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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais
Efeitos do Lugar: representações dos moradores sobre os conjuntos habitacionais da Vila Senhor dos
Passos
Náthalie Rose Fernandes Costa
Belo Horizonte 2011
Náthalie Rose Fernandes Costa
Efeitos do Lugar: representações dos moradores
sobre os conjuntos habitacionais da Vila Senhor dos Passos
Dissertação apresentada ao programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais.
Orientadora: Luciana Teixeira de Andrade
Belo Horizonte 2011
FICHA CATALOGRÁFICA Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Costa, Náthalie Rose Fernandes
C837e Efeitos do lugar: representações dos moradores sobre os conjuntos habitacionais da Vila Senhor dos Passos / Náthalie Rose Fernandes Costa. Belo Horizonte, 2011.
109f.: il .
Orientadora: Luciana Teixeira de Andrade Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais, Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais 1. Conjuntos habitacionais – Belo Horizonte (MG). 2. Sociologia urbana.
3. Estigma (Psicologia social). 4. Territorialidade humana. I. Andrade, Luciana Teixeira de. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós- Graduação em Ciências Sociais. III. Título.
CDU: 728.2
Revisão ortográfica e normalização Padrão PUC Minas de responsabilidade do autor.
Náthalie Rose Fernandes Costa
Efeitos do Lugar: representações dos moradores sobre os conjuntos
habitacionais da Vila Senhor dos Passos
Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais.
______________________________________________________________________ Profa. Dra. Luciana Teixeira de Andrade – Orientadora/PUC Minas
______________________________________________________________________ Profa. Dra. Alessandra Chacham Sampaio – PUC Minas
______________________________________________________________________
Prof. Dr. Luís Flávio Sapori – PUC Minas
Belo Horizonte, 29 de março de 2011
Dedico este trabalho ao meu pai pelas palavras de incentivo e carinho, e minha mãe pelo afeto, dedicação em todos os anos de estudo de minha vida, e
por acreditar mais uma vez que seria possível.
AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiro a Deus que iluminou a minha trajetória durante esta caminhada, me
fazendo acreditar que seria possível.
Agradeço também aos meus amigos de turma, que colaboraram para o meu aprendizado, com
sua amizade e pelo diálogo proporcionado durante estes dois anos. Em especial, minha amiga
e companheira de caminhada desde a graduação em Ciências Sociais, Alda Santana.
Ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUC Minas pela oportunidade, a
todos os professores que contribuíram para meu aprendizado, em especial aqueles que
estiveram presentes em minha trajetória acadêmica desde a graduação, Professora Alessandra
Chacham e Cristina Filgueiras. A professora, orientadora Luciana Andrade que com suas
sugestões efetivas e norteadoras para este trabalho, expresso minha profunda gratidão.
A FAPEMIG, pela bolsa de estudos concedida durante minha permanência no mestrado.
Aos moradores da Vila Senhor dos Passos, que me receberam novamente com imenso carinho
e atenção, pois sem eles esta dissertação não seria possível.
Aos familiares que torceram por mim durante esta trajetória, em especial meu primo
Davidson que sempre me incentivou. A minha mãe que dedica sua vida ao meu bem-estar. Ao
meu fiel amigo e companheiro Carlos Antônio, pelas conversas, sugestões e críticas sobre o
tema.
A todos, o meu muito obrigado!
“Se o habitat contribui para fazer o hábito, o hábito contribui também para fazer o habitat através dos
costumes sociais mais ou menos adequados que ele estimula a fazer.”
BOURDIEU
RESUMO Esta dissertação tem como objetivo analisar os efeitos ocasionados na sociabilidade dos
moradores reassentados pelo Programa Habitar Brasil-BID (HBB) em Conjuntos
Habitacionais na Vila Senhor dos Passos, na cidade de Belo Horizonte, no período entre 2004
e 2008. Para tal estudo buscou-se investigar como se dá a sociabilidade entre os moradores
dos conjuntos habitacionais e seus antigos e novos vizinhos, bem como levantar suas
percepções em relação ao estigma impingido ao seu local de moradia. Privilegiou-se nesta
análise uma abordagem referenciada pela Sociologia Urbana: como metodologia de pesquisa
elegeu-se a entrevista semi-estruturada como instrumento de investigação de elementos do
conhecimento e da memória do indivíduo. Estas, quando reunidas e articuladas aos
fundamentos teóricos, tais como a sociabilidade de Simmel (1979) e o estigma territorial de
Wacquant (2005), dentre outros autores que complementam esta discussão, propiciaram
excelente rendimento. Realizou-se no primeiro momento uma breve análise comparativa entre
o surgimento da favela nas cidades de Belo Horizonte e Rio de Janeiro, tendo como referência
os pontos de encontro e divergência entre as políticas públicas urbanas praticadas nessas
cidades, assim como o modo como essas populações vivenciaram cotidianamente as
mudanças promovidas pelo processo de remoção e reassentamento. Em linhas gerais,
observou-se que os entrevistados alteraram sua concepção acerca da sociabilidade
estabelecida com seus antigos e novos vizinhos, fenômeno que pode ser vinculado ao curto
tempo para adaptação dos mesmos à vida em condomínio. Quanto aos efeitos do lugar sobre a
identidade, estes permanecem inalterados quando observados seu caráter negativo, ou seja, a
mudança para os conjuntos habitacionais não alterou significativamente a ocorrência do
estigma territorial, extremamente arraigado em nossa sociedade.
Palavras-chave: Conjuntos habitacionais; Sociabilidade; Estigma territorial.
ABSTRACT This thesis aims at analyzing the effects caused on the sociability of the residents resettled in
housing state/development in Vila Senhor dos Passos, Belo Horizonte, by the Programa
Habitar Brasil-BID (HBB) from 2004 to 2008. In order to accomplish it, we have investigated
how the sociability was established among the residents and their new and old neighbors. We
have also raised the residents’ perceptions regarding the stigma reserved for their former place
of living. We have privileged the approached referenced by the Urban Sociology. As primary
research methodology, we have chosen semi-structured interviews, since this instrument is
able to provide us aid in assessing these individuals’ knowledge and memory. Besides, the
interviews were articulated with the theoretical bases such as Simmel’s concept of sociability
and Wacquant’s territorial stigma, among other complementary scholars and concepts. At
first, we have developed a short comparative analysis between Rio de Janeiro and Belo
Horizonte in terms of the emergence of such urban phenomenon – the favela – drawing
attention to the points of convergence and divergence in the urban public policies adopted by
these cities, as well as to the way the resident populations had experienced the changes
provoked by the removal and resettling processes. Based on that, we have observed that the
interviewees have indeed altered their perception regarding their sociability towards their old
and new neighbors. This phenomenon can be attributed to the short period passed since their
resettling, which has left little time for adaptation to this new housing manner of life. As for
the effects of the place upon their identities, we can affirm that, at least regarding negative
aspects, they have remained fairly unchanged. In other words, the relocation to the housing
state/development has not significantly altered the territorial stigma, deeply rooted in our
society.
Keywords: Housing state/development; Sociability; Territorial stigma.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Foto 1: Típico cortiço do Rio de Janeiro, no final do século XIX..................................... 19
Foto 2: Primeira favela do Rio de Janeiro - PROVIDÊNCIA........................................... 21
Foto 3: Conjunto IAPI em fase final de construção........................................................... 24
Foto 4: Rua Pedro Lessa, divisa entre a Pedreira Prado Lopes e a Vila Senhor dos
Passos.................................................................................................................................
32
Foto 5: Escadaria do Beco Ibiá........................................................................................... 33
Foto 6: Rua Ibiá após abertura de via pelo Programa Alvorada......................................... 37
Foto 7: Perspectiva da área dos conjuntos habitacionais/HBB.......................................... 40
Foto 8: A esquerda o Conjunto Nova Esperança construído em 2007 e a direita o
Conjunto Nova Era construído em 2004............................................................................
41
Foto 9: Fotos das casas da Vila Senhor dos Passos (verticalização).................................. 69
Foto 10: Caracterização das casas da Vila Senhor dos Passos........................................... 73
Foto 11: Foto que caracteriza o cercamento dos conjuntos habitacionais.......................... 79
Foto 12: Área comum do conjunto Nova Era, com 32 famílias......................................... 81
Foto 13: Rua Fagundes Varela, a esquerda os moradores colocaram portão de grade no
beco.....................................................................................................................................
82
Foto 14: Beco Saldanho Marinho, local que os moradores quiseram manter. (Parte alta). 88
Foto 15: Ao lado esquerdo, o Beco 21 de Abril, e ao direito uma Encosta na Vila........... 95
LISTA DE FIGURAS Figura 1: Mapa da localização da vila em Belo Horizonte.................................................. 31 Figura 2: Mapa da seqüência histórica da Vila Senhor dos Passos – 1942......................... 34 Figura 3: Mapa da seqüência histórica da Vila Senhor dos Passos – 1999......................... 36 Figura 4: Caracterização da Vila parte baixa e alta.............................................................. 87
LISTA DE SIGLAS
URBEL – Companhia Urbanizadora de Belo Horizonte
IAPI – Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Industriários
BNH – Banco Nacional da Habitação
CHISBEL – Coordenação de Habitação de Interesse Social
CODESCO – Companhia de Desenvolvimento de Comunidade
PRODECOM – Programa de Desenvolvimento de Comunidades
PLAMBEL – Planejamento da Região Metropolitana de Belo Horizonte
PMB – Programa de Melhoramento de Bairro
PBH – Prefeitura Municipal de Belo Horizonte
PUC Minas – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
ONG – Organização não-governamental
AVSI – Associação Voluntários para o Serviço Internacional
PGE – Plano Global Específico
HBB – Habitar Brasil Bid
BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento
PROFAVELA – Programa Municipal de Regularização das favelas
PMB – Programa de Melhoramento de Bairro
PAC – Programa de Aceleração do Crescimento
UTC – União dos Trabalhadores da Periferia
SUMÁRIO
1 LINHAS INTRODUTÓRIAS...................................................................................... 12
2 MEMÓRIAS DE UM ESPAÇO CHAMADO FAVELA ........... .............................. 17
2.1 - Contexto histórico: entre Rio de Janeiro e Belo Horizonte ................................. 18
2.2 - Caracterização da Vila Senhor dos Passos ............................................................ 30
3 INTERSEÇÃO TEÓRICA: SOCIABILIDADE, ESTIGMA E IDE NTIDADE..... 42
3.1 - Sociabilidade no espaço público e privado............................................................. 47
3.2 - Identidade e estigma: efeitos do lugar de moradia .............................................. 49
4 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS............................................................... 62
4.1 - O trabalho de campo................................................................................................. 62
4.2 - Metodologia da pesquisa ......................................................................................... 63
4.3 - O perfil dos entrevistados ........................................................................................ 65
5 A TRAJETÓRIA DA CASA AO APARTAMENTO: DESAFIOS E
PERSPECTIVAS...............................................................................................................
69
5.1 - Observações sobre o lugar........................................................................................ 69
5.2 - Percepções sobre a moradia: casa versus apartamento ................................... 72
5.3 - A sociabilidade dos moradores dos conjuntos habitacionais ........................... 83
5.4 - Efeitos do lugar e sua incidência sobre os moradores....................................... 89
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................... 97
REFERÊNCIAS................................................................................................................ 101
ANEXO............................................................................................................................... 106
12
1 - LINHAS INTRODUTÓRIAS
O processo de urbanização em território brasileiro é um fenômeno recorrente na pauta
de diversos estudos e projetos técnicos, uma temática em potencial capaz de mobilizar tanto a
inquietude que impulsiona a pesquisa acadêmica, quanto os interesses que moldam as
políticas urbanas do poder público. Na perspectiva das Ciências Sociais, guia mestre do
presente texto, o ambiente urbano é concebido como um produto de uma prática social
definida, um espaço transformado pela ação do homem, idéias e atos que em um dado
percurso histórico, marcam uma realidade tingindo-a com as cores políticas, econômicas e
culturais de uma sociedade.
Se nos restringirmos à realidade brasileira, observaremos que a partir do século XIX, as
grandes cidades foram gradativamente consolidadas a partir da modificação de determinadas
parcelas do espaço, localidades antes desvalorizadas comercial e socialmente, que após a
intervenção do poder público, foram dispostas para o mercado. Por exemplo, nos tempos de
1930, o Estado centralizador da administração pública e do desenvolvimento econômico e
industrial, contribuiu para o avanço da especulação imobiliária de áreas estratégicas para
investimento. Em cidades como Belo Horizonte, planejada por urbanistas demarcavam as
áreas externas á Avenida do Contorno que seria como zonas agrícolas e para os trabalhadores.
Por sua vez, as instalações de indústrias e pontos comerciais ditavam as localidades propícias
para a cobiça imobiliária da época, uma dinâmica econômica que promovia uma cisão social
entre os bairros centrais (classe média e alta) e vilas e favelas periféricas (população de baixa
renda).
Resgatamos aqui um breve percurso do processo de urbanização da cidade de Belo
Horizonte para aplicação das premissas já levantadas. Desenhada para ser o centro político e
administrativo do Estado de Minas Gerais, a nova capital foi projetada com os recursos
técnicos e padrões arquitetônicos e urbanísticos mais avançados da época. Conforme
Guimarães (1991), o projeto da capital atenderia ao aparato administrativo do governo e era
voltado para a acomodação de uma população específica – o funcionalismo público. No
planejamento, não havia previsão de uma localidade reservada para a moradia dos
trabalhadores encarregados de construí-la.
A construção da capital atraiu vários trabalhadores de diversas regiões do interior do
Estado, movimento migratório que proporcionou o aumento, não previsto, dessa classe. Para
alojá-los, construíram-se, de forma precária, isto é, sem infraestrutura básica, acomodações de
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caráter provisório. Nessas aglomerações de cafuas, barracos e barracões, que deram origem as
favelas mais antigas de Belo Horizonte, passaram a residir os trabalhadores. A história nos
permite dizer que a preocupação com o urbanismo veio antes que a questão social. Dito de
outro modo, as primeiras intervenções remocionistas tinham como intuito a revitalização da
paisagem urbana da nova capital, desconsiderando o já elevado déficit habitacional da cidade.
Finalizadas as obras, a prefeitura começou o processo de erradicação das favelas localizadas
nas áreas internas à demarcação da Avenida do Contorno (Guimarães, 1991).
Segundo Guimarães (1991), em 1902, na tentativa de mitigar o problema da falta
moradia gerado pela construção da capital, a Prefeitura de Belo Horizonte cunhou uma ação
pioneira com o projeto de um bairro operário – Barro Preto – uma iniciativa pública que
visava garantir de alguma forma o acesso do trabalhador ao terreno urbano com um baixo
custo dos lotes. Já nos anos 1920, as favelas de Belo Horizonte passaram por uma Campanha
Higienista, algo similar à ação sanitarista coordenada por Oswaldo Cruz no Rio de Janeiro em
1907. Tais campanhas eram justificativas como uma tentativa de melhorar a qualidade de vida
de seus habitantes com a erradicação das áreas insalubres, para tal, seria necessária a
transferência da população via uma ação remocionista.
Nos anos 50, nas adjacências da região centro-sul, comunidades faveladas resistiram
ao movimento de expulsão, concomitantemente, as famílias removidas promoveram o retorno
ao local de origem, ocorrências que exigiram da Prefeitura de Belo Horizonte o
redimensionamento do planejamento urbano, ações capazes de produzir efeitos a médio e
longo prazo na organização espacial da cidade. Nos anos 80, as conquistas vindas das lutas
dos movimentos sociais organizados interferiram na gestão habitacional promovida pelo
Município, data desta época a Programa Municipal de Regularização das Favelas (PRÓ-
FAVELA), programa pioneiro em todo o Brasil, por ter sido a primeira ação pública que
reconhecia a especificidade da favela e o direito de seus habitantes à moradia.
Neste breve recorte, identificamos alguns dos pilares para a consolidação de ocupações
irregulares em Belo Horizonte, a saber: (i) um planejamento urbano que não contemplava a
promoção de políticas habitacionais para a população de baixa renda e (ii) o predomínio do
poder privado que ditava a ordem econômica imobiliária, regulação que determinava a
exclusão sócio-espacial da população menos favorecida economicamente.
O direto à cidade, pauta recorrente no discurso do poder público municipal na última
década, passa a ser objetivado com a criação de programas para reestruturação urbanística de
vilas e favelas. Intervenções físicas e sociais que almejam reduzir o índice de ocupação de
áreas de ocupação irregular, promoveu a abertura de localidades para a produção de moradias
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destinadas à diminuição do déficit habitacional e a implementação equipamentos públicos
conforme a demanda da comunidade.
Em Belo Horizonte, prevalece no discurso manifesto a promoção de políticas
integradas que visariam à urbanização de vilas e favelas aliadas à manutenção das famílias
com a construção de conjuntos habitacionais na própria comunidade. Esta transformação
ocasionada pela urbanização conseguiria manter e conservar os vínculos sociais dos
moradores? As melhorias das condições de infraestrutura urbana e moradia alterariam a vida
cotidiana dos moradores? Breves questões que tornam indispensáveis as avaliações do efeito
da urbanização na dinâmica política e social da favela.
Para este campo do conhecimento, em especial a Sociologia e Antropologia urbana, a
casa tem sido uma constante fonte de pesquisa, uma produção material e simbólica
fundamental para a compreensão das práticas sociais e cotidianas de um grupo. O intuito desta
dissertação foi propiciar uma reflexão crítica sobre os efeitos causados pela mudança de
“lugar” na sociabilidade dos moradores reassentados em conjuntos habitacionais, “efeitos”
que podem deixar cicatrizes nessa sociabilidade, isto é, nos vínculos sociais, nos hábitos e
costumes. Entender os diversos modos de vida1, em específico das vilas e favelas, é
fundamental para se garantir uma habitação digna, pois é por meio das ações do poder público
que este direito social deve ser exercido.
A idéia para esta dissertação se apresenta a partir da experiência de trabalho obtida na
Vila Senhor dos Passos. A convivência diária com os moradores chamou a atenção para o fato
de que a falta de estrutura das ruas e casas não impediu a vida social naquele espaço. Tal
convivência também despertou o desejo de entender como aquelas pessoas viviam e
interagiam com os demais espaços da cidade. Uma questão específica concorreu para a
problematização desta pesquisa: como ocorreria a convivência em um mesmo espaço entre as
pessoas que vivem na formalidade (conjunto habitacional) e na informalidade (a favela)?
Neste momento de alto investimento em programas para urbanização de favelas, crescentes
em abrangência e volume de financiamento pelo poder público, é importante conhecer as
conseqüências desta intervenção na vida dos moradores de vilas e favelas. Desta maneira,
propus-me analisar os efeitos ocasionados, pela nova forma de moradia na Vila Senhor dos
Passos, na sociabilidade dos moradores reassentados, durante o período entre 2004 e 2008.
1 Quando falamos em modos de vida almejamos discorrer sobre o comportamento social de um grupo em
um dado contexto. No caso desta dissertação, analisamos como o modo de vida dos moradores de antigas áreas de ocupação irregular são alterados/afetados pelos processos de remoção e/ou urbanização, como a construção de conjuntos habitacionais.
15
Para cumprir este objetivo elaboramos outros três, de caráter mais específico: (1)
analisar possíveis alterações na sociabilidade entre antigos e novos vizinhos após o
reassentamento das famílias em conjuntos habitacionais; (2) investigar o sentido que os
moradores reassentados atribuem à sua imagem a partir de um novo modo de habitar; e (3)
identificar os mecanismos que incidem nos modos de vida dos moradores reassentados e em
sua interação com seus novos vizinhos do conjunto habitacional.
Segundo uma das hipóteses de pesquisa, a mudança para os conjuntos interfere na
relação com os antigos vizinhos, pois, para se afirmar como não-favelados, os moradores
reassentados precisariam se distanciar simbolicamente daqueles que permaneceram na favela.
A segunda hipótese aventa que, sendo a favela um território estigmatizado, a mudança para
os conjuntos interferiria positivamente na imagem que os moradores têm de si, facilitando
suas relações com os habitantes da “cidade formal”. A última hipótese sustenta-se na
suposição de que o reassentamento promoveria uma redução nas relações de vizinhança
construídas entre os moradores, gerando uma nova forma sociabilidade entre os novos
vizinhos.
A dissertação estrutura-se em cinco capítulos seguidos pela conclusão. As linhas
introdutórias proporcionam ao leitor uma visão geral do trabalho e das questões importantes
que serão tratadas no decorrer dos demais capítulos. No segundo capítulo, contextualiza-se e
compara-se a origem da favela tanto no Rio de Janeiro, lugar de referência para estudos
acadêmicos nesta área, quanto em Belo Horizonte. Apresentamos tanto o pioneirismo de Belo
Horizonte em relação à preocupação com as classes trabalhadoras no início da Capital quanto
as atuais políticas, dentre as quais se inserem os Programas de Urbanização. Também se
contextualiza, historicamente, e se caracteriza a Vila Senhor dos Passos, objeto de pesquisa
desta dissertação, resgatando-se as intervenções feitas pelo poder público anteriormente.
Especificamente, para demonstrar empiricamente as hipóteses levantadas, a experiência
desenvolvida pelo Programa Habitar Brasil - BID (HBB) – na Vila Senhor dos Passos.
No terceiro capítulo discutem-se as teorias que sustentam a presente pesquisa, como o
conceito de sociabilidade de Georg Simmel (2006), capital para estudos na sociedade
contemporânea, uma vez que o autor, por meio da interação dos indivíduos, analisa grandes
transformações na vida cotidiana. Alguns comportamentos criados com a modernidade podem
ser entendidos pela leitura desse autor, a saber: a reserva, a atitude blasé e a sociabilidade.
Assim, em um novo espaço de moradia buscamos entender como ocorre a construção social
das identidades dos moradores a partir dos conceitos de Castells (1999) e Woodward (2003).
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Também buscamos entender o efeito do estigma “favelado” sobre os moradores que
residem nos conjuntos habitacionais. Para tanto, os estudos de Goffman (1988) e Loïc
Wacquant (2005) são utilizados. Para o conceito de público e privado elabora-se uma
contextualização de modo a indicar as transformações sofridas por estes: inicia-se pelo
clássico estudo de Arendt (1983), que mostra como o conceito de público e privado vem se
alterando ao longo dos anos, de modo a se misturar na sociedade contemporânea. Aplicado à
realidade brasileira, os estudos de Matta (1997) contribuem para a elucidação de um sistema
social pessoalizado e de relações particularizadas, onde observamos um híbrido entre as
concepções de público e privado.
No quarto capítulo, detalha-se a metodologia utilizada na pesquisa. A metodologia
empregada preocupou-se em compreender as percepções, subjetividades e valores sociais dos
moradores, por isso a escolha pela entrevista semiestruturada, uma vez que esta permite ao
entrevistador um aprofundamento maior sobre o assunto e uma interação com os seus
entrevistados de um dado contexto: ambos ficam livres para colocar ou responder questões
além do previsto. Optou-se pela pesquisa qualitativa, pois para Chizzoti (2001) ela promove a
explicação detalhada de temas e perspectivas de um contexto, além de informações mais
precisas.
No quinto capítulo, analisam-se os resultados obtidos pela pesquisa após a ocupação
dos moradores nos conjuntos habitacionais, nos anos de 2008 e 2010. Para melhor
entendimento da vida cotidiana dos moradores dos conjuntos habitacionais, em relação aos
seus antigos e novos vizinhos, buscamos desvendar quais os efeitos causados pelo lugar no
comportamento, na sociabilidade, na identidade e no estigma que incide sobre os moradores.
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2 - MEMÓRIAS DE UM ESPAÇO CHAMADO FAVELA
Durante o trânsito matinal na Avenida Presidente Antônio Carlos, um dos principais
corredores de acesso ao Centro de Belo Horizonte, uma cena cotidiana se repete: “desculpe o
transtorno, estamos em obra” diz o comunicado do órgão estatal responsável pelas
intervenções de melhoria viária. No emaranhado de carros e ônibus, estáticos, as motocicletas
se multiplicam. Em verdade, nos tempos de alto investimento em mobilidade urbana, as
motocicletas estão livres para buscar seus atalhos e vencer os últimos trezentos metros até o
centro da cidade.
Para quem almeja chegar ao entorno do bairro da Lagoinha, a saída é deixar o ônibus
e caminhar em direção ao Hospital Odilon Behrens. Ao subir a Rua Pedro Lessa, que divide a
vila Pedreira Prado Lopes e a vila Senhor dos Passos, observamos que o maior fluxo de
pessoas está na direção oposta: grupos de operários e empregadas domésticas, umas
apressadas em direção ao trabalho, outras a conduzir crianças em direção à creche. Enfim,
todos descem a vila Senhor dos Passos em direção às suas rotinas cotidianas no Centro da
cidade, e, ao tomarem a Rua Itapecerica, a conversa entre eles ameniza os vinte minutos de
caminhada.
Ponto de encontro entre enfermeiros em troca de turno, a padaria amplia seu espaço,
a televisão “sequestra” a atenção de todos. No noticiário das 7 horas, uma narrativa
sensacionalista: tiroteios em uma vila do Rio de Janeiro, “balas perdidas”, moradores
atingidos, ação invasora da polícia seguida de resistência do tráfico local. Do diálogo entre as
pessoas acerca do assunto depreendem-se duas posições distintas: entre alguns, espanto
seguido de indignação; entre outros, a “naturalidade da cena”, comum a qualquer ocupação
urbana denominada favela.
Esta pequena introdução se propõe a chamar a atenção para a necessidade de se
refletir sobre um ambiente cada vez mais em voga – a favela enquanto tecido urbano. Seja
pela imperativa produção midiática, pelos diversos olhares da academia, pelos progressivos
investimentos do poder público em políticas urbanas ou pelos ditos e memórias dos
moradores, a favela é um fenômeno multifacetado: para alguns, prevalece o determinismo
econômico; para outros, cultura e história de resistência; há aqueles que discursam sobre os
focos de exclusão que serão transformados em “vilas vivas”. Voltando à cena televisiva, uma
indagação ainda nos instiga: existe algo que possa ser considerado como “cena comum” à
18
toda favela? O que há de novo, ou de outro modo, o que se reproduz no percurso da história
quando pensamos nas relações sociais neste ambiente urbano?
Seguindo as pistas de Lefebvre (1986), todo espaço da cidade é um produto que
corresponde a uma prática social definida (p.2). Será esta prática social o fator que demarcará,
simultânea e paradoxalmente, tanto a diversidade quanto a particularidade e a peculiaridade
de cada assentamento favelado? Para tentar responder a estes questionamentos seguiremos a
trilha histórica. Deste modo, poderemos encontrar pistas capazes de contribuir para o
entendimento deste fenômeno urbano em distintos momentos da história brasileira.
O termo “favela”, muito utilizado nas Ciências Sociais, possui diversas definições, as
quais variam de acordo com o ponto de vista sociológico, jurídico, da administração pública e
do senso comum. Segundo Lopes e Pulhez (2008), a categoria sociológica favela remete ao
ambiente urbano gerado pela ocupação clandestina da cidade, como processo particular de
construção material e simbólica do espaço através do tempo (p. 67). Em geral, o espaço
favelado é caracterizado por locais de habitações precárias, em sua maioria ocupações de
vazios geográficos desvalorizados para o mercado imobiliário formal, como encostas de
morros e margens de rios. Na próxima seção iremos nos ater com mais detalhes na construção
desse contexto sobre a favela.
2.1 Contexto histórico: entre Rio de Janeiro e Belo Horizonte
Observando o recorrente uso da realidade das favelas cariocas como referência para a
reflexão cotidiana das favelas brasileiras em geral, deparamo-nos com a constatação de que os
primeiros registros e estudos sobre as favelas despontaram, no século XIX, na então capital
do Brasil, Rio de Janeiro. Esse saber acadêmico de longo percurso contribuiu para o uso e
abuso da experiência carioca como referência de entendimento de outras realidades. Cientes
deste predomínio, caminharemos pelas produções acerca desta cidade. No entanto, faremos,
sempre que possível, a interlocução com a dinâmica histórica, econômica e sociocultural da
realidade de Belo Horizonte, nosso objeto de estudo.
Revisitando as bases históricas, podemos dizer que os “precursores” das favelas foram
os cortiços, que predominavam como moradia popular no Rio de Janeiro do século XIX. O
ambiente descrito por Aluísio de Azevedo (1997) no romance O Cortiço, e retratado na foto
abaixo, caracterizava o espaço reservado à moradia dos trabalhadores populares, dos
19
humildes e excluídos, assim como vagabundos e malandros, em resumo, de todos aqueles que
não podiam e nem deviam se misturar à burguesia:
Foto 1: Típico cortiço do Rio de Janeiro, no final do século XIX
Fonte: www.educaterra.terra.com.br, 2011
Segundo Valladares (2005), os cortiços eram percebidos também como ambientes de
proliferação de doenças, constituindo uma advertência para a ordem social da época. Como
estratégia de controle da expansão de cortiços no Rio de Janeiro, o prefeito Pereira Passos
instituiu uma reforma urbana, entre 1902-1906, que objetivava a melhoria das condições de
vida e moradia. Em Belo Horizonte, segundo dados (2000) da Companhia Urbanizadora
(URBEL), o fenômeno do surgimento das favelas remonta à construção da cidade. Planejada
em 1897, a partir de um traçado geométrico dito racional, a construção foi bastante inovadora
para a época, delineada para receber um total de 200.000 habitantes. Atraídos pela construção
da cidade, muitos trabalhadores vieram de outras regiões do Estado, fator que propiciou o
aumento da quantidade de moradores em relação ao projeto inicial.
A idéia era de que os trabalhadores temporários ficariam em Belo Horizonte somente
até o final das obras. Assim, as favelas surgiram como ocupações de caráter provisório,
desenvolvendo-se ao longo dos grandes eixos viários que se implantavam, uma tentativa, por
parte destes trabalhadores, de se estabelecer próximos aos seus locais de trabalho. Aos
20
operários não se apresentou outra alternativa que não morar fora da Avenida do Contorno,
limite do planejamento da capital. Inicialmente, estavam previstos alguns quarteirões para
funcionários públicos, vindos de Ouro Preto, e outros para o comércio.
O planejamento da capital mineira previa três áreas distintas: urbana (central),
suburbana e rural. A primeira área exigia um alto padrão urbanístico, o que a tornou
extremamente valorizada pelo mercado imobiliário e acarretou sua dominação por ele. A
zona urbana, compreendida pela parte interna da Avenida do Contorno, para Carvalho (2005),
“funcionava como uma versão moderna de fortaleza, isolando estrategicamente a cidade
monumental de sua parte externa, aquela considerada pobre, insalubre e perigosa” (p. 30).
A Capital Planejada possuía um traçado diagonal ajustado no qual os espaços
institucionais e coletivos concentravam-se em ruas largas da cidade. A zona suburbana
localizava-se fora da Avenida do Contorno e, porque não demandava os rígidos padrões
urbanísticos, foi destinada aos operários. De acordo com este raciocínio, sua ocupação deveria
ocorrer posteriormente à da zona urbana, sendo a implantação de infraestrutura básica
postergada. A zona rural, destinada à colônias agrícolas, tinha como objetivo o abastecimento
da nova capital e, segundo Carvalho (2005), possuía caráter segregacionista desde a sua
construção:
Durante a própria construção já tem início uma mistura da população que não combinava com a cidade que devia ser o modelo perfeito da ordem: é que para se alojar, os operários montaram suas ‘cafuas’ no alto da favela, o que é a Floresta, ou se alojavam entre os palácios que construíam [...] A própria concepção da cidade saiu da cabeça de alguns engenheiros positivistas, preocupados muito mais com a lógica interna da geometria e da engenharia que com a localização física e, muito menos ainda, com a participação da população. (LE VEN apud CARVALHO, 2005, p. 31).
A construção ambígua do espaço de Belo Horizonte mostra-se desde sua concepção e
construção segregada e excludente: iniciada como projeto moderno de cidade planejada,
culminou com problemas não previstos de infraestrutura urbana (saneamento básico, água,
luz, asfaltamento de ruas etc.) nas demais zonas da cidade. Se a capital carioca, sede do
governo federal à época, já era palco destes problemas urbanos por ser centro do poder
político e econômico, a nova capital mineira fora traçada a partir das concepções modernas do
engenheiro Aarão Reis, isto é, a partir de um projeto urbano que almejava o desenvolvimento
de um novo vetor econômico e político em Minas Gerais.
Consideradas as particularidades do percurso de desenvolvimento das duas cidades
citadas, o investimento da esfera pública em espaços que seriam transformados em pontos de
21
representatividade política e poder econômico produziu arranjos socioculturais não-
planejados: à iniciativa urbana vincularam-se as invasões clandestinas, breves ações populares
na busca pelo direito de morar na cidade. Em comum, ambas as cidades contribuíram para a
produção de uma ativa especulação imobiliária a qual, mediante a ausência de uma política
pública para resolver o problema da exclusão da população de menor poder aquisitivo do
processo de ocupação da cidade formal, fez aumentar, significativamente, o número de
favelas nas cidades no decorrer dos anos subsequentes.
Segundo Valladares (2005), os primeiros moradores de favelas cariocas não eram
originários das zonas rurais, como se pensava anteriormente, mas sim de ex-combatentes que
lutaram na guerra de Canudos. O motivo principal para a ocupação do morro da Favella2 era
exigir do governo do Estado os soldos não pagos. Como se tornou já de conhecimento
comum, favela origina-se de favella, um arbusto típico do sertão nordestino que existia no
morro da Providência (VALLADARES, 2005).
No Rio de Janeiro do início do século XX, dada à ausência de serviços públicos
sanitários, a favela estava tomada por graves problemas de infraestrutura básica. Deste modo,
sob o comando de Oswaldo Cruz, o combate à insalubridade foi foco de campanha sanitarista
por parte dos médicos-higienistas. Em 1907, o objetivo principal da campanha era extinguir o
morro da Providência (ver foto 2), que se consolidava como a primeira favela carioca.
Foto 2: Primeira favela do Rio de Janeiro - PROVIDÊNCIA
Fonte: guiajosecarlosmelo.blogspot.com, 2011.
2 A palavra Favella preserva a grafia da época, segundo descrito em Valladares (2005).
22
A experiência em Belo Horizonte é análoga à apresentada: em 1898, uma crise em
escala nacional atingiu sobremaneira o orçamento da cidade. Como consequência, as obras
foram paralisadas e muitos trabalhadores ficaram desempregados, o que propiciou a invasão
de terrenos e o crescimento das aglomerações as quais, nesta, época alcançavam a marca de
13 mil habitantes. Este fato favoreceu o surgimento de favelas principalmente no bairro de
Santa Tereza, Barroca e Lagoinha. Finalizadas as obras da capital, a prefeitura começa o
processo de erradicar as favelas localizadas nas áreas centrais.
Segundo Guimarães (1992), é importante lembrar que, em 1902, a capital mineira
promove a primeira remoção das famílias pobres da parte nobre da cidade: Belo Horizonte foi
pioneira no país ao se preocupar com acesso do trabalhador à moradia – no Rio, é bom
lembrar, o mesmo problema era tratado como caso de polícia. O problema provocado pela
falta de moradia acarretou um movimento reivindicatório por parte dos trabalhadores. Assim,
o bairro Barro Preto foi definido como área operária, sendo os trabalhadores removidos para
essa região, posteriormente esquecida pelo governo. Em 1909, o local foi responsável pelo
mais alto índice de mortalidade infantil, chamando a atenção das autoridades públicas.
As ações realizadas nos morros de Belo Horizonte em 1920 remontam àquelas
realizadas no Rio de Janeiro no período de 1907: como dito, as moradias precárias e
insalubres preocupavam as autoridades médicas que, com o apoio de engenheiros, formularam
uma campanha sanitário-higienista para estes locais. O intuito era o de remover as pessoas sob
o pretexto de melhorar as condições de habitabilidade dos residentes:
Mais uma vez é possível traçar um paralelo entre Belo Horizonte e Rio de Janeiro. A reforma sanitarista e urbana do Rio de Janeiro veio ao encontro de uma situação real. Havia um alto índice de mortalidade da população, com crises epidêmicas que atingiam, preferencialmente, aos imigrantes estrangeiros, em virtude das condições de insalubridade. (GUIMARÃES, 1991, p. 99).
Em 1930, durante o governo Vargas, marcado por um Estado político e
administrativamente centralizador, houve um intenso crescimento da indústria, o que acelerou
o processo de urbanização no país. Com os altos investimentos nos incipientes parques
industriais, o crescimento econômico, anteriormente vinculado à produção rural, passou por
transformações estruturais. Como consequência, ao meio urbano vinculou-se a imagem de
“terra prometida”. As reformas feitas pelo Estado Varguista começaram com as primeiras
conquistas trabalhistas, com extensão dos direitos sociais e previdenciários àqueles que
23
atendiam às exigências do mercado industrial da época. Em contrapartida, neste mesmo
período os direitos civis e políticos foram reduzidos.
Na década de 1940, o Rio de Janeiro, então capital federal, começa a intervir nas
favelas por meio das políticas públicas. O primeiro recenseamento específico para as favelas
foi realizado em 1948, com o objetivo de diagnosticar o tecido urbano informal e prover
informações que poderiam subsidiar a elaboração de intervenções capazes de diminuir a
distância entre o governo e as classes trabalhadoras. Como resultado, foram implementados,
na época, três parques proletários, concebidos como solução viável para a moradia dos
trabalhadores.
Implicada no modelo de modernização do período populista, a arquitetura moderna
brasileira das décadas de 1940 a 1950 foi marcada, destacadamente, por sua articulação com a
perspectiva desenvolvimentista nacional, no qual o enfrentamento do problema habitacional
nas cidades seria um fato central, manifesto por meio da construção dos primeiros grandes
conjuntos habitacionais. Segundo Araújo e Castriota (2009), ao preconizar soluções baseadas
no desenvolvimento dos grandes núcleos habitacionais multifamiliares em substituição às
unidades isoladas unifamiliares, as políticas de habitação desenvolvidas pelo Estado Novo
estariam pautadas pela produção massiva de habitações, em resposta à demanda social por
moradias, consequência resultante do intenso processo de urbanização e industrialização já
citado.
Em meio à esse cenário, a partir de 1944 até 1951, o Instituto de Aposentadoria e
Pensão dos Industriários (IAPI) iniciava, em Belo Horizonte, sua atuação com a construção do
Conjunto Residencial São Cristóvão/IAPI, durante a gestão de Juscelino Kubitschek na
Prefeitura Municipal, obra que integrava um projeto mais amplo de desenvolvimento urbano.
Além de se constituir como um projeto urbanístico marcante para a modernização da cidade, a
sua construção era tratada como uma importante iniciativa de cunho social e político.
Segundo Araújo e Castriota (2009), no contrato para elaboração do projeto básico, a
Prefeitura doou um terreno de aproximadamente 70.000m², na região da Pedreira Prado
Lopes, entre os Bairros Lagoinha e São Cristóvão, o qual abrigava cerca de 3.000 pessoas
entre imigrantes, operários e mendigos. O terreno, próximo ao Centro da cidade, exigiu a
aplicação de poucos recursos econômicos para a sua urbanização. Composto por nove blocos
residenciais com área de lazer comum além de área verde circundante, o conjunto abrigaria
cerca de 6.000 habitantes em suas 928 unidades (ver foto 3), alocadas aos funcionários da
Prefeitura e associados do IAPI.
24
A inauguração do empreendimento, em 1º de maio de 1948, repercutiu em todo o país
como uma iniciativa importante para a solução do problema habitacional nos grandes centros
urbanos. O bairro popular, como ficou conhecido, possibilitou a redução dos custos da
urbanização da área e da construção das unidades habitacionais e foi considerado o maior
empreendimento dessa natureza no país.
Foto 3: Conjunto IAPI em fase final de construção.
Fonte: site BH Nostalgia, 2010.
No auge da modernização e industrialização do país, ocorridas entre os anos 1950 e
1960, a intensa migração da população em direção ao promissor meio urbano, atrelada à um
ritmo de urbanização excludente, alimenta o fenômeno de expansão de novos assentamentos
informais e o consequente aumento da população favelada. Esta ordem dos eventos
potencializa a concepção da favela como sintoma do desajuste da estrutura socioespacial e
contribui para a dicotomia entre a cidade planejada e a cidade não planejada. Da sua gênese –
o cortiço – à favela, essas ocupações passaram a ser nomeadas como um ponto de resistência
dos excluídos da cidade formal, como uma caixa de ressonância para as reivindicações do
direito às benesses urbanas.
Personagem ainda ausente na análise em curso, a Igreja esteve presente nas favelas
brasileiras, apoiando as lideranças populares, principalmente nas ações de mobilização e
organização comunitária. Concomitantemente aos projetos urbano-desenvolvimentistas, as
cidades do Rio de Janeiro e Belo Horizonte encontravam na Igreja Católica uma contraforça,
isto é, focos organizados de resistência contra as ações remocionistas do Estado. Um exemplo
25
é o da Fundação Leão XIII, no Rio de Janeiro, que trabalhou com o objetivo de fortalecer as
associações de moradores com o intuito de ajudar na luta contra as remoções.
Consequentemente, ressoavam em todo território brasileiro críticas à Igreja e a administração
pública reagia contrariamente ao caráter assistencialista e à defesa dos direitos dos
trabalhadores, pautas comuns às organizações pastorais da época (VALLADARES, 2005).
Em 1960, no Rio de Janeiro, ocorre a maior tentativa do Estado de “solucionar” o
problema das favelas por meio de um gigantesco programa de remoção. Com o apoio do
Banco Nacional da Habitação (BNH), órgão que financiou os conjuntos habitacionais para
onde seriam levados os moradores removidos das favelas, o Estado contribuiu mais uma vez
para alavancar a especulação imobiliária, “revitalizando” e liberando as áreas supostamente
degradadas, agora aptas a ser adquiridas pelas empresas internacionais, recém-chegadas ao
país após a abertura do mercado econômico brasileiro.
Em 1963, segundo Guimarães (1991), havia também em Belo Horizonte um plano do
governo do Estado para remover as favelas e colocar os moradores em conjuntos
habitacionais. Esta seria a primeira vez que o poder público municipal intervém diretamente
nas favelas. Além disso, previa-se a urbanização de algumas favelas em resposta ao
movimento de favelados da capital. Nesta época é criada a Coordenação de Habitação de
Interesse Social (CHISBEL) que atuou até 1983, removendo dez mil famílias. A indenização,
paga em dinheiro, não era suficiente para adquirir uma moradia, o que fez com que estes
moradores fosse morar em outras favelas.
Em 1968, no Rio de Janeiro, o governo Negrão de Lima, seguindo a tendência
política-administrativa em prol da criação dos órgãos de regulação da habitação popular,
institui a Companhia de Desenvolvimento de Comunidade (CODESCO). Distintamente do
modelo mineiro, a experiência carioca tinha como objetivo urbanizar ao invés eliminar as
favelas. Este programa de urbanização das favelas do Rio de Janeiro ocorreu entre 1962-1974.
Segundo Valladares (1978), durante os doze anos de intervenção do programa, o governo
atingiu cerca de 80 favelas do Rio de Janeiro, sendo inicialmente construídos conjuntos
habitacionais de casas e depois apartamentos, distantes dos locais de intervenção.
A proposta de mudança da capital federal para Brasília, além de motivos políticos e
militares, trazia em seu cerne implicações que objetivavam evitar os problemas sociais
ocorridos no Rio de Janeiro com as ocupações irregulares. O planejamento urbano de Brasília
em 1950, como de outras cidades planejadas no final do século XIX, ocasionou o isolamento
das classes trabalhadoras para além dos limites da região central da cidade. Para Maricato
(1997),
26
A segregação entre a cidade oficial e a periferia é mais forte do que qualquer outra cidade brasileira. Brasília está cercada pela urbanização convencional, seja na periferia atrasada, seja nos guetos ricos. O ideário urbanístico modernista, a utopia construída por arquitetos de organizar a cidade separando as diferentes funções, passou a ser incorporado ao urbanismo brasileiro por intermédio de leis de zoneamento e planos diretores, consolidando nas décadas seguintes um conjunto de “idéias fora do lugar” (p. 38).
Entre as décadas de 1970 e 1980, quase metade da população brasileira já residia em
áreas urbanas. As intervenções nos aglomerados subnormais3 ganharam apoio institucional e
se transformaram em projetos sociais que visavam às melhorias das condições de vida da
população. Em 1970, a favela era vista como um local de intenso associativismo devido aos
fortes laços sociais, tanto de vizinhança como familiares. Zaluar e Alvito (2006) relatam que
os projetos de urbanização surgiram nesta época como resposta a luta dos moradores das
favelas. A partir desta data, a favela passa por intervenções contínuas das políticas públicas,
seja por meio de melhorias habitacionais, seja pela repressão da polícia ao tráfico de drogas.
A universidade brasileira neste período privilegia, em sua produção, a favela como
objeto de estudo de sociólogos, antropólogos, cientistas políticos, arquitetos, geógrafos e
outros profissionais da área da saúde pública e do poder público, cada um com abordagens e
métodos diferentes. Como consequência, a favela começa a ser reconhecida como lugar de
necessidade de vários serviços sociais e públicos e a universidade se constitui como
interlocutor, atuando juntamente com o governo em pesquisas para o diagnóstico, criação e
avaliação de novos programas de combate à pobreza, à violência, às drogas etc.
Logo, a sociologia e a antropologia urbana trouxeram para as pesquisas sobre as
favelas uma metodologia de campo própria e um olhar sobre as representações construídas
sobre a favela. Desses primeiros estudos resultaram, também, a diversificação e a
especialização de temas como habitação, comportamento político, associativismo, entre
outros.
Com a produção em larga escala de produções acadêmicas das mais diversas e estudos
técnicos para a intervenção do poder público, a favela, enquanto fenômeno urbano e
socioespacial encontram na agenda dos agentes públicos um espaço de destaque. O Estado
admite e assume que se fazia necessária a promoção de ações urbanísticas, fundiárias e
sociais voltadas para a readequação (ou requalificação) física, judiciária e social de
assentamentos precários nos grandes centros urbanos.
3 Nomenclatura utilizada pelo Ministério das Cidades.
27
Conforme Maricato (2003), a perspectiva dominante de remover a população que vive
em favelas e realocá-los em áreas urbanizadas parecia ser algo mais acertado. Porém, os
números mostraram que era quase impossível viabilizar tal empreendimento devido à enorme
quantidade de pessoas que viviam nestas áreas. Diante disso, após 1980, o Estado brasileiro
abandona o discurso de “remoção” em favor do discurso de “urbanização das favelas”. A
urbanização implica, no mínimo, iluminação, água, esgoto, coleta de lixo, circulação viária e
de pedestres, e eliminação dos riscos de vida.
Uma das principais causas desta decisão foi econômica: urbanizar um espaço pode
custar entre 10% e 50% menos do que providenciar uma nova moradia a uma família. Outro
motivo implicava o respeito à vontade dos próprios moradores em permanecer onde viviam,
sobretudo devido à sua rede de amigos e família, à oferta de trabalho, equipamentos e serviços
urbanos. No entanto, segundo Maricato (2003), nem toda favela podia ser urbanizada, pois
havia assentamentos que ou estavam em áreas de risco ou eram ambientalmente frágeis e até
mesmo os que ocupavam lugares estratégicos para o interesse público e privado. Ainda
segundo a autora (1997), apenas em, 1982, ano das primeiras eleições diretas, verificou-se um
aumento de programas para a promoção da cidadania como, por exemplo, políticas de
orçamento participativo, saneamento básico, regularização fundiária e programas de
urbanização de favelas no Brasil.
Em Belo Horizonte, após intenso debate entre os movimentos sociais e o poder
público4, o Governo Estadual implanta o Programa de Desenvolvimento de Comunidades
(PRODECOM5). Este programa tornou-se um marco na intervenção das favelas, pois o
projeto de urbanização previa a participação dos moradores do local no planejamento e no
sistema de mutirão para a realização das obras. Em 1983, um ano antes de o PRODECOM ser
extinto, por razões políticas, a Prefeitura de Belo Horizonte criou o Programa Municipal de
Regularização das Favelas6 (PROFAVELA), programa pioneiro em todo o Brasil por ter sido
4 Por parte dos movimentos populares participaram ativamente a Pastoral de Favelas e a União dos Trabalhadores da Periferia (UTF) e da parte do poder público houve grande participação dos advogados da autarquia estadual do Planejamento da Região Metropolitana de Belo Horizonte na viabilização de instrumentos para as áreas de favela quando da criação do PROFAVELA, com destaque para Edésio Fernandes, José Rubens Costa e Maurício Impelizzieri (PLAMBEL, 1986). 5 O PRODECOM foi implantado pelo governo estadual com o objetivo de promover a urbanização de favelas e bairros populares nas periferias das cidades: por meio da utilização do trabalho de mutirão provisionavam-se serviços de infraestrutura urbana aos locais escolhidos. 6O PROFAVELA assegura a legalização de áreas faveladas com a criação do zoneamento denominado Setor Especial 4 (SE 4), através do qual se reconhece o direito de permanência dos moradores nas áreas ocupadas, logo possibilitando a sua titulação.
28
a primeira ação pública que reconhecia a especificidade da favela e o direito adquirido de seus
habitantes à moradia e aos bens e serviços básicos.
Segundo Pinheiro (2007), entre 1986 e 1992, o PROFAVELA havia atuado na
urbanização e regularização jurídica de 17 favelas, abrangendo um universo de 62.000
pessoas. Essas áreas foram reconhecidas como parte integrante da cidade informal. Na época,
aproximadamente 300 mil pessoas moravam em favelas na cidade e grande parte delas
encontrava-se em áreas públicas municipais. Na década 1990, o Banco Interamericano de
Desenvolvimento (BID) trazia ao Brasil tanto os fundos quanto a experiência de
acompanhamento dos chamados Programas de Melhoramentos de Bairros, os PMBs,
iniciados no Chile no anos 1980.
Na cidade do Rio de Janeiro, o BID constituiu-se como o principal parceiro do Estado
na elaboração e implementação do Programa Favela-Bairro. Na sua primeira fase, iniciada em
1994, o programa tinha como principal missão integrar e solucionar problemas como
saneamento básico, drenagem, contenção e serviços sociais. Contudo, o Programa Favela-
Bairro apresentava uma particularidade em relação aos programas de melhoramento de vilas e
favelas: a intensificação dos serviços sociais e projetos para a geração de renda na segunda
fase, eixo que contribuiu para a promoção do conceito de integração.
Em 1994, em Belo Horizonte, inicia-se a primeira intervenção do poder público na
Vila Senhor dos Passos, a partir do Programa Alvorada. Este programa era o resultado da
parceria estabelecida entre a Prefeitura Municipal de Belo Horizonte (PBH) e a organização
não governamental (ONG) italiana - Associação Voluntários para o Serviço Internacional
(AVSI) - que colaborou durante a elaboração do Plano Global Específico (PGE) para a área.
Em linhas gerais, o PGE é um diagnóstico das condições estruturais da vila, utilizado para
planejar intervenções na infraestrutura local por meio do asfaltamento das vias, drenagem do
esgoto e da chuva, alargamentos de becos, tornando-a mais adequada às necessidades dos
moradores.
Em 2002, em Belo Horizonte, teve início o Programa Habitar Brasil, parceria entre
Governo Federal e BID cujo escopo era a urbanização da Vila Senhor dos Passos, local de
análise da presente dissertação. Vale destacar que essa experiência em particular se configura
como o campo de análise do presente trabalho, por isso terá seu devido detalhamento durante
o transcorrer do texto. Continuando o levantamento de programas de políticas públicas
referentes aos assentamentos urbanos irregulares chegamos à 2005, ano de implantação do
29
Programa Vila Viva7, instituído pela Prefeitura Municipal de Belo Horizonte junto ao
Aglomerado da Serra. Localizado na região Centro-Sul, a mais valorizada da cidade, o
aglomerado é o maior assentamento urbano da capital, abrigando aproximadamente 46.000
pessoas.
O programa tornou-se o novo modelo de política pública urbana integrada para todo o
Brasil e foi ampliado em 2007 a partir dos recursos recebidos do Programa de Aceleração do
Crescimento (PAC). Devido à pareceria entre Prefeitura Municipal e Governo Federal e aos
novos investimentos decorrentes, o programa expandiu seus projetos básicos para outras
regionais do município: Aglomerado Morro das Pedras (Oeste), Vila Califórnia e Vila São
José (Nordeste), Vila Pedreira Prado Lopes (Noroeste), Taquaril (Leste), Vila CEMIG
(Barreiro), Vila São Tomaz (Pampulha) e Várzea da Palma (Venda Nova).
Pensamos que a estratégia de percorrer as experiências da cidade do Rio de Janeiro em
paralelo às ocorridas na cidade Belo Horizonte contribui para a assimilação de uma trama
histórica mais ampla de aspectos políticos, econômicos, culturais, urbanísticos e sociais que
resultaram no processo de apropriação do espaço e consolidação física e social das favelas do
Brasil. Guardadas as particularidades identificadas no percurso histórico carioca e mineiro, a
favela enquanto fenômeno urbano permanece intensamente integrada à dinâmica urbana
formal.
Para além da visibilidade de sua afirmação política ou de sua determinação
econômica, a favela continua sendo delineada a partir de uma identidade urbana que, se por
um lado é produzida pelos mesmos registros peculiares que codificam as formas de cidade,
por outro é engendrada por uma trama de relações que nem sempre é imediatamente
perceptível e reconhecível. Assim, se desejamos assimilar melhor este ambiente urbano,
devemos por ora retomar a caminhada pelas ruas da Vila Senhor dos Passos, pois a
observação in loco aliada à escuta apurada contribuirá para a identificação dos códigos e
práticas sociais que se desenham neste espaço habitado e, consequentemente, em constante
movimento.
7 As intervenções previstas pelo Programa Vila Viva são múltiplas, destacando-se dentre elas as obras de saneamento, remoção de famílias, construção de unidades habitacionais, erradicação de áreas de risco, reestruturação do sistema viário, implantação de parques e áreas para a prática de esportes e lazer, e urbanização de becos (pavimentação, rede de drenagem, construção de muros de contenção e escadarias).
30
2.2 Caracterização da Vila Senhor dos Passos
Subindo pela Rua Pedro Lessa deixamos o Hospital Odilon Berhens cem metros atrás.
Nesta caminhada buscamos entender as diversidades espaciais, culturais e sociais peculiares à
constituição da Vila Senhor dos Passos. Situada em um dos pontos de maior altitude da região
noroeste de Belo Horizonte, a Rua Padro Lopes é um importante local para observação das
áreas adjacentes da Vila Senhor dos Passos.
Deste ponto, avistamos à direita o bairro da Lagoinha: em destaque, o mercado da
Lagoinha, agora revitalizado e exposto ao intenso trânsito da duplicada Avenida Presidente
Antônio Carlos, via arterial de acesso ao Centro. À esquerda, um maciço rochoso
denominado Pedreira Prado Lopes. De acordo com o órgão de Planejamento da Região
Metropolitana de Belo Horizonte (PLAMBEL), o processo de ocupação do entorno da região
Lagoinha foi motivado tanto pela existência de uma pedreira (na área da atual favela Pedreira
Prado Lopes), que fornecia matéria prima para a construção da cidade, quanto pelo fato de
esta ser uma área de abastecimento alimentar (1986).
A Vila teve a mesma origem de muitos aglomerados em Belo Horizonte: como dito
anteriormente, a ocupação das áreas não urbanizadas deveu-se ao não planejamento de
moradias para os trabalhadores que construíam a capital, e também à fuga destes dos custos
elevados de aluguel em bairros legalizados. Outro motivo que incentivou esta ocupação foi
sua proximidade tanto do centro da cidade quanto dos bairros Lagoinha e Carlos Prates, antiga
colônia agrícola. (UFMG, 2000). Podemos verificar a localização da Vila Senhor dos Passos
no mapa de Belo Horizonte. (ver figura 1)
32
A Rua Pedro Lessa (ver foto 4) funciona como divisa entre a Vila Senhor dos Passos e
a Pedreira Prados Lopes. Seguindo-se em frente chega-se ao bairro Santo André.
Foto 4: Rua Pedro Lessa, divisa entre a Pedreira Prado Lopes e a Vila Senhor dos Passos.
Fonte: Google Mapas, 2011.
Outra via que compõe a demarcação da área de 123.691,98 m² que compõe a Vila é a
Rua Além Paraíba, acesso estratégico ao centro histórico e a instalação de equipamentos
públicos urbanos importantes como o Terminal Rodoviário, estações de trem e metrô da
cidade. A Vila, contudo, não possui uma área comercial consolidada e autossuficiente: as
principais aquisições de produtos alimentares, artigos de vestuário e outros produtos são
efetuados no centro da cidade. Apesar disso, na Rua Evaristo da Veiga, que por atravessar a
vila funciona como uma via estratégica para a mobilidade dos 3.800 habitantes (URBEL,
2000), existe uma limitada área comercial de artigos de subsistência.
Situada na área baixa da Vila, a Rua Fagundes Varella constitui outra das principais
via de acesso à localidade. Segundo informações dos moradores mais antigos, no início do
século XX esta era a única via de acesso à moradia da família Mata Machado, proprietária da
fazenda doada à Igreja Católica. Esta, por sua vez, repassou o terreno às famílias pobres: a
área, formada por mata aberta, oferecia facilidade para ocupação. Os primeiros habitantes da
Vila datam de 1914 e eram, em sua maioria, operários que vieram do interior do Estado de
Minas Gerais com a esperança de conseguir trabalho e melhores condições de vida (URBEL,
2000).
33
Um importante recurso de trânsito interno para pedestres é o Beco Ibiá (ver foto 6).
Segundo informações resgatadas pela memória coletiva dos moradores, o beco foi construído
por iniciativa da própria comunidade que, descrente do poder público, organizou-se para
promover melhorias de infraestrutura básica para o local como, por exemplo, manutenção do
pavimento e implementação de degraus no trecho mais íngreme:
Foto 5: Escadaria do Beco Ibiá Fonte: Fonte: URBEL, 2000.
Segundo os registros históricos existem duas origens para o nome da Vila: a primeira
versão diz que o espaço, por ser ponto de frequentes conflitos entre mulheres, foi nomeado
como “Buraco Quente”. Outra versão está explicitada no seguinte depoimento de um
morador, citado no Plano Integrado da Vila Senhor dos Passos, elaborado pela Prefeitura
Municipal de Belo Horizonte – PBH/URBEL (2000):
Aqui era lugar ermo. Na parte de cima não tinha caminho, nem luz, a gente usava lamparina. Água, só tinha um torneirão, aí a gente tinha que levantar 3 horas da madrugada, levar bacia de roupa, crianças e marmita de comida, porque a gente “só” era muito triste. Os homens se encontravam no final da tarde e bebiam muita pinga, batiam muito nas mulheres e por causa do capinzal os bandidos faziam deste lugar esconderijo. A polícia estava sempre aqui, por isso esta favela recebeu o nome de “BURACO QUENTE”. (URBEL, 2000, p.28-30).
Em meados de 1940 a Vila era pouco adensada (Figura 2). Contudo, na década de
1950, houve um crescimento significativo de edificações na Vila:
35
Tal fato estaria possivelmente relacionado à implementação da Avenida Presidente
Antônio Carlos bem como à construção do Conjunto Habitacional do Instituto de
Aposentadoria e Pensões dos Industriários (IAPI) nas redondezas. No entanto, nesta mesma
época, a estrutura da Vila e as condições de vida eram muito precárias. A infraestrutura
urbana resumia-se a ruas, de terra, esburacadas, caminhos feitos por trilhas, becos estreitos e
esgoto a céu aberto. Desprovidos de abastecimento de água e energia elétrica, os moradores
utilizavam poços para conseguir água e ligações clandestinas para o acesso à energia elétrica.
Apenas em 1956 surgiram as primeiras melhorias por meio da Sociedade Pró-
Melhoramento, presidida por Francisco Nascimento. Neste mesmo ano, ele também fundou,
na Pedreira Prado Lopes (PPL), a União dos Trabalhadores Favelados (UTF) de Belo
Horizonte. A instalação da rede de energia elétrica foi realizada na década de 1970 e na
década seguinte a rede de água foi oferecida aos moradores, apesar da Vila Senhor dos Passos
localizar-se muito próxima ao centro da cidade. Curiosamente, a vila só passou a ter este
nome a partir da década de 1980 com a construção da capela Nosso Senhor dos Passos,
pertencente à Paróquia Nossa Senhora da Conceição, na Lagoinha.
Mas foi somente a partir de 1990 que estes serviços chegaram à maioria dos
moradores da Vila. No final desta década também foi ofertado o serviço de rede de esgoto.
Segundo dados da URBEL (2000), no início da década de 1990 observaram-se tanto o
adensamento da ocupação quanto a consequente diminuição da extensão da área de vegetação
original (Figura 3).
Durante nosso percurso pelas ruas e becos da Vila constatamos que, como todo espaço
habitado, a ocupação espacial-geográfica reflete a uma progressão cronológica desta: novas
ocupações vieram precariamente adensar a área sem infraestrutura. Em outras palavras, às
moradias já precariamente construídas acresceram-se outras, nos terrenos vazios entre as
habitações.
37
Contudo, a partir de 1997, constata-se um processo de diminuição do adensamento das
ocupações na Vila devido às intervenções urbanas realizadas pela URBEL, que redundavam
na melhoria parcial do sistema viário (ver foto 6):
Foto 6: Rua Ibiá após abertura de via pelo Programa Alvorada.
Fonte: URBEL, 2000.
Quanto à caracterização da população, a Vila, em síntese, conta com aproximadamente
1060 famílias, segundo pesquisa realizada pela URBEL (2000). Cerca de 90% de sua área
está ocupada por casas, não restando espaço para áreas de lazer. Cerca de 73% destes
domicílios não possui titularidade de suas casas. A distribuição da população entre os gêneros
é relativamente balanceada: 53% dos moradores são do sexo feminino e 47% do sexo
masculino. Das famílias, 57,2% são chefiadas por mulheres, quanto à ocupação da população
em idade ativa, observamos a seguinte situação: 22,7% estão formalmente empregados; 9,9%
desempregados; 9,1% aposentados; 8,2% são autônomos; 28,3% são estudantes; e 18,5%
realizam trabalhos informais.
Em relação à educação, quase 40% dos moradores possui da 1ª até a 4ª série do Ensino
Fundamental; 29% estudou de 5ª até a 8ª série; 14% ainda não se encontram em idade escolar;
e o restante divide-se entre analfabetos (6%) e aqueles com 2º grau / Ensino Médio completo
(10%) e nível superior (1%). A renda da maioria dos moradores (59%) varia entre 1 e 3
salários mínimos (SM); 2% possuem renda superior à 3 SM; significativos 38% não possuem
renda. Em relação à idade, o levantamento mostra que: 7,4% têm idade entre 0 a 5 anos;
38
15,1% entre 6 e 14 anos; 7,9% entre 15 e 18 anos; 33% são adultos na faixa entre 19 e 40
anos; 21,7% têm entre 41 e 65 anos; 7,6% têm mais de 66 anos (URBEL, 2000).
Tal padrão gerou um complexo aglomerado de moradias precárias e insalubres que se
consolidaram com o tempo e acabaram por definir uma malha viária diversificada: vielas de
acesso às moradias, vielas de passagem de pedestres, vias de tráfego local, vias de ligação
com os bairros vizinhos etc. Notadamente, a reconfiguração urbana da localidade é marcada
por intervenções de dois agentes distintos, a saber: a comunidade, enquanto coletivo
organizado, agrupamento de idéias transformado em pequenos mutirões, iniciativa em
pequena escala, mas que remete ao poder de apropriação da comunidade em seu espaço
constituído; e o poder público, que possui um histórico peculiar na Vila Senhor dos Passos,
formado por um conjunto de intervenções que merece menção nas linhas seguintes.
O projeto piloto de intervenção na Vila Senhor dos Passos foi iniciado em 1994, com a
elaboração de um plano urbanístico. Nessa época, o Programa Alvorada era responsável pela
implementação de tal projeto. O objetivo principal do programa era promover a melhoria das
condições de vida dos moradores das vilas e favelas. Para tanto o programa construiu 32
unidades habitacionais na Vila Senhor dos Passos. Na parte mais baixa da Vila várias
intervenções foram realizadas por este programa entre 1994 e 1997. Assim, a Vila Senhor dos
Passos, um fundo de vale irregularmente ocupado, teve seus acessos alargados bem como
assistiu à criação de outros novos, à implantação de drenagem pluvial e à construção de
quatro prédios para o reassentamento das famílais localizadas do local. Devido a essas
intervenções, muitas de suas vielas foram asfaltadas ou possuem calçamento (URBEL, 2000).
A implantação do Programa Alvorada só foi possível devido ao convênio de
cooperação internacional, técnica e financeira, entre o Ministério Italiano e o governo
Brasileiro, representado pelo governo do Estado de Minas Gerais em parceria com o
munícipio e outras instituições como a Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
(PUC-MINAS), tal convênio, como já dito, foi operado por uma ONG chamada (AVSI).
Previamente à execução das obras, alguns procedimentos metodológicos foram
seguidos, como a realização de pesquisa censitária na Vila abrangendo: (1) aspectos sócio-
econômicos e organizativos: dados relacionados aos grupos familiares; composição das
famílias; grau de escolaridade dos membros; renda mensal; profissões e/ou ocupações; (2)
aspectos físicos-ambientais (caracterização das moradias; número de cômodos, instalações
sanitárias, sistema de esgoto e de água potável adotados; contagem de domicílios;
informações sobre o sistema viário e infra-estrutura existente); e (3) aspectos jurídico-
fundiários (coleta de informações sobre a propriedade dos lotes e domicílios).
39
Entre os anos de 2002 e 2008 o Programa Habitar Brasil/BID (HBB) é implantado no
local. O HBB é um programa de urbanização de vilas e favelas concebido pelo Ministério das
Cidades e financiado com recursos do Orçamento Geral da União e do Banco Interamericano
de Desenvolvimento (BID), bem como com contrapartida do Município e parceria da Caixa
Econômica Federal. O objetivo principal do programa é a elevação dos padrões de qualidade
de vida da população residente por meio de intervenções em assentamentos precários como
favelas, mocambos, palafitas, entre outros, localizados em todas as regiões metropolitanas,
capitais e aglomerações urbanas. O programa tem como característica a incorporação de uma
equipe multidisciplinar na atuação de diversos projetos urbanístico-ambientais, sociais e
fundiários (PBH, 2000a).
O programa foi desenvolvido dentro de três eixos básicos. O primeiro, o Trabalho de
Participação Comunitária, primava pelas ações que promoviam a mobilização social, ações
de implantação e acompanhamento na construção das unidades habitacionais, urbanização dos
espaços públicos, educação sanitária e ambiental, e geração de trabalho e renda. O eixo de
Educação Sanitária e Ambiental envolvia estudos geológicos, urbanísticos e viários, e
sanitários do programa. Caracterizou-se pela criação de campanhas educativas, destino do
lixo, coleta seletiva, oficina de reciclagem entre outros. O terceiro e último eixo Geração de
Trabalho e Renda, foi implantado por meio de cursos e oficinas de qualificação profissional e
pela criação de escolinha de esporte e lazer para crianças e adolescentes do local a ser
urbanizado.
Em destaque, o programa tinha como um dos objetivos o reassentamento de moradias
no mesmo local, o que possibilitou o acompanhamento dos moradores na construção dos
conjuntos habitacionais. Antes de ser levado a cabo, realizou-se uma assembléia geral com a
comunidade para apresentação do projeto. A partir dos pontos que mais satisfizeram a
comunidade, elaborou-se o projeto definitivo que culminou com a escolha dos prédios ao
invés de casas para os moradores.
40
No período de 2004 a 2008, as famílias atendidas pelo Programa Habitar Brasil-BID
(HBB) mudaram para os conjuntos habitacionais (ver foto 7). Estes conjuntos construídos
somam um total de 9 blocos com 8 apartamentos cada, totalizando 72 unidades. Os
apartamentos possuem 43m² distribuídos em dois quartos, sala e cozinha conjugada à área de
serviço. Estes cômodos são entregues com piso pronto e azulejos assentados até 1,5m na
parede. Os outros cômodos são entregues sem reboco e sem piso. Por isso mesmo, o morador,
antes de se transferir para a nova moradia, precisa fazer melhorias por conta própria.
Figura 7: Perspectiva da área dos conjuntos habitacionais do HBB Fonte: Site Google, 2011.
A expansão dos programas habitacionais para as classes populares foi sustentada pelo
avanço das políticas de remoção e reassentamento de famílias, principalmente aquelas
localizadas em áreas de risco geológico8 e em áreas de destinadas à reestruturação urbanística.
Essas famílias, quando afetadas por intervenções do poder público, tendem a ser transferidas
para apartamentos, o que propicia mudanças em seu modo de vida. Para Bourdieu (1997), os
conjuntos habitacionais, bem como as escolas, são espaços sociais nos quais se produzem os
conflitos na sociedade contemporânea, devido à multiplicidade de pessoas e,
consequentemente, de seus díspares e por vezes conflitantes modos de ser e de agir.
8 Moradias situadas em áreas propícias a desmoronamento de encostas ou suscetíveis a inundação, devido a ocupação de áreas irregulares.
41
O conjunto habitacional Nova Era, por exemplo, o primeiro a ser construído pelo
HBB, possui 2 blocos com 8 apartamentos cada, totalizando 16 famílias. Diferentemente dos
outros conjuntos, construídos mais próximos à Vila Senhor dos Passos, este se localiza no
entorno, isto é, na divisa com a Pedreira Prado Lopes (ver foto 8):
Figura 8: À esquerda, o Conjunto Nova Esperança,construído em 2007. À direita, o Conjunto Nova Era, construído em 2004. Fonte: URBEL, 2000.
A maioria dos conjuntos habitacionais9 foi construída na parte alta da vila. Desta forma,
o acesso dos moradores passou a ser feito pela parte de cima, não sendo necessário percorrer a
entrada principal da vila, localizada na parte mais baixa.
9 Tais como Novo Horizonte, Morada Nova e Nova Esperança. O outro conjunto Vila Nova foi construído na parte baixa da Vila.
42
3 - INTERSEÇÃO TEÓRICA: SOCIABILIDADE, ESTIGMA E IDENTIDADE
Fértil campo de possibilidades de estudo, as políticas públicas de urbanização de
favelas têm sido objeto de estudo a partir das mais variadas abordagens e dos mais distintos
recortes. Entretanto, qualquer que seja a perspectiva adotada para sua análise, é consensual o
entendimento de que sua célula unitária – a moradia – é um espaço de interseção de diferentes
saberes. Dentre estes, reservamos nossa atenção para a análise da ação humana capaz de
transformar o espaço físico do conjunto habitacional em espaço habitado por meio da prática
social cotidiana de seus moradores.
No campo da avaliação das consequências sociais geradas pela urbanização de favelas,
cabe aos profissionais das ciências humanas o estudo e o acompanhamento das alterações
ocorridas na vida cotidiana das populações-alvo destas intervenções. Neste recorte, merece
destaque a análise de impacto nos modos de vida, considerados como conjunto de
comportamento de um grupo, tais como: as contrapartidas vinculadas ao acesso à moradia
digna, diretamente associada à infraestrutura urbana e a regularização fundiária; a
recomposição sanitário-ambiental; a oferta de equipamentos sociais e culturais à comunidade;
a manutenção ou acesso à oportunidade de emprego e geração de renda, dentre outros eixos
secundários de intervenção.
Autor de grande importância para a sociologia, em particular para a microssociologia,
Georg Simmel (2004) contribuiu para uma leitura do espaço urbano enquanto lugar de
interações sociais. Vale ressaltar que o desconhecimento de suas obras no período de
estruturação das Ciências Sociais no século XX não reduziu sua importância para pesquisas
na área da sociologia urbana, em especial o estudo das interações sociais na vida cotidiana.
Pelo exposto, justificam-se as linhas seguintes, dedicadas a explanação de seus conceitos, uma
vez que estes foram aplicados no estudo do processo de reassentamento de famílias em
conjuntos habitacionais, tendo como foco a análise das interações de uma dada população em
uma nova forma de morar.
Para Georg Simmel (2006), o conjunto das interações entre os indivíduos compõe a
sociedade, sendo esta o lócus, cotidianamente constituído, por meio de uma complexa rede de
relações sociais, tecida por processos microssociais. O elemento principal de análise para o
autor não é a dicotomia indivíduo e sociedade, mas a interação que ocorre entre estes dois
43
extremos, isto é, a produção da sociedade pelos indivíduos e a adequação permanente desses à
sociedade por meio dos vínculos sociais.
Um dos principais conceitos formulados pelo autor é o de sociabilidade, caracterizado
pelo prazer mútuo experimentado pelos indivíduos por meio da interação. A sociabilidade,
enquanto categoria sociológica, exime-se de qualquer conteúdo pré-definido, sendo a favor de
uma igualdade de posições sociais. Para que esta ocorra, é necessário separar as características
pessoais e objetivas que possam vir a interferir nessa dinâmica, como por exemplo a riqueza,
a posição social, as experiências individuais, dentre outros determinantes. Nesse sentido,
pode-se dizer que a sociabilidade possui um caráter democrático, pois não há nessa relação a
predominância de caracteres individuais. No entanto, segundo o autor, ela necessita se
restringir ao mesmo estrato social, “já que, muitas vezes, uma sociabilidade entre membros de
diferentes estratos sociais se torna algo contraditório e constrangedor” (SIMMEL, 2006, p.
69), que demandaria dos envolvidos na sociação uma superação de valores sociais e culturais.
Heitor Frúgoli (2007), em seu livro “Sociabilidade Urbana”, apresenta uma releitura
sobre os principais conceitos de Simmel. Sua base de análise vincula-se às contribuições da
antropologia, via prática etnográfica, já que esta técnica lida com pessoas por meio da própria
interação bem como descreve as regras e princípios constitutivos das relações cotidianas. Para
este autor, o conceito de sociabilidade criado no campo da sociologia tem como proposição
entender a seguinte questão: “como a sociedade é possível?” (FRÚGOLI, 2007, p.8). É
importante reforçar que Simmel evita pensar a constituição da sociedade como um conjunto
de indivíduos: para ele, a sociedade é construída por meio das relações recíprocas entre os
mesmos.
A sociabilidade em Frúgoli (2007) é um tipo ideal, uma forma imaginada de sociação
pura, na qual o indivíduo que participa da interação só se vale dos valores pessoais se o outro
o possuir. Convergente com os preceitos de Simmel, o autor defende a tese que tais relações
se estabelecem entre iguais:
As formas de sociabilidade (...) permitem uma leitura na direção da formação de círculos “intraclassistas”, implícitos na idéia de que tais relações só poderiam efetivamente transcorrer no interior de um estrato ou segmento social, tornando-se insuportáveis ou dolorosas quando vividas entre membros de classes distintas, já que pressupõem um mínimo de valores (ou "capital cultural") compartilhados. (FRÚGOLI, 2007, p. 13).
Frúgoli (2007) estrutura sua leitura a partir de duas perspectivas: a primeira concebe a
sociabilidade como construção temporária entre indivíduos estranhos ou de condições sociais
44
diferentes que tem como objetivo principal a interação: como exemplo, a interação entre
diferentes classes nos shopping centers. A segunda perspectiva incide na sociabilidade entre
iguais, citada anteriormente por Simmel, procedente de locais peculiares em função de
determinadas homogeneidades. Nesses lugares ocorreria uma importante articulação entre
sociabilidade e vizinhança. Diferentemente da primeira leitura, na qual os indivíduos
interagem entre estranhos, neste segundo estudo, as pessoas se conhecem e interagem
regularmente.
Robert Park (1976), ex-aluno de Simmel e o mais ilustre representante da Escola de
Chicago, no texto “A cidade: sugestões para a investigação do comportamento humano no
meio urbano” aborda a cidade como um lugar que vai além da aglomeração de indivíduos,
justamente por se constituir como um lugar de socialização desses mesmos indivíduos por
meio de seus hábitos e costumes. O autor reuniu e propagou as idéias de Simmel ao enfatizar
os estudos da vida coletiva concreta.
Tal enfoque da sociabilidade se mostrou favorável para esta pesquisa por se tratar de
um estudo apropriado ao tema de uma comunidade que, como esboçado, possui características
sociais homogêneas e passou por um processo de urbanização por meio da intervenção do
poder público, culminando com o reassentamento de parte de seus moradores em conjuntos
habitacionais. Diante disso, buscou-se investigar a sociabilidade entre os moradores dos
conjuntos, e entre estes e aqueles que permaneceram em seu entorno. Almejou-se investigar
como as relações cotidianas são produzidas e preservadas nesses locais.
A sociabilidade é um jogo no qual se “faz de conta” que são todos iguais e, ao mesmo tempo, se faz de conta que cada um é reverenciado em particular. E “fazer de conta” não é mentira mais do que o jogo ou a arte são mentiras devido ao seu desvio da realidade. (SIMMEL, 1983, p. 173).
Este jogo de “faz de conta” também pode ser entendido como jogo de cena: segundo
Frúgoli (2007), mesmo existindo, as diferenças sociais entre o grupo não são levadas em
consideração. A ligação determinada por Simmel entre sociabilidade e cidade moderna
alcança contornos mais concretos com a Escola de Chicago, a partir de conceitos como
vizinhança, interação, socialização e associação, sendo a localização espacial mais delimitada.
Alguns estudos-chave, como o de Robert Park (1976) sobre as relações de vizinhança, são de
grande relevância para o estudo das relações sociais no meio urbano. Tanto que inspirou
muitos outros estudos sobre diferentes espaços na cidade de Chicago.
Park (1976) trabalha a interlocução entre a relação de vizinhança e dimensão espacial.
Nesta interface, a cidade não é apenas um agregado de “pequenos mundos”, mas um espaço
45
social economicamente ligado. Cada trecho da cidade é visto de modo separado, uma
localidade com sentimentos e tradições semelhantes denominada vizinhança. Segundo o
autor, “proximidade e contato entre vizinhos são as bases para a mais simples e elementar
forma de associação com que lidamos na organização da vida citadina” (PARK, 1976, p.31).
É a partir da vizinhança que os assuntos de interesse e de associações produzem um
sentimento local.
Em Park (1976), a vizinhança é considerada uma forma de organização social e
política, a menor unidade local de análise: para que ela exista não é necessário nenhum
arranjo social formal. De fato, sobre as intensas transformações vividas nas relações de
vizinhança na cidade, o autor aponta que “sob as complexas influências da vida na cidade, o
que se pode chamar de sentimento normal de vizinhança tem sofrido muitas mudanças
curiosas e interessantes, tendo produzido muitos tipos inusitados de comunidades locais” (p.
32). A vizinhança, portanto, passa por dois processos distintos: o primeiro diz respeito à sua
construção e o segundo à sua dissociação.
Na vida urbana, a vizinhança perde parte de seu significado na medida em que a
mobilidade dos indivíduos aumenta e as tecnologias dos meios de comunicação substituem
parte das interações face a face entre os indivíduos. Ademais, essa constante demanda por
adequação aos vários ambientes favorece a atitude que Simmel (1979) chama de reserva.
Park (1976) sustentou que o isolamento de um grupo ocorre devido a sua capacidade de
resguardar os laços sociais: o isolamento das favelas por parte dos outros bairros da cidade,
por exemplo, contribuiu para que os seus laços identitários e os seus modos de vida fossem
preservados:
O isolamento das colônias raciais e de imigrantes nos assim chamados guetos e as áreas de segregação populacional tendem a preservar e, onde exista preconceito racial, a intensificar a intimidade e solidariedade dos grupos locais e de vizinhança. Onde indivíduos de mesma raça ou da mesma vocação vivem juntos em grupos segregados, o sentimento de vizinhança tende a se fundir com antagonismos de raça e interesses de classe. (PARK, 1976, p. 34).
Para o entendimento do nosso tema, perpassado pelas transformações ocorridas nos
grandes centros urbanos em relação à vizinhança, será de considerável valia um breve estudo
dos principais conceitos de Simmel (1979) em relação à cidade. Assim, iniciaremos com uma
questão muito presente nas análises de Simmel (1979): a metrópole como local de intensas
mudanças e as consequências destas no comportamento social dos indivíduos em grupo.
46
O texto clássico de Simmel (1979) “A metrópole e a vida mental” é fundamental para
aqueles que desejam entender aspectos aparentemente incompreensíveis da metrópole e dos
modos de vida produzidos pelos indivíduos nos grandes centros urbanos. Nesta análise,
Simmel aborda o antagonismo que, segundo Vianna (1999), pode ser chamado de “tipos
soberanos de personalidade10“ (VIANNA, 1999, p.112), percebidos entre a vida urbana na
metrópole e a vida rural nas pequenas cidades. O tipo urbano para Simmel (1976) “é uma
criatura que procede a diferenciações” (p. 12), sendo que a mente humana, excitada por várias
sensações, demanda do indivíduo uma consciência diferente do que a vida rural suscita
O homem ganhou maior liberdade em relação às tradições, ao Estado, à religião, à
moral e à economia e, em função da divisão do trabalho, tornou-se mais especializado e,
consequentemente, mais dependente das atividades complementares dos outros. Os indivíduos
nas grandes cidades são levados a adotar uma série de comportamentos superficiais, evitando
o exagero de estímulos nervosos por meio de atitudes que Simmel explica com os conceitos
de reserva e de atitude blasé.
Para Simmel, é impossível responder a tantos estímulos nervosos ao qual o homem
urbano é exposto. Esta impossibilidade justificaria a recorrente reserva de comportamento na
vida coletiva: ao passar por tantos estímulos, é esperado que os indivíduos se tornem mais
desconfiados, gerando um retraimento no seu comportamento. Outro conceito característico
de sua análise é a atitude blasé que, segundo o autor, define-se como a intensificação dos
estímulos nervosos do indivíduo ao ponto máximo, de modo que estes chegam a cessar. Essa
exacerbação dos estímulos, segundo Simmel (1979), gera “a incapacidade de reagir a novas
sensações com a energia apropriada” (p. 14), ou seja, o sujeito fica indiferente às
circunstâncias cotidianas: crianças fazendo uso de drogas em becos e vielas tornam-se um fato
banalizado.
A postura indiferente dos indivíduos para com fenômenos da cidade torna-se uma
forma de preservação frente aos inúmeros estímulos nervosos. É também nas cidades que se
desenvolvem novas maneiras de viver. Nos conjuntos habitacionais, os moradores
desenvolvem uma interação singular na qual o conflito faz parte da dinâmica organizacional:
para tanto, exige-se a redução dos interesses individuais e a superação das diferenças para a
convivência no espaço público ou no privado.
10 Aqueles “que visam determinar o modo de vida de dentro, ao invés de receber a forma geral e precisamente esquematizada de fora”. (VIANNA, 1999, p. 120).
47
3.1 Sociabilidade no espaço público e privado
O interesse das Ciências Sociais pelo estudo do espaço público e do espaço privado
intensificou-se a partir do momento em que tais noções passaram a compor a pauta dos
estudos dos fenômenos urbanos e está vinculado ao incremento das cidades. De modo
preliminar, cabe o resgate das reflexões pretéritas que subsidiarão a compreensão da realidade
urbana atual. Tal percurso investigativo passa pela demarcação dicotômica de público e
privado, segue pelo equilíbrio da esfera pública sustentado por códigos de credibilidade,
transita entre a exacerbada exposição da personalidade na esfera pública até chegar à
reconfiguração desses conceitos com o advento do capitalismo neoliberal e suas implicações
no cenário brasileiro.
Retrocedendo à discussão clássica proposta pela cientista política Hannah Arendt
(2003), o termo “público” aborda o espaço comum aos indivíduos, à coletividade, local no
qual todos que transitam são considerados iguais, por exemplo, praças, ruas, parques etc. Em
contraponto, o termo “privado” se refere ao individual, às esferas particulares, como a casa, o
núcleo familiar, as relações sociais.
A idéia de esfera pública surge na polis grega: a ágora constituiu-se como o espaço no
qual se buscava, por meio do debate, tanto o bem comum quanto o reconhecimento. Desse
modo, a vida pública se associava à vida política, às discussões sobre as ações políticas, a
saber: leis, tratados, guerras e paz. Imbuído pelo princípio democrático da época, o homem
grego, no espaço público, estava cercado por iguais. Em sua análise, Hannah Arendt (2003)
considera o espaço público como um local de grande valor na Grécia Antiga, em detrimento
ao privado que se contrapunha ao campo da sociabilidade.
Já a esfera privada, oikos, destinava-se às mulheres, filhos e escravos, e era vista como
lócus das relações de parentesco, espaço no qual o chefe de família exercia o poder despótico
em uma relação social desigual. Esta esfera estava condicionada aos interesses da vida
pública. Contudo, salienta a autora,
O que hoje chamamos de privado é um círculo de intimidade cujos primórdios podemos encontrar nos últimos períodos da civilização romana, embora dificilmente em qualquer período da antiguidade grega, mas cujas peculiares multiformidades e variedade eram certamente desconhecidas de qualquer período anterior à era moderna (ARENDT, 1983, p.48).
48
Para Arendt (1983), enquanto na polis grega a separação e diferenciação entre público
e privado era nítida, atualmente isso não é mais possível. A sociedade moderna nos reserva
uma perda de significado, tanto da esfera pública quanto da privada e
O motivo pela qual esse fenômeno é tão extremo é que a sociedade de massa não apenas destrói a esfera pública e a esfera privada: priva ainda os homens não só do lugar no mundo, mas também do seu lar privado, no qual antes se sentiam resguardados contra o mundo e onde, de qualquer forma, até mesmo os que eram excluídos do mundo podiam encontrar-lhe o substituto no calor do lar na limitada realidade da vida em família. (ARENDT, 2003, p.68)
No hiato entre a esfera pública e a esfera privada nasce a esfera social, considerada um
híbrido, o que a torna um espaço concebido nem como público e nem como privado.
Influenciado por Hannah Arendt, o sociólogo e historiador Richard Sennet (1998) entende o
espaço urbano como um lugar de experiências em meio à diversidade e que, por isto, necessita
de um código de conduta socialmente construído para regular a convivência de estranhos, o
que o autor denominou de “código de credibilidade”. O código permite o desempenho de
papéis sociais para convivência com outrem como forma de preservação da intimidade da
vida privada e distinção da vida pública.
Segundo Sennet (1998), a esfera pública é o local de manifestação dos traços da
personalidade do indivíduo: em cada atitude, ação ou sensação pode-se perceber elementos
pessoais na percepção da alteridade. A introdução de elementos da personalidade amplia e
equilibra a ordem social na vida pública. Para Sennet (1998), a intensa coação exercida sobre
o indivíduo para exposição de sua personalidade na esfera pública produziu, como
consequência, um ambiente de intensa intimidade denominado de “sociedade intimista” 11.
Aplicada à realidade brasileira, observa-se um híbrido entre os conceitos de público e
privado. Conforme o antropólogo brasileiro Roberto da Matta (1997), em sua obra A casa &
rua, “o espaço se confunde com a própria ordem social de modo que, sem entender a
sociedade com suas redes de relações sociais e valores, não se pode interpretar como o espaço
é concebido” (MATTA, 1997, p.30). Nessa obra, o autor delineia um perfil da sociedade
brasileira apontada como sistema social pessoalizado e de relações particularizadas. O espaço
privado seria o mundo da casa e o espaço público seria o mundo da rua, apontado em nossa
sociedade como uma relação de tensão entre valores, seja de contradição ou de complemento.
O espaço público, segundo Hannah Arendt (2003), torna-se ponto de negociação por meio da
interação social, espaço pelo qual transitam diversas classes sociais. Para Matta (1997), “nas 11 Sociedade tipicamente caracterizada pela confusão entre vida pública e privada, em que os assuntos pessoais são levados à público, tornando íntimo o domínio público.
49
cidades ocidentais, as praças e ruas servem de foco para a relação estrutural entre o indivíduo
e o “povo”, a “massa”, a coletividade que lhe é oposta e a contempla” (MATTA, 1997, p.43).
Por sua vez, para Andrade, Jayme e Almeida (2009), na sociedade contemporânea
brasileira a apropriação dos espaços urbanos como praças, parques, ruas e shopping centers se
diferencia conforme as classes sociais, e isto transforma a concepção de público e de privado.
A classe alta, por exemplo, opta pelo cuidado dos espaços públicos próximos aos seus locais
de moradia por meio de seguranças particulares e representação política para preservação do
local. À classe baixa resta a frequência aos espaços públicos, muitas vezes deteriorados em
virtude de seu esquecimento pelo poder local, o que os torna locais propícios para usos
ilícitos.
O desenvolvimento das cidades proporcionou aos seus habitantes novos hábitos e
costumes baseados em outras “necessidades” de consumo. Atraídos por uma lógica
capitalista, os habitantes adotam um modelo de relacionamento permeado por um
individualismo exacerbado. Por outro lado, o predomínio, nos espaços urbanos, da vida
coletiva entre iguais gera nas cidades um processo segregacionista. O progressivo
investimento do poder público para a reestruturação das favelas contribuiu para uma
redefinição do que é público e privado.
Conforme Lopes e Pulhez (2008), os programas de reestruturação urbanística de vilas
e favelas tanto exemplificam uma mudança na concepção de público e privado quanto provém
novas sociabilidades. Dito de outro modo, as transformações ocorridas no espaço urbano têm
ocasionado nas cidades novas sociabilidades, novas formas de se relacionar com o outro, a
partir do processo de apropriação do espaço habitado. Por esta perspectiva, o modo de vida e
a forma de apropriação dos espaços são determinantes para as identidades sociais que serão
estudadas.
3.2 Identidade e estigma: efeitos do lugar de moradia
Nesta seção abordaremos o conceito de identidade, uma vez que este acrescenta
elementos necessários para elucidar a maneira de adequação e de apropriação, pelo indivíduo,
de um novo e diferente modo de habitar como o oferecido nos conjuntos habitacionais. Como
dito, a apropriação do espaço reflete os modos de vida de um dado grupo, os hábitos e
costumes arraigados devido às condições sociais, econômicas e culturais do indivíduo, e traz
50
implicações diretas para a identidade individual e coletiva. A identidade é então percebida
como ponto crucial da realidade social e, como tal, possui uma relação dialógica com a
sociedade.
A conduta individual e o direcionamento da vida cotidiana dependem dos tipos de
identidade que são estabelecidas em cada contexto social. Segundo Berger e Luckmann, “isto
significa que os tipos de identidade podem ser observados na vida cotidiana” (2004, p. 229),
sendo que as identidades podem ser analisadas e averiguadas por meio do conhecimento
empírico e teórico. Considerando que os tipos sociais são resultados da realidade social
concreta, pois estes são interpretados segundo o contexto em que o indivíduo está inserido, o
estudo em questão privilegiou a observação da vida cotidiana dos moradores, a partir da
transferência de sua moradia (casa) para as unidades habitacionais (apartamentos).
Entrelaçadas à vivência cotidiana dos moradores e à identidade local dos mesmos
temos um conjunto de representações caracterizado pelos modos de vida de um coletivo em
transição. Como observa Lefebvre, “é na vida cotidiana que se situa o núcleo racional, o
centro real da práxis” (1991, p. 38-39), pois é ali na “vida cotidiana” que se manifesta o modo
de compreender a interação com o outro. Em outros termos, a investigação da experiência
desses moradores no novo local pode descortinar as relações de identidade estabelecidas,
refletindo o estilo de vida do grupo no lugar.
Também procuramos no decorrer do texto elucidar como o estigma afeta o indivíduo,
isto é, como se forma a sua identidade em uma sociedade que produz um discurso negativo
sobre a condição de morar em favela, associando-a a precariedade, pobreza, risco e crime e,
como efeito, estigmatizando seus moradores como perigosos. Logo, a partir das entrevistas
com os moradores, procuramos observar como a identidade pode ser afetada por fatores
externos como a mídia e a opinião pública, chegando até mesmo a criar uma auto-
estigmatização do próprio indivíduo.
O passo inicial nos conduz ao sociólogo Manuel Castells (1999), para quem a
identidade é concebida como um processo constituído socialmente e desenvolvido através do
reconhecimento do outro. Para esse autor, a identidade é relacional, ou seja, para existir ela
depende de algo fora dela. Como Berger e Luckmann (2004), Castells (1999) também estuda
os tipos de identidade relacionados a um contexto específico. Para Castells a identidade é um
conjunto de acepções e experiências de um indivíduo em uma dada população, processo
baseado símbolos culturais:
51
Em termos mais genéricos, pode-se dizer que identidades organizam significados... defino significado como a identificação simbólica, por parte de um ator social, da finalidade da ação praticada por tal ator. (CASTELLS, 1999 p. 23).
Logo, para o Castells (1999), não se deve interpretar papéis sociais como identidades,
pois os primeiros produzem funções enquanto os segundos incorporam significados. Nesta
perspectiva, a identidade é a materialização de elementos de um grupo em um determinado
contexto, por meio de sua história, da estrutura do sujeito, do espaço habitado e da memória
coletiva. Castells (1999) identifica três formas de concepção da identidade através da relação
de poder. A primeira forma de identidade é caracterizada como identidade legitimadora, e é
introduzida pelas instituições dominantes da sociedade no intuito de expandir e racionalizar
sua dominação em relação aos demais atores sociais. A segunda, identidade de resistência, é
criada pelos atores que se encontram em posições/condições desvalorizadas e/ou
estigmatizadas pela lógica da dominação, constituindo-se, assim, como “trincheiras da
resistência”. A última, identidade de projeto, estabelece-se quando os atores sociais
constroem uma nova identidade capaz de redefinir sua posição na sociedade e, ao fazê-lo,
buscam a transformação de toda uma estrutura social. (CASTELLS, 1999).
Nos tempos atuais, com a globalização e o advento dos meios de comunicação em
massa, o modo como nos relacionamos em sociedade foi transformado: a dinâmica relacional
face a face passou a ser substituída, em muitas situações, pelas novas tecnologias, o que
interfere na construção da identidade do homem urbano. No entanto, Castells (1999) ressalta
que o fortalecimento das identidades coletivas pode superar o processo de globalização e o
individualismo propiciado pelo capitalismo devido à particularidade das culturas locais e ao
autocontrole individual. Essa pista direciona nosso olhar para os processos identitários locais,
como o que está a ser estudado neste trabalho, a respeito das repercussões das intervenções
urbanísticas e da ação remocionista sobre as práticas sociais e culturais estabelecidas nas
comunidades.
Complementarmente, para Kathryn Woodward (2003) a identidade se manifesta por
meio do resgate de precedentes históricos: recorre-se ao passado, pois o contexto de formação
e de inserção social do indivíduo possui grande influência na composição de sua identidade.
Essa busca pelo passado pode produzir outra significação capaz de alterar e promover novas
identidades. Para Woodward (2003)) e Castells (1999) a identidade pode ser considerada
múltipla e mutável, dada à incidência de forte tensão e incoerência inerentes às posições
vivenciadas pelo indivíduo. Curiosamente, apesar da globalização e do crescente processo de
individualização, as identidades nacionais e locais foram fortalecidas graças à interação entre
52
fatores econômicos e culturais, responsáveis por mudanças nos padrões sociais de produção e
consumo:
(...) a globalização, entretanto, produz diferentes resultados em termos de identidade. A homogeneidade cultural promovida pelo mercado global pode levar ao distanciamento da identidade relativamente à comunidade cultural e a cultura local. De forma alternativa, pode levar a uma resistência que pode fortalecer e reafirmar algumas identidades nacionais e locais ou levar ao surgimento de novas posições de identidade. (WOODWARD, 2003 p. 21).
Nesse ponto, Woodward (2003) se aproxima de Castells (1999) quando este descreve
a identidade de resistência, para quem “identidades que começam como resistências podem
acabar resultando em projetos, ou mesmo tornando-se identidades legitimadoras para
racionalizar sua dominação” (CASTELLS, 1999 p. 24). Dito de outro modo, as consequências
dos fenômenos sociais ocorridos na sociedade global podem fortificar e ratificar as
identidades locais. Portanto, passado e presente desempenham papel essencial para o
fortalecimento da identidade, ou seja, nesse acontecimento no qual a busca de causas
relacionadas à temporalidade dá origem à novas e futuras identidades. Ainda para Woodward
(2003), a identidade pauta-se em grande parte pela conjuntura na qual os indivíduos estão
inseridos:
Diferentes contextos sociais fazem com que nos envolvamos com diferentes significados sociais. Em certo sentido, somos posicionados e também nos posicionamos de acordo com diferentes campos sociais nos quais estamos atuando. (WOODWARD, 2003 p. 30).
Tanto Castells (1999) quanto Woodward (2003) ressaltam que a identidade é um
conjunto de significados atribuídos aos papéis sociais em nossa sociedade. Segundo
Woodward (2003), as identidades são construídas por intermédio das marcações das
diferenças, que podem ocorrer tanto por meio dos sistemas simbólicos de representação
quanto por formas de exclusão social. A autora ainda acrescenta que a conceituação de
identidade envolve o exame dos sistemas classificatórios que mostram como as relações
sociais são organizadas e divididas, podendo ser demarcadas, por exemplo, em ao menos dois
grupos em oposição – “nós” e “eles”.
Os dois autores baseiam-se na existência de uma crise de identidade, tema muito
discutido atualmente no âmbito global, local e político, no qual as fronteiras identitárias
passam a ser fortemente questionadas, dando uma nova dimensão à dicotomia entre os grupos.
Eles também enfocam que, com o advento da globalização, ao invés da esperada e temida
53
padronização das identidades, acabaram por despontar várias expressões de identidade
coletiva tanto em âmbito nacional como também local. A identidade pode se dar tanto por
meio da diferença, como analisada por Woodward, bem como, segundo Castells (1999), o
embate entre identidade legitimadora e de resistência pode gerar a contestação e uma
modificação das mesmas. A construção e transformação das identidades tornou-se tema de
extrema importância, e podem ou não sofrer a influência de estigmas gerados pelo lugar.
Para esta pesquisa faz-se necessário contextualizar o conceito de estigma. Autor
clássico no estudo das interações sociais por meio dos papéis sociais na vida cotidiana, Erving
Goffman, sociólogo canadense, estudou na Universidade de Chicago, onde fez mestrado e
doutorado na área de sociologia e antropologia social. Influenciado por Simmel através da
microssociologia, Goffman buscou estudar detalhes da vida cotidiana por meio de análises de
processos sociais associados à experiência de aproximar elementos universais e que
transcorrem através de um contexto. Tanto Goffman quanto Simmel viam o mundo social
como um produto das ações dos indivíduos. (SMITH, 2004).
Em seu livro “Estigma: notas sobre uma identidade deteriorada” Goffman (1988)
demarca a personalidade do indivíduo e o modo como ela é construída socialmente por meio
das práticas e dos papeis sociais (representações) acerca da interação face a face. Para ele, no
passado, os gregos utilizavam o termo estigma como significado de marcas corporais que
buscavam demonstrar alguma coisa admirável ou má sobre o status moral de quem as portava,
podendo expressar se estes eram escravos ou criminosos. Atualmente, o termo é comumente
utilizado em sentido pejorativo. Goffman não considera o estigma como atributo pessoal, mas
sim como uma forma de denominação social na interação social com o outro considerado
normal (GOFFMAN, 1988).
Para Ricardo Ojima et al (2010), o estigma surge quando ocorre incompatibilidade
entre a identidade virtual, isto é, o que se espera do indivíduo, e a identidade real, ou seja, o
que ele realmente é. Para Goffman (1988), a sociedade estabelece formas de classificar as
características consideradas “normais” para os componentes de cada grupo e estabelece os
locais aos quais os indivíduos devem pertencer bem como os predicados que devem possuir.
Esta sociedade, por meio de imagens nem sempre reais, produz regras a serem seguidas, de
modo a criar aquilo que se denomina como identidade social, que Goffman chama de
identidade social virtual, uma identidade ideal desejável à luz dos modelos pré-estabelecidos.
Em verdade, a vida cotidiana evidencia outro tipo de identidade, caracterizada pelas
experiências factíveis do indivíduo, ou seja, sua identidade social real.
54
A estigmatização implica a desqualificação social do estigmatizado, por parte dos
considerados “normais”, na medida em que a identidade social real do sujeito assinala
características físicas, morais e até mesmo grupais que são diferentes do esperado, isto é,
diferentes da identidade social virtual, repercutindo negativamente sobre o indivíduo. Quando
os atributos pessoais são incompatíveis com a identidade social virtual estabelecida pela
sociedade, o indivíduo é pouco aceito pelo grupo, que não consegue lidar com a diferença.
Para a sociedade, é importante conservar a imagem do indivíduo estigmatizado para
manutenção simbólica do controle social. A rotulação que desvaloriza o estigmatizado,
caracterizando-o como “anormal”, só existe enquanto contraponto ao “normal”. Em outras
palavras, o estigma, a partir de uma forma específica de identidade e do estereótipo, produz
grupos sociais distintos, “normais” e os estigmatizados, “anormais”, que compartilham
determinados valores simbólicos: “um estigma é, então, a realidade, um tipo especial de
relação entre atributo e estereótipo” (GOFFMAN, 1988, p.13). Desta forma, o distingue três
tipos de estigma:
Em primeiro lugar, há as abominações do corpo – as várias deformidades físicas. Em segundo, as culpas de caráter individual, percebidas como vontade fraca, paixões tirânicas ou não naturais, crenças falsas e rígidas, desonestidades, sendo essas inferidas a partir de relatos conhecidos de, por exemplo, distúrbio mental, prisão, vícios, alcoolismo, homossexualismo, desemprego, tentativas de suicídio e comportamento político radical. Finalmente, há estigmas tribais de raças, nação e religião que podem ser transmitidos através da linhagem e contaminar todos os membros de uma família. (GOFFMAN, 1988, p.14).
O estigma é um atributo social imposto aos indivíduos que não se incluem nas
convenções sociais normatizadas pela sociedade. Estigmatizados são indivíduos com
deformidades físicas, psíquicas ou de caráter, ou com qualquer outro atributo que os torne
desiguais ou inferiores no modo de ver da sociedade. Tal valoração negativa os leva a buscar,
cotidianamente, o fortalecimento e até mesmo a construção de uma nova identidade social. A
representação social do estigmatizado é danificada e a identidade social do sujeito pode ser
perdida devido à imagem deteriorada. Assim, o estigmatizado adquire uma função essencial
na vida dos que se identificam como normais, pois contribui para estabelecer uma referência
entre ambos, delimitando, portanto, as diferenças no contexto social.
Quando o estigma é aceito pelo indivíduo, ele acredita que pode contaminar outras
características de sua personalidade e “a vergonha se torna uma possibilidade central, que
surge quando o indivíduo percebe que um de seus próprios atributos é impuro e pode
imaginar-se como um não portador dele” (GOFFMAN, 1988, p. 17). O portador do estigma
55
pode utilizar de seu atributo para obter ganhos secundários como, por exemplo, uma desculpa
pelo fracasso. O estigma é influenciado pelo fato de conhecermos ou não o estigmatizado.
Para os outros, o estigmatizado pode ou não, dependendo da forma do seu estigma, manipular
esta informação, mostrá-la ou escondê-la: se o estigma não for aparente. Goffman classifica o
não aparente como desacreditável e desacreditado quando o estigma é visível. Para que haja
uma relação sociável entre os estigmatizados e os “normais”, os membros participantes da
interação necessitam descolar-se de suas características pessoais, como já mencionado pelo
conceito de sociabilidade simmeliano, de modo que o estigmatizado seja integrado e não tema
sofrer preconceito em relação às suas características distintas.
O efeito do estigma sobre os indivíduos estigmatizados afeta as diferentes esferas da
vida social, como perdas simbólicas, econômicas, sociais e afetivas, produzindo
distanciamento e desunião do grupo na comunidade. Além disso, o estigma do lugar de
moradia causa a destruição da solidariedade local e da coesão do grupo para reivindicar
melhorias para sua localidade:
(...) das relações homem a homem, das amizades tecidas pelas afinidades e simpatias, a evitação, ao isolar os indivíduos da vizinhança, rarefaz a possibilidade de encontros profícuos do ponto de vista emocional e afetivo fora do círculo familiar; as redes de sociabilidade e convívio desmontam-se, permitindo uma cegueira generalizada quanto a demandas da solidariedade e compartilhamento (MAIOLINO, 2008, p. 132).
Não são poucas as narrativas de negação de emprego, de constrangimento social e
discriminação quando estes indivíduos revelam onde moram. Some-se a isso o processo de
precarização dos serviços e equipamentos públicos, na medida em que os profissionais evitam
escolher aquela localidade por medo de se pôr em risco de vida. Inclusive, existem estudos
que discutiram sobre este tema. Um exemplo é o autor francês Wacquant (2005), em seu
estudo sobre os efeitos da estigmatização territorial na França e nos Estados Unidos, e
Maiolino (2008), ao replicar esta ideia em pesquisa realizada em uma favela carioca. O
estigma de favelado, interpretado como estigma territorial, é visto como a outra face do
padrão social ideal. Os padrões sociais considerados “normais” são atitudes estabelecidas pela
sociedade. Segundo Goffman (1988), acredita-se que o estigmatizado que está fora desses
padrões não seja totalmente humano.
Cabe destacar que neste estudo nos interessam os efeitos do lugar de moradia
enquanto elemento estigmatizador bem como compreender a influência que determinados
espaços sociais urbanos desempenham sobre a posição social dos indivíduos. A este estudo
56
compete analisar como o estigma do lugar, neste caso a favela, pode influenciar as relações
cotidianas dos moradores com a cidade, e como o estigma surge a partir da mudança destes
moradores para os conjuntos habitacionais.
Subjacente a idéia de estigma, tem-se a postulação de Bourdieu (1997), no texto
“Efeitos de lugar”, de que existe uma relação entre a posição (classe social) dos atores sociais
e o lugar que ocupam no espaço social. O lugar pode ser definido como o espaço que um
indivíduo ou coisa ocupa em uma dimensão e, enquanto o “espaço físico é definido pela
exterioridade mútua das partes, o espaço social é definido pela exclusão mútua (ou a
distinção) das posições que o constituem, isto é, como estrutura de justaposição de posições
sociais” (BOURDIEU, 1997, p. 160). O conceito efeitos do lugar é definido por Ribeiro
(2008) como as “práticas de lutas pela apropriação do espaço, segundo o qual o lugar ocupado
pelos grupos sociais na cidade permite acesso a várias formas de capital inscritas no
território” (p. 17).
Para Bourdieu (1997), sociedades desiguais e hierarquizadas estabelecem formas de
exclusão por meio do espaço social, o que nos remete ao tema estudado por Ribeiro12 (2008)
sobre a proximidade física e a distância social. Essa diferença pode ser considerada como
efeito natural e não como resultado de configurações históricas de desigualdades, ou seja,
podem ser naturalizadas. A apropriação do espaço está diretamente ligada à acumulação de
capital – cultural, econômico ou social – que aproxima e afasta os habitantes de acordo com
seus hábitos. Logo, “a proximidade no espaço físico permite que a proximidade no espaço
social produza todos os seus efeitos facilitando ou favorecendo a acumulação de capital
social, e mais precisamente, permitindo aproveitar continuamente encontros ao mesmo tempo
casuais e previsíveis que garantem a frequência a lugares bem freqüentados” (BOURDIEU,
1997, p. 164).
No Brasil, as classes mais altas instituem seus próprios espaços sociais, usualmente
reservados aos indivíduos de elevada posição social e que possuem capital (econômico,
cultural ou social). Tal configuração possibilita a exclusão daqueles que não possuam pelo
menos um dos capitais. Um exemplo são os enclaves fortificados, considerado por Caldeira13
12 No texto “Proximidade territorial e distância social: reflexões sobre o efeito do lugar a partir de um enclave urbano”, Ribeiro (2008) buscou compreender a dinâmica social e espacial estabelecida entre moradores de um conjunto habitacional, oriundos de uma política pública, e os residentes no bairro do Leblon (RJ), considerados classe alta. Segundo o estudo, verificou-se que, de fato, houvera interação, gerada pela proximidade física entre eles. 13 Segundo a autora, enclaves fortificados “[s]ão propriedade privada para uso coletivo e enfatizam o valor do que é privado e restrito ao mesmo tempo, que desvalorizam o que é público e aberto na cidade. São fisicamente demarcados e isolados por muros, grades, espaços vazios e detalhes arquitetônicos. São voltados para o interior e não em direção à rua, cuja vida pública rejeitam explicitamente. São controlados por guardas armados e sistemas
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(2000) “ambientes socialmente homogêneos. Aqueles que escolhem habitar esses espaços
valorizam viver entre pessoas seletas (ou seja, do mesmo grupo social) e longe das interações
indesejadas, movimento, heterogeneidade, perigo e imprevisibilidade das ruas” (p.259). Às
classes baixas, não se oferece alternativas, restando, para a maioria, as favelas, que
compartilham características comuns nas metrópoles brasileiras por serem consideradas
“espaços caracterizados por uma estrutura social bastante diferente em relação à totalidade da
cidade, na qual prevalecem os segmentos inferiores do proletariado de serviços” (RIBEIRO,
2008, p. 2).
Ainda para Ribeiro (2008) e Caldeira (2000), a proximidade física entre o bairro de
classe alta e o conjunto habitacional, de fato, não é suficiente para que ocorra a apropriação
do espaço e a interação entre seus moradores. Estes comportamentos, que mantêm o
distanciamento social das classes dominantes das demais classes, foram considerados por
Bourdieu como violência simbólica14. O espaço social reificado reflete a condição simbólica
desse espaço, de modo que a sua apropriação pelos moradores com maior capital social ocorre
por meio de lugares privilegiados, como forma de ostentação de poder. Para Bourdieu (1989),
a mudança na estrutura do espaço social só se daria por meio do que chamou de “trabalho de
transplantação15”, sendo para isso necessário uma nova configuração das pessoas e do local.
O espaço social impõe ao indivíduo várias condições, que necessitam ser cumpridas
para que ele, de fato, integre-se ao habitat, colaborando tanto na construção de modos de vida
como corroborando a definição do espaço. Certos espaços, por exemplo, exigem a posse não
só de capital cultural e econômico, mas também de capital social:
A capacidade de dominar o espaço, sobretudo apropriando-se (material ou simbolicamente) de bens raros (públicos e privados) que se encontram distribuídos, depende do capital que se possui. O capital permite manter à distância as pessoas e as coisas indesejáveis ao mesmo tempo em que aproximar-se de pessoas e coisas desejáveis (por causa, entre outras coisas, de sua riqueza em capital), minimizando, assim, o gasto necessário (principalmente em tempo) para apropriar-se. (BOURDIEU, 1997, p. 163).
de segurança que impõe as regras de inclusão e exclusão. São flexíveis: devido ao seu tamanho, às novas tecnologias de comunicação, organização do trabalho e aos sistemas de segurança, eles são espaços autônomos, independentes de seu entorno, que podem ser situados praticamente em qualquer lugar.” (CALDEIRA, 2000, p. 258) 14 Reconhecimento de uma imposição determinada seja econômica, social ou cultural, que induz o indivíduo a se posicionar no espaço social seguindo critérios e padrões que legitimam o discurso dominante (BOURDIEU, 1989). 15 Um desenraizamento ou uma deportação de pessoas, as quais suportariam transformações sociais extremamente difíceis e custosas.
58
Para Bourdieu (1997) os indivíduos desprovidos de capital são destituídos de
mobilidade social e condenadas a permanecer distantes do acesso aos bens socialmente mais
sofisticados e melhores. Desse modo, “a falta de capital intensifica a experiência da finitude:
ela prende a um lugar” (p. 164). A divisão social do espaço urbano proporcionada pelo efeito
clube16, no qual a acumulação de capital resulta em exclusão daqueles que não possuem as
propriedades desejadas ou que tenham uma das propriedades indesejadas, influencia as
disposições dos agentes nesses espaços:
o bairro chique, como um clube da exclusão ativa de pessoas indesejáveis, consagra simbolicamente cada um de seus habitantes, permitindo-lhe participar do capital acumulado pelo conjunto de residentes: ao contrário do bairro estigmatizado degrada simbolicamente os que habitam, e que, em troca, o degradam simbolicamente, portanto, estando privados de todos os trunfos necessários para participar dos diferentes jogos sociais, eles não tem em comum senão sua comum excomunhão. (BOURDIEU, 1997, p.166).
Portanto, os efeitos do lugar podem ser tanto positivos quanto negativos, e esta
avaliação está sujeita ao espaço social e ao capital acumulado no espaço no qual se vive. De
tal modo, a presença de uma população em um determinado contexto social gera efeitos que
vão desde o desconhecimento da sua existência à estigmatização e o isolamento social, entre
outros, como estratégias de diferenciação social (RIBEIRO, 2008). Para esta dissertação
buscou-se analisar os efeitos sociais da estigmatização territorial imposta aos moradores da
Vila Senhor dos Passos.
Para Ojima e outros (2010), os lugares possuem símbolos que os distinguem no espaço
social uma vez que “as paisagens e os lugares são intencional e socialmente produzidos;
possuem qualificativos que os singularizam ou os identificam” (p. 405). Logo, morar em um
local socialmente estigmatizado acarreta para os residentes o que Wacquant (2005) analisou
como estigma territorial. Supõe-se que o estigma possa influenciar as percepções dos
moradores sobre as imagens produzidas a respeito de seu lugar e modos de vida em relação à
cidade. Em seu estudo comparativo entre França e Estados Unidos, Wacquant (2003) analisa
os efeitos do estigma territorial na vida dos habitantes dos guetos americanos e das banlinues
francesas, descrevendo suas semelhanças e as diferenças.
Löic Wacquant, sociólogo francês, professor e pesquisador de temas como a
desigualdade urbana e a marginalidade, entre outros, em seu livro “Os condenados da cidade”
(2005) reúne artigos que abordam, comparativamente, o gueto norte-americano de Chicago
16 Resultado da associação durável de pessoas e coisas (nos bairros chiques e nas residências de luxo) que, sendo diferente da maioria, excluem-nos.
59
(Cinturão Negro) e os subúrbios franceses, banlieues (Cinturão Vermelho) no período de
1970 a 1990. Estes locais carregam o estigma territorial pela restrição social, econômica,
cultural e pela limitação espacial e organizacional, o que Bourdieu (1997) chamou de a falta
de capitais para apropriação do espaço social.
Para Wacquant (2005), nos guetos americanos a organização comunitária foi
desaparecendo e o local foi se transformando em nichos de carência e desamparo por parte do
Estado. Do mesmo modo, nas periferias francesas, a essência da sociabilidade e da identidade
de classe operária foi sendo dissipada e estas localidades se tornaram territórios
estigmatizados. O estigma territorial é associado ao lugar de moradia e, no caso norte-
americano, há o acréscimo de mais um fator, o racial. Neste sentido, no caso francês os
indivíduos podem burlar o estigma territorial, encobrindo ou inventando um novo endereço,
podendo percorrer livremente os espaços da cidade sem serem descobertos. Já no caso norte-
americano, os negros não podem transitar em todos os locais, pois o seu estigma é aparente, a
saber, a cor da pele, que automática os enquadra na classificação de “desacreditado”, cunhada
por Goffman (1988). Para o autor, existe uma sobreposição dos estigmas que permeiam na
sociedade – como o da pobreza, territorial e da marginalidade – o que acaba por criar um
círculo vicioso, em que um estigma reforça os outros.
O estigma do território no contexto das sociedades avançadas provoca sentimentos de
indignidade pessoal – que afetam as relações sociais do indivíduo em todos os campos da
vida cotidiana – degradação simbólica dos lugares, dissolução das noções de pertencimento a
comunidade e o estigma da pobreza, todos vinculados à condição de ser pobre em uma
sociedade rica. Nas duas localidades (França e Estados Unidos), os efeitos causados pelo
estigma territorial foram considerados intensos: diminuição do senso de comunidade,
fragilização dos laços sociais e distanciamento entre seus moradores. Para Wacquant (2005), a
“nova pobreza” 17 incluiu novas formas de exclusão e segregação etnorracial:
(...) com a “nova” pobreza urbana em sociedades avançadas terá que levar em conta o poderoso estigma que acompanha o fato de residir em espaços delimitados e segregados, estes “bairros de desterro”, que abrigam, cada vez mais, as populações marginalizadas ou condenadas à superfluidade pela reorganização pós-fordista da economia e do Estado. (WACQUANT, 2005, p.139).
17 Segundo o autor, esta é caracterizada pelo desemprego prolongado, encolhimento das redes sociais e afrouxamento dos laços sociais, dificuldade em relação ao aceso às formas tradicionais de seguridade social e de assistência pública para atender ou corrigir a carestia e o isolamento: pode-se observar tudo isso, em graus variados, em todas as sociedades avançadas.
60
Uma das marcas da nova pobreza é a relação desigual com a polícia e com a justiça,
em relação aos empregadores em específico e com a sociedade de modo geral, provocada pelo
estigma territorial. Para Wacquant (2005) os guetos e a periferia francesa são instrumentos de
limitação socioespacial de uma categoria estigmatizada. Neste sentido, tanto nos Estados
Unidos como na França, conclui o autor, “o principal efeito do estigma territorial é
semelhante (...): estimula práticas de diferenciação e distanciamento social interno que
acabam diminuindo a confiança entre as pessoas e minando a solidariedade social no plano
local” (p. 148).
Um fato importante para esta pesquisa é que o estudo de Wacquant (2005) analisa os
efeitos estigmatizantes das dinâmicas espaciais, tanto no contexto norte-americano quanto no
europeu, e mostra que o processo de estigmatização ocorre em espaços segregados da cidade
no qual a deterioração da infraestrutura urbana auxilia a conservação do estigma. A realidade
e a eficácia do estigma territorial provocam a transformação do espaço estigmatizado em um
local em que os habitantes mantêm uma relação de diferenciação no qual não se sentem
seguros:
A estigmatização territorial origina entre os moradores estratégias sociófobas de evasão e distanciamento mútuo e exacerba processos de diferenciação social interna, que conspiram em diminuir a confiança interpessoal e em minar o senso de coletividade necessário ao engajamento na construção da comunidade e da ação coletiva. (WACQUANT, 2005, p.33).
Nesta pesquisa, o estigma territorial não se dá pelos motivos apontados no estudo de
Wacquant, como o processo de imigração de estrangeiros no caso da França e a questão racial
nos Estados Unidos, mas se diferencia a partir de um contexto histórico de desigualdade
social brasileira, no qual existe uma enorme distância social entre ricos e pobres. Para os
norte-americanos, o estigma é tanto racial quanto espacial, de modo que seus habitantes são
condenados a territórios isolados, diferentemente do caso brasileiro, que se assemelha ao caso
francês, no qual os pobres possuem certa mobilidade e a possibilidade da omissão do estigma.
Deste modo, a escolha do conceito “estigma” relaciona-se ao fato de que, ao falarmos
em favela, não há como esconder que a sociedade vê e interage com essa comunidade de
forma diferenciada, produzindo, segundo Maiolino18 (2008), “determinadas formas de
subjetivação coletiva que resultam em uma apreensão da realidade da favela muito estreita,
preconceituosa, repleta de representações desabonadores de seus moradores” (p. 127). 18 Em seu livro Espaço urbano: conflito e subjetividade (2008), a autora contextualiza o processo de favelização no Rio de Janeiro, no qual analisa os moradores da favela Canal das Tachas após o relocação para novas casas no próprio lugar desenvolvido pelo Programa Favela-Bairro, entre o período de 1995 e 1997.
61
Portanto, destacamos um aspecto relevante para nossa pesquisa na análise de
Wacquant sobre o estigma territorial, que segundo Maiolino (2008) parte de uma
característica fundamental desse conceito: agregar a determinados locais de moradia uma
representação pública e simbólica pejorativa e patológica, vinculada à criminalidade, à
pobreza, à ausência de capitais (BOURDIEU, 1997) e à falta de segurança, reprimindo-o
como lugar a ser evitado e isolado.
Deste modo, procuramos investigar nesta dissertação as seguintes questões: como os
moradores de favelas se socializam com os moradores de outros locais? Como o estigma da
favela influencia suas vidas cotidianas e a concepção de privado e público? Como se dá a
sociabilidade entre os condôminos e os vizinhos da vila? Acreditamos que tais indagações
podem ser entendidas a partir da interação e da convivência com os moradores nessas
localidades. No próximo capítulo, analisamos os possíveis efeitos desencadeados na
sociabilidade pelo conceito de estigma a partir da própria percepção dos moradores após o
processo de sua relocação em conjuntos habitacionais.
62
4 - PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
4.1 O trabalho de campo
A pesquisa de campo teve início uma visita informal aos conjuntos habitacionais com
o intuito de identificar uma pessoa de referência na vila, capaz de garantir o acesso ao local e
aos telefones das pessoas, e de prevenir sobre acontecimentos imprevistos em relação ao
tráfico de drogas. Este cuidado em obter um informante para auxiliar a ida ao campo e em
estabelecer os melhores dias e horários melhores para frequentar os conjuntos, contudo, não
impediu que o pesquisador fosse submetido a duas cenas constrangedoras. Por motivos
óbvios, ações ligadas ao tráfico de drogas e à polícia são inesperadas e incidem a todo o
momento nas vilas e favelas. O primeiro acontecimento ocorreu na primeira visita ao campo,
em busca de um intermediário entre o pesquisador e o local: ao entrarmos no conjunto
habitacional na Vila Senhor dos Passos, presenciamos a perseguição da PM a um adolescente.
Outro momento de apreensão vivenciado durante o trabalho de campo ocorreu ao entrar na
vila para entrevistar um morador: houve agitação e correria por parte dos adolescentes, a
gritar “galo doido”, que na gíria significa polícia. Felizmente, neste caso, fora alarme falso.
Ironicamente, as obras de infraestrutura realizadas nos conjuntos habitacionais possibilitaram
que carros como os do Grupo de Especial de Patrulhamento em áreas de risco (GEPAR) da
Polícia Militar (PM) circulassem nas imediações.
Cabe ressaltar que durante o trabalho de campo outra dificuldade enfrentada foi a de
transpor para o entrevistado a distinção entre o agora desempenhado papel de pesquisador e o
de acompanhamento social, exercido pela pesquisadora por três anos no programa Habitar
Brasil-BID na PBH. Em razão do intenso convívio e das reuniões realizadas com os
moradores do local, o público entrevistado recordava-se do programa e a associação
estabelecia-se.
Como estratégia buscou-se, no momento da entrevista, entabular uma conversa
informal sobre o cotidiano dos moradores após o término das obras no local. Em alguns casos
observaram-se constrangimentos e desconforto em se expressar sobre o tema, devidamente
apartados ao se esclarecer o caráter deste estudo como uma pesquisa acadêmica, fato
recorrente na vida desses moradores devido ao recente processo de remoção a que foram
63
submetidos. Um aspecto positivo na pesquisa foi o de novamente localizar os moradores
pesquisados anteriormente e a aceitação, por parte destes, em participar, dispondo-se a
conceder mais entrevistas. Em campo, as entrevistas foram realizadas in loco, ou seja, nos
apartamentos dos conjuntos habitacionais pesquisados, e durante os finais de semana, pois,
segundo os entrevistados, este era o período em que possuíam maior disponibilidade. Não se
pode negar que a possibilidade de um tempo maior para a pesquisa junto aos moradores influi
na qualidade do conteúdo abordado.
A princípio, pretendíamos fazer um registro fotográfico do nosso trabalho de campo
na Vila Senhor dos Passos. No entanto, isto não foi possível devido à falta de segurança
gerada pelo tráfico no local. Além disso, não havia mais nenhuma equipe da Prefeitura
trabalhando na vila, o que dificultava ainda mais o nosso acesso. O registro fotográfico
utilizado na pesquisa, em sua maioria, deriva do Programa Habitar Brasil – BID, conseguido
através de documentos já arquivados devido ao término oficial deste em 2009.
Outro aspecto facilitador foi o contato mantido com profissionais que trabalharam no
programa, o que acabou por promover o acesso direto ao registro fotográfico do programa.
Este registro ateve-se a três áreas distintas do programa: acompanhamento de obras, o
trabalho social e a parte de Educação Sanitária e Ambiental. Nossa seleção procurou
estabelecer a reprodução da imagem enquanto representação do conteúdo pesquisado.
4.2 Metodologia da pesquisa
Nesta seção descreve-se a metodologia utilizada para a pesquisa com o intuito de
analisar os modos de vida e as relações cotidianas promovidas pelo processo de
reassentamento nos conjuntos habitacionais. Para tal objetivo, realizou-se o estudo de uma
comunidade específica, ou seja, um estudo de caso. Em linhas gerais, o estudo de caso é uma
caracterização realizada para descrever uma dada realidade, um caso particular, de modo a
organizar uma pesquisa analítica. Para Chizzotti (2001), o estudo de caso é adotado como
“unidade significativa do todo”, ou seja, satisfatório para basear uma avaliação, e até mesmo
recomendar uma intervenção. É considerado pelo autor como “marco de referência de
complexas condições socioculturais que envolvem uma situação e tanto retrata uma realidade
quanto revela a multiplicidade de aspectos globais presentes na situação” (CHIZZOTTI, 2001,
p. 102).
64
O período de afastamento proporcionado pelo término do trabalho na Prefeitura
possibilitou um novo olhar e certo distanciamento do objeto de estudo da pesquisa. Esta ideia,
cara á antropologia, é formulada por Velho (1978): “transformar o exótico em familiar e o
familiar em exótico” (p.28), de modo a se chegar ao estado de estranhamento e perplexidade
frente a realidade cotidiana observada. Partindo deste princípio, investigar contextos urbanos
torna-se um desafio para o pesquisador, pois exige um olhar qualificado para se distanciar e
ao mesmo tempo observar as relações da vida cotidiana na própria cultura. À este olhar aliou-
se a técnica da entrevista semi-estruturada e do roteiro19, um guia para condução da entrevista.
Este trabalho define-se, do ponto de vista metodológico, por uma abordagem de pesquisa
qualitativa, focado na análise dos significados, motivações, crenças e percepções dos
indivíduos diante de uma dada realidade.
O embasamento para escolha da metodologia qualitativa ocorreu a partir do objeto de
estudo, da subjetividade do conteúdo abordado. Deste modo, essa metodologia, entrevistas
das trajetórias individuais, permitiu ao pesquisador refletir sobre o entendimento sobre
público e privado, sociabilidade, relação de vizinhança e construção da identidade bem como
sobre o reflexo do estigma do lugar nos conjuntos habitacionais. Segundo Magnani (2002), a
metodologia qualitativa serve para delinear “no amplo e vago campo da chamada
antropologia das sociedades complexas, um recorte mais específico, voltado para o estudo de
temas próprios e especificamente urbanos” (p.49). Para esta pesquisa em especial, tal recorte
permitiu nos aprofundar nas percepções e subjetividades dos entrevistados.
Indicada por autores como Maria Cecília Minayo (2004), Richardson (1999) e Bauer e
Gaskell (2002), a pesquisa qualitativa é o método pelo qual o pesquisador busca, por meio de
acepções individuais, investigar as peculiaridades locais, tendo como prioridade explicativa o
conhecimento teórico obtido por ele no momento em que estabelece contato direto com o
entrevistado. A metodologia qualitativa, logo, pode ser definida como o percurso para a
procura de informações obtidas, seja por meio de dados primários, seja por meio de dados
secundários, a fim de que as ideias, fatos, crenças, maneiras de pensar e opiniões, dentre
outros sentimentos, possam ser capturados. A entrevista é assim por Minayo (2004):
A entrevista tomada no sentido amplo de comunicação verbal, e no sentido restrito de colheita de informações sobre determinado tema científico... Como técnica de coleta de informações é amplo e contempla uma série de questões que vão desde a fidedignidade do informante ao lugar social do pesquisador. (p.107).
19 Baseado no roteiro de entrevista realizado na pesquisa realizada no Aglomerado da Serra, da Professora Luciana Teixeira de Andrade (2008).
65
A escolha da técnica da entrevista semi-estruturada justifica-se pela possibilidade que
esta oferece para se extrair informações autênticas das experiências cotidianas subjetivadas
pelos moradores dos conjuntos habitacionais. Segundo Richardson (1999), a entrevista tem
um caráter pessoal uma vez que privilegia as percepções dos pesquisados por meio do contato
direto do pesquisador, evidenciando as variações ocorridas na fala do entrevistado. Este
contato entre entrevistador e entrevistado torna-se essencial para identificação do histórico de
vida, posturas e modos de viver divergentes. Neste aspecto, a entrevista aproxima o
pesquisador da realidade social estudada e favorece o diálogo com o entrevistado. Segundo
Minayo (2004), um fato importante na análise de conteúdo não é o conteúdo aparente, ou seja,
o que é dito, mas o que ela expressa diante do contexto histórico em que é estudada.
Desta forma, o modo de vida, a imagem que fazem de si e dos outros bem como o
modo como se comportam em determinadas situações foram os aspectos abordadoss nas
entrevistas. Dito de outro modo, as questões referentes ao cotidiano dos moradores trazem
importantes contribuições para a percepção das formas de sociabilidade vividas por estes.
4.3 O perfil dos entrevistados
Para se estabelecer o perfil dos entrevistados partiu-se do livro de Norbert Elias e
Scotson (2000), Os estabelecidos e outsiders: sociologia das relações de poder a partir de
uma comunidade, um estudo de caso de uma pequena comunidade do interior da Inglaterra.
Observou-se, neste estudo, uma divisão entre moradores de bairros vizinhos. Possuindo as
mesmas condições sociais, a distinção entre os grupos se daria pelo tempo de residência no
bairro, de modo que o grupo dos estabelecidos compunha-se pelos moradores mais antigos
do bairro enquanto o grupo de moradores mais recentes era considerado por aqueles como
outsiders. Deste modo, a análise de conteúdo foi pautada na distinção do tempo de moradia
realizado por Elias e Scotson em seu estudo.
As entrevistas foram realizadas em dois momentos distintos: no ano de 2008, com o
propósito da monografia da graduação, e em 2010 para a dissertação do mestrado. Em 2008
foram realizadas sete entrevistas a fim de verificar a hipótese de que a mudança para a nova
moradia, os conjuntos habitacionais, influenciaria na alteração de hábitos e costumes destes
moradores. Para a dissertação, pensou-se na possibilidade de comparar as percepções dos
66
moradores entrevistados, os grupos 1 e 2, analisados em momentos distintos, primeiro no ano
de 2008 e depois em 2010, pois postulava-se que essas informações/percepções possam ter
sofrido alterações nesse período de dois anos. Portanto, foram realizadas em 2010 mais sete
entrevistas com os moradores pesquisados em 2008.
O critério de seleção dos participantes levou em consideração o período de residência
destes nos conjuntos habitacionais. Os entrevistados têm entre 28 e 65 anos de idade. Dentre
os sete entrevistados pesquisados, há seis mulheres e um homem: as mulheres foram mais
receptivas ao diálogo e dispunham de maior disponibilidade na época, em 2008, data da
primeira pesquisa, pois muitas eram donas-de-casa ou estavam desempregadas.
Em função da diferença do tempo de moradia das famílias e da data de realização da
entrevista, os entrevistados foram separados em dois grupos de análise: o grupo 1, em 2008,
possuía moradores com dois a três anos de residência no conjunto habitacional; em 2010 este
grupo já residia entre quatro e cinco anos no local. O grupo 2, em 2008, aguardava a
mudança para o apartamento; em 2010, estavam há 2 anos morando no local. O grupo 1 é
composto por quatro entrevistados e o grupo 2 por três.
As características socioeconômicas, tais como educação, classe social, raça, entre
outros, permaneciam relativamente homogêneas nos dois grupos: oriundos do reassentamento
realizado pelo Programa Habitar Brasil – BID na Vila Senhor dos Passos, os moradores
exibiam o perfil socioeconômico estabelecido pelo projeto e baseado na política municipal de
habitação de Belo Horizonte. Em função da metodologia adotada, isto é, devido ao teor
qualitativo que prioriza o conteúdo das entrevistas e não a quantidade realizada, as
percepções descritas pelos entrevistados não pode ser generalizada para toda a vila. Dessa
maneira, o objetivo de nossa pesquisa não é fazer generalizações, mas compreender e
descrever qualitativamente as subjetividades e percepções dos indivíduos frente a esse caso
específico. A seguir, apresentamos um breve perfil20 dos entrevistados:
• Grupo 1:
- Joana, 32 anos, nascida e criada na Vila Senhor dos Passos. Casada e mãe de 4 filhos
pequenos, trabalha em casa como salgadeira, em atividade informal para complemento do
orçamento doméstico e para cuidar da família. Cursou até a 6ª serie do ensino fundamental.
20 Os nomes mencionados na pesquisa são fictícios para preservação da identidade dos entrevistados.
67
Morava em um lote de herança familiar, em uma casa que dividia com quatro irmãos. A casa
possuía dois pequenos cômodos, que dividia com outra irmã.
- Paloma, 33 anos, separada, possui 4 filhos. Nascida e criada na vila Senhor dos Passos,
trabalhava como empregada doméstica. Estudou até a 5ª série do ensino fundamental e está
desempregada. Morava com os 5 irmãos no mesmo lote, no qual cada um possuía seu
barracão além de uma área comum para festas. Casou-se e foi morar com o marido em um
barracão no interior da vila. Atualmente, reside no apartamento com dois filhos. Quanto aos
outros dois, o rapaz está preso e a filha, casada, mora em um apartamento no mesmo conjunto
habitacional.
- Ametista, 53 anos, separada, mãe de 3 filhos. Nascida no interior de Minas Gerais veio para
Belo Horizonte aos 13 anos em busca de melhores condições de vida e trabalho. Trabalhou
por muitos anos em casas de família, casou-se e foi morar na vila Senhor dos Passos há quase
trinta anos. Morava em uma casa grande com 9 cômodos, quando optou voluntariamente
pelo reassentamento em apartamento, devido ao assassinato de sua filha de 19 anos. Os
outros dois filhos são casados e moram fora da vila.
- Adriana, 38 anos, casada, mãe de 4 filhos. Nascida e criada na vila Senhor dos Passos,
estudou até a 7ª série no ensino fundamental. Trabalhou como empregada doméstica e
atualmente trabalha como faxineira em quartel militar. Morava em uma casa pequena com os
filhos. No apartamento mora com 3 filhos e uma neta. O outro filho está preso por
envolvimento com drogas.
• Grupo 2:
- Maria José, separada, 55 anos, mãe de 3 filhos, dentre eles Poliana, outra entrevistada.
Nascida em uma cidade do interior de Minas, veio para Capital, ainda criança, com o pai, em
busca de melhores condições de vida. Trabalhou como empregada doméstica durante muitos
anos e atualmente não (está ou nãoestá aposentada?) está aposentada. Devido aos poucos
recursos financeiros, voltou a trabalhar formalmente, permanecendo 15 dias no local de
trabalho e outros 15 em casa.
68
- Poliana, 28 anos, casada e mãe de uma filha, nasceu e foi criada na Vila Senhor dos Passos.
Possui o 2º grau completo. Trabalha informalmente realizando bicos, como artigos para
papelaria (dobraduras de envelope, cartas), para acréscimo no orçamento da família. Com
isso, pode dedicar-se ao cuidado de sua filha. Morava em um lote que dividia com sua mãe,
irmão e um tio. Sua casa possuía dois cômodos, divididos por família, e o banheiro utilizado
era coletivo.
- Paulo, 38 anos, casado, pai de 4 filhos, nascido e criado em Nova Lima, casou-se com
Patrícia, que nasceu e se criou na Vila Senhor dos Passos. Possui 2º grau completo e trabalha
como garçom em um restaurante de um shopping center. Morava em uma casa com dois
cômodos, cedida pelo sogro. A esposa, Patrícia é dona de casa. Os filhos dormiam junto com
os pais no mesmo quarto.
69
5 - A TRAJETÓRIA DA CASA AO APARTAMENTO: DESAFIOS E
PERSPECTIVAS
5.1 Observações sobre o lugar
Ao chegarmos à Vila Senhor dos Passos nos chamam atenção as diferenças existentes
entre a parte alta e mais externa: com ruas, casas com boa infra-estrutura, trânsito de veículos
e transporte coletivo e a parte baixa caracterizada por: relevo irregular, com becos, encostas, e
adensamento e a precariedade das casas, oferecendo às famílias do local pouco acesso a
veículos em alguns locais. A delimitação da vila é feita pelos bairros Lagoinha, Santo André,
Bonfim e a Pedreira Prado Lopes, e, por isso, não possui espaço físico para seu crescimento,
existindo grande concentração e verticalização das casas, como observado (ver foto 9) abaixo:
Foto 9: Fotos das casas da Vila Senhor dos Passos (verticalização)
Fonte: URBEL, 2000.
O primeiro encontro com a comunidade foi feito pela PBH através de uma reunião e,
gradativamente, essa abordagem foi tornando-se domiciliar, na qual as famílias passavam a
receber informações acerca do processo de remoção e realocação. No caso do programa
Habitar Brasil-Bid da Vila Senhor dos Passos, as famílias foram reassentadas,
70
prioritariamente, em apartamentos, salvo algumas exceções21, que foram encaminhadas para
outros processos indenizatórios. Como em outras intervenções recentes no município de Belo
Horizonte, a experiência do Programa Habitar Brasil-Bid nesta localidade, as opções para as
famílias são escassas quanto à tomada de decisão entre a realocação em unidades
habitacionais ou indenização. Do total de 108 remoções, 72 famílias foram indicadas para
reassentamento em apartamentos. (URBEL, 2000a)
Durante o processo de acompanhamento social das famílias, realizado pela Prefeitura
de Belo Horizonte através de reuniões (pré-morar) anteriores ao reassentamento, os
moradores enunciaram suas dúvidas, angústias e insatisfações. Inicialmente, a resistência dos
moradores ao conjunto habitacional era visível. Em alguns casos, preponderava como
justificativa, o conhecimento de experiências de reassentamentos anteriores, como por
exemplo, os conjuntos habitacionais do Programa Alvorada. Dentre as argumentações,
pudemos observar a queixa de ausência de organização social dos vizinhos, as contas
conjuntas entre os condôminos, a manutenção dos edifícios feita pelos próprios moradores, e,
principalmente, as imposições de um espaço físico demarcado, sem qualquer viabilidade de
expansão do imóvel.
No processo de acompanhamento social22, as famílias tiveram um espaço para
conhecer e conversar com os vizinhos do bloco. Na verdade, a maioria das famílias se
conhecia, pois era vizinha nos trechos de intervenção do Programa, o que facilitou, em alguns
aspectos, a discussão sobre: o morar em condomínios, as novas regras de convívio
estabelecidas por eles e a resolução de conflitos. Estas reuniões serviram também para a
escolha do apartamento e do vizinho, momento em que os moradores apontaram quem
gostariam que fosse seu vizinho. Outra questão foi a seleção do nome dos conjuntos23, nomes
estes que deixam entrever as expectativas em relação à nova moradia.
Nos primeiros encontros entre os moradores destinados para os conjuntos
habitacionais, repercutiram a condição de informalidade jurídica e fundiária das moradias da
Vila, a insalubridade sanitária e ambiental, a falta de acesso aos serviços regularizados de
água e luz, os recursos de trânsito veicular e de mobilidade urbana limitados. Ao longo do
21 Segundo critérios da Política Municipal de habitação, portadores de sofrimento mental e famílias acima de seis pessoas não são encaminhadas para apartamento, deste modo, têm direito à indenização no valor do imóvel quando este for acima de R$ 15.000,00 ou a compra monitorada pela prefeitura de um imóvel no valor de até R$ 15.000,00, na época (2006-2007). 22 Período referente a dois anos de estágio realizado no Programa Habitar Brasil-Bid com acompanhamento social, nas reuniões de pré-morar que antecederam a mudança para o conjunto, onde foram discutidos temas pertinentes às regras de convívio neste local. 23 Nomes dos conjuntos habitacionais: Nova Era (dois blocos), Novo Horizonte (quatro blocos) , Morada Nova (um bloco), Vila Nova (um bloco), Nova Esperança (um bloco).
71
período de previsão de saída das famílias para a execução da obra, o grupo foi conduzido a
encontros preparatórios, onde foram enfatizados a formalidade jurídica do apartamento, a
dimensão e a divisão dos cômodos24, a melhoria de infra-estrutura local, a disponibilidade de
espaços de esporte e lazer, o acesso aos serviços de limpeza e coleta de lixo, água e luz
regular, dentre outras melhorias. Segundo a URBEL (2000ª), os moradores participaram de
palestras, oficinas de capacitação, debates e dinâmicas de grupo, um conjunto de ações que
visava à preparação destes para uma nova condição de moradia, que exigia outros modos de
uso e manutenção do espaço privado e coletivo.
Ao longo dos encontros, os grupos de vizinhança foram se constituindo,
predominando nessa escolha, os laços familiares e as relações de proximidade e intimidade
entre os moradores. Os temas de organização coletiva e regras de convivência foram
desenvolvidos a partir da perspectiva da relação social que se estabelecia, onde a ordenação
de alguns comportamentos sociais demarcava os modos de uso dos espaços, estes regulados
por um regimento que almejava homogeneizar algumas rotinas através dos direitos e deveres
dos condôminos.
As primeiras mudanças para os conjuntos habitacionais foram acompanhadas por
reuniões chamadas pela equipe da PBH de pós-morar, que tinham como objetivo colaborar
para a adaptação dos condôminos, assim, estabelecendo de modo sustentável a apropriação
dos espaços públicos e privados. Nesta fase de adaptação ao local, prevaleceu a premissa de
que a apropriação do espaço se daria como um processo particular de adequação material e
simbólica através do tempo, fator necessário para que a sociabilidade entre os moradores e
seus antigos vizinhos produzisse seus efeitos sociais e culturais, tais como a manutenção dos
laços sociais estabelecidos com a localidade de origem e o acréscimo de novas relações
sociais na localidade atual.
Com o progresso das obras e a construção de novos conjuntos, outras famílias foram
reassentadas, o que estabeleceu uma diferença no tempo de ocupação dos moradores. Devido
a tal fator, houve um intervalo de dois anos entre os dois grupos contemplados pela pesquisa.
Sendo o espaço apropriado como um produto que corresponde a uma prática social definida,
buscávamos identificar e analisar como a sociabilidade entre os moradores influenciava nos
modos de ser e conviver em um conjunto habitacional verticalizado.
Na Vila Senhor dos Passos, o espaço é caracterizado por casebres auto produzidos
conforme a necessidade e os recursos de cada família, onde se reuniam vários barracões
24 Seis cômodos, divididos em dois quartos, sala, área de tanque conjugada com a cozinha e um banheiro.
72
divididos entre pais, filhos casados, netos e, em alguns casos, barracões para aluguel. De
acordo com citação recorrente dos moradores, o terreiro é o espaço de socialização das
crianças, familiares e amigos, espaço de confraternizações, brincadeiras e convívio, um misto
de ambiente coletivo dos residentes e um espaço privado para manutenção de uma cultura
particular, local de encontros religiosos, agrupamento de jovens para ouvir funk¸ canteiro para
criação de animais de estimação, plantios de subsistência, festas de família dentre outros.
Durante as entrevistas, os moradores contaram de modo espontâneo sobre o seu local
de origem, o que contribuiu para compreendermos o contexto em que adquiriram seus hábitos
e costumes. A origem de nascimento dos entrevistados25 contribuía, para que a lembrança do
local de moradia fosse mais afetuosa, remetendo a hábitos e costumes da vida rural. Os
entrevistados relataram que, no passado, a Vila era considerada um ambiente mais seguro e
que transmitia a noção de que viver na favela era como viver em um lugar qualquer da
cidade: “A vila antigamente era mais tranquila do que hoje em dia.” 26 (Grupo 2, 2010). Ou:
“Eu morava no interior de Minas, em Varzelândia. Vim para Belo Horizonte com meus pais.
(...) Moro na vila há uns 50 anos, na mesma casa. Meu pai veio para cá e começou morando
de aluguel, depois ele vendeu a casa no interior e comprou aqui onde moro até hoje.” (Grupo
2, 2008). Ou: “Eu vim para Belo Horizonte, morar na casa de uma irmã, quando tinha 15
anos. Vim para trabalhar e ajudar meus pais e meus treze irmãos, logo depois me casei e vim
morar na Vila Senhor dos Passos.” (Grupo 1, 2008)
Em relação a alguns entrevistados, observamos o movimento migratório do meio rural
para o meio urbano, mobilidade que também impulsionava as novas gerações, que buscavam
na capital o acesso ao trabalho e, consequentemente, a melhores condições de vida. Feitas as
primeiras considerações sobre o espaço, passaremos à análise relativa aos sentimentos dos
moradores em sua antiga casa e no apartamento.
5. 2 Percepções sobre a moradia: Casa versus apartamento
Os sete moradores participantes da pesquisa de 2008 e revisitados em 2010 foram
arguidos a partir de um roteiro de pesquisa que versava sobre como era a sua moradia de
origem: as características físicas e as experiências de ocupação da antiga casa, se gostavam
25 Nascido no interior do Estado ou nascido na capital, mais especificamente na própria Vila. 26 Informação verbal, por meio de entrevista.
73
ou não do local e o modo de uso e distribuição do espaço habitado. Com essas informações,
buscamos resgatar na memória dos entrevistados marcas deixadas pela vivência na antiga
moradia, para que essas servissem de contraponto às percepções da moradia atual.
A casa era um espaço habitado de múltiplas significações que contribuía para a
composição de uma identidade urbana particular, entendida como herança familiar, produção
dos pais que investiram em um local, acreditando que aquela seria a residência para
prosperidade e socialização dos mesmos. Ela era como um espaço interno, personalizado
conforme os anseios e a condição econômica de cada família. Na medida em que o orçamento
familiar crescia, a seu modo, o morador ampliava a área construída e, diante da ausência de
uma área livre para expandir, as construções seguiam a lógica de verticalização da moradia.
Para a reforma da casa, havia uma organização de mutirões entre familiares, vizinhos
e amigos, consolidando um espaço de memória, sociabilidade onde transcorre a solidariedade
entre iguais. Em relação à infra-estrutura, muitas casas não possuíam reboco, o que lhes
oferecia um aspecto de construções inacabadas, produzidas pelos próprios moradores, um tipo
de sociabilidade destacada por Park (1976) capaz de criar e fortalecer redes de mútua ajuda,
ações que ao longo dos meses e anos fazem da casa um espaço em constante transformação. A
foto 10 representa a situação física das moradias na vila:
Foto 10: Caracterização das casas da Vila Senhor dos Passos.
Fonte: Google Mapas, 2011.
O aglomerado de casas e os estreitos becos que compõe a vila passaram por
transformações com as intensas intervenções públicas dos programas de urbanização
74
(Programa Alvorada e HBB), fossem essas reformas estruturais ou pontuais. Cotidianamente,
eram feitos pequenos reparos por conta própria, de modo que atendesse, minimamente, às
novas configurações sociais das famílias, como o acolhimento dos netos e filhos, que
permanecem morando com os pais depois de casados.
A casa proporcionava não somente um acolhimento físico, mas um espaço
indispensável para as relações sociais e o estabelecimento da identidade dos sujeitos na
sociedade contemporânea. Viver em uma moradia com boa infra-estrutura e acabamento
torna-se um símbolo de distinção entre as pessoas. Esta diferenciação atrelada ao modo de
construção e acabamento da casa se opõe a estrutura padronizada do apartamento. As distintas
formas de melhorias habitacionais simbolizam, mesmo que limitadamente, uma
individualidade manifesta no espaço físico.
Os apartamentos foram entregues aos moradores com acabamento parcial: azulejos
nas paredes da cozinha e do banheiro até 1,5 (m) sem acabamento, pintura das paredes, piso
grosso no restante dos cômodos. Desse modo, os moradores entrevistados praticavam sua
individualidade concluindo o acabamento a seu modo, desde pinturas simples ou decorações
mais arrojadas à colocação de pisos e portas. Essa posição é partilhada por todos os
moradores, pois os que não possuem condições financeiras para tal reforma, sentem certo
desconforto em relação a seus vizinhos, como observado na fala da moradora do grupo 2,
que, em 2008, aguardava a mudança para o apartamento: “Eu gostaria de arrumar o
apartamento, mas estou sem condições porque to (sic) desempregada. Eu to (sic) triste por
não ter dinheiro para arrumar e muitas pessoas (vizinhos) se sentem melhor do que a gente,
porque estão arrumando o apartamento.” (Grupo 2, 2008)
Em 2010, a mesma moradora relata a satisfação em reformar o apartamento, depois
que conseguiu um emprego. “Assim, para me manter no apartamento eu tive que voltar a
trabalhar, porque não sou aposentada. Eu to (sic) muito cansada, já estou velha, mas eu to
(sic) feliz porque já coloquei piso na sala e nos quartos e, agora, vou comprar piso para
colocar na cozinha.” (Grupo, 2, 2010)
Em uma dinâmica social onde a condição de renda dos moradores é um aspecto
determinante na melhoria e na aquisição de uma moradia, a unidade habitacional como
contrapartida ao processo de remoção, representava um espaço adquirido como direito e não
produto resultante da individualidade. A normatização comum aos conjuntos habitacionais
verticalizados também incidia como uma limitação dos recursos de diferenciação entre os
moradores dos conjuntos da Vila Senhor dos Passos, sendo o espaço interno, o único
ambiente propício para tal iniciativa.
75
A casa como espaço privado da família, nos conduz ao conceito de privado estudado
por Hannah Arendt (2003) e Roberto da Matta (1985), ou seja, um local de intimidade
familiar, de construção de hábitos e valores particulares. Lugar onde as pessoas aprendem a
conviver entre si, ambiente de recolhimento que proporciona certa distância da rua, da
comunidade e da sociedade como um todo. Entendida como espaço privado, a casa é também
o local que promove outros códigos de conduta e práticas cotidianas. De acordo com os
entrevistados, a antiga casa representa a memória da história familiar, um espaço onde o
“passado não passou”, que remete à presença simbólica dos genitores, um lugar de desejáveis
reminiscências. Veja a fala dos entrevistados: “ a casa representa a lembrança do pai.” (Grupo
2, 2010). “Aquela casa deixa lembranças da minha família.” (Grupo 1, 2008)
Para as Ciências Sociais, em especial a Antropologia, a casa tem sido referência, uma
categoria de análise fundamental para a compreensão das práticas sociais e cotidianas de um
grupo. Na Vila Senhor dos Passos, como em várias outras favelas das cidades, as casas são
marcadas por uma precária infra-estrutura do local, o que pode ser verificado na fala dos
moradores: “Minha casa era pequena, não tinha ventilação, era área de risco, na beira do
barranco. Não batia sol e era tudo molhado, dava muito mofo” (Grupo 1, 2008). Observamos
em 2010 que a lembrança do morador em relação à casa é a mesma informada pelos
entrevistados do grupo 1 em 2008. Vejamos uma fala exemplar, a seguir:
Eu morava em uma casa que não tinha muita estrutura para a família toda, era cedida pelo meu sogro e era todo mundo ali junto (familiares da esposa), porque eram três cômodos muito ruins, muito pequenos e a casa toda desestruturada, trincada, mofada. Todo mundo dormia num quarto, e ele (filho) tinha bronquite e dificultava. Depois que nós viemos pra cá (apartamento) melhorou muito. (Grupo 2, 2010)
Historicamente, a casa é entendida como um espaço fundamental à vida dos seres
humanos, repleta de significados que nos oferecem segurança física, social e moral. Para
Matta (1985), casa e a rua são esferas sociais complementares e opostas. Postulamos que, a
percepção de grande parte dos entrevistados com relação à noção de casa é congruente com a
definição do autor. Vejamos:
A casa é tida como um espaço especial, um santuário, ou seja, “estar em casa” seria sentir em casa, onde as relações sociais são harmoniosas. A casa é o local onde as discórdias devem ser banidas, onde a família, os amigos, os parentes se reúnem para celebrar festas, para cultivarem as próprias relações sociais (nascimentos, aniversários, casamentos e funerais). (MATTA, 1985, p. 17)
76
O apartamento é considerado tanto pelo poder público, quanto para os moradores uma
melhoria habitacional qualitativa, a qual promoveria uma moradia digna, melhores condições
de vida, ambiente que transmitisse a perspectiva de renovação, de desejos adiados pelas
condições sociais adversas. “O apartamento para mim é uma moradia digna, entendeu? Com
saneamento básico, é uma melhoria para todo mundo.”(Grupo 2, 2010). No entanto, outros
entrevistados destacavam certa insatisfação com o local, devido aos conflitos coletivos que
ocorrem na vida em condomínio. As reclamações mais comuns em relação ao conjunto
habitacional são: invasão de privacidade; uso indevido dos espaços coletivos; sons e ruídos
em horário impróprio; ausência de controle na entrada do prédio, facilitando a presença de
estranhos no local, ou seja, comportamentos que comprometem a ordem e a convivência entre
os vizinhos no conjunto habitacional.
No apartamento, o ambiente apresentava mais espaço e conforto do que nas antigas
casas, onde as famílias abarrotavam-se, sendo comuns, os pais e filhos dormirem no mesmo
quarto, conforme observado na fala anterior. Lugar em que pais e filhos casados moram em
um mesmo espaço, constituindo um local multifamiliar. No discurso dos entrevistados que
tinham previsão de mudança para o apartamento, pôde-se observar grande expectativa, mas
também certo receio quanto aos conjuntos habitacionais. “Pra mim foi bom, porque eu vou
ter meu quarto separado, cozinha, banheiro só pra mim. Porque aqui o banheiro é coletivo
para mim e para minha mãe. Aqui (casa) é uma guerra pelo banheiro. A cozinha eu uso junto
com a minha mãe.” (Grupo 2, 2010) E: “Eu gostei de ir para o apartamento, porque a gente é
pobre e não tem condições de comprar um apartamento e eu precisava sair dali mesmo,
porque a minha casa estava caindo e eu não tinha para onde ir. “(Grupo 1, 2010)
Em 2010, após dois anos de moradia no apartamento, o grupo 2 já não possuía o mesmo
entusiasmo, mas mantinha as posturas perseverantes em relação a sua vida, buscando
prosperidade no novo ambiente, como pode ser ver analisado pela fala do morador.
Lá dentro você pensava assim, o que vai ser do futuro do meu filho? Lá você tinha que baixar a cabeça para todo mundo (os traficantes) e aqui no apartamento não. Hoje, você fala: ele vai ter que estudar, vai ter um futuro, pra depois você chegar e as pessoas abaixarem a cabeça para você. Você vai andar de cabeça erguida e lá (vila), você tinha que andar de cabeça abaixada para todo mundo. (Grupo 1, 2008)
Quanto à liberdade, o assunto foi muito citado pelos moradores, mas apenas em
relação à antiga casa. A liberdade apareceu associada à privacidade, onde o muro servia como
limite para exposição e maior segurança do local. No presente, a relocação em apartamento
exige dos moradores a adaptação aos novos modos de vida, onde observou-se certa reserva,
77
um retraimento da vida coletiva (Simmel, 1979), através de pequenos costumes, como a
instalação de cortinas em todos ambientes, a instalação de grades no prédio e a vigília
constante das pessoas que transitavam nas escadarias e corredores.
Alguns entrevistados expressaram-se de forma saudosista sobre a vida na antiga casa,
local restrito ao olhar do outro, diferentemente das janelas dos apartamentos, expostas a
outros apartamentos e a outros prédios. Neste aspecto, havia uma perda do espaço privado,
contribuindo para comportamentos de reserva perante o olhar do outro, diferentemente da
antiga casa, onde existiam comportamentos intimistas27. Em parte, este saudosismo era em
relação à memória de um espaço externo à casa, comumente chamado de terreiro28, utilizado
para brincadeira das crianças, ambiente seguro para aqueles que ali residiam.
A lógica liberdade/privacidade é destacada nos discursos dos moradores que, durante a
adaptação, sentem algumas dificuldades na vida em condomínio. Diante da limitação do
espaço e as regras de convívio compartilhadas, o rito familiar festa perde efeito de coesão
coletiva entre os eleitos, dadas às limitações de horários e espaço. Os moradores se remetem a
antigos hábitos e costumes que, no apartamento, sofreram mudanças, como reuniões
familiares. Enquanto na casa este acontecimento durava em torno de um final de semana (três
dias), nos apartamentos, as festas possuem hora marcada para terminar. Em 2008, o grupo 2,
possuía boas expectativas em relação ao apartamento, como pode ser observado na opinião do
morador:
Aqui na vila as crianças não têm liberdade, não podem brincar no beco e tem que ficar dentro de casa. No apartamento, vai ter espaço, vai ter rua e eu acho bom porque vai ter mais segurança. Diferente daqui (casa) a gente vai ter espaço para eles (crianças) e pra gente também. Mais espaço para as crianças, para elas mesmas fazerem o dever de casa. Um conforto residencial, um lazer para as crianças. A sensação que a gente tem para o apartamento é de recomeço. Vamos levar as coisas boas dessa casa e vamos começar um novo caminho. E lá vai ter mais comodidade, a sala vai ser para estudar e nos quartos para dormir vai ser mais dividido. (Grupo 2, 2008)
Um fato importante a ser considerado para análise é que, como citado anteriormente,
os apartamentos oferecidos aos moradores não possuem acabamento interno, e com isso, foi
necessário fazer algumas reformas29 particulares antes da transferência para o conjunto
habitacional. Desse modo, os padrões arquitetônicos das residências transformaram-se de
acordo com as possibilidades financeiras de cada família, o que subverte a lógica de
padronização dos apartamentos, criando uma disputa entre seus habitantes. Não obstante,
dadas as diferenças intrínsecas entre os condôminos, observamos que ainda existem
27 A exposição da intimida na vida pública. 28 Em Minas, o quintal da casa é chamado de terreiro. 29 Colocar piso, pintar as paredes, colocar portas nos quartos e completar os azulejos na cozinha e banheiro.
78
apartamentos que não possuem reformas e outros que, considerada a qualidade do
investimento, “lembram” os prédios de classe média.
Nos depoimentos dos entrevistados em relação à mudança para os conjuntos
habitacionais, a noção de vizinhança e sociabilidade perde um pouco do seu significado, pois
na antiga moradia as relações sociais eram espontâneas, os vizinhos tinham mais intimidade
com o outro, todos se visitavam, a sociabilidade e a solidariedade eram maior entre eles.
Vejamos nas falas dos pesquisados:
Eu acho que a liberdade em casa e no apartamento era diferente. Na minha casa antiga, eu tinha companheirismo. No final de semana, a minha família ia para minha casa, aí, a gente fazia festa. E aqui no apartamento não tem liberdade, minha família não vem aqui e você tem até certo horário para fazer festa porque depois deste horário o pessoal do prédio reclama. (Grupo 1, 2008)
Ao resgatarem temas como as regras de convivência nos conjuntos habitacionais, os
entrevistados queixaram-se que o caráter impositivo destas interferia no modo de ser das
famílias, exigência que não havia na antiga casa, local onde recebiam e faziam mais visitas.
Nos apartamentos, os condôminos se isolam: “Você fica mais preso, porque aquele diálogo
que a gente tinha lá em cima (beco), não tem. Tem pessoal que a gente fica praticamente uma
semana sem ver, então você não conversa”. (Grupo 2, 2010) As falas dos entrevistados vão ao
encontro dos estudos de Simmel (1979), que afirma que na metrópole, o desenvolvimento do
capitalismo desencadeou alguns processos sociais, sendo o individualismo dos indivíduos um
fato considerado normal para as grandes cidades.
A gente era completamente diferente (na casa). A gente teve que mudar muita coisa para vim (sic) para cá (apartamento). A gente tinha costume de ficar à vontade dentro de casa, tudo bem que a gente tinha vizinhos, mas tinha muro. A gente tinha liberdade dentro de casa. A gente tinha um terreiro e um muro, mesmo a casa sendo pequena, a gente tinha outra liberdade. Os nossos filhos na casa tinham outra liberdade. No apartamento não tem, você fica mais preso. E por mais que você queira tem que fechar a janela e a cortina para ter liberdade. (Grupo 1, 2008) Eu acho que a liberdade em casa e no apartamento é diferente. Minha família (irmãos) veio toda para apartamento, mas não é mais unida. Cada irmão tem seu apartamento. Só quando a gente vai para a casa da minha irmã é que juntamos toda a família. Com todos os problemas que a minha casa tinha, eu gostava da minha liberdade (Grupo 1, 2010).
Examinamos também que nos conjuntos habitacionais da Vila Senhor dos Passos, o
projeto arquitetônico original previa uma área comum aberta à circulação dos moradores da
localidade e do entorno, porém, os futuros condôminos alegaram que a ausência de muros
79
comprometeria a segurança e a privacidade dos ocupantes e, por iniciativa coletiva, lutaram
para o cercamento do conjunto. O projeto aprovado pela URBEL foi o cercamento com
grades, de modo que os conjuntos não ficassem totalmente fechados em relação ao entorno.
Como pode ser observado (ver foto 11), os conjuntos habitacionais possuem grades
delimitando o espaço social restrito aos condôminos.
Foto 11: Foto que caracteriza o cercamento dos conjuntos habitacionais.
Fonte: Habitar Brasil-Bid (HBB)/2009
Quando indagamos sobre o local onde se sentiam mais seguros, todos os entrevistados
relataram que o conjunto habitacional oferecia mais segurança do que a casa. Vejamos uma
fala que corrobora essa idéia: “Sinto (sic) mais segura no prédio, porque no apartamento até
chegar à porta da gente, tem mais dificuldade, e em casa a porta tá (sic) em frente”. ( Grupo 2,
2010). Mesmo aqueles entrevistados que possuem resistência ao apartamento confirmaram o
que foi dito pelos demais.
Eu gosto da noite no apartamento, aqui é mais tranquilo. Eu durmo tranquilo. E a relação com a polícia também é melhor, eles hoje respeitam mais a gente. Quando o portão está fechado, eles pedem para abrir. Lá em baixo (vila) não é assim, eles chegam e metem o pé e entram mesmo. A policia não respeita mesmo. (Grupo 1, 2008)
80
Para os entrevistados, a ideia de morar em conjunto está aliada à composição de um
espaço coletivo, o que proporcionaria maior segurança. Contudo, para manter o ambiente
seguro, é necessário o cuidado cotidiano de todos, como por exemplo, lembrar de fechar o
portão ao entrar. Vejamos a reclamação de uma moradora sobre este assunto: “O problema
aqui é que a portaria é igual portaria de zona, fica sempre aberta.” (Grupo 1, 2008).
Um episódio importante a ser notado é que a insegurança revelada pelos moradores
está situada e relacionada à violência e ao tráfico de drogas que ocorria próximo às suas
antigas moradias. Esta é contraposta a certo grau de segurança no apartamento. A questão da
segurança não é absoluta e nem invulnerável, mas relativamente maior do que na antiga casa.
A segurança é entendida pelos moradores como não ter mais a violência na porta, sem drogas
e traficantes por perto. Na Vila, a ausência de atividades que fizessem com que a população se
apropriasse dos espaços públicos tornou estes espaços de uso privado dos traficantes locais.
“Não sei por que a prefeitura constrói esses espaços que ficam vazios (praça, mirante), eles
deviam ter construído uma área para os outros prédios que não tem espaço para garagem.”
(Grupo 2, 2010).
No conjunto habitacional, os espaços de sociabilidade são mínimos e, em alguns
prédios, inexistentes como podemos verificar pelo depoimento anterior. Desse modo, os
moradores têm que ser criativos para o seu lazer, integrando-se a outros espaços públicos fora
da Vila, como parques e praças. Em especial aqueles que possuem crianças pequenas,
preferem passeios gratuitos. “Quando dá para levar, eu levo à casa da minha mãe, porque a
situação é difícil, entendeu? Eu trabalho como garçom e ai você já viu a situação financeira.”
(Grupo 2,2010). Nos conjuntos habitacionais, os espaços coletivos são restritos aos
condôminos (corredores e o pátio externo) ambientes que são para o uso das pessoas que
moram e trafegam no local. Na figura 12 abaixo, pode ser verificado o espaço em comum dos
moradores.
81
Figura 12: foto da área comum do conjunto Nova Era, com 32 famílias.
Fonte: URBEL, 2000.
Para Roberto da Matta (1997), a oposição entre casa e a rua se assemelha a
contradição ao apartamento enquanto ambiente familiar (esfera privada), a rua (esfera
pública) como espaço público, pode ser vista como ambiente propícios para a sociabilidade.
No apartamento, os moradores mencionam o espaço físico restrito como justificativa para o
controle das relações sociais, reservadas ao núcleo familiar e poucos amigos.
A rua é o espaço da coletividade, onde o controle das relações não é possível. A
discussão sobre o público e privado tomada no presente texto, é devido às transformações
ocorridas na Vila Senhor dos Passos, onde, através das obras, foram implementados espaços
públicos projetados para o convívio social da comunidade, a saber: praças, anfiteatro e uma
quadra poliesportiva. Podemos observar que no conjunto habitacional a área comum (espaço
coletivo) dos condôminos foi fechada com grades devido a reivindicação dos moradores do
prédio.
Um reflexo dessa privatização dos espaços na Vila Senhor dos Passos é o fechamento
de um beco através do portão, pelo qual apenas os moradores daquela área têm acesso à
entrada (ver foto 13). O espaço público destinado à passagem de pessoas, agora se torna
restrito aos moradores daquele beco, caracterizando-o como espaço público-privado, muito
recorrente na sociedade atual.
82
Foto 13: Rua Fagundes Varela, a esquerda os moradores colocaram portão de grade no beco.
Fonte: Google Mapas, 2011.
Para Roberto da Matta (1997) e Sennet (2003), na sociedade contemporânea, a
distinção entre público e privado não é mais possível, pois estes são espaços que se
confundem e se complementam. As constantes transformações vividas no espaço urbano da
vila obtidas através de processos como os de revitalização e urbanização, mostram uma outra
lógica para estes conceitos.
De fato, não havendo separação entre público e privado, produz-se um fenômeno
citado por Sennet (2003), de sociedade intimista, que se deve ao esvaziamento do domínio
público, existindo uma exposição da personalidade, da vida privada na vida pública. Para
Sennet, o isolamento social nas grandes cidades é devido a transformação das relações sociais
desde o Antigo Regime propiciando a redução dos espaços públicos. Neste sentido, a
abordagem defendida por Sennet se difere do fato analisado, pois no caso de vilas e favelas,
espaços considerados informais pela indefinição do que é público e privado, ou seja, neste
ambiente considerado público não haveria a valorização do privado. A Vila Senhor dos
Passos, como outras vilas, é comum a exposição da vida privada, de sua personalidade, seu
modo de vida (conflitos e opiniões), ao ambiente público, o que se deve ao estreito espaço e
ao adensamento existente entre as casas, os becos e as pequenas ruelas.
Portanto, um dos objetivos da pesquisa é compreender as alterações na vida cotidiana
dos moradores após a transferência da casa para o apartamento e como eles lidam com esta
mudança. A casa para os moradores é o local onde se tinha liberdade ganhando um valor
simbólico muito importante. Já o apartamento é uma melhoria relacionada ao aspecto físico
da moradia. Morar em um conjunto habitacional exigiu algumas mudanças de comportamento
83
familiar baseados em regras estabelecidas pelos próprios (festas, reuniões familiares, som alto
têm horário para acontecer) o que faz dessa transferência um comportamento natural para
todos os indivíduos submetidos a esta situação.
Um fato importante na análise é o período incipiente de residência nos conjuntos
habitacionais em que os moradores se encontram (período máximo de cinco anos). Tal
período demonstrou-se insuficiente para a consolidação da adaptação no apartamento. Deste
modo, como a pesquisa foi realizada no período de adaptação dos moradores, observou-se
contradições contidas em seus relatos por não haver clareza de alguns temas abordados.
Assim, considera-se que um período maior para apropriação do espaço habitado e da
convivência com seu entorno contribuirá para elucidar atitudes decisivas sobre a nova
moradia e as relações sociais estabelecidas após esta mudança.
5.3 A sociabilidade dos moradores dos conjuntos habitacionais
A sociabilidade é o produto da interação entre os indivíduos nas relações cotidianas;
por meio dela, são estabelecidas percepções a respeito do outro. Essas percepções norteiam
aproximações e distanciamentos dos sujeitos em relação aos grupos sociais. A sociabilidade é
um processo em que o indivíduo influencia e é influenciado, possibilitando a igualdade entre
os participantes, o que possui caráter democrático. Este conceito simmeliano é muito utilizado
em estudos de análise da vida urbana, em especial aqueles que retratam as grandes cidades
(Metrópoles).
Postula-se que, por meio da sociabilidade no conjunto habitacional, foram
estabelecidas percepções em relação ao outro, concepções relativas conforme a nova forma de
morar. Tal premissa deve-se à dinâmica da vida urbana contemporânea, em que o aumento do
número de vizinhos modifica o modo como eles se relacionam, tendendo a uma lógica mais
utilitarista das relações sociais, que repercutem em fenômenos de transitoriedade,
superficialidade e diferenciação das interações entre os indivíduos.
Na pesquisa, os moradores relataram sobre a vida e a adaptação (dificuldades e
facilidades) nos conjuntos habitacionais, a relação com antigos vizinhos do beco e os novos
vizinhos, assim como as alterações promovidas pelo processo de reassentamento. No que diz
respeito às relações sociais predominantes na vida em condomínio, em 2008, alguns
entrevistados tinham receio por tal mudança, devido às dificuldades de se habituarem à vida
84
coletiva. Porém, em 2010, as respostas manifestaram-se positivamente, após as interações
cotidianas dos moradores nos conjuntos habitacionais, o que ocorre através das condutas de
aproximação, solidariedade ou diferenciação com o outro.
Neste sentido, a convivência é pauta recorrente das queixas e das dificuldades
relacionadas pelos moradores, bem como a adequação ao apartamento, que assumiu para o
estudo um papel fundamental para analisar como eles interagem. As contas conjuntas entre
condôminos geram constrangimentos aos moradores. Sendo a conta de água dividida por
todos, o atraso desse pagamento prejudica a todos no prédio, impasse que interfere na
sociabilidade entre os eles. “Na casa, você paga as contas na hora que você pode, e no
apartamento, você tem que pagar certinho porque a conta é junto com outros moradores”
(grupo 2, 2010). Outro depoimento corrobora esta mesma idéia, “Aqui na minha casa eu pago
as conta (sic) na hora que eu tenho dinheiro, e no apartamento como que eu vou fazer para
pagar quando não puder?” (Grupo 2, 2008). A mudança para o conjunto habitacional
representou para grande parte dos moradores a perda de sua autonomia gerando uma
preocupação e uma prática coletiva incomum para os condôminos.
Os acontecimentos diários repercutem na convivência e produzem diferentes situações
em que o indivíduo passa a pensar no bem-estar que demanda uma aproximação com o outro,
interferindo no processo de adaptação dos moradores. No período atual de adaptação, os
problemas relatados foram múltiplos, dentre eles, a incidência de hábitos e costumes
individualistas e a dificuldade de conviver com os outros. Na antiga moradia, os moradores
relataram que há convivência era mais íntima. “Eu acho que a convivência era melhor em
casa porque era mais familiar.” (Grupo 1, 2010), isto porque essa relação se dava no ambiente
da casa e no prédio, é necessário relacionar com outras pessoas do condomínio.
Na pesquisa realizada com os grupos (1 e 2) que possuem diferentes anos de
ocupação nos conjuntos habitacionais, a única diferença que demarca claramente a diferença
entre eles é a convivência com os antigos vizinhos. Verificou-se nos moradores do grupo 1, os
primeiros a serem reassentados, que a percepção em relação a convivência com os antigos
vizinhos foi alterada. Já para o grupo 2, essa diferença não foi destacada. Para o grupo 1, a
queda gradual da qualidade das relações está associada à perda de espaços de interação,
condição que contribui para a intensificação da vida privada dos moradores agora residentes
em apartamento.
A redução da sociabilidade entre os moradores e os antigos vizinhos foi gerada por
comportamentos sociais e atitudes que Simmel chamou de reserva (preservação da intimidade
85
do indivíduo) e atitude blasé30, pois, após a mudança para os apartamentos, momento em que
perceberam a realidade31 anterior de modo distinto da sua, passaram a não reagir a esses
estímulos diários tornando-se indiferentes à vizinhança. No relato dos entrevistados, a rotina
cotidiana alterou a interação entre os antigos vizinhos, proporcionada pela mudança
geográfica, mas também pelo distanciamento dos moradores, que se isolam no apartamento.
A relação com o vizinho mudou, porque as pessoas antes se encontravam mais porque estávamos próximos fisicamente e conversávamos mais. Agora a gente não conversa muito, porque um não vai à casa do outro. Aqui a gente conversa mais no portão. As pessoas não têm mais o habito de visitar a gente. As pessoas que eram vizinhas da gente (na antiga casa) quase não visitam a gente. (Grupo 1, 2010) A convivência mudou, porque as pessoas se encontravam mais, conversam mais quando era no beco. Agora a gente não conversa muito, porque ninguém vai à casa do outro. Aqui a gente conversa mais no portão, mais fora do prédio do que dentro do apartamento. Aqui ninguém frequenta a casa do outro. As pessoas não têm mais o hábito de visitar o outro, porque elas acham que a gente vai ao apartamento para ficar olhando o que elas têm. (Grupo 1, 2010).
Alguns moradores acreditam que na medida em que o convívio entre os moradores é
aprimorado, os problemas comuns da vida em condomínio são amenizados e a sociabilidade
nos conjuntos tende a melhorar.
Ah, senti dificuldade no apartamento... de descer escada toda hora que eu quisesse sair de casa, de ter que abrir e fechar o portão e de não deixar ele aberto e da convivência. A gente tem que procurar conviver com todos e nem todos são iguais a gente, nem todos têm uma boa convivência. Eu tive que procurar fazer uma boa convivência com eles e conversar muito, até chegar ao ponto em que todos estão hoje. Todos são amigos, não tem inimizade, porque antes eles gritavam muito, brigavam muito, ficava (sic) de mau humor... Agora isto não existe mais aqui. (Grupo 1,2010)
Entretanto, para a maioria, o apartamento é significado de isolamento e pouca
conversa entre os condôminos, o que ocorre de maneira mais objetiva, constituindo pouco
diálogo, diferentemente da sociabilidade simmeliana, pois para eles, a sociabilidade que
tinham nas antigas casas não foi mantida.
Nota-se que, a relação de vizinhança está diretamente ligada à noção espacial.
Conforme Park “proximidade e contato entre vizinhos são as bases para a mais simples e
elementar forma de associação com que lidamos na organização da vida citadina” (1976, p.
31), e na medida em que o espaço urbano é transformado, as relações sociais são alteradas.
30 Intensificação dos estímulos nervosos ao ponto máximo, no qual esses chegam a cessar. 31 A pobreza, precária infra-estrutura das casas e ausência de serviços públicos.
86
Em tese, a proximidade física e o contato superficial não são suficientes para se estabelecer a
sociabilidade. Assim, os moradores da vila mantiveram-se próximos fisicamente, mas a forma
de viver em apartamento mudou a forma de conviver com o outro, dado o predomínio de um
comportamento marcado por uma maior distância ou certa reserva:
As pessoas falam que todo mundo que foi para o apartamento mudou, ficou mais metido. Aqui tem muito disso. Nos outros apartamentos eu vejo o povo reclamar, passam e nem te cumprimentam. As pessoas da vila falam que as pessoas que mudaram para o apartamento modificaram. Eu já vi algumas pessoas fazerem isso e as pessoas que mudaram para o apartamento não conversa (sic) mais com os outros vizinhos. Quando a pessoa estava lá na casinha, era amiga, e depois que mudou para o apartamento ela nem liga para os outros. (Grupo 1, 2008)
Eu não vou a prédio nenhum visitar os outros, nunca fui... Ninguém visita prédio de ninguém. Porque se a gente sai da nossa casa (apartamento) e vai visitar ali. [...] o pessoal acha que a gente ta olhando a casa dele, o que tem lá. O pessoal acha que a gente vai ver se a casa (apartamento) da gente é pior ou é melhor que a deles. As pessoas têm aquele preconceito de achar que a gente vai visitar porque está querendo ver o que ta (sic) acontecendo do lado de lá. Eu que sou sindica aqui, nunca fui ver como é esse prédio ali e nem como é o outro lá. Porque nem as próprias pessoas te convidam. Na casa não, as pessoas falavam... Oh, fulano vamos lá em casa tomar café pra gente conversar e hoje aqui no (apartamento) você não vê isso. (Grupo 1, 2010)
Com o passar do tempo, o distanciamento da antiga vizinhança proporcionado pela
disposição física da nova moradia é um dos aspectos que culminou para tal proposição, pois
segundo a moradora “Mudou assim, porque eu moro no prédio e no terceiro andar e para
descer e subir toda hora é mais difícil. Se você desce não quer subir, dá preguiça... então fico
mais presa dentro de casa.” (Grupo 1, 2010). Desse modo, a maioria dos entrevistados alega
que a nova moradia proporcionou um isolamento com relação aos vizinhos e apenas uma
entrevistada afirmou que no apartamento as pessoas convivem e são unidas:
Aqui no apartamento a gente não esquece de nenhuma data e aqui você quer comemorar a todo tempo. Você faz um bolinho, o outro chega com um refrigerante. Hoje eu to (sic) muito mais preocupada com a casa, fazer comida, estar com meu filho. Antes, em ganhar dinheiro e para pagar alguém para cuidar dos meus filhos. Não tinha muito carinho e atenção com eles. Lá (antiga casa) dentro, eu saía muito, eu não dava valor para nada, gastava muito dinheiro com isso, e pensava: se eu morrer hoje, amanhã não tem problema. Hoje isto mudou, eu saio e observo quem está frequentando o lugar, se eu achar que dá muita gente estranha, eu não volto mais. (Grupo 1, 2010)
Um fato importante observado nesta fala é que existe uma sociabilidade e uma
solidariedade entre vizinhos, no entanto, percebe-se que a mudança propiciou outro
87
comportamento social não existente na antiga casa, pois segundo a entrevistada, ela passa a
observar o lugar que frequenta e as pessoas que convivem no local.
Na Vila Senhor dos Passos, algumas localidades são caracterizadas por pequenos
barracões sem terreiros, com becos que são comumente utilizados como prolongamento das
casas, trechos estreitos onde o público e o privado se sobrepõem, onde a apropriação de áreas
de acesso produz um espaço coletivo marcado pela convivência comunitária, coexistências de
conversas livres e trocas de favores. Com as intervenções físicas propostas, o
redimensionamento do espaço altera a dinâmica social do local. A característica do relevo da
Vila Senhor dos Passos, que se dividia em localidades planas de maior altitude e pontos de
encostas e buracos entre morros foi determinante para que algumas partes fossem adensadas
primeiras (URBEL, 2000), com destaque para a parte alta que ofertava as áreas mais
apropriadas para a moradia (ver figura 4):
Figura 4: Caracterização da Vila parte baixa e alta.
Fonte: URBEL, 2000( Modificada pelo autor)
Tal definição geográfica é relevante para o entendimento das diferenciações
promovidas pelos moradores da comunidade, a partir da oposição entre pedaços ( Magnani,
2002) distintos no mesmo lugar, áreas valorizadas dada a melhor infra-estrutura urbana (ruas
pavimentadas, iluminação pública, rede de esgoto e ofertas de serviços públicos) e residencial
e áreas depreciadas, conforme a ausência das ofertas anteriormente citadas. Em um mesmo
88
território que compõe a Vila Senhor dos Passos, a diferenciação geográfica contribui para
breves oposições entre localidades de maior valor agregado, e, na medida em que essas
localidades são historicamente ocupadas, surgem atributos sociais que demarcam diferentes
modos de relação entre os moradores.
Como produto desta diferenciação, um beco da parte alta32 teria uma abertura para
ligá-lo a parte central da vila (parte baixa) que foi preservada, uma vez que os moradores
preferiram mantê-lo, e não ampliá-lo. (Ver foto 14). Observou-se que os moradores dos
conjuntos habitacionais que foram construídos na proximidade da parte alta, possuem poucos
laços de vizinhança com os habitantes da parte baixa.
Foto 14: Beco Saldanho Marinho, local que os moradores quiseram manter. (Parte alta)
Fonte: URBEL, 2000.
Deste modo, conviver agora como condôminos é uma nova fase na vida dos
moradores, sendo um aspecto importante a ser acompanhado, haja vista que este é um
processo involuntário. Habitar em conjuntos habitacionais é cada vez mais comum na
sociedade. Tanto para a classe média quanto para a classe baixa, a convivência, o conflito e a
individualidade gerados pela moradia devem ser repensados na rotina diária. O grande desafio
de morar em condomínio é o modo como são resolvidas as dificuldades, dado o grau de
negociação e superação da vida em conjunto, como diagnosticado por um entrevistado “o
32 Como já mencionado no capítulo 1,a vila possui um relevo acidentado, por isso possui partes altas e baixas. A parte alta possui uma infra-estrutura urbana, ruas, padrão de luz, rede e esgoto formal.
89
começo foi tumultuado demais, briga, confusão e muita dificuldade. O povo que nunca morou
em conjunto teve muita confusão e nós tivemos muita dificuldade para chegar aonde
chegamos hoje.” (Grupo 2, 2010).
Portanto, em relação à sociabilidade dos moradores nos conjuntos habitacionais,
observou-se apenas uma diferença em relação aos grupos (1 e 2). Para o segundo grupo, não
houve diferenças em relação à sociabilidade entre os antigos vizinhos que permaneceram nos
becos; já no grupo 1, a maioria dos entrevistados disse que a convivência não é mais a
mesma, isto porque, os próprios condôminos mudaram o seu modo de viver após o
reassentamento devido ao distanciamento proporcionado por essa mudança.
É importante ressaltar que a estrutura precária oferecida pela antiga casa não impediu
a emergência de boas lembranças e, até mesmo, a vontade de voltar atrás em relação ao
conjunto habitacional, pois para eles a casa era o espaço de conquista da sociabilidade. Para
Simmel (1983), a sociabilidade é uma ação fundamentada no momento que se convive com o
outro e nas situações análogas, nas quais as interações acontecem, de modo que o princípio
básico é o interesse pela interação. Era nas antigas moradias que, segundo os entrevistados,
ocorria uma sociabilidade de fato, no momento em que os moradores se reuniam sem
compromisso pelo prazer da interação em locais como os becos e nas portas das casas
próximas pelo adensamento do local.
Com a transferência para os conjuntos habitacionais as pessoas consideram que estão
mais restritas no espaço do apartamento, no qual os entrevistados se sentem mais focados na
esfera familiar. Para alguns entrevistados, a mudança para o apartamento serviu para que eles
dedicassem maior atenção à família e ao cuidado com a casa. Na experiência estudada, o ideal
de homem urbano, residente em uma moradia funcional, cujo espaço privado fosse mínimo e
cuja vivência pública (no trabalho, em equipamentos de lazer e em equipamentos de serviços)
fosse maximizada, não se efetiva. Os moradores desses locais se sentem mais isolados,
ausentes dos espaços públicos, diminuindo a sociabilidade com antigos e novos vizinhos, seja
por vontade própria, seja pela configuração dos novos espaços de convivência.
5.4 – Efeitos do lugar e sua incidência sobre os moradores
Na sociedade brasileira atual, a cidade torna-se um importante objeto de análise e
reflexão para o meio acadêmico, um ambiente dinâmico capaz de agregar os males e as
90
benesses da vida urbana, marcada por grandes contrastes históricos, como por exemplo, a
desigualdade social. Para Louis Wirth (1979, p.98), a cidade não é somente o “local de
moradia e de trabalho do homem urbano”, mas o centro de desenvolvimento econômico,
poder político e produção cultural, local de gigantescas aglomerações urbanas. Dentre elas,
destacamos as vilas e favelas e seu estilo de vida urbano. Historicamente reduzida à
malandragem e às contravenções – no passado – e à violência urbana e ao tráfico de drogas –
no presente –, as favelas são sistematicamente contrapostas à aparente “legalidade” da cidade
formal, quando referida à sua condição fundiária e construtiva, como na forma de uma
“conseqüência natural” da pobreza, da falta de infra-estrutura urbana e das precárias
condições de moradia.
Em Belo Horizonte, o processo histórico de exclusão das classes populares colaborou
para o estudo sobre o estigma territorial das favelas e os efeitos causados por ele na
identidade, nos modos de vida, hábitos e costumes constituídos. Deste modo, a identidade é
construída socialmente e está sempre em relação com o outro, assim como o estigma, cujo
processo de desqualificação social depende da alteridade. O estigma territorial, comumente
alinhado ao discurso de descrédito que ressoa na sociedade contemporânea, não se reduz às
versões do poder midiático perverso em relação à favela, mas se atrela à concepção atribuída
pelo Estado de “cidade informal” (Wacquant, 2006). Para esta pesquisa, postulou-se que a
mudança para os conjuntos habitacionais alteraria a percepção sobre o estigma territorial, ou
seja, em alguma medida, os conjuntos não seriam associados à favela, incidindo como uma
“rota de fuga” do estigma e suas consequências sociais.
Quando questionados aos entrevistados, como eles se referem ao local de moradia:
aglomerado, vila, favela, bairro ou outro termo, a maioria revelou não ter vergonha de dizer
onde moram em qualquer lugar que estejam. “Eu não tenho problema em falar que moro na
vila, sou transparente, eu falo moro na Vila Senhor dos Passos” (Grupo 2, 2010). No entanto,
quando questionado sobre o endereço atual, o mesmo entrevistado dizia: “o bairro que eu
coloco é Lagoinha” (Grupo 2, 2010). Vejamos outra fala semelhante : “Eu falo que moro na
Vila Senhor dos Passos, eu não falo mais favela. A referência que eu dou é o bairro lagoinha.”
(Grupo 1, 2010). Estes dizeres representam a maioria dos entrevistados, que demonstra
discrepância ao relatar sobre seu endereço, isto porque mesmo com a mudança para o
conjunto habitacional, os moradores permanecem na vila. Essa incongruência corrobora com
a idéia de Wacquant sobre o estigma territorial na França: “Basta esconder o endereço para
poder ‘ser aceito’ na sociedade mais abrangente” (WACQUANT, 2005, p.147).
91
Declarar morar no bairro Lagoinha permite uma suposição de que a omissão do
endereço é ocasionada pelo receio do estigma territorial. Maiolino (2008) citando Wacquant,
explica tais fenômenos como formas de “desterritorializar-se do lugar estigmatizado, na
tentativa de territorializar na cidade” (WACQUANT apud MAIOLINO, 2008, p.133). Para
alguns moradores, a reação dos outros ao ouvirem seu lugar de moradia ainda revela
preconceito, reforçando as opiniões citadas anteriormente e gerando uma justificativa ao falar
do lugar de moradia: “As pessoas falam: nossa mais lá (vila) é difícil, né? Eu respondo que
não é difícil, porque se vocês forem ver como estão as favelas hoje, vão ver que muita coisa
mudou por causa das obras.” ( Grupo 1, 2010) Ou: “Eu falo que moro na Vila Senhor dos
Passos, conhecida como ´buraco quente’, que moro num apartamento e que eles estão
verticalizando a vila.” (Grupo 2,2010)
O efeito positivo do lugar em relação ao novo endereço pode ser verificado pela
legalidade da moradia. A mudança para o conjunto habitacional, onde a referência formal é
composta por rua, bloco e apartamento apartam dúvidas frequentes para comprovação de
residência, como por exemplo, na procura por emprego. A situação difere do caso francês, em
que existe um estigma de morar em um conjunto habitacional popular de baixa renda que é
vinculado a pobreza, ao crime a degradação moral. Uma distinção em relação ao episódio
francês é que a iniciativa no Brasil é recente e vista pela sociedade como uma oportunidade de
melhoria, como pode ser observado no estudo de Ribeiro (2008) sobre dois conjuntos
habitacionais distintos no bairro Leblon, no Rio de Janeiro. Assim, tal efeito positivo
proporcionado pelo conjunto pode ser verificado na expectativa de morar no apartamento em
2008, e confirmado em 2010, após dois anos da mudança: “Ah, mudou... Porque no
apartamento você põe o nome da rua, ai você coloca o numero telefone (fixo), o numero do
apartamento, ai o pessoal não questiona nada.” (Grupo 2, 2010)
Muitas empresas quando veem o endereço de beco têm preconceito. Quando você dava o endereço de beco, as pessoas tinham muita discriminação. E como eles fazem para descriminar? Você faz a entrevista, mas eles não te chamam na hora que veem o endereço. Ao invés de falar beco, eu tenho que colocar Rua e o bairro eu coloco Lagoinha. (Grupo 2, 2008).
Nota-se certa distância do estigma territorial quando se vincula ao novo endereço do
conjunto habitacional, esse novo endereço promoveu, em certa medida, o acesso dos
moradores a serviços que antes não eram possíveis. A motivação de um endereço formal traz
aos moradores a perspectiva de inclusão social em bens e serviços que não eram alcançáveis,
devido às condições precárias de infra-estrutura e de mobilidade. Os correios, restaurantes,
92
lojas de eletrodomésticos, farmácias, são, agora, serviços de delivery demandados pelos
condôminos. Os veículos, como as motos e carros podem transitar livremente pelas áreas dos
conjuntos habitacionais facilitando estes serviços. “Se quer farmácia, quer gás, quer pizza,
tudo eles entregam aqui, no beco, isso não acontecia” (Grupo 2, 2010). “Hoje qualquer coisa
que você pede, chega até aqui. Um táxi eles perguntam se eu moro dentro da favela, ai eu falo
meu endereço que é rua tal, apartamento tal e eles veem. E quando você pede alguma coisa eu
dou o endereço e entregam aqui. Antes não era sim.” (Grupo 1, 2008)
A Vila Senhor dos Passos é marcada pela PBH como um lugar que não pertence à
Pedreira Prado Lopes. São duas localidades distintas que são referenciadas pela polícia e pela
mídia, como pertencentes ao mesmo local. Em seus relatos, os moradores fazem questão de
diferenciar entre Vila e Pedreira, deste modo, podendo ser verificada uma identidade com o
local de moradia, retomando o nome popularmente conhecido como buraco quente. “Quando
as pessoas perguntam se eu moro na pedreira, eu falo que moro no buraco quente.” (Grupo 1,
2010). “Tem gente que pergunta: é a Pedreira? Eu falo não, né? Pedreira não, é buraco quente,
Vila Senhor dos Passos.” (Grupo 2, 2010).
Nos conjuntos habitacionais, o relativo distanciamento proporcionado pela mudança
de local de moradia, faz com que os entrevistados percebam a realidade de outro modo,
concepção que contribui para a identificação dos riscos do ambiente em que viviam
anteriormente. A alteração na dinâmica cotidiana no prédio é contraposta àquela marcada pela
necessidade de ir e vir na comunidade onde residiam, revelando situações não questionadas
previamente. Por exemplo, o medo surge de forma manifesta quando ele não está mais
diretamente naquela rotina. Entretanto, esse relato não é partilhado por todos os entrevistados
reassentados, e sim, pelo conjunto mais afastado do centro da vila, o que torna essa vivência
mais distante, o lugar da antiga moradia passa a ter uma face negativa e “sinistra”, a noção de
normalidade cede espaço à sensação de estranhamento, o que influencia na manutenção das
relações sociais estabelecidas na vila, a partir do instante que não se concebe o local como
algo integrante à sua realidade.
Hoje se eu chego para conversar com uma colega ou parente dentro da Vila e você não tem para onde correr porque as casas hoje estão tudo trancada (sic). Você não tem para onde correr e tem aqueles “noiados” que ficam lá gritando: “normal, normal.” Assim, a situação daquele lugar piorou muito. Eu não tinha medo quando morava lá, mas agora eu tenho. Depois que eu vim para cá (apartamento) fiquei com medo. (Grupo 1, 2008) Eu acho que aquele lugar (vila) ficou sinistro, o astral é muito ruim. (...) antes eu entrava e saia e achava muito normal. Hoje eu entro lá e estou pior do que gente que
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nunca morou lá (vila) dentro, hoje eu penso: ai meu Deus, eu vou morrer aqui. Por mais que eu tenha parente lá dentro, sabe quando você já não participa mais daquilo? Eu não aceito mais aquela realidade. (Grupo 1, 2010)
Alguns entrevistados reproduzem o estigma, se diferenciando dos moradores da vila.
A mudança para o condomínio sustenta o mecanismo de distinção que demarca para maioria
dos entrevistados a noção do “eu” e os “outros”, ou como na maioria dos relatos analisados,
“aqui” (o apartamento) e “lá” (a vila). “Lá era o inferno, aqui é o paraíso. Aqui eu consigo
dormir tranquila. Lá na vila, eles não têm isso” (Grupo 1, 2008). Alguns pais entrevistados
relataram que para os filhos (crianças), a favela é caracterizada pelos aspectos físicos
degradados das casas, dos becos, locais de ponto de venda de drogas, e que os conjuntos
habitacionais não pertencem a ela, pois apresentam elementos distintos dos citados
anteriormente. “Meu filho mesmo fala que aqui não é favela. Ele diz que lá em baixo é favela
e não gosta de ir lá. Eu mesmo já peguei a mania dele. Eu falo que eu vou lá na favela. Eu falo
que não moro na favela, moro num conjunto residencial.” (Grupo 1, 2008).
No entanto, os adultos consideram que o estigma territorial imposto por moradores
externos a favela continua e nem o reassentamento em conjunto e a urbanização
proporcionaram a mudança desse preconceito arraigado, atribuído historicamente a estes
locais. “Não adianta! Para o pessoal de fora, favelado é favelado, não tem jeito” (Grupo 1,
2010). “Ah, se é favela tem preconceito. Mesmo com as melhorias feitas pela prefeitura, por
ser favela não tem jeito. As pessoas não conhecem como é aqui, e a maioria das pessoas na
favela é gente boa, mas tem aquele 1% que estraga tudo.” (Grupo 2, 2010) “Acho que não tem
como mudar, as pessoas sempre vão chamar de vila, ou favela, até na prefeitura é assim.”
(Grupo 1, 2008)
Destaca-se na narrativa do entrevistado, o estigma dominante que vincula em relação à
favela deve-se ao tráfico de drogas, mas enquadra todos os moradores da vila em um mesmo
padrão de comportamento, considerando que seus habitantes são coniventes com a realidade.
A discordância do entrevistado com essa percepção influencia em certa atitude de reserva
perante o visitante da vila. Segundo Wacquant (2006) quer “esses lugares (estigmatizados)
estejam ou não deteriorados e perigosos, sua população, seja ou não composta de pobres,
minorias têm pouca importância, pois basta a crença preconceituosa para engendrar
consequências socialmente nocivas” (WACQUANT, 2006, p.26). Conforme um morador,
“Favelado é favelado, mesmo com as obras não muda nada, todo mundo lá fora acha que aqui
é favela” (Grupo 1, 2010).
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A mudança para o conjunto habitacional não alterou de forma significativa a visão
dos moradores “de fora” da favela, como verificado anteriormente. Também para Maiolino
(2008), o outsiders/estigmatizador (os indivíduos de fora da favela) reproduz todo um
conjunto ideológico de estigmas, que se firma na existência de outro inferior
estabelecido/estigmatizado (morador da favela) para manutenção do mesmo.
Em outros lugares da cidade, parece que, quando eles não conhecem o morador, formam um pensamento só. Que ali só mora gente que vende droga, aquele ali saindo da favela não é um trabalhador, está saindo para buscar ou está entrando para pegar drogas. Por exemplo, esses playboyzinho (sic) acham que todo mundo está ali vendo. Eles enquadram todo mundo num mesmo padrão. Eu chegando à noite do trabalho, muitas vezes, eles me viam e perguntavam se eu tenho pra vender (droga). (Grupo 2, 2010)
Para alguns entrevistados, a mudança para o conjunto habitacional provocou uma nova
sociabilidade com pessoas externas à vila, uma aproximação com parentes, amigos que,
antigamente, não era possível. Considerando que o reassentamento para os conjuntos
habitacionais não ultrapassou os limites da Vila Senhor dos Passos, a mudança estrutural para
essas famílias ocorreu em relação ao apartamento. Neste novo espaço padronizado, os
moradores passam a checar as informações obtidas por eles sobre o apartamento para a sua
concepção sobre o lugar, através da sua experiência na vida cotidiana.
Distintamente da moradia precária da vila onde os cômodos são multiuso, o
apartamento possibilitou um ambiente apropriado para a socialização: a sala para receber
visitas, os quartos utilizados como dormitório, locais que possuem cômodos predefinidos para
estes papéis. Os entrevistados responderam em sua maioria, que a mudança para o conjunto
habitacional melhorou a qualidade de vida e a infra-estrutura.
Mudou para melhor, porque tinha gente que não vinha aqui... hoje as pessoas que não vinham aqui na favela, vêm. Parentes e amigos que moram em outro bairro... As pessoas tinham preconceito sim, eles não gostavam de entrar na vila. Eles não gostavam de entrar porque era favela, era beco e hoje quando eles entram falam: Nossa, os prédios ficaram lindos, maravilhosos e ficou bom demais. Meus próprios parentes do interior tinham medo, quando vinham, ligavam pra gente esperar lá fora na rua e hoje não, eles vêm e entram no beco. (Grupo 1, 2010) Mudou porque hoje eu posso receber as pessoas. Lá eu não podia receber praticamente ninguém, e quando vinha parente, a gente tinha que colocá-los na casa da mãe da minha esposa. Hoje, no apartamento, eu tenho espaço, hoje eu posso assar uma carne lá em baixo (área comum do prédio), combinar alguma uma coisa com o vizinho. E lá a gente ficava com vergonha, porque lá tinha mofo, era abafado. Hoje, os colegas vêm estudar com os filhos e vêm que a casa tem uma estrutura legal. ( Grupo 2, 2010)
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No conjunto, houve alterações no relacionamento entre a polícia, os serviços públicos,
isto porque a imagem de um espaço estruturalmente organizado incide na visão que o
indivíduo externo à vila tem sobre os ocupantes dos conjuntos habitacionais, visão que
ameniza o estigma territorial dominante na favela. Assim, os entrevistados relatam que a
relação social com a polícia melhorou, pois segundo os entrevistados, hoje, eles são mais
respeitados.
Hoje, se policia estiver passando te cumprimenta, para entrar na sua casa pede licença. Eles tocam interfone para entrar no prédio. Aqui já teve (sic) alguns “probleminhas” e a policia já veio aqui. E eles entram na sua casa se você deixar e pedem com educação: Eu posso entrar na casa? Na favela não tem isso, eles estariam pegando tudo que é seu e jogando para fora de casa. Lá dentro acontece assim, já chegam entrando na sua casa, e aqui não é assim, muita coisa mudou mesmo. (Grupo 1, 2008)
As condições das moradias na Vila é muito precária, principalmente em relação à
infra-estrutura, pela irregularidade do terreno, e muitas das famílias reassentadas viviam em
condições precárias, não havia quintal e o beco era utilizado como quintal para estender
roupas. Na Vila Senhor dos Passos, existiam muitas casas em áreas de risco, e, com isso,
muitas obras foram realizadas para segurar o barranco. (Ver foto 15)
Foto 15: Ao lado esquerdo, o Beco 21 de Abril, e ao direito uma Encosta na Vila.
Fonte: Coleta Direta
A satisfação com a nova moradia para uns é atrelada a uma perspectiva de um futuro
melhor para a família, de modo que, planejam um futuro para seus filhos diferente da vivida
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por eles dentro da vila. A transferência para o conjunto habitacional estimulou muitos
moradores entrevistados à pretensão de mudar de vida, desse modo, participar ativamente da
dinâmica da cidade, como acesso a serviços públicos (água e luz, telefone), aquisição de
novos bens materiais, o que na antiga casa não era possível, fosse pelas condições de infra-
estrutura (umidade, tamanho) ou pela condição financeira.
Eu não deixo meus meninos irem para a vila. Acho que toda mãe queria sair dali. Aqui (conjunto habitacional) você fala com eles: vai estudar, vai jogar uma bola. Lá (vila) os meninos pensam que, quando crescerem, vão ser traficantes. Eu quero ser o espelho para meus filhos. Aqui você olha e pensa que vai ter um futuro. (Grupo 1, 2008)
Para os moradores, existe uma relativa mudança na qualidade de vida e no modo de
vida dos indivíduos, que para alguns moradores não é entendida por todos os reassentados.
Porém, um entrevistado vai além de uma perspectiva de um futuro melhor, mas de toda uma
concepção de vida que pode ser adquirida a partir de novos hábitos em função da melhoria na
qualidade da habitação. Por sua vez, o morador é estigmatizado, mas em condições de se
diferenciar, reproduz a estigmatização dos vizinhos como defesa.
O problema é que as pessoas que vieram para o apartamento ainda têm a mentalidade da favela. A cabeça ainda não conseguiu absorver que eles estão melhorando, estão no apartamento, não estão naquela casa ruim, caindo aos pedaços. Tem que ter um programa que mostre a eles que estão ficando no nível de bairro, porque o pensamento do favelado é deixar de qualquer jeito, se esgoto entope deixa escorrer, lixo deixa espalhado, favela tem que andar suja. Acho que as pessoas que vieram para o prédio têm que dar exemplo para outras pessoas da vila para que elas possam ver a diferença e comecem a mudar também. ( Grupo 2, 2010)
Portanto, as obras de infra-estrutura realizadas na Vila Senhor dos Passos, e o
reassentamento das famílias em conjuntos habitacionais aprimorou as condições de vida dessa
população. Em destaque, os conjuntos habitacionais demonstraram várias melhorias em
relação aos serviços públicos, de comércio, como exemplo, os delivery que chegam ao local.
Um efeito positivo da mudança está relacionado ao novo endereço de moradia, que antes, na
vila era estigmatizado, e já no apartamento é considerado um endereço formal, não gerando
dificuldades de comprovação para os condôminos.
O conjunto habitacional é utilizado por alguns moradores como uma distinção interna
entre eles e os moradores da Vila. Ao se distanciar da convivência de antigos vizinhos da
comunidade, alteram sua rotina, e seus modo de vida no apartamento, reproduzindo o estigma
para aqueles que permanecem no mesmo local, corroborando com o estigma existente. Essa
97
projeção do estigma para o outro é uma forma de encobrir o estigma do lugar, pois para os
entrevistados, a mudança não interferiu na percepção dos outros “de fora” da favela.
98
6 - CONSIDERAÇÕES FINAIS:
Ao longo da presente dissertação procuramos analisar um tipo especial de intervenção
urbana freqüente na história da cidade de Belo Horizonte, a saber: o processo de remoção e
reassentamento de famílias situadas em áreas previstas para execução de projetos
urbanísticos. Dada a complexidade e a abrangência do campo eleito – o ambiente urbano e
sua transformação física e social – o estudo empreendido agrega para o estudo das Ciências
Sociais, a experiência desenvolvida como uma oportunidade de assimilar um conjunto de
práticas e códigos sociais próprios.
Semelhante a realidade social de algumas vilas ou favelas brasileiras, a Vila Senhor
dos Passos cresceu e se consolidou como um território em constante diálogo com a cidade,
devido a proximidade física do centro da cidade. Contudo, não podemos afirmar que o
processo de urbanização assegurará a permanência dos moradores nos conjuntos
habitacionais, ou seja, sua posição definitiva sofre influência de outros determinantes.
Procuramos por meio da metodologia qualitativa, estabelecer uma análise que
comparasse os dois grupos pesquisados, nos anos de 2008 e 2010. A princípio esta
comparação baseava-se nas diferentes percepções obtidas na primeira pesquisa em 200833,
mantendo-se a mesma perspectiva para a dissertação em 2010. Para tanto, verificou-se na
análise que os grupos (1 e 2)34, não obtiveram diferenças significativas, de modo que, nos
permitiu fazer uma única análise. Um fenômeno importante que pode ter influenciado na
análise das entrevistas é o fato de que a maioria dos entrevistados serem do sexo feminino,
isto porque elas possuem mais disponibilidade no ambiente doméstico, seja para o cuidado
dos filhos, ou serviços autônomos exercidos no local de moradia. Deste modo, podemos supor
que a pesquisa pode ter sofrido influenciada pelo predomínio de mulheres, pois são elas as
norteadoras da interação da família, e sendo mais comunicativa, espontânea se sociabilizam
de modo distinto dos homens, geralmente mais reservado em relação a convivência com
vizinhos.
Constatamos que, o entrevistado ao narrar à história de ocupação da antiga moradia,
este reinventa em sua memória um conjunto de práticas e costumes, que em alguns casos,
foram perdidos no passado. Resgatar em sua história de vida a textura de um modo antigo de
33 Monografia apresentada ao Curso de Ciências Sociais em 2008, na PUC-Minas. 34 Definição no capítulo 4, sobre os procedimentos metodológicos da pesquisa.
99
morar é retratar ali uma identidade construída continuamente com esse espaço. Neste sentido,
as experiências ainda incipientes no conjunto habitacional configuram um lugar em constante
produção, um espaço que vai além de uma produção habitacional padronizada, mas um
espaço que se reinventa a partir das vivências familiares, das relações entre vizinhos e amigos.
Na utilização de teorias para a pesquisa, observamos que os conceitos eleitos - a
sociabilidade, identidade e estigma territorial – contribuíram para elucidação do alcance dos
objetivos e das hipóteses levantadas. Quanto aos efeitos causados pelo processo de transição
da antiga moradia para o conjunto habitacional na sociabilidade dos moradores, investigamos
os códigos e práticas sociais de um coletivo, que em sua maioria, afirmaram que a vida em
condomínio alterou o convívio com os antigos e novos vizinhos. A vida cotidiana se torna
mais solitária, com o predomínio da valorização do espaço privado nos conjuntos
habitacionais. Supomos que esta constatação pode ser mais bem compreendida à luz de uma
sociabilidade ainda introdutória.
Dado o limitado tempo de ocupação no local, a etapa de adaptação ainda não foi
superada. Ainda predominam concepções contraditórias quanto às perdas e os ganhos
promovidos pela mudança. Em alguns momentos, a sociabilidade entre moradores e antigos
vizinhos surge como uma ruptura conflitante. Em comum notamos a demanda por um espaço
coletivo capaz de agregar os moradores, uma vez que áreas implementadas foram dominadas
pelo tráfico de drogas. No entanto, a observação da realidade estudada demonstra que, a
sociabilidade sofre os efeitos dos mecanismos de aproximação e distanciamento comumente
utilizados pelos moradores.
A antiga moradia o que fica explicito na análise das entrevistas é que apesar da origem
comum, alguns entrevistados mais antigos no local (grupo 1) estabelecem uma relação, em
outras palavras, ao deixarem o local, alguns entrevistados parecem se redimir ao projetar no
outro remanescente os males indesejáveis do estigma. Nestes casos, notamos que a
sociabilidade sofreu maior alteração entre os moradores e os antigos vizinhos, a rotina
cotidiana distante contribuiu para certa diferenciação entre o passado e o presente, eu
(condômino) e o outro (morador do beco).
Já alguns entrevistados com menor tempo de moradia nos conjuntos (grupo 2), viver
em conjunto não alterou significativamente os efeitos de morar em uma vila. Um fato
importante é que os conjuntos construídos na própria vila, para os entrevistados não alterou a
concepção negativa dos moradores “de fora”, como se fosse “marcas” e características de um
território, esses estigmas se tornam símbolos de um espaço indiferente da condição de
100
moradia. Em linhas gerais, para os entrevistados a favela é um território estigmatizado por
múltiplos fatores, um deles a moradia.
Ao passar pelo processo de reestruturação urbana, as melhorias habitacionais e de
infraestrutura promovem uma incipiente reavaliação desse estigma pejorativo, que está ligado
diretamente as condições precárias de moradia. Os espaços físicos reproduzem a lógica dos
espaços sociais e estabelecem aos seus ocupantes novos comportamentos sociais para fazer
parte daquele lugar, ou seja, é preciso morar nos conjuntos habitacionais. Contudo, podemos
observar que no caso das favelas, o estigma territorial ocorre, principalmente, por aqueles
habitantes que não residem nestes locais e que muitas vezes são aceitos e reproduzidos pelos
moradores, promovendo efeitos na sociabilidade destes com o restante da cidade. A mudança
para o conjunto habitacional proporcionou uma perda na sociabilidade entre os condôminos
como também para os antigos vizinhos, um distanciamento social que reforça, de certo modo,
o estigma do lugar de moradia na favela.
Portanto, pode-se concluir que o processo de urbanização da favela não se revela
suficiente para uma mudança de concepção em relação a este aspecto. A mudança para a nova
moradia exigiu-lhes um tempo de assimilação ao ambiente, o que é habitual a qualquer ser
humano quando exposto a uma mudança dessa natureza. No seu aspecto positivo, morar em
apartamento foi a oportunidade de desenvolvimento de outro projeto de vida, aliado às
concepções de legalidade da moradia e a sensação de maior segurança no espaço coletivo.
Como resultado esperado, observou-se que os condôminos apresentaram limitada relação com
seus vizinhos de bloco, estabelecendo uma relação mais impessoal, de modo que, utilizam as
reuniões apenas para resolução de conflitos mais graves, permanecendo em segundo plano, a
sociabilidade simmeliana, que é o prazer mútuo de interação entre as pessoas.
Os espaços públicos que nos conjuntos habitacionais são chamados de espaços
coletivos são limitados em alguns casos, e inexistentes em outros, o que dificulta o encontro
que o espaço público proporciona. O reassentamento proporcionou novos hábitos, que
combinados com velhos costumes transformaram-se em novos modos de vida no conjunto,
que possui de certo modo, certa reserva e atitude blasé, além disso, acreditamos que possa
incidir em uma transformação da identidade do sujeito.
A construção dos conjuntos habitacionais na Vila Senhor dos Passos, segundo os
moradores, proporcionou um efeito positivo do lugar formalizado, por exemplo, na busca de
vínculo empregatício, e em serviços de comércios que antes eles não tinham acesso, hoje são
acessados por todos no conjunto, como exemplo, os delivery. Um indicador positivo que
deixa muitos moradores com grande expectativa de melhoria em relação ao local.
101
Na pesquisa a confirmação da suposição de que a mudança para os conjuntos interfere
na relação com os antigos vizinhos, pois para se afirmarem como não sendo mais favelados,
eles precisam se distanciar simbolicamente daqueles que permaneceram na favela, mas isto
não pode ser generalizado para todos os entrevistados, foi observado em especial, à aqueles
que residem a mais tempo nos conjuntos habitacionais, pois perdem a rotina cotidiana da Vila.
A outra suposição é que o reassentamento promoveria a redução nas relações de vizinhança
construídas entre os moradores, gerando uma nova forma sociabilidade entre os novos
vizinhos. Esta hipótese também pode ser confirmada devida algum comportamento
evidenciado pelos moradores que geraria certa reserva e uma indiferença ou distanciamento
dos demais, mesmo que incipiente.
Em relação a hipótese formulada de que a favela sendo um território estigmatizado, a
mudança para os conjuntos pode interferir positivamente na imagem que os moradores tem de
si, facilitando suas relações com os habitantes da “cidade formal”. Alguns episódios que
confirmam esta hipótese são relatados pelos moradores na busca de um emprego, ou em
algumas visitas que passaram a frequentar o apartamento. No entanto, um fato importante é
que os habitantes da cidade formal, ou seja, aqueles “de fora” da vila, segundo a percepção
dos entrevistados ainda permanece o estigma do lugar de moradia sobre a favela. Isto mostra
que o efeito do lugar para aqueles que vivem nas favelas ainda é muito forte, e para esta
mudança teria que ocorrer uma mudança de concepção da sociedade em relação a estes
lugares.
Um fato muito importante observado durante a análise das entrevistas, o qual deve ser
levado em consideração, é o período incipiente em que os entrevistados residem nos
conjuntos habitacionais (no máximo cinco anos), que dificultou em certos momentos da
análise, devido a diversas opiniões contraditórias sobre o mesmo assunto. Assim, como em
muitos autores (Valladares, 1978; Maiolino, 2008) os estudos sobre os efeitos da urbanização
de favelas em uma determinada comunidade é necessário um tempo maior de adaptação dos
moradores nestes locais, para que as opiniões estejam mais claras em relação a temas que
envolvam a sua percepção. Deste modo, deixamos um questionamento para futuras pesquisas
nesta área observando o contexto atual: Como a favela será tratada a partir da
descaracterização sofrida com a urbanização, e como ela será avaliada pela sociedade,
projetando que essas intervenções possam ser medidas permanentes e constantes nesses
locais?
102
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Roteiro de entrevista dos moradores da Vila Senhor dos Passos
1 – Caracterização do entrevistado - Nome - Idade - Escolaridade - Profissão - Escolaridade - Possui filhos? Quantos? 2- Como era viver na moradia antiga
- Como era a sua casa antiga? - Você gostava de morar nela? - Quantos cômodos havia na casa? Como era a distribuição da família na casa?
3- Como é viver no Prédio
- Como está sendo a sua vida aqui? - Você e sua família sentiram alguma dificuldade em se adaptar? (Ficar atento para
diferenças entre os membros da família: gênero, idade) - Como ficou sua relação com os vizinhos antigos? - Você fez novos amigos e vizinhos no prédio e perto dele? - Ao se mudar para o prédio, o que você acha que mudou na sua vida? - Mudou para melhor ou para pior?
4- Relação com a vizinhança da Vila – outros bairros
- Você tem amigos ou conhecidos nos bairros vizinhos da Vila? - Você percebe se houve alguma mudança na relação dos moradores dos bairros
vizinhos (citar alguns: Lagoinha, São Cristóvão, Santo André, Bonfim) com você ou com algum morador do prédio?
5- Percepções e representações acerca da favela
- Em sua opinião, a Vila está se transformando em bairro? Por quê? - Como você se refere ao seu lugar de moradia hoje aqui dentro e lá fora? Você se refere
como: aglomerado, vila, favela, bairro ou outro termo? - A utilização desse termo muda dependendo do lugar ou da pessoa? - O fato de você mudar para o prédio mudou a forma de você falar onde mora?
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- Como você acha que o Aglomerado é visto pelos moradores dos bairros vizinhos e dos outros lugares da cidade?
- Você acha que existe algum tipo de preconceito? - Quando você diz que mora aqui, qual a reação das pessoas? - Você acha que esta visão mudou depois da intervenção do Programa HBB?
6 – Segurança
- Você se sente seguro (a) morando aqui? - Por quê?
7- Relação com a Vila e com a cidade?
- Você gosta de morar aqui na vila? - O que você mais gosta aqui? - O que você menos gosta aqui? - Já teve ou tem vontade de se mudar. Se sim, para onde? - Por que não se mudou ainda? - Se te oferecessem uma casa para morar, onde você queria que ela fosse? - Onde moram seus principais amigos?