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Revista Eletrônica “Fórum Paulo Freire” Ano 1 – Nº 1 – Julho 2005 Educação na Crise da Racionalidade: Reflexões a partir de Horkheimer e Freire? 1 Juliana Damasceno de Oliveira 2 Avelino da Rosa Oliveira 3 Resumo: O presente trabalho, pretende fazer uma reflexão acerca da Educação na Crise da Racionalidade, fundamentada em Max Horkheimer e Paulo Freire. Este estudo toma como hipótese geral a afirmação de que a teoria crítica, sustentada pelos frankfurtianos, em especial, por Max Horkheimer, e herdada fundamentalmente por Paulo Freire, é uma retomada do impulso mais substancial da Aufklärung, ou seja, do ideal emancipador da razão humana. Assim, a rejeição da teoria tradicional não significa o abandono dos fundamentos do Esclarecimento, mas a crítica do modelo de racionalidade que historicamente dominou o cenário teórico no decorrer da Modernidade. Como hipótese específica, inserida nessa perspectiva mais geral, sugerimos que: se o ideal emancipador da razão humana fosse rejeitado, devido aos rumos tomados pela teoria tradicional, instaurando assim uma crise na Modernidade, a educação seria a primeira a sofrer as conseqüências dessa crise – afinal, estaria ela sem objetivo. Concluímos aproximando as teorias de Horkheimer com os escritos de Freire, afim de realizar diálogos e reflexões subsidiado pelos dois autores. Considerações iniciais Os intelectuais da chamada Escola de Frankfurt caracterizaram-se por pensar radicalmente o conceito de emancipação humana, através de um conjunto de investigações interdisciplinares. Max Horkheimer, um dos principais pensadores da referida escola, e Paulo Freire – teórico crítico, que, assim como os frankfurtianos, é herdeiro das teorias de Karl Marx – podem ser tomados como referencial para que se 1 O presente texto é parte dos resultados de pesquisa apoiada por bolsa e recursos financeiros do CNPq e da FAPERGS. Motivados pela experiência original dos pesquisadores do Institut für Sozialforschung, os autores desenvolvem suas reflexões em constante debate com os demais pesquisadores e estudantes do Grupo de Pesquisas em Filosofia, Educação e Práxis Social (FEPráxis). Deste modo, apostam que a constante discussão de idéias, num processo de reflexão coletiva, contribui para o aperfeiçoamento dos estudos produzidos. 2 Acadêmica do curso de Pedagogia da FaE/UFPel. Bolsista PIBIC/CNPq. E-mail: [email protected]. 3 Professor titular de Fundamentos da Educação da FaE/UFPel. E-mail: [email protected].

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Revista Eletrônica “Fórum Paulo Freire”

Ano 1 – Nº 1 – Julho 2005

Educação na Crise da Racionalidade: Reflexões a partir de Horkheimer e Freire?1

Juliana Damasceno de Oliveira

2

Avelino da Rosa Oliveira3

Resumo:

O presente trabalho, pretende fazer uma reflexão acerca da Educação na Crise da Racionalidade, fundamentada em Max Horkheimer e Paulo Freire. Este estudo toma como hipótese geral a afirmação de que a teoria crítica, sustentada pelos frankfurtianos, em especial, por Max Horkheimer, e herdada fundamentalmente por Paulo Freire, é uma retomada do impulso mais substancial da Aufklärung, ou seja, do ideal emancipador da razão humana. Assim, a rejeição da teoria tradicional não significa o abandono dos fundamentos do Esclarecimento, mas a crítica do modelo de racionalidade que historicamente dominou o cenário teórico no decorrer da Modernidade. Como hipótese específica, inserida nessa perspectiva mais geral, sugerimos que: se o ideal emancipador da razão humana fosse rejeitado, devido aos rumos tomados pela teoria tradicional, instaurando assim uma crise na Modernidade, a educação seria a primeira a sofrer as conseqüências dessa crise – afinal, estaria ela sem objetivo. Concluímos aproximando as teorias de Horkheimer com os escritos de Freire, afim de realizar diálogos e reflexões subsidiado pelos dois autores.

Considerações iniciais

Os intelectuais da chamada Escola de Frankfurt caracterizaram-se por pensar

radicalmente o conceito de emancipação humana, através de um conjunto de

investigações interdisciplinares. Max Horkheimer, um dos principais pensadores da

referida escola, e Paulo Freire – teórico crítico, que, assim como os frankfurtianos, é

herdeiro das teorias de Karl Marx – podem ser tomados como referencial para que se

1 O presente texto é parte dos resultados de pesquisa apoiada por bolsa e recursos financeiros do CNPq e da FAPERGS. Motivados pela experiência original dos pesquisadores do Institut für Sozialforschung, os autores desenvolvem suas reflexões em constante debate com os demais pesquisadores e estudantes do Grupo de Pesquisas em Filosofia, Educação e Práxis Social (FEPráxis). Deste modo, apostam que a constante discussão de idéias, num processo de reflexão coletiva, contribui para o aperfeiçoamento dos estudos produzidos. 2 Acadêmica do curso de Pedagogia da FaE/UFPel. Bolsista PIBIC/CNPq. E-mail: [email protected]. 3 Professor titular de Fundamentos da Educação da FaE/UFPel. E-mail: [email protected].

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lance luz sobre as questões que nortearão este estudo, subsidiando a fundamentação

racional da práxis educativa, e o não abandono ao ideal de emancipação humana.

A questão dos fundamentos da práxis educacional tem merecido a atenção de

inumeráveis educadores, desde as últimas décadas do século XX. O foco principal

onde tem sido localizado o problema é a identificação de que “... a denominada crise

na educação não é mais nem menos que a crise da modernidade e da racionalidade,

das quais a educação se apresenta como filha promissora.” (PRESTES, 1996, p.11)

Portanto, o problema da fundamentação filosófica da racionalidade ultrapassa o nível

de problema exclusivamente teórico e se apresenta como questão indispensável para

pensarmos a educação de nossos dias.

No presente artigo, inicialmente fazemos uma análise da Teoria Crítica de

Horkheimer e do Iluminismo. Concomitantemente, desenvolvemos nosso objeto de

estudo e tomamos como hipótese geral a afirmação de que a teoria crítica, sustentada

pelos frankfurtianos e, em especial, por Max Horkheimer, é uma retomada do

impulso mais substancial da Aufklärung, ou seja, do ideal emancipador da razão

humana. Apoiamos o estudo na análise de três textos de Horkheimer . Dois deles –

“Teoria Tradicional e Teoria Crítica” (1937) e “Filosofia e Teoria Crítica” (1937) –

são bons exemplos da fase inicial da produção intelectual de Horkheimer; o terceiro

– “Conceito de Iluminismo” (1947) – situa-se em período já mais amadurecido de

suas reflexões em parceria com T. W. Adorno. Com base na análise destes textos,

buscamos demonstrar que o impulso mais substancial do Iluminismo, ou seja, o ideal

da emancipação do homem enquanto sujeito racional, é revitalizado pela crítica de

Max Horkheimer ao modelo de fundamentação da racionalidade contemporânea.

Portanto, a luta em favor de uma teoria crítica não é mais que a reafirmação do

potencial emancipador da razão, desde que esteja comprometida historicamente com

as forças sociais que buscam construir um projeto prático de libertação humana.

Por último, tomamos o livro de Paulo Freire – “Conscientização: Teoria e

prática da libertação” (1980) – como instrumento de comparação entre os dois

autores, a respeito do ideal Iluminista de emancipação humana através da razão,

perceptível nos escritos de Horkheimer, e possivelmente presente na teoria de Paulo

Freire através do conceito de desmitologização (FREIRE, 1980, p.29).

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Teoria tradicional e teoria crítica

A partir dos textos de Max Hokheimer, julgamos ser possível demonstrar que

a rejeição da teoria tradicional e a conseqüente proposição de uma teoria crítica não

significou o abandono em si de um projeto de racionalidade, ou seja, não buscou

proscrever os fundamentos do Esclarecimento. Tendo em vista que uma teoria não se

sobrepõe à outra como uma linha do tempo, Hokheimer faz uma crítica ao modelo de

racionalidade que historicamente dominou o cenário teórico no decorrer da

Modernidade, mas nem por isso deixa de conferir o adequado valor às construções da

racionalidade. Em seu texto Teoria Tradicional e Teoria Crítica, ele afirma:

Se não há continuidade no esforço teórico, então a esperança de melhorar fundamentalmente a existência humana perderá a sua razão de ser. Referimo-nos ao esforço que investiga criticamente a sociedade atual com vista a uma sociedade futura organizada racionalmente, e que é construída com base na teoria tradicional, formada nas ciências especializadas. A existência de positividade e submissão, que ameaça também tornar insensíveis à teoria os grupos mais avançados da sociedade, afeta não só a teoria, mas também a práxis libertadora. (1983, p. 148)

Percebe-se claramente na passagem citada que Horkheimer não abre mão de

que o projeto social capaz de garantir a definitiva emancipação da humanidade não

poderá deixar de ser organizado racionalmente. Mais ainda, não se pode entender a

teoria crítica como simples substituta da teoria tradicional. Tal compreensão seria o

mais veemente abandono da dialética, uma vez que o devir superador das

contradições é sempre subsunção (Aufhebung) dos momentos anteriores, superação e

simultânea conservação, enfim, elevação a um superior patamar, seja epistemológico

ou ontológico. Daí o fato de o autor sublinhar que a investigação crítica constitui-se

com base na teoria tradicional.

Outro aspecto imprescindível de ser considerado, tanto pela relevância no

contexto de argumentação do autor quanto pela surpreendente atualidade que ainda

carrega, diz respeito à perda de rumo de certos grupos sociais que seriam

fundamentais para a construção do projeto da radical emancipação humana. Neste

sentido, pressentindo que a positividade crua que dominou as ciências modernas

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pudesse fazer descrer absolutamente na razão, Horkheimer alerta que tal caminho,

mais do que afetar a teoria, teria incidência nefasta também sobre a práxis

libertadora. Por isso, pouco adiante do excerto referido, volta a enfatizar que a

necessária crítica ao modelo de racionalidade reinante "... não tem nada a ver com o

princípio de questionar radical e permanentemente qualquer conteúdo teórico e de

estar iniciando sempre tudo de novo ...”. (HORKHEIMER, 1983, p.149) Hoje,

infelizmente, constatamos que não era infundada a apreensão do autor.

Os principais alvos da crítica à teoria tradicional dizem respeito à absoluta

separação entre sujeito e objeto, à matematização do pensar e à assepsia em relação

aos embates sociais. Assim, a teoria tradicional caracteriza-se por limitar o

conhecimento à subjetividade do teórico, de um lado, e ao universo a ser investigado,

de outro. Necessita harmonia entre suas partes, que devem estar ligadas

ininterruptamente, pois seu ideal de perfeição é a ausência de contradição. Sua

construção lógica matematiza-se de tal modo que não se distingue das ciências

exatas, em especial da matemática. É uma teoria que tudo coisifica, trabalhando em

função do fetiche. Fragmenta os saberes e os isola, não unindo teoria e práxis.

A representação tradicional de teoria é abstraída do funcionamento da ciência, tal como este ocorre a um nível dado da divisão do trabalho. Ela corresponde à atividade científica tal como é executada ao lado de todas as demais atividades sociais, sem que a conexão entre as atividades individuais se torne imediatamente transparente. Nesta representação surge, portanto, não a função real da ciência nem o que a teoria significa para a existência humana, mas apenas o que significa na esfera isolada em que é feita sob as condições históricas. (HORKHEIMER, 1983, p.123)

A teoria tradicional não se compromete com nenhum grupo social, se diz

totalmente asséptica e neutra em relação às questões de classe. Porém devido a essa

pseudoneutralidade acaba favorecendo irremediavelmente as classes dominantes.

Diferentemente, a teoria crítica de Horkheimer surge do interesse por um estado

racional e torna explícito que todo saber aplicado e disponível está sempre contido

numa práxis social. Ademais, não conduz o pensamento segundo o padrão dos

experimentos das ciências naturais, mas fornece subsídios para os indivíduos de uma

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certa sociedade analisarem seu próprio tempo histórico. “... a teoria crítica não

almeja de forma alguma apenas uma mera ampliação do saber, ela intenciona

emancipar o homem de uma situação escravizadora.” (HORKHEIMER, 1983,

p.156)

Hokheimer fala sobre a possibilidade de o pensamento crítico interferir nas

futuras transformações da humanidade. Apesar de fazer duras críticas ao modelo

tradicional de teoria, por sua característica de conformismo e fragmentação, Max

Hokheimer não anula, como queremos demonstrar, os esforços teóricos já existentes.

O futuro da humanidade depende da existência do comportamento crítico que abriga em si elementos da teoria tradicional e dessa cultura que tende a desaparecer. Uma ciência que em sua autonomia imaginária se satisfaz em considerar a práxis – à qual serve e na qual está inserida – como seu Além, e se contenta com a separação entre pensamento e ação, já renunciou à humanidade. Determinar o conteúdo e a finalidade de suas próprias realizações, e não apenas nas partes isoladas mas em sua totalidade, é a característica marcante da atividade intelectual. Sua própria condição leva à transformação histórica. Por detrás da proclamação de “espírito social” e “comunidade nacional” se aprofunda, dia a dia, a oposição entre indivíduo e sociedade. A autodeterminação da ciência se torna cada vez mais abstrata. O conformismo do pensamento, a insistência em que isto constitua uma atividade fixa, um reino à parte dentro da totalidade social, faz com que o pensamento abandone sua própria essência. (HORKHEIMER, 1983, p.154)

Horkheimer pensava a atividade humana, de seu tempo, como contraditória e

ambígua: por um lado, a unidade e a orientação, por outro, o obscuro, o inconsciente

e o intransparente. Ele acreditava que a ação conjunta dos homens na sociedade e sua

racionalidade são a força e a essência da humanidade. Porém os resultados desse

processo são estranhos por conter desperdício de força de trabalho e de vida humana,

nas formas de guerras e miséria absurda. Enfim, para Max Horkheimer, a existência

humana pode ser considerada uma contradição, pois o indivíduo é extremamente

frágil às situações que ele próprio cria em sua sociedade. Como é perceptível, o

Iluminismo aparece freqüentemente recuperado nas idéias de Horkheimer,

principalmente quando ele se refere à crença incondicional na razão. Mesmo com as

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críticas à racionalidade técnica da modernidade, os frankfurtianos não abandonaram

o ideal do esclarecimento: a emancipação da humanidade através da razão.

Aufklärung: a filosofia das luzes e o fundamento da educação

O Movimento Iluminista abrangentemente pensava que a superioridade do

homem residia em seu saber, o qual seria o único caminho de sua emancipação.

Entretanto, o tipo de racionalidade privilegiado pelo desenvolvimento da ciência a

partir do século XVIII foi quase que exclusivamente o modelo cartesiano hipotético-

dedutivo. Assim, o caminho histórico percorrido pelo sujeito racional, ao contrário

da pretendida libertação da humanidade das correntes do obscurantismo, acabaram

por reconduzir a tantas outras formas de irracionalidade. O Iluminismo, designado

como um movimento filosófico, pedagógico e político (REALE; ANTISERI, 1990,

p.666), ocupou os períodos das revoluções Inglesa e Francesa nos séculos XVII e

XVIII; caracterizava-se pela sua postura racionalista, ou seja, confiança no uso

crítico e construtivo da razão, e questionava o modelo tradicional dominante de

pensamento.

Apropriado da idéia de um pensamento que objetiva o progresso da

humanidade, o Iluminismo buscou a libertação da razão dos dogmas metafísicos,

superstições religiosas e relações desumanas entre os homens. O Iluminismo,

filosofia otimista, estreitamente vinculado aos rumos da sociedade burguesa em

ascensão, elegeu a razão como verdade única e indiscutível, reconhecidamente como

conhecimento científico e técnico para transformação do mundo e melhoria

progressiva das condições espirituais e materiais da humanidade. A racionalidade

técnica estaria acima de qualquer dúvida.

Desde sempre o Iluminismo, no sentido mais abrangente de um pensar que faz progressos, perseguiu o objetivo de livrar os homens do medo e de fazer deles senhores. Mas, completamente iluminada, a terra resplandece sob o signo do infortúnio triunfal. O programa do Iluminismo era o de livrar o mundo do feitiço. Sua pretensão, a de dissolver os mitos e anular a imaginação, por meio do saber. (ADORNO; HORKHEIMER 1983, p.89)

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De fato, desde que Kant exortou a humanidade com seu Sapere aude!,

definindo claramente os propósitos do Esclarecimento, outra não foi a lógica Iluminista do que o esforço em evidenciar como a humanidade detinha a faculdade de, pela razão, retificar seus desvios da ordem natural universal com o propósito de certamente alcançarem a felicidade.

E nesta empresa, quão elevado foi o papel adscrito à educação! A aposta na racionalidade como fundamento da emancipação fez-se acompanhar da crença de que na educação encontrar-se-ia a fonte inexaurível do progresso humano. (OLIVEIRA, 1998, p.32)

Kant afirma ser impossível ao homem “... tornar-se um verdadeiro homem

senão pela educação” (1996, p.15) E após assim asseverar, atribui com fidelidade o envolvimento da educação no processo emancipatório da humanidade.

“É entusiasmante pensar que a natureza humana será sempre melhor desenvolvida e aprimorada pela educação, e que é possível chegar a dar aquela forma que em verdade convém à humanidade. Isto abre a perspectiva para uma futura felicidade da espécie humana.” (1996, p.17)

É nesta perspectiva que desenvolvemos nosso estudo, na confiança de que

existe propósito na educação e na escola. No entanto, algumas vertentes teóricas

contemporâneas abandonaram a hipótese de que o homem poderia emancipar-se

através da razão. Negaram a racionalidade humana e voltaram-se a estudos de outros

mecanismos que reproduzem as desigualdades sociais na escola, alegando que os

ideais iluministas e a produção notável de novos conhecimentos e saberes na

modernidade, só levaram a humanidade a sua própria destruição. Entretanto, se o

ideal emancipador da razão humana for irremediavelmente rejeitado, instaurando

assim uma crise insolúvel na modernidade, a educação será a primeira a sofrer as

conseqüências dessa crise – afinal, estará ela sem objetivo.

Paulo Freire: desmitologização e educação

Através de nossas leituras de Paulo Freire, percebemos que ele deposita confiança e esperança de libertação dos homens, através da educação que oferece subsídios para o pensamento crítico sobre a realidade. Essa confiança na educação aparece em seus escritos muitas vezes de forma utópica. Porém, para Freire só os utópicos

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... podem ser proféticos e portadores da esperança. Somente podem ser proféticos os que anunciam e denunciam, comprometidos permanentemente num processo radical de transformação do mundo, para que os homens possam ser mais. (FREIRE, 1980 p.28).

Freire diz que a conscientização – que leva ao pensamento crítico e racional, subsidiado pela educação – é um distanciamento da realidade devido a apropriação da própria realidade e do conteúdo utópico anunciado. Esse afastamento da realidade nada mais é do que desmitologização. Parece óbvio, mas o opressor jamais poderá provocar este distanciamento da realidade para a libertação dos homens. Pelo contrário, o opressor mistifica a realidade que existe para cooptar os oprimidos, e isso não é feito de forma crítica.

O trabalho humanizante não poderá ser outro senão o trabalho da desmitificação. Por isso mesmo a conscientização é o olhar mais crítico possível da realidade, que a “des-vela” para conhecê-la e para conhecer os mitos que enganam e que ajudam a manter a realidade da estrutura dominante. (FREIRE, 1980, p.29)

No trecho acima, Paulo Freire afirma que o trabalho humanizante é o trabalho de negação da crença arraigada a uma idéia. Os mitos, ou seja, uma forma de pensamento oposta ao lógico e científico, contribuem para manter a realidade estática. O termo desmitologização em Freire, pode ser associado à hipótese defendida em nosso trabalho – a teoria crítica de Max Horkheimer faz uma retomada do ideal Iluminista de emancipação da humanidade através da razão – Paulo Freire refere-se à negação do lógico, do científico, enfim, do racional para forjar uma realidade que favorece apenas a classe dominante. Nessa perspectiva, entendemos que Freire, assim como Horkheimer, vê na razão fonte indispensável para o progresso humano.

Conclusões: Reflexões a partir de Horkheimer e Paulo Freire

No decorrer deste estudo, tentamos demonstrar que a teoria crítica de Max

Horkheimer faz uma retomada do ideal iluminista da emancipação do homem num

projeto de racionalidade. Horkheimer e os demais frankfurtianos criticam a razão

Iluminista, sem deixarem de, ao mesmo tempo, fazer uma retomada de seus ideais e

propósitos; enfim, não abdicando jamais da possibilidade de emancipação radical da

humanidade, numa práxis social que não pode prescindir da razão. Paulo Freire que,

como diz Henry Giroux, herdou dos frankfurtianos os fundamentos da teoria crítica,

também se encontra imerso nesse panorama. Concordamos com Nadja Hermann

Prestes, quando afirma:

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As relações do homem com o mundo social estão necessariamente mediadas pelas categorias de racionalidade que foram forjadas no desenvolvimento histórico. Conhecimento e interesse são inseparáveis e o processo de auto-reflexão se impõe para articular o conhecimento com a crítica social e compreender a necessidade de mudanças na sociedade vigente. (1995, p. 85)

Prestes faz-nos ver que a humanidade está irremediavelmente relacionada

com a racionalidade, através da práxis social. Porém, alguns movimentos teóricos

contemporâneos, questionam a racionalidade iluminista através do sujeito racional,

afirmando que o atual sujeito é fragmentado, “... e porque não dizer manipulado,

pois ele é dirigido e dominado pelas estruturas e instituições.” (SILVA, 2001, p.4).

Questionando a razão, inexoravelmente questiona-se também a educação. Que

propósitos e objetivos podemos encontrar em uma educação que duvida da

racionalidade de seus sujeitos? Se concordarmos que o ideal de emancipação da

humanidade, num projeto de racionalidade, deve ser abandonado, porque a

racionalidade historicamente reconduziu à irracionalidade, o “que levou o homem

moderno à tragédia das guerras e da desumanização” (GADOTTI, 2003, p.311)

então, estaremos concordando também em negar a educação e a escola, que

fatalmente perderiam seus objetivos.

Portanto acreditamos em uma educação onde o sujeito racional não seja

negado, transformando-o em um mero repetidor, alguém que perdeu ou nunca teve

capacidade crítica. É evidente que se trata de um desafio e não de uma conclusão.

Logo, sugerimos neste artigo que o ideal de emancipação do homem, enquanto

sujeito racional, é revitalizado pela crítica de Max Horkheimer ao modelo de

fundamentação da racionalidade contemporânea, e pelos escritos de Paulo Freire

(1980; 1997) que vêm ao encontro com a teoria crítica e compromete-se histórica e

socialmente com a libertação dos homens – subsidiada pela educação – que leva a

transformações sociais.

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Referências:

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Walter, HORKHEIMER, Max, ADORNO, Theodor W., HABERMAS, Jürgen. Textos

escolhidos. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. p.89-116. (Os Pensadores)

FREIRE, Paulo. Conscientização: Teoria e prática da libertação. São Paulo: Moraes, 1980.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo:

Paz e Terra, 1996.

FREITAG, Bárbara. A Teoria Crítica: Ontem e Hoje. São Paulo: Brasiliense, 1990.

GADOTTI, Moacir. História Das Idéias Pedagógicas. São Paulo: Ática, 2003.

HENRY, Giroux. Pedagogia radical: subsídios. São Paulo: Cortez: Autores Associados, 1983.

HORKHEIMER. Filosofia e Teoria Crítica. In: BENJAMIN, Walter, HORKHEIMER, Max,

ADORNO, Theodor W., HABERMAS, Jürgen. Textos escolhidos. 2º ed. São Paulo: Abril

Cultural, 1983. p.155-161. (Os Pensadores)

HORKHEIMER, Max. Teoria Tradicional e Teoria Crítica. In: BENJAMIN, Walter,

HORKHEIMER, Max, ADORNO, Theodor W., HABERMAS, Jürgen. Textos escolhidos. 2º

ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. p.117-154. (Os Pensadores)

KANT, Immanuel. Resposta à pergunta: O que é Iluminismo? In: KANT, Immanuel. A Paz

Perpétua e outros opúsculos. Lisboa, Portugal: Edições 70, 1990. p. 11-19. (Textos

Filosóficos, 18)

KANT, Immanuel. Sobre a Pedagogia. Piracicaba, SP: Editora Unimep, 1996.

OLIVEIRA, Avelino da Rosa. O problema da verdade e a educação: uma abordagem a partir de

Horkheimer. Cadernos de Educação, Pelotas, n. 11, p. 31-42, jul./dez. 1998.

PRESTES, Nadja Mara Hermann. Educação e racionalidade: conexões e possibilidades de uma

razão comunicativa na escola. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996. (Coleção Filosofia, 36)

PRESTES, Nadja Mara Hermann. A Razão, a Teoria Critica e a Educação. In: PUCCI, Bruno

(org.). Teoria Crítica e Educação: A Questão da Formação Cultural na Escola de Frankfurt.

Petrópolis, RJ: Vozes, 1995. p. 83-101.

REALE,Giovanni, ANTISERI, Dario. História da filosofia: Do Humanismo a Kant. 6º

ed. São Paulo: Paulus, 2003. p. 663-852.

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SILVA, Márcia Alves da. Contribuições do Pós-Modernismo para a Teoria Educacional.

Artigo da disciplina Paradigmas Sociais da Educação. Mestrado FaE/UFPel, 2001. (mimeo)