinta e três (Cfr. AHPL, Documentação avulsarelativa a conventos, Relação de todas as religiosas... ).
235
conforma com a Ley, em dizer que este Convento deve ser conservado. V.ª Ex.ª
porem mandará o que foor mais justo805.
A somar ao crédito que a coroa lhe manifestava, o mosteiro foi igualmente
beneficiário do reiterado favor dos sumos pontífices, os quais, por intermédio de
sucessivos breves, em muito contribuíram para lhe firmar o estatuto de monumento de
excelência ao culto e desagravo do Santíssimo Sacramento. Neste sentido, pouco após a
fundação, um breve de Pio VI, de 14 de dezembro de 1784, concede a graça de altar
privilegiado às missas celebradas três vezes por semana no altar da Sagrada Família do
mosteiro, sendo as segundas, quartas e sextas-feiras a favor de qualquer sacerdote aí
celebrante806. Mais tarde, o mesmo pontífice concede, por breve de 24 de janeiro de
1786, indulgência plenária a todos os fiéis que, devidamente preparados, orassem
durante algum tempo perante o Santíssimo exposto às quintas-feiras na igreja.
Enfatizando o relevo simbólico de tal dia, a Cúria romana concede, pouco depois, por
breve de 11 de fevereiro de 1786, aos mosteiros do Louriçal e de Lisboa, licença para
que o ofício e celebração litúrgica do dia do Corpo de Deus possa ser dito e celebrado
todas as quintas-feiras do ano, exceto nos dias de II classe ou duplex maius. Permite,
igualmente, que nos dias do Tríduo do Desagravo - 16, 17 e 18 de janeiro - se possa
recitar o ofício e celebrar a Santa Missa sob rito duplex.
Além de outras graças entretanto concedidas, uma impetração da abadessa e
demais religiosas conduziria ao breve de Leão XII de 21 de janeiro de 1829, pelo qual
seria dada indulgência plenária a todos quantos visitassem, em qualquer sexta-feira da
Quaresma ou na primeira sexta-feira de cada mês, questão que ficava ao arbítrio do
ordinário, a imagem de Jesus das Cinco Chagas, orando perante ela durante algum
tempo807.
Mais que pela exuberância arquitetónica, o Mosteiro do Desagravo impôs-se
pela índole comemorativa das ações de culto e devoção que promoveu, acolhendo,
dilatando e fazendo sua uma herança de mais de século. Perseverante no seu propósito,
805 ANTT, Ministério dos Negócios Eclesiásticos e Justiça, Convento do Desagravo, Mç. 268, n.º 4, 6 deMarço de 1823. Trata-se de um parecer emitido em resposta a uma Portaria da Secretaria dos Negócios[Eclesiásticos e] da Justiça, de 5 de Dezembro de 1882.806 Cfr. José do Nascimento BARREIRA, Breve História do Convento do Desagravo. O “Conventinho”de Lisboa, pp. 28 – 31.807 Cfr. Idem, ibidem.
236
atravessou a extinção das Ordens religiosas masculinas, em 1834 - e, com ela, a
supressão do vizinho Convento de S. Vicente de Fora -, a deslocação, em 1835, do
centro nevrálgico da paróquia de Santa Engrácia, cuja matriz ficaria sediada na igreja do
extinto Convento dos Barbadinhos, e a sua própria extinção, em 1902, enquanto casa
religiosa. Quanto à celebração do tríduo, só terá deixado de realizar-se, quando a igreja,
aberta ao culto mesmo após a supressão do claustro, cerrou de todo as suas portas.
237
4.4. Um percurso de acentuado declínio
Ao decréscimo dos rendimentos e, inevitavelmente, do número de professas,
somavam-se e sucediam-se, paralelas, as pressurosas manifestações de interesse da
Fazenda Pública pelo património monástico. Daí que, com a data de 1856, nos surja
uma primeira relação de bens, pessoal, dívidas, propriedades e foros808, orientada
seguramente para a previsão do ocaso da comunidade e, consequentemente, para a
preparação atempada da execução das disposições aplicáveis.
Acelerando os passos da supressão, em 1897, quando a casa não mais contava
que com um número ínfimo de religiosas – excluídas do cômputo as chamadas pupilas,
impedidas que estavam de tomar hábito809 -, o edifício do Conventinho seria provisória
e precariamente cedido às Irmãs Hospitaleiras810. Pouco antecipava, na verdade, o dia
12 de Dezembro em 1901811, data do falecimento da derradeira professa. Imediatamente
extinto pela aplicação da Lei de 4 de abril de 1861, os bens do mosteiro passariam, a 16
de Dezembro de 1902, para o domínio da Fazenda Pública.812
Não resultando imediatamente na apropriação pelo Estado do edifício ou na
desamortização, a extinção daria antes lugar à ocupação precária e provisória do mesmo
por instituições de índole para-religiosa. O primeiro passo seria dado a favor da
Associação das Servitas de Nossa Senhora das Dores813, cuja sede - o Recolhimento do
Rego - fora apropriada pelo Ministério da Fazenda. A concessão, inicialmente
808 ANTT, AHMF, Convento do Desagravo do Santíssimo Sacramento de Lisboa, cx. 2009.809 Acerca do conceito de “pupilas”, diz-nos o Padre Nascimento Barreira tratar-se do “nome com queeram apelidadas as pequenas admitidas como auxiliares nos deveres conventuais, como trabalhosdomésticos e mesmo canto do ofício divino, sem que pudessem professar, a teor das leis vigentes”.(BARREIRA, Breve História do Convento do Desagravo. O “Conventinho” de Lisboa, p. 31.)810 Sobre o percurso das Irmãs Hospitaleiras e sua passagem pelo Mosteiro do Desagravo, vd. HenriquePinto REMA (OFM), Crónica do Centenário da Congregação das Irmãs Franciscanas Hospitaleiras daImaculada Conceição. 1876-1976, Das origens até à República (1871-1910), Parte II, 1979.811 ANTT, AHMF, Convento do Desagravo do Santíssimo Sacramento, Cx. 2009, capilha 2, IV/A/52/5,1909.812 Ficando fechados numa caixa todos os papéis do cartório, enquanto os bens mobiliários seriamdepositados em nome da pupila D. Emília Rosa de Figueiredo.813 A Associação das Servitas de Nossa Senhora das Dores ficou instalada no Conventinho em 1901,embora tal data não corresponda à sua real fundação. Por decreto de 29 de Maio de 1848, seria unida aoRecolhimento de Nossa Senhora do Rosário (do Rego), ficando, no ano seguinte, submetida à Regra deSanto Agostinho. (Cfr. Regra de Santo Agostinho e estatutos para o governo de Nossa Senhora dasDores, Lisboa, Imprensa Silviana, 1849). Em relação ao período em que a associação fica sediada noConventinho, vd. ANTT, AC, Relação dos bens immobiliarios da associação das Servitas de N. S. dasDores, erecta no Convento do Desaggravo, Lv. 875 e ANTT, AC, Matricula. Livro para nelle selançarem o nome das associadas Servitas de Nossa Senhora das Dôres, Lv. 876.
238
provisória, preveria não só o edifício como todos os seus pertences, mas cedo a
associação, interpondo contra o Governo uma ação de manutenção de posse, lograria,
em 1903, a cedência definitiva do mosteiro - povoado, na altura, por cerca de 154
asiladas, pertencentes à dita associação. e por uma outra associação designada das
Escravas do Santíssimo Sacramento e Desagravo e, eventualmente, também por
pupilas814.
Em ordem a arrolar os bens do suprimido mosteiro, o Ministério das Finanças
faz constar, em carta de 1902, ao então inspetor da Academia Real de Belas Artes:
Tendo fallecido a ultima religiosa do convento do Desagravo do Santissimo
Sacramento, vulgarmente denominado o Conventinho, sito ao Campo de Santa
Clara, digne-se V. Ex.ª nomear pessoas idoneas para procederem à escolha dos
objectos que, pelo seu valor artistico ou archeologico, mereçam ser guardados
por deposito no museu nacional, excepto aquelles que desconcertem a harmonia
de um todo inamovivel e que devam conservar-se in loco pelo seu interesse
artistico ou archeologico. A fim de se conhecer se o templo, o edificio ou parte
d’elle merecerá considerar-se monumento nacional, V. Ex.ª dignar-se-há a
recomendar que a relação dos objectos escolhidos seja precedida de um
pequeno relatorio em que se resumam as linhas geraes e se opine sobre o seu
valor e antiguidade815.
Na sequência de tal solicitação, a Academia de Belas Artes elaboraria um elenco
dos objetos merecedores de depósito no Museu Nacional de Belas Artes e
Arqueologia816, enquanto, pari passu, seria executado um exaustivo Inventário dos bens
pertencentes ao suprimido convento do Desagravo do Santíssimo Sacramento817. Só
quase no termo do primeiro decénio de Novecentos se daria por findo o suceder
aliterativo de inventários, que englobaria a Relação dos Quadros remetidos para o
814 Sobre as associações religiosas constituídas na esteira da legislação de Hintze Riberito, vd. ArturVILLARES, As congregações religiosas em Portugal (1901-1926), Lisboa, Fundação CalousteGulbenkian, 2003.815 Carta da Repartição Central, ANTT, AHMF, Convento do Desagravo do Santíssimo Sacramento, Cx.2009, capilha 2, IV/A/52/5, 1902.816 ANTT, AHMF, Convento do Desagravo do Santíssimo Sacramento, Cx. 2009, capilha 2, IV/A/52/5,1902.817 ANTT, AHMF, Convento do Desagravo do Santíssimo Sacramento, Cx. 2009, capilha 1, 10 de Marçode 1902, fls. 5 - 104.
239
DLEC818, a Relação dos objectos procedentes do convento do Desagravo que deram
entrada no Museu Nacional de Arte Antiga, de 1912 819 e o elenco de Objectos de valor
artístico existentes no ex-convento do Desagravo, a Santa Clara (este, de 1919)820.
Mais que a ocupação do edifício por entidades que lhe eram alheias, bem que de
cariz religioso, foi a supressão do mosteiro enquanto tal que verdadeiramente favoreceu
reiteradas transformações de ordem institucional e, em consequência, de ordem
funcional e patrimonial. Foi aí que teve início a deslocação e dispersão de parte
substancial do recheio do Conventinho, como bem indicia a multiplicidade de
inventários que sobre ele incide.
O destino do espólio remanescente ficaria dependente, numa primeira fase, da
solicitação de objetos por parte das paróquias e de outras entidades públicas ou
privadas821. Sob esta modalidade, um dos três sinos do suprimido mosteiro seria cedido
ao Asilo da Ajuda, assim como, passados anos, os dois restantes viriam a servir à
fundição da estátua do Marquês de Pombal.
Com a República, teria início o segundo grande momento da história custodial
dos bens do mosteiro, que culminaria com a incorporação no atual Museu Nacional de
Arte Antiga de boa parte do recheio artístico inventariado, com a indissolúvel
desvirtuação da estrutura edificada, com a dispersão e descaminhos dos bens da igreja.
A Lei da separação do Estado das Igrejas, de 1911, levou ao compulsivo
abandono do edifício por parte da Associação das Servitas de Nossa Senhora das Dores
e, em 28 de julho de 1919, à incorporação do edifício e casa anexa nos Próprios da
Fazenda Nacional.
Se, até à República, o espaço litúrgico logrou manter a sua "armação interior", a
partir de então, a transfiguração do edificado tomará a forma completa de
dessacralização. Um despacho ministerial de 17 de novembro de 1914 autorizaria a
cedência provisória do templo ao Depósito Central de Fardamentos, organismo
dependente do Ministério da Guerra822. Chegado ao edifício, o novel inquilino revelaria
desígnio de bem mais abrangente tombo: não somente requeria a imediata desmontagem
da grade do coro baixo e a abertura dos confessionários situados lateralmente à dita
grade, como a posse de todo o mosteiro a fim de nele instalar oficinas de calçado, de
818 BNP-Arquivo Histórico, BN/AC/INC/DLEC/15/cx. 05 –02.819 MNAA, Livro de Incorporações, 1912, pp. 35-48.820 ANTT, AHMF, Convento do Desagravo do Santíssimo Sacramento, Cx. 2009, capilha 1, IV/A/52/1,s/d. [1919]. Vd. Doc. 12 do Anexo documental.821 O próprio decreto de maio de 1834 assim o determina.822 Lavrava-se a 2 de Dezembro o respetivo termo de entrega.
240
formas e outras congéneres823. Só depois da elaboração, em 1918, de um novo
inventário dos bens e do abandono do edifício pelo referido Depósito, a 27 de novembro
de 1919, o mosteiro seria definitivamente incorporado nos Próprios da Fazenda
Nacional824.
À margem de todo o nexo com o património edificado em si, o poder
eclesiástico empenhava-se – ao abrigo do favor auferido nos alvores do Estado Novo -,
por restituir a vida da extinta comunidade de clarissas, alcançando, por carta da Sagrada
Congregação dos Religiosos, datada de 2 de Maio de 1927, que o cenóbio fosse
considerado não extinto825. A Sagrada Congregação dos Religiosos estabelecia, de fato,
que "depois de examinadas todas as circunstancias", o Mosteiro "não debe, perante a
Igreja, considerar-se extincto", e conferia faculdade apostólica ao Cardeal-patriarca para
que reabilitasse canonicamente a vida das Clarissas do Desagravo826.
A cedência, em 1932, do templo à Direcção-Geral de Assistência para ampliação
do Asilo de Santa Clara, então sediado no antigo mosteiro, daria início a um novo
capítulo da história do edifício – mas já não da comunidade que lhe dera vida, que
haveria de trilhar, em paralelo, um caminho separado. Deve assinalar-se, ainda assim,
que a cedência da igreja foi de imediato precedida pela retirada do seu património
integrado, parte do qual aplicado na paroquial de uma pequena vila do concelho de
Pombal827.
A necessidade constante de adaptações funcionais do Asilo de Santa Clara
ditaria, de resto, a rápida transformação do edifício828. Sobre a desfiguração e a
823 Na altura, estavam instalados em Santa Engrácia as oficinas de calçado e anexos, mas em máscondições. ANTT, AHMF, Convento do Desagravo do Santíssimo Sacramento, Cx. 2009, capilha 1,IV/A/52/1, doc. 30.824 Desocupado e desinvestido, até 1932, de qualquer finalidade específica, o templo conseguiria, aindaassim, prolongar a incolumidade do seu património imóvel.825José do Nascimento BARREIRA (padre), Breve História do Convento do Convento do Desagravo. O“Conventinho” de Lisboa, pp. 33-37. Totalizavam o número de quatro as pupilas expulsas do mosteiroem 1911. Duas delas, Maria da Encarnação e Maria Clara da Eucaristia, noviciariam entretanto emCiudad Rodrigo. Considerado não extinto, ao mosteiro voltaram as professas que aí se juntaram àsrestantes recolhidas a fim de restaurarem a vida em comunidade. Passariam, em 1941, para o asilo deSanta Teresa de Carnide e, no ano seguinte, para Laveiras. Ocupam hoje o n.º 15 da Rua da Estrela emLisboa, sob a invocação do Imaculado Coração de Maria.826 Carta remetida pela Sagrada Congregação dos Religiosos a 3 de Maio de 1927 (Arquivo das IrmãsClarissas de Lisboa, Documentos avulsos sobre a fundação do Mosteiro do Desagravo).827 Trata-se da Igreja de Nossa Senhora da Graça, paróquia de Almagreira. Norberto de Araújo refere, nassuas Peregrinações, que os objectos passaram para uma “igreja de província”. Cfr. Peregrinações emLisboa, Vol. VIII, Lisboa, 1938, p. 83.828 Aspeto facilmente apreciável no espaço correspondente ao antigo templo, onde uma laje a dividir o pédireito dá existência a dois pisos: o superior, onde se instalariam camaratas, e o inferior, destinado arecreio. Até 1938, data em que os trabalhos de reconversão se dariam por terminados, os painéisazulejares que recobriam parte das paredes seriam retirados e enviados para a referida matriz de
241
dessacralização haveria ainda de pairar o espetro do desaparecimento, a partir do
momento em que dois planos de urbanização da zona de proteção das Igrejas de S.
Vicente e Sta. Engrácia, datados de 1939 e 1941, preveem a demolição do Asilo de
Santa Clara829.
Já em 1970, a alteração profunda da antiga cozinha e refeitório acarretaria a
demolição da chaminé monumental, enquanto a instalação, transcorridos poucos anos,
da Casa Pia de Santa Clara, viria dar continuidade à anterior vaga de transformações, de
que resultaria, com o passar do tempo, a quase completa transfiguração. Mais
recentemente, um aviso do Ministério das Finanças e da Administração Pública, de 18
de Junho de 2008, colocaria à venda o antigo edifício monástico, para, em março de
2013, ser votada a sua conversão em escola básica e jardim-de-infância830.
Almagreira, enquanto a porta da igreja se veria entaipada e as cantarias e degraus de acesso arrancados. Ainformação do autor corresponde a um ofício enviado à DGEMN a 4 de Novembro de 1938 que, semdúvida, lhe terá servido de base (Vd. Arquivo da DGEMN, Processo relativo à Casa Pia de Santa Clara).Cfr. Norberto de ARAÚJO, Peregrinações em Lisboa, Vol. VIII, Lisboa, 1938, p. 83.829 O projeto de 1941 fora apresentado pelo arquiteto Benavente, que refere que a zona de proteçãodefinida “atinge completamente o prédio onde está instalado o Asilo de Santa Clara.” (Vd. Arquivo daDGEMN, Processo relativo à Casa Pia de Santa Clara). O projeto, no entanto, não conheceria execução.830 Cfr. Aviso n.º 17950/2008, de 18 de Junho de 2008, Diário da República, n.º 116, Parte C.
242
4.5. Uma obra num tempo de mudança
A identidade e personalidade plástica do Conventinho ficam, antes de mais,
definidas pela adoção das Constituições do Louriçal e pelo complexo panorama plástico
da corte mariana. Embora, enquanto Presidente do Real Erário, o Marquês de Angeja
tenha determinado a cessação das obras de reconstrução da capital831, o reinado de D.
Maria I não deixou de assistir ao arrastar de um longo labor reconstrutivo, que assinala
o termo das igrejas da Madalena, Mártires, Santo Estêvão, São Nicolau ou Santo
António. O impulso dado à arquitetura religiosa, porém, incluíra não apenas a
continuidade da reedificação de certas casas, quanto igualmente a edificação de outras
cuja conceção não coubera no âmbito do plano e da política pombalina. Tal foi o caso
da Igreja e Convento do Sagrado Coração de Jesus, à Estrela e, da mesma forma, o
Conventinho.
Nem mesmo no âmbito circunscrito das realizações pombalinas, a coerência
formal está garantida, o que se revela particularmente manifesto no campo da
arquitetura sacra, já que é nesta que o prospeto do Marquês permite uma maior
liberdade de conceção832. No enorme estaleiro levantado na imediata sequência do 1.º
de novembro de 1755, sob as ideias matrizes de racionalidade, funcionalidade e
estandardização, a arquitetura manifesta, afinal, obediência a mais que um princípio de
ação. É desta forma que, como faz notar Raquel Henriques da Silva, um mesmo
arquiteto nos surge ao serviço de encomendantes representativos de gostos em tudo
dissemelhantes, como Reinaldo Manuel dos Santos ou Mateus Vicente de Oliveira, que
tanto vemos associados ao Passeio Público como às igrejas da Baixa, e tanto a estas
como à Basílica da Estrela833. Da mesma forma, os estilos adotados durante tal período
traduzem opções artísticas também intimamente contrastantes, de onde o vivo
contraposto verificado entre a estética de Reinaldo Manuel - a quem ficará a dever-se a
tradução mais acabada do pombalino na arquitetura sacra - e a que Joaquim de Oliveira
e Mateus Vicente traduziria respetivamente na Igreja das Mercês (1760-1777) e na de
831 Cfr. Joaquim Veríssimo SERRÃO, História de Portugal, Vol. VI, Lisboa, Círculo de Leitores, 1982,pp. 265-300.832 As casas religiosas correspondiam à categoria arquitetónica que gozava de maior liberdade deconceção, ficando-lhe atrás os palácios e os prédios de rendimento. Cfr. José-Augusto FRANÇA, Areconstrução de Lisboa e a arquitectura pombalina, 3ª edição, Lisboa, Biblioteca Breve, 1989, pp. 65-68.833 Raquel Henriques da SILVA, “Arquitectura religiosa pombalina”, in AAVV, Monumentos, n.º 21,Lisboa, Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, 2004, pp. 110-112.
243
Santo António (1767-1812), onde se torna evidente o influxo do Barroco de Borromini
e do Rococó de Queluz.
Mas mesmo dentro da malha ortogonal da “cidade baixa” emergem influências
transversais aos estilos da época, tornando-se detetáveis tanto a herança da arquitetura
militar, do estilo chão e da aprendizagem de Mafra, como prenúncios de neoclassicismo
ou mesmo laivos de romantismo834. Para o ecletismo que se enuncia contribui também a
diferença de formação dos arquitetos, que tinham como centros o Palácio-Convento de
Mafra, a Aula da Fortificação e a Aula dos Paços da Ribeira835. Não obstande as
diferentes aprendizagens e meios de encomenda, os principais tracistas da Reconstrução
- Mateus Vicente, Reinaldo Manuel, Manuel Caetano de Sousa, Francisco António de
Sousa, entre outros – souberam notabilizar-se tanto no terreno do Barroco Joanino de
Mafra, quanto no bem menos opulento estaleiro da reconstrução pombalina, quanto,
ainda, no domínio restrito e seletivo de Queluz ou da Estrela.
Foi efetivamente à margem da política artística pombalina que se situam as
principais obras assinaladas pela iniciativa da realeza836. Corporizando um contraposto
de acentuados contornos políticos e doutrinais, tais realizações acabam por substanciar
uma clivagem estética igualmente pronunciada837. O caso do Palácio de Queluz surge-
nos, neste sentido, como paradigmático, uma vez que, ao exprimir o gosto de uma corte
que parecia querer alhear-se da realidade sócio-urbanística e arquitetónica da capital,
contrapõe à sobriedade, estandardização e empirismo da Baixa, que reclama já o
neoclássico, o requinte e a riqueza dos pormenores decorativos de feição
assumidamente rococó e o intimismo dos ambientes que espelham os tempos da
vivência cortesã.
Pelo teor da sua fundação e pelo percurso da sua vocação, não é difícil
adivinhar-se que o Conventinho tenha comungado o mesmo espírito que subjazera às
construções régias do seu tempo: à semelhança do empreendimento de D. Maria I, e
sobretudo deste, o Desagravo teve de atravessar um reinado para alcançar existência
material; tal como aquele, partilhou de um mesmo fervor religioso e de um mesmo afã
de recuperação de uma herança aparentemente ameaçada; e, como a Basílica, contou
834 Raquel Henriques da SILVA, op. cit., pp. 110-112.835 Idem, ibidem.836 Idem, ibidem, pp.110-111.837 José-Augusto FRANÇA, A reconstrução de Lisboa e a arquitectura pombalina, p. 78. O autor refere,a propósito, que o programa de Queluz exprime um contraste estético em relação ao programa de Pombal“pela sua utilização à margem dos interesses maiores da nova sociedade que se criava”.
244
com o valimento das mesmas personalidades e a participação dos mesmos atores –
desde logo o 3.º Marquês de Angeja, o arcebispo de Tessalónica, D. Frei Inácio de São
Caetano e Mateus Vicente de Oliveira, arquiteto e procurador do Marquês de Angeja.
245
4.6. Etapas e intervenientes
O edifício que as religiosas do Louriçal iriam receber por doação de Pedro José
de Noronha Camões838, construído, por seu turno, sobre “casas” pouco antes adquiridas
a Bartolomeu de Aranda839 correspondia, relembrando as palavras do visitador
canónico, a "caza quadrada de pedra e cal com porta para a rua tendo somente
comunicação com huma casa propria para Coro Sem sobrado algum sobre a mesma
Ermida, e com Campa Levantada", tendo o espaço litúrgico altar "de Madeira e pedra de
Ara no logar porporsionado."840
Avaliar esta construção enquanto antecedente ou preexistência do Conventinho
não é por certo fácil. A Gazeta de Lisboa, ao noticiar, reportando-se ao dia 22 de
Outubro de 1783, a chegada a Lisboa de “quatro Religiosas Recoletas do Convento do
Louriçal com seis Noviças, para serem fundadoras do novo Convento no Campo de
Santa Clara”, especifica que as mesmas “pousarão no Recolhimento contíguo ao novo
Convento”. A disjunção invocada sugere a existência de dois diferentes corpos
edificados e/ou de duas entidades organicamente distintas. Parece-nos, contudo, que tal
como a antiga comunidade de terceiras, também o seu recolhimento se tenha totalmente
incorporado no mosteiro, mantendo, muito embora, marcas desse processo de transição,
operado através de adaptações planimétricas e funcionais841.
Com efeito, inversamente ao que, de certo modo, indicia a Gazeta, a fundação de
D. Maria Ana pôs definitivamente termo à existência institucional do recolhimento, e a
atestá-lo está, em primeiro lugar, a doação do Marquês de Angeja, bem como toda a
documentação que regista, a partir de 1783, somente a presença do Conventinho
naquela área de implantação. Os livros das décimas da cidade, onde o “Recolhimento do
838 ANTT, Cartório n.º 11, Lv. 711, fls. 13 v. – 14 v839 ANTT, Cartório n.º 5 A, Lv. 53, fls. 9 v. – 10 v. Note-se que foi procurador do marquês nesta comprao arquiteto e sargento-mor Mateus Vicente de Oliveira.840 AHPL, Registo Geral, Lv. 377, fls. 160-161. Beneficiado Caetano Alberto Duarte, a quem incumbe avisita canónica ao recolhimento, realizada no seguimento da licença para fundação concedida em 23 deAbril de 1779 pelo Cardeal-Patriarca D. Fernando I.841 Tal como fizemos notar no capítulo anterior, as idades de ingresso da religião poderão indiciar teremsido várias as recolhidas a tomar hábito após a construção do mosteiro, situação que poderia corresponderdesde o início ao seu intento. (Vd. Exame de religiosas de vários conventos de Lisboa, 1753-1793, AHPL,mss. 571.)
246
Desagravo” é substituído, em 1784, pelo “Convento do Desagravo”842, não deixam
dúvidas em relação a isso.
Por outro lado, o fato de acolher recolhidas e religiosas, bem assim a
possibilidade de transição de um para outro estado, terá representado um necessário
enquadramento arquitetónico tendente a definir no espaço o âmbito da vida interna e
externa à rigorosa clausura, a sugerir, portanto, a ampliação das dependências e
estruturas anexas843.
Num outro plano, a elevação a real mosteiro terá emprestado à adaptação do
edifício o carácter também de engrandecimento material. É neste sentido que deverá ler-
se a edificação de um novo espaço litúrgico sobre a pequena ermida primitiva, ou, em
alternativa, a hipotética conservação desta última e o seu eventual aproveitamento para
uma função simbolicamente menos nobre. Nenhuma adaptação que consideremos
poderá, contudo, ter sido tão ampla a ponto de perfazer mais de quatro anos de
execução, pois que, se o recolhimento estava levantado em abril de 1779, o mosteiro
estava-o em outubro de 1783.
A inexistência de documentação cartográfica consistente não abona o
esclarecimento da questão. De apenas uma planta que pudesse corresponder à
configuração inicial do edifício instituído por devoção de D. Francisca de Assis temos
conhecimento. Não datada, apresenta-se identificada como sendo da vizinha Igreja de
Santa Engrácia (Fig.III.3.5.)844. Nela vemos uma representação planimétrica
sumariamente legendada da suposta casa - ou apenas do seu piso térreo - das Clarissas
do Desagravo. A legenda referencia uma série de espaços - nem sempre associados à
projeção gráfica do edifício -, próprios, no seu conjunto, de uma casa de clausura: para
além da capela, sacristia, coro e cómodos do donato e do capelão, são também
referenciados o refeitório, cozinha, despensa, comua, casa de provisão e casa de lavor,
bem como a porta de acesso à portaria, a portaria propriamente dita, a casa da veleira,
842 AHTC, Livros das Décimas. Cidade de Lisboa, Arruamentos, Lv. 436, fl. 40. A data de 1784 indicaque o mosteiro tem data anterior, uma vez que os livros se reportam a Janeiro do ano indicado.843 O documento, já citado, de 1830, mostra claramente que o Conventinho acolhia não apenas acomunidade regral, e, por isso, que o mesmo espaço, no seu todo, seria partilhado por mais que um tipode função e de vivência. (Relação de todas as religiosas..., AHPL, Documentação avulsa relativa aconventos).844 AHMOPTC, Desenhos avulsos, Igreja de Santa Engrácia, D1C. Acreditamos que a planta se refira emprimeira mão ao Convento ou Recolhimento do Desagravo, ainda que a sua identificação, feita aposteriori, indique a vizinha paroquial, apenas esquematicamente delineada mas contudo maisidentificável que o Conventinho, cuja memória deveria ter-se já esvaído à data do tratamento documentalda espécie cartográfica.
247
casa da porteira, casa da grade das visitas, grade onde as religiosas recebem as visitas e
os cubículos, estes em número de treze.
A atentar nas diversas plantas de Lisboa levantadas a partir de cerca de 1785845,
e, em último caso, no texto dos inventariantes que, em 1902, descreveram o Mosteiro do
Desagravo e seus pertences no contexto da sua supressão846, é significativa a distância
orgânica e funcional entre este e o edifício sobredito. No entanto, não deixamos de notar
que a implantação do claustro - e celas, ao seu redor -, e de um espaço sagrado, não
legendado, correspondem aproximadamente à implantação dos mesmos na construção
posterior, em que vemos igualmente mantida a disposição relativa das duas estruturas.
Sobre estas bases, conquanto hipotéticas, se levantaria a nova fábrica, num
processo que, até a Rainha decretar a conclusão, por decreto 28 de julho de 1783, não
mais duraria que quatro anos. Ao período compreendido entre 1780 e finais de 1783 se
reportam, na verdade, parte de um conjunto avulso de contas, hoje conservadas na
Biblioteca da Ajuda, que assinalam, passo a passo, o evoluir da construção.
A teor das mesmas, os trabalhos terão arrancado em outubro de 1780, data do
primeiro “Rezumo do q’ emportão as folhas dos jornaes” pertencentes à obra do ainda
designado “Recolhim.to do Dezagravo do SS.mo Sacramento. Q’ se fás no citio do
Campo de S.ta Clara”847, cujo recibo traz a assinatura de Mateus Vicente, arquiteto que
aparece em várias outros documentos de despesa até meados de 1781, ao que tudo
indica na direção da própria obra848.
No dealbar dos trabalhos o cenóbio era ainda designado como “Convento do
Louriçal do Campo de Santa Clara” ou inclusive “Recolhimento do Desagravo”. Para aí
foram encomendadas cargas sucessivas de materiais. Até 1782, foi a madeira -
tabuinhas, casquinha dobrada, vigamentos de castanho - a principal encomenda, sendo o
grosso do trabalho desenvolvido por carpinteiros e desentulhadores. Neste período, a
obra esteve sob os auspícios de Mateus Vicente, sendo financiada por intermédio de
Frei Bernardino de Nossa Senhora do Carmo, certamente procurador das religiosas ou
845 Planta topographica da cidade de Lisboa: comprehendendo na sua extenção a beira mar da ponted'Alcantara até ao convento das Commendadeiras de Santos … [178-], IGP.846 ANTT, AHMF, Convento do Desagravo do Santíssimo Sacramento, Cx. 2009, capilha 1, 10 de Marçode 1902, fls. 101-104.847 BA, 54-XI-38, n.º 40 – 21.848 Um outro conjunto de contas, “assinadas por José António Monteiro” assinala, em relação à semanafinda em 21 de Outubro de 1780, a “Despesa que se fez com os oficiais de carpinteiros, que trabalharamna obra do Recolhimento do Desagravo do SS.mo Sacramento, que se faz no sítio do Campo de Sta.Clara, que mandou trabalhar o Sargento-mor Mateus Vicente de Oliveira por ordem que p.ª isso tem”.(BA, 54-X-17, 178 c – g).
248
da Infanta D. Maria Ana, como indicam vários recibos assinados por aquele arquiteto,
entre os quais surge uma declaração, com data de 9 de dezembro de 1780, “de como
recebeu de Fr. Bernardo do N. Sr.a do Carmo a quantia da conta acima”. O aporte de
madeiras e o seu trabalho é assegurado por José António Monteiro, que, na mesma
altura, se encontrava a trabalhar como carpinteiro no Convento da Estrela849.
Entre dezembro de 1781 e março de 1782, em contas relativas à aquisição de
madeiras, aparece como intermediário Francisco António. Assim o testemunham os
vários carregamentos que ao mosteiro chegaram “por ordem do S.r Francisco
António”850, da mesma forma que a “Conta da despeza q’ se fés na obra do Conv.to do
Dezagravo no Campo de S.ta Clara q’ he da Sereníssima Snr.a Infinta [sic]. E foi
Administrador M.e Francisco António”851, datada de Novembro de 1782.
Este mestre aparecerá mais tarde como administrador da obra numa breve e
quase isolada intervenção de 1798852, como elucidativamente documenta a conta “da
obra que se fez no Convento do Desagravo no Campo de St.ª Clara [...]. Incumbida a
dita obra, e pela d.ª Sereníssima Sr.ª ao mestre Francisco António.”853 O oficial estaria
efetivamente ligado à Casa de Bragança, como adiante veremos, marcando também
presença em intervenções ocorridas na Quinta da Água, em Corroios, propriedade de D.
Maria Ana.
Uma nova fase de obras terá lugar, consolidados os primeiros trabalhos. Nesta,
regista-se uma maior variedade e especificidade dos materiais encomendados e uma
também maior especialidade dos ofícios envolvidos. É, na verdade, em 1782, sobretudo
em finais, que o trabalho de carpintaria – diretamente ligado à aquisição de vigas,
pregos, madeira, fasquiado, fios de tábuas de casquinha – vai cedendo lugar ao trabalho
dos empreiteiros no aparelhamento de soalhos e forros ou no serramento de vigas854 e
ao de outros ofícios a cujo grau de especialidade corresponde uma maior visibilidade
dos seus executantes. É o caso de entalhadores e pintores, em relação aos quais a
documentação nos devolve nomes consagrados como os de Silvestre de Faria Lobo ou
de Pedro Alexandrino. De igual modo, é esta a fase que nos permite indexar a obra e
849 José António Monteiro encontra-se, pela mesma altura, a trabalhar como carpinteiro na obra daBasílica do Coração de Jesus.850 Há registo de tais remessas em Dezembro de 1781, 22 de Março e de 12 Abril de 1782. (BA, 54-VIII-50, n.º 140).851 BA, 54-X-17, n.º 124.852 BA, 54-X-6, n.º 9.853 BA, 54-X-6, n.º 9. A conta respeita ao intervalo compreendido entre os meses de Setembro eNovembro de 1798.854 BA, 54-VIII-50, n.ºs 120-125.
249
seus agentes a espaços e áreas específicos e avaliar, portanto, o grau e tipo de
intervenção efetivamente realizada.
Até ao termo da empreitada, cuja data não terá ultrapassado o mês de dezembro
de 1783855, o edifício toma corpo num suceder de tarefas cuja perceção se faz
progressivamente mais palpável. Assim, entre uutubro e novembro de 1782, são
entalhados o “teto do ante coro e os florois da Caza Grd.e”, é executado com casquinha
e entalhado o “teto da tribuna”, sendo pago, pouco depois, o “Frete de duas Fragatas q.
trouceraó a madeira de bordo do hiate”, adquiridas as “pranchas de amarello p.ª o
Coro”856. Entre novembro e dezembro, o intenso labor dos carpinteiros, na serragem de
“mais fios de tabua”, anda a par com a pintura dos “Payneis do teto do Coro” e a
execução das duas “Capellas Colaterais q. tinha ajustado Matheus Vicente com o
intalhador Silvestre de faria” [Silvestre de Faria Lobo]857.
As obras do primeiro trimestre de 83 abrem sob o fôlego das do ano precedente,
registando, logo em janeiro, a execução de “cinco vaõs de caixilhos de pedraria”, o
trabalho do carpinteiro António Lobo e de seus companheiros, que “fasquiaraõ quarenta
e quatro sellas”, o forro e aparelhamento de vinte e cinco celas, o forro de “quatro
payneis do corredor q. entra p.ª o antecoro”, o assentamento de “treze vaos de janellas
da frente do mar” e a execução de “sinco vaos de portas de entremeio”, “16 vãos de
portas das selas” e “7 vãos de portas das selas” 858. Até fevereiro de 1783, Francisco
França e seus companheiros aparelham e forram onze celas, os painéis do dormitório
ladrilhado e as celas do noviciado e corredor.
Entretanto, os espaços sagrados continuam em execução, e novamente Francisco
França é chamado a forrar a aparelhar a “Caza do Comungatorio e o corredor, q. vai do
encorpo [sic] p.ª a d.ª Caza, e a sacristia do dito”, assim como a aparelhar e guarnecer
“mais dez alizares”. Executam-se ainda “treze vãos de portas, dois vãos de janelas do
coro de cima, mais os ditos dois vãos para a capella do Senhor morto”, “2 vãos s/
postigos, 1 vão de portas para o Comungatório, três vãos de janelas do Noviciado, 5
vãos também para a noviciado”. É ainda a Francisco França que incumbirá aparelhar e
forrar a “caza deperfundes” [De Profundis], bem como aparelhar e forrar a “despensa
855 Curiosamente, as contas da cera lavrada têm início em Janeiro daquele ano, facto que sugere acontinuidade da existência da comunidade terciária e a provável transferência da imputação das despesaspara quem proveu igualmente ao pagamento da obra.856 BA, 54-X-17, 184.857 BA, 54-X-17, 185.858 BA, 54-X-17, 179.
250
de cima e casa de Agra”, da mesma forma que a António Lobo e seus companheiros é
dado fasquiar “quatro Capellas nos tetos”.
Neste afanoso estaleiro, encontra-se pela mesma altura a trabalhar Pedro
Alexandrino de Carvalho, a quem se dá “por pintar o paynel do teto da Capella mór, e
mais o teto do Senhor morto”, numa encomenda orçada em 30.000 réis859. Enquanto
isso, a igreja monástica vai sendo provida das respectivas alfaias e demais elementos
indispensáveis ao culto e à prática litúrgica, como atesta um recibo assinado por
António Lopes da Silva onde se dá conta da compra de “uma urna dourada com seus
casticais e huma cruz e dois evanjelhos e huma salva tudo dourado, e pedra dara [pedra
de ara] por 96$000”860.
Assegurada a definição e funcionalidade dos espaços, consumada no período
mais substantivo das obras, acima considerado, ter-se-á sucedido uma fase de arranjos
em dependências eventualmente não especificadas e, naturalmente, de acabamentos, o
que justifica as cargas de madeiras e de toda uma sorte de fechaduras, “fixas”,
parafusos, trancas e “tranquetas”, cuja última remessa surge documentada por conta de
22 de Outubro de 1783. Até ao último momento, portanto, se prepara a vinda das
religiosas do Louriçal, que aportam em Lisboa a 22 de Outubro de 1783, no termo de
uma descida paulatina em direção ao Tejo861.
Novos espaços vimos surgirem, certamente acréscimos ou remodelações dos
espaços preexistentes: celas, capelas, a capela do Senhor Morto, Casa Grande, tribuna,
comungatório, igreja, casa de agra, despensa, De Profundis, noviciaria, sacristia, coro
alto, coro baixo, tribuna, comungatório.
A documentação não menciona a totalidade dos espaços monásticos ou porque
estes haviam já sido construídos - lembremos a cozinha, despensa, refeitório e casa de
provisão, assinaladas na planta a que atrás nos referimos -, ou porque o foram
posteriormente ou porque, por algum motivo, não couberam na sindicância dos
documentos de contabilidade ou daqueles por nós consultados.
Só quinze anos mais tarde novas intervenções são noticiadas. Respeitam
somente ao ano de 1798, aparecendo ligadas à já referida conta cometida “pela d.ª
Sereníssima Sr.ª ao mestre Francisco António”862. Em torno do trabalho de pedreiros,
859 Ibidem.860 Ibidem.861 Pernoitariam, já o vimos, no “recolhimento contíguo” ao Convento, mas onde entretanto váriasbenfeitorias haviam já sido efetuadas.862 BA, 54-X-6, n.º 9. A conta respeita ao intervalo entre os meses de Setembro e Novembro de 1798.
251
funileiros, carpinteiros, mestres vidraceiros e pintores, a braços com remessas de cal,
areia, madeira, pregos, rede, telhas, tijolos ou caixilhos, se consumou a brevíssima
intervenção de 1798, prontamente finda em Novembro do mesmo ano. Obras
possivelmente associadas ao provimento de um sistema de canalização, como parece
indiciar a encomenda de umas “tarrachas p.ª o aqueduto dos Banhos, q. fes o Cp.am
Mateus”863 [Mateus Vicente de Oliveira].
Novas obras se registam entre 1803 e 1804, envolvendo, desta feita, o trabalho
de pedreiros, carpinteiros e trabalhadores não especificados e, paralelamente, a
aquisição de telhas, areia, cal, pregos do telhado, pregos, tintas e madeiras (paus de
castanho, fios ao alto, fios ao baixo, folhas de casquinha, tábuas de casquinha,
casquinha dobrada). Aventamos poder tratar-se de obras de reparação, remodelação,
beneficiação ou mesmo de finalização de alguma ou algumas das divisões.
Complementam e, de algum modo, precisam as contas no rastreio do evoluir da
configuração do mosteiro, alguns elementos cartográficos. É nas Viagens a Portugal, de
James Murphy, num plano de Lisboa em 1785 que encontramos a primeira
representação gráfica do mosteiro (Fig.III.3.2.) 864. Apesar da imprecisão de contornos e
limites, devolve-se-nos a imagem de um conjunto unitário em cujo formato trapezoidal
se inscreve, a leste, a igreja, e, extremo oposto, uma área não edificada, conquanto
circunscrita. O claustro, elemento essencial e por norma graficamente assinalado, não
consta desta esquemática planta, o que naturalmente não implica a sua inexistência.
Muito semelhante ao de Murphy e igualmente impreciso é o espaço assinalado
como “Real Convento do Desagravo” na Planta topographica da cidade de Lisboa:
comprehendendo na sua extenção abeira mar da ponte d'Alcantara até ao convento das
Commendadeiras de Santos, traçada possivelmente nos anos 80 de Setecentos (Fig.
III.3.1.) 865. Aqui já se apresenta o claustro, situado a norte da igreja866.
Nenhuma alteração significativa avulta nos limites do conjunto edificado entre
as representações iniciais e as que se reportam ao século XIX ou mesmo a inícios do
século XX. No entanto, nalgumas plantas que entre estes limites temporais se
intercalam revelam curiosas transformações. A Carta topografica de Lisboa e seus
863 Ibidem.864 James MURPHY, Viagens em Portugal, trad., pref. e notas de Castelo Branco Chaves, Lisboa, LivrosHoizonte, 1998 [Tít. original Travels in Portugal, 1795].865 Planta topographica da cidade de Lisboa: comprehendendo na sua extenção abeira mar da ponted'Alcantara até ao convento das Commendadeiras de Santos … [178-], IGP, CA356.866 Ainda sem o Parque de Artilharia construído - sê-lo-ia sensivelmente no local onde se encontrava odestruído mosteiro medieval de clarissas urbanistas, a leste do Campo de Santa Clara.
252
suburbios, levantada em 1807867, revela a existência de uma construção contínua a
murar toda a fachada norte do edifício, o que poderia tanto corresponder a um muro de
sustentação de terrenos como a parte do edifício principal868. Mais curioso é que o
edifício monástico surge confinado à superfície edificada imediatamente fronteira à
então Igreja de Santa Engrácia, situação que nos levaria a pensar que o lugar onde se
situa a igreja possa ter correspondido à implantação do primitivo recolhimento, e que o
edifício localizado a oeste daquele primeiro núcleo tenha tido início posterior - o que
vem, afinal, contrariar as “alusões” da planta que fizemos corresponder ao antigo
beatério.
Não duvidamos da existência de alterações ao edificado ou seus limites, embora,
no período a que os elementos cartográficos acima remetem, os creiamos
essencialmente referentes ao traçado da cerca. Para tal aponta um requerimento, com
data compreendido entre 1778 e 1790, feito pelas religiosas do mosteiro ao Senado da
Câmara de "cedência gratuita de um terreno, junto ao dito mosteiro e igreja e a quitação
dos seus direitos."869
Finalmente, a planta de 1858, traçada por Filipe Folque (Fig. III.3.3.), parece
praticamente corresponder à Planta Topográfica de Lisboa levantada por Vieira da
Silva em 1909-1911 (Fig. III.3.4.). E nem uma nem outra distam substancialmente das
primeiras representações dos anos 80 de Setecentos. A leitura de uma planta de inícios
de Novecentos870 – estando já o edifício ocupado pelo Asilo de Santa Clara - permite
detetar a “casa do capelão”, construção adossada e justaposta à parte leste do conjunto,
que, no entanto, desde o início deveria existir.
Como vemos, a abordagem aos primórdios materiais do Conventinho revela uma
construção faseada e pautada por adaptações e sucessivos reajustes, envolta no mesmo
caráter de imprecisão de que enferma, se vista no seu conjunto, a documentação que no-
lo revela.
867 Levantada pelo Capitão Eng. Duarte José Fava e estampada em 1831 pela Casa do Risco das ObrasPúblicas.868 Podemos inclusivamente imaginar que, a uma eventual paredão preexistente (não seria o único noCampo de Santa Clara), se tenham anexado várias dependências entretanto construídas (cozinha,refeitório, etc.).869 "Consulta sobre o requerimento da madre abadessa e mais religiosas do Real Mosteiro do Desagravodo Santissimo Sacramento", Arquivo Municipal de Lisboa -Núcleo Histórico, Chancelaria Régia, Livrode Consultas do Ano de 1790 de D. Maria I, f. 182 a 211 (Data(s): 1778-10-16 - 1790-09-20).870 As sucessivas alterações introduzidas à feição original do edifício acabarão por conferir à planta umaspecto de manta de retalhos verdadeiramente labiríntico.
253
4.7. Em torno da autoria
Ficava em 1833 estabelecida a autoria e datação do conjunto monástico desde
que Gonzaga Pereira, nos seus Monumentos sacros, referiria que a igreja do
Conventinho fora “projectada em 1766 por Reinaldo”. À guisa de fonte primária, o
texto inspirou, ainda no século XIX, Manuel Bernardes Branco871 e, no início de
Novecentos, Gomes de Brito872. Mais recentemente, a referência de Gonzaga Pereira
seria assimilada por Norberto de Araújo, que, em processo metonímico, toma a autoria
da igreja pela do conjunto monástico e a data do projeto de arquitetura pela data da
fundação. Informa-nos, assim, ter sido “esta Casa franciscana fundada [...] pela Infanta
D. Maria Ana, filha do rei D. José, em 1766”, segundo projeto de Reinaldo Manuel dos
Santos.873 Instituídas, por seu turno, como matriz, às Peregrinações em Lisboa se
reportam, não sem o contributo conjugado dos Monumentos Sacros, alguns textos mais
recentes que mantêm a consignação àquele arquiteto da autoria do Desagravo874.
E, conquanto a questão venha até hoje carecendo do necessário aprofundamento,
não é efetivamente de estranhar a atribuição do traçado a Reinaldo Manuel, seja pelo
caráter matricial das fontes apontadas, seja pela biografia artística do arquiteto. Figura
assinalada do seu tempo, Reinaldo Manuel (1731-1791) exibe no currículo a nomeação
para arquiteto das Obras Públicas, a direção das obras de reconstrução pós-terramoto de
Lisboa enquanto arquiteto da Casa do Risco das Obras Públicas, ou o traço da Igreja dos
Mártires ou de São Nicolau, em Lisboa. Pertence-lhe também a construção, em
colaboração com Mateus Vicente de Oliveira e após a morte deste, da Basílica da
Estrela, bem como a ideação do Passeio Público e do pedestal da estátua de D. José,
concebido em parceria com Machado de Castro.
Sabemos, no entanto, que o mosteiro ou parte dele não conheceu qualquer
realização datável de 1766. E, caso existisse um plano da altura, hipótese não de todo
descartável, teríamos que concluir, com Maria Marques Calado, que o autor o teria
concebido enquanto “simples arquiteto da Casa do Risco das Obras Públicas, na época
871 Manuel Bernardes BRANCO, “O Conventinho do Desagravo de Lisboa”, O Panorama, Vol. XVI,Lisboa, 1866, pp. 409-410 e, do mesmo autor, Historia das Ordens Monasticas em Portugal, Vol. I,Lisboa, Livraria Editora de Tavares Cardoso & Irmão, 1888, pp. 122-124.872 Gomes de BRITO, Os itinerários de Lisboa, s/n, s/d, pp. 77.873 Cfr. ARAÚJO, Peregrinações..., Vol. VIII, p. 84874 Veja-se o artigo de Manuela Brig sobre o Mosteiro do Desagravo no Dicionário da História deLisboa, pp. 331-332.
254
em que lhe foram entregues os primeiros trabalhos de responsabilidade”875, o que, à
partida, não parece consentâneo com a índole do empreendimento. Recordando, no
entanto, que a Estrela, pensada nos anos 60 de Setecentos apenas se iniciou quase duas
décadas mais tarde, o Conventinho poderia igualmente ter sido pensado décadas antes, o
que justificaria um projeto eventualmente preterido - ou não - em favor de outro
posterior. Além disso, os manuscritos da Ajuda não referem jamais Reinaldo Manuel,
antes assinalando claramente a intervenção de dois outros imponentes mestres do
tempo: Mateus Vicente de Oliveira e Francisco António (de Sousa ou Cangalhas).
O nome do sargento-mor Mateus Vicente (1706 – 1786) aparece em várias,
conquanto escassas, contas e recibos respeitantes ao início da obra do Conventinho,
deixando repentinamente de figurar a partir de então. Documentada entre outubro de
1780 e julho do ano seguinte, da sua presença fala, em primeiro lugar, uma conta de 21
de outubro de 1780, onde se contabiliza a despesa “que se fez com os oficiais de
carpinteiros, que trabalharam na obra do Recolhimento do Desagravo do SS.mo
Sacramento, que se faz no sítio do Campo de Sta. Clara, que mandou trabalhar o
Sargento-mor Mateus Vicente de Oliveira por ordem que p.ª isso tem”876. De 9 de
dezembro é também um recibo autógrafo em que o arquiteto declara ter recebido “de Fr.
Bernardo do N. Sr.a do Carmo a quantia” respeitante a determinada conta877. Das mãos
de Frei Bernardo haveria ainda de constar receber, a 8 de Julho de 1781, a quantia de
176$260 reis para José Ventura da Costa, “apontador dos desentulhos do Convento
novo das Religiosas do Louriçal, os distribuir pelos ribeirinhos que tiram os ditos
desentulhos”878.
Nenhum destes documentos comete, em definitivo, a Mateus Vicente o traçado
da obra, antes apenas lhe assaca a direção ou administração da mesma. Ao encontro
desta conclusão está um documento transcrito por Sousa Viterbo no seu Diccionario
histórico e documental. Trata-se de um recibo assinado por Vicente em data ainda
anterior a julho de 1780. Constante, segundo se dá a entender, dos Manuscritos da
Ajuda, diz o mesmo:
875 Maria Marques CALADO, Reynaldo Manoel dos Santos. Um arquitecto português do século XVIII,Vol. I, Lisboa, 1973, p. 93.876 BA, 54-X-17, n.º 178 c.877 BA, 54-XI-38, n.º 40.878 BA, 54-X-17, n.º 178.
255
Recebi do Ex.mo e R.mo Senhor Arcebispo d’Tezellonica, D. Ignacio; oito
centos mil reis, para entregar ao empreiteiro Antonio dos Santos, por conta da
obra que está fazendo do seu Officio no Campo d'Santa Clara, para novo
convento das Relligosas do Louriçal: e por ter recebido a d.ª quantia, pacei o
prezente: Lx.ª. 3. d’Junho d’: 1781: - O Sargento Mor Matheus Vicente de
Olivr.ª879
No momento em que lhe foram solicitados os serviços, Mateus Vicente era,
desde 1778, arquiteto supranumerário das obras dos Paços Reais, bem como arquiteto
da Casa do Infantado e do Senado da Câmara, do Priorado do Crato e da Santa Igreja
Patriarcal. Formara-se na Escola de Mafra, onde fora aprendiz de Ludovice, tendo
trabalhado mais tarde para este880.
É insofismável a intervenção direta do arquiteto nas obras do mosteiro, mas o
mesmo não podemos dizer a respeito da autoria do traçado. Tal como ele, que assinou
várias contas e recibos e prestou contas aos pagadores do mosteiro, vários outros houve.
Da mesma forma que D. Frei Inácio de S. Caetano, arcebispo de Tessalónica foi um dos
vários intermediários entre dotadores, comunidade religiosa e oficiais contratados - tal
como o foram Frei Bernardo de Nossa Senhora do Carmo, D. João Mazzoni, arcebispo
879 Recibo de Mateus Vicente de Oliveira, 3 de Junho de 1781, BA, Colecção de Manuscritos, apud SousaVITERBO, Diccionario historico e documental dos architectos, engenheiros…Vol. II, Lisboa, ImprensaNacional, 1904, p. 223. Não obstante a consulta exaustiva da documentação da Biblioteca da Ajuda, foi-nos impossível encontrar o documento citado. Viterbo especifica que o mesmo lhe foi dado a conhecerpelo seu “saudoso amigo Rodrigo Vicente de Almeida”, antigo bibliotecário da Ajuda. Baseando-secertamente nesta passagem, Nuno Saldanha afirma que o Mosteiro do Desagravo deve o seu projeto aMateus Vicente. Diz, a propósito, que o arquiteto “permaneceria ainda ligado aos patrocinadores daEstrela, refletindo o favor que desfrutava na corte mariana, num trabalho que executou a pedido de FreiInácio de S. Caetano em 1781, pouco antes da sua morte, para o Convento das Religiosas do Louriçal noCampo de Santa Clara, onde já existia um convento de clarissas. Trata-se talvez do antigo Convento doDesagravo do Santíssimo Sacramento, chamado Conventinho Novo, mandado erguer por vontade dainfanta Dona Maria Ana, irmã da rainha, de quem Frei Inácio era confessor.” (Nuno SALDANHA, “ABasílica da Estrela”, in MOITA, Irisalva (dir.), O Livro de Lisboa, p. 399, nota 4. Vd., do mesmo autor, a“A “Quinta Chaga” de Cristo. A Basílica das Carmelitas Descalças do Coração de Jesus à Estrela”, inAAVV, Monumentos, n.º 21, 2004, p. 15, nota 11). Oferece-nos dúvida que a empreitada tenha sidonecessariamente executada “a pedido” do arcebispo de Tessalónica, já que este poderia simplesmenteestar a assumir-se como intermediário, entre vários outros que sabemos ter havido. Por outro lado, orecibo autógrafo de Mateus Vicente, implicando-o muito embora nas obras, não lhe concede liminarmentea autoria do projeto. Por último, o “novo convento” das religiosas, na citação supra, terá induzido àhipótese da existência anterior de outra casa religiosa no local. Na verdade, cremos que o termo adjetivepreferencialmente a construção de que iriam ser fundadoras as religiosas do Louriçal e menos o edifícioprojetado em relação a alguma construção preexistente (recolhimento, aliás, e não convento).880 Cfr. Sousa VITERBO, Diccionario historico e documental dos architectos, engenheiros…, pp. 222-226.
256
da Baía e o Padre João Pedro Patroni, também confessor de D. Maria Ana881 -, Mateus
Vicente surge como um de vários nomes - Francisco António, José da Mota e Francisco
Xavier da Graça - por ordem de quem foi sucessivamente dependendo o andamento dos
trabalhos.
Pareceria plausível reconhecer a Mateus Vicente um papel no traçado da igreja
ou mesmo da totalidade da parte construída. A sua ligação à Basílica da Estrela, cujo
projeto gizou e a que esteve ligado desde 1779, e onde trabalharam vários oficiais
igualmente participantes na obra do Conventinho, coloca-o no contexto de uma
encomenda informada por um mesmo registo social e artístico. Registo cuja comunhão
se vê capitalizada pela ligação do arquiteto ao Infante D. Pedro, que lhe cometera as
obras do Palácio de Queluz, e que considerámos ser um dos grandes preconizadores da
causa do desagravo do Santíssimo Sacramento – de que resultaria o Recolhimento do
Desagravo de Montemor-o-Novo.
Aos dados de contexto vêm somar-se os aspetos de análise formal no reforço da
suposição de que a estreita relação entre o citado triângulo monumental tenha
igualmente contemplado a partilha do seu arquiteto. Não nos surpreende, portanto, a
semelhança que se regista entre o recorte e decoração dos vãos exteriores da parte
construída por Mateus Vicente em Queluz, onde trabalhou de 1752 a 1784, e os
mesmos, também de Vicente, pertencentes à face lateral do Convento do Sagrado
Coração de Jesus. O portal da igreja do Conventinho (Fig. III.3.8.), único vão decorado
de todo o conjunto, dir-se-ia análogo ao do portal lateral da fachada principal do
Convento da Estrela, que igualmente se repete na fachada norte do conjunto. O frontão,
abaixado e sem retorno, sobrepuja, com a sua cornija particularmente projetada, o vão
lateralmente definido por lintéis simples e retilíneos.
Em relação ao interior da pequena igreja, o paralelo com a Estrela882 cede,
contudo, perante o exemplo da Capela Real do Palácio de Queluz, onde certos
pormenores ornamentais, como a moldura das capelas e o carácter requintado e ligeiro
do todo revelam alguma proximidade com o pouco que conhecemos da igreja do
Conventinho. A ligação que, anos antes, se estabelecera entre Mateus Vicente e
Silvestre de Faria Lobo, autor da obra de talha da dita capela, surge-nos agora
881 Tal como atestam os documentos da Biblioteca da Ajuda.882 concebida na linha da grandiosidade e magnificência de Mafra e do ciclo do Barroco Internacional quetal obra introduz. Cfr. Paulo Varela GOMES, O essencial sobre a arquitectura barroca em Portugal,Lisboa, INCM, pp. 32-41.
257
transferida para o estaleiro do templo das monjas clarissas, para o qual o mestre
conceberia, sob o juízo daquele arquiteto, as duas capelas laterais883.
A Mateus Vicente, que verificamos ter estado ligado à parte mais significativa
da conceção do novo mosteiro, seguiu-se a direção ou administração de Francisco
António. A referência à intervenção de Francisco António afigura-se-nos bem mais
explícita que a relativa ao mestre seu antecessor. Não só por sua “ordem” chegam
materiais ao estaleiro, registadas em contas assinadas em Dezembro de 1781, março de
1782 e abril do mesmo ano884, como em novembro de 1782 é mencionado como
“administrador” da obra e, em maio de 1798, se diz ter-lhe sido “incumbida” a obra pela
infanta fundadora885.
A definição do efetivo papel de Francisco António na obra do Conventinho tira
partido do carácter balizador da intervenção de Mateus Vicente, a quem por certo o
primeiro sucedeu por presumível impossibilidade do segundo, empenhado à época na
construção da Basílica da Estrela e na obra de Queluz, que então prosseguia. A
Francisco António poderá dever-se a definição dos trabalhos de 1798 e de inícios de
Oitocentos - época, este última, em que, porém, o seu nome não consta da
documentação. Na direção ou fiscalização das obras estava, nesta última fase, Francisco
Xavier da Graça, de que desconhecemos qualquer papel na conceção de um eventual
projeto relativo aos anos de 1803 e 1804, onde, segundo a documentação, apenas
“consertos” terão sido executados.
Uma vez mais que se nos coloca a dúvida sobre a identidade do arquiteto
sistematicamente mencionado como "Francisco António". Dois mestres cremos poder
corresponder-lhe: Francisco António de Sousa, filho do arquiteto Manuel Caetano de
Sousa, e Francisco António Ferreira Cangalhas, filho do também arquiteto João Ferreira
Cangalhas. O primeiro, Francisco António de Sousa, terá estado implicado na
edificação do Hospital dos Inválidos de Runa, fundado por vontade de D. Maria
Benedita, irmã de D. Maria Ana886. A confiança da princesa no mestre ultrapassaria a
obra de Runa, como revela uma conta de finais de 1798, relativa ao que “importou a
883 Uma alusão a Silvestre de Faria Lobo e à obra que realizou encontra-se, por exemplo, em IlídioSALTEIRO, “Lobo, Silvestre de Faria”, in PEREIRA, José Fernandes (dir.), Dicionário da Arte Barrocaem Portugal, pp. 262-263.884 BA, 54-VIII-50, n.º 140.885 BA, 54-X-6, n.º 9.886 BA, 54-X-17. n.º 162. O recibo traz a data de 18 de Maio de 1804. tal como indica um recibo assinadopelo Beneficiado Henrique António João de Sousa enquanto “procurador de Joaquina Maria daConceição, viúva de Francisco António, da consignação para continuação da obra do Hospital dosInválidos de Runa”.
258
obra do conserto das casas de Simão José de Azevedo, mandada fazer pela Sereníssima
Senhora Princeza Viúva, debaixo da inspecção e incumbência do mestre Francisco
António”887. Nas obras do Palácio de Queluz regista-se, sob o nome de “Francisco
António”, a intervenção, em 1764, de um empreiteiro e, em 1784, de um pedreiro,
enquanto, em 1802, a direção dos trabalhos aparece vinculada a Francisco António,
arquiteto888.
Estaríamos, pois, também perante o autor da decoração efémera executada por
ocasião das exéquias de D. Maria na Basílica da Estrela, em 1816, perante o diretor,
desde 1802, das obras de Queluz e, bem assim, perante um arquiteto da Casa do
Infantado, da Casa de Bragança, da Santa Igreja Patriarcal, da Basílica de Santa Maria
Maior e das três ordens militares, cargos em que sucedeu ao Pai889. Tratando-se este
mestre da figura identificada nas contas do Conventinho, concluímos que, até àquela
data, nenhuma obra de relevo lhe havia sido confiada.
A atividade exercida nos mais importantes estaleiros não significaria, aliás, para
o artista, o necessário reconhecimento, já que a prisão e o desterro, decretados por
suspeita de envolvimento na conspiração de Gomes Freire de Andrade, lhe ditou o
precoce afastamento de uma carreira artística supostamente promissora890. Não
obstante, vemos no registo familiar que unia os estaleiros em que operou uma nota em
favor da verosimilhança desta identificação.
Não menor coerência, porém, vislumbramos na identificação do enigmático
"Francisco António" com Francisco António Ferreira Cangalhas, cuja se obra
desenvolve essencialmente na segunda metade de Setecentos. Está documentada a sua
atividade como ajudante da Casa do Risco, arquiteto geral da cidade, das Obras Livres,
enquanto diretor da então recém-criada Inspeção do Plano para a Reedificação da
887 BA, 54-X-6, n.º 10.888A operar sobretudo na segunda metade de Setecentos esteve também Francisco António FerreiraCangalhas, filho de João Ferreira Cangalhas e irmão de João Ferreira Cangalhas. Trabalhou na Casa doRisco e nas obras do Aqueduto enquanto ajudante de Reinaldo Manuel, assim como na Igreja de S.Francisco (cfr. José Manuel PEDREIRINHO, Dicionário dos arquitectos..., p. 80).889 Cfr. Sousa VITERBO, Diccionario...., “Sousa, Francisco António”, Vol. I, pp. 150-153 e Vol. III, pp.71-72. Era filho e neto de arquitetos, respetivamente de Manuel Caetano de Sousa e de Caetano Tomás deSousa.890 José Manuel PEDREIRINHO, “Sousa, Francisco António de”, Dicionário dos arquitectos activos emPortugal do século I à actualidade, Porto, Edições Afrontamento, 1994, p. 233. Veja-se também SousaVITERBO (coord.), Diccionario Historico e Documental dos Architectos, Engenheiros e ConstructoresPortuguezes, Vol. III, Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1922, pp. 71-72 (verbete: "Sousa(Francisco Antonio de)").
259
Cidade891, arquiteto interveniente nas obras da Igreja de S. Francisco e autor do plano da
Igreja da Conceição Velha892.
Cada vez mais apartados da figura de “Reinaldo”, bem que numa época em que
este continua a dominar o cenário da arquitetura na capital893, é Mateus Vicente de
Oliveira quem, de fato, emerge como o mais credível ideador do mosteiro de D. Maria
Ana. É difícil, no entanto, não considerar que, seja Mateus Vicente, seja "Francisco
António" - sobretudo se Francisco António de Sousa -, seja Reinaldo comungam, mais
ou menos direta ou convictamente, a formação em Mafra, a atividade em Queluz e na
Estrela, a proximidade da Casa do Infantado e a proximidade do núcleo de encomenda
mais arraigadamente cortesã e mariana. A cada um, tais estações marcaram o percurso e
definiram o espírito das intervenções.
891 Cfr. Walter ROSSA, "CANGALHAS, Francisco António Ferreira", Dicionário Barroco, p. 108.892 Cfr. Sousa VITERBO (coord.), "Cangalhas (Francisco António Ferreira)", op. cit., Vol. I, Lisboa,Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1899, pp. 162.893 Além das vários intervenções em Lisboa, é do arquitecto o plano de reconstrução de Vila Real deSanto António, igualmente assolada pelo terramoto de 1755.
260
4.8. O mosteiro: arquitetura e património integrado
A elevação do Recolhimento à regular observância e ao real padroado significou
a abertura a uma herança construtiva e artística que remontava às demais casas do
Desagravo894, assim como importou, ao acolher recolhidas e religiosas, a viabilidade
material de transição entre uma comunidade terciária e uma comunidade clausurada.
O desenho da expressão material do Conventinho (Figs. III.3.8-11), ficaria,
contudo, maiormente assinalado pelo teor da sua própria investidura simbólica. Quase
paredes meias com a mole impositiva de Santa Engrácia, subordinar-se-ia aos
constrangimentos de um terreno marcado por um decline acentuado e pelo acanhamento
espacial, que ditaria a configuração retangular e estreita do conjunto. Uma modesta
cerca envolvia parte do edifício, cintando internamente hortas, pomares e jardins.
Apenas a fachada sul da igreja e a contígua casa do capelão logravam ter expressão
exterior.
Registos iconográficos oitocentistas e mesmo posteriores refletem do mosteiro
uma imagem de severa pobreza. Exíguas as dimensões, constrito o espaço de
implantação, fruste o impacto visual do conjunto, comprometido pelo perfil sobranceiro
da vizinha paroquial, de que um estreito corredor tão-somente separa.
O interior, a atentar na descrição contida num inventário de bens elaborado em
1902895, no contexto da supressão do mosteiro, desvela-nos, no itinerário quase
labiríntico por entre escadas, vãos e corredores, uma estrutura funcional e
organicamente complexa. Aberta a nascente, perpendicularmente à fachada da igreja, a
portaria de fora marcava a comunicabilidade entre século e clausura. Instância de uma
mediação complexa, o ingresso integrava o locutório e a “portaria de dentro” e, abrindo-
se à sua direita, a “casa da roda”. A portaria conduzia a corredores em cuja correnteza se
distribuíam celas e “casas” que ora comunicavam com o claustro, ora conduziam à
“cerca de baixo”. Num dos corredores deste piso térreo abria-se o antecoro, que, por sua
vez, levava ao coro-baixo, e à “tribuna de baixo” ou “comungatório”.
894 Tenha-se em consideração o Mosteiro do Louriçal, que passou, aliás, por várias alterações ao longodos tempos, e as casas da mesma observância que, mais ou menos pela mesma época, se iam erguendopor terras de Portugal.895 Esta descrição, apesar de oferecer uma visita perfeitamente labiríntica ao Mosteiro do Desagravo - emque avulta um confuso entrecruzar de corredores desenvolvidos em todos os quadrantes, e uma profusãode “casas”, pátios e escadas –, tem a virtualidade de designar algumas das antigas divisões e de destacar oacesso e comunicação entre os vários espaços.
261
O vestíbulo, espaço de charneira, abria para a “segunda parte baixa”, bem assim
para o piso superior, a que se acedia pela escadaria principal. Era no primeiro piso que,
ao longo de um vasto corredor que voltejava toda a estrutura, se distribuíam as trinta e
três celas individuais que, por sua vez, se abriam para o sobreclaustro. Do lado nascente,
despontava a “casa do presépio” e, contíguos a esta, o antecoro e coro alto e a “tribuna
grande da capela-mor da igreja”. Várias dependências e oficinas, o refeitório e a cozinha
distribuíam-se igualmente ao longo desta extensa passagem onde, na quadra poente, se
situava a noviciaria e respetiva cozinha e capela. Na quadra sul, tinha lugar a enfermaria
com seu refeitório próprio.
Neste primeiro piso, abria-se ainda a “cerca de cima”, onde um poço coberto - já
entulhado em 1902 -, dois lagos de cantaria, terreno destinado a horta, parreiras e
algumas árvores de fruto assegurariam parte do sustento material da comunidade. Uma
escada interior comunicava com a “tribuna de baixo” ou “comungatório” e com uns
pátios intermédios do edifício.
Contígua à igreja, ocupando o extremo nascente do conjunto, e confrontando-se
a norte, sul e nascente com o Campo de Santa Clara, situava-se a casa do capelão,
construção independente mas ligada interiormente ao templo. Compunha-se por dois
edifícios, correspondentes às dependências do espaço litúrgico e às moradias do
sacristão, um deles, e do capelão, o outro.
A análise do discurso técnico e descritivo do inventariante permite-nos
identificar certos eixos estruturadores e distribuidores de espaços consoante a sua
função e hierarquia896. A nascente, a igreja surgia acompanhada pela sala do capítulo,
santuário e sacristia, dotando de sacralidade e estendendo a sua posição hierárquica aos
espaços que lhe eram funcionalmente adjacentes. Configurando uma situação típica, os
locais de comunicação com o exterior - portaria, locutório, casa da roda - desenvolviam-
se perpendicularmente ao templo. O claustro, por seu turno, situado a poente da igreja,
organizava em seu redor as divisões destinadas a celas e dormitórios, à noviciaria,
enfermaria e ao refeitório e cozinha, estes últimos com planta projetada a nascente. O
terreno cercado limitava as restantes áreas de trabalho e de sobrevivência corporal e
material que a sul do claustro se desenvolviam897.
896 Cfr. Susana Gonçalves Cacela MATIAS, O espaço conventual nas ordens mendicantes. O Conventode Nossa Senhora dos Mártires do Alvito, Vol. I, 2001, pp. 181-182.897 Seguimos, nesta descrição, assim como na análise do espaço conventual, a terminologia e contributode Nelson Correia BORGES, “Arquitectura Monástica Portuguesa na Época Moderna”, Museu, IV Série,n.º 7, 1998.
262
O caráter funcional do espaço impôs, por outro lado, uma disposição altimétrica
das divisões. Os dormitórios - celas e dormitório do noviciado - situavam-se no
primeiro piso, com comunicação para o sobreclaustro, enquanto algumas celas,
possivelmente de recolhidas ou de pessoal alheio à profissão religiosa, se dispunham no
piso térreo, dando diretamente para o claustro.
O terreno de implantação revelar-se-ia determinante para a organização espacial
do mosteiro. Certamente em virtude da diferença de cotas verificada entre a parte sul e
norte do conjunto, cozinha e refeitório situavam-se não no piso térreo, mas no primeiro.
Este último, de fato, correspondia, na parte do terreno situado a norte, a um piso térreo,
por onde era feito o abastecimento de víveres e produtos afins898.
Podemos supor que esta disposição tenha, no essencial, correspondido ao plano
primitivo do mosteiro. Se, por um lado, estão aí presentes as estruturas definidoras da
sua própria existência, por outro, o terreno disponível não deveria favorecer alterações
substanciais na disposição relativa desses mesmos espaços, pelo que as alterações
deverão ter-se verificado sobretudo no plano da função atribuída a cada uma das
divisões e à reformulação da sua importância relativa, e ter decorrido de acrescentos a
partir de então realizados.
Depois da análise da organização e distribuição espacial do mosteiro, impõe-se
atentar na vivência dos espaços definida pela Regra, práticas e devoções - que, sendo
gerais em relação aos vários mosteiros, tornam-se específicas em relação aos demais.
Procuremos sublinhar as coordenadas espaciais atrás assinaladas, seguindo uma vez
mais a grelha proposta por Nelson Correia Borges899. Sobre o claustro, espaço litúrgico
e de oração, pontos de contacto com o exterior, espaços de lazer e locais de
sobrevivência corporal focaremos, pois, de seguida, a nossa análise.
4.8.1. O templo (Figs. III.3.26.-36)
Sem se projetar da linha contínua que compõe a quase totalidade da extensão da
fachada sul do complexo monástico, o templo, que diríamos esteticamente fundir-se
898 Esse mesmo desnível possibilitava a existência, na quadra sul, de um piso inferior onde se situavamdependências ligadas à exploração agrícola.899 Idem, ibidem, pp. 35-55.
263
com os panos murários dos espaços que interiormente lhe são contíguos, apresenta-se
radicalmente desornamentado, rasgado por uma sucessão monótona de vãos de verga
reta, de onde apenas ressalta o portal de gosto tardo-barroco que, aberto a meio da nave
do templo, lhe assinala o ingresso900. A fachada, chã, reflete a estruturação interna dos
espaços, assinalando as suas divisões verticalmente pelas pilastras, horizontalmente pelo
nível das cimalhas e pela disposição e dimensão das janelas. Igreja de fora e coros, alto
e baixo, transparecem do exterior. Volumetricamente alheia às demais, e de altura
consideravelmente inferior, desenvolvia-se, no extremo nascente, a casa do capelão.
A meio desta fachada, abria-se o reduzido templo de planta longitudinal,
retangular, coberto por nave única abobadada, onde, na parte fundeira, se situavam os
coros, alto e baixo, e, no extremo oposto, a capela-mor orientada, em cujos flancos se
desenvolviam duas capelas laterais. A iluminação, lateral, era unicamente assegurada
pelos elevados janelões rasgados nas paredes.
Não seria grande o impacte do conjunto, invariavelmente descrito num apelo às
notas de simplicidade, acanhamento espacial, contenção decorativa e, inclusivamente,
gosto discutível. Na súmula de Manuel Bernardes Branco, a “egreja e convento são mui
pequenos e pobres, e nada offerecem de notavel, nem digno de especial menção”901,
enquanto Gonzaga Pereira a qualifica como “pequena e sufrivel de gosto”, podendo
“acomodar 300 fieis ao serviço da Igreja Romana”902.
Ainda que a exuberância não constasse dos predicados que lhe foram apontados
por aqueles que sobre ela se debruçaram, a igreja não seria de todo desprovida de
elementos de interesse ornamental, não lhe faltando a talha, painéis azulejares, pinturas
e estuques decorativos. Dos espaços visíveis pelos fiéis, destacava-se o altar-mor,
verdadeiro ponto de fuga do cenário litúrgico, onde o trono eucarístico e o sacrário se
soerguiam perante o olhar dos fiéis. Transposto o portal e o guarda-vento, de onde
pendia um reposteiro “de baeta encarnada, com guarnição de galão de retroz
amarello”903, para lá se dirigia a atenção dos crentes. Todos os ângulos do templo
900 O facto de a fachada não ser axial alude à necessária existência, nos mosteiros femininos, dos coros,alto e baixo, situados opostamente ao altar mor. Vd., a título de exemplo, Paulo Varela GOMES, “Afachada pseudo-frontal nas igrejas monásticas femininas portuguesas”, in Virgínia FRÓIS (coord.),Conversas à volta dos conventos, Évora, Casa do Sul Editora, 2002, 229-242.901 Manuel Bernardes BRANCO, Diário Illustrado, n.º 191, 9 de Janeiro de 1873. Num outro texto domesmo autor, a Historia das Ordens Monasticas em Portugal, Vol. I, p. 124, refere-se, em igual registo,que o “templo é muito pequeno e escuro, e em quanto a bellas artes nada alli se encontra digno deespecial menção.”902 Luis Gonzaga PEREIRA, Monumentos sacros de Lisboa em 1833, pp. 309-311.903 Inventário dos bens…fl. 33.
264
deveriam propiciar a visualização do sacrário – “grande de madeira entalhada e
dourada, e respetiva chave de prata com laço de fita de seda vermelha”904 - exposto no
topo da estrutura piramidal do trono.
Duas colunas com capitel e entablamento dividiam o corpo da igreja da capela-
mor, bem assim uma “teia de madeira do Brasil com ornatos em talha”, anteposta
perante o altar-mor e os colaterais905. O retábulo, elegante, no dizer do autor do
Monumentos Sacros foi, tal como alguns azulejos que revestiam as paredes do templo,
algumas alfaias e parte do aparato decorativo que recobria a nave do templo, trasladado
nos anos trinta de Novecentos906 para a Igreja de Nossa Senhora da Graça, paroquial de
Almagreira, concelho de Pombal907.
Do teto, que exibia o painel dado a pintar, em 1783, a Pedro Alexandrino, parece
ter-se-lhe perdido o rasto. Na mesma situação se encontram os painéis de azulejo que
ornavam o registo inferior das paredes da capela-mor, cuja execução seria semelhante
aos da nave mas retratando alegorias sacras908.
Recortado por forma a ser inserido na capela principal de Almagreira, e
restaurado, ao que se pensa, em meados do século - operação que lhe terá
completamente alterado a tonalidade original - o retábulo do Desagravo é de madeira
pintada com ornatos de talha909, era dominado pela tribuna, ladeada por dois nichos
dedicados, de acordo com a tradição da Ordem, aos santos seus fundadores. Encimada
por uma profusão de cabeças de anjos entremeadas por rebuscadas grinaldas e
contornada, a toda a volta, por motivos flamejantes - a remeter para a decoração dos
medalhões da capela de Queluz -, a tribuna abrigava, qual radioso resplendor o
904 Inventário dos bens..., fl. 32 v.905 Segundo o Inventário de 1902. Na relação de peças enviadas para o então Museu de Arte eArcheologia, assim como no respectivo relatório existente no MNAA, faz-se referência à teia do altar-mor e dos dois altares laterais.906 Norberto de ARAÚJO diz, a respeito, que os “belos azulejos foram arrancados em 1932 - o que lherestava - e levados para uma igreja da província”. Estes dados não constam, porém, da documentação daDGEMN também consultada pelo autor, mas são, no entanto, operações a que certamente “assistiu”, jáque suas contemporâneas. (Cfr. ARAÚJO, Peregrinações..., Vol. VIII, p. 84).907 Cfr. Gustavo de Matos SEQUEIRA, Inventário artístico de Portugal, Vol. V, Lisboa, AcademiaNacional de Belas-Artes, 1955, pp. 110-111.908 Segundo o Inventário dos bens de 1902, a igreja seria “guarnecida por um lambri de azulejo de bonitodesenho e valor artistico, allegoricos ao desacato de Santa Engracia, isto no corpo da igreja, porque naCapella mór tem a mesma decoração mas alludindo assumptos religiosos”. (Inventário dos bens..., fl. 103,ANTT, AHMF, Convento do Desagravo do Santíssimo Sacramento, Cx. 2009, capilha 1, capilha 1, 10 deMarço de 1902).909 Em relação a este ponto, explica José Fernandes Pereira que a talha esteve “ausente das grandes obrasreais do século XVIII”, tal como Mafra, Estrela ou nas paroquiais pombalinas, prova de que a “suamissão foi, de facto, a de dinamizar espaços exíguos”. (Cfr. PEREIRA, Arquitectura barroca emPortugal, 1.ª edição, Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa. Ministério da Educação eCultura/Biblioteca Breve, 1986, pp. 147 – 148).
265
imponente trono eucarístico. Da mesma madeira pintada, era este composto por degraus
e decorado com ornatos de talha. No topo, ficaria exposto, de forma canonicamente
calendarizada, o Santíssimo no interior de uma custódia que, nas cerimónias mais
importantes, deveria corresponder à valiosa peça que um inventário de bens do mosteiro
descreve como custódia de trabalho antigo, em prata dourada cravejada com toda uma
sorte de crisólitas e guarnecida de topázios de apreciáveis dimensões910.
Os nichos, elegantemente desenhados pelo trabalho sóbrio da talha e coroados
por um complexo e dinâmico frontão em dossel abundante de volutas e do jogo de
côncavos e convexos, abrigariam as estátuas dos santos da Ordem, “muito bem
palpadas”, no dizer de Gonzaga Pereira. Seriam estas, aliás, as únicas peças escultóricas
do templo, as quais poderão corresponder ao que o Inventário de 1902 sumariamente
assinala como um São Francisco e uma Santa Clara de madeira, ambos de cerca de um
metro e vinte de altura, cujo valor é superior a qualquer dos demais objetos escultóricos
- todos eles, aliás, de menores dimensões911.
As peanhas que as sustentavam, novamente pejadas de dinâmicos enrolamentos,
apresentavam-se decorativamente ligadas a portas abertas inferiormente. Destas, merece
realce o remate simultaneamente elegante e rebuscado, onde avulta um frontão de tripla
curvatura que, uma vez mais, confina com os vãos rasgados da capela do Palácio dos
Senhores do Infantado.
No seu conjunto, a decoração do retábulo, harmoniosa apesar dos elementos
complexos a que recorre, remete claramente para o rococó no tipo de motivos e, mais
ainda, na aplicação eminentemente ornamental que lhes empresta. O concheado, as asas
de morcego e os motivos florais compõem os fantasiosos ornatos que pontuam, aqui e
ali, a estrutura afinal lisa do retábulo.
Decorariam possivelmente o altar-mor, a urna e castiçais dourados adquiridos
durante a primeira campanha de obras do edifício.912 Depositário da reserva eucarística,
o tabernáculo apresenta a forma de templete, sustentado por colunas compósitas e
910 Ainda que conste do documento de Livro de Entradas do MNAA, a peça, como a própria relação deobjetos refere, não deu entrada no museu, tendo antes recolhido à Caixa Geral dos Depósitos. (Vd.“Relação dos objectos do extincto Convento do Desagravo que foram recolhidos no Museu Nacional deArte Antiga” MNAA, Objectos provenientes de conventos e igrejas, 1912, pp. 35-48.).911 Para além de não poder naturalmente ser vista em termos absolutos, a formação mesma daqueles aquem é cometida a tarefa de inventariação impõe cumulativas reservas que, mais uma vez, pedem algumarelativização na leitura dos resultados. (Sobre a importância da formação – ou não – dos inventariantes,vd., Raquel Henrique da SILVA, “A extinção dos conventos e a elaboração da Lisboa burguesa”, Olisipo,Série 2, n.º 2, 1996, pp. 43-48).912 BA, 54-X-17.
266
coroado por cúpula bolbosa rematada nos ângulos por uma série de caprichosas volutas
curvadas e contracurvadas. No topo, um pelicano coroa o conjunto, enfatizando a
natureza sacrificial do mistério que a peça custodia.
Dispostas ou nos ângulos de interseção da nave única com a superfície parietal
do arco da capela-mor, ou em ângulo reto em relação à mesma capela, as duas colaterais
– as mesmas que haviam sido “ajustadas” por Mateus Vicente ao entalhador Silvestre de
Faria Lobo, e de que desconhecemos qualquer registo iconográfico - exibiam também
retábulos “reservados com as devidas têas de madeira do Brazil”913, e decorados, cada
um deles, por um quadro representando alegorias sacras devido ao pincel da infanta
fundadora. Um dos dois, refere G. Pereira, havia sido gravado por Carneiro da Silva,
professor da infanta e de suas irmãs914.
O corpo do templo, marcado verticalmente por pilastras e pelas colunas da
capela-mor, era decorado, no nível inferior das paredes, por painéis azulejares de
indeclinável valor simbólico, alusivos ao desacato de Santa Engrácia. Estes painéis que,
nas Peregrinações915, Norberto de Araújo diz terem sido levados em 1932 para uma
igreja de província, encontram-se na Igreja paroquial de Nossa Senhora da Graça de
Almagreira. Matos Sequeira, no seu Inventário Artístico, refere-se igualmente à
deslocação de um silhar de azulejos “de pintura azul sobre esmalte branco, com
alegorias, a verde, castanho e amarelo”916. Seria estes os painéis da capela-mor?
Atualmente, em Almagreira apenas aí se encontram dois, colocados, na sequência de
uma campanha de obras realizada em 1955, na frontaria do templo. Retrata um o furto
da custódia, o outro, um aspeto da captura do réu. Assim os descreve Santos Simões:
Têm ambos 8x17 azulejos e são azuis figurados, enquadramento rococó, tendo
ao centro duas cenas do “desacato”, ou seja, do lado direito o Roubo da
913 Inventário dos bens..., fl. 103.914 Cfr. Princesas artistas. O autor dos Monumentos Sacros adianta ainda que, para além destes quadrosda igreja, outros haveria feitos pela mão da mesma infanta. De um único temos porém conhecimento:trata-se de um “Senhor da Agonia” pintado a pastel, cuja qualidade é indubitavelmente questionável. Daigreja faria ainda parte um quadro representando o “Senhor preso à Coluna”, com caixilho dourado, deque igualmente se desconhece o trajetória. (Cfr. Relação dos Quadros remetidos para o DLEC)915 Norberto de ARAÚJO, Peregrinações em Lisboa, Vol. VIII, Lisboa, 1938, p. 84.916 Cfr. Gustavo de Matos SEQUEIRA, Inventário artístico de Portugal, Vol. V, Lisboa, AcademiaNacional de Belas-Artes, 1955, p.110.
267
Custódia e, do lado esquerdo, o ladrão preso enquanto um dos personagens
traz a Custódia apreendida. Os azulejos serão de cerca de 1760. 917
Oferece dúvida a datação avançada pelo autor, tendo presente a cronologia da
conceção e construção do conjunto cenobítico. Já as cenas representadas, curiosamente
de temática não sagrada, não deveriam resumir-se aos dois exemplares que atualmente
ornamentam a fachada do templo de Almagreira, seja pela área que os mesmos
deveriam supostamente preencher, seja pela incompletude discursiva que, no seu
conjunto, denotam.
Bem que a notória desarticulação dos motivos da cercadura possa relacionar-se
com a deslocação e reimplantação das peças, o discurso figurado oblitera parte da
compreensão do desagravo enquanto programa sublimatório e laudatório, que nos
levaria a solicitar a presença de outros momentos da trama, centrados no protagonismo
de Maria do Lado e na exaltação do Santíssimo Sacramento. Convém recordar, no
entanto, que o programa iconológico do templo se completava com a figuração azulejar
da capela-mor, que apenas sabemos alusiva a "alegorias sacras". Apenas parcialmente
visível pelos fiéis, já que as colunas ocultariam o que poderia formar um eventual
transepto inscrito, era, contudo, globalmente abarcada pela visão das monjas a partir da
tribuna lateral. Tendo presente que os restantes azulejos consagravam a iconografia do
desacato de Santa Engrácia, poderíamos supor que a capela-mor consagrasse a
iconografia que considerámos passível de completar este discurso simbólico de suporte
azulejar. Adensando suposições, verificaríamos, como no Louriçal, uma disjunção entre
o timbre - se não masculino, pelo menos não sagrado - das representações da parte
"pública" da "igreja de fora" e o da figuração, mais intimista, da capela-mor. Coroando
este quadro hipotético, coroaríamos também o altar cm a composição pictórica do
Triunfo do Santíssimo Sacramento, que sabemos ter pertencido ao Conventinho.
Da escassa iconografia que acreditamos existir de profanações eucarísticas,
presta-se a comparação o memorial erguido em cerca de 1744 pelo Desacato de
Odivelas - ocorrido, curiosamente, em data muito anterior, 1671. Também neste, a
figuração se centra na ação do réu, em torno e a pretexto da qual se tece um discurso
que aprofunda o nexo de causalidade entre crime e castigo. O valor do objeto ultrajado,
917 Santos SIMÕES, Azulejaria em Portugal no séc. XVIII, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1979,pp.173-174.
268
motivo da expiação, emerge antes de mais da exploração dramática dessa relação lógica.
Mais que o caso de Odivelas, as próprias visões de Maria de Brito, vertidas iconográfica
e bibliograficamente, poderão, quem sabe, ter servido como fonte ao mestre responsável
pelos painéis do Convetinho.
Aqueles azulejos não foram, porém, os únicos objetos transferidos para
Almagreira. A par deles, foram-no outrossim, informa o Inventário Artístico, outros
“motivos decorativos da igreja", a “talha dos altares colaterais”, peças de talha que
passariam a servir de enquadramento a quatro janelas e, ainda, “dois capitéis doirados,
serrados pelos fustes, que sustentam duas figuras alegóricas, de madeira” e um elegante
tocheiro de talha dourada918.
O teto, dado a pintar a Pedro Alexandrino, soma-se aos elementos que não
deixaram rasto material.
4.8.2. Coros (Figs. III.3.37.-40)
Na parede fundeira da igreja, em posição diametralmente oposta ao altar-mor,
abriam-se os dois coros, alto e baixo, implicando, como já notado a respeito de qualquer
das casas do Instituto, o acesso lateral do templo.
Cada um dos coros era precedido pelo antecoro, que introduzia na clausura uma
mediação ao espaço sagrado. Unindo a intermediação física à valência simbólica e
mística, o antecoro do coro alto do Conventinho acolhia significativamente um
“Crucifixo de Marfim, com emblemas da Paixão”919.
Do coro, onde a arte se faria por certo representar, temos apenas notícia de parte
de um cadeiral - que hoje nos é dado contemplar na capela das Albertas, incorporada no
atual Museu Nacional de Arte Antiga -, de uns “paineis pegados no [tecto do] coro
representando varios objectos” da autoria de Pedro Alexandrino, cuja “collecção
completa” seria enviada para o Depósito das Livrarias do Extintos Conventos (DLEC),
918 Cfr. Gustavo de Matos SEQUEIRA, Inventário artístico de Portugal, Vol. V, Lisboa, AcademiaNacional de Belas-Artes, 1955, p.110.919 Relação dos Quadros remetidos para o DLEC, BNP, Arquivo Histórico, BN/AC/INC/DLEC/15/cx. 05–02, doc. 54.
269
e de um quadro, de “boa Escola”, representando o “Snr.e prezo a Coluna”, com
“caixilho dourado, e lavrado”920.
O coro baixo, que, a 3 de Janeiro de 1822, receberia com a maior solenidade os
restos mortais da Infanta D. Maria Ana921, igualmente separado do restante espaço do
templo por grade de ferro, acolhia o comungatório, aberto de um dos lados do
gradeamento e, “abertos lateralmente" a este, os confessionários.
A decorar as paredes revestidas de “mármore de boa qualidade”922, avultava um
não reduzido número de pinturas, cuja qualidade levaria à sua integração no espólio do
DLEC, a funcionar, à época, no Convento de São Francisco da Cidade. Deste todo, e
segundo o inventário das peças para aí transferidas, figuravam vários “paineis em páo,
de largura de quatro palmos e sete de altura” assinados por “Vasco” e representativos do
Mistério da Anunciação, da Descida do Espírito Santo, de São João no deserto, de
Santa Catarina e de Santo António. Referenciados como “Obra prima de Vasco em
páo” constam também uns "Caixilhos com moldura de prata, com dois palmos de altura
e hum e meio de largo, reprezentando hum Sto. Agostinho e S. Jeronimo, e outro S.
Bruno”. Apontadas como sendo de “boa escola”, aparecem ainda um “Quadro com hum
Sto. Dominicano de dois palmos de altura e hum e meio de largo”, um “Painel do
Misterio do Natal, de cinco palmos de altura e sete de largo” e outros painéis “de tres
palmos de largo, contendo huma imagem de Nossa Snr.a, e outro huma cabeça de S.
João”.923
No Conventinho, ao contrário do Louriçal, não temos a presença do azulejo, mas
a pintura parece, pela sua quantidade, dotar os coros de abundante iconografia sacra.
Não nos é fácil discernir uma narrativa coerente no conjunto figurativo do coro baixo,
onde, no entanto, a temática crística e novitestamentária tem sólida presença. Mas,
chamando a cotejo os cenóbios afiliados, notamos que Santo António, Nossa Senhora e
a Cabeça de São João Batista estão também presentes no Louriçal, assim como Santa
Catarina em Montemor-o-Novo e a Natividade em Vila Pouca da Beira. Para lá da ideia
de coincidência ou coerência temática que a situação suscita, poderíamos aventar a
920 Relação dos Quadros remetidos para o DLEC, BNP, Arquivo Histórico, BN/AC/INC/DLEC/15/cx. 05–02, doc. 54.921 Cfr. Manuel Bernardes BRANCO, “O Conventinho do Desagravo de Lisboa”, O Panorama, p. 410.922 Com vista a “estabelecer a comunicação entre o corpo da egreja e o mesmo côro”, o Depósito deFardamentos que, em 1914, ocupava a igreja do mosteiro, solicita a abertura “dos confessionáriossituados lateralmente à grade do côro inferior na igreja”. (ANTT, AHMF, Convento do Desagravo doSantíssimo Sacramento, Cx. 2009, capilha 1, IV/A/52/1, doc. 30, 1914).923 Relação dos Quadros remetidos para o DLEC, BNP, Arquivo Histórico, BN/AC/INC/DLEC/15/cx.05–02, doc. 54.
270
transferência de algumas peças das referidas casas para o Conventinho, a última das
casas de fundação setecentista a cerrar de todo as suas portas.
Da “Casa da Tribuna do Santuário” - local de guarda e veneração de relíquias a
que normalmente se associava um inestimável valor artístico -, e da “Casa Grande”, a
que as Constituições não fazem qualquer referência, somente conhecemos o elenco das
muitas obras pictóricas que as integravam, quase todas representativas de santos e de
passos da vida e Paixão de Cristo, e referenciadas como obras de “boa escola”, de “bom
autor” ou, uma delas, inclusivamente como “obra prima”924.
À Sala do Capítulo, por sua vez, pertenceriam vários quadros e peças dos quais
apenas nos chegaram informações relativas a um Painel de Santo António, “de cinco
palmos de altura e sete de largo”, de Escola Romana, e um painel da Sagrada Família
“com caixilho dourado”, mencionado como “de boa escola”925.
4.8.3. Espaços de sobrevivência temporal (Figs. III.3.12.-13 e Figs. III.3.41.-51)
Ao longo de um extenso corredor aberto no primeiro piso, alinhavam-se, uma
após outra, as trinta e três celas individuais pertencentes às também idealmente trinta e
três religiosas que compunham a pequena comunidade lisboeta das Clarissas do
Desagravo926. Respondendo ao apelo centrípeto do claustro, circundavam-no
superiormente, dando diretamente sobre a galeria avarandada que o sobrepujava, o
sobreclaustro, de onde recebiam iluminação. Imagem de severidade, o interior das
pequenas celas definia-se pela estrita funcionalidade.
A poente deste núcleo que gravitava em torno da órbita do claustro desenvolvia-
se, quase paredes meias, a noviciaria. A proximidade que ligava ambos os espaços,
onde, de um lado, estavam as noviças e, de outro, as professas, não significava a
inexistência de barreiras arquitetónicas que, neste caso, se davam através de acessos e
924 Relação dos Quadros remetidos para o DLEC, BNP, Arquivo Histórico, BN/AC/INC/DLEC/15/cx.05–02, doc. 54.925 Idem. O quadro foi mais tarde integrado no MNAA (Vd. “Relação dos objectos do extincto Conventodo Desagravo que foram recolhidos no Museu Nacional de Arte Antiga” MNAA, Objectos provenientesde conventos e igrejas, 1912).926 Os documentos que consultámos não nos permitiram confirmar se a comunidade logrou algum diaperfazer o número estipulado. A sua instituição tardia e o rigor dos seus estatutos não terão convidado aoacolhimento de novas vocações. Talvez por isso, o Exame de religiosas de vários conventos de Lisboa(Vd. AHPL, Livraria n.º 5, mss. 571), que mais atrás considerámos, tenha revelado profissões dereligiosas com bem mais que trinta e mesmo quarenta anos.
271
de salas intermédias. Eis o que diz o Inventário de 1902: “No corredor referido, do lado
do poente existem sete cellas e uma cosinha, que anteriormente era denominada de
noviciado, e bem assim uma casa intermediaria que lhes dá ingresso e uma para a
capella.” 927.
Ainda no primeiro piso, as celas da noviciaria dariam, assim nos parece, para a
chamada “cerca de cima”, situada a norte da área cercada e em plano superior à “cerca
de baixo”. A esse mesmo nível encontravam-se a enfermaria e seu refeitório próprio, em
localização isolada em relação às restantes dependências pelo patamar que bifurcava o
acesso ao amplo corredor que, de um lado, abria para as celas e noviciado e, do outro,
conduzia a dependências projetadas sobre a cerca de baixo. Na enfermaria firmava-se
uma vez mais a separação entre professas e não professas, já que só aí caberiam as
religiosas, reservando-se às noviças o tratamento nas dependências que lhes estavam
adstritas928.
Numa curiosa implantação que contraria o modelo amplamente seguido pela
organização planimétrica monástico-conventual929, a cozinha e refeitório do Desagravo
aparecem-nos na ala nascente do conjunto, em situação paralela à igreja. Entre o
prosaísmo deste espaço da mais crua sobrevivência corpórea e a sacralidade do templo,
apenas se interpunha uma estreita escadaria interior e um pequeno pátio. Situados,
também curiosamente, no primeiro piso, dada a forte inclinação do terreno de
implantação, estes espaços definiam - bem que acessíveis pelo amplo corredor que
contornava todo o andar e dava acesso às demais dependências aí instaladas - um núcleo
bastante próprio com visível projeção planimétrica a nascente.
O refeitório, a sul da cozinha e, portanto, mais próximo da igreja, formava um
amplo retângulo encimado de firme cobertura abobadada. Entre o refeitório e a cozinha
abriam-se, na parede comum, dois postigos, ou ministras, para passagem dos alimentos.
A meio da cozinha, de planta quadrangular, colocara-se uma “mesa de pedra da
Arrabida”, conforme o Inventário citado, ainda visível na planta do 1.º piso levantada
em inícios de Novecentos. Do exterior, estes espaços são indelevelmente assinalados
927 Inventário dos bens..., 1902, fl. 101 v.928 Ibidem, p. 135.929 Cfr. Susana Gonçalves Cacela MATIAS, O espaço conventual nas ordens mendicantes. O Conventode Nossa Senhora dos Mártires do Alvito, Vol. I, pp. 181-2.
272
pela presença imponente da chaminé, quantas vezes reveladora da dimensão e
importância de uma casa monástica930.
Próximo do refeitório ficaria o De Profundis - lembremo-nos, a próprio, da “casa
deperfundes” aparelhada e forrada pelo mestre Francisco França -, na qual antes e
depois das refeições seria rezado o salmo respetivo (De Profundis).931 “Casa do lavor” e
livraria seriam outros dos espaços não dedicados à contemplação.
4.8.4. O claustro (Figs. III.3.14.-25)
Situado a noroeste da igreja, rodeado por dependências monásticas e permitindo
a sua intercomunicabilidade, o claustro do Conventinho revela, na pequenez das suas
dimensões, um interesse estético incontestável. Conformando-se com as contingências
da implantação, apresenta-se como um pequeno retângulo definido por uma sólida
arcada de arcos de volta perfeita, sustentada por uma sucessão de pilares robustos e
desornamentados. Em cada um dos seus ângulos chanfrados, espreita um pequeno óculo
elipsoidal. Torneja-o em todos os quadrantes uma estreita galeria abobadada, que
outrossim sustenta o sobreclaustro, dotado de varandim.
Remetendo para o formato da galeria e para o ligeiro movimento que insinua,
abre-se, ao centro, um lago cujo recorte ovalado resulta da interceção de linhas elípticas
e circulares. No seu ondear suavemente barroco, não deixamos de lhe notar uma
delicadeza que conduz ao rococó, ao mesmo tempo que se afasta da dureza
desornamentada da arcada circundante.
Na quadra norte, acompanhando os tramos, recorta-se uma série de seis painéis
representativos de episódios da Paixão de Cristo: a Oração no Horto, O Beijo de Judas,
Cristo perante Caifás, Flagelação, Coroação de espinhos, Ecce Homo, Cristo a
caminho do Calvário (e a Verónica) e Cristo na Cruz932. Emoldurados por um nicho
cavado na própria estrutura mural que descreve superiormente um arco de volta perfeita,
930 Nelson Correia BORGES, op. cit., p. 51. A chaminé do Conventinho foi destruída já no século XX,mais exatamente em 1970.931 Constituições e leis..., pp. 102-103. O De Profundis poderia igualmente corresponder a um espaçopróprio, anexo ou contíguo ao refeitório, onde tinham lugar orações próprias rezadas antes e depois dasrefeições.932 Seguimos, embora não na totalidade, a designação proposta por Maria do Rosário Salema deCARVALHO, “Convento do Desagravo do SS.mo Sacramento”, in AAVV, Relatório “Os Conventos deLisboa”, Lisboa, Instituto de História da Arte da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2002-3[a publicar], p. 30.
273
decorado com moldura azulejar dourada, apresentam-se como uma espécie de telas
cerâmicas colocadas sobre uma figuração igualmente azulejar de frontais de altar,
compostos por motivos fitomórficos azuis e brancos atravessados a certa altura pela
franja dourada do galão do tecido representado. Enquadrar-se-ão estilisticamente no tipo
de produção cerâmica característico da segunda metade do século XVIII, de azulejo
azul e branco.
Altares devocionais, estas estruturas integrariam vivências próprias do mosteiro
na assunção da sua tão singular espiritualidade933, servindo de enquadramento não só à
oração e meditação como eventualmente à realização de procissões e atos penitenciais.
De fato, o tratamento do tema da Paixão enquanto ciclo e discurso temático legitima
uma vivência configurada num percurso plasmado também em termos corpóreos, num
percurso que poderia envolver vários espaços do mosteiro. Lembremos, a propósito,
que, no Louriçal, a Capela do Senhor do Passos, que guardava a imagem processional
da mesma invocação, se abria sobre o claustro, favorecendo a recitação devocional que
em torno da imagem se realizava.
Cumprindo a aliteração compassada que o itinerário dos altares assinalava, as
Clarissas do Desagravo fariam seus os passos da penitência redentora de Cristo,
dirigindo-se, tal como Ele, para o paroxismo da última estação onde se erguia, solene, a
imagem da Crucifixão.
4.8.5. Espaços de contato com o exterior
Aberta perpendicularmente à igreja, a portaria, ou vestíbulo correspondia a uma
divisão relativamente ampla, de cobertura abobadada onde, à data da elaboração do
Inventário, um quadro representando Tobias e Anjo, de Pedro Alexandrino, e de um S.
Pedro, “de Escola romana”934, se apresentariam aos visitantes externos à clausura.
Conduzindo à portaria interior, dava acesso ao parlatório e ao interior da
clausura, abrindo a comunicação com a parte inferior do edifício, que levava à “cerca de
933 Nelson Correia BORGES, op. cit., p. 40. Em relação à utilização e significado dos claustros, o autorrefere que a “piedade barroca desenvolveu formas de misticismo, por vezes exacerbadas, sobretudo emmosteiros femininos, que tiveram no claustro um dos cenário mais adequados à sua expressão”.934Cfr. Relação dos Quadros remetidos para o DLEC, BNP, Arquivo Histórico,BN/AC/INC/DLEC/15/cx. 05–02.
274
baixo” e ao andar superior, cuja comunicação se fazia pela escada principal, “toda de
cantaria e revestida a azulejo antigo que não tem valor artístico”.
Dispensando o mirante, da mesma forma que as demais casas da observância, o
Conventinho confiou os momentos de recreação e lazer ao espaço limitado pela cerca
onde o contacto com a natureza, oferecido através de hortas, pomares e lagos935,
propiciaria o desanuviamento das monjas, evitando simultaneamente expô-las à visão
do mundo exterior.
935 De acordo com o Inventário dos bens, a fl. 102, na cerca existia, em 1902, “um poço coberto masentulhado, dois lagos de cantaria, terreno destinado a horta, parreiras e poucas arvores de fruto.” (ANTT,AHMF, Convento do Desagravo do Santíssimo Sacramento, Cx. 2009, capilha 1, 10 de Março de 1902).
275
4.9. Programa artístico e património móvel
Concebendo a arte enquanto expediente rememorativo ao serviço de um
programa espiritual específico, o Conventinho centrou figurativamente a atenção no
tema do sacrifício redentor de Cristo, na representação dos santos da Ordem e de temas
ligados a devoções específicas, de entre as quais a do Sagrado Coração de Jesus. Neste
contexto, sobressaem, seja pelo espaço que ocupam – o claustro e a igreja – seja pelo
suporte em que assentam – o azulejo -, as séries da Paixão de Cristo e do Desacato de
Santa Engrácia. Se na igreja se expõe a razão da fundação do mosteiro e do carisma da
Ordem perante todos quantos a visitem, já no claustro, essa razão, plenamente
interiorizada pelas monjas, converte-se num ato de meditação penitente alimentado
passo a passo pelo percurso cadenciado das estações da Paixão de Cristo.
Além desta utensilagem simbólica, a que já anteriormente fizéramos referência,
várias outras obras consolidam iconograficamente o ideário do mosteiro. Na pintura,
quase na sua totalidade de Setecentos, merece relevo uma série alusiva à Paixão de
Cristo, composta pelo Beijo de Judas, Flagelação, Coroação de espinhos, Ecce Homo,
Cristo a caminho do Calvário e Cristo na Cruz. Do conjunto, datado do século XVII,
desconhece-se quer o autor, quer a proveniência, quer ainda a localização atual936. O
Inventário de 1902 dá conta de uma outra série de quinze quadros evocativos da Paixão,
de que igualmente se ignora o paradeiro, bem como de um conjunto de sete telas
figurativas dos Passos do Senhor937.
Elencadas no mesmo documento estão várias outras pinturas que, não
constituindo séries, enfatizam a atenção dispensada àquela temática. Entre outras, um
Senhor preso à coluna938, dois quadros de Cristo no Calvário, dois relativos ao Senhor
dos Passos, três de Cristo crucificado (um deles sob a invocação do Senhor das
936 Muito embora conste nas listagens do Museu de Arte Antiga, para onde foi levado após a extinção domosteiro, a sua localização é ainda hoje desconhecida. O inventário do museu especifica, no entanto, quetais obras foram transferidas para a sede a Confraria de S. Vicente de Paulo, sita na Rua do Norte, emCarnide a 7 de Novembro de 1945, no espaço que antes pertencera ao Convento de Santa Teresa de Jesusda Ordem Carmelita.937 Inventário dos bens..., fls. 39v.-40 v. Estas telas não foram incorporadas no MNAA nem passaramtambém ao DLEC.938 O quadro seria transferido para o DLEC. O documento que se lhe refere agrupa-o nas obraspertencentes ao coro alto do mosteiro (Cfr. Relação dos Quadros remetidos para o DLEC, BNP, ArquivoHistórico, BN/AC/INC/DLEC/15/cx. 05 –02, doc. 54).
276
Misericórdias e outro da provável autoria de Roque Vicente - Fig. III.3.54.), dois
Descimentos da Cruz e duas Verónicas (Fig. III.3.56.)939.
Vista no seu todo, bem que no desconhecimento do espaço que ocuparia, a obra
de gravura sublinha outrossim a linha temática referida. Serão disso exemplo, entre
outros, um Ecce Homo, assinado por “Queiroz” 940 em 1839, e um conjunto de gravuras
representando a Via Sacra, que o Livro de Incorporações do MNAA, de 1912, descreve
como:
Quatorze gravuras e molduras, representando trêze, a Via Sacra. A décima
quarta representa o Cristo carregando com a cruz, a caminho do Calvario, é de
menores dimensões é de formato disproporcionado à moldura, e foi colada
sobre uma pintura a oleo, representando o mesmo assunto mas sem valôr
artistico.941
O temário enunciado reconhece-se, por fim, em grande número de pinturas,
gravuras e obras de imaginária que contemplam outros episódios da vida de Cristo,
embora, na sua maioria, remissíveis ao Mistério Pascal. É o caso da Ceia de Cristo em
Emaús, assinada por Pedro Alexandrino942 e, do mesmo artista, de um Cristo repartindo
o Pão (Fig. III.3.59.) 943 e de um Tobias e o Anjo (Fig. III.3.58.) 944. Qualquer das telas é
de grandes dimensões e revela um valor artístico, pelo menos as duas últimas, únicas
conhecidas, não só atestado pelo montante que lhe foi atribuído, como pela consistência
do seu tratamento plástico e equilíbrio compositivo.
De algum modo consonantes com as figurações de Cristo, e porque centradas
n’Ele, surgem representações da Sagrada Família, da Fuga para o Egipto, da
Anunciação e, sobretudo, da Virgem, de entre as quais uma Virgem com o Menino, do
939 Inventário dos bens..., fl. 41 v.940 Acreditamos tratar-se de Gregório Francisco Queirós. Foi discípulo de Joaquim Carneiro da Silva, esteúltimo mestre de desenho das filhas de D. José I, entre as quais D. Maria Ana. (Vd. Henrique de CamposFerreira LIMA, Princesas artistas. As filhas de El-Rei D. José, Coimbra, Imprensa da Universidade,1925).941 “Relação dos objectos do extincto Convento do Desagravo que foram recolhidos no Museu Nacionalde Arte Antiga” MNAA, Objectos provenientes de conventos e igrejas, 1912, pp. 35-48.942 O quadro foi remetido para o Depósito das Livrarias (DLEC), estando avaliado em 60.000 reis. (Cfr.Inventário..., fl. 39 v.).943 Cfr. Objectos de valor artístico existentes no ex-convento do Desagravo, a Santa Clara (ANTT,AHMF, Convento do Desagravo do Santíssimo Sacramento, Cx. 2009, capilha 1, IV/A/52/1, s/d (1919),fl. 5 v.).944 Vd. MNAA, Inventário de pintura, Lv. 11, s/d.
277
século XVIII, e uma não menos graciosa Virgem com o Menino e São João, da mesma
data. Das muitas obras pictóricas que poderíamos aqui mencionar, destacamos, porém, a
Nossa Senhora da Conceição, com a visão do Padre Eterno ao fundo, de Domingos
António Sequeira, e a Nossa Senhora da Agonia (Fig. III.3.57.), uma das obras que a
Infanta D. Maria Ana dedicou à casa de sua fundação, um pastel de pequenas dimensões
cuja qualidade em tudo contradiz o zelo que acreditamos ter posto na sua execução945.
A imaginária, por seu lado, reitera a incidência temática ao contemplar um sem-
número de imagens de Cristo crucificado de dimensões, materiais e pormenores
decorativos variados. À margem deste conjunto, certamente distribuído um pouco por
todo o cenóbio, avulta uma imagem do “Senhor dos Passos, de madeira, tunica de
gorgorão de seda roxa, e resplendor de prata” que, avaliada em 200.000 reis946, deveria
assumir o protagonismo do espaço a que se achava destinada. A mesma reflexão deverá
aplicar-se a uma imagem de Nossa Senhora da Boa Morte, de madeira com vestes de
seda, “encerrada em uma urna de casquinha dourada e vidro, com ornatos de talha
dourada em alto-relevo”947. A propósito, não é despiciendo notar que o Mosteiro do
Louriçal, no quadro de uma devoção profunda à Senhora da Boa Morte, guardava uma
valiosa imagem dessa invocação cuja descrição em muito se aproxima da peça que
pertencera à casa lisboeta948, assim como guardava uma imagem, de igualmente
próxima descrição, do Senhor dos Passos.
Muitas outras alusões – a santos e santas, a Nossa Senhora, sob diversas
invocações949, e a vários eclesiásticos - integram o repertório iconográfico do mosteiro.
Dos poucos exemplares de escultura de certas dimensões, avultam as imagens de São
Francisco e de Santa Clara, ambas de um metro e vinte de altura e avaliadas no mesmo
montante, que julgamos terem sido destinadas a ocupar os nichos laterais do retábulo-
mor da igreja monástica950.
945 Este quadro consta presentemente do acervo do MNAA.946 Inventário dos bens..., fl. 21. Ao teor da avaliação feita às demais peças do mosteiro, o valorassinalado seria considerável, apenas igualando a avaliação do eminente presépio do Desagravo.947 Ibidem, fl. 19 v.948 A imagem de Nossa Senhora da Boa Morte fora oferecida ao Mosteiro do Louriçal pelo rei D. José.Quanto à de Lisboa, pouco ou nada se sabe. É apenas um entre tantos outros exemplares do patrimóniodeslocado do Conventinho que, à semelhança da série da Paixão ou da imagem do Senhor dos Passos,deveria auferir de indubitável interesse simbólico e, eventualmente, também artístico.949 Encontram-se representações de Nossa Senhora das Dores, das Necessidades, da Boa Morte (járeferida), da Soledade, etc.950 Inventário..., fl. 22. Também destes santos se perdeu até hoje o rasto, não tendo sequer chegado aoMNAA, para onde, aliás, poucas obras de imaginária foram transferidas.
278
A coroar o programa iconográfico ao serviço do desagravo emerge o Triunfo do
Santíssimo Sacramento, ponto fulcral que confere sentido à diligência expiatória a que a
comunidade devotamente se entregava. Acerca desta tela, que apenas sabemos ser de
grandes dimensões e ter sido avaliada em 100.000 réis, tudo o mais se ignora, desde o
caminho percorrido desde a extinção do mosteiro ao espaço em que nele se inseria. Não
nos repugna, no entanto, pensar que a sua autoria se tivesse devido a Pedro Alexandrino
de Carvalho, a quem tantos outros trabalhos pictóricos se confiaram e a quem coube a
execução, destinada à contemporânea Basílica da Estrela, de uma "Adoração do
Santíssimo Sacramento".
Com o mesmo carácter de corolário programático consideremos também a
valiosa custódia que o altar-mor ostentaria durante as exposições eucarísticas e que a
listagem de 1902 descreve como peça de prata dourada, de trabalho antigo, dividida em
dois corpos - peanha e parte superior, sendo esta última totalmente cravejada de
crisólitas e guarnecida com cinco topázios grandes. A meia-lua, informa o documento,
ostentaria vinte e sete brilhantes, dois vidros no centro e mais um num dos extremos. De
peso teria 7080 gramas e de valor monetário 1000.000 réis, sendo a peça mais valiosa
de todo o espólio951. Desta que, segundo parece, poderia ser uma obra-prima da
ourivesaria, também nada ficou para além da informação da sua transferência, em 1912,
para a Caixa Geral de Depósitos, não sem que antes tivesse dado entrada no Museu de
Arte Antiga.
Ironicamente, e por certo não ciente da sua valia memorial, eis que o
inventariante se depara com um cofre de tartaruga “com guarnição de prata” e “pavilhão
dourado”, a que atribui tão-somente o valor de 6.000 réis. Era este, estamos em crer, o
célebre cofre do desacato doado às religiosas pela Irmandade do Santíssimo de Santa
Engrácia em atenção à “vontade de S. Mag.de e da Serenissima Infanta D. Maria Anna,
e por ser o convento erigido em Desaggravo do mesmo sacrilegio”952.
Da mesma forma que em relação à arquitetura, parece-nos legítimo enquadrar o
recheio artístico do Conventinho na mesma linha de gosto, consumo e partido estético e
artístico que associamos a Queluz e à Estrela. Na verdade, e tendo em conta o âmbito
951 Inventário dos bens..., fls. 12-12v. Esta peça consta também da listagem dos objectos realizada em1902 pela Academia Real de Bellas Artes, a Relação dos objectos do espolio do supprimido convento dodesagravo de Lisboa (ANTT, AHMF, Convento do Desagravo do Santíssimo Sacramento, Cx. 2009,capilha 2, IV/A/52/5).952 Arquivo Histórico da Paróquia de Santa Engrácia, Inventário da fábrica do Santíssimo Sacramento deSanta Engrácia, Lv. 3, fl. 13. É significativo que esta doação tenha sido feita a 16 de Janeiro (neste caso,de 1785), num dos dias, portanto, em que se celebrava o Tríduo do Desagravo.
279
restrito da sua importância relativa, o pequeno claustro parece ter mais refletido do que
criado ou recriado a arte do meio e época em que se inseriu, fazendo depender a sua
originalidade mais do ideário espiritual prosseguido que da criatividade dos artistas que
nele trabalharam e que, à exceção dos presépios, merecem destaque face às demais
obras do tempo.
O contributo de Domingos António de Sequeira, de Roque Vicente, Pedro
Alexandrino, Silvestre de Faria Lobo ou mesmo de Machado de Castro e da Infanta D.
Maria Ana, apelam a uma realização que remete para um núcleo de encomenda cortesã
e que, quase em simultâneo, agrupa os mesmos artistas. Esta convergência, que, de uma
parte, pode perversamente traduzir-se na ofuscação da arte criada pelo Conventinho,
pode, de outra, fazê-la imergir como elemento a considerar na compreensão da
produção artística a que intrinsecamente se liga.
Mas o Conventinho não foi uma obra totalmente subsumida noutras. A
originalidade dos painéis azulejares do templo dá-nos disso imediata conta, assim como
no-la dão os presépios do Desagravo (Fig. III.3.60.). Atribuídos a Machado de Castro,
imediatamente suscitam um paralelismo em relação à Estrela, onde na mesma data o
escultor trabalhava num monumental presépio953. O elenco de 1902 é inequívoco, ainda
que extremamente sucinto, na menção aos presépios do Desagravo ao trazer à colação,
em primeiro lugar, um presépio
grande em forma de semi circulo, medindo seis metros approximadamente, e
que tem a altura, tambem approximada, de tres metros. Este presepio é fixo, e
resguardado por uma espécie de camarim envidraçado que acompanha a toda a
altura da sala. O referido presepio é feito de cortiça e papelão, e representa
uma grande gruta, onde na parte superior se veem nove anjos em barro e muitas
figuras allegoricas tambem de barro, e na gruta, existem, quasi de tamanho
natural, as imagens de Nossa Senhora, S. Jose e o Menino; a virgem e S. Jose
tem vestes de seda e são de roca.
953 O inventário actualizado do MNAA atribui a maior parte destas peças a Machado de Castro, emboraalgumas (poucas) continuem sem menção a autoria.
280
No encalço deste primeiro, o inventário cita dois outros, “pequenos, com as
imagens do Menino Jesus”954. Não é difícil constatar que o citado presépio de estrutura
semicircular seja aquele a que o mosteiro destinou uma dependência própria, a “Casa do
presépio”, cuja localização sugere, pela proximidade do antecoro e coro alto e, por outro
lado, também das celas, a partilha de um mesmo percurso vivencial. A prática
devocional não estaria, pois, alheia àquele espaço, a que sabemos ter pertencido uma
imagem de Nossa Senhora das Felicidades (Fig. III.3.53.)955.
A presença deste modelo de representação escultórica não é naturalmente
apanágio do Conventinho, verificando-se igualmente em várias outras casas regulares,
como o Mosteiro do Louriçal, o da Madre de Deus, o Convento da Cartuxa de Laveiras
ou o já referido Convento da Estrela956.
Embora tenham sido inventariados três exemplares no mosteiro do Campo de
Santa Clara, Diogo de Macedo refere-se apenas a dois trabalhos, que designou como
“presépio grande do Desagravo” e “presépio pequeno do Desagravo”, cujas peças
informa terem passado às Janelas Verdes957. Em relação ao primeiro, assume ter-se
ficado a dever a António Ferreira, autor dos presépios da Cartuxa de Laveiras, do
Mosteiro da Madre de Deus e do Mosteiro da Conceição de Jesus958.
por ser êste, entre todos quantos houvemos com dotes capazes, quem maior
número de razões e parentesco possuia, para ter inventado as pouquissimas
figuras que dêle restam. É que se não foi António Ferreira o seu autor, então
Portugal teve um outro barrista de génio, que influiu em muitos presépistas,
ensinou segredos a quási todos e ficou oculto na história, ingratamente.
954 Inventário dos bens..., fls. 31 v - 32. O presépio de maiores dimensões foi avaliado em 200.000 reis eos demais em 700 (cada um).955 BNP, Secção de Iconografia, Registos de Santos, Lvs. 8, 10, 12, desenho n.º 02491.956 O tema dos presépios foi amplamente estudado por Alexandre Nobre Pais em Presépios portuguesesmonumentais do século XVIII em terracota, 2 vols, Dissertação de Mestrado em História da Arte (área deArte Moderna) apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Lisboa, UNL, 1998. Sobre acriação das primeiras representações da Natividade, veja-se a pág. 183 do Vol. I.957 Diogo de MACEDO, Em redor dos presépios portugueses, Lisboa, 1940, pp. 28-29. No Livro deIncorporações de 1912, existente no MNAA, encontra-se a Relação dos objectos procedentes doconvento do Desagravo que deram entrada no Museu Nacional de Arte Antiga, onde, a se faz menção aestas peças (pp. 35-48).958 Vd., a propósito, João BARREIRA, “Os presépios de barro”, Serões, Revista mensal ilustrada, 2.ªsérie, Vol. I, n.º 6, Lisboa, 1905.
281
Um das peças que sugeriria tal atribuição seria o tocador de sanfona (Fig. 109),
cujo busto "foi lição e foi modêlo para tantos outros que tentaram aproximar-se-lhe".
Porém, é o mesmo tocador de sanfona a suscitar dúvidas no que respeita à autoria, facto
que leva Diogo de Macedo à seguinte reflexão:
O busto citado do tocador de sanfona, modelado em planos angulosos que o
correr das dedadas marcou, obra capital entre tantas conhecidas, com traços e
modelados excelentes, dum realismo muito perfeito, se não tem parentesco com
a mesma figura do presépio da Madre de Deus, em compensação, foi imitado,
repito, copiado mesmo em pormenores, como o braço e a mão da manivela, no
presépio de S. Vicente de Fora. Seria o mesmo grande artista que colaborou
uma vez com Machado de Castro?
Perante o mistério da paternidade deste “presépio grande”, questão que
considera fundamental, o autor exclama: “Que estranho mestre seria aquêle, que a
injustiça dos seus contemporâneos não distinguiu, nem a voz do povo aclamou!”. E
remata, alegando que o desconhecimento do autor do “estupendo presépio do
Desagravo” é caso para lastimar, “visto obras de tal mérito a história não se honrar com
o desleixo do seu anónimato.”959
Já o “presépio pequeno do Desagravo”, Diogo de Macedo não hesita em assacá-
lo a Machado de Castro pelas semelhanças que deteta em relação ao conjunto de S.
Vicente, obra do escultor de Coimbra960.
Considerando que o "presépio grande" reproduz algumas das peças do de São
Vicente de Fora e que três dos presépios de Machado de Castro estariam na posse da
família real e uma no Convento da Estrela, quem sabe não poderíamos outorgar também
ao escultor a autoria daquele primeiro exemplar961.
A reflexão sobre a arte do monumento ficaria incompleta se não contemplasse a
herança que, neste plano, D. Maria Ana dedicou à casa de sua fundação, a qual
naturalmente reveste uma natureza também ela fundacional. Não seria, aliás, o
959 Diogo de MACEDO, Em redor dos presépios portugueses, Lisboa, s/n, 1940, p. 39.960 Uma das figuras mais passivelmente remissíveis à assinatura do artista é a imagem da Virgem,semelhante, segundo Diogo de Macedo, a todas as demais modeladas ou concebidas por Machado deCastro.961 Cfr. Diogo de MACEDO, op. cit., p. 39.
282
Conventinho o único monumento do círculo mariano a merecer a atenção da infanta,
que se estendeu, como anteriormente assinalámos, à Capela do Palácio de Queluz, para
onde pintou um Coração de Jesus, e à Igreja do Sagrado Coração de Jesus, para a qual,
em parceria com D. Maria Benedita, realizou uma tela de grandes dimensões
representativa do Coração de Maria e Anjos962. No seu mosteiro, contudo, preferiu
deixar um contributo único, os retábulos das capelas laterais onde, sob o supedâneo, se
guardavam relíquias de dois santos963.
Apesar de o tributo pictórico da infanta não se ter limitado às telas da igreja, o
quadro representativo da Senhora da Agonia964continua sendo, até hoje, a única pintura
de que temos conhecimento, a qual, já pelas pequenas dimensões, já pela qualidade
duvidosa, não deveria corresponder a qualquer das obras que guarneceriam os altares
laterais.
Independentemente da sua amplitude e qualidade, ou mesmo do conhecimento
exato que hoje dele possamos ter, o legado de D. Maria Ana oferece-se-nos como
reflexo de uma firme motivação religiosa que tirou largo partido da esmerada e intensa
educação artística recebida no seio da corte de D. José e de D. Mariana Vitória. Não
sem razão Henrique de Campos Ferreira Lima apelida como “Princesas Artistas” as
filhas de D. José, dedicando-lhes inclusivamente a obra homónima em que, integrando
contributos de vários autores, revela e enaltece o estro destas princesas. Não o nega
Volkmar Machado, perentório ao afirmar que o “estudo da Pintura foi um dos
principaes objectos, na educação das Augustas Princezas suas filhas [de D. José]”.965
Domingos da Rosa e José da Rosa, seu filho, Domingos António de Sequeira e Joaquim
Carneiro da Silva assegurariam, por seu turno, a instrução das princesas nas áreas da
pintura e do desenho, a ponto de este último ter gravado várias das estampas e quadros
962 Segundo inscrição contida no próprio painel, o lado esquerdo ficara a cargo de Princesa Viúva e odireito da fundadora do Conventinho. LIMA, Princesas artistas…, pp. 12-14. Em relação à capela doPalácio de Queluz, o quadro a óleo representando o Salvador do Mundo ficou a dever-se à futura rainhaD. Maria I, um S. José à Infanta D. Maria Francisca Doroteia, um Coração de Jesus a D. Maria Ana e umSanto António a D. Maria Benedita. Ao ocupar-se, no seu Dictionnaire, da figura de D. Maria Benedita, oconde de Raczynski não poupa críticas à obra por ela realizada na Basílica, que considera inclusivamente“peu digne d’occuper cette place”. O nome de D. Maria Ana e de suas outras irmãs não figuram sequer noafamado dicionário. (Cfr. Athanase RACZYNSKI, Dictonnarire histórico-artistique du Portugal, Paris,Jules Renouard et C.ie, 1847, p. 26)963 Gonzaga PEREIRA, Monumentos sacros de Lisboa em 1833, Lisboa, Biblioteca Nacional, 1927, pp.310-311. Pelo inventário dos bens do mosteiro, somente um quadro nos aparece atribuído a D. MariaAna, facto que não deverá, no entanto, significar a inexistência de outros executados por suas mãos.964 Este quadro consta presentemente do acervo do MNAA.965 João Pedro BELLORI, As honras da Pintura, Escultura e Architectura. Tradução do italiano;Ilustrado e anotado por hum dos Pintores de S.A.R. o Principe Regente Nosso Senhor, Lisboa, ImpressãoRégia, 1815, p. 109.
283
da invenção das mesmas, entre os quais, juntamente com Manuel Salvador Carmona, se
incluem as referidas pinturas das capelas laterais da igreja. 966
Sobre a secundogénita do monarca, a apetência e talento para as artes da música,
pintura e desenho, predicados com que desde cedo terá sido conotada, corporizaram-se
em obras várias, sempre ou quase sempre de temática sacra, das quais destacamos uma
estampa desenhada a lápis, realizada em 1773, representando S. Miguel prostrando
Lúcifer (levada inclusivamente a uma exposição realizada no Porto em 1807), um
Coração de Jesus, de que apenas se conhece uma gravura de Carneiro da Silva, e um
quadro a óleo representando Nossa Senhora do Amparo dos Pescadores, pertencente a
uma das capelas da Sé de Évora, de que se conhece também uma gravura de Carmona e
de Manuel da Silva Godinho967.
Da mesma forma que os préstimos artísticos de D. Maria Ana podem ser
entendidos no plano do enriquecimento patrimonial do Conventinho e da valorização do
seu significado enquanto monumento, a expressão material que este assume representa
também um tributo direto ou indireto à dotação da fundadora. Não é, portanto, com
estranheza que assinalamos a presença de um retrato da infanta968, pintura de autor
desconhecido, no espólio do mosteiro reportado pelo Inventário de 1902, a lembrar
aquela a quem tanto ficou a dever-se. Ou que associemos o coro baixo, cuja conceção
previra a deposição póstuma dos restos mortais da fundadora, a um preito de
homenagem à sua memória. Foi efetivamente para aquela que deveria ser a sua última e
definitiva morada que, pelas 11 horas da noite de 3 de Janeiro de 1822, foi conduzido o
seu féretro, numa cerimónia que contou com a presença de “D. João VI, acompanhado
da infanta D. Isabel Maria, do infante D. Miguel, e D. Sebastião, da Hespanha, e duma
numerosa e luzida côrte” e com os “responsos cantados pelos frades do convento da
Graça”.
966 A referência a Domingos António de Sequeira como mestre das princesas, embora previsível, não seráde todo inquestionável, sendo abordada por toda a bibliografia como hipótese não confirmada. (Vd., apropósito, LIMA, Princesas artistas. As filhas de El-Rei D. José, p. 3).967 Seguimos as informações fornecidas e exaustivamente documentadas por Henrique de CamposFerreira LIMA em Princesas artistas. As filhas de El-Rei D. José, Coimbra, Imprensa da Universidade,1925, pp. 5-7.968 Inventário dos bens... Existe um outro quadro representando uma monja do mosteiro, parecendo-noshaver a intenção de que as figuras mais eminentes do Conventinho fossem relembradas como verdadeirasfundadoras.
284
Mas já antes disso, e dispensando qualquer presença corpórea, o mosteiro
celebrara com solenes e rutilantes exéquias969 a partida da sua instituidora, ocorrida no
Palácio do Rio de Janeiro a 16 de Maio de 1813, mas de cuja notícia só em Julho
tomaria conhecimento970.
969 Segundo se lê em Bernardes Branco, que refere terem sido feitas “solemnes exequias, e com grandepompa, concorrendo com toda a despeza João Baptista, homem muito rico.” (BRANCO, “O Conventinhodo Desagravo de Lisboa”, O Panorama, p. 410).970 A respeito da notícia da morte e trasladação dos restos mortais de D. Maria Ana, veja-se o Termo deentrega do Cadaver da Serenissima Senhora Infanta, Dona Maria Anna (ANTT, Gaveta 16, Mç. 3, doc.4) e o Termo da entrega do Corpo da Serenissima Senhora Infanta Dona Maria Anna na Igreja doConvento das Religiosas de Nossa Senhora da Ajuda desta Corte do Rio de Janeiro (ANTT, Gaveta 16,Mç. 3, doc. 2).
285
PARTE IV
AS DERRADEIRAS FUNDAÇÕES DO DESAGRAVO
286
PARTE IV
AS DERRADEIRAS FUNDAÇÕES DO DESAGRAVO
1. Do Pombalismo à República: apostas e desafios à vida regular
Se entraves ou dificuldades fizeram desde sempre parte da fundação e vida dos
cenóbios até agora considerados, o propósito propagativo das Clarissas do Desagravo,
inscrito na sua própria memória identitária, não claudicaria perante os novos desafios
que, no plano religioso, entre o consulado pombalino e a Implantação da República, se
lançaram. E, bem que o reinado mariano e, com ele, a Viradeira, tivesse registado uma
inversão na atitude e intenções no que tange a questão religiosa, pelo menos na
aparência e à falta de evidências maiores, pode concluir-se que, em termos práticos,
eram efetivos os efeitos da secularização.
A árvore clariana sob a seiva do Desagravo não deixaria, contudo, de frutificar.
Fá-lo-ia, por certo, contornando entraves e suplantando reveses, na lógica própria do
lema espiritual do Instituto, que das impiedades extrai renovado vigor e legitimidade. E
o tempo a que agora nos referimos não poderia senão convocar uma reação reparadora.
Vejamo-lo com Frei João de S. Boaventura, que, após um elenco dos mais celebrados
desacatos ocorridos em Portugal desde as origens até 1825, data em que redige, reflete:
Não he possivel na brevidade do meu intento dar ao publico huma exacta
noticia de todos os desacatos comettidos neste Reino desde 1779 até ao
presente; porque tem sido tantos, e tão frequentes, que por si somente farião
hum grande volume. Mas não deve admirar-se, se nos recordarmos que tudo
isto são effeitos da primeira explosão da impedade no Reino de França. As
doutrinas anti-religiosas e anti-sociaes, que tanto se tem propagado, a
desmoralisação dos povos, e o fanatismo da liberdade, são a origem funesta de
tantos crimes, e tão horrendos attentados contra a Religão e contra aquillo que
nella ha de mais sagrado.971
971 João de S. BOAVENTURA (frei), Breve noticia dos desacatos mais notaveis acontecidos em Portugaldesde a sua fundação até agora, e o Sermão do Desaggravo pelos ultimos, comettidos neste mesmo anno,Lisboa, Impressão Régia, 1825, p. 20.
287
É claro, para o autor, o motivo dos sacrilégios e claras, também, as suas
consequências. Mais argumentos e discursos, igualmente eloquentes, secundariam a
causalidade enunciada. Quando, por ocasião das festividades realizadas pela
Restauração do Reino, em 1808, o Senado da Câmara de Lisboa, pretendendo dar
testemunho da sua gratidão pelo beneficio que esta capital em particular, e o
Reino em geral acabava de receber do Deos dos Exercitos, que muito
particularmente manifestou a sua Divina predilecção por este seu Reino,
escolhido na sua venturosa Restauração, determinou na sua caza do despacho
da mesma Real Igreja, que em Dezagravo do SANTISSIMO SACRAMENTO,
muito principlamente Offendido na invasão do Exercito Francez neste Reino,
pelos insultos por elle perpretados, contra o mesmo Augustissimo Sacramento,
se Celebrasse hum Triduo naquella Real Igreja, fazendo voto de celebrar
perpetuamente no dia 15 de Setembro a mesma Acção gratulatoria, com
Procissão Solemne, que sahirá da Bazilica de Santa Maria, para a mencionada
Igreja de S. Antonio.972
À ameaça jacobina e à devastação produzida pelas Invasões Francesas acrescia,
na impetração de um desagravo, a penetração efetiva do Liberalismo na ideologia
política portuguesa. Não se bastando com o brado indignado, a parenética une-se à
propaganda política. Em plenos conflitos liberais, Frei José de Santa Rita de Cássia,
legitima a sucessão de D. Miguel I e exorta ao seu apoio em sermão pregado em
Outubro de 1827973. Defendendo a vinda de D. Miguel, profere:
segue-se finalmente, como legitimo corollario, que esta horrorosa malvada
Seita contra o Altar, e contra o Trono, a que se chama vulgarmente Maçoneria,
Carbonaria, ou, chamem-lhe lá como quizerem, he inventada pelo diabo, sustida
972 Desagravo ao Santíssimo Sacramento e acção de graças pelos benefícios da restauração da pátria edo restabelecimento do Governo do Príncipe Regente promovido pelo Tribunal do Senado da Câmara,s/d., p. 2.973 José de SANTA RITA DE CÁSSIA (frei), Sermão em acção de graças ao archanjo S. Miguel pelasfaustas noticiais da suspirada vinda do regio, magnanimo jovem, o Senhor Dom Miguel pregado em 28de Outubro de 1827, Lisboa, Impressão Régia, 1827.
288
pelo diabo, por meio dos seus agentes, e satellites, dos quaes, como filhos
primogenitos de tal pai, e fieis discipulos de tal mestre974
E prossegue:
Nesses papeis chamados Periodicos públicos, publicamente vomitadas as mais
horriveus blasphemias contra o Sanctissimo Sacramento do Lausperenne,
contra a Mãi de Deos, principalmente nessa milagrosa Imagem de Nossa
Senhora da Conceição Apparecida, que se venera, e respeita na Sé desta
Capital!975
Num outro sermão, pretendendo novamente concitar o favor público em torno da
sucessão de D. Miguel I, evoca o milagre de Ourique:
não há huma Nação mais estimada, querida, e abençoada por Deos como he a
Nação Lusitana; porque o mesmo Deos quis que o estandarte da sua Religião,
que he o Mysteiro da Cruz, fosse o mesmo do Reino de Portugal […]; porque o
mesmo Deos chama a este Reino de Portugal seu Reino: este Reino he meu, diz
o Senhor, puro na fé, sanctificado, e com piedade amado, e quero que seja em
meu Nome governado por ti, e pelos teus descendentes; sendo logo o nosso
Augusto, Amado Rei o Senhor D. Miguel I. legitimo Descendente do primeiro
Fundador, a quem o Senhor fallou.976
974 Sermão em acção de graças ao archanjo S. Miguel pelas faustas noticiais da suspirada vinda doregio, magnanimo jovem, o Senhor Dom Miguel pregado em 28 de Outubro de 1827 [na Igreja de SantoAntónio dos Capuchos, na festividade que ali fez celebrar uma ilustre corporação dos empregados de SuaMagestade], Lisboa, Impressão Régia, 1827, p. 10.975Idem, ibidem, pp. 11-13.976 José de Santa Rita de CÁSSIA, Sermão que no dia natalicio de Sua Magestade Fidelissima o SenhorDom Miguel I. em mil oitocentos e vinte e oito por motivo da solemnissima bênção da bandeira do corpomilitar de Malta pregou na Real Capella da Bemposta Fr. José de Sancta […], Da Provincia de SanctoAntonio de Portugal, Lente Jubilado de Filosofia e Theologia, Prégador Regio, e da sobredicta RealCapella, Lisboa, Impressão Régia, 1829, p. 11. O sermão foi rezado na Capela da Bemposta. É dedicadoà benção da bandeira e coincide com o aniversário de D. Miguel I.
289
Pondo de lado a rica exegese que os textos oferecem e que a sermonária
produzida neste contexto em sede própria reclamaria, vejamo-los apenas como
discursos com interesse para a contextualização história cujos eixos evidenciam.
Já seriamente afetado, como vimos, pela medidas postas em ato nas três últimas
décadas de Setecentos, os conventos ver-se-iam novamente alvo de um escrutínio cuja
origem paulatinamente se deslocava para a esfera jurisdicional de um Estado
pretensamente secular.
A criação da Junta do Exame do Estado Atual e Melhoramento Temporal das
Ordens Regulares, por decreto de 21 de outubro de 1789, e a consequente elaboração de
um "Plano e Regulamento das Religiosas", representaria já a insinuação da
secularização na vida religiosa, assim como a relativização da autonomia das
comunidades e Ordens regulares977. O próprio texto claramente o manifesta:
Para que as Religiosas se tornem tanto mais benemeritas da Igreja e do Estado,
e cooperem para a prosperidade publica, sera conveniente determinar-se que
em todos os Conventos se destine huma ou mais Religiosas, que a par da
competente instrução Christãa. ensine á gente moça do seu sexo as prendas e
Artes que lhes são proprias, mandando-se construir em todos os Conventos
(cujos Estatutos particulares não offerecem attendivel incompatibilidade) huma
casa de tal maneira, que, sem alterar as Leis da Clausura, possão as Religiosas
ensinar todas as Raparigas que da parte de fora concorrerem; applicando-se a
beneficio dos Conventos pobres o Ordenado que se costuma dar ás Mestras
Seculares.978
Ao procurar, no quadro ideológico esboçado, a exequibilidade da vida regular, o
Plano propunha medidas e definia critérios. Entre outros, proibia a manutenção de casas
religiosas com menos de doze religiosas; defendia que a lotação deveria ficar
condicionada à capacidade de sustento; determinava a reversão para os benfeitores e
doadores, dos fundos e rendimentos da casa por morte das religiosas; proibia a ingresso
977 Cfr. Fortunato de ALMEIDA, História da Igreja em Portugal, Vol. III, pp. 135 - 138. O autor sustentaque a intervenção da Junta terá favorecido não o melhoramento das Ordens mas a sua própria ruína, tendomesmo acentuado a “desordem económica” em que aquelas previamente se encontravam. O organismoviria a sucumbir por ordem de D. Miguel I, em 1829, para mais tarde ser novamente restaurado.978 Vd., sobre o Plano e as resoluções da Junta, ANTT, MNEJ, mç. 270, n.º 1, cx. 216.
290
com menos de 15 anos. Por outro lado, alargava ao século e a outras instâncias
eclesiásticas - que não apenas representadas pelo prelado diocesano ou regular - a
jurisdição sobre a vida monástica: as religiosas passariam a apelar diretamente para o
soberano ou mesmo para a Santa Sé; as acusadas de ofensas graves, quando
ultrapassados os limites da simples correção a exercer no interior do convento,
poderiam recorrer a um advogado e a todos os meios legais disponíveis.
Mais efetivas terão sido, no entanto, as medidas que determinaram a união dos
mosteiros considerados inviáveis à luz dos critérios vigentes, ou a união, perante essa
mesma inviabilidade, dos cenóbios de uma mesma observância, ou, ainda, e
precedendo-a, a transferência de rendimentos dentro de um mesmo instituto a fim de
beneficiar as casas menos abonadas.
Já antes delas, um breve do Papa Bento XIV, exarado a 23 de Agosto de 1756,
no rescaldo do Terramoto, estabelecia a “suppressão, união, e incorporação de todos os
Mosteiros de Freiras, […], que por arruinados, ou por faltos de rendas, ou por
nimiamente endividados não podem subsistir”979. Escudada posteriormente no Decreto
quam maxima de 15 de novembro de 1791, de Pio VI980, a ação da Junto do
Melhoramento viria a resultar na elaboração de relatórios ou mapas onde se aferia do
"estado" dos conventos com base em indicadores como rendimentos, encargos, número
de religiosas, despesas de sustento, vida comum, dívidas, doações régias, reversão ou
ensino público. Uma sucessão de resoluções e ordens régias enviadas à Junta
testemunham a sistematicidade do escrutínio exercido sobre a vida cenobítica981. Os
pareceres emitidos, se, por um lado, puseram a nu o cenário não raro deplorável da vida
claustral, revelaram outrossim os casos felizes de obediência à Regra, exceção em que
se incluíam as religiosas capuchas982.
979 Breve do Santissimo Papa Benedicto XIV ..., Lisboa, Regia Oficina Tipográfica, 1771.980 O documento procedia ao restauro da disciplina regular em todos os conventos de um e outro sexodentro e fora do Reino, confirmando todas as faculdades concedidas, e particularmente autorizando parareduzir o número de missas de legados pios, transferência, etc. (Vd. ANTT, MNEJ, mç. 270, n.º 1, cx.216.).981 "Relaçaõ das Resoluções e ordens régias que tem baixado a esta Junta do Exame do Estado actual eMelhoramento temporal das Ordens Regulares e que tem execução permanente", maço 270, doc. 58.Terão lugar em 1800, 1804, 1823 e 1829 .982 Fortunato de Almeida refere que, de acordo com “um breve pontifício, desde 1756 pedia El-Rei aoSanto padre providências sobre o deplorável estado a que se encontravam reduzidas, na maior parte, osmosteiros de freiras, tanto de Lisboa como de todo o reino, exceptuando os das franciscanas capuchas”.(Fortunato de ALMEIDA, História da Igreja em Portugal, Vol. III, p. 135). O termo “capuchas”, comoexplica Montes Moreira, designa as clarissas que seguiam a primeira Regra de Santa Clara,diferentemente das “urbanistas” (que viviam de acordo com a formulação da Regra feita pelo PapaUrbano IV). As religiosas capuchas distinguem-se também das chamadas “capuchinhas”, estas últimasfruto da reforma coletina aprovada em 1538.
291
A 5 de agosto de 1822, no encalço da Revolução Liberal983, são tomadas as
primeiras diligências pelas Cortes Constituintes preanunciando as medidas que, nos
anos trinta, se efetivariam. Quando, em data precisar, se redige o "Rezumo das
Consultas especiaes da Junta do Melhoramento das Ordens regulares, sobre as diversas
Corporações, assim de Religiozos, como de Religiozas"984, estar-se-ia já na alba do
decreto de Extinção das Ordens e Corporações religiosas - o qual, porém, em nada
parece refletir a leitura cuidada daquele documento985.
Determinada, pois, pelo regime saído da Revolução Liberal, a extinção dos
Institutos regulares acarretou profundas alterações temporais e espirituais que haveriam
de sufragar o ideal de uma sociedade laica e de responder à necessidade eminentemente
prática da sustentação política e material do Liberalismo.
Pelos decretos de 5 e 9 de Agosto de 1833, de José da Silva Carvalho, eram
interditadas as admissões de noviços, ordenada a expulsão dos existentes, e proibida a
emissão de votos religiosos: truncava-se, por outras palavras, os fundamentos da
preservação das casas regulares. Mas o decreto de 28 de Maio de 1834, de Joaquim
António de Aguiar, iria bem mais longe em termos de radicalismo: por ele se
extinguiam todas as casas de religiosos de quaisquer Ordens e se decretava a
nacionalização dos seus bens986.
Se, no caso das Ordens e Congregações masculinas, o decreto de 1834 conheceu
inexorável aplicação, em relação às comunidades femininas, muito embora dependentes
dos decretos de 1833, dilatava-se o prazo do seu anunciado ocaso, que passaria a
corresponder, nem mais, ao óbito da última religiosa professa. Nem o restabelecimento
das relações com a Santa Sé, em 1841, nem a Concordata de 1848, que previa o não
983 A 15 de outubro de 1821, determinavam-se os quesitos a que as Ordens deveriam responder, tal comoexpresso na "Relação das Corporaçoens Religiosas que tem respondido aos Quezitos determinados naOrdem das Cortes Geraes e Extraordinarias da Nação Portugueza".(Vd. ANTT, MNEJ, mç. 270, n.º 1, cx.216.).984 Vd. ANTT, MNEJ, mç. 270, n.º 1, cx. 216. Veja-se a exaustiva análise crítica de Laurinda ABREU em"Um parecer da Junta do Exame do Estado actual e Melhoramento Temporal das Ordens Regulares nasvésperas do decreto de 30 de Maio de 1834.", in AAVV, Estudos de Homenagem e Luís António deOliveira Ramos, Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2004, pp. 117-130.985 Sem termos dados para uma inequívoca asserção, parece-nos estar perante uma movimento inexorável,que dispensou a atuação da Junta no que respeita a grande parte das conclusões e à enunciação desoluções. Aquele organismo elabora, de fato, um relato do estado dos mosteiros, apresenta soluçõesconcretas e, em relação a grande número de casas, preconiza a manutenção. Os pareceres da Juntaparecem, com efeito, ter sido olhados pelo crivo do argumento que se pretendia fazer valer.986 Cfr. Fortunato de ALMEIDA, História da Igreja em Portugal, Vol. III, Porto, Livraria CivilizaçãoEditora, pp. 145-146.
292
impedimento, pelo governo português, das profissões religiosas, seriam capazes de
suspender a aplicação da anterior disposição987.
Coincidindo, qual irónico contraponto, com o regresso de algumas das Ordens
entretanto expulsas e/ou com a instalação no país de Ordens novas988, o epílogo das
comunidades era diligentemente preparado através do escrutínio da situação material
dos mosteiros, proporcionado por uma série de minuciosos inventários, mandados
elaborar por portaria de 20 de Julho de 1857, e legalmente ratificados por Lei de 4 de
Abril de 1861989.
A continuidade, bem que inquieta, da vida cenobítica, acompanhou,
efetivamente, as várias desinências da vida política, mas a razão inversa também e
naturalmente se verificou. De tal modo que, face à efetiva subsistência da vida regular,
que incluía noviciados e profissões religiosas, Hintze Ribeiro, por decreto de 18 de
Abril de 1901, decide sancionar a existência legal de Ordens e Congregações quando
afetas a fins educativos e de beneficência, muito embora impondo-lhes, como
contrapartida, a secularização990.
Enquanto, no campo de reflexão vertente, a monarquia representativa elegera
como alvo as Ordens regulares, a República alargaria o seu espectro de ação crítica ao
clero no seu todo e à própria religião católica, assumindo a passagem do
anticongreganismo ao anticlericalismo991.
Foi pressurosa a ação legal republicana no rebatimento do poder da Igreja. Por
decreto de 8 de Outubro de 1910, ratificava-se a vigência das anteriores normas
pombalina e liberal a respeito da extinção das casas de regulares e determinava-se o
arrolamento e avaliação dos seus bens, a incorporar, salvo exceções, na Fazenda
987 Cfr. João Francisco MARQUES, "Ordens e sociedade portuguesa entre o Liberalismo e a I República",Luís Machado ABREU; José Eduardo FRANCO (coord.), Ordens e Congregações Religiosas nocontexto da I República, Lisboa, Gradiva, 2010, pp. 45-65.988 Ao abrigo de argumentos assistenciais ou a pretexto da missionação no ultramar, regressariam váriasOrdens, outras se instalariam de novo no país, nacionais ou estrangeiras e novas congregações sefundariam (sendo disso exemplo as Irmãs Dominicanas de Santa Catarina de Sena, a Congregação dasFranciscanas Hospitaleiras da Imaculada Conceição, a Congregação de Jesus, Maria, José e aCongregação das Irmãs Franciscanas de Nossa Senhora das Vitórias). Veja-se, sobre o tema, o artigo.acima citado, de João Francisco Marques.989 João Francisco MARQUES, op. cit., pp. 45-65.990 Segundo o estudo de Artur Villares, entre 1901 e 1910, registavam-se em Portugal 56 associaçõesreligiosas, legalizando 30 ordens e congregações existentes, 21 femininas e 9 masculinas. (Vd. ArturVILLARES, As congregações religiosas em Portugal (1901-1926), Lisboa, Fundação CalousteGulbenkian, 2003, p. 181.)991 Cfr. António ARAÚJO, "As Ordens e Congregações religiosas e o Direito Republicanas", LuísMachado ABREU; José Eduardo FRANCO (coord.), Ordens e Congregações Religiosas no contexto da IRepública, Lisboa, Gradiva, 2010, pp. 83-90.
293
Nacional. Entretanto, a Lei da Separação do Estado e da Igreja, promulgada a 20 de
Abril de 1911, ratificaria nalguns pontos o decreto de 8 de Outubro e consignaria o
arrolamento e a inventariação de todos os bens da Igreja Católica, coordenados pela
Comissão Central de Execução da Lei de Separação, no âmbito do Ministério da Justiça
e Cultos992.
Sobre o património, posteriores normas haveriam de dispor no sentido de
precisar e regulamentar a sua gestão, a qual viria a articular-se com o funcionamento de
depósitos destinados à recolha de objetos de valor histórico-artístico e documental, -
como a Academia de Belas Artes de Lisboa e sua congénere portuense e o Arquivo das
Congregações -, e com a criação de museus nacionais e regionais. A alienação em hasta
pública de bens móveis comuns, a distribuição de bens cultuais por juntas de paróquia e
a concessão de imóveis para serviços de interesse público constituiriam a face visível do
percurso do património, doravante desafetado e desfuncionalizado, das antigas
instituições regulares993.
992 Sobre o tema, vd., por ex., João SEABRA, A Lei Portuguesa da Separação do Estado das Igrejas de20 de Abril de 1911, Lisboa, Centro Cultural Pedro Hispano, 2008.993 Seguimos de perto a letra do artigo, de nossa autoria, "O património monástico-conventual e aRepública: o caso singular das Clarissas do Desagravo", Cadernos do Museu da Presidência daRepública, Vol. III (Outras vozes na República. 1910-1926. Atas do Congresso Nacional de História eCiência Política), Lisboa, Museu da Presidência da República, 2012, pp. 641-651.
294
2. As Clarissas do Desagravo no contexto revolucionário
O quadro contextual traçado com recurso à enunciação de medidas ou
circunstâncias que contundiram o destino das Ordens Religiosas conheceu uma
aplicação que, se não linear, foi contudo real e efetiva994. Sê-lo-ia também no caso do
Instituto do Desagravo, não obstante a firme resistência interposta pelas comunidades e
pelas dioceses a cuja jurisdição pertenciam. Da ação dos prelados de Coimbra, exemplar
a tal respeito, caberia aqui invocar o documento enviado por D. Frei Joaquim de Nossa
Senhora da Nazaré, bispo-conde de Coimbra e partidário de D. Miguel, à Junta do
Exame do Estado Atual, no que poderíamos ver uma autêntica contraproposta ao Plano
de Regulamento apresentado por aquele organismo995.
Múltiplas e díspares eram, efetivamente, as perspetivas e perceções sobre a vida
monástica, muito embora nem todas refletidas no campo da decisão política, neste
contexto protagonizada pelos representantes da hierarquia eclesiástica e, do lado oposto,
pelos arautos do Estado Secular. Perpassando a sociedade no seu todo, a questão da
clausura feminina não deixaria de dividir as próprias mulheres, como, quem sabe de
forma inusual, o expressa, significativamente em diário, certa D. Maria Ana, nascida no
dealbar de Oitocentos. "As ordens religiosas", escreve,
fizeram seu caminho pela fome e pela sede, até se negarem, até instaurarem o
reino da injustiça. Irmãs Clarissas do Desagravo, holocausto de mulheres que
há séculos desagravam, noite e dia, a profanação dumas hóstias. Não foram as
hóstias feitas para desagravar a profanação das pessoas?996
994 Da aplicação dos decretos de feição anticongreganista, embora incidentes sobre período um poucoanterior, nos dá conta Laurinda ABREU, "As relações entre o Estado e a Igreja em Portugal, na segundametade do século XVIII: o impacto da legislação pombalina sobre os estatutos eclesiásticos", Ana Leal deFARIA; Isabel Drummond BRAGA (coord.), Problematizar a História. Estudos de História Moderna emhomenagem a Maria do Rosário Themudo Barata, Lisboa, Caleidoscópio/Centro de História daUniversidade da Universidade de Lisboa, Lisboa, 2007, pp. 645-673.995 Vd. ANTT, MNEJ, mç. 270, n.º 1, cx. 216.996 Maria Isabel BARRENO; Maria Teresa HORTA; Maria Velho da COSTA; Ana Luísa AMARAL,Cartas portuguesas, 9.a ed. anotada, Alfragide, Dom Quixote, 2010, p. 81 ("Extractos do diário de D.Maria Ana, descendente directa de D. Mariana sobrinha de D. Mariana alcoforado, e nascida por volta de1800").
295
Não seria este, certamente, o sentir das religiosas da Adoração Perpétua, nem
daqueles que dariam voz à exemplar resiliência por aquelas demonstrada perante os
sucessivos reveses que afligiriam o monaquismo.
Antes ainda da investida liberal, as clarissas eram fustigadas pelas Invasões
Francesas. Em Outubro de 1810, o exército francês invadia e vandalizava o Mosteiro do
Louriçal, obrigando as religiosas a abandoná-lo. Viriam mais tarde a refugiar-se em
Lisboa, aonde chegariam a 4 de Janeiro de 1811, sendo acolhidas da D. Maria da Glória,
3.ª Marquesa de Louriçal, mulher de D. Henrique de Meneses. O regresso ao mosteiro
só em 1813 se verificava.
A passagem dos soldados pelo Louriçal revestiu contornos a um tempo místicos
e tenebrosos. Na sua investida, os invasores terão desacatado o Santíssimo Sacramento
da Igreja matriz de São Tiago. Das formas consagradas, 45 seriam encontradas e
zelosamente confiadas às irmãs clarissas, então em pleno êxodo. Exacerbada a piedade
dos fiéis, dir-se-ia mesmo que a imagem do Senhor das Misericórdias, pertencente ao
mosteiro, teria chorado aquando da funesta ocorrência.
A Breve memoria dos estragos causados no bispado de Coimbra pelo exercito
francez tece um quadro elucidativo: no Louriçal "não existe a terça parte da população";
os sacrilégios, esses, "forão tão geraes, e são tão conhecidos por obra de similhantes
monstros, que basta dizer: que por toda a parte onde acháraõ o Sacrario sem o Vaso
Sagrado, lhe lançavão o fogo, ou escavacavão.”997
Vila Pouca não escaparia tampouco às ofensivas militares. Em 1810, à passagem
do exército pela vila, as religiosas abandonam o mosteiro, refugiando-se nas montanhas.
No ano seguinte, seriam vítimas de nova investida, optando uma vez mais por dispersar.
O cenóbio, contudo, não seria poupado, vendo-se queimada e roubada grande parte dos
seus bens móveis.
Sucessivas decisões régias viriam em auxílio das religiosas no sentido de atenuar
o seu estado de indigência e depauperamento material. Em 1814, o fututo D. João VI,
ainda então príncipe regente, toma diligências
não só para que [as religiosas do Conventinho] possão perpetuamente reter, e
incorporar no seu Patrimonio os Bens de raiz, Apolices, e Padrões de Juro Real,
997 Breve memoria dos estragos causados no bispado de Coimbra pelo exercito francez, commandadopelo general Massena. Extrahida das informaçõe sque derão os reverendos parocos. E remettida á Juntados Soccorros da Subscripção Britanica, pelo Reverendo Provisor, Governador do mesmo Bispado,Lisboa, Impressão régia, 1812, p. 13.
296
que já possuem [...] mas tambem os que houverem de adquirir com o produto
das Joias que pela mesma Infanta lhes forão doadas no valor de desoito contos
quatro centos desaseis mil trezentos e sessenta reis998.
A 15 de maio de 1815, uma provisão régia atende ao pedido das religiosas de
Vila Pouca da Beira, que requerem a ampliação do fundo monástico em bens de raiz até
à quantia de vinte e cinco mil cruzados a fim de “restabelecer tudo o que haviam
perdido e concluir umas obras que eram indispensáveis”999.
Em Montemor-o-Novo, não menores eram as agruras materiais, a que uma
sucessão de diplomas régios tenta diligentemente pôr cobro. A 27 de setembro 1811,
uma provisão permite às recolhidas a posse da renda anual dos 46 alqueires de trigo
deixados em testamento por Dona Maria Joaquina Antónia Semeda Telles. A 7 de
novembro de 1817, o rei concede às recolhidas, a fim de se prover a despesas de ornato
e culto divino, a graça de pedir esmola durante um ano através de um donato. A 2 de
dezembro de 1819, nova licença de esmolar será data, desta vez apenas válida por seis
meses. A 7 de setembro de 1825, por fim, D. João VI ordena que a Mesa da Santa Casa
da Misericórdia de Montemor-o-Novo socorra as recolhidas na doença1000.
Por seu turno, a comunidade do Louriçal definhava: em 1815, a abadessa
solicitava ao Príncipe Regente D. João o provimento dos 5 lugares de professas que
então vagavam. A 22 de outubro de 1845, as religiosas apelavam à 4.ª Marquesa do
Louriçal, rogando a manutenção das prestações em género que os antepassados de seu
marido anualmente dispensavam à comunidade. Em maio de 1852, a comunidade
solicita à rainha o necessário apoio para a conservação da casa. Lamentando a condição
em que encontram, alegam que “só pela Divina Providencia se tem podido acudir” à
conservação do culto divino e do edifício e de outras despesas indispensáveis. Evocam
mesmo, apelando a contrapartidas por satisfazer, o sazonado alvará de D. João V, que
estabelecia as obrigações da comunidade: “encomendarem a Deos Nosso Senhor a
998 Por decreto de 22 março de 1814 (ANTT, Desembargo do Paço, Corte, Estremadura e Ilhas, Mç. 2184,cx. 2011). Do mesmo teor que o diploma mencionado é a provisão de 26 de novembro de 1820 (ANTT,Chancelaria de D. João VI, Lv. 35, fls. 6 v. – 7).999 Veja-se a Provisão régia de 15 de maio de 1815, que atende ao pedido das religiosas de ampliar ofundo do mosteiro em bens de raiz até à quantia de vinte e cinco mil cruzados a fim de “restabelecer tudoo que haviam perdido e concluir umas obras que eram indispensáveis”.1000 Por cópia de uma carta de 7 de Setembro de 1825 enviada ao corregedor da comarca de Évora, emque o rei, partindo de um requerimento das irmãs do Real Recolhimento, ordena que a Mesa da SantaCasa continue a prover ao socorro das suplicantes no que toca a enfermidades. BN/RES, mss. 238, n.º 13.
297
Conservação da Caza Real, o augmento do Reino, e impetrarem luz superior p.ª
Conseguir os acertos no governo delle”1001.
O bispado de Coimbra, por seu lado, continuaria a fazer jus à sua tradicional
vigilância ao garantir o cumprimento estrito da Regra - e, por conseguinte, evitando
uma avaliação desfavorável pelas entidades seculares a tal adstritas. Após a emissão, a
12 de agosto de 1791, de carta pastoral de D. Francisco de Lemos Faria Pereira
impondo a revisão do exercício de práticas religiosas1002, seguir-se-ia, com data de 22
de abril de 1825, carta pastoral de D. Joaquim de Nossa Senhora da Nazaré. Nesta, que
regularizaria em diversos capítulos a disciplina monástica, se glosa, uma vez ainda,
aquela que parece ter sido a bondade intrínseca do Instituto1003.
Sim Amadas filhas em Christo muitas graças Temos que dar ao Deos que vos
inspira, e que vos mantem no Sto. propozito de fugirdes á corrupçaõ do mundo
enganador p.ª aromatizardes com o bom cheiro de vossas virtudes e austerid.es
hum claustro que a piedade edificou p.ª servir de baluarte contra as settas dos
ímpios, q. a religiaõ tem deffendido com o manto da inocência, e q. o Corpo e
sangue de J.Christo Sacramentado deffenderá perpetuam.te da peste dos
vícios.”
Formalmente, o Desagravo parecia estar em posição de enfrentar a indagação
que o Estado impunha. Não parece casual a publicação, em 1822, em plena ofensiva
liberal, do texto das Constituições dos vários mosteiros, texto esse comum a qualquer
das três casas da Regra1004. Julgamos, efetivamente, corresponder à necessidade de
demonstrar a regularidade da organização da vida do Instituto, embora não saibamos se
tenha antecedido ou antes sucedido alguma diretiva no sentido da sua elaboração.
Os documentos consultados, atualmente pertencentes ao fundo do Ministério dos
Negócios Eclesiásticos e Justiça não parecem sufragar qualquer tentame de extinção das
casas em apreço. Não obstante, uma Relação dos Conventos de Religiozas, que existem
1001 ANTT, AC, 32, 10.1002 Carta Pastoral, porque V. Ex.ª he Servido prescrever a Ordem, que a Religioza Communidade doConvento do SSmo Sacramento do Louriçal deve observar nos Officios Divinos, emais Exercicios, eActos de Religiaõ, na forma, que nella se contem. (ANTT, AC, Lv. 1136).1003 Carta pastoral e exortativa pela qual V. ex.ª R.ma Há por bem regularizar a desceplina do RealConvento do Desaggravo do S.mo Sacramento da Villa do Louriçal, ANTT, Arquivo das Congregações,liv. 1140.1004 As já referidas Constituições e leis por que se hão de governar as religiosas....., Coimbra, Imprensada Universidade, 1822.
298
na Cidade e Bispado de Coimbra, documento de 30 de dezembro de 1822, dirá que
"Sendo necessario suprimir alguns dos Conventos das Religiozas ou pela falta de
numero legal, ou por outra razão", as "Religiozas de Cellas, facilmente se podem
transferir para Lorvão, por serem conventos, não distantes, e do m.mo Instituto", da
mesma forma que "as de Villa Pouca para o Louriçal, por serem do mesmo Instituto, e
por que, segundo o Instituto, não lhes sendo permittida comida senão de peixe, o
Louriçal está proximo do Már, no que náo he proprio do local de Villa Pouca."1005
Pragmáticas e consonantes com o espírito das diretivas vintistas que lhes davam
forma, estas propostas não viriam, contudo, a repercutir-se em posteriores pareceres ou
a culminar diretamente em qualquer processo de supressão. Em documento de 2 de
março de 1830, refere-se que nenhum dos cenóbios da jurisdição do Patriarcado de
Lisboa ou da Jurisdição da diocese de Coimbra deveria extinguir-se1006. No que respeita
ao Conventinho, considerava-se mesmo a conservação como devida, "sobretudo
attendida a veneração que a todos os Fieis merece pela sua exemplarissima
observancia"1007. O mesmo se concluía, aliás, do "Rezumo das Consultas especiaes da
Junta do Melhoramento das Ordens regulares, sobre as diversas Corporações, assim de
Religiozos, como de Religiozas." Nesta súmula, não datada, mas possivelmente
próxima da 18341008, todas as casas de religiosas do Ordinário de Lisboa, Coimbra e
Évora, para além de tantas outras, deveriam subsistir. Curiosamente, a condescendência
que daqui parece ressumar não anuncia a ofensiva governamental que, logo após, os
decretos de 1833 e 1834 virão pôr em ato.
Considerados no seu conjunto, os sucessivos reveses que afligiram o Desagravo
refletiram-se não apenas na progressiva atrofia dos recursos materiais e humanos da
comunidade, quanto num movimento de resistência orientado para a sobrevivência da
observância, objetivo em muito creditado pelo funcionamento reticular das
comunidades, o qual, no período em questão, amplamente se catalisou. Ao promover o
trânsito e comunicação entre casas, a estrutura em rede permitiu não só a possibilidade
de acolher religiosas em particulares apuros - vimo-lo a respeito das Invasões Francesas
-, quanto a agilização da distribuição e gestão de recursos.
1005 ANTT, MNEJ, mç. 268, n.º 2.1006 ANTT, MNEJ, mç. 270, n.º 1, cx. 216, doc. 36. Parecer sobre o Desagravo. Lisboa, 2 de Março de1830.1007 ANTT, MNEJ, mç. 270, n.º 1, cx. 216), Doc.33. Parecer sobre o Mosteiro do Desagravo de Lisboa, 2de março de 1830.1008 ANTT, MNEJ, Mç. 270, n.º 1, cx. 216.
299
A recuperação do processo relativo a Maria do Lado merece, neste contexto,
indubitável atenção. Para Roma parte, elaborado pelo padre da Congregação da Missão
Michele Andrea Biancardi, o Ristretto della vita della venerabile serva di Dio Maria
del Lato dedicata al Santissimo Padre Pio VII, que sumariza o Compendio da
Admiravel Vida da Veneravel Madre Maria do Lado, redigido pela então abadessa do
Mosteiro do Louriçal e dado ao prelo em 17621009. Infundindo a causa, Biancardi
invoca, na Conclusão,
os inúmeros ultrajes, e horríveis agravos feitos a Sua Divina Majestade nos
sacrílegos roubos das Sagradas Píxides, e no desacato das Hóstias
consagradas, cometidos pelos sequazes de Napoleão em quase todas as Igrejas
de Portugal, onde só na Província do Minho foram roubadas mais de duzentas
Igrejas1010. [tradução nossa]
Em 20 de julho de 1829, inspirando-se na argumentação de Biancardi, as
religiosas dos quatro cenóbios, Conventinho, Louriçal, Montemor-o-Novo e Vila Pouca
da Beira dirigem ao Sumo Pontífice um requerimento em que invocam que a Revolução
Francesa suspendera a causa da beatificação de Maria do Lado, a que no reinado de D.
Maria I e sob o pontificado de Pio VI se dera início. Alegam ainda a generalização de
desacatos sacrílegos contra Cristo sacramentado, que, especificam, terão ocorrido
“principalmente neste Reino de Portugal desde o anno de 1809, até o prezente de
1827”1011.
Congregando significativamente Invasões Francesas e Revolução Liberal, este
intervalo sacrílego demandaria, naturalmente, um ato expiatório que a autorização
canónica da santidade de Maria de Brito deveria proporcionar. A atentar numa nota de
despesas feita por Tommaso Maria Salvatori, promotor da causa, o processo ter-se-á
1009 Baseado nos manuscritos de Bernardino das Chagas e nos relatos das beatas que com a Venerávelconviveram, por seu turno compilados neste Compendio da Admiravel Vida, viria a lume, em edição de1981 elaborada pelas irmãs clarissas do Louriçal, a Vida da Serva de Deus Madre Maria do Lado.Fundadora do Mosteiro do Santíssimo Sacramento do Louriçal.1010 Ristretto della vita della venerabile serva di Dio Maria del Lato dedicata al Santissimo Padre PioVII, da um prete della Congregazione della Misssione (ANTT, Arquivo das Congregações, mç. 28, mct.3).1011 ANTT, Requerimentos de beatificação de Maria do Lado, Arquivo das Congregações, mç. 11, mct. 4.
300
efetivamente desencadeado, muito embora, uma vez mais, não viesse a conhecer
êxito1012.
Se a conservação do Instituto beneficiaria, no plano moral e institucional, da
consagração definitiva da fama de virtudes da fundadora, lucraria, no campo material,
com o legado testamentário do benfeitor António Pereira Caldas1013. O testamento que
lavrou em Dezembro de 1811, a escassos anos da morte, é expressão da estima que a
forma de vida abraçada pelas Clarissas do Desagravo lhe merecia. De tal modo que viria
a destinar-lhes a terça parte dos bens, que a abadessa do Louriçal passaria a gerir
aplicando-a “para alguma nova Fundação […] do dito Instituto” ou “repartindo […] do
referido convento para outro convento, ou conventos, ou Recolhimento do sobredito
Instituto.”1014
Em face das necessidades temporais sentidas, compreende-se que as religiosas
tenham optado por distribuir pelas quatro comunidades clausuradas os 121.660 réis que
perfaziam o montante total do legado, vindo cada uma a beneficiar de 30.415 réis1015.
Já de posse de uma “morada de cazas cita na Rua do Barão na Cidade de Lisbôa,
havidas por legado deixado á Communidade em 4 de Dezembro de mil oito centos e
onze pelo Padre Antonio Pereira Caldas de Lisboa” 1016, as clarissas deverão ter-se
pressurosamente aprestado a dar execução aos desígnios do testador.
1012 Arquivo das Congregações, mç. 28, mct. 3. A causa estaria parada porque as religiosas não haviamrespondido a várias questões provindas de Roma; não havia milagres grandes a considerar; o confessorera pessoa particular, singela, e a forma como tinha escrito a vida da confessanda suscitava reservas.Além disso, Maria do Lado teria dito, em artigo de morte, quando questionada sobre se queria confessar-se, que não tinha de quê confessar-se.1013 Breves notas biográficas sobre António Pereira Caldas podem ver-se em Innocencio Francisco daSILVA, Diccionario Bibliographico Portuguez, Tomos I Lisboa, Imprensa Nacional, 1854, pp. 231-232.São contudo destacadas as informações relativas à obra literária do religioso, ficando na sombra aspetosdo seu atribulado percurso a que certamente ficarão a dever-se decisões tão relevantes como a queconcerne o legado a que nos referimos. A respeito do percurso de António Pereira Caldas até à profissão,religiosa, vd. António Pereira Sousa Caldas, [doc. electrónico: http://www.biblio.com.br/conteudo/SousaCaldas/ SousaCaldas.htm].1014 O testamento do Padre Caldas está inserto no Processo referente a representação das madresabadessas dos três conventos do Desagravo do Santissimo Sacramento a Sua Majestade […], BibliotecaNacional do Rio de Janeiro - Divisão de manuscritos (I-32, 23, 004, n.º 9).1015 BPE, Convento do Santíssimo Sacramento. Montemor-o-Novo, Pasta VI (documentos avulsos).Correspondência avulsa. Interessantes duas cartas enviadas pelo Louriçal às recolhidas de Montemor-o-Novo. Referem-se ao legado do benfeitor P.e Caldas e à dificuldade na distribuição atempada dosdinheiros. Carta da abadessa do Louriçal à regente de Montemor-o-Novo sobre a gestão do legado dobenfeitor P.e Caldas, 25 de dezembro de 1863.1016 ANTT, AHMF, Processo relativo ao Convento do Desagravo do Santíssimo Sacramento do Louriçal,cx. 1939, IV/I/45 (9)., fls. 1-1v. Constatámos, com efeito, que, na Rua do Barão, existiam váriaspropriedades pertencentes a uma certa "Viúva Caldas" entre 1821 e 1822, pelo menos. (Vd. AHTC,Décimas da Cidades, Freguesia de Santa Maria Maior, Prédios, 1821 e 1822 e AHTC, Décimas daCidades, Freguesia de Santa Maria Maior, Arruamentos, 1821-1822).
301
3. A Casa do Desagravo da Cova da Moura
A revivificação do Instituto do Louriçal transcenderia a consolidação das
estruturas monásticas existentes. Das impiedades perpetradas em tão nebulosos tempos,
as religiosas extrairiam, com efeito, um estímulo acrescido de veneração do divino sob a
forma da criação de novas comunidades cenobíticas. Assim o confirma Frei José de
Santa Rita de Cássia, religioso franciscano e pregador régio, que acima vimos como
arauto do Miguelismo. A ele, não casualmente, ficará a dever-se a redação do
Regulamento da Casa do Desagravo da Cova da Moura, cuja Introdução retoricamente
invoca:
He não menos constante, como desde a invasão do Francezes neste Reino de
Portugal se tem perpetrado, e tantas vezes repetido os mais horrorosos, os mais
infames, e até os mais sacrilegos desacatos; desacatos, que, além da sua
reiterada repetição, e pelos seus modos ultrajantes, maneiras escandalosas, e
circumstancias aggravantissimas, fazem horror á mesma natureza, e cuja só
narração tristissima he bem capaz de fazer estremecer os pios corações dos
Filhos da nossa Sancta Igreja Lusitana! E Deos, que, segundo a fraze de Sancto
Agostinho, costuma fallar não menos com palavras do que pelas suas obras,
deixará de exigir de seus filhos, os fieis Portuguezes, o devido tributo de amor,
para que, á imitação dos seus ascendentes, lhe fação erigir novos Monumentos
em Desaggravo do seu Sactissimo Corpo, Sangue, e Divindade?! Nada mais
proprio á fé, lealdade, e bem conhecida Religião deste Fidelissimo Reino de
Portugal!1017
A fundação, em 1825, deste novo monumento à fé ficaria, no entanto, sujeita às
limitações então institucionalmente impostas às Ordens Regulares. Em lugar de um
1017 José de Santa Rita de CÁSSIA (frei), Regulamento para a Casa do Desagravo do SanctissimoSacramento da Eucharistia novamente erecta em Lisboa, Lisboa, Impressão Imperial e Real, 1826. ABNP dispõe de dois distintos exemplares do texto, embora de conteúdo em tudo igual: um, de 1826, ooutro, de 1833.
302
mosteiro de clausura, o Conservatório, como passaria a designar-se, assumiu-se como
recolhimento de valência essencialmente educacional, refletindo uma adaptação
pragmática aos condicionalismos legais. O texto do Regulamento não deixa de lhe fazer
eco ao invocar que a fundação, "longe de servir de pêso, póde servir de muita utilidade
ao Estado, ensinando pelo amor de Deos a mocidade pobre; e tanto mais segundo a
singelesa, e simplicidade, com que se pertende erigir”1018.
Significativamente, são de diferente teor os argumentos que, a 17 de Maio de
1819, Frei Francisco da Cruz, como procurador das religiosas, redige ao rei, que
precedentemente anuíra à fundação. Além de advogar a sustentabilidade temporal da
casa, para cuja construção havia já sido doado o terreno, argumenta que a mesma seria
essencial
para se realizarem os ard.es desejos de sua pr.a Fundadora a Veneravel Maria
do Lado sobre a multiplicação das Cazas, ou Conv.tos do Dezagravo, e athe p.ª
se realizarem os seus annuncios propheticos sobre isto m.mo a resp.to da
felicid.e de Portugal quando as cazas do Desagravo se augmentassem1019.
Não é difícil reconhecermos nesta alegação um interessante e poderoso conjunto
de argumentos: não só a fundação estava inscrita num desígnio superior, como a
felicidade do Reino lhe seria inclusivamente tributária. À data da redação dos estatutos,
uma outra condição acrescia em seu abono: o sucesso dinástico de D. Miguel, em 1823,
a que Frei José de Santa Rita de Cássia aparece ligado enquanto partidário do
Miguelismo e pregador régio1020.
Versando sobre as boas obras, o art.º 20º do Regulamento oferece uma súmula
da vocação da casa, retomando argumentos amplamente glosados no contexto da
implementação de novas fundações ou na retoma da causa de beatificação de Maria do
Lado:
1018 Idem, ibidem, p. 5.1019 Processo referente a representação das madres abadessas dos três conventos do Desagravo doSantissimo Sacramento a Sua Majestade…, Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro - Divisão demanuscritos (I-32, 23, 004, n.º 9).1020 José de Santa Rita de CÁSSIA, Sermão que no dia natalicio de Sua Magestade Fidelissima o SenhorDom Miguel I …, Lx, Impressão Régia, 1829.
303
As obras meritorias em fim desta Casa do Desaggravo, segundo o seu instituto
primitivo, devem ser applicadas pelo nosso muito Amado, e Augusto Rei, e por
toda a Familia Real, pelas Almas do Purgatotio, pelos que andão em peccado
mortal, e pela felicidade de Portugal; felicidade, que a já dicta Verenavel Maria
do Lado, por Deos illustrada, a este mesmo Reino cada vez mais promette,
quando nelle se augmentarem as Casas do deu Desaggravo.
O processo arrastar-se-ia até finais de 18251021, data da provisão de D. João VI a
favor de D. Maria José Rosa do Coração de Jesus, a quem o rei concede licença para o
estabelecimento de h a Caza q. ella Sup.te, e suas Companheiras em numero
de dez pertendem erigir nesta Corte com o Titulo do Dezagravo ao Santissimo
Sacramento, e na qual, mediante o Instituto, ou Norma da Veneravel Maria do
lado, sejão educadas meninas, e admitidas gratuitamente as q. forem pobres1022.
Pobre na aparência e nos meios, pois que às “pedras materiaes, grandes,
polidas”, preferiu edificar-se “sobre pedras espirituaes vivas”1023, o Conservatório,
flexão possível de um pretenso mosteiro, ver-se-ia, pouco depois de instituído, em
estado de acentuada decadência. Por não terem “outros meios de prover a sua
sustentação alem daquelles, que lhe proporciona a Caridade dos Fieis, e o zello do seu
fundador”, as suas religiosas rogam ao soberano, a 11 de setembro de 1832, a
possibilidade de perpetuamente deter os cinquenta alqueires de trigo de que as instituíra
herdeiras D. Mariana Bárbara do Menino Jesus e Carvalhais1024.
1021 Ainda que no ano de 1825 se tenha igualmente verificado o desacato da Igreja de S. Lourenço, emLisboa, não é de crer que a criação da Casa do Desagravo lhe esteja associada, até porque os trâmites dafundação remontavam a data anterior.1022 ANTT, Chancelaria de D. João VI, Lv. 45, fl. 38 v - 39. Documento de 3/11/1825 – remete tb para aconsulta do DP de 22 de Setembro de 1825 e para a provisão de 24 de Outubro de 1825. A Casa doDesagravo foi efetivamente erigida em 22 de Setembro de 1825, por resolução do monarca em consultado Desembargo do Paço (Vd. ANTT, Desembargo do Paço, Maço 1585, n.º 23).1023 José de Santa Rita de CÁSSIA (frei), Regulamento para a Casa do Desagravo, 1826, p. 5.1024 ANTT, Desembargo do Paço, Corte, Estremadura e Ilhas, mç. 1585, n.º 23. Doc. de 11 de Setembrode 1832. Trata-se de um pedido da superiora e demais Escravas do Desagravo do SS. Sacramento parapossuírem o foro de 50 alqueires de trigo deixado por Marianna Bárbara do Menino Jesus e Carvalhaisem testamento. O documento remete para a consulta do Desembargo do Paço de 22 de Setembro de 1825e para a provisão de 24 de Outubro de 1825.
304
Deste monumento do Desagravo não resta, ao que apurámos, memória ou fonte
literária. A documentação, também escassa, atesta a sua implantação na atual freguesia
lisboeta dos Prazeres, no que anteriormente era a freguesia de Santos-o-Velho1025, em
lugar então denominado Campo da Moira.
A propriedade ter-se-á estabelecido no ano de 1825, por arrendamento do n.º 35
do Campo da Moira, à época pertencente à viúva de Sebastião Pedro1026. Em 1826, os
Livros de Décimas da Cidade de Lisboa registam que os arrendatários daquele prédio -
neste caso, o Recolhimento - pagavam 6000 réis aos herdeiros de Sebastião Pedro. E, à
margem, anotam: “Por pagar o Quinto deste foro, por ser de Bens da Corôa, e como tál
isempto de Décima”1027. Com o tempo, a propriedade ter-se-á estendido a terrenos
contíguos, passando, entre os anos de 1828 e 1829, a representar os números 31 a 35 e a
corresponder, pelo menos até 1833, à designação de "casa e quintal"1028.
Em relação à vida religiosa e, sobretudo, à estrutura arquitetónica e ao recheio
artístico, as questões, muitas, afloram: como se terá organizado, face dos Estatutos, a
casa que cremos corresponder aos números 31 a 35 do antigo Campo da Moira, prédio
urbano sem qualquer indício externo de sacralidade1029 (Figs. IV.1-2)? Como seria o
espaço litúrgico? Haveria claustro? Qual a expressão material das devoções praticadas e
eventualmente herdeiras do histórico Instituto do Louriçal?
Seria tentador preencher as lacunas de informação com suposições, mas, face à
carência de fontes e à natureza do presente trabalho, teremos que declinar tal pretensão.
Não cremos, no entanto, que o Conservatório pudesse representar estética e
artisticamente um interesse assinalável. A sua localização, contudo, pela notória
proximidade do Palácio das Necessidades, poderia, quem sabe, denotar a proximidade
da Coroa, de cuja proteção o Desagravo desde sempre beneficiara.
1025 Vd., a propósito, Francisco SANTANA, (recolha e índices), Lisboa na 2.ª metade do séc. XVIII(plantas e descrições das suas freguesias), Lisboa, Câmara Municipal de Lisboa, Lisboa, s/d.. Sobre afreguesia de Santos, vd. p. 20, pp. 40-41 e p. 151.1026 AHTC, Décimas da Cidade, Santos, DC1079P, 1825. fls. 292-292 v.1027 AHTC, Décimas da Cidade, Santos, DC1080P, 1826, fl. 292.1028 AHTC, Décimas da Cidade, Santos, DC1082 P, 1827, fl. 293 v.; AHTC, Décimas da Cidade, Santos,DC1082 AR, 1829, fls. 445v.446; AHTC, Décimas da Cidade, Santos, DC1083 P, 1829; AHTC,Décimas da Cidade, Santos, DC1087 P, 1833, fls. 290v. – 291; AHTC, Décimas da Cidade, Santos,DC1087 AR, 1833, fl. 412 v.1029 Arquivo Municipal de Lisboa, Arquivo Fotográfico, ref.º PT/AMLSB/ARM/S02730 (disponível emlinha).
305
4. O Colégio de Sanguedo
O percurso acidentado do Desagravo por terras nacionais encontrou no último
quartel de Oitocentos um reduto mais de implantação. Em cerca de 1785, a vila de
Sanguedo, concelho de Santa Maria da Feira, bispado do Porto, acolheria os desígnios
prescritos pela Venerável do Louriçal.
Sobre o Colégio de Sanguedo, designação que viria a adotar, modestas são as
informações disponíveis, embora não tão ínfimas quanto as que respeitam ao
Conservatório da Cova da Moura1030. Surgindo extemporaneamente, em época em que a
simples entrada em religião se tornara legalmente impraticável, revestir-se-ia
institucionalmente de vocação educacional.
A casa, porém, não apenas surgia em condições adversas, quanto em resposta a
adversidades. Frei Ladislau Toghetti da Canepina assim o assinala na Introdução dos
Estatutos e Constituições que para as clarissas de Sanguedo redigiu:
Desejando portanto, que as Religiosas d’este collegio de Sanguedo sejam
sempre animadas do mesmo espirito de perfeição, e de reparação aos muitos
ultrages que em o S.S.mo Sacramento diariamente se fazem a N. S. Jezus
Christo, se estabelecem e formulam para regulamento das mesmas, as seguintes
Constituições ou Estatutos [...].1031
Os reveses do tempo aportariam adaptações ao próprio regulamento e, por
conseguinte, também à dinâmica do viver comunitário, como fica expresso numa nota
ao art.º 10.º do Cap. 4.º das Constituições, em que se prevê a exceção, condicionada ao
1030 Encontramos informação sobre os estatutos do Mosteiro em Fernando Félix LOPES, FontesNarrativas e Textos Legais para a História da Ordem Franciscana em Portugal, Madrid, 1949, p. 203.Vd., também, António Montes MOREIRA, “A Restauração da Província franciscana de Portugal em1891”, separata do Archivo Ibero-Americano, Tomo 42, 1982, n.ºs 165-168, p. 544.1031 Ladislau da CANEPINA (frei), Estatutos e Constituições pelas quaes devem dirigir-se e governar-seas Religiosas Clarissas do Desagravo do SS.mo Sacramento em o Collegio de Sanguedo, Diocese doPorto, s/d, fls. 2-3. O manuscrito encontra-se na Biblioteca Provincial de Lisboa/Seminário da Luz. Osestatutos têm 32 capítulos e 195 artigos, sendo portanto menos extensos que os originais do Louriçal edos demais mosteiros do Desagravo de fundação setecentista.
306
arbítrio da madre abadessa, discretas e prelado, de ingresso em religião com idade
superior a 30 anos, “considerados os desgraçados tempos em que vivemos”1032.
Contudo, enquanto adaptação das Constituições do Louriçal, o regimento do
colégio pressupunha a transmissão de uma herança moral e devocional e propiciava a
sobrevivência da mesma. No capítulo das celebrações, assume o protagonismo, como
seria de esperar, o Tríduo do Desagravo, no decurso do qual haveria exposição solene
do Santíssimo (art. 75.º, cap. 12.º) e sermão (art. 76.º, cap. 12.º). Fecharia a cerimónia, a
18 de Janeiro, uma procissão realizada na Igreja, a que as religiosas assistiriam do coro
(art. 76.º, Cap. 12.º) 1033.
O registo de continuidade a que nos referimos inscreve-se, com efeito, nos
particulares da fundação deste novo cenóbio. A iniciativa da sua criação terá cabido, ao
que se supõe, a Rosa de Jesus Tavares - em religião, Soror Maria de Jesus Tavares -
professa do Conventinho de Lisboa, de onde, por alegadas razões de saúde, terá saído
rumo a Sanguedo, na provável companhia de Maria de Santa Rita e Maria do Desagravo
Rodrigues, ambas igualmente professas do Desagravo lisboeta1034. Terão aplanado o
propósito da fundadora o acordo do bispo do Porto e o auxílio dos fiéis da
localidade1035. A 15 de janeiro de 1875, o Colégio recebia as suas primeiras
postulantes1036.
Aparentemente inusitada nas suas coordenadas temporais e espaciais, a fundação
levanta inúmeras questões perante as quais não nos encontramos, uma vez mais,
habilitados a responder. Contudo, o fato de o colégio ter surgido num território da
periferia nortenha, sob a jurisdição do bispo do Porto, leva-nos a pensar que essa remota
geografia pudesse oferecer condições de abrigo à iniciativa encabeçada por Madre
Maria de Jesus. Pequena vila do concelho de Santa Maria da Feira, Sanguedo terá
acolhido a ideologia miguelista, pelo menos a atentar nos sufrágios pela alma de D.
1032 Estatutos e Constituições pelas quaes devem dirigir-se e governar-se as Religiosas Clarissas doDesagravo do SS.mo Sacramento em o Collegio de Sanguedo, Diocese do Porto, fl. 9. O manuscrito fazparte do espólio da Biblioteca Provincial franciscana de Lisboa/Seminário da Luz.1033 Ibidem, fls. 38-40.1034 Presumíveis fundadoras que assinam as atas das primeiras noviças e professas de Sanguedo, em livrode atas iniciado a 6 de Julho de 1876. Arquivo Histórico do Patriarcado de Lisboa, Exame de religiosas devários conventos de Lisboa. 1753-1793, Lv. 571.1035 António Montes MOREIRA, “A Restauração da Província franciscana de Portugal em 1891”,separata do Archivo Ibero-Americano, Tomo 42, 1982, n.ºs 165-168, p. 544.1036 Data da primeira admissão. As candidatas tinham uma média de 17/18 anos e foram mesmo admitidaspostulantes de 15 anos. Vd. Arquivo da Paróquia de Santa Eulália de Sanguedo, Livro em que se registamos nomes das Postulantas da Tomada de habito e da Profissão ordenado pelo P. Ladislao Toghetti Min.Ref. Da Provincia Romana, fl. inum.
307
Miguel que pelo reino se realizaram e que, em Lisboa, não deixariam de incluir o
Conventinho e, fora da capital, a longínqua Sanguedo1037. Podemos paralelamente
aventar a suposição de um contato prévio entre alguma das religiosas de Lisboa e
Sanguedo.
Por outro lado, pressentia-se iminente a extinção das Clarissas do Desagravo: a
27 de março de 1878, a regente do Recolhimento de Montemor-o-Novo oficiava ao
administrador do concelho informando da saída das religiosas, que de perto se
avizinhava, vindo a efetivar-se a 1 de Abril de 1872; em 2 de julho de 1889, a
comunidade de Vila Pouca da Beira capitularia definitivamente por óbito da última
professa; a 11 de março de 1878, o mesmo se verificaria no Louriçal. Das demais casas
da Ordem, talvez só a de Lisboa reunisse condições para dispensar religiosas a quem
cometer uma nova fundação.
O novel beatério, instituído sob a designação de “colégio”, conheceria
clandestinas tomadas de hábito e votos monásticos, totalizando 37 profissões até ao ano
de 19021038. Em 1901, aí viveriam 20 recolhidas, seguidoras da Regra do Desagravo, em
número que rivaliza com a lotação registada em vários períodos da vida de cada uma
das casas afiliadas1039.
Interpondo-se à extinção da observância, Sanguedo proveria mesmo à sua
ampliação. Não muito tempo sobreviveria, porém, à sua própria fundação, vindo a ser
entregue a 9 de janeiro de 1915, pela repartição local da Comissão Jurisdicional dos
Bens das Extintas Ordens Religiosas, ao Ministério da Justiça a fim se ser incorporado
nos Bens Próprios da Fazenda Nacional, estando já a sua parte rústica arrendada desde
19051040. O ano de 1907 terá sido o último em que a comunidade residiria
conventualmente. A 20 de julho desse ano, registava-se o assento de óbito da sua última
religiosa1041.
1037 Cfr. Armando Barreiros Malheiro da SILVA, Miguelismo: ideologia e mito, Livraria Minerva, 1993,pp. 284-268.1038 A 25 de Fevereiro de 1902, tinha lugar a última profissão, da noviça Soror Maria da Cruz. (Vd.Arquivo da Paróquia de Santa Eulália de Sanguedo, Livro em que se registam os nomes das Postulantasda Tomada de habito e da Profissão ordenado pelo P. Ladislao Toghetti Min. Ref. Da Provincia Romana,fl. inum.).1039 Cfr. VILLARES, op. cit..1040 ANTT, Ministério da Justiça e Cultos, Direção Geral da Fazenda Pública, Processo n.º 487, Livro 1.apud, "O Colégio do Desagravo de Sanguedo", AAVV, Revista Comemorativa dos 300º aniversário daFundação do Convento do Louriçal, p. 135. Não encontramos, na documentação compulsada, odocumento que a obra referencia.1041 Idem, ibidem.
308
Verifica-se em Sanguedo o que notáramos a respeito da Cova da Moura: a ideia
quase inexistente da expressão material e artística. Apenas sabemos que, situado no
lugar de Aldeia Nova, o cenóbio se compunha de igreja, "recolhimento" contíguo e casa
do capelão, esta última ainda hoje existente, conquanto bastamente alterada. No seu
conjunto, a propriedade corresponderia a um grande retângulo com claustro arborizado
e ajardinado1042 (Figs. IV.3-7).
Em 1915, o edifício, compreendidas as partes urbana e rústica, era vendido em
hasta pública em Lisboa1043. Quanto aos bens móveis, mais tarde nacionalizados, seriam
arrematados por Quintino Ferreira da Costa, natural de Sanguedo1044. A demolição do
putativo edifício conventual teria início logo após. A pedra terá sido vendida a fim de
servir à construção do Colégio dos Carvalhos, de Vila Nova de Gaia, e Casa de
Sanguedo dos Crastos, na Castanheira, assim como ao emparedamento de poços da
freguesia e ao fecho do tanque da Aldeia Nova, atualmente Rua do Colégio, em
Sanguedo. O púlpito terá ido para Cortegaça e as imagens dos santos, vendidas a
antiquários1045.
1042 Cfr. António Ferreira da SILVA, Livro com a história genealógica da minha família, s/n, s/d[documento policopiado] apud "O Colégio do Desagravo de Sanguedo", AAVV, Revista Comemorativados 300º aniversário da Fundação do Convento do Louriçal, p. 137.1043 Idem, ibidem.1044 Idem, ibidem.1045 Idem, ibidem.
309
5. Percursos de resistência
Dentro do contexto específico que enformou o percurso dos institutos femininos
de vida consagrada desde o Liberalismo à I República, o caso das Clarissas do
Desagravo afigura-se-nos particularmente ilustrativo, já que o todo da sua ação ao longo
daquele período parece ter sido pautado por um propósito firme de resistência moral e
institucional. Resistência - lenta, silenciosa e sub-reptícia - que converteria a Ordem
numa das mais florescentes do tempo presente em Portugal e capaz, pela sua
visibilidade, de sublinhar aqueles que foram os grandes vetores da então candente
“questão religiosa”.
Quando o peso da normativa liberal começou a impender de forma mais
substantiva sobre a vida monástica, a reação das clarissas não se fez esperar:
contrariando o disposto no decreto de 1833 a respeito da proibição de emitir votos,
Soror Maria do Nascimento professa solenemente no Mosteiro do Louriçal, no ano de
1843. Seriam, neste mosteiro, os últimos votos solenes emitidos.
Por outro lado, o notório desfasamento entre a lei civil e a vida claustral, de par
com a agonia moral e material sentida, levaria as clarissas a recorrer não poucas vezes
ao auxílio daqueles que, à época, estavam habilitados a dispensá-lo: ao Cardeal
Patriarca, a fim de poderem sepultar na igreja monástica o confessor; ao bispo-conde de
Coimbra, com o propósito de sepultar no claustro as religiosas falecidas, mesmo depois
de emanadas as Leis da Saúde de Costa Cabral; aos frades franciscanos do Convento do
Varatojo, impetrando auxílio espiritual; à Casa de Louriçal, lembrando dívidas por
satisfazer; a D. Maria II, que tomaria debaixo de sua proteção o Mosteiro de Vila Pouca
da Beira; a D. Pedro V, que prorrogaria a favor do Louriçal a fruição das propriedades
necessárias à sobrevivência; ao Sumo Pontífice, por fim, a quem se rogaria preces e
proteção à vista da galopante decadência1046.
A indagação da vida monástica que a inventariação dos bens e rendas
determinou, preanunciando a aprazada desamortização, encontrou sérias reservas na
comunidade de clarissas, que nem sempre se mostraram afeitas a franquear o acesso ao
conhecimento dos seus pertences. Acrimónia, desconfiança mútua e desconhecimento
da realidade monástica sobressairiam como notas fortes deste processo.
1046 Veja-se, sobre os particulares mencionados, Maria Luísa JACQUINET, "O património monástico-conventual e a República: o caso singular das Clarissas do Desagravo", Cadernos do Museu daPresidência da República, Vol. III, . 641-651.
310
No Louriçal, as fontes revelam desde entraves à elaboração dos autos de
avaliação de bens, à ocultação de peças dos inventários1047. Em Lisboa, a extrema idade
da Abadessa seria impeditiva da transmissão de várias informações aos delegados da
Fazenda e, em Vila Pouca, a subtração de vários objetos a um primeiro inventário, de
1858, daria origem a intensa troca de correspondência entre os serviços competentes e à
elaboração de três inventários adicionais, onde a existência de um conjunto de valiosas
peças viria a ser sucessivamente posto a descoberto. Fora de qualquer listagem ficaria,
para estranheza do delegado da Fazenda, uma preciosa custódia de prata realizada com
joias doadas por D. Carlota Joaquina, a qual, por alguma razão, só constava da relação
dos bens que deveriam ficar à guarda de certo sacerdote1048.
Com o ocaso no horizonte, pela escassez de professas e a proximidade do seu
fim, a comunidade, unida, terá encarado o repto recorrendo a novo expediente. Pouco
antes da extinção do Mosteiro do Louriçal, cumprido a 11 de Março de 1878, far-se-ia,
como acima vimos, nascer uma nova casa religiosa em Sanguedo.
A aplicação da lei de 4 de Abril de 1861, parece ter tido, até à supressão formal,
uma expressão relativamente fruste. Dos casos vertentes, e conforme referido, só Vila
Pouca da Beira interrompeu a vida claustral por morte da última professa. O edifício
seria pouco depois cedido à Câmara Municipal de Oliveira do Hospital para instalação
de um hospital, enquanto a igreja, torre, relógio e sinos passariam para a Junta da
Paróquia. A reconversão do edifício, porém, ver-se-ia em muito diferida, já que a
Câmara não lhe dera a aplicação invocada. Só em 1928 se verificava a sua sucessiva
ocupação por uma entidades várias, culminando o processo com a venda à Fundação
Bissaya-Barreto, que recentemente o adaptou a unidade hoteleira. Apesar de não ter tido
o destino inspirado das suas congéneres, não podemos contudo afirmar ter havido
passividade por parte das suas pupilas, que podem, por hipótese ainda não confirmada,
ter permanecido no mosteiro ou ter recolhido a alguns dos demais Desagravos enquanto
educandas ou servitas.
No plano material, as fontes atestam a arrematação de muitos dos bens móveis
de natureza não sagrada, embora grande número de objetos cultuais e de valor artístico,
1047 Sobre a supressão do Mosteiro do Louriçal, veja-se ANTT, AHMF, Convento do Louriçal, cx. 1934.A questão chegaria a motivar uma queixa dirigida pelo Diretor-Geral do Próprios Nacionais ao delegadodo tesouro de Leiria, admoestado por “não terem sido cumpridas n’aquelle Concelho as diligencias quepor repetidas vezes, tem ido ordenadas por esta Repartição […]".1048 A respeito do processo de extinção em causa, veja-se ANTT, AHMF, Convento do Desagravo de VilaPouca da Beira, cx. 1893.
311
dados à guarda do arcipreste, tenham cabido na administração da Junta da Paróquia, que
os custodiou e manteve ao serviço da igreja matriz. Parte destes seriam mais tarde
adquiridos pela Fundação, que hoje os conserva tanto no templo e antiga clausura,
quanto em depósito particular. Das várias obras de arte de que um ofício recomendava o
depósito no então Museu de Artes e Arqueologia, só afinal a custódia, que tanta tinta
fizera correr, terá conhecido como destino o Museu Nacional de Machado de Castro.
Bem diferente seria a realidade configurada por Lisboa e Louriçal, cujo trajeto
viria a ser intercetado pelo decreto ministerial de Hintze Ribeiro. No mosteiro lisboeta,
formalmente extinto em 16 de Dezembro de 1902, registar-se-ia a Associação das
Servitas de Nossa Senhora das Dores1049, “legalizando” a antiga comunidade monástica.
As admissões a esta associação, num total de 49 entre 1851 e 1910, corresponderiam,
segundo Artur Villares, a efetivas admissões de religiosas1050.
Já o Louriçal, suprimido a 11 de Março de 1878, via garantida a continuidade da
vida claustral das 22 pupilas que aí permaneciam, usufruindo ainda de rendas e
propriedades monásticas. Mais tarde, lançando mão do decreto de Hintze Ribeiro,
registava-se também, com sede no mosteiro, a Associação de Socorros aos Pobres de
Nossa Senhora da Boa Morte.
Sob um manto de legalidade ficaria igualmente encoberto o Colégio de
Sanguedo, onde viria a instalar-se, ao abrigo do decreto de 1901, a Associação de Santa
Clara, que à data do seu registo, contava não menos que vinte recolhidas.
A subsistência da existência monástica cessaria, contudo, abruptamente com a
implantação da República. Não só as comunidades se viriam coagidas a dispersar, como
os edifícios a que ainda estavam ligadas seriam desafetados e parte dos seus bens
dispersos. Ainda assim, coroando todo um percurso de resiliência, Louriçal e Lisboa
dariam mostras de que nem a exclaustração nem a espoliação redundariam
necessariamente na definitiva anulação da Ordem.
No caso do Conventinho de Lisboa1051, com o compulsivo abandono do edifício
pelas assim designadas “senhoras congreganistas”, o edifício, exceção feita à igreja,
1049 ANTT, AC, Relação dos bens immobiliarios da associação das Servitas de N. S. das Dores, erecta noConvento do Desaggravo, Lv. 875 e ANTT, AC, Matricula. Livro para nelle se lançarem o nome dasassociadas Servitas de Nossa Senhora das Dôres, Lv. 876.1050 Cfr. Artur VILLARES, op. cit., p. 181.1051 Vd., a propósito do Conventinho e do período concreto que aqui abordamos, Maria LuísaJACQUINET, Em desagravo do Santíssimo Sacramento: o “Conventinho Novo”. Devoção, memória epatrimónio religioso, Vol. I, pp. 127-134.
312
coro e recheio mobiliário, seria cedido à Direção-Geral da Assistência Pública, para
instalação de um colégio1052. Derradeiro reduto de sacralidade, o templo, apesar da
oponência interposta, não haveria igualmente de escapar à ofensiva republicana.
Tentando dar execução ao ofício que decretava a posse da igreja, o inspetor José Cabral,
não só não lograria encontrar quem estivesse de posse das chaves do templo, como seria
informado de que estariam sendo “retirados em carroças os objectos da egreja não se
sabendo para onde nem por ordem de quem.” No ano seguinte, as mesmas chaves não
tinham ainda sido encontradas. Mas, não obstante o zelo conservador que se adivinha
por detrás do estranho sumiço da chave e da diligente partida dos objetos da igreja, esta
seria cedida, acusando os tempos de beligerância, ao Depósito Central de Fardamentos,
dependente do então Ministério da Guerra, que só em 1919 abandonava o espaço1053.
Após este período de cedências provisórias, e já incorporado nos Próprios da Fazenda
Nacional, o antigo espaço sacro resistiria uma vez mais às pretensões do Tesouro, não
conseguindo ser vendido em hasta pública por ter sido oferecida quantia inferior a
500$000 réis, facto que levantaria nos oficiais da Fazenda a suspeita de um “conluio
entre arrematantes.”1054
Sucessivamente ocupado por instituições de ensino e beneficência, a última das
quais a Casa Pia de Lisboa-Secção de Santa Clara, o conjunto monumental desfigurou-
se irremediavelmente. Um dos três sinos seria destinado ao Asilo da Ajuda, para
construção de uma torre na sua ermida e os dois outros seriam fundidos com destino à
estátua do Marquês de Pombal. Perante a eminência da dessacralização do templo, parte
do seu património móvel e integrado foi transferida para a Igreja paroquial de Nossa
Senhora da Graça de Almagreira, Pombal. Aí se contemplam o retábulo-mor, algum
mobiliário e os azulejos que recobriam as paredes do templo lisboeta – e que agora
adornam a fachada do edifício, flanqueando a entrada principal. Número considerável
de peças de valor artístico, outras mais de natureza cultual e religiosa, de mobiliário e de
uso comum, deram entrada na actual Museu Nacional de Arte Antiga, tendo-se algumas
dispersado, como a custódia, que apenas sabemos ter transitado para a Caixa-Geral de
Depósitos para fins de avaliação. Quanto a documentos, constam alguns, poucos, do
1052 ANTT, AHMF, Convento do Desagravo do Santíssimo Sacramento, Cx. 2009, capilha 1, IV/A/52/1,1912.1053 ANTT, AHMF, Convento do Desagravo do Santíssimo Sacramento, Cx. 2009, capilha 1, IV/A/52/1,doc. 30.1054 ANTT, AHMF, Convento do Desagravo do Santíssimo Sacramento, Cx. 2009, capilha 1, IV/A/52/1,doc. 8.
313
Arquivo das Congregações, do Arquivo da Universidade de Coimbra e dos cartórios das
irmãs clarissas.
A dissipação do património monástico não implicou, como se disse, a dissolução
da comunidade, que saberia esperar pelos alvores do Estado Novo para alcançar a
restauração da vida religiosa. Contornando a impossibilidade de emitir votos no país, fá-
lo-iam as clarissas do Conventinho fora dele, no Mosteiro clariano de Ciudad Rodrigo,
e, uma vez considerada a casa não extinta à luz da Igreja, por carta da Sagrada
Congregação dos Religiosos de 2 de Maio de 1927, a ela regressariam para refundar o
antigo cenóbio. Abandonado, anos mais tarde, o local da fundação, e após várias sedes
provisórias, ocupam hoje o n.º 15 da Rua da Estrela em Lisboa, sob a invocação do
Imaculado Coração de Maria1055.
No Louriçal, nem a compulsiva expulsão, verificada a 14 de Outubro de 1910,
conseguiria ser totalmente eficaz, já que soror Maria da Cruz, no século Joaquina Nunes
das Neves, se recusar a sair, permanecendo no edifício, então ocupado pelo Regimento
de Infantaria de Aveiro, e gozando do respeito de todos os noveis inquilinos, até 11 de
Janeiro de 1911, data em que viria a falecer1056. Uma vez colocado à venda, depois de
albergar um posto da Guarda-Nacional Republicana, as antigas pupilas apresentar-se-
iam em hasta pública e arrematariam o edifício conventual. A 18 de Dezembro de 1927,
recuperava-se, pela quantia de sessenta e cinco mil e duzentos escudos, o monumento e,
a 14 de Janeiro de 1928, as antigas pupilas restauravam a vida monástica entretanto
suspensa1057.
Deixando de sofrer as inclemências que normalmente se associam a uma
reconversão funcional, o Louriçal vem sofrendo, no entanto, alterações correspondentes
à assunção de necessidades próprias à vivência comunitária1058. Parte do mobiliário,
património integrado, bens cultuais e outros de valor artístico permaneceram - ou, quem
sabe, retornaram - ao mosteiro, enquanto várias peças de arte, como a custódia
1055 Totalizavam o número de quatro as pupilas expulsas do mosteiro em 1911. Duas delas, Maria daEncarnação e Maria Clara da Eucaristia, noviciariam entretanto em Ciudad Rodrigo. Considerado nãoextinto, ao mosteiro voltaram as professas que aí se juntaram às restantes recolhidas a fim de restaurarema vida em comunidade. (Vd. Arquivo das Irmãs Clarissas de Lisboa, documentos avulsos sobre afundação do Mosteiro do Desagravo).1056 Segundo informações veiculadas pelas Irmãs Clarissas do Louriçal.1057 A revalidação canónica da comunidade pela Santa Sé verificar-se-ia, contudo, apenas a 24 de Marçode 1958.1058 Refletindo a assunção de preocupações de natureza patrimonial, claustro e templo foram classificadospelo Estado e procedeu-se, por parte das religiosas, à musealização dos espaços evocativos do itineráriomístico de Maria do Lado.
314
principal, esculturas e alguns quadros foram distribuídos ora pelo Museu Nacional de
Arte Antiga ora pelo Museu Nacional de Machado de Castro.
Entre documentos e livros, identificámos vários no Arquivo das Congregações,
no Arquivo da Universidade de Coimbra, na Biblioteca Geral da Universidade de
Coimbra e Arquivo Distrital de Leiria. Em mãos particulares, finalmente, encontra-se
uma importante série de objetos da mais variada natureza e valor. Em hipótese, fica a
distribuição de peças por paróquias menos abonadas ou mesmo a transferência para o
Colégio de Sanguedo ou para qualquer dos outros Desagravos.
Na esteira da reabilitação do papel da Igreja que o Estado Novo promoveu, a
restauração do Instituto do Desagravo – atualmente parte integrante da Federação das
Clarissas Portuguesas1059 -, foi apenas o marco de uma revivificação mais ampla que o
converteria numa das mais florescentes ordens femininas do país. Em 1965, o Mosteiro
do Louriçal fundava o Mosteiro de Santa Clara e do Santíssimo Sacramento em Monte
Real e, em 1980, o de Nossa Senhora da Boa Esperança, em Montalvo1060. O
Conventinho, por seu turno, daria origem, em 1969, ao Mosteiro de Nossa Senhora do
Rosário, em Fátima e, em 1971, ao do Santíssimo Sacramento de Sintra. São 12,
atualmente, os cenóbios da Ordem de Santa Clara, cinco deles de Clarissas do
Desagravo1061.
No quadro temporalmente dilatado em que se operou a extinção das casas
religiosas, as Clarissas do Desagravo revelaram uma exemplar capacidade de
resistência, tirando sabiamente partido das inflexões políticas e lançando mão de uma
série de expedientes com vista à conservação da vida cenobítica e dos bens materiais
que, afinal, assinalavam a sua própria identidade. Agiram na observância das leis,
contornando muito embora o seu espírito, mas agiram também ao arrepio da sua letra,
sempre que tal lhes foi possível. A estrutura em rede, a condição periférica e até rural, o
recurso a grandes mentores históricos, a forte implantação social e, quem sabe, uma
aprendizagem centenária de agir “na sombra”, que prefiguramos tão própria a uma
instituição feminina, tanto mais que mendicante e de clausura, terão ditado o êxito da
instituição, que o recente florescimento tão bem patenteia.
1059 A Federação das Clarissas terá sido criada em 22 de Agosto de 1967. Veja-se, a este respeito, adocumentação patente no Arquivo do Mosteiro do Imaculado Coração de Maria, de Lisboa e noSeminário Franciscano de Lisboa (fundo "Irmãs Clarissas - Ordem de Santa Clara).1060 Ereto canonicamente a 1 de Janeiro de 1981. Veja-se, a propósito das mais recentes fundaçõesinspiradas no Instituto do Louriçal, CLARISSAS ADORADORAS DO MOSTEIRO DE SÃO JOSÉ, AOrdem de Santa Clara em Portugal, Braga, Editorial Franciscana, 1976.1061 Cfr. Idem, ibidem.
315
Ao prescindir de grande parte do suporte material da sua existência – que
haveria, ele próprio, de trilhar caminho paralelo –, as clarissas sublinharam o peso dos
fatores imateriais e, em último termo, a presença estruturante da Igreja na sociedade
portuguesa. Mas, se essa renúncia não obstou à reabilitação canónica da Ordem, não
pode de todo alhear-se da construção da memória histórica, a qual, não podendo eximir-
se ao conhecimento do património material, implicou um longo e minudente percurso
pelos meandros de um sinuoso e arrevesado extratexto custodial.
316
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao virar a última folha do álbum que nos propuséramos inicialmente compilar,
fechámos não a história de uma família, mas a de um período essencial da identidade da
mesma, cujo epílogo tomámos como meta. Prescindindo in extremis de um património
material acumulado ao longo de décadas ou mesmos séculos, o Desagravo alcançaria
restabelecer-se, conquanto sob nova configuração canónica, em pleno século XX. Mas a
sua afirmação não deixaria de convocar a reevocação legitimadora dos seus referentes
identitários. A conversão da antiga casa da instituidora mística em núcleo museológico,
a reabertura do processo de beatificação daquela e a visibilidade creditada ao Instituto
pelas comemorações tricentenárias da sua fundação, constituem manifestos de uma tão
glosada quanto intrínseca relação entre património, memória e identidade.
Embora animado por distintos propósitos, não foi diverso o caminho que
prosseguimos. Teríamos gostado, no seu termo, de oferecer ao olhar experimentado do
público e ao juízo abalançado de conservadores, uma peça de museu, acabada e
definitiva, por muito que construída a partir de um conjunto disperso e desarticulado de
fragmentos das mais diversas origens e dimensões. E teríamos igualmente gostado de a
apresentar secundada de legenda e texto, por forma a dar-lhe o enquadramento ideal.
Tão ideal que, na mente de cada um, a fizéssemos renascer. Não o lográmos, por certo.
Perante uma construção histórica, com tudo o que lhe é próprio, e perante um labor a
todos os títulos contingente - bem que estruturalmente sustentado em fontes e na crítica
das mesmas -, tal não passaria de um sofisma. Não existe, no que agora damos à
colação, qualquer assomo de proporção áurea.
Olhada a certa distância, reconhecemos, retomando a primitiva metáfora, que,
desta genealogia, talvez o tronco, mais que os ramos, tenha sobressaído pela nitidez.
Subsistem nestes, com efeito, elementos desfocados, imagens de recorte indefinido,
percursos individuais truncados, que as fontes aparentemente não rastreiam. Se, acerca
de uns, abundam as informações, sobre outros, elas são declaradamente escassas.
Aplicar uma mesma grelha de análise a cada um dos elementos, dispensar-lhes o mesmo
espaço e repartir a herança segundo uma lógica de rigor aritmético é pretender ver
igualdade e unidade onde elas supostamente nunca existiram, e pressupor abandonar a
perspetiva que até aqui nos conduziu e pela qual ganhou sentido tomar a Regra como
tronco e os cenóbios como ramos.
317
A perceção daquelas disparidades não foi, seguramente, óbvia e imediata, e
obrigou-nos a um ajuste dialético entre pressupostos e resultados. Da mesma forma que
a análise do conjunto resultou por vezes no abdicar do escrutínio do pormenor. Não
damos, contudo, por inglória a travessia. Como não o foi a da família religiosa fundada
sobrenaturalmente por Maria de Brito, cuja história, conhecendo, muito embora,
acentuadas inflexões, não deixou nunca de se pautar por um firme propósito de
resistência, cujos frutos podem ainda hoje ser contemplados.
Participante de marcos essenciais da vida religiosa, espiritual, cultural, política e
artística do país, e inapelavelmente perpassada pelo eixo que uniu, ao longo da Época
Moderna e alvores da Contemporânea, religião e poder, a história do Desagravo não foi,
porém, feita de protagonismos inequívocos, de decisões puras e definitivas. Escrita a
várias mãos e em diferentes registos, ela foi, mais que tudo, o produto de pontes e
convergências onde se cruzaram destinos individuais e destinos coletivos.
Crismado na origem pelo sentido e contornos de uma profanação eucarística, o
Instituto do Louriçal instituir-se-ia, na íntima ligação, que João Francisco Marques tão
agudamente explora, entre piedade eucarística e integridade pátria, como manifesto
reparatório não apenas do Santíssimo ofendido, quanto de desacatos cujo âmbito
semântico se alargaria, passando a evocar, para lá de um atentado sacrílego dirigido ao
sacramento do Altar, uma irreverência contra os sustentáculos morais da monarquia.
Não a despropósito, Frei José de Santa Rita de Cássia haveria de pregar, em sermão
dedicado a D. Miguel I, que na veneração eucarística residia o firmíssimo sustentáculo
do trono e da monarquia portuguesa. Da mesma forma, aliás, que, também do púlpito, o
Padre António Vieira preconizara, tempos antes, serem as igrejas do Santíssimo os mais
fortes muros e as mais inexpugnáveis fortalezas das cidades e dos reinos. Ao cristalizar
um fenómeno que se convertera em argumento, a memória do desacato de Santa
Engrácia e da sua venerável vidente, Maria do Lado, ver-se-ia sucessivamente
apropriada como fonte e instrumento de legitimação.
O sentido da Observância não o encontramos tanto em 1709, data da sua
fundação canónica, ou no empenho mecenático de D. João V, mas em pleno século de
Ouro da Mística, onde tantos caminhos de perfeição se trilharam tomando a via
contemplativa como rota e Cristo crucificado como ponto de fuga e onde monjas
visionárias eram consultadas por monarcas em assuntos de primeira grandeza.
318
No seio de um ideário de santidade claustral e de uma tradição de santas
fundadoras, de que Teresa de Ávila se ergue como exemplo autorizado, se inscreve o
sonho fundacional de Maria do Lado, escudo protetor contra a heresia e profeta -
portuguesa - das perdas de Castela e da felicidade do reino.
Convertido em encomenda por parte de quem nesse ideário se revia, do ensejo
incipiente da madre nasceria, envolto em piedade, votos e portentos, o Real Mosteiro do
Louriçal. Nele teriam assento não apenas o Magnânimo ou os condes da Ericeira, cujo
espetro a historiografia há já muito anota, mas figuras outras, porventura menos
salientes ao olhar contemporâneo e ao esquema discursivo de sólito aplicado ao tema da
encomenda artística. Vários bispos de Coimbra, D. Gastão da Câmara Coutinho, o
Padre Francisco da Cruz, as devotas fundadoras - cujo papel quantas vezes se reduz à
voz longínqua que se lhes reserva e se reconduz a um discurso alheio e estereotipado -
são apenas alguns dos protagonistas que o Desagravo, no seu todo, não pode doravante
obliterar.
Neste reivindicar de créditos e protagonismos, tecidos no entrecruzar de vozes e
silêncios, de estatutos e papéis, destaque merecem, outrossim, as Ordens Regulares: os
franciscanos, desde logo, no zeloso e espontâneo acolhimento dos mais díspares
percursos existenciais, mas também os jesuítas e oratorianos, na formulação canónica da
vida cenobítica, na concetualização de uma causa e na convocação de circunstâncias
àquela favoráveis.
Tão religiosa e eclesiástica quanto política, a Regra não ficaria alheia às
inflexões da vida da diocese e dos seus vários mentores, aspeto particularmente notório
no reinado de D. José, onde a implementação das medidas pombalinas que
promoveriam o enfraquecimento da existência congreganista, coincidiram com a
suspensão da sempre almejada difusão do Instituto. Uma vez revertido o panorama, sob
o influxo da Viradeira, da Jacobeia, de D. Miguel da Anunciação e, como não, de um
novo desacato e da revivificação do processo de beatificação de Maria de Brito, veriam
a luz, em data próxima, três novos cenóbios da Observância - daquela, como diria com
acerto o erudito Dr. António José Correia, onde efetivamente se choravam as maldades
do mundo.
Superando impedimentos institucionais que o século de Oitocentos interpôs,
num ato a um tempo de reação - associado ao partido legitimista de D. Miguel e
igualmente envolto em impiedades e na reiterada reconsagração da santidade da beata
louriçalense -, e, a outro, de resiliência, motivada pela iminente extinção da Regra, duas
319
novas casas nasceriam. Nelas, parece já diluir-se o cunho identitário da expressão
material até então indexada às religiosas capuchas da Adoração Perpétua.
É certo que o património artístico que criaram não se afaz a uma estrutura rígida
e unifacetada. Com efeito, bem que no pressuposto de uma relação estruturante entre
Observância e cultura material, que viria a dar sentido à abordagem diacrónica, não
podemos concluir pela unidade formal das representações produzidas. O Desagravo não
criou um estilo ou uma corrente artística e o património de cada uma das suas casas não
é padronizável nem replica o da casa-mãe. Não há qualquer gemelaridade na família de
que vimos tratando, nem igualdade na repartição de heranças, como os Inventários
rapidamente desvelam. Que sentido, então, falar numa arte do Desagravo? A aplicação
do conceito é porventura falível. Mais que unidade, há diversidade nas expressões
artísticas que estudámos. O que não implica a inexistência de coordenadas comuns, de
eixos temáticos, de um sistema de símbolos que, se não ditam a unidade, legitimam pelo
menos a união.
Na sua militância pós-tridentina, as Constituições do Desagravo contemplaram
ao pormenor aspetos maiores da configuração arquitetónica, que os vários cenóbios do
Instituto deveriam canonicamente observar. O número de celas, a pobreza material, o
número de altares do templo, o aparato específico dos mecanismos de clausura terão
constituído elementos informadores não só da vida das religiosas quanto do labor
criativo ou instrumental de projetistas e oficiais.
Por outro lado, a evolução do Instituto definiu um perfil de encomenda, a que
associámos a corte e a nobreza sua adjacente, e que evidentemente se refletiu no
domínio plástico, vertido na matriz do gosto e no nível de execução técnica.
Mais que isso, contudo, enquanto fruto de uma intencionalidade espiritual e
religiosa específica, a Regra projetou-se num património de acentuada feição
programática, estribando-se numa simbologia que poderia, essa sim, avocar a si um
estatuto de peculiaridade. A iconografia concebida a partir das visões da fundadora,
instituída como matriz sigilar, serviu de estribilho a um sem-número de representações
cuja presença perpassou qualquer dos cenóbios do Desagravo. As insígnias dos
Escravos do Santíssimo Sacramento, a pintura do teto da Igreja do Louriçal, as
incontornáveis figurações azulejares do desacato que revestiram as paredes da igreja do
Conventinho, o emblema eucarístico que encimava o portal do templo de Vila Pouca e a
cimalha do interior da igreja da Luz, os hábitos das irmãs do Desagravo, que até mesmo
o Colégio de Sanguedo viria a adotar, são sinais, quaisquer deles, de pertença e, porque
320
transversais às várias casas, de pertença a algo que ultrapassa a esfera da estrita
individualidade.
Independentemente do grau de fidelidade a um suposto perfil genético, não
podemos negar interesse ao património criado individualmente por cada casa, nem, tão-
pouco, negar interesse em dá-lo a conhecer. O impacte de certas obras no contexto da
arte do seu tempo parece indiscutível. Lembremos os soberbos presépios do
Conventinho, as imagens de São Francisco e Santa Clara, do cenóbio louriçalense, as
preciosas e originais peças de ourivesaria sacra ou, ainda, a tão fulgurante quanto subtil
expressividade da narrativa visual proposta no templo da casa-mãe. Ademais, artistas de
gabarito pontificaram nos estaleiros do Desagravo: João Antunes, Bellini, Carlos
Mardel, Mateus Vicente de Oliveira, Silvestre de Faria Lobo, Pedro Alexandrino e
outros mais. Assim como a biografia destes mestres ficará incompleta se omitir as obras
em que eles laboraram, será igualmente difícil dissociar o Conventinho da Estrela, ou
disjungir o Louriçal do estaleiro de Mafra, do Menino Deus, das obras de Santa-Clara-a-
Nova de Coimbra e, evidentemente também, das obras de Santa Engrácia.
O Desagravo, por fim, e porquanto alvo da estima e proteção diretas de D. Pedro
II, da Infanta D. Maria Ana e do rei consorte D. Pedro III - personalidades cuja relação
às artes fica inelutavelmente comprometida pela adjacência de D. João V e de D. Maria
I -, quem sabe não poderá favorecer, admitimos que modestamente, uma revisão
biográfica que, neste ponto, talvez fosse de reclamar.
Fundada na diferença de jurisdições eclesiásticas, locais de implantação, épocas,
intermediários e preexistências materiais ou institucionais, a arte das clarissas fez-se no
diálogo que, com um contexto e substrato específicos, cada casa encetou e de que
resultou um discurso indubitavelmente ímpar. Em Montemor, as esculturas dos
padroeiros da nova Ordem, São Francisco e Santa Clara, substituíram intencionalmente
as de São Gregório e Santa Catarina, pertencentes ao velho templo da Irmandade da
Luz, mas contudo não as elidiram. E, em Vila Pouca, a imagem da Jesus Maria José, de
antiga devoção local, muito embora ladeada pelas esculturas dos dois fundadores da
Ordem seráfica, não deixaria de avultar no altar-mor, ao mesmo tempo que uma
imagem Nossa Senhora, prelada perpétua do Instituto, passaria, à semelhança do
Louriçal, a pontificar no coro alto.
Esta, que foi uma arte de compromissos, foi-o também de cruzamentos entre
centro e periferia, entre modelos eruditos e expressões vernaculares. Não tanto no
Louriçal e no Conventinho, dependentes de um mesmo polo e matriz, mas de forma
321
indelével em Vila Pouca e, sobretudo, em Montemor. Assinado também entre Ordens e
mecenas ou encomendadores, este compromisso refletiu-se em ajustes de poder e em
mútuas cedências, de que o templo do Louriçal é exemplo acabado, mas também na
relevância do clero na formulação não só canónica dos cenóbios, quanto na sua ideação
arquitetónica. Lembremos, a propósito, o Irmão Manuel Pereira, D. Francisco de
Lousada, Fr. Francisco de Jesus Menino, mas também Frei Bernardino das Chagas ou
D. Frei Álvaro de São Boaventura.
Feita outrossim de mestres por descobrir, de contributos cujas margens se
diluem sob as designações anódinas de superintendente, diretor ou administrador de
obras, a arte do Desagravo foi, enfim, a arte que cada um dos Desagravos pôde e soube
construir. Assumindo cá e lá os contornos indefinidos dos seus fautores, deixou
segmentos por unir e limites por sublinhar, no termo de um percurso que, como o nosso
também, foi marcado tanto pela contingência quanto pela perseverança.
322
FONTES E BIBLIOGRAFIA
323
1. Fontes
1.1. Fontes Manuscritas
Arquivo do Cabido da Sé de Évora
Cabido e freguesia do Alto Alentejo (Montemor-o-Novo e Pavia), Pasta n.º 37, docs. 51,
58, 59
Arquivo Contemporâneo do Ministério das Finanças
Comissão Jurisdicional dos Bens Cultuais:
Proc. 11045, L. 13, Fl. 210
Proc. 12186, L. 13, Fl. 439
Proc. 27, l. 44, Verba 18250/125
Direção-Geral da Fazenda Pública:
Proc. 1075, L. 3
Proc. 3F-LFA-d-2
Proc. 8201, L. 2
Proc. 1073, L. 3
Proc. 1311, L. 3
Proc. 4111, L. 4
Proc. 4112, L. 4
Arquivo Histórico Municipal de Montemor-o-Novo
Recolhimento do Santíssimo Sacramento de Nossa Senhora da Luz:
Notícias sobre a fundação e história do Recolhimento (D1S1)
Termos (D1S2)
Confraria de Nossa Senhora da Luz:
Ementas (D2S1)
Arquivo Municipal de Lisboa
Arquivo Histórico:
Chancelaria Régia, Livro de Consultas de D. Maria I, de 1805, fl. 159
Chancelaria Régia, Livro de Consultas de D. Maria I, fls.182 a 211
324
Chancelaria Régia, Livro III de Consultas e Decretos de D. Maria I, fl. 108
Chancelaria Régia, Livro IV de Consultas e Decretos de D. Maria I, fls. 156-
156v.
Arquivo Histórico da Santa Casa da Misericórdia de Montemor-o-Novo
Livro de Atas, 1872-1880
Livro das Atas, 1881-1887
Arquivo Histórico da Paróquia de Santa Engrácia
Inventário da fábrica do Santíssimo Sacramento de Santa Engrácia, Lv. 3, fl. 13
Inventário dos bens da Irmandade do SS. Sacramento da freguesia de Santa Engrácia,
Lv. 5, fls. 7-8
Arquivo Histórico do Patriarcado de Lisboa
Documentação avulsa sobre Conventos: Conventos do Patriarcado, 1876
Documentos da Livraria: Lv. 5, Doc. 12
Registo Geral da Câmara Eclesiástica de Lisboa: Lv. 440, fl. 5; Lv. 470, fl. 30
Registo Geral da Câmara Patriarcal: Lv. 13, fls. 26 v – 27; Lv. 377, fls. 160-161; Lv.
346, fls. 197-197 v.; Lv. 403, fls. 132, 146 v., 156, 158; Lv. 298, fls. 26 v-27
Exame de religiosas de vários conventos de Lisboa. 1753-1793, Lv. 571
Arquivo Histórico do Ministério das Obras Públicas, Transportes e Comunicações
Correspondência a respeito de obras no Mosteiro do Desagravo, 1849-1850, Ministério
do Reino, 2.ª Divisão, 1.ª Repartição [MR 2 D 1 R 2], Lv. 7, n.º 179
Igreja de Santa Engrácia, Desenhos avulsos, D1C
Arquivo Histórico do Tribunal de Contas
Décimas da Cidade – Lisboa
Freguesia de Santa Engrácia (Arruamentos): Lv. 430; fl. 41-41v.; Lv. 431, 1778, fl. 39-
39v.; Lv. 432, fl. 46; Lv. 433, fl. 42; Lv. 434, fl. 41; Lv. 435, fl. 44; Lv. 436, fl. 40; Lv.
436, fl. 46
Freguesia de Santa Engrácia (Propriedades): Lv. 431, fl. 32; Lv. 431, fls. 30-31
Freguesia de Santos (Arruamentos):
325
Lv. 1082, fls. 445v.-446; Lv. 1087, fl. 412 v
Freguesia de Santos (Propriedades): Lv. 1079, fls. 292-292 v., Lv. 1080, fl. 292., Lv.
1082, fl. 293 v.; Lv. 1087, fls. 290v. – 291
Arquivo da Igreja de Nossa Senhora da Graça, Almagreira
Almagreira [monografia da paróquia; dactilografado]
Extracto do Inventário dos bens da Fábrica da Igreja Paroquial de Almagreira
[dactilografado]
Arquivo do Mosteiro do Imaculado Coração de Maria, Lisboa
Documentos avulsos relativos à fundação do Mosteiro do Desagravo do Santíssimo
Sacramento de Lisboa
Arquivo do Mosteiro do Santíssimo Sacramento, Louriçal
SILVA. António Ferreira da, Livro com a história genealógica da minha família, s/n,
s/d [documento policopiado]
Arquivo da Paróquia de Santa Eulália de Sanguedo
Livro em que se registam os nomes das Postulantas da Tomada de habito e da
Profissão ordenado pelo P. Ladislao Toghetti Min. Ref. Da Provincia Romana, s/d
[manuscrito]
Arquivo da Universidade de Coimbra
Arquivos monástico-conventuais:
Convento do Desagravo de Vila Pouca da Beira (III-1D-10-1):
Livro dos Capítulos de Visitas no Convento do Desagravo do Santissimo
Sacramento de Vila Pouca da Beira;
Livro de descrição de bens do Convento do Santíssimo Sacramento de Vila
Pouca da Beira;
Inventario dos bens e rendimentos pertencentes ao Convento de Villa Pouca da
Beira, 1870;
326
Livro dos Capítulos de Visitas no Convento do Desagravo do Santissimo
Sacramento de Vila Pouca da Beira;
Câmara Eclesiástica de Coimbra:
Documentos diversos relativos ao Mosteiro do Desagravo de Vila Pouca da
Beira (III, 2.ª D, 21, 2)
Cabido e Mitra da Sé de Coimbra:
Documentos relativos ao Convento do Louriçal (III, 1D, 6, 2, 2)
Documentos avulsos, Autos de Maria do Lado (III,1D, 7, 2)
D. Miguel da Anunciação e o Convento do Louriçal (VI, 1E, 6, 3)
Arquivos Paroquiais:
Informações paroquiais de 1721, Louriçal (capa 143);
Registos paroquiais de Vila Pouca da Beira, óbitos, 1837, fl. 18; 1824, fl. 63 v.;
1812, fl. 56 v.; 1804, fls. 48 v. - 49; 1853, fl. 23; 1852, fl. 20 v.; 1843, fl. 3 v.
Coleção Jardim de Vilhena, Cartas diversas, cx. XII
Documentos relativos às Invasões Francesas:
Breve memoria dos estragos causados no bispado de Coimbra pelo exercito
francez, commandado pelo general Massena. Extrahida das informaçõesque derão
os reverendos parocos. E remettida á Junta dos Soccorros da Subscripção
Britanica, pelo Reverendo Provisor, Governador do mesmo Bispado, Lisboa,
Impressão régia, 1812 (Dep. IV, 1ª E, 4, 2, 1,13)
Arquivo Histórico da Sé Patriarcal de Lisboa
Fundo relativo à Confraria dos Escravos do Santíssimo Sacramento de Santa Engrácia
[composto por vários livros e caixas]
Biblioteca da Academia das Ciências
Miscellânea de varios papeis, Tomo I, fls. 88 v-89, Série Azul, n.º 307
327
Biblioteca da Ajuda
Coleção de Manuscritos avulsos:
Documentos relativos à obra do Mosteiro do Desagravo de Lisboa: 54-IV-52,53; 54-VI-
12, 52, 53; 54-VIII-42, 48, 49, 50; 54-IX-25; 54-X-6-7; 54-X-17; 54-XI-38-39
Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra
Miscelâneas:
Louvado seja o Santissimo Sacramento. Breve relação da vida, e morte prodigiosa da
madre soror Maria Joanna nossa irmã, Que faleceo ao 25 de março deste presente
anno de 1754. Neste nosso Convento do Louriçal, Lisboa, Oficina de Manoel Coelho
Amado, 1745, pp. 1 a 12 (Misc. 34, n.º 797)
Manuscritos:
Louvado seja o Sanctissimo Sacramento. Cartas que escrevei a seu confessor para
noticia da sua consciência, e por preceito do mesmo a Serva de Deos Soror Maria
Joanna, s/d (Ms. 1802)
Vida e morte da Madre Maria do Sacramento, s/d (Ms. 43)
Espelho Limpo para compor a ele suas acçoens Huma Religioza do Convento do
Santissimo Sacramento do Louriçal// Segundo suas occupaçoens e Oficios. Offerecido
pelas mãos da su R. M.e Abbadeça a cada huma Por hum Religiozo da mesma ordem,
s/d. (Ms. 1252)
Auto de chegada das M.es Fundadoras ao Convento do Sm.o Sacramento de V.ª do
Louriçal, e Elieçam de Abb.ª que fés o Ill.mo Bispo Conde, 8 de Maio de 1709. (Ms.
546, fls. 143-146)
Biblioteca Nacional de Portugal. Arquivo Histórico
Relação dos Quadros remetidos para o DLEC, BN/AC/INC/DLEC/15/cx. 05 – 02, doc.
2/55
Inventários das Preciosidades, que existem no Convento de Religiosas do Desaggravo
de Lisboa; doc. 54
328
Biblioteca Nacional de Portugal. Secção de Reservados
Auto da chegada das M.es Fundadoras ao Conv.to do SS.mo Sacram.to da V.ª do
Louriçal, e Eleição da Abb.ª […], cx. 236, n.º 52;
Auto de posse do Mosteiro do Desagravo do Santissimo Sacramento, Cód. 11210;
Correspondência de Francisco António Ferreira da Silva [manuscrito por Ordem dos
Frades Menores], Cód. 1467;
Relação e testemunho do p.e spiritual da serua de D.s Maria de Britto sobre o q. sente
de sua alma com licença da mesma serua do Snhor, Cód. 90
Collecção de cartas e outros papeis (D. João III a D. Pedro II), Mss. [cx.] 10, n.º1
Documentos provenientes do Convento do Louriçal, Cód. 8921
Documentos relativos ao Recolhimento de Nossa Senhora da Luz, Montemor-o-Novo:
mss. 205, n.º 17, mss. 205, n.º 32, mss. 205, n.º 46, mss. 218, n.º 72, mss. 226, n.º 41,
mss. 215, n.º 22, mss. 215, n.º 24, mss. 226, nº 41, mss. 241, n.º 23, mss. 215, n.º 22,
mss. 218, n.º 70, mss. 237, n.º 39, mss. 238, n.º 10, mss. 238, n.º 13, mss. 238, n.º 58,
mss. 238, n.º 59, mss. 239, n.º 59, mss. 239, n.º 63, mss. 240, n.º 22, mss. 240, n.º 71,
mss. 240, n.º 58, mss. 241, n.º 23, mss. 241, n.º 48, mss. 241, n.º 70, mss. 242, n.º 22,
mss. 242, n.º 8, mss. 242, n.º 28, mss. 242, n.º 33
Livro da Criação dos Irmãos da Confraria dos Escravos do S.mo Sacramento cita na
Igreja de S. Engrácia […], Cód. 170, fls. 22 - 31 v.
Coleção Pombalina:
Avizo p.ª o Cardeal Patriarcha obrigar todos os Ecleziasticos Regulares e Seculares de
Lx.ª e sem alguma excepção sahirem a accompanhar a Segundo porsição de
Dezaggravo do Sacrilego roubo feyto na Matriz da I.ª de Palmella, 8 de Junho de 1780,
fls. 365-368.
Documentos relativos à Congregação do Oratório:
Mss. 3, n.º 4, Mss 45, n.º 18 e 19, Mss 74, n.º 47, Mss 83, n.º 13, Mss 92, n.º 3, cx. 69,
nºs 6 e 7
MOREIRA, António Joaquim, Colecção das mais celebres sentenças das Inquisições
de Lisboa, Coimbra e Gôa, Vol. I, 1863 [manuscrito]
329
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro
Convento do Desagravo do Santissimo Sacramento, I-32, 22, 001, n.º 2
Instituição do que se pode praticar no desagravo do novo sacrilégio e herético roubo
do Santissimo Sacramento [...], I-32, 29, 015
Processo referente a representaçäo da abadessa e religiosas do Real Convento do
Desagravo do Santíssimo Sacramento de Lisboa a Sua Majestade pedindo que o
convento receba a herança deixada pela infanta D. Mariana, Lisboa, 22/03/1814,
I-32, 24, 002, n.º 3
Processo referente a representação das madres abadessas dos três conventos do
Desagravo do Santíssimo Sacramento a Sua Majestade pedindo a confirmaçäo do
testamento do padre Antônio Pereira Caldas, sub-diácono da cidade Lisboa,
Louriçal, s/d, I-32, 23, 004, n.º 9
Biblioteca Provincial Franciscana (Seminário da Luz)
Kalendario Geral Para o uso dos Religiosos Observantes, da Santa Provincia de
Portugal, e de todos aquelles, que usão do Kalendario da mesma Provincia. Junta-se
no fim o q. pertence ás Religiozas da Conceição, e do Desaggravo, e mais algumas
particularidades, 1858 [manuscrito]
Biblioteca Pública de Évora
Congregação do Oratório de Nossa Senhora da Conceição de Estremoz
Convento de Nossa Senhora da Conceição de Estremoz, Lvs. 2 , 9, 10
Casa Forte, Mss. inéditos:
Documentos sobre a fundação e confirmação do Recolhimento de Montemor-o-
Novo, cod. CX/2-19, n.º5
Mappa dos rendimentos das confrarias do Arc. de Évora, cod. CIX/2-10.
Mappa das igrejas, benefícios e conventos da jurisdição do Arcebispado de
Évora, cod. CIX/1-8
Estatísticas eclesiásticas do arcebispado de Évora, cod. CIX/2-12; CXXIX/2-
11, n.º 3
330
Apontamentos históricos e estatísticos do bispado de Leiria, cod. CIII/2-22; fl.
82
Cessão e desistência da administração de bens da confraria de Nossa Senhora da
Luz, 1777, cod. CX/2-18
Provisão do bispo D. José, Inquisidor-geral – 1798, cod. CXI/1-16
Summa da vida que se observa n’este recolhimento de Nossa Senhora da Luz de
Montemor-o-Novo, cod. CII/1-5, n.º 6
Fundo do Convento do Santíssimo Sacramento. Montemor-o-Novo:
Convento do Santíssimo Sacramento. Montemor-o-Novo, Lv. 1
Convento do Santíssimo Sacramento. Montemor-o-Novo, Pastas 2, 3, 4, 5 e 6
Câmara Municipal de Lisboa. Gabinete de Estudos Olisiponenses
Parecer de Gonçalo Pires de Carvalho, 1632
Pella receita e despesa da Irmand.e dos Escravos do Santissimo Sacram.to de St.a
Engracia, Lisboa, 1795
Recibos da Irmandade de Santa Engracia, Lisboa, 1767-1786
Casa Pia de Lisboa. Colégio de Santa Clara
PINHO, Maria Isabel Chaves, Memória descritiva e justificativa. Convento do
Desagravo/Colégio de Santa Clara da Casa Pia de Lisboa. Obras de renovação.,
s/d
PINHO, Maria Isabel Chaves, Monografia do Colégio de Santa Clara, s/d
Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais
Casa Pia de Santa Clara/Convento do Desagravo: processo de obras [documentação
escrita]
Arquivos Nacionais/Torre do Tombo
Arquivo Distrital de Lisboa
Cartório Notarial de Lisboa:
Cartório n.º 11, Lv. 711, fls. 13 v. – 14 v.
331
Cartório n.º 5 A, Lv. 53, fls. 9 v. – 10 v.
Registos Paroquiais de Lisboa:
Santa Engrácia, Mistos, fls. 58-58v.
Sé, Óbitos, n. º 2 , cx. 15, fl. 43 v. e fl. 57 v.
São José, Óbitos, Cx. 22, Lv. O2, fl. 60 v.
Arquivo das Congregações
Documentos relativos à história das Clarissas do Desagravo:
Livros:
Lv. 309, Lv. 424, Lv. 426, Lv. 931, Lv. 875, Lv. 876, 938, Lv. 1086, Lv. 1042, Lv.
1103, Lv. 1121, Lv. 1136, Lv. 1140
Maços:
Mç. 10, mct. 6; mç. 11, mct. 4; mç. 12, mct. 6; mç. 28, mct. 3; mç. 31, mct. 17; mç. 32,
mct. 9; mç. 32, mct. 10; mç. 32, mct. 11; mç. 33, mct. 3; mç. 33, mct. 5, nº 4
Arquivo Histórico do Ministério das Finanças
Convento do Desagravo do Santíssimo Sacramento de Lisboa, cx. 2009
Convento do Desagravo do Santíssimo Sacramento do Louriçal, cx. 1939
Convento do Desagravo de Vila Pouca da Beira, cx. 1893
Convento de Nossa Senhora da Esperança de Beja, cx. 16
Convento de Santa Marta de Jesus, cx. 203
Chancelarias régias
D. Sebastião e D. Henrique: Lv. 27, fl. 170
D. Filipe II: Lv. 3, fl. 146 e fl. 244 v.
D. Filipe III: Lv. 29, fl. 32 v ; Lv. 21, fl. 234 v.; Lv. 24, fl. 145
D. João IV: Lv. 16, fl. 300 v
D. Afonso VI: Lv. 17, fl. 242 v
D. Pedro II: Lv. 34, fl. 146 v.; Lv. 59, fl. 18 v; Lv., 63, fl. 54 e fl. 85 v
D. João V: Lv. 2, fl. 37; Lv. 48, fl. 272; Lv. 65, fl. 249 v.
332
D. José: Lv. 61, fl. 73; Lv. 65, fl. 249 v., Lv. 96, fl. 194 v.
D. Maria I: Lv. 1, fl. 21; Lv. 14, fls. 256 v - 257; Lv. 24, fl. 67; Lv. 26, fl. 260 v.; Lv.
32, fl. 60 v.; Lv. 35, fl. 283; Lv. 73, fl. 330; Lv. 80, fl. 150; Lv. 80, fls. 373 v. –
374; Lv. 82, fls. 220 v. – 221
D. João VI: Lv. 6, fl. 190; Lv. 19, fl. 8, fl. 145 e fl. 235 v.; Lv. 22, fls. 166 v.-167; Lv.
35, fls. 6 v. – 7 e fls. 149 v.-150 v; Lv. 39, fl. 330 v.; Lv. 40, fl. 205 v.; Lv. 41,
fls. 1-1v.
Congregação do Oratório de Lisboa
Casa do Espírito Santo, mç. 12, Lista de Noviços e Congregados e datas de entrada na
Congregaçaõ
Casa do Espírito Santo, mç. 12, Noticia tirada do livro de Obitos dos dias em que
morreraõ os P.es e Irmaõs desta Congregaçaõ
Desembargo do Paço (Corte, Estremadura e Ilhas)
Mosteiro do Desagravo do Santíssimo Sacramento: Mç. 2167, Mç. 2184, cx. 2011, Mç.
2154, n.º 117, Mç. 1408, n.º 21
Mosteiro do Desagravo do Santíssimo Sacramento sito na Cova da Moura, Mç. 1585,
n.º 23
Desembargo do Paço (Beiras)
Religiosas do Convento do Desagravo de Vila Pouca da Beira: Mç. 226, n.º 15316; Mç.
255, n.º 2, n.º 18166; Mç. 350, n.º 26582
Religiosas do Convento do Louriçal: Mç. 134, n.º 10105; Mç. 254. n.º 1, n.º 18129; Mç.
347, n.º 26299; Mç. 377, n.º 28397; Mç. 379, n.º 28520
Gavetas
Auto de Posse do Mosteiro do Dezaggravo do Santissimo Sacramento, sito no Campo
de Sta. Clara para as Religiozas do Instituto do Louriçal; e do seu Padroado
para a Corôa Real, Feito a 20 de Outubro de 1783, Gaveta 20, Mç. 9, n.º 12
Autos da Herança da Serenissima S.ª Princeza D. Maria Francisca Benedita, 24 de
Dezembro de 1831, Gaveta 16, Mç. 3, n.º 10
333
Mosteiro do Desagravo. Auto de posse, que tomou o procurador da coroa, tanto do
edifício novo, como do direito de padroado, Lv. 50, cx. 33, fls. 251-253 v.
Termo de entrega do seu cadaver no mosteiro do Desagravo em lisboa, 3 de janeiro de
1822, Gaveta 16, Mç 3, n.º 4
Termo de entrega do seu cadaver, no Convento de S. José de Riba-Mar, 7 de Julho de
1821, Gaveta 16, Mç. 3, n.º 5
Termo de entrega do seu corpo no mosteiro de Nossa Senhora da Ajuda do Rio de
Janeiro, 19 de Maio de 1813, Gaveta 16, Mç. 3, n.º 2
Autos do Inventario e Partilha dos Bens da Herança do Augustissimo S.or Rey D.
Pedro o Terceiro, Gaveta 16, mç. 3, n.º 1
Manuscritos da Livraria
Ms. n.º 2542; Ms. n.º 2523; Ms. n.º 167
Ministério dos Negócios Eclesiásticos e Justiça
MNEJ, mç. 268, n.º 2; mç. 270
Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria
Processo relativo a obras no Convento do Desagravo, Mç. 1081, processo n.º 58
Processo relativo a obras no Convento do Desagravo, Lv. 327, fl. 193
Ministério do Reino
Negócios diversos, mç. 2078
Recolhimento do Desagravo do Santissimo Sacramento de Nossa Senhora da Luz, na
vila de Montemor-o-Novo, 4.ª Repartição, Mç. 2078, n.º 604
Registo de ordens sobre diversos funerais régios, Lv. 1341, fls. 73-75
Caso do Infantado, Expediente da Casa do infantado, mç. 392
Casa do Infantado, Lvs. 581, 823, 824
Registo Geral de Testamentos
Lv. 159, fls. 62 -77 e 77-82 v.
334
Tribunal do Santo Ofício
Memoria dos autos de Fé que tem havido publicos, e particulares na Inquisiçam de
Lisboa [...] , Lv. 45, fls. 67 – 67 v.
Caderno das certidoes que do Sto Officio de Lx.ª das pessoas que saem confiscadas
condenadas [...], Lv. 12, fl. 110 v.
Inquisição de Lisboa: proc. 15952; proc. 15947; mç. 68, n.º 61; Liv. 160, fls. 193-193v.
Inquisição de Coimbra: Livro nº 291 (Cadernos do promotor), fls. 830-940
Conselho Geral: Habilitações, mç. 70, doc. 1391; doc. 208
Fundação Bissaya-Barreto - Centro de Documentação
Listagem de bens da Igreja realizada pela Fundação Bissaya-Barreto;
Arrolamento e inventário dos Bens da Igreja da Paróquia de Vila Pouca da Beira, 6 de
dezembro de 1915;
Livro do Tombo da freguesia de Vila Pouca da Beira;
Documentos vários relativos à freguesia de Vila Pouca da Beira;
Auto de entrega dos bens da igreja de Vila Pouca da Beira à comissão encarregada do
culto católico da mesma freguesia, 6 de Julho de 1930;
Relato de Acontecimentos na Igreja do Convento de 1935 a 1966;
Inventário das alfaias e roupas da igreja da freguesia de Vila Pouca da Beira;
Atas da Junta de Província da Beira Litoral;
Livro de Atas da Câmara Municipal de Oliveira do Hospital, 1914-1924;
Inventário das peças de arte. Pousada do Convento do Desagravo, Junho de 2010;
Inventário. Igreja do Convento do Desagravo
Museu Nacional de Arte Antiga
Conventos. Requisições
Conventos Extintos (Lisboa). Móveis e afins
Inventário geral do MNAA
Inventário de Pintura, Liv. 9
Inventário de Pintura, Lv. 11
Livro de Entradas. Objectos procedentes de conventos e igrejas, n.º 1, s/d
335
Livro de incorporações, 1912
Conventos. Requisições, Lv. 47
Arquivo Dr. José de Figueiredo:
Cx. 1, Pasta 1, doc. 12
Cx. 4, Pasta 2, doc. 19;
Cx. 4, Pasta 3, doc. 6.2;
Cx. 4, Pasta 3, doc. 7.6;
Cx. 4, Pasta 4, doc. 2;
Cx. 4, Pasta 13, doc. 1;
Cx. 5, Pasta 1, doc. 1.2;
Cx. 5, Pasta 3, doc. 9
Seminário Franciscano de Lisboa
Irmãs Clarissas - Ordem de Santa Clara, Caixa II - b, n.º 196:
Carta de Consciência da Madre Maria da Purificação Godinho [dactilografado]
Decreto de Renovação da Fundação e erecção canónica do Mosteiro de Clarissas do
Desagravo da Cidade de Lisboa [minuta, dactilografado]
Estatutos da Federação [dactilografado]
336
1.2 Fontes Iconográficas
Biblioteca Nacional de Portugal. Secção de Iconografia
Registos de Santos:
Igreja do Real Convento do Louriçal, R.S. 02121
Nossa Senhora das Felicidades, R.S. 02491
Santa Clara, R.S. 02204, 04594, 0493 - 04953, 05891
Santa Engrácia, R.S. 04990, 04991
Gravuras:
A serva de D.s Maria do Lado, vio em spirito dois anjos levarem ao céo o ss. sacram.to
(de Domingos Sequeira, 1800)
Arquivo Municipal de Lisboa
Arquivo Fotográfico: ref.ª PT/AMLSB/ARM/S02730
Arquivo Intermédio (Arco do Cego):
Plantas do Campo de Santa Clara, Lisboa (séc. XIX):
Plantas 10/P, 7469; 5/SGO, 5824, 5839; 9/P, 7326; 9/P, 7328; 9/P, 7329; 10/P,
7516; 6/OP, 11031; 11/OP, 11221
Biblioteca Municipal de Montemor-o-Novo
Planta da Vila de Montemor-o-Novo, 1827
Câmara Municipal de Lisboa. Gabinete de Estudos Olisiponenses
“Conventinho do Desagravo”, Album de Bilhetes Postaes: vistas de Lisboa, Vol. II, p.
48, n.º 96 [postal]
“Conventinho do Desagravo”, Album de Bilhetes Postaes: vistas de Lisboa, Vol. VIII,
p.10 A, nº 39 [postal]
Carta topográfica de Lisboa, levantada sob a direcção de Filipe Folque, 1858
Carta topográfica de Lisboa, 1901
Câmara Municipal de Lisboa. Museu da Cidade
Igreja do Mosteiro do Desagravo do Santíssimo Sacramento, DSCN5351
337
Medalhas da Irmandade dos Escravos do Santíssimo Sacramento, MC-MED-3940,
MC-MED-3972
Biblioteca Real de Bruxelas (Albertine). Secção de Iconografia
S.I. 642, 4.º¸S.I. 642; S.I. 1187 (Gravuras de Jean Adriani Collaert)
S.I. 28985 (Gravura de Rubens)
S.III (litografia anónima)
Casa Pia de Lisboa. Arquivo de Centro Cultural Casapiano
Fotografias do antigo Mosteiro do Desagravo e do Colégio de Santa Clara
Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais
Casa Pia de Santa Clara/Convento do Desagravo: processo de obras [documentação
iconográfica]
Convento do Santíssimo Sacramento do Louriçal [documentação iconográfica]
Convento do Desagravo de Vila Pouca da Beira [documentação iconográfica]
Fundação Bissaya-Barreto - Centro de Documentação
Plantas do edifício do antigo Mosteiro de Vila Pouca da Beira:
FBB/OBRS/PLAN/AScx4
FBB/OBRS/AS/cx1g
Instituto Geográfico Português
Carta topographica da cidade de Lisboa e seus arredores, redigida e gravada na
Direcção Geral dos Trabalhos Geodésicos, 1879
Carta topografica de Lisboa e seus suburbios, Lisboa, Casa do Risco das Obras
Públicas, 1831
Plano da cidade de Lisboa reduzido e gravado por J. J. F. de Sousa, Lisboa, Arquivo
Militar, 1835
Planta de Lisboa com os melhoramentos feitos e projectados na cidade, coordenada e
desenhada por José Vicente de Freitas, Lisboa, ca. 1910
Planta topographica da cidade de Lisboa: comprehendendo na sua extenção abeira
mar da ponte d'Alcantara até ao convento das Commendadeiras de Santos, [178-]
338
Museu Nacional de Arte Antiga
Imagens de peças provenientes do Mosteiro do Desagravo do Santíssimo Sacramento de
Lisboa ("Conventinho") e do Mosteiro do Santíssimo Sacramento do Louriçal
Museu Nacional de Machado de Castro
Imagens de peças provenientes do Mosteiro do Santíssimo Sacramento do Louriçal e de
Mosteiro do Desagravo de Vila Pouca da Beira
Fotografias
- da autora: relativas aos diversos mosteiros e recolhimentos do Desagravo do
Santíssimo Sacramento;
- disponibilizadas pelas irmãs Clarissas do Desagravo e pelo Dr. Joaquim Eusébio:
relativas ao Mosteiro do Louriçal
339
1.3. Fontes Impressas
Abadessa do Convento do Louriçal, Compendio da Admiravel Vida da Veneravel
Madre Maria do Lado, Lisboa, Oficina de Miguel Rodrigues, 1762
Almanach de Lisboa para o anno de 1782, Lisboa, Oficina Patriarcal, 1782
ALMEIDA, Cristóvão de (frei), Sermam do Desagravo de Christo Sacramentado na
Solennissima Festa que no mês de Janeiro lhe faz todos os annos a Nobreza de
Portugal na Igreja de Santa Engracia, 2.ª impressão, Lisboa, Oficina de João da
Costa, 1671
AMOR DE DEUS, Martinho do (frei), Escola de Penitencia, caminho de perfeição,
estrada segura para a vida eterna, Lisboa Ocidental, Oficina dos Herdeiros de
António Pedroso Galrão, 1740
ARCHANJOS, António dos (frei), Sermam de Sancta Clara em o seu Convento de
Lisboa, estando o santissimo Sacramento exposto, Lisboa, Oficina de Domingos
Carneiro, 1664.
AREDA, Diogo de, Sermão que o Padre Diogo de Areda da Companhia de Jesu, fez na
Igreja de Sancta Justa na cidade de Lisboa, estando o Sanctissimo Sacramento
em publico, pello caso que socedeo na igreja da sancta Engracia da mesma
cidade, Lisboa, Oficina de Pedro Craesbeeck, 1630
BARBOSA, D. José, Elogio do Illustrissim. e Excellent. Senhor D. Francisco Xavier de
Menezes IV Conde da Ericeira, Lisboa, Oficina de Inácio Rodrigues, 1745
BELÉM, Jerónimo de (frei), Chronica Serafica da Santa Provincia dos Algarves, Parte
I, Lisboa, Oficina de Inácio Rodrigues, 1750
BELLORI, João Pedro, As honras da Pintura, Escultura e Architectura. Tradução do
italiano; Ilustrado e anotado por hum dos Pintores de S.A.R. o Principe Regente
Nosso Senhor, Lisboa, Impressão Régia, 1815
Breve do Santíssimo Padre Benedicto XIV expedido a XXIII de Agosto de MDCCLVI
para a suppressão, união, e incorporação de todos os Mosteiros de Freiras (…),
Lisboa, Oficina Tipográfica, 1781
BRITO, Gomes de, Os itinerários de Lisboa, s/n, s/d
CANEPINA, Ladislau da (frei), Estatutos e Constituições pelas quaes devem dirigir-se
e governar-se as Religiosas Clarissas do Desagravo do SS.mo Sacramento em o
Collegio de Sanguedo, Diocese do Porto, s/d
340
CAETANO, José (frei), Memorias da vida e virtudes da serva de Deus Soror Maria
Joanna, religiosa do Convento do Santissimo Sacramento do Louriçal, Lisboa,
Oficina de Miguel Rodrigues, 1762
CARDOSO, Jorge, Agiologio Lusitano dos Sanctos, e varoens illustres em virtude do
Reino de Portugal, e suas conquistas, Tomo II, Lisboa, Oficina de Henrique
Valente de Oliveira, 1657
CÁSSIA, José de Santa Rita de (frei), Regulamento para a Casa do Desagravo do
Sanctissimo Sacramento da Eucharistia novamente erecta em Lisboa, Lisboa,
Impressão Imperial e Real, 1826
_______________________________, Sermão em acção de graças ao archanjo S.
Miguel pelas faustas noticiais da suspiradas vinda do regio, magnanimo jovem,
o Senhor Dom Miguel pregado em 28 de Outubro de 1827, Lisboa, Impressão
Régia, 1827
_______________________________, Sermão que no dia natalicio de Sua Magestade
Fidelissima o Senhor Dom Miguel I, Lisboa, Impressão Régia, 1829
CASTRO, Baptista de (padre), Mappa de Portugal, Vol. III, 3ª edição, Lisboa,
Tipografia do Panorama, 1870
CASTRO, Henrique José de, Sermão do Desaggravo do Sanctissimo Sacramento por
occasião do desacato perpetrado na Parochial Igreja de S. Lourenço de Lisboa,
Lisboa, Impressão Régia, 1825
CÉSAR, Diogo (frei), Sermão da solemnissima festa, e desaggravo, que se fez ao
sacriligo desacato, que no templo e igreja de S. Engracia, se fez. Pregado na
dita Igreja de S. Engracia em 16 de Janeiro de 1653 em presença do
Serenissimo Principe de Portugal, Nobreza do Reyno, & mais Estados delle.
Dedicado a Illustrissima, e Clarissima Nobreza do Reyno de Portugal, Lisboa,
Ant. Alz. Impr. del Rey N. S, 1653
CONCEIÇÃO, Apolinário da (frei), Claustro Franciscano, erecto no Dominio da
Coroa Portugueza, e estabelecido sobre dezeseis Venerabilissimas Columnas.
Expoem-se sua oridem, e estado presente. A de seus Conventos, e Mosteiros,
annos de suas fundações [...], Lisboa, Oficina de António Isidoro da Fonseca,
1740
CONCEIÇÃO, Cláudio (frei), Gabinete histórico que a sua Magestade fidelíssima o
senhor Rei D. João VI [...], Lisboa, Impressão Régia, 1818
341
CONCEIÇÃO, Cláudio da (Frei), Memoria dos Escravos do Sanctissimo Sacramento
do Convento da Mealhada, Freguezia de Sancta Maria de Loures; e o Sermaõ,
que no dia 22 de Novembro de 1826 pregou, Lisboa, Impressão Régia, 1827
Constituições e leis por que se hão de governar as religiosas do Convento do SS.
Sacramento de Lisboa, da primeira regra de Santa Clara, da jurisdicção
ordinaria do Ex.mo Senhor Cardeal Patriarca, Coimbra, Imprensa da
Universidade, 1822
Constituições e leis por que se hão de governar as religiosas do Convento do SS.
Sacramento do Louriçal, da primeira regra de Santa Clara, da jurisdicção
ordinaria do Ex.mo Senhor Bispo de Coimbra, Coimbra, Imprensa da
Universidade, 1822
Constituições e leis por que se hão de governar as religiosas do Convento do SS.
Sacramento de Villa-Pouca da Beira, da primeira regra de Santa Clara, da
jurisdicção ordinaria do Ex.mo Senhor Bispo de Coimbra, Coimbra, Imprensa
da Universidade, 1822
CORREIA, António (frei), Oração do desaggravo do corpo de Jesus Christo em
Palmela, sacrilegamente ultrajado, Lisboa, Regia Oficina Tipográfica, 1780
______________________, Sermão do Desaggravo de Christo Sacramentado, no caso
de Odivellas, logo q. succedeo. Em o Octavario, que na Sè de Lisboa mandou
fazer o Serenissimo Princepe D. Pedro nosso Senhor, depois que com as
Religio s todas, assim Monachaes, como Mendicantes, & Capuchas
acompanhou com sua Real pessoa, seguindo-o a Corte toda, a Procissão de
preces por toda a Cidade, 1671
CORREIA, João Tomás, Diario ecclesiastico historico, e astronomico para o reino de
Portugal. Lisboa Occidental, Oficina da Congregação do Oratório, 1733
COSTA, Carvalho da (padre), Corografia portugueza e descripçam topografica do
famoso reyno de Portugal, Tomo III, 2.ª ed., Braga, 1869
CRUZ, Lourenço da (frei), Sermam da Solemnissima Festa, e desagravo que se fez ao
sacrilego desacato na Igreja de Udivellas, em que de roubou o divinissimo
Sacramento. Prégado no Templo de Santa Engracia, em o qual se avia
commetido o mesmo sacrilegio: estando presente o sereniss.mo Princepe de
342
Portugal D. PEDRO, & mais Nobreza do Reino, Lisboa, Oficina de João da
Costa, 1661
Desagravo ao Santíssimo Sacramento e acção de graças pelos benefícios da
restauração da pátria e do restabelecimento do Governo do Príncipe Regente
promovido pelo Tribunal do Senado da Câmara, s/d.
Elogios que nos faustissimo dia em que cumpre annos a Serenissima S.ra Infanta D.
Maria Anna, lhe consagrão o Capitam João Dias Talaya, e sua filha D.
Francisca Benedicta Talaya Collaço de Castello-Branco, Lisboa, Oficina de
António Gomes, 1789
ESPERANÇA, Frei Manuel da, História Serafica da Ordem dos Frades Menores de S.
Francisco, Parte I, Lisboa, Oficina Craesbeeckiana, 1656
Estatutos reformados da Irmandade das Escravas do Santissimo Sacramento do
Mosteiro da Encarnação da Ordem Militar d’Aviz, Lisboa, Tipografia Pessoa,
1914
FERNANDES, Manuel Bernardo Lopes de, Memória das medalhas e condecorações
portuguezas e das estrangeiras com relação a Portugal, Lisboa, Tipografia da
Academia das Ciências, 1861
FERREIRA, Manuel de Oliveira, Compendio geral da Historia da Veneravel Ordem
Terceira de S. Francisco, Porto, Oficina Episcopal do Capitão Manuel Pedroso
Coimbra, 1752
FIGUEIREDO, José de (padre), Desaggravo Eucaristico do Santissimo Coração de
Jesus, Coimbra, 1757
FRANCO, António (SJ), Imagem da virtude em o noviciado da Companhia de Jesus no
Real Collegio de Jesus de Coimbra, no qual se contem as vidas, e virtudes de
muytos Religiosos, que nesta Santa Caza foraõ Noviços, Tomo II, Coimbra, Real
Colégio das Artes da Companhia de Jesus, 1719
Gazeta de Lisboa, Lisboa, Oficina Pascoal da Silva, 1715 – 1814
GRAÇA, António da (Frei), Oraçaõ fúnebre nas exéquias do Excelentissimo Senhor
Gastaõ Jozé da Camara Coutinho, Lisboa, Oficina da Música de Teotónio
Antunes Lima, 1736
GUIMARÃES, J. Ribeiro, Sumário de vária história, Vol. I e IV, Lisboa, 1874
HOMENS, Francisco da Mãe dos, Oração fúnebre pregada por Fr. Francisco da Mãe
dos Homens, s/n, s/d
343
Jornal de Coimbra, n.º 77, Lisboa, Impressão Régia, 1819
LEAL, Augusto Soares de Azevedo Pinho, Portugal Antigo e Moderno: diccionario
geographico, estatistico, chorographico, heraldico, archeologico, historico,
biographico, e etymologico de todas as cidades, villas e freguezias de Portugal
e de grande numero de aldeias, Vols. V e XI, Lisboa, Liv. Editora de Matos
Moreira, 1873-1890
Lei de 20 de Junho de 1857 para a organização dos inventários dos bens dos conventos
de religiosas, cabidos e mitras, Lisboa, Imprensa Nacional, 1858
Lei para a Reforma dos Regulares, s/l, s/n, 1822
LEMOS, João de Brito, Abecedario militar do que o soldado deve fazer até chegar a
ser capitão, e sargento-mór, Lisboa, Oficina de Pedro Craesbeck, 1631
MACEDO, Manuel de (padre), Sermão verdadeiro do Padre Manoel de Macedo no
desagravo do Sacramento, prégado na presença de Suas Magestades na Real
Capella de Nossa Senhora da Ajuda em 1779, Lisboa, Oficina de Simão Tadeu
Ferreira, 1791
MADRE DE DEUS, António (frei), Sermão Prégado pello P. Doutor Frey Antonio da
Madre de Deos, Religioso de Sam Paulo. Em desasete de Janeiyro. Na Festa,
que se costuma celebrar em o Mosteiro da Rosa ao Santissimo Sacrameto. Em
desagravo do sacrilego roubo que se fez do mesmo Senhor no cazo succedido
em a Igreja de Santa Engracia desta Cidade de Lisboa, Lisboa, Domingos
Carneiro, 1665
Manual de Ceremonias, que contem a forma de lançar os Habitos, Profissoens, &
Capitulos das Religiosas Capuchas da primeira Regra de N.P.S. Francisco, &
nossa Madre Santa Clara do Real Convento do Santissimo Sacramento da Villa
do Louriçal, Lisboa, Oficina de Valentim da Costa Deslandes, 1708
MARIZ, Pedro de, Dialogos de vária história, Lisboa, Impressão Régia, 1806
MENDONÇA, Joaquim José Moreira de, Historia universal dos terremotos que tem
havido no mundo de que ha noticia, desde a sua creação até o seculo presente:
com huma narraçam individual do terremoto de 1755: huma dissertação
physica sobre as causas geraes dos terremotos, Lisboa, Oficina de António
Vicente da Silva, 1758.
METASTASIO, Pedro, Composições dramáticas do Abbade Pedro Metastasio, Lisboa,
Oficina de Simão Tadeu Ferreira, 1763
344
MONTEIRO, Manuel (padre), Elogios dos Reys de Portugal do nome de Joaõ,
traduzidos Na língua Portugueza dos que compôs na Latina o Padre Manoel
Monteiro […], Lisboa, Oficina de Francisco da Silva, 1749
_________________________, Historia da fundação do Real Convento do Louriçal de
religiosas Capuchas Escravas do Santissimo Sacramento, Lisboa, Oficina de
Francisco da Silva, 1750
Monstruosidades do tempo e da fortuna: diário de factos mais interessantes que
succederam no reino de 1662 a 1680, até hoje attribuido infundadamente
ao benedictino fr. Alexandre da Paixão, Lisboa, Tipografia da Viúva Sousa
Neves, 1888
NIZA, Paulo Dias de, Portugal sacro-profano, ou serie particular de todos os
padroeiros das igrejas deste Reino, e de todas as que cada hum delles
apresenta, Parte III, Lisboa, Oficina de Miguel Manescal da Costa, 1768
Novena em reverente desagravo ao Sagrado Coração de Jesus pelos desacatos contra
seu amor no santissimo Sacramento da Eucaristia, Coimbra, Imprensa da
Universidade, 1838
Noticia do Senado da Camara de Lisboa sobre as festividades pela Restauraçao do
Reino em 1808, s/n, s/d
OLIVEIRA, Timóteo de, Sermaõ do Desaggravo do Santissimo Sacramento, que
prégou na Igreja Paroquial de Odivelas em 11 de Mayo de 1748, Lisboa,
Oficina de António Pedroso Galrão, 1749
PACHECO, Miguel (frei), Vida de la Serenissima infanta doña Maria, Lisboa, Oficina
de Juan de la Costa, 1675
PEGAS, Manuel Álvares, Tratado Histórico e Jurídico sobre o sacrílego furto,
execrável sacrilégio que se fez em a Paroquial Igreja de Odivelas, Termo da
Cidade de Lisboa, na noite de dez para onze dos mês de Maio de 1671, Madrid,
1678 [2.ª ed. Lisboa, Oficina Real Deslandense, 1710]
PINA, Manuel Correia de Bastos (D.), Carta do Bispo de Coimbra ao seu Cabido sobre
a visita pastoral de 1875, Coimbra, 1875
RACCZYNSKI, Athanase, Dictonnarire histórico-artistique du Portugal, Paris, Jules
Renouard et C.ie, 1847
345
Ramalhete de divinos louvores, offerecido aos escravos do SS. Sacramento para
adorarem N.S. Jesus Christo no augusto sacramento da eucharisita em
lausperenne, ou no sacrário, Lisboa, Imprensa Nacional, 1821.
Regra de Santo Agostinho e estatutos para o governo espiritual e temporal das Servitas
de Nossa Senhora das Dores, Lisboa, Imprensa Silviana, 1849
Relatório do Ministro e Secretário de Estado dos Negócios Eclesiásticos e de Justiça
apresentado às Cortes em Dezembro de 1853 sobre a execução dada à Carta de
Lei de 20 de Junho de 1857 para a organização dos inventários dos bens dos
conventos de religiosas, cabidos e mitras, Lisboa, Imprensa Nacional, 1858
RIVERA, Alonso de (frei), Historia Sacra del Santissimo Sacramento Contra las
Heregias destos tiempos, Madrid, Luis Sanchez Impresor de su Magestad, 1626
SACRAMENTO, Valerio do (frei), Compendio de ceremonias escripto para o uso das
Religiosas capuchas do Real Convento do Santissimo sacramento do Louriçal,
Coimbra, Oficina de Luís Seco Ferreira, 1736
SALGADO, Vicente (frei), Compendio Historico da Congregação da Terceira Ordem
de Portugal, Lisboa, Oficina de Simão Tadeu Ferreira, 1793
SANTA MARIA, Agostinho de (frei), Santuario Mariano e historia das imagens
milagrosas de Nossa Senhora, e das milagrosamente aparecidas, em graça dos
Prégadores e dos devotos da mesma Senhora, 2a ed. , Lisboa, Miscelânea, 1933
SANTA MARIA, Francisco de, Anno historico, diario portuguez, noticia abreviada de
pessoas grandes, e cousas notaveis de Portugal, Vol. I, Lisboa, Oficina de
Domingos Gonçalves, 1744
SANTO AMBRÓSIO, Manuel de (frei), Epitome da vida do Excellentissimo e
Reverendissimo Senhor D. Frei Ignacio de S. Caetano, Lisboa, Régia Oficina
Tipográfica, 1791
SÃO BOAVENTURA, Fortunato de (frei), Oração funebre que nas solemnes exéquias
do Excelentíssimo Senhor D. Francisco de Lemos de Faria Pereira Coutinho,
Bispo Conde, Mandadas celebrar a 20 de Maio deste anno de 1822 de ordem do
Illustrissimo Cabido da Igreja de Coimbra, Lisboa, Imprensa Nacional, 1822
__________________________________, Oração sagrada nas exéquias da Sra. D.
Joana Bernarda de Sousa Lencastre e Noronha, Lisboa, Tipografia de Bulhões,
1827
346
__________________________________, Oração gratulatória que na solenne acção
de graças, que a melhoria dos habitantes da cidade de Coimbra, endereçarão
ao todo poderoso, por verem restituído a Portugal o senhor D. Miguel I, O
Desejado, Coimbra, Real Imprensa da Universidade, 1828
SÃO BOAVENTURA, João de (frei), Breve noticia dos desacatos mais notaveis
acontecidos em Portugal desde a sua fundação até agora, e o sermão do
desagravo pelos ultimos, commetidos neste mesmo anno, Lisboa, Impressão
Régia, 1825
SÃO DÂMADO, Manuel de (frei), Appendiz das Excellencias da Veneravel ordem
Terceira da Penitencia de Nosso Serafico Padre S. Francisco, para estimulo dos
seus Veneraveis Alumnos, e de todos os Fieis Catholicos, que quizeresm
professar este Serafico Instituto, Lisboa, Oficina de Francisco Borges de Sousa,
1763
SÃO FRANCISCO, Luís de (frei), Livro em que se contem tudo o que toca á Origem,
Regra, Estatutos, Ceremonias, Privilegios, & Progressos da sagrada Ordem
Terceira da Penitencia de N. Seraphico P. S. Francisco, Lisboa, Oficina de
Miguel Deslandes, 1684
SILVA, Francisco Pereira da, Caminho dos terceiros seráficos para a Celestial Patria,
Lisboa Ocidental, Of. da Música, 1736
SILVA, Francisco Xavier da, Elogio funebre e histórico de D. João V, Lisboa, Régia
Oficina Silviana, 1750
SOLEDADE, Fernando da (frei), Historia Serafica Chronologica da Ordem de S.
Francisco na Provincia de Portugal, Tomo V, Lisboa, Oficina de António
Pedroso Galrão, 1721
TABORDA, José da Cunha, Regras da arte da pintura, Lisboa, Impressão Régia, 1815
VASCONCELOS, Manoel de Macedo Pereira de (padre), Sermão verdadeiro do Padre
Manoel de Macedo no desaggravo do Sacramento, prégado na presença de suas
Magestades, e Altezas na sua Real Capella de nossa Senhora da Ajuda em o
anno de 1779, Lisboa, Oficina de Simão Tadeu Ferreira, 1791
VEIGA, João da (frei), Sermam do Desaggravo de Christo Sacramentado [...] no
Triduo, que celebrou a Mesa dos Irmãos do Santissimo Sacramento da Igreja
Parochial de São Julião […] por occasiam de hum roubo sacrilego […] no
Collegio da Companhia de Jesus da Villa de Cetubal, abrindo o Sacrario, &
347
levando o Cofre, em que estavão as formas sagradas, deixando-as com
affectada decencia cubertas sobre o Altar, Lisboa, Oficina de António Pedro
Galrão, 1715
VELLEZ, António José Correia, Elogio Funebre da Fidelissima Rainha, e Senhora
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