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Página web: http://www.madeira-edu.pt/ceha • Email: [email protected] 1 12 dezembro 2011 COORDENAÇÃO: Odeta Pereira Editorial Alberto Vieira (Presidente CEHA) Partidas e chegadas A Madeira foi sempre um cais de chegadas e partidas. Á ilha aportaram os primeiros navegadores e aventureiros que no rochedo desenharam um espaço para a agricultura e morada. Dela, depois, partiram muitos filhos, sedentos de aventuras de descoberta de no- vos mundos ou em busca do pão para a boca. Improvisou-se, por séculos, um cais de par- tidas e chegadas. Fez-se do mar a principal via e só muito tardiamente no século XX se abriram outras vias. Mas, o mar, que tanto aproxima como afasta, foi quem abriu aos madeirenses as portas do mundo. Tam- bém serviu de morada a muitos destes que nunca alcançaram o seu destino. Na verdade, apenas se tinha certeza da partida, pois as condições muitas vezes não permitiam ante- ver a chegada e os regressos. Foi desta forma que o madeirense se esp- alhou pelo mundo, como descobridor de novas terras, divulgador de novas culturas e técnicas cultivares, ou apenas como o infeliz substituto do escravo nas plantações açuca- reiras doutras ilhas. A sedução doutros paraísos insulares e da riqueza levou-os a múltiplas partidas. Nem sempre o sucesso lhe bateu à porta. O paraíso prometido deu, muitas vezes, lugar ao inferno das condições adversas do clima ou da exploração dos novos senhorios. Felizmente que nem tudo isto foi em vão e condenado ao fracasso. Muitos conseguiram singrar nos locais de destino de diversas formas. A sorte bateu-lhes à porta. A partida era sempre o momento anunciado, mas o regresso tardava muitas vezes em acontecer. Apenas, e quase só o sucesso ditou o retorno, que ficou imortalizado na imagem do “demerarista”, brasileiro e venezuelano. Ontem e hoje ninguém quer regressar de mãos a abanar. Ninguém quer passar pela humilhação vicinal do insucesso. Todavia o século XX trouxe-nos inúmeros regressos nesta ultima condição e a ilha transformou- SUMÁRIO A Emigração na História da Madeira ............................................................................ 2 “O Emigrante” de João França.......................................................................................... 4 Figurações da emigração madeirense. ......................................................................... 8 A Emigração na História da Madeira – o caso do Hawaii .....................................13 La emigración madeirense a las Islas Canarias: siglos XV, XVI y XVII................16 Uma viagem de redescoberta das raízes e da identidade ..................................19 Manny de Freitas ................................................................................................................22 Empurrões do destino ......................................................................................................24 Madeirenses: Patrimônio da Humanidade................................................................26 Nós, Portugueses na Venezuela ....................................................................................30 Carta de Londres ................................................................................................................32 Uma trinidadiana em Portugal. .....................................................................................33 Entre o mar e a saudade [notas de alguns poetas] ................................................34 A emigração na canção popular madeirense ..........................................................36 Deportação – a migração forçada (General Sousa Dias) ......................................38 Breves apontamentos sobre mobilidade humana.................................................40 Nota de leitura.....................................................................................................................45 Página 2

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2011

COORDENAÇÃO: Odeta Pereira

EditorialAlberto Vieira (Presidente CEHA)

Partidas e chegadas

A Madeira foi sempre um cais de chegadas e partidas. Á ilha aportaram os primeiros navegadores e aventureiros que no rochedo desenharam um espaço para a agricultura e morada. Dela, depois, partiram muitos filhos, sedentos de aventuras de descoberta de no-vos mundos ou em busca do pão para a boca.Improvisou-se, por séculos, um cais de par-tidas e chegadas. Fez-se do mar a principal via e só muito tardiamente no século XX se abriram outras vias. Mas, o mar, que tanto aproxima como afasta, foi quem abriu aos madeirenses as portas do mundo. Tam-bém serviu de morada a muitos destes que nunca alcançaram o seu destino. Na verdade, apenas se tinha certeza da partida, pois as condições muitas vezes não permitiam ante-ver a chegada e os regressos.Foi desta forma que o madeirense se esp-alhou pelo mundo, como descobridor de novas terras, divulgador de novas culturas e técnicas cultivares, ou apenas como o infeliz substituto do escravo nas plantações açuca-reiras doutras ilhas.A sedução doutros paraísos insulares e da riqueza levou-os a múltiplas partidas. Nem sempre o sucesso lhe bateu à porta. O paraíso prometido deu, muitas vezes, lugar ao inferno das condições adversas do clima ou da exploração dos novos senhorios. Felizmente que nem tudo isto foi em vão e condenado ao fracasso. Muitos conseguiram singrar nos locais de destino de diversas formas. A sorte bateu-lhes à porta.A partida era sempre o momento anunciado, mas o regresso tardava muitas vezes em acontecer. Apenas, e quase só o sucesso ditou o retorno, que ficou imortalizado na imagem do “demerarista”, brasileiro e venezuelano. Ontem e hoje ninguém quer regressar de mãos a abanar. Ninguém quer passar pela humilhação vicinal do insucesso. Todavia o século XX trouxe-nos inúmeros regressos nesta ultima condição e a ilha transformou-

sumário• A Emigração na História da Madeira ............................................................................ 2• “O Emigrante” de João França. ......................................................................................... 4• Figurações da emigração madeirense. ......................................................................... 8• A Emigração na História da Madeira – o caso do Hawaii .....................................13• La emigración madeirense a las Islas Canarias: siglos XV, XVI y XVII................16• Uma viagem de redescoberta das raízes e da identidade ..................................19• Manny de Freitas ................................................................................................................22• Empurrões do destino ......................................................................................................24• Madeirenses: Patrimônio da Humanidade................................................................26• Nós, Portugueses na Venezuela ....................................................................................30• Carta de Londres ................................................................................................................32• Uma trinidadiana em Portugal. .....................................................................................33• Entre o mar e a saudade [notas de alguns poetas] ................................................34• A emigração na canção popular madeirense ..........................................................36• Deportação – a migração forçada (General Sousa Dias) ......................................38• Breves apontamentos sobre mobilidade humana .................................................40• Nota de leitura .....................................................................................................................45

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A emigração é, assim, um fenómeno que per-passa toda a História da Madeira. É como

uma pele que tem revestido famílias inteiras, confe-rindo-lhe novas vivências, partidas, chegadas, sau-dades, retorno ou nunca mais voltar.

Este ato e fenómeno individual ou de massas, de deixar o seu local de residência para se estabelecer num outro país tem subjacente várias causas, sejam as condições políticas desfavoráveis, a precária situ-ação económica ou perseguições religiosas. No caso

A Emigraçãona História da Madeira

Odeta Pereira

«Falar-se de emigração é prestar ho-menagem àqueles que espalhados pelo mundo constroem e mantêm a Madeira

espiritualmente presente - um elo profundo que se enraíza em gerações e que, em todas

as esquinas do mundo, com as suas mãos calejadas, levantaram cidades.»

João Carlos Abreu, O Turismo das Culturas

ser num cais de chegadas e retornos. A ilha, que antes parecia ter sido madrasta em manter no seu seio estes madeirenses, agora acolhe-os de braços abertosOs regressos não anunciados ou desejados trouxeram nova vida à ilha e permitiram que outras realidades e quotidi-anos se imbricassem nela , abrindo-a ainda mais ao Mundo. Quebraram-se muitas das fronteiras do nosso isolamento mental, abriram-se as portas da aldeia global. Os bolos de mel e do caco retornam e misturam-se agora com as arepas. A sociedade rejuvenesce, as atividades económicas e comerciais modernizam-se.Todos ganhámos com estas chegadas e partidas, porque foi possível, a partir deste diminuto espaço da ilha, criar outras

ilhas que projetam as gentes, as suas tradições e cultura de forma universal. Hoje, por isso mesmo, a ilha não é apenas este penhasco que se ergue ao maio do oceano, mas este arquipélago construído em mais de cinco séculos da “diáspora”madeirense, que parece chegar a todos os recantos do mundo.São estas algumas das razões que nos levaram a dedicar este número às recordações e memórias dessas chega-das e partidas que a História registou e que a memória, de muitos destes protagonistas recentes, ainda preser-va. Recordar é também homenagear e a promessa de que o presente e o futuro da ilha continuarão a constru-ir-se a partir destas partidas e chegadas.

(Continuação)Editorial

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do ilhéu, sempre associado a esta conjuntura ao longo da História, foram, sem dúvida, as razões de ordem económi-ca que exerceram uma grande influência no respeitante ao fenómeno migratório. E é o século XIX, mais precisamente a segunda metade, que denota um forte movimento emi-gratório.

Partir da terra natal em busca de uma outra situação para a sua vida é uma decisão própria, muitas vezes cheia de lágrimas e sofrimento. No entanto, o horizonte de uma promessa melhor, de um oásis comparativamente à condi-ção que deixa para trás, torna possível a partida. A parti-da acaba por ser inevitável, com as graves crises agrícolas ocorridas com o oídio e a filoxera, os contratos de colonia, a atração pelos que voltavam bem sucedidos à terra. O go-vernador José Silvestre Ribeiro, a 6 de Fevereiro de 1847, já dizia que: «A emigração he um grande mal; esta pobre terra vai ficar deserta, mas antes contemplá-la no seu esta-do primitivo do que coberta de cadáveres emaciados pela fome».

A crise económica, respectivamente a conjuntura de-pressiva da cultura e comércio do vinho, a frequência de pagamento de impostos tinham conduzido a uma situação insustentável: para uns, grande dificuldade nos seus negó-cios, para outros, os mais desfavorecidos, a inevitável fome. A ambição de uma vida melhor aliada às solicitações de mão de obra por parte do mercado internacional, como no caso do Haiti, será um motor que vai sugar os insulares, conduzindo-os a outros cantos do mundo. Os madeiren-ses, que estavam ligados às actividades agrícolas, possuíam um conhecimento profundo da indústria açucareira, o que motivou o governo havaiano a incentivar famílias inteiras a trabalhar nesta área, naquela zona do globo. As contin-gências da vida na ilha marcaram a forma de estar e viver do ilhéu; o seu carácter forte, habituado ao trabalho duro nos socalcos da agricultura, vão moldar o seu dia a dia, torná-lo mão de obra apetecível. E até o proselitismo reli-gioso protagonizado por Robert Kalley veio forçar a saída de muitos insulares. A emigração de outros, de familiares e vizinhos estimulou igualmente muitos madeirenses relati-vamente ao grande fenómeno migratório patente em várias obras literárias.

A emigração madeirense atinge assim o seu auge no sé-culo XIX, com a partida dos barcos da Union Castle, os lenços a acenar, a dificuldade em partir e deixar os mais queridos ou a terra amada. A viagem durava muitos dias, em más condições. Viagens terríveis e quase intermináveis para quem tinha solo firme a seus pés, na ilha que deixava para trás.

As zonas de acolhimento vão desde as Antilhas, conti-nente americano, nomeadamente o Brasil, Estados Unidos

e posteriormente África e Europa. Após os primei-ros anos de dificuldades extremas, os emigrantes acabaram por se integrar. Muitos ascendem social-mente, impulsionando o comércio e o desenvolvi-mento industrial. Outros dedicaram a sua vida ao trabalho, procurando um equilíbrio da sua condição económica que lhes permitia garantir o sustento tão ansiado.

É neste contexto que a vida se faz e os anos passam. Alguns regressam, mostrando toda a riqueza acumulada, outros ficam no país de acolhimento com a saudade a bater no peito e recordando os cheiros e os cantinhos da casa e família que os viu partir. Retornar à terra natal será um sonho não cumprido para a maior dos madeirenses que partiram. As viagens, a distância e a sobrevivência vai ditar a permanência na terra de eleição. O mar, sempre o mar a separar as famílias, os corações, as vidas. Mas é também esse mesmo mar que permitiu o encontro de uma nova perspectiva de vida.

A chegada ou partida de pessoas tem uma grande repercussão psicológica naquilo que se diz e pensa para aqueles que permaneceram na ilha: a saudade marcante e marcada pela ausência, pelo não saber notícias. O mar e os barcos e mais tarde o avião, podiam significar encontro, reencontro, partida, ausência, vulnerabilidade, emoção, sonho, desejo, ambição.

A ilha repele e atrai, faz partir mas obriga a vol-tar. A música, o folclore e os vários géneros literá-rios são espelho destas relações de proximidade e distância entre a ilha e os seus emigrantes.

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N ascida sob o signo do sonho e da utopia, a literatura que focaliza a problemática da emigração desdobra

a imagem, as aventuras e desventuras de quem se afasta da terra matricial para regressar (transformado) às origens. Como refere Joel Serrão1, a emigração não deixou escri-tores e artistas indiferentes às viagens empreendidas por quem procura, noutras paragens, a solução para pôr cobro às vicissitudes de uma vida amarga. Este fenómeno migra-tório relatado, por exemplo, por Camilo Castelo Branco, Eça de Queirós, Fialho de Almeida, Abel Botelho, também deixou marcas em José Rodrigues Miguéis, Lídia Jorge ou em João de Melo2, entre outros.

Na ilha da Madeira, o tempo pretérito pautado pela miséria e pelas diferenças sociais distópicas fez com que o desejo de viajar para lugares mais desenvolvidos cons-tituísse um topos significativo da ficção insular. Quer em romances, contos ou novelas, quer em peças de teatro, os protagonistas, alimentados por essa vontade de derrubar obstáculos e aceder a uma renovada (con)formação, essen-cialmente social e identitária, sustentam a ânsia de retornar a casa, uma vez alcançados os objectivos iniciais3. No de-correr do tempo, duas imagens do emigrante bem-sucedi-do parecem vingar. O século XIX dispõe-se a encenar um jovem humilde que emigra e retorna rico. Só assim pode derrubar as barreiras sociais que a sociedade de castas vi-gente até então, sob a dominação de morgados, impunha. O século XX tende a mostrar um homem feito (e quase sempre casado) que embarca para contrariar a sua con-dição e sonha em regressar. Ao revelar força de vontade, espírito de sacrifício e sentido de oportunidade, volta para estabelecer-se, qual self-made man, por conta própria ou como empresário, embora apareça muitas vezes com tiques de novo-rico. Esse fenómeno denominado “ciclo fechado”,

“O Emigrante” de João França:da escrita à representação cénica

Leonor Martins Coelho

Universidade da Madeira/ Centro de Estudos Comparatistas (FLUL)

de que fala a estudiosa Rocha-Trindade4 não passou despercebido ao olhar diligente de escritores ligados física ou afectivamente à ilha da Madeira. A figura do emigrante madeirense do século XIX surge, por exemplo, no romance Saias de Balão (1946), de Ri-cardo Nascimento Jardim. A representação do emi-grante do século XX marca as ficções Torna-Viagem (1979), de Horácio Bento de Gouveia, alguns tex-tos de Irene Lucília Andrade, “A Santa do Calhau” (1992), de Maria Aurora Carvalho Homem (no livro de contos epónimo), Contos de Embarcar (2002), de Lília Mata, o conto “Telésforo”, de José Viale Mouti-nho (em Já os Galos Pretos Cantam, 2003) ou, ain-da, Linhas Retas e Curvas ou o Filho Que Perdi e… (2011), de Maria do Carmo Rodrigues. São, pois, narrativas que parecem ilustrar a emergência de um novo “mito” literário como entrevisto por Eduardo Lourenço. No seu ensaio intitulado Labirinto da Saudade5, o estudioso sugere que a configuração do português-emigrante veio substituir a do português--colonizador nessas terras distantes.

De qualquer forma, também a figuração do emigrante madeirense se inscreve na obra de João França, permitindo retratar um tempo específico da Madeira, ao revelar as atitudes e as relações de in-divíduos determinadas pelas circunstâncias históri-cas em que a acção se projecta. Se no romance Uma Família Madeirense (edição póstuma 2006) a ima-gem do emigrante adquire um papel assinalável, é no conto intitulado “O emigrante” que se torna tema principal, permitindo, por um lado, a descrição das gentes desafortunadas da Ponta do Sol e dos Canhas, mas suscitando, por outro, a cobiça ou a admiração

“Em Portugal, quem emigra não é, como em toda a parte, a transbordação de uma população que sobra; mas a fuga de

uma população que sofre (…) a miséria que instiga a procurar em outras terras o pão que falta na nossa.”

Eça de Queirós

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dos que vivem com parcos recursos materiais. Com efeito, avivando as problemáticas culturais e identitárias de uma ilha isolada, “O emigrante” de João França apresenta-se também como um registo histórico-social, sublinhando quer a emigração bem-sucedida, protagonizada por Cris-pim Americano, quer a emigração almejada, mesmo que não realizada, como acontecerá com Rique Brás. Porém, não deixará de referir casos de insucesso dessas desloca-lizações, a exemplo do infortúnio que vitimou um tio-avô do jovem Rique em terras brasileiras. Em todo o caso, a experiência migratória permitia que as novas emergências sociais contrariassem um destino marcado pela cultura da permanência, como referido na seguinte sentença: “A vida era assim: parecia depender do nascimento de uma pessoa. Filho de doutor era doutor, filho de cavador era cavador” (s.d.: 34).

Crispim Americano emigrou para as Américas já ca-sado e pai. Numa analepse que resume a situação precária deste madeirense, o leitor ficará a conhecer, em traços ge-rais, as agruras de uma experiência arriscada no outro lado do Atlântico:

“Ele, Crispim, deixara tudo, terra e família, para se aventurar num mundo estrangeiro onde tra-balhou de maneira que só ele e Deus sabiam. Desde Filadélfia à Califórnia derramara suor nas fábricas, nas docas, nas plantações de algodão, nas cavalariças e até no transporte de bebidas de contrabando, que isso também era trabalho hon-rado em terra estranha, tudo e só p’ra voltar aos Canhas com alguma coisa, por amor da família, e eis que aparece um descarado sem vintém, a namorar-lhe a filha! Só visto! (s.d.: 27)”

Se Rique Brás deseja experimentar os caminhos de um “exílio” ambicionado é para poder enfrentar o pai de Mariquinhas que lhe não consente o namoro com a fi-lha. Compreender-se-á, então, que, tendo o protagonista tomado a resolução de partir e encontrando-se na posse de “uma carta de chamada” de Boston que lhe facilitaria a entrada em solo americano, o desfecho venha a adquirir novos contornos. Com efeito, a imagem da mãe abandona-da à sua sorte contraria os planos do rapaz que foram, na realidade, impetuosamente desenhados e, por isso mesmo, pouco interiorizados. Assim, apesar do sonho de possuir “[u]ma grande fazenda, casa com janelas de persianas ver-des e telhado vermelho, vacas a pastar, compridos corre-dores de vinha, água com fartura, gente a trabalhar can-tando” (s.d.: 32) , num nítido decalque das propriedades de Crispim Americano, o jovem desconstrói a ilusão que

a explicativa traduz “Ora a América! Que fosse bu-giar! Que se fossem bugiar a América, o Crispim e a Mariquinhas! (s.d.: 39)”

O texto teatral, concebido pelo autor como co-média, foi publicado juntamente com o conto e reto-ma a mesma problemática. Constituído por um acto desdobrado em oito quadros, ele apresenta algumas variações significativas: o pai de Rique, pouco antes de falecer, realça, sobretudo, os aspectos positivos da emigração e, desse modo, pode ter contribuído para criar ilusões ao filho. Efectivamente, numa pronún-cia insular de sabor popular que confere comicidade à cena, a conversa que decorre entre o pai, a mãe e Rique Brás serve para apresentar a figura do torna--viagem endinheirado:

“PAI – Nem tudo é igual neste mundo. Olha o Crispim dos Canhas, o Americano. Em pouco tempo, zaz! É aquilo qu’a gente vê: casa rica, fazenda do tamanho do po-der de Deus. E não voltou d’América com a espinha encolhida.” (s.d.: 43)

O texto dramatúrgico irá acentuar as necessida-des dos mais desfavorecidos, enfatizando, sobretu-do, os acessos difíceis que ligam o Funchal às zonas rurais, bem como o abandono a que são votados os mais necessitados, doentes e moribundos. Para po-der pagar quer os serviços do médico que auxiliou seu pai, quer as despesas do funeral, Rique propõe vender uma vaca a Crispim Americano e saldar, assim, as dívidas da família. Nessa negociação, o torna-viagem perfila-se como prepotente e astuto, acentuando os traços esboçados no conto. Rique, por sua vez, afigura-se mais rude e desinformado. Ostentando uma certa tendência para a bebida, é descarado no galanteio a Mariquinhas, provocando, desse modo, o descontentamento do pai da rapari-ga. A experiência migratória recordada por Crispim serve, por um lado, para avisar o rapaz que não casa-rá com a filha. A longa tirada do velho endinheirado prolongará, por outro, as informações do desloca-mento desse madeirense insertas no conto inaugu-ral:

“CRISPIM – T’as-m’apanhar de boa maré, Rique! Vou-te dizer uma coisa. Há dezasset’anos… empenhei-m’até à ponta das orelhas, só p’ra mercar uma passagem

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p’r’América. Deit’atenção. Desembarquei em Fi-ladélfia, uma terra de barafunda, ond’a gente pa-rece ter o diabo no corpo. Andei por ali aos tom-bos, trabalhando em tud’o qu’apar’cia, dia e noite, ora na doca, com sacas de trigo às costas, ora a puxar mangueiras p’ra lavar as ruas, ora chegan-do carvão à fornalha duma fábrica de panos. Mas eu tinha os ossos rijos. Aguentei isso durante seis anos. Vai atentando bem, qu’a história é com-prida. Depois, caminhei atrás duma conversa de melhores dias, até que cheguei a São Francisco da Califórnia. Outro inferno. Conheci fazendas e mais fazendas de laranjeiras e d’algodão. Deus sabe o qu’isso é. E quando se cheg’à noite, depois dum dia nesses trabalhos, também Deus sabe… Passei dias e dias que só comia laranjas com cas-ca, p’ra não dar nas vistas, e dormia onde calha-va, só p’r’amealhar o dinheiro da jorna. Apesar dos calos, as mãos sangravam. A gente ganhava conform’o trabalho feito, ali pesado na balança. E o sol em riba das costas, com’uma brasa. Mas isso passou. Aguentei. E vem um sujeito e dá-me trabalho noutra coisa: numa cavalariça. Cavalos de corrida. Uma espécie de negócio de lotaria, a que chamam apostas. Não sabes, mas eu sei. Pas-sei tempos a lavar e escovar cavalos de correr e de puxar trens de duas rodas. Deit’atenção. Ora bem. Depois de lavar cavalos, sabes o qu’aconteceu? Passei a guiar um desses trens, puxado por um cavalo. Só p’ra passear? Não. O contrato era outro. Servir fregueses. Centenas. Milhares de fregueses em toda a cidade. Que julgas tu qu’ia dentro do trem, bem escondido? Figos passados? Não. Grogue. Aguardente, a qu’eles chamam uís-que, e tava proibido p’lo governo d’América. Mas cada um se governava como podia e da melhor maneira. E entrei eu na combinação à percenta-gem, o que quer dizer qu’o negócio não era meu. Mas ganhava bem, lá isso ganhava! Claro, eu ti-nha de trabalhar às cautelas, é verdade, mas sem-

pre me safei. Trabalhava sem descanso, sem domingos nem dias-santos. Cheguei a atrelar o cavalo ao trem às cinco da manhã e só parar à meia-noite. A gente comia, eu e o cavalo, onde e quando calhava; dormia três horas, e toca de caminhar, fingindo qu’andava mostrando café em pacotes. Se m’encomendavam dez ou vinte pacotes de café, eu já sabia qu’eram dez ou vinte litros de grogue. E sempr’andar, sem um dia de descanso, sem uma hora p’ra ir à missa. Nunca por nunca eu sube o que foi um do-mingo! Tás atremando, Rique? Pergunto se já compr’endeste? Ouviste? (s.d.: 65-67)

Nesta variação dramatúrgica em torno da pro-blemática de uma emigração penosa e ousada, a es-crita irá acentuar o destino trágico que enclausura o desventurado. Contrariamente ao conto, a comédia do autor de A Ilha e o Tempo (1972) acentuará o in-fortúnio da família Brás. Com efeito, o jovem não somente contraiu a hipoteca da casa e das poucas terras que possuía, mas também regressará ao Paul do Mar ainda mais desprotegido. O vendeiro, que não existe no conto epónimo, sublinhará as dificul-dades dos migrantes, erguendo-se como a voz que anuncia a desgraça.

Registe-se que o Teatro Experimental do Fun-chal (T.E.F.) representou o texto de João França em 1994, sob o título de Quase por Acaso um Emigrante. Respeitando a estrutura da comédia concebida pelo autor, o director artístico, Eduardo Luíz, encenou a confrontação entre as ilusões de um jovem vilão, que sonha em emigrar para contrariar a sorte, e a triun-fante satisfação do torna-viagem Crispim (“Tá po-dre de rico. Esse teve sorte nas Américas. Em quinze anos sacudiu a miséria de riba de si.” (policopiado, p. 3). Conhecido como o “Brasinha do Paul da Serra”, a denominação do jovem protagonista releva bem a sua inconsistência de carácter, a julgar pela infor-mação de falta de maturidade (‘-inho’) e de excesso de jactância (‘brasa’) que a forma do nome sugere. O “Brasinha” é, pois, fogo de vista e dá assim o tom à comédia, implantada num cenário rural e ritmada por diálogos truculentos e de sabor regionalizante.

É certo haver algumas dissemelhanças entre o texto de João França e a encenação realizada pelo T.E.F.. A peça abre com uma situação de luto, sublinhando assim o falecimento do pai de Rique, o que reenvia para a informação contida no conto, quando o leitor descobre que o protagonista é

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“órfão de pai, [vivendo] para a mãe, para a sua pequena casa de colmo” (p. 8). O vendeiro da comédia de João França transforma-se numa vendeira. Ao relatar o sonho do marido, o Abelinha, de seguir os caminhos da emigração, vinca, assim, que o fenómeno migratório toca predominantemente, na ilha da Madeira, à população masculina. Finalmente, ao encaixar um epílogo para destacar as derradeiras observações do protagonista, o encenador vem sublinhar, por um lado, o retrocesso da decisão que Rique tinha tomado (devido em parte à tristeza que tomara conta da mãe e motivado pelo facto de o namoro com Mariquinhas ser uma inclinação passageira, um capricho do momento), por outro, o alcoolismo e a bazófia que o caracterizam. Tirando estas adaptações de pormenor, provavelmente motivadas por condicionalismo de meios e pela preocupação em garantir a comunicabilidade e expressividade em cena, a representação mantém-se fiel ao espírito do texto original, investindo na desconstrução do fenómeno sócio-económico em questão.

Assim se justifica o título dado à peça Quase por Acaso um Emigrante, ao realçar um sonho não cumprido. Na ver-dade, esta miragem que possibilitou entrever uma utopia, irá enclausurar (ainda mais) o pobre vilão: permanecendo na Ilha, junto da sua gente ficará, sobretudo, preso à sua sina e à sua condição.

Bibliografia activa:

FRANÇA, João, O Emigrante, Lisboa, Agência Portuguesa de Revistas, s/d.

Teatro Experimental do Funchal, Quase por Acaso um Emi-grante – texto policopiado.

Bibliografia passiva:

ROCHA, Clara, “A Imagem do Emigrante na Ficção Por-tuguesa dos Séculos XIX e XX”, in Revista O Escritor, no 7, 1996.

LOURENÇO, Eduardo, “A Emigração como Mito e os Mi-tos da Emigração” in O Labirinto da Saudade, Lisboa, Dom Quixote, 1982.

SERRÃO, Joel, A Emigração Portuguesa – Sondagem Histó-rica, Lisboa, Livros Horizonte, 1982.

ROCHA-TRINDADE, Maria Beatriz, Sociologia das Mi-grações, Universidade Aberta, Lisboa, 1995.

Notas1 Sobre este “fenómeno histórico de natureza estrutural” projectado nas artes

em geral, e na literatura, em particular, o leitor poderá consultar Joel Serrão, A Emigração Portuguesa – Sondagem Histórica, Lisboa, Livros Horizonte, 1982, p. 78.

2 Para outras representações do emigrante, veja-se Clara Rocha, “A Imagem do

Emigrante na Ficção Portuguesa dos Séculos XIX e XX”, in Revista O Escritor, no 7, 1996.

3 A questão do Retorno foi amplamente abordada nos vários campos do saber: sociólogos, geógrafos, estudiosos da Literatura e da Cultura, entre outros. Ora, entre o real e a ficção parece haver um efeito de espelhamento notório. Também, na Literatura os protagonistas exal-tam, desde o momento da partida, a vontade de regressar.

4 No dizer desta estudiosa, o emigrante português saía para regressar às origens: construir casa, assentar praça e passar a sua velhice na terra que o viu nascer. Cf. Maria Beatriz Rocha-Trindade, Sociologia das Migrações, Universidade Aberta, Lisboa, 1995, p. 37.

5 Cf. “A Emigração como Mito e os Mitos da Emigração” in O Labirinto da Saudade, Lisboa, Dom Quixote, 1982, p. 128.

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“– Eu inda sua novo. Um dia hei-de imbarcar. Lá fora ganha-se munto” (Gouveia, 1979: 12), declara Artur, uma das personagens centrais do romance Torna-viagem (1979), de Horácio Bento de Gouveia (1901-1983). Sublinhe-se, pois, o registo do enunciado a revelar a origem geográfica e social (madeirense, rural e humilde), bem como o verbo “embarcar”, com o sentido de ‘partir de barco para emigrar’. Atente-se, também, no termo “Torna-viagem” que tan-to reenvia para a questão do regresso, um dos momentos mais estruturantes de todo o imaginário migrante, como designa, na nossa tradição literária desde meados do séc. XVIII,1 o português que enriqueceu além Atlântico e que regressa à Pátria, endinheirado. Esse tipo social, elevado a estereótipo, suscitava uma simpatia irónica em Portugal e tornou-se naturalmente alvo de crítica humorística, com-parável à actual figura do novo-rico boçal.

Tal figura parece também existir na sociedade madeirense do séc. XX, como personifica José Ro-drigues, uma personagem da novela “Ana Maria” (1972) e protótipo do emigrante madeirense dos anos cinquenta, oriundo do “campo”, ambicioso, que prosperou na Venezuela. Ostenta numa vinda à Ma-deira o seu êxito, com um “automóvel espampanan-te” de dimensão inapropriada para as ruas estreitas do Funchal. Uma vez rico, desenvolve um complexo de superioridade, afastando de si e dos seus aqueles com quem convivia no passado, no tempo em que integrava o meio social dos desprovidos de recursos económicos. A mesma veia comico-satírica sobres-sai do quadro que se nos oferece no romance Águas Mansas (1963), quando Pedro Guimarães, o narra-dor-personagem, apresenta três migrantes regressa-dos à freguesia da Ponta Delgada na segunda década do século passado:

o americano da Eduardinha, o Faustino brasileiro, o Anjo de Demerara2 palravam. Jactava-se cada um da terra onde estivera e onde o dinheiro abundava. E aludiam às fábricas e ao trabalho de moiro que leva-ram, com as comparações mais fantasiosas do que reais. (Gouveia, 1963: 48)

Tirando um ou outro apontamento respeitante à volubilidade verbal (sugerido aqui pelos termos de conotação depreciativa: “palravam”, “jactava--se”, “comparações fantasiosas”), à indumentária e a hábitos singulares que podia causar estranheza aos locais,3 o narrador não deixa de lhes dar o devido valor: “era-me distracção ouvir diálogos entre os embarcadiços. Tinham conversas diferentes” (Gou-veia, 1963: 49). Pode aferir-se desta observação as influências que homens viajados, com uma visão alargada do mundo, exerceram na sociedade insu-lar, ao inocularem na terra de origem novos usos e outras formas de pensar as relações socioculturais. Evidencia-se, deste modo, que a emigração tempo-

Figurações da emigração madeirensena narrativa de Horácio Bento de Gouveia

Thierry Proença dos SantosUniversidade da Madeira

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rária terá tido um custo social benéfico. Em sentido oposto, desenrola-se, no romance Luísa Marta – Ficção e Memória, dado postumamente a lume em 1986, a história de José Casca que embarcou clandestinamente para o Brasil. Esta personagem vive dividida entre o passado que lhe inspira remorsos e um presente que lhe assegurava algum confor-to e aconchego (com uma mulata), mas prevalece nele um tom marcadamente disfórico, afectado por problemas de consciência e de insatisfação. Vê-se, após uma tentativa de regresso, condenado ao exílio perpétuo. Ao ilustrar o emigrante marcado pela infelicidade, porque desvinculado do meio matricial, o texto parece assinalar o elevado custo psicológico individual a que pode conduzir a experiência da emigração.

Sumariamente delineadas as coordenadas que estabe-lecem a cartografia da condição do madeirense migrante, importa interrogar a lógica da elaboração do tema da emi-gração à medida que Bento de Gouveia as projectou nas narrativas que foi publicando ao longo dos anos.

Como lembra a voz do romance Canga, o mito do “El-dorado dos Brasis” permanecia, ainda na primeira meta-de do séc. XX, muito florescente no imaginário colectivo madeirense (Gouveia, 2008: 85), a par do português. As-sistia-se à escapada em massa da população masculina e aguardavam-se notícias e remessas de dinheiro de filhos ou de maridos. Esposas ficavam em casa, muitas vezes desam-paradas e a braços com filhos de tenra idade, à espera de um dia serem chamadas para junto do respectivo cônjuge. Famílias inteiras deixavam as freguesias do Norte da Ilha, com rumo ao Brasil. Um ou outro rapaz, a quem convinha cortar definitivamente com o passado, embarcava para as ilhas Sanduíches ou até clandestinamente para as Améri-cas, não dando mais sinal de si. Alguns voltavam coroados de sucesso, alimentando o grande sonho naqueles que vi-viam com dificuldades, sem esperança de ver a sua situa-ção melhorar.

Colocado perante exemplos de sucesso – a noção de su-cesso varia na razão directa do grau de ambição que o emi-grante acalenta – e diante da carestia que lhe condicionava a vida, o trabalhador rural não resistia ao natural desejo de emigrar. Tal possibilidade podia significar para o “des-ditoso colono” libertar-se “da férrea escravidão” a que cer-to senhorio o votara, ou seja, escapar a uma ordem social considerada opressora. É em torno desta problemática que gira o romance Canga (1949, titulado na duas primeiras edições: Ilhéus), cujo processo de composição integra a téc-nica musical do leitmotiv, actuando aqui como um modo de representação da luta interior dos desfavorecidos entre o partir e o ficar. No desenrolar da narrativa, vão surgindo motivos decorrentes do facto migratório, mas sempre do

ponto de vista de quem observa o fenómeno a partir da Ilha: as saudades deixadas por aqueles que ousa-ram emigrar e a oportuna notícia de que estão bem, o sonho de embarcar e a vulnerabilidade da mulher4 que fica na Ilha a tomar conta da “fazenda” e da pro-le, o “regresso de triunfador” e a desilusão de quem esperava viver melhores dias depois do retorno.5 Sem deixar de denunciar “a lei do mais forte” em re-lação aos indefesos, o livro culminará no desenlace com um remate festivo de sabor popular, ao exaltar o telurismo insular e ao apontar certo optimismo quanto à extinção do obsoleto regime agrário da co-lonia, por via da mediação do Governo central.

Note-se que, à luz dos informes que as narrativas transmitem, o ciclo migratório aparenta ser, nas pri-meiras décadas do séc. XX, relativamente curto, cin-co-dez-quinze anos, visto o objectivo dos emigran-tes retratados se resumir a constituir um pé-de-meia que desse para voltar à terra de origem, depois de reunidas as condições para uma sobrevivência dig-na: comprar terras de cultivo, construir casa e esta-belecer-se por conta própria. Leia-se, por exemplo, a carta – processo composicional recorrente na ficção bentiana para ilustrar a realidade de uma condição socioeconómica e geocultural – que o Manulinho do Palheiro do Ferreiro, emigrado na África do Sul, endereça à bordadeira Maria de Jesus, sua prometi-da, no romance Lágrimas Correndo Mundo (1959):

«Maria de Jasus: Graças a Deus vua indo bem na casa. Os patrões só no sábado é que vêm aos escritórios pagar a féria. Eu ainda não os intendo proque eles falo in-glês e nã conhecem a nossa fala. Aqui tudo é munto grande comparado com ei nossas casas e ruas. O jardim é comprido. Maria de Jasus, espero tar aqui cinco anos e ao depois vua à Madeira p’ra gente se casar. O dinheiro de quatro anos deve chegar para manda fazer ũa casa. Não há cuma se vi-ver naquilo que é nosso. Não se paga ren-da nem o dono aumenta renda. Já tenho soidades de ti e alembro-me sempre do Palheiro Ferreiro onde nos conhecemos, naquele mês de Maio. / Dá soidades à tua mãe e arrecebe muntas soidades que só à vista terão fim, do Manulinho.» (Gouveia, 1959: 65-66)

Neste pastiche de carta escrita por um emigrante

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grosseiramente alfabetizado, fica claro que a motivação de emigrar visa transformar todo o anterior percurso disfórico num futuro melhor. Efectivamente, nas narrativas bentia-nas reflectem-se comportamentos e anseios que reenviam para uma luta de indivíduos apostados em superar dificul-dades alicerçadas no imobilismo da sociedade em que se inserem. Tentam, pois, a sua sorte em países que oferecem oportunidades, mas nunca isentos de dificuldades e peri-gos (choque cultural, barreira linguística, fosso social, mal estar devido ao despaisamento) que podem anular o esfor-ço para a adaptação, o sucesso e o convívio em harmonia.

A representação social do emigrante madeirense que Bento de Gouveia elabora não foge ao estereótipo do in-divíduo humilde, algo ingénuo mas não destituído de in-teligência, esforçado e, por isso, merecedor de respeito. O escritor mostra-se sensível ao espírito de sacrifício e à for-ça de vontade que anima a figura do emigrante. O sucesso conquista-se, mas com muito esforço. É uma questão de atitude. Na já referida novela “Ana Maria”, o ficcionista vai esboçar em traços largos o emigrante bem sucedido que, apoiado inicialmente pela rede familiar lá residente, conse-gue vingar em Caracas, a terra dos sonhos de portugueses e madeirenses na segunda metade do século XX:

Empregou-se numa padaria. Dormindo em má enxerga em quadra de arrecadação, gastando o mínimo no passadio, com o sacrifício da própria sobrevivência física, amealhando, de grão em grão, mais lentamente do que pomba bicando o grãozinho de milho para encher o papo, o José Rodrigues põe negócio por sua conta. (Gouveia, 2005: 82)

Auto-disciplinado e com o pensamento na mulher e na filha que deixou na Ilha, José Rodrigues regressa e abre um “famoso supermercado” no Funchal. Todavia, a história da emigração portuguesa e, mais particularmente, a madei-rense para as Américas não se resume a uma relação de sucessos e conquistas, nem se define como um fenómeno uniforme e estável. São múltiplas as realidades que lhe es-tão associadas e Bento de Gouveia não deixará de verificar que a emigração de carácter temporário evoluíra para uma de carácter permanente ou de longa duração.

Tal abordagem constituirá o cerne do romance Torna--viagem, publicado em 1979. Parecendo retomar o qua-dro traçado por Alexandre Herculano na sua definição do emigrante português, Bento de Gouveia vai encenar dois tipos de migrantes, distintos pela índole psicológica: “uns naturalmente audazes e propensos a guiar-se mais pelos

impulsos das paixões e da imaginação do que pela prudência” (Herculano, 1983: 77), resultando daí a dispersão familiar e uma maior instabilidade na fixação de ganhos; “outros tímidos e reflexivos, a quem as aventuras repugnavam, e que só se preci-pitam nelas pela urgência das precisões” (Ibidem), procurando sempre acautelar os próprios interesses e o bem-estar da família. Ao escrever esse romance, cujo projecto literário inicial chegou a designar-se “O Venezuelano”, Horácio Bento retoma a habitual estrutura diegética bipartida. No fluxo narrativo de primeiro plano, assiste-se às tribulações do sapateiro Artur, da Achada do Castanheiro, pelo Brasil – rural – e pela Venezuela – urbana –, homem cuja sorte foi a de uma vida de altos e baixos. Chegado ao Brasil, Artur trava conhecimento com Bajeca,6 o tipo do imigrado trafulha e mentiroso, que vigariza os con-terrâneos recém-chegados. Bajeca engana Artur ao vender-lhe uma propriedade agrícola com animais e alfaias. Este recupera do golpe sofrido, mas perde-se de amores por uma baiana, que lhe derrete os ganhos e o trai com outro. Artur muda-se para a capital da Venezuela, onde vai trabalhar no pequeno comér-cio, juntar-se por comodidade com uma espanhola tão esforçada quanto pouco atraente, conseguindo amealhar alguns bolívares, mas acaba por ser vítima de assalto. No final, envelhecido e quase sem nada, volta às origens, assim como à mulher que outrora abandonara. Partiu como voltou, de guitarra na mão, elemento simbólico que define Artur como moder-na figura picaresca, por este viver ao sabor do acaso. Embarcou um dia num transatlântico e regressa à Ilha, acompanhado da sombra do fracasso, na era da aviação comercial. É a família, durante mais de trin-ta anos ignorada, que lhe dará acolhimento, sendo a sua tábua de salvação para a velhice7. Em contra-ponto, há o casal Freitas, com uma sólida estrutura familiar, que se vê obrigado a emigrar por não haver na Achada do Castanheiro condições económicas de sustentabilidade para o pequeno comércio, nem tão--pouco de mobilidade social para os seus habitantes. Representando uma história de sucesso empresarial na Venezuela, Francisco Freitas dá a mão a conterrâ-neos, nomeadamente ao Ratazana, que revelará ser um empregado trabalhador, sério e construtor da fortuna do patrão, que, por sua vez, o recompensará. Apesar das melhorias de vida que a Venezuela irá proporcionar ao Ratazana e à mulher, esta, chama-da significativamente Rosa, qual planta transplanta-da que não se aclimata ao novo meio, continuará a viver numa tristeza profunda, provocada por uma

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nostalgia doentia da aldeia natal.8 Os Freitas nunca esque-cem a terra de origem e voltam à ilha com o intuito de nela investir. Deixam na Venezuela ramo familiar e descendên-cia que saberá tomar conta dos negócios. O filho, Carlos, engenheiro de formação, configura a conciliação das cul-turas e identidades de que é o feliz resultado. Há, todavia, no desenlace, uma nota dissonante na harmonia familiar trazida pela filha, Anabela, licenciada em Medicina, habi-tuada a conviver com a nata da sociedade e que, por isso mesmo, rejeita as origens rurais dos pais.

Assim, o romance Torna-viagem descortina um pouco o modo como se moviam e se estruturavam os emigrantes nas Américas, constituindo um hino à glória da “diáspora” madeirense bem sucedida, à rede económica e sentimental que se expande por esse mundo fora, mas cujo ponto de referência, de partida e de chegada, é a Ilha. Convém não esquecer que tal ligação entre as comunidades madeirenses e o lugar de origem favorece o desenvolvimento da Madei-ra, daí ser perceptível na intenção do autor um certo pro-selitismo a favor da Terra-Mãe, imbuído de certo espírito patriótico.

Tipo social muito presente nas literaturas insulares que costumam refractar espaços da escassez, da exiguidade e da rudeza, a personagem do emigrante é transversal a toda a obra bentiana e declina-se em vários tipos: ora estereó-tipo do indivíduo de inteligência tosca e disposto a viver em condições precárias para juntar a sonhada fortuna, ora símbolo do trabalho, da honestidade e do progresso; ora figura da dissolução dos costumes e da atracção por um certo tipo de marginalidade, ora desafiador do próprio des-tino, apostado na ascensão social e na valorização de si e dos seus. Todos eles se apresentam marcados pelo conser-vadorismo atávico, identificando-se com uma visão ideali-zada da terra natal; alguns, os mais urbanizados e atentos à evolução dos tempos, revelam-se cientes da importância da educação como mecanismo gerador de futuro para si e para os filhos.

Com base nas situações e nos perfis apresentados, o drama do emigrante madeirense não se afasta do estereóti-po literário do ‘emigrante’, visto “de fora para dentro ou em auto-retratação do Eu para o Outro”, como observa Laura Areias (2002: 104): desenvolve-se a narrativa de uma tra-jectória de vida que vai de um passado pobre a um presen-te economicamente confortável, longe da pátria, a pensar num retorno. Expõe-se os contornos de uma emigração voluntária, por vontade própria, e não de incitação enqua-drada no abuso de confiança. Não há registo de narrativas de exílio político ou de chamamento para a aventura pelo gosto da aventura. De resto, a voz dos textos analisados pouco ou nada diz sobre o modo como esses homens eram

vistos pela sociedade receptora, mas alude ao facto de indivíduos imigrados terem pedido a naciona-lidade venezuelana para se comprometerem com o desenvolvimento da terra de acolhimento. Sem negar a necessidade do diálogo com a alteridade, a tónica da escrita bentiana parece incidir, prioritaria-mente, na defesa e ilustração dos valores da identi-dade colectiva madeirense.

Além disso, a imagem estética do emigrante que Bento de Gouveia projecta na sua ficção não parece insistir na “denúncia das desumanidades da emi-gração” (Saraiva e Lopes, s.d.: 1071), como acontece com o romance Emigrantes (1928), de Ferreira de Castro. Antes investe num discurso que se prende com questões atinentes ao plano psicológico e mo-ral. À questão económica subjacente ao fenómeno da migração sobrevém, pois, a questão moral. Na verdade, a figuração emblemática e simbólica da condição do emigrante parece revelar a inelutável descoincidência entre a migração efectiva, a da des-locação física para novos horizontes, proporcionan-do diferenciadas experiências de vida, e a migração interior, a da viagem dentro de si, porque se procede a um corte moralmente doloroso com os afectos e se persegue a vida desfasado do inexorável evoluir do meio de origem e de tudo o que se deixou e se mantém intocado na memória.

No seu ângulo de observação e de julgamento, Horácio Bento de Gouveia vai dando conta da mu-dança de comportamentos de emigrantes ao longo das décadas que lhe coube viver, ora em registo de memória, ora em registo de reportagem ou de fic-ção. Receptivo à história que todo o emigrante tem para contar, a dos seus trabalhos e sacrifícios mui-tas vezes compensados, o escritor foi sensível as deficientes condições de vida na Ilha que explicam em boa parte o fenómeno da emigração insular do séc. XX, até aos anos setenta. Não obstante a prosa resvalar por vezes para um moralismo delicodoce, as suas personagens constituem-se como represen-tações paradigmáticas das provações sofridas e dos sucessos alcançados pelos emigrantes madeirenses no Brasil, nos Estados Unidos, na África do Sul e na Venezuela.

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Bibliografia:

AREIAS, Laura, Ilhas Riqueza, Ilhas Miséria, Lisboa, Novo Imbondeiro editores, 2002.

GOUVEIA, Horácio Bento de, Canga, com carta prefácio de Aquilino Ribeiro, introdução e estabelecimento do texto de Thierry Proença dos Santos, Funchal, Empresa Municipal “Funchal 500 Anos”, 2008. [1ª ed., com o título Ilhéus, 1949]

---. “Ana Maria”, in Contos Madeirenses, organização de Nelson Veríssimo, Porto, Campo das Letras, 2005, pp. 65-94. [1ª ed. 1972]

---. Luísa Marta - Ficção e Memória: Romance, com prefá-cio de Horácio Miranda Bento de Gouveia, Funchal, SRTC-DRAC, 1986.

---. Torna-viagem: Romance do Emigrante, Coimbra, Coim-bra Editora, 1979.

---. Águas Mansas: Romance, com prefácio de Carlos Lélis, Coimbra, Coimbra Editora, 1963.

---. Lágrimas Correndo Mundo: Romance, Coimbra, Coim-bra Editora, 1959.

HERCULANO, Alexandre, Opúsculos II, Organização, in-trodução e notas de Jorge Custódio e José Manuel Garcia. Editorial Presença, Porto, 1983.

SARAIVA, António José e Óscar LOPES, História da Lite-ratura Portuguesa, 16ª edição, Porto, Porto Editora, s.d..

Notas1 V. “Le Personnage du brésilien dans le théâtre portugais du XVIIIe siècle”, in

Études de Littérature et de Linguistique, de Paul Teyssier, Fundação Calouste Gulbenkian, Centro Cultural Português, Paris, 1990, pp. 59-72.

2 Demerara é o antigo nome da Guiana Inglesa e destino preferencial de contin-gentes de emigrantes madeirenses no séc. XIX. Na Madeira, dava-se então o nome de Demerarista àquele que voltasse de lá, enriquecido.

3 Acabado de regressar à terra, Manuel, o americano da Eduardinha, apresenta--se ao protagonista-narrador do seguinte modo: “Vestia um fato de casimira azul, mas o casaco comprido [e rachado atrás] não tinha modelo nos alfaia-tes da cidade. (…) Uma gravata de seda azul com riscas encarnadas, sapatos de polimento, um anel de pedra grande num dedo. A sobressair, no colete, a corrente do relógio brilhava de amarelo. Quando sorria, alguns dentes de oiro mais avultavam entre os outros, no rosto oval e tisnado” (1963: 35). Mais adiante, lê-se a respeito de Faustino, o brasileiro, que este fumava “de cachim-bo” (1963: 106). Note-se ainda que, na escrita bentiana, o chapéu Panamá constitui-se como adereço vestimentário que caracteriza o emigrante que es-teve nos Estados Unidos ou na África do Sul (em Lágrimas Correndo Mundo e em Águas Mansas). A título de curiosidade, refira-se que este chapéu já vem associado ao migrante retornado na obra A Família do Demerarista (drama em um acto) de A. d’Azevedo, Funchal, 1859, p. 26.

4 V. o auto-retrato da mulher do Ribeiro: “Que era casada havia doze anos. Que o marido estava no Brasil e ela tinha de fazer de homem. Muito lhe custava desempenhar o lugar de chefe da casa porque era nervosa e mais nervosa se sentia com o marido fora da terra.” (Gouveia, 2008: 214)

5 Eis o desabafo do caseiro João Gonçalves, o Chaveco, nove anos passados noutra latitude: “– Cumpadre Francisco ’tou arrependido de ter vindo das Ca-rolinas. P’ra que troquei o bem que tinha pelo mal que tenho! Inda onte à noite

im casa eu mai la mulher bailámos o baile das Carolinas p’rá gente se esquecer desta vida trabalhosa mas ingrata.” (Gouveia, 2008: 186)

6 O termo, de acordo com o dicionarista Artur Bívar, significa “indiví-duo falador e linguareiro, incapaz de guardar segredo”. O nome anun-cia, de algum modo, a personagem do burlão, cheio de prosápia, que se aproveita da boa-fé e da vulnerabilidade dos conterrâneos recém--chegados.

7 A trajectória de vida das personagens principais deste romance – em especial, Artur – tem muito que ver com o argumento de uma novela que Horácio Bento de Gouveia recenseou em Agosto de 1933. Trata--se de Maria da Luz, de José Castilho. Ver Horácio Bento de Gouveia, “Cartas de Portugal: Maria da Luz – novela por José Castilho – XV”, Diário da Madeira, Funchal, 24-VIII-1933.

8 Esta doença do foro psicológico, característica do emigrante/imigra-do, tem sido ultimamente estudada por psiquiatras e psicólogos, que passaram a designá-la como “a síndrome de Ulisses”.

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E stávamos no final do século XIX quando centenas de madeirenses rumaram em direção a um arquipélago

no Oceano Pacífico, então conhecido por Ilhas Sandwich. A tradição migratória deste povo ilhéu já os tinha levado a tantos outros lugares distantes mas, desta vez, surgia o Ha-waii como nova promessa de uma vida melhor. O mês de Junho do ano de 1878 marca a partida da primeira leva de emigrantes portugueses para aquelas paragens, a bordo da barca alemã Priscilla. Eram cerca de 120 madeirenses, en-tre homens, mulheres e crianças, e estavam, na sua maio-ria, destinados às plantações de cana-de-açúcar, economia base do reino havaiano de então. Na baía do Funchal, des-faziam-se dos seus haveres, deixavam as últimas lágrimas derramadas no solo que os viu nascer, despediam-se dos familiares e dos amigos com a certeza de que não regressa-riam … e embarcavam… embarcavam carregando as suas

trouxas, levando no peito a esperança e nos olhos, a saudade!

Mas porquê o Hawaii? É sabido que, já desde o século XVI, os madeirenses emigravam para o Bra-sil, mais tarde para Demerara, para a Guiana, Cabo da Boa Esperança e mesmo para os Estados Unidos da América. Mas, o Hawaii? O que poderia atrair emigrantes europeus àquele arquipélago do Pacífico com uma população, na sua maioria, nativa e com uma forte presença asiática? O que levaria um Rei havaiano a desejar importar emigrantes madeiren-ses? O que levaria o Governo português a levar a cabo a primeira emigração organizada para um des-tino tão longínquo?

Questionar os motivos deste destino específico

A Emigração na História da Madeira

– o caso do HawaiiSusana CaldeiraCentro Cultural John dos Passos

Ei-los que partem novos e velhos

Buscar a sorte noutras paragens,

Noutras paragens, entre outros povos

Ei-los que partem, velhos e novos.

Ei-los que partem, olhos molhados

Coração triste, a saca às costas,

Esperança em riste, sonhos dourados

Ei-los que partem, olhos molhados.

Virão um dia, ricos ou não

Contando histórias de lá de longe

Onde o suor se fez em pão,

Virão um dia, ricos ou não,

Virão um dia, ou não.

“Os Emigrantes”, Manuel Freire

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da emigração madeirense lançou-nos, em tempos, numa pesquisa aturada sobre os factos sociais, políticos, institu-cionais, económicos e culturais que estariam na génese de todo este processo. Infelizmente, tal dissertação não cabe neste artigo e, por isso, lembramos apenas que a Madeira do século XIX, centrada no regime de propriedade e ex-ploração da terra, atravessava uma forte crise económica e social. O comércio do vinho, base da economia da ilha, estava em declínio. Os desastres naturais levaram à fome, ao abandono de vinhedos e ao desemprego em massa. Es-tes fatores, aliados a um crescimento populacional muito elevado, numa terra com um espaço arável insuscetível de expansão, reduziram o nível de vida, pelo que, sobretudo para os camponeses vitimados pela ruína da economia ma-deirense e aliciados pelos engajadores, a emigração foi uma questão de sobrevivência.

Mas se a emigração, tal como verificámos, se inseriu nas transformações socioeconómicas dos países de origem, por outro lado, esteve também ligada a transformações que se processavam nas zonas de destino e que, no caso do Hawaii, se refletiram na nova necessidade de mão-de--obra, bem como na necessidade de “importar” um povo autóctone que garantisse a continuação da população ha-vaiana, que se encontrava em progressivo declínio, vítima do contacto com o Ocidente. Consabidas as repercussões que, de forma generalizada, as doenças, a alteração da dieta base havaiana e a introdução do álcool e de armas tiveram no decréscimo da população, refletimos sobre como é que estes fatores, aliados à evolução das relações comerciais in-ternacionais e à expansão do comércio do açúcar, conver-giram para a premência de uma imigração massiva.

Para lá das razões, da necessidade e da vontade dos governos português e havaiano, hoje debruçar-nos-emos sobre uma figura humana que teve um papel crucial em todo este processo migratório. Não fora ele, talvez os ma-deirenses nunca sonhassem com a “Terra Nova”, talvez nunca acalentassem o sonho, talvez nunca empreendes-sem a viagem, talvez não existisse esta página da nossa História. Chamava-se Wilhem Hillebrand, era um botânico alemão e viveu no Hawaii durante 20 anos (1851 – 1871). Foi membro do Conselho Privado da corte do rei havaiano Kamehameha V, serviu o reino de Hawaii como médico, tendo descoberto o primeiro caso de lepra em Oahu e ten-do dirigido, em 1863, o Queen’s Hospital, primeiro hospital havaiano em Honolulu. Enriqueceu a flora havaiana como botânico e serviu também os interesses dos plantadores de açúcar quando, em 1865, como agente da Junta de Imigra-ção e Comissário do rei, se lançou ao recrutamento de imi-grantes na China e na Índia.

Depois de deixar o Hawaii, Hillebrand viajou por mui-

tos países e, em 1876, estabeleceu-se na ilha da Ma-deira, na altura já bem conhecida como estância privilegiada no tratamento de doenças respiratórias, na esperança de restabelecer a saúde da esposa, que se encontrava doente. Ainda nesse ano, Hillebrand escreveu uma missiva para o governo havaiano, na qual descrevia a ilha da Madeira e as semelhanças entre este arquipélago e o arquipélago havaiano, a sua topografia e as suas gentes, salientando as van-tagens em apostar na ‘importação’ de madeirenses. Em várias cartas dirigidas àquele Reino, o botânico enfatizava a crise económica, então vivida na Ma-deira, e as vantagens que tal crise poderia represen-tar para os interesses agrícolas do Hawaii.

O trabalho de campo do Dr. Hillebrand, bem como os seus conselhos, agradaram o governo ha-vaiano que ansiava por uma força de trabalho estável para as plantações de cana-de-açúcar e também por um grupo de pessoas que pudesse assegurar a con-tinuidade da população do território. Os trabalha-dores madeirenses, definidos pelo botânico como sóbrios, honestos, trabalhadores e pacíficos, imigra-riam com as suas famílias e estabelecer-se-iam defi-nitivamente no Hawaii. Assim, contribuiriam para o desenvolvimento da indústria açucareira, o seu dinheiro ficaria, em grande parte, na pátria adotiva, e ajudariam na grande luta de anos dos havaianos contra o decréscimo populacional, não só porque se misturariam com outras raças mas, sobretudo, por-que eram conhecidos pelas suas famílias numerosas.

Encontrada a solução para a questão havaiana, Hillebrand lançou-se ao trabalho e, em 1878, entrou em circulação, na ilha da Madeira, um panfleto de 22 páginas e publicado em português que se intitu-lava “Breve Notícia Acerca das Ilhas Sandwich – e das vantagens que ellas oferecem à emigração que as procure”. O panfleto fazia uma descrição detalhada do arquipélago do Hawaii quanto à sua geografia, clima, economia, agricultura, população, educação e religião. Astuciosamente, focava as similaridades entre o Hawaii e a Madeira, de modo a assegurar ao emigrante uma fácil adaptação a essa terra estran-geira. Mencionava também o desejo dos plantadores e do governo havaiano, de recrutar pessoas das ilhas atlânticas portuguesas salientando, pormenorizada-mente, os montantes que cada emigrante poderia auferir nas variadas ocupações, bem como os in-centivos que lhes eram oferecidos pelos plantadores a nível de alojamento, assistência médica, medica-mentos e terreno para cultivo. Um grande chama-

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riz centrava-se, exatamente, nos campos agrícolas doados pelos senhorios para a plantação de cana-de-açúcar: o pro-prietário comprometer-se-ia a pagar metade do valor do açúcar produzido, podendo o colono ficar, “passado um certo número de anos, senhor do terreno que cultivar”. O documento alertava, a este respeito, para duas situações curiosas: a primeira prendia-se com o número do agregado familiar, dizendo que o resultado das produções agrícolas seria maior, quanto maior fosse o número de filhos que colaborasse nas plantações. A segunda, estava relaciona-da com a orografia do terreno. O autor chamava a atenção para o facto de apenas os terrenos planos, ou ligeiramente inclinados, serem ali considerados bons para cultura. Ha-bituados a cultivar em terrenos altos e íngremes, os ma-deirenses seriam, por isso, privilegiados, até porque esses terrenos eram, significativamente, mais baratos. O panfle-to terminava num tom apelativo, focando as desvantagens de viver numa ilha onde se haviam instalado a pobreza e a fome, e as vantagens da emigração para as Ilhas Sandwich, onde a fortuna seria facilmente alcançada.

Quando, no dia 22 de Novembro do ano de 1877, Wi-lhem Hillebrand acabou de redigir este panfleto ainda não sabia as consequências que tal documento traria, para sem-pre, para a História de dois arquipélagos tão distantes… A propaganda que se fez daquele arquipélago, os anún-cios publicados na imprensa diária madeirense e os apelos dos engajadores de emigrantes convenceram milhares de madeirenses que se encontravam em situações de miséria extrema, vítimas de crises agrícolas que lhes roubavam o pão, e aliciaram também outras centenas de aventureiros que sonharam experimentar a sua sorte ‘no outro lado do mundo, onde existe a Terra Nova’.

Entre 1878 e 1913, milhares de madeirenses rumaram ao Hawaii em viagens marítimas carregadas de dor, sofri-mento e saudade, mas também de sonho e esperança num futuro risonho naquele arquipélago distante. Ainda que a incúria dos homens e a implacabilidade do tempo não nos tenham permitido apurar exactamente quantos foram, constatámos que, apenas cinco anos depois do primeiro fluxo emigratório, os portugueses representavam 12% da população, para em 1896 tal proporção roçar já os 15% da população total do Hawaii, elevando a colónia portuguesa a uma das maiores colónias europeias aí residentes.

No Hawaii, os madeirenses fizeram parte do árduo sis-tema de contratos da plantação. Habituados ao trabalho na terra e conhecedores das técnicas agrícolas, rapidamente alcançaram a posição de luna (capataz) nas plantações. Fe-lizmente, são ainda muitas as marcas que no Hawaii ainda nos fazem lembrar a sua presença. A língua portuguesa, ensinada na Universidade do Hawaii até 1956 e até mais

tarde por professores particulares, ainda é falada por alguns descendentes e, por vezes, o sotaque pode ‘acusar’ a origem madeirense. Nomes como Abreu, Correia, Teixeira, Freitas, Pereira, Silva e Camacho também fazem parte deste legado, tal como a cozi-nha madeirense que faz parte dos menus havaianos contemporâneos.

Para além das marcas deixadas pela arquitetura em pedra, também existem edifícios com nomes portugueses, como Faria, Mendonça e Araújo, pro-vando que, para alguns, o sonho da terra prometi-da se concretizou. No Hawaii, algumas igrejas têm nomes portugueses e existem também cerca de 30 ruas, como é o caso da ‘Funchal Street’, que imor-talizam a presença portuguesa e a sua importância nas ilhas. As associações e os clubes portugueses, a música e o ‘hula’, influenciados pelo braguinha, ain-da persistem, assim preservando a herança deixada pelos antepassados.

E é assim que hoje, miscigenados com outros grupos étnicos, os madeirenses fazem parte inte-grante da população havaiana, numa panóplia de cores, cheiros e sabores de etnias que se cruzam e se misturam, contribuindo para o mosaico que é irre-vogável e inconfundivelmente o Hawaii.

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“La providencia, que había destinado aquel siglo para dar una portentosa extensión a los límites del mundo conocido, acababa de descu-brir a los hombres, por medio de los portugue-ses, en 8 de julio de 1420, la frondosa isla de la Madera; y considerándola desde luego Maciot como un lugar de refugio en sus tribulaciones, determinó pasarse a ella con la esperanza de tener parte entre los que empezaban a poblarla con permiso del grande infante don Enrique, hijo de don Juan I de Portugal, que había culti-vado su razón con el estudio de la geografía y matemáticas, para ser el monstruo de su siglo”.

José de Viera y Clavijo, Noticias de la Historia General de las Islas Canarias (1772)

E s indudable que a lo largo de la Historia los archipié-lagos de Madeira y Canarias han mantenido unas re-

laciones muy estrechas, tanto comerciales como persona-les. Quizás hoy, con el desarrollo de los nuevos medios de trasporte y de comunicación, se ha perdido esta realidad de cercanía, de hermanos más que vecinos a pesar de perte-necer a diferentes metrópolis. No en vano, ambos espacios insulares conviven en la misma realidad, en el inmenso Atlántico, pero también comparten un mismo imaginario, el de las Islas Afortunadas.

Este interés por conocer la evolución de estos contactos han sido temas constantes dentro de la historiografía insu-lar, tanto canaria como madeirense. Existe una larga tradi-ción de historiadores clásicos insulares - Gaspar Frutuoso, Abreu Galindo o Viera y Clavijo - que hicieron el esfuerzo de componer una Historia General de las islas acordes con su tiempo. Esta preocupación por comprender quiénes, cómo y por qué se desarrollaron estos vínculos ha llegado hasta a nuestros en formato de investigaciones científicas realizadas por destacados historiadores – Alberto Vieira, Lobo Cabrera, Torres Santana, etc.- y bajo el amparo de importantes instituciones como las dos universidades ca-narias y el CEHA.

La emigración madeirense a las Islas Canarias: siglos XV, XVI y XVII

Javier Luis Álvarez SantosUniversidad de La Laguna, Tenerife

¿Pero de dónde surgen estos lazos? La cercanía geográfica entre Madeira y Canarias favoreció la emigración entre ambos archipiélagos desde el primer momento de sus respectivas conquistas y ocupaciones, surgiendo la necesidad de un rápido poblamiento de las islas. Pocas décadas después del comienzo de la colonización de Madeira, a mediados del siglo XV, se materializan estos contactos. El infante D. Henrique, dentro de su deseo de expansión en el Atlántico, pretendió el dominio de las Islas Canarias. De este interés se aprovechó Maciot de Bethencourt, sobrino y sucesor del primer conquistador Jean de Bethencourt – a él alude Viera y Clavijo al principio de este texto-, quien vendió sus derechos al Infante. Además, señala el historiador Abreu Galindo en 1632 que:

“Acordó irse a vivir a la isla de la Made-ra; y allí se heredó y avecindó casando una hija única que tenía Doña María de Betancor, que no tuvo otro hijo legítimo con Ruy González Dacamara capitán de la isla de S. Miguel, hijo de D. Juan Gonzá-lez Dacamara, primero Capitán de la isla de la Madera. Y esta señora Doña María de Betancur no tuvo hijos y heredaron su hacienda Enrique de Betancor y Gaspar de Betancor sobrinos de Mosen Maciot de Betancor cuyos herederos poseen hoy su hacienda y conservan en aquella isla el apellido de Betancor”.

Estos primeros contactos canario-madeirenses influyeron en la construcción de unos estrechos la-zos entre los dos archipiélagos que perdurarán du-rante varios siglos. Numerosos esclavos canarios comenzarán a llegar a Madeira, dedicándose sobre todo al trabajo de la caña de azúcar y a las labores de pastoreo. Pero también se requirió la ayuda de la isla portuguesa para la consolidación de la conquista de

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Canarias. Por ejemplo, Juan de Vera, gobernador de Gran Canaria, mandó traer de Madeira árboles frutales, parras y cañas para la puesta en cultivo de la isla. De esta forma, co-mienza la influencia madeirense en la agricultura canaria.

Sin embargo, el periodo álgido de estas relaciones coin-cide con la Unión Ibérica. Así, en 1582 el rey Felipe II envió a D. Agustín de Herrera, conde de Lanzarote, a apaciguar la isla de Madeira con unos trescientos hombres. Durante su estancia, el conde aprovechó para enlazar con una de las familias más prósperas de la Isla casando a una de sus hijas, Doña Juana de Herrera, con D. Francisco Achioli de Vasconcelos, hijo de Cenobio Cleacijo Achioli, de origen florentino. Esta relación entre las islas continuará ya que años después, estos descendientes de Agustín de Herrera marcharán a Lanzarote reclamando parte de su herencia. Del mismo modo, a finales del siglo XVI Doña María de Moxica, señora de la isla de Fuerteventura, enlazó a su hija Constanza de Sarmiento en Madeira con D. Gonzalo de Freitas, comendador de Machico.

Por tanto, vemos cómo se van consolidando estas re-laciones entre Canarias y Madeira según avance el Seis-cientos a través de la creación de lazos familiares en ambos territorios. Conexiones no sólo de las principales familias, sino también será exportable al resto de la sociedad. Pero para profundizar en estos vínculos debemos conocer el contexto en el que se desarrolla. Es cierto que la Unión Ibérica favoreció su desarrollo, pero con anterioridad las islas atlánticas orientales se convirtieron en plataforma es-tratégica de los europeos – especialmente de portugueses y castellanos- para los intereses de éstos en África y en el Nuevo Mundo, como base de aprovisionamiento y para el despacho de mercancías.

De la importancia de este tráfico interinsular surgirá la leyenda de que un piloto de navío andaluz, Alonso Sán-chez, que con su embarcación hacía la ruta comercial entre Gran Canaria y Madeira, y que en un fuerte temporal llega-ría hasta América. Éste habría sido quien hubiese descrito a Colón cómo llegar a las Indias.

La permanencia de esta ruta atlántica aceleró una serie de cambios en la actividad mercantil de las islas. Éstas de-dicaron buena parte de sus recursos agrícolas a la expor-tación, por lo que era frecuente episodios de grave necesi-dad de alimentos. Esta circunstancia derivó en un modelo de subsistencia propio entre Madeira, Azores y Canarias caracterizado por la complementariedad entre ellas. Así, de Madeira llegaban a Canarias frutos y paños; mientras que de Azores suministraba cereales a los otros dos archi-piélagos. Por su parte, los canarios se especializaron en el comercio de vinos, sin embargo algunas islas – primero Tenerife, y luego Lanzarote y Fuerteventura - también se

dedicaron a proveer de granos a Madeira. Así suce-dió en el año 1588 cuando, en el nombre del obispo, el canónigo de la catedral de Canarias y vicario en Tenerife, vendió a Francisco de Medina, vecino de Madeira, cierta cantidad de trigo y cebada proce-dentes de Lanzarote y Fuerteventura que pertenecí-an a las rentas del obispado. También era frecuente que navegantes madeirenses participasen en los in-tercambios dentro del propio archipiélago canario, generalmente transportando alimentos desde las islas de Lanzarote y Fuerteventura a Gran Canaria, Tenerife y La Palma.

Pero estos contactos comerciales surgen simul-táneamente como consecuencia de las migraciones humanas. Desde fines del siglo XVI el archipiélago español se sitúa en primer lugar en la emigración madeirense. Esta acentuada presencia fue el resul-tado de las posibilidades económicas que Canarias ofrecía, así como por la demanda de mano de obra y la posibilidad de penetración mercantil en la costa africana y en el continente americano. Sin ninguna duda, el trabajo agrícola va a ser la principal activi-dad que desarrollen los madeirenses que se estable-zcan en Canarias. Su influencia radicó, no sólo en su participación en la puesta en cultivo de la caña de azúcar, sino también en la transformación del nuevo paisaje agrícola a finales del siglo XVII con el de-sarrollo de la vid. Los madeirenses conocían las re-percusiones de una crisis azucarera que en esos mo-mentos vivía Canarias, por lo que eran conscientes de las medidas que debían tomar para reestructura esta economía isleña.

Sin embargo, no sólo fueron campesinos. Tam-bién participaron en otras actividades. Destacan so-bre otros portugueses como artesanos, junto con los azorianos. Conocida era el trabajo de la piel y del calzado en Madeira, por lo que eran reconocidos los madeirenses en Canarias como buenos zapateros. Incluso, era frecuente que maestros artesanos llama-sen a jóvenes madeirenses para que fuesen a trabajar como aprendices. También llegaron con frecuencia de Madeira a Canarias profesionales liberales como médicos y boticarios, habitualmente requeridos por los gobiernos de las islas. En menor medida, tam-bién se asentaron en Canarias comerciantes y nave-gantes procedentes de Madeira. Esta poca presencia de los madeirenses en las actividades mercantiles se debe entender en la medida de que el mayor volu-men de negocios del archipiélago español se desar-rollaba con América y Europa. Como hemos señala-

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do anteriormente, aunque intenso, el trato entre Canarias y Madeira era de carácter complementario.

A pesar de la cercanía entre ambos archipiélagos, el tra-bajo desarrollado por los madeirenses en Canarias, prin-cipalmente el agrícola, conllevaba la estancia de largas temporadas fuera de su hogar. Generalmente, los contratos agrarios requerían la obligación de más de cuatro años de trabajo y la actividad artesanal necesitaba habitualmente de un largo proceso formativo hasta conseguir el grado de maestro. En esta coyuntura será habitual que el contingen-te madeirense termine por integrarse en la nueva sociedad. Como señala Alberto Vieira, la clase mercantil de origen madeirense asentada en Canarias a partir de la Unión Ibé-rica renuncia a su condición de estante para adquirir el de vecinos o residentes. Sin ninguna duda, la continuidad y aumento de las conexiones canario-madeirenses a partir de este periodo facilitará su integración.

Este interés por establecerse en Canarias, quizás más que los continentales, derivará en que muchos de ellos se casen con los naturales y formen una familia. No obstante, probablemente por esta cercanía y proliferación de las co-nexiones, un número significativo de los madeirenses fue-ron procesados por el Santo Oficio por el delito de bigamia. Ciertamente, en los estudios realizados a este respecto, los portugueses representaban el 35% de todos los encausados por este delito hasta antes de 1640. De estos, más de la mi-tad procedían de Madeira y Azores.

A pesar de ello, los madeirenses – junto con los azo-rianos - debieron conformar el grupo de portugueses que más población aportó a Canarias, así como los que mejor se adaptaron a esta sociedad. Este interés por establecerse se percibe en el número elevado de escrituras notariales de madeirenses que acuerdan dotes y formulan testamentos. Este establecimiento permanente asimismo se comprueba en las memorias de bienes que redactan, en las que se cita no sólo a material de trabajo, dinero y ropa, sino también a casas propias en Canarias. Sin embargo, en algunas oca-siones, aluden a casas en Madeira, por lo que a pesar de la integración en la nueva sociedad, aún mantienen fuertes lazos con su tierra de origen. En este sentido, estos madei-renses asentados en Canarias reclamarán, a través de los poderes notariales, bienes y herencias de familiares en su región de procedencia.

Además, este modelo emigratorio obedece a otra pauta. Con frecuencia, los emigrantes portugueses utilizan la isla de Madeira como escala antes de llegar a Canarias. Y den-tro del archipiélago canario, arriban primero a Lanzarote para luego pasar a las islas más prósperas de Tenerife, y Gran Canaria. Efectivamente, esta isla canaria a menudo fue la puerta de entrada al resto de Canarias para los proce-

dentes de Portugal, en espacial para los madeirenses y azorianos. A su vez, este acceso se realizaba pasan-do por Madeira, donde habitualmente se hacía una escala de varios años.

Pero los cambios que se suceden tras los aconte-cimientos de 1640 cambiarán para siempre estas re-laciones. Así, un grupo que hasta entonces era bien considerado por los canarios comenzará a desapare-cer paulatinamente. La Restauración para Canarias fue un suceso trágico del que tardó mucho tiempo en recuperarse ya que se perdía gran parte de los mercados consumidores de los productos canarios. Pero también se lloraba la pérdida de un hermano bien avenido. Así, lo primero que hizo el gobierno de Tenerife tras conocer los sucesos fue una proce-sión por la paz y asegurarse el avituallamiento por otros medios, ya que eran conscientes los canarios que la ruta que suministraba de víveres procedentes de las islas portuguesas había desaparecido. Además se procedió al armamento de los baluartes por las posibles represalias pero también, como señala Vie-ra y Clavijo, entre algunos sectores la sociedad se pensó que por la cercanía entre Madeira y Lanzarote y por el número elevado de portugueses que en ella residían, era posible una invasión por parte de la isla portuguesa para atraerla a su rebelión. Sin embargo, el propio autor desmiente estas intenciones. Pero lo que sí refleja es que:

“...habiendo cortado estas novedades el curso al comercio útil y floreciente que de un siglo a aquella parte se cultivaba entre aquellas dos islas vecinas, ocasionaron en nuestros isleños unos irreparables atrasos”.

Sin ninguna duda, los portugueses y en particu-lar los madeirenses, fueron la comunidad extranjera que mejor se ha adaptado a Canarias, probablemen-te por la cercanía cultural, lingüística y religiosa. Pero también construyeron parte de la identidad de los canarios. Es indiscutible la labor de estos madei-renses en el desarrollo agrícola, artesanal y econó-mico de Canarias. Esta constancia quedó grabada en el día a día de los canarios, en las técnicas de trabajo, en el uso de ciertos instrumentos, en los modos de construcción y, sobre todo, en el léxico. Numerosos portuguesismos referentes a trabajos y oficios se mantienen en el habla de Canarias. Seguramente la llegada de madeirenses y su capacidad de integraci-ón favorecieron su asimilación con normalidad por parte de los canarios.

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N ão sei dizer, mas acredito que naquele dia a Cidade do Funchal tinha sobre si espessas nuvens acinzen-

tadas. Era, talvez, um daqueles dias tristes, sem o colori-do da paisagem, em que pese a manhã primaveril daquela segunda-feira, 25 de abril, do longínquo ano de 1949.

No porto, já se encontrava ancorado o velho navio Ser-pa Pinto, aguardando o embarque dos passageiros. Próxi-mo ao cais, viam-se os abraços, os beijos de despedida dos familiares: pai, mãe, irmãos e parentes que vinham desejar uma boa viagem e o sucesso em terra tão longe. As lágri-mas e a emoção eram inevitáveis, a iminência da separação apertava o peito, angustiava, à medida que a hora da parti-da se principiava.

Antes disso, haviam trilhado um longo percurso, ti-nham caminhado juntos, vinham conversando, andando a pé, desde a freguesia de Santo António, onde moravam nas

MADEIRA, sessenta e dois anos depois da emigração para o Rio de Janeiro: uma viagem de redescoberta das raízes e da identidade

de um descendente de além-mar.José Carlos Nunes *

suas partes mais altas, nos sítios do Pomar do Mira-douro e no Lombo dos Aguiares. Eram gentes sim-ples no modo de vida, humildes trabalhadores, la-vradores e pastores, homens e mulheres aguerridos na faina cotidiana dos enormes sacrifícios exigidos pela difícil vida campesina e das tarefas do lar. Os mais idosos não sabiam ler, nem escrever; os mais novos, apenas alfabetizados, mas todos, com muita sabedoria e perspicácia, que o meio agreste, rústico, de colinas íngremes, lhes proporcionaram.

Em tempos remotos, os antepassados deles, de várias gerações anteriores, também eram de San-to António. Outros, nos idos dos Séculos XVII e XVIII, para esta paragem vieram do norte da Ilha: São Vicente, Santana, Faial, São Jorge e Porto da Cruz (meus estudos genealógicos revelaram estas

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procedências). Por mais de quatrocentos anos, nas verten-tes montanhosas de Santo António, eles lavraram a terra, cultivaram a vinha, a semilha, desafiaram penhascos para conduzir o gado ovino e caprino pelas serras em seus vales escarpados.

Certamente, foram felizes e adaptados ao ambiente hos-til e acidentado e, por isso, não precisaram até então perfi-lhar nas diásporas madeirenses de outrora, mesmo com as agruras da fome, das epidemias e aluviões que atingiram de forma cíclica os habitantes insulares. Todavia, na primei-ra metade do Século XX, a subsistência deles passou a ter comprometimentos decorrentes de fortes fatores econô-micos e demográficos. As duas grandes guerras mundiais, 1914/1918 e 1939/1945, e a recessão mundial a partir de 1929 influenciaram sobremodo a vida deles. O depaupera-mento econômico da Madeira nesse período, conjugado ao acentuado crescimento da população local e, ainda, a frag-mentação da propriedade rural em minúsculos terrenos aráveis e a impossibilidade orográfica de novas fronteiras agrárias, inviabilizaram, cada vez mais, as oportunidades de trabalho. É verdade que, enquanto podiam, muitos re-sistiam à ideia da emigração, mas quando pensavam em casar, constituir uma família, não havia opção: as dificul-dades mostravam o caminho de além-mar para superar as vicissitudes, ainda que, para isso, tivessem que se retirar da terra que tanto amavam e dar até logo, ou mesmo adeus para sempre, aos familiares e amigos que ficavam.

Mas não nos afastemos de nossos personagens. Volte-mos ao porto do Funchal no dia 25 de abril de 1949. Já não dava mais para esperar ... o navio da emigração precisava zarpar e os protagonistas dessa minha história lá estavam: meu pai e minha mãe, de dentro do paquete, acenando para os que permaneciam em terra. Ele, trinta e dois anos de idade, ela, vinte e três, casados há apenas cinco meses. Lado a lado, impassíveis, assistiam ao fundo, à medida que o Serpa Pinto se lançava para alto mar, a imagem inversa do que conheciam: antes, do alto das vertentes de Santo António, avistavam com alegria os navios que aportavam e, agora, vislumbravam com lágrimas o desaparecimento da terra de origem na distante linha do horizonte.

Foram treze dias de uma longa e fatigante viagem nas águas do Atlântico, até chegar ao Rio de Janeiro. Nesse de-curso, devem ter tido muitas incertezas -quem sabe, até o desejo de voltar antes de chegar ao destino -, mas também a esperança de uma vida melhor e de um dia regressar à terra natal, o que, infelizmente, jamais viria a ocorrer. Fi-nalmente no dia 8 de maio, o Serpa Pinto fundeava no por-to da baía de Guanabara.

À espera deles, os parentes já radicados no Rio de Janei-ro, precursores da emigração da família, ainda na primeira

década da centúria, e acompanhados de outros que chegaram mais recentemente. Talvez, por isso, a dor da separação da terra natal e a hesitação em pisar em terra alheia foram vencidas pela presença dos que os aguardavam.

A nova existência, em terra distante, não lhes trouxe amenidades. A vida no Brasil permitia me-lhores oportunidades que na terra natal, mas era uma vida difícil, de trabalho árduo, cansativo. Con-tudo, o que mais se ressentia era a mudança da ativi-dade laboral e do contexto urbano, bem diferente do meio rural e das serras de Santo António.

Os primeiros parentes emigrantes, no Rio de Ja-neiro, se estabeleceram no comércio de secos e mo-lhados, pequenas e modestas mercearias de venda de produtos que atendiam as necessidades básicas de alimentação. Não havia alternativa: quem chega-va ia sempre trabalhar nesse ramo de atividade eco-nômica, mas isso não importava, a emigração, ainda que por ato volitivo dos personagens, era impositiva para a vida deles para enfrentar a crise de subsistên-cia que grassou a economia insular da terra de ori-gem naquela primeira metade do Século XX.

Nada poderia causar embaraços ou limites à dis-posição de trabalhar para oferecer uma vida melhor à família, uma vida sem os infortúnios das conse-quências da política econômica fechada de Portugal, à época, e dos retalhos, estragos e danos decorrentes das duas guerras mundiais em palcos europeus. Não se tratava da vontade material de acumular riqueza em terra alheia para depois regressar à terra natal. Não, não era isso que motivara aquelas singelas pes-soas - era algo mais importante, mais profundo, era a necessidade primária da dignidade humana: o tra-balho e o sustento da família.

E eles conseguiram! Os filhos nasceram, tiveram a educação de seus pais e de escolas, cresceram. O tempo passou. O trabalho de domingo a domingo permitiu uma vida simples e afortunada, sem rique-za, mas que possibilitou a provisão de todos. Embo-ra algumas economias fossem feitas, jamais permiti-ram uma viagem com a família à terra natal. Alguns parentes chegaram a voltar à Madeira e esse evento era sempre motivo de grande alegria. No embarque deles, no porto do Rio de Janeiro e mais tarde no ae-roporto, iam sempre desejar uma boa viagem e levar alguns presentes para os familiares, além dos abra-ços e beijos de saudades; no retorno deles, muita ansiedade para ter informações sobre os que lá esta-vam, o que mudou na Madeira e a alegria de receber

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pequenas lembranças.Esses momentos de muita emoção, vivenciei com meus

pais e irmãos. Os sentimentos de saudade da terra natal, as conversas acerca da Madeira e sobre os familiares, bem como os retratos de meus avós paternos e maternos sobre a cristaleira da sala de nossa residência são reminiscências que permaneceram em mim. Outras imagens foram ainda mais fortes. Naquela época, as notícias de falecimento de familiares chegavam por carta, com bastantes dias de atra-so. No caso dos meus avós paternos não sei dizer, porque tinha no máximo dois anos de idade, mas lembro das lá-grimas de minha mãe quando soube da morte de meu avô e de minha avó maternos, mais que a dor da perda, era o sofrimento de quem não os via há muitos anos e agora não mais seria possível ... era a dor da enorme saudade que a emigração deixou.

Mais alguns anos se passaram. As saudades da terra con-tinuaram, embora meus avós não fossem mais vivos. Eles não me diziam, mas acredito que neles havia a esperança, talvez, só o desejo de um dia voltar, de rever a terra que tanto amavam. Não gosto de falar sobre isso ... mas pensei em fazer uma surpresa a eles, com uma viagem à Madeira. Não sei por que o destino não me deixou ou se demorei a fazê-lo. Meu pai faleceu aos setenta e três anos. Quando eu nasci (sou o caçula da família), ele já tinha quarenta e dois anos. Essa diferença de idade distanciou a realização de um sonho. Sete anos depois, era a minha mãe que partia. Do sonho, agora restava apenas a utopia!

Outros anos, novamente, se passaram. Durante esse tempo, sem meu pai, sem minha mãe, o desejo de volta ficou latente. A mágoa e o arrependimento abafaram aque-la dor, mas não resistiram ao sentimento inato, genésico, dos descendentes de além-mar, dos filhos e netos da emi-gração. É fato que todos eles continuam a ter no âmago a saudade da terra de seus pais, de seus avós, o amor-próprio dos antepassados, mesmo que não sejam mais vivos. Pare-ce ser uma herança sentimental, que se transmite para ge-rações de além-mar e que tão bem ilustra uma das estrofes do Hino da Madeira:

“Por esse Mundo alémMadeira teu nome continuaEm teus filhos saudososQue além fronteiras De ti se mostram orgulhosos.”

Assim como fênix é o símbolo da imortalidade, a sauda-de insular se perpetua, perpassa nas gerações que se suce-dem aos emigrantes de além-mar. É a maior dádiva que se tem deles: o orgulho madeirense, que renasce em cada um

de nós, filhos e netos desses valorosos emigrantes. Enfim, sessenta e dois anos depois, é esse sen-

timento congênito que inspira a minha viagem de redescoberta: conhecer as minhas raízes, a minha identidade, avivar o meu orgulho madeirense, pisar pela primeira vez na terra afetiva e, mais que tudo, homenagear a memória de meu pai, de minha mãe, de meus antepassados. E lá estou eu, acompanhado da minha família e de uma irmã. Era o dia 15 de julho de 2011, mais de nove horas para atravessar o Atlântico (bem menos que os treze dias que o Serpa Pinto levou). O momento de maior ansiedade é o voo de Lisboa para a Madeira, cerca de uma hora e meia de viagem e o seu ápice é a descida da aerona-ve, quando abaixo das nuvens, pela pequena janela, se consegue ver um pedaço de terra no imenso oce-ano., uma ilha, a Madeira, eterna saudade de meu pai e de minha mãe, a terra dos meus antepassados!

As mesmas lágrimas corriam pelo rosto, sessen-ta e dois anos depois, as lágrimas da separação de 1949 e as lágrimas do reencontro de 2011. Naquele ano, eu não era nascido; neste ano, meus pais já não viviam, mas era como se fosse um único momento, recriado pela saudade, pelo sentimento de afeto à terra e pelo brio madeirense.

Foram quatorze dias de estadia na Madeira, não me cabe aqui fazer comentários sobre as bele-zas naturais e culturais tão inerentes a esse paraíso atlântico. Esses encantos, todos que viajam à Madei-ra admiram e ficam eternamente agradecidos por observá-los. A minha viagem não era para conhecer apenas o esplêndido patrimônio histórico, cultural e paisagístico dessa pequena ilha. Era, sim, o retorno, a visita de filhos e netos de emigrantes que, duran-te décadas de “exílio” sentimental, deixaram em si a emoção de reencontrar sua origem.

Para mim, a primeira impressão que ficou foi a extraordinária amabilidade e carinho dos parentes madeirenses que nos receberam. Parece que o tempo e o espaço geográfico que nos separou durante todos esses anos não foram fortes demais para romper os nossos laços familiares, laços de fraternidade e de amizade que foram reaproximados pelo reencontro, não mais de irmãos ou de filhos e pais, mas de pri-mos de primeira e segunda geração pós-emigração.

São indescritíveis as imagens e as sensações de voltar às casas nas quais moraram meu pai, minha mãe, meus avós; caminhar pela levada da Negra e suas veredas nas serras de Santo António; atravessar o terreiro freixo das antigas tosquias e conhecer os

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pequenos currais de pedra; admirar as montanhas no Pico do Areeiro e andar por percursos que meus antepassados fizeram por séculos. Emociona-me saber que o suor deles, as calosidades de suas mãos e as cicatrizes que tinham no corpo foram as marcas da coragem e dos sacrifícios que empreenderam, alguns deles, com prejuízo da própria vida. A História nos ensina que foi esse povo, gente humil-de, sem distintivos e brasões, o “herói do trabalho na mon-tanha agreste” e que “da rocha dura lavrou a terra”, versos do Hino da Madeira que tão bem sintetizam o destemor, o penoso trabalho destes camponeses das serras, desses va-lentes guerreiros, que embora tivessem uma vida de gran-des dificuldades na labuta diária, quando emigravam pelas necessidades de sobrevivência deles e da família, jamais esqueciam a terra de origem. Contudo, longe dela, eram vencidos pela saudade da terra querida. Era o momento que choravam a dor da separação, a única dor capaz de lhes sobrepujar as forças e a valentia deles.

Conhecer, percorrer e visualizar a paisagem montanhe-sa, a vida camponesa, os palheiros, os terraços de cultivos em áreas íngremes, os canais de irrigação, a solidão das ser-ras, as ribeiras, foram certamente o êxtase da minha via-gem. Foram esses os elementos naturais e etnológicos do meu auto-conhecimento psicossocial, de minha identida-de ideológica, de meu orgulho madeirense, de minha ins-piração, de meu tributo à memória de meus antepassados, a minha eterna lembrança: a MADEIRA que meu pai e mi-nha mãe me ensinaram a amá-la desde a mais tenra idade, a pátria afetiva de todos nós descendentes de emigrantes.

*José Carlos Nunes, 53 anos, mora no Rio de Janeiro.

Filho de emigrantes madeirenses, atualmente desenvolve pesquisa genealógica da família com base documental no Arquivo Regional da Madeira.

I need not be the only Madeiran-des-cendent; you too can join me….

S outh Africa and Madeira are as synonymous as bread is with butter. Not only is the history of

Portugal closely intertwined with that of South Afri-ca but so is Madeira specifically linked to the Sou-thern tip of Africa.

In 1418, two captains under service to Henry the Navigator, João Gonçalves Zarco and Tristão Vaz Teixeira, were driven off-course by a storm to an is-land which they named Porto Santo, the name was bestowed for their gratitude and divine deliverance from a possible shipwreck by the protected ancho-rage. The following year, an organized expedition, under the captaincy of Zarco and Vaz Teixeira, was sent to this new land, and along with Captain Bar-tolomeu Perestrello, to take possession of the island on behalf of the Portuguese crown. Consequently, the new settlers discovered “a heavy black cloud sus-pended to the southwest”, which when explored they discovered the larger island of Madeira.

Only 68 years later, in 1486, Bartolomeu Dias erected padrões along the coasts of South Africa and eleven years later in 1497 Vasco da Gama recorded a sighting of the Cape of Good Hope en route to India. Although South Africa never became a Portuguese colony, the relationship between Madeira and South Africa continued throughout the centuries. As peo-ple passed through Madeira en route to the East they too saw the beautiful shores of South Africa such as Cape Agulhas. This Portuguese name is retained to this day.

The early 20th century witnessed a trickle of emi-grants from Madeira whose numbers greatly incre-ased in the decades following World War II and im-mediately after that. Madeiran immigrants, who are traditionally associated with horticulture and com-merce, form the largest group within South Africa’s Portuguese community.

The Madeiran-South African community al-though high in numbers with unofficial estimates of around 225 000 of the estimated 300 000 of the to-tal Portuguese community is disproportionally un--influential. Historically the Madeiran community integrate well with South Africans and are known

Manny de Freitas, MP*

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as hardworking and honest in business and dealings with those around them.

As far as politics is concerned, it constantly amazes me that there has been no record of any Madeirans or Madei-ran-decendents that have been actively involved in local politics. In the 524 years that we have been here I became the first luso-decendent to be elected to office when I won my first election in 1995. I was elected as councillor in the first democratic local government elections. Why is this the case?

I suspect that the reason for this is that the Portuguese choose to simply “mind their own business” – particular-ly the current community in South Africa. The majority which came to South Africa in the 1950’s and 1960’s at the height of Apartheid and fled from a draconian dictatorship which curtailed liberties. I understand that it was easier to simply “mind their business” and stay out of politics or any controversial profession.

However, all that is past and we are in a democratic sta-te protected by the most liberal and sophisticated consti-tution in the world. My vision is that as a community we start moving outside of our comfort zones and start mea-ningfully contributing to the beautiful rainbow nation that we are.

I believe that I have proven this. I have the privilege of having served on three tiers of government, that is the lo-cal Municipal Government in Johannesburg, the Gauteng Provincial Parliament and now I feel honoured to serve in the Parliamentary National Assembly as the Shadow De-puty Minister of Transport. There is no doubt: I am part and participate in our beautiful Rainbow Nation and all South Africans of all backgrounds, creeds and races treat me as part of this Rainbow.

I have been asked to participate in some important as-signments such as being part of the SADC (Southern Afri-can Development Community) Election Observer Mission to Mozambique in October 2009 where I observed first--hand their elections. In January 2010 I was privileged to be appointed as a Member of the Joint Standing Commit-tee on the State of Readiness of the FIFA World Cup 2010. Our work in this committee contributed to the FIFA suc-cess which was witnessed worldwide.

I have represented my Party in various other forums throughout the World since 1994. Other governments have also recognised me such as the United States who in 1999 invited me to participate in the American Council for Young Political Leaders Exchange programme. In that same year I was invited to deliver my paper entitled “The Opposition and the New South Africa” at the IV Interna-tional Liberal Youth Meeting in Germany.

Within the structures in my Party I was flattered to be

recognised on a number of occasions and was even publically thanked in 2004 by the largest daily news-paper in South Africa, The Star when they named me as “One of the good people in politics for keeping in contact with journalists on new developments”. A highlight in my life was in 1996 when I was nomi-nated and was named as semi-finalist for the Nelson Mandela Award for Health and Human Rights.

Whilst on visit to the United States and to the State of Nebraska in 1999 I was awarded an Honora-ry Citizenship of the State of Nebraska by that State’s Secretary of State. I continue to work actively within the Church. It is at my parish that the largest pilgri-mage on foot of thousands takes place in May every year in honour of the apparitions in Fatima. I ini-tiated this pilgrimage back in 1989 when little more than 100 people participated with the youth group that I was leading at the time. This youth group be-came the biggest and most active group in Johannes-burg at the time. In 1992 we were awarded a Shield and Citation by the local Knights of Da Gama.

I was honoured to participate in Madeiran Communities Council Congresses which took pla-ce in Funchal in the 1990’s. I have been Provincial Chairman of the Cancer Association of South Africa (CANSA) for a number of years and was awarded CANSA Life Time Membership. Naturally I have and continue to be involved in various organisations within the South African Community such as the Free Market Foundation and continue to be invol-ved in the Portuguese community such as my asso-ciation with Radio Veritas, the only Catholic radio Station in South Africa. I am actively involved in its Portuguese language programming. I previous-ly hosted radio programmes on Radio Comunidade Portuguesa, Radio Lusofonia and Radio Solariada-de. I continue to write a weekly column in the local bilingual English Portuguese newspaper, Post Mile-nio.

Just like the first Portuguese explorers to South African shores, I believe that I have paved the way for future generations of Madeiran-descendents to join me in making a difference in South Africa and helping us build the beautiful Rainbow Nation that Mandela dreamed of. What a legacy it would be for Madiba if more could join me on this mission!

7 September 2011* [email protected]

Shadow Deputy Minister for Transport

Member of Parliament for Johannesburg South

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N unca percebi bem a razão de ter emigrado para o Canadá. Este grandioso país nada me dizia. Mais

por brincadeira do que outra coisa, um amigo meu desde a adolescência entusiasmou-me para “dar o salto” para a Austrália onde ele tinha família. Na altura, o local de ins-crição de candidatos para a Austrália era na Embaixada de Inglaterra, em Lisboa. Lá fomos para informações e registo mas, para nosso azar, só havia abertura para o Canadá.

Canadá? -“Não é aquele país gelado que tem polícias vestidos de

casaca vermelha e andam a cavalo?”, perguntei meio con-fuso. A funcionária deu uma gargalhada, anuiu, e deu uma série de explicações sobre o Canadá, e entregou-nos vários folhetos informativos.

Por diabruras do destino, o meu amigo desistiu da ideia e eu, o menos interessado, acabei por “dar o salto” para o Canadá. Porquê?

Porque, por pura coincidência, encontrei-me com um sujeito que era imigrante no Canadá e que, nos últimos anos, só lá ia três meses por ano - nos meses de Verão -, e era quanto bastava para regressar a Portugal com os bolsos cheios para o ano todo e guardar algum dinheiro.

Fui para casa a magicar na possibilidade de emigrar. Por essa altura, trabalhava na torre de Radar do Aeroporto de Lisboa. Um dia, ao entrar de serviço, quem vejo junto à rede que separava a Torre de Radar do exterior do espaço à nossa volta? O tal imigrante de Toronto, Canadá. Con-versámos animadamente e, quase sem dar por isso, por empurrão do destino, voei até Montreal, onde tinha um primo que me recebeu de sobrolho franzido... – “Isto não está tão bom como antes. Eu próprio vou até Toronto para ver se arranjo algo melhor. A vida não está fácil para quem tem mulher e duas filhas.” Estremeci ao pensar na mulher e nos dois filhos pequenos que deixara em Lisboa. O destino empurrou-me de novo, e em vez de regressar a Portugal, fui para Toronto. Foi difícil arranjar emprego no ano de 1970, pois o Primeiro Ministro Pierre Trudeau impôs uma lei que obrigava os que procuravam trabalho a apresentar o Passaporte, para que os empregadores vissem se eram re-sidentes ou turistas. Os “emigrantes/turistas” trabalhavam a qualquer preço – lei da sobrevivência -, o que dava azo a que os imigrantes tivessem dificuldades em arranjar em-prego. Eu era turista!

Empurrões do destinoJosé Mário Coelho

Salvou-me – lá está o destino a funcionar - o ter sido conhecido por algumas pessoas porque, quan-do em Portugal, eu participava em anúncios publi-citários na televisão e nas fotonovelas das revistas Plateia e Crónica Feminina. Assim, por mais um empurrão do destino, fui parar a um programa de rádio – Rádio Clube Português - do empresário José Rafael. Por zanga entre José Rafael e o presidente da estação radiofónica internacional CHIN, Jonhny Lombardi, de raiz italiana, o José Rafael saiu da es-tação e fui convidado para continuar e produzir um novo programa em português, ao qual dei o nome de “Vozes de Portugal”. Paralelamente, os novos amigos, os irmãos Ferreira, acabaram por me ar-ranjar trabalho na fábrica onde já eram veteranos, com um truque que surtiu efeito: para não entrar pela porta principal, uma vez que só tinha passapor-te de turista, levaram-me para o parque de estacio-namento de automóveis da fábrica, puseram-me no alto do muro, com neve até ao topo. Deram a volta e foram buscar-me no lado contrário do muro, ten-do eu escorregado uns bons pares de metros sobre o gelo, indo parar mesmo à porta do escritório, onde os irmãos Ferreira me apresentaram e me inscreve-ram. Assim comecei a trabalhar no duro em terras do Canadá.

O destino deu-me todos os empurrões necessá-rios para ter uma vida calma e confortável. A mulher e os filhos juntaram-se a mim, para maior felicidade. Uns trabalhando, outros estudando, não tive mais razões para voltar a Portugal. Aliás, só pude voltar a Portugal em 1974, depois da Revolução dos Cravos, porque tive problemas na PIDE, por ter votado no General Humberto Delgado, que fora o director da Direcção Geral da Aeronáutica Civil, onde trabalhei até os princípios de 1970. Nada de grave.

Em 1974, o empresário e amigo Frank Alvarez convidou-me para trabalhar com ele no programa “Festival Portuguese” na Global Television Network, programa que se iniciou oficialmente no dia 25 de Abril de 1975. Muita água correu nos rios, e, hoje, tudo cresceu e melhorou. Temos a estação de rádio CIRV-fm e a de televisão FPtv. Pelo caminho, surgiu

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o nascimento da revista Imagens e, mais tarde, o semanário Milénio.

Hoje, posso acrescentar que dirijo a revista SENSO Ma-gazine, para além de continuar a dar o meu contributo na rádio e na televisão. Sempre me dei de alma e coração às coisas comunitárias, aos clubes e associações, tendo gran-jeado grande popularidade entre as nossas gentes, tendo por isso recebido várias medalhas e condecorações. Justo?

Não sei, apenas me preocupei em cumprir a missão a que me dediquei.

Depois de convidado a participar como delegado da Comunidade Madeirense do Canadá, no Congresso das Comunidades Madeirenses, os nove delegados que se des-locaram à Madeira escolheram-me, por votação secreta, para o honroso lugar de conselheiro do Conselho Perma-nente das Comunidades Madeirenses, o que acontece des-de 1 de Setembro de 1992 e se mantém até os dias de hoje. Pois, mas nem tudo são rosas na vida.

O destino que me empurrou com segurança para o sal-to no desconhecido e me concedeu a vivência feliz numa profissão nova e bonita, também me fez negaças, quando eu me sentia o homem mais feliz do mundo.

O destino, esse diabinho irrequieto e matreiro, enten-deu deixar-me só. Levou-me a querida companheira de 50 anos, uma grande mulher, mãe e avó. Os filhos, tal como eu já o fizera aos meus pais, partiram. A minha filha emigrou para a Holanda, onde é professora universitária, e já me deu dois netos maravilhosos. O meu filho, resolveu tam-bém partir, este para Portugal, onde, no norte do país, vive feliz com a mulher e filhos. Mais dois netos muito queridos.

Depois de tão longa aventura, de muitos momentos de vitória e partilha, de tantas benesses, olho para a frente e não vejo quem mais quero. Não vivo na solidão, mas estou só!

Perguntam-me: -Que esperas para ires embora?Como deixar tanta coisa boa e tantos amigos de mais de

40 anos de dedicação?Só me resta mais um empurrão do destino para ficar ou

regressar às raízes. Será que vou emigrar para a minha terra?

*Conselheiro das Comunidades MadeirensesToronto, 8 de Outubro de 2011

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26O Grupo Infanto Juvenil Folclore e Etnografia Casa Ilha da Madeira em São Paulo, Brasil, neste 2011, celebra

seu Jubileu de Prata, tendo iniciado sua atividade, logo após um Arraial de Nossa Senhora. Os diretores da atual sede, liderados pelo comendador César Fernandes Rosa, senti-ram a necessidade de dar a conhecer e a sentir o folclore da Ilha da Madeira aos mais pequenos, que já passeavam pelos arraiais com as “roupinhas” trazidas da Madeira por seus avós. O objetivo era perpetuar suas origens e dar uma continuidade ao que haviam iniciado quando formaram a primeira Casa Ilha da Madeira, em São Paulo. Faziam reu-niões semanais no espaço da agência do senhor Agostinho (O Velho) em seu gabinete e encontros gastronómicos, em outros espaços, uma vez por mês. Confirmando a exis-tência desta “Casa Ilha da Madeira”, que possuía estatuto próprio e associados frequentes, está, no acervo de troféus do Marítimo, uma taça oferecida por esta associação.Para esta função de iniciar um novo grupo folclórico com as crianças e jovens da Casa Ilha da Madeira, convidaram-me como responsável pela nova formação. A atual Casa Ilha da Madeira, cuja sede é na Rua Casa Ilha da Madeira, 148, e precisava de um grupo de folclore que pudesse chamar de seu (Casa Ilha da Madeira).

Sem conhecer detalhes sobre o assunto folclore e ape-nas ter aprendido a cantar o Bailinho da Madeira com o meu pai Agostinho Vicente Pereira Sardinha (já falecido), tocando gaita para mim, Estive na Ilha da Madeira aos 17 anos com minha mãe Cecília Vieira.

Nessa altura, tive oportunidade de ver o Grupo Juvenil da Camacha coordenado pela professora Maria Augusta, atuar no cais do Funchal, durante as festas do Natal de 1980. Considerei, então, que deveria buscar todas as infor-mações disponíveis e não só, para fazer deste novo grupo um representante da Ilha da Madeira, que pudesse trazer a Madeira até os nossos imigrantes saudosos ou, mesmo, dar a conhecê-la àqueles que não a conheciam.

Pelo fato de não possuirmos absolutamente nada, nem instrumentos, nem tocadores, nem coreografias, nem tra-jes, iniciamos um trabalho de recolha e também de en-tusiasmo com os pais e avós se envolvendo para tornar este sonho possível. Começamos do zero, com o apoio de muitas pessoas, diretores e colaboradores e conseguimos formar este grupo. Após esses anos de muito aprendiza-do, inclusive no sentido de como produzir todo o mate-

Madeirenses:

Patrimônio da Humanidade Maria Vieira Sardinha GonçalvesDirectora do Grupo de Folclore Infanto-Juvenil da Casa Ilha da Madeira de São Paulo

Documento confirmando a existência da Casa Ilha da Madeira em 1954 e inauguração da nova sede so-cial construida pelo Comendador Francisco Evaristo Teixeira com a presença do Presidente do Governo Regional Doutor Alberto João Jardim.

rial necessário para a sua manutenção e existência, o grupo possui sua própria “Roquestra” com instru-mentos tradicionais como Rajão, Braguinha e Viola de Arame, e também violino (estamos à espera que o Mestre Carlos Jorge nos faça uma Rabeca), flauta, brinquinhos, harmónica, acordeon, bombo, casta-nholas, chocalhos, raspadeira, pandeireta, grilinho e até pinhas, trajes originais e alfaias.. No início, eram apenas imitações de trajes e atuavamos sem botas, não apenas por ser tradição, mas porque não havia e ensaiávamos cantarolando a melodia por não haver quem tocasse.

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Hoje o Grupo Infanto Juvenil de Folclore e Etnografia da Casa Ilha da Madeira em São Paulo é guardião da Ban-deira da Paz e membro da Cultura de Paz proposta pela Unesco, representando a Ilha da Madeira, o Brasil e Por-tugal.

Atualmente, o nosso grupo tem satisfação de represen-tar a Ilha da Madeira em eventos da Secretaria de Estado da Cultura e também do Município e Secretaria de Educa-ção Estadual e Municipal, Memorial da Imigração, colabo-ração com a manutenção de Igrejas, Centros Educativos, Lares de Idosos e Abrigos Infantis, para além da animação.

Certa vez, estando no Brasil com familiares vindos da Madeira e quando discutíamos pontos positivos e negati-vos dos nossos países e da Madeira, uma priminha madei-rense, Mariana Teixeira, calou a discussão, nos interrom-pendo com a frase:

-Cada um ama sua “ ilha”. Naquele momento percebemos, madeirenses e brasilei-

ros, que todos nós somos, cada um, sua própria ilha viven-do em um continente ou não. E o lugar onde nascemos e para onde seguimos é que nos permite sermos continente, horizonte ou até mesmo deserto. Uma pessoa que tenha nascido em meio a Laurissilva e ganhado o mundo, seja no Brasil ou na própria Madeira, nunca será um deserto.

O Madeirense que vive na Madeira ou em outra parte do mundo acaba por ter algumas características diferentes,

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mas sua essência se mantém e é o que o impulsiona em todos os sentidos.

“Ser Madeirense” é algo muito particular, seja pela “Se-milha”, pelo “Bolo do Caco”, o “Milho Cozido”, o “Gaiado”, o “Rajão”, o “Brinquinho” ou simplesmente ser “ilhéu”. Du-rante uma atuação, fizemos uma demonstração da criança, levando o almoço ao pai na fazenda que, em troca, sempre lhes dava um “dentinho”- era “gaiado com semilha” e os adultos acharam que as crianças não comeriam, mas co-meram e queriam mais. Durante os eventos em que repre-sentamos a Madeira, muitas pessoas vêm falar conosco, sobre sua vida de madeirense, descendente ou até mesmo dizendo que conheceu um madeirense em sua vida. Cada vez mais pessoas nos procuram porque querem conhecer a Madeira ou para, de alguma maneira, estabelecer contato com a ilha, seja com sua memória ou para o futuro.

Sabemos que as crianças com 4 ou 5 anos já se sentavam ao lado da mãe com uma agulha para fazer os “garanitos”. Mas, entre nós, sabemos que muitas brasileiras mandavam as crianças se sentarem ao pé da vizinha madeirense, para aprender este ofício e muitas dessas meninas sustentaram suas famílias com o bordado Madeira até a vida adulta. Já

estivemos representando o Bordado Madeira em muitas ocasiões, inclusive em redes nacionais de televisão, com o apoio de peças cedidas por diretores e suas esposas, como Senhor Manuel Roque e Dona Maria, Senhor José Aguiar e Dona Encarnação e nosso Presidente José Rufino Teixeira e esposa Filomena.

É isso que pretendemos em nossas atuações, que os madeirenses sintam que, mesmo tendo eles deixado a Madeira, esta nunca os deixará e para os brasileiros e não só, que tenham a oportunidade de se identificar com esta força madeirense que ajudou a construir a Zona Norte, onde estamos, São Paulo, o Brasil e o Mundo! Somos testemunhas oculares de que estamos perdendo, já não sem tempo, um pouco o estigma de colonizador e colonizados. Somos conhecidos como identitários:

durante o evento Revelando São Paulo, da Secretaria de Estado da Cultura, onde participam mais de 200 municípios com mais de oito mil pessoas num único dia, durante dez dias seguidos, recebemos algumas manifestações em relação à culinária tradicional da Madeira que apresentamos:

-O Bolo Manteiga, receita do Curral das Freiras, fez um homem, por volta dos seus 60 anos, chorar por se lembrar do sabor e do cheiro da casa da avó (que ele desconhece a origem), no interior de Minas

Gerais.Um homem com cerca de 40 anos, desviou do

seu caminho porque viu uma pessoa caminhando com um Cordão de Rebuçados, no centro da cida-de de São Paulo na Avenida Matarazzo. Desceu do transporte em que estava, entre milhares de pesso-as e carros frenéticos e correu atrás do homem para saber de onde era aquilo. Chegou até nossa barraca, com os olhos marejados, dizendo que seu avó havia lhe trazido um daqueles da Madeira quando ele era criança.

-Uma jovem senhora parou na nossa barraca e comprou uma variedade de produtos, desde sopa de trigo, favas, gaiado, entre outros. Perguntei-lhe se ela tinha ascendência madeirense, ao que ela res-

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pondeu que sim e com muita satisfação. Depois, ela falou que quando era criança, se sentia diferente na escola pois tudo era diferente: a casa dela, o modo da mãe falar, os va-lores do pai, as devoções, as crenças, a hierarquia, os costu-mes, a comida, o sotaque, os aromas e tudo isso a fazia se sentir deslocada. Talvez seus pais fossem semi-analfabetos ou tivessem apenas a quarta classe concluída com muita dificuldade, como nossa maioria de imigrantes. Hoje, ela é professora universitária, doutorada em Educação e me disse que tudo o que ela é e tudo o que aprendeu é resul-tado de todas aquelas diferenças que lhe permitiram uma identidade mais significativa do que qualquer documento.

Temos na Casa Ilha da Madeira de São Paulo um em-presário muito bem sucedido, atual vice presidente da Casa Ilha da Madeira, Francisco Acácio de Freitas Oliveira, que saiu de Água de Pena com 11 irmãos e os pais, foi para o Brasil continuando sua atividade na lavoura, passando desde o Liceu de Artes e Ofícios a “engraxate”, sapateiro, “office-boy”, “marreteiro”, comerciante e muitas outas pro-fissões, incluindo duas faculdades distintas, pedagogia educacional e direito, concluidas. Hoje, professor universi-tário, especializado em psicologia do ensino, construiu na Casa Ilha da Madeira uma gruta para Nossa Senhora do Monte e sua esposa brasileira fez uma Nossa Senhora de Fátima. Ele me disse que teve o maior educador do mundo, seu pai analfabeto. Ele é provedor num Lar de Crianças e está construindo um Lar de Idosos e quando faz eventos para arrecadar verbas para suas obras, conta com a presen-ça de inúmeros empresários e vai para a cozinha preparar o bacalhau desde a manhã. Quando nosso grupo de Folclore chega e ele ouve o toque do bombo, para tudo e volta a ser menino, contagiando todos que estão por perto.

Não sou historiadora, nem “profissional” do folclore, poderia até dizer que não sou “nada”, mas estando con-cluindo este texto, à sombra ( no aconchego) do III Con-

gresso de Folclore da Madeira e I Nacional, na terra que viu nascer meus pais, Machico, e às vésperas da festa do Senhor dos Milagres, concluo que embora muitos dos meus ascendentes já tenham falecido, tenho um marido também descendente de Cama-cheiros com quatro filhos que tocam, cantam e bai-lam e somos responsáveis no Brasil por um grupo que respeita, entende e divulga as coisas da Madeira. Sou “Tudo” e cada um que honrar suas origens, cul-tura e tradições, sentindo a Ilha da Madeira, numa viagem até o Arquipélago ou em nossos países de acolhimento, sincronizando o ritmo do coração ao som dos estalinhos dos bailinhos, também se sentirá Tudo e poderá ser o que desejar.

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30N este século XXI, repleto de modernidade, de avan-ços tecnológicos e de crises económicas e políticas,

os cidadãos portugueses, que são tão reconhecidos pelo seu espírito aventureiro, continuam mais além das suas fronteiras a participar ativamente no desenvolvimento mundial. Aqui, na República Bolivariana da Venezuela, não são menos de um milhão de portugueses os que resi-dem, na actualidade. Podemos afirmar sem engano que nas mais longínquas paragens desta ampla geografia, é possível encontrar sempre um português, e junto a ele certamente, alguns luso-descendentes.

Afirma o historiador Miguel Acosta Saignes, no seu li-vro “Los portugueses en Venezuela”, que os primeiros por-tugueses que chegaram à Venezuela, fizeram a viagem jun-to do descobridor Cristóvão Colombo, e decidiram ficar nestas terras. Talvez desses primeiros emigrantes, não te-nhamos suficientes registos históricos, mas de outros como João Fernandes de Leão, fundador da cidade de Guanare, após ter participado na fundação de Caracas, temos regis-tos e obras que perduram no tempo. É precisamente desse facto que um Estado e o rio que o atravessa, passaram a le-var o nome de Estado Portuguesa e Rio Portuguesa, assim também os que ali nascem, passaram a ser conhecidos e chamados pela sua origem, “portugueseños”.

Existem ainda registos de portugueses que participa-ram nos primeiros levantamentos emancipadores contra Espanha e muitos outros que participaram na guerra da independência. Por exemplo, o chamado “Esquadrão Bri-tânico”, que veio do Brasil ajudar as forças de Bolívar, não era mais que uma esquadra do exército Anglo luso sediado no Brasil e integrado por soldados portugueses e ingleses. Um oficial português é um reconhecido “prócer” da inde-pendência da Venezuela, e seus restos mortais estão enter-rados no “Panteón Nacional”, lugar solene que a Venezuela reservou para os seus heróis.

Foi na década dos anos 1950 que um acentuado fluxo migratório de portugueses para a Venezuela contabilizou cifras que alcançaram anualmente dezenas de milhares de emigrantes. Foram muitos os trabalhadores portugueses que chegaram à Venezuela, e que se dedicaram às mais di-versas profissões, sem medo nem vergonha pelo trabalho, trabalhavam de sol a sol. O próprio “Ché Guevara”, na sua

Nós, Portugueses na Venezuela

Inácio PereiraAntigo Conselheiro das Comunidades Portuguesas

passagem por Venezuela, ainda que despoticamen-te, sobre os portugueses escreveu: “…são uma nova raça de escravos brancos, que parecem desfrutar do trabalho forte, e nunca param… …mas a diferença dos outros não gastam tudo o que ganham nas festas e nos copos…”.

Com o passar dos anos, a presença de portugue-ses foi tão familiar para os venezuelanos, que pas-saram a formar parte da quotidianidade dos vene-zuelanos; raro seria não encontrar um português na agricultura, na construção, no comércio, além de muitas outras profissões.

Na expressão popular, os venezuelanos deixaram de dizer “la bodega de la esquina” frase que se utiliza-va para referir-se à mercearia da esquina, e passaram a utilizar e a popularizar “el português de la esqui-na” ou “la bodega del portugués”. Posteriormente, a popularidade se estendeu a: “la panadería del portu-gués”, “el restaurante del portugués”, “el supermercado del portugués” “vamos a comer donde el portu”, etc.

A extensa comunidade portuguesa residente hoje na Venezuela está integrada aproximadamente por oitenta e cinco por cento (85%) de cidadãos de ori-gem madeirense, o restante quinze por cento (15%) está composto por cidadãos das diversas regiões de Portugal continental e Açores, acentuando-se mais os de origem do Porto, Aveiro, Espinho, Santa Maria da Feira, etc., sendo, na sua totalidade, protagonistas de uma integração sem limites na vida económica, social e política da Venezuela.

Quem subscreve, tem por norma dizer “não emi-grei! Emigraram-me!”. Nasci na que, para mim, é a mais bela ilha do mundo, “Madeira” em finais do ano 1952, e trouxeram-me para a Venezuela no ano 1959, apenas com seis anos. Aqui cresci, convivi e fiz família com uma especial mulher nascida no Fun-chal, e que igualmente cá chegou, sendo menor, que conheci aqui, e desde então e até hoje é a dona não só do meu coração mas também da minha vida, e mãe dos meus três filhos.

Há poucos dias, cumpriram-se cinquenta e dois

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(52) anos de ter chegado à Venezuela, pátria que me aco-lheu como filho natural, consequência da minha menori-dade ao chegar, facto que não posso deixar de agradecer e de honrar. No entanto, o facto de levar uma vida vivendo Portugal em terra alheia, fez-me não deixar de ser quem era, “português cento por cento (100%)” e o que mais mo-tiva esta afirmação é saber que não menos de um milhão de conterrâneos compartem a mesma vivência.

A comunidade portuguesa residente na Venezuela, afirmou-se neste país de acolhimento, de forma a estar presente em todos os estratos da sociedade, seja pelos pró-prios ou pelos seus descendentes. Na actualidade, repre-sentam, na parte económica, a força comercial de mais va-lia, no setor da distribuição alimentar no país, gerindo as mais importantes e mais extensas redes de supermercados e hipermercados em todas as cidades da geografia vene-zuelana. Sendo ainda os baluartes no ramo das padarias e pastelarias, inovaram nestes negócios, tendo-os hoje como exemplo a seguir noutras latitudes. Uma anedota local diz que: MacDonald quer colocar um estabelecimento na lua, para atender as futuras viagens turísticas, tendo todos os pormenores resolvidos menos o do pão, pelo que não po-dem avançar. Alguém de aqui disse: a solução é fácil, levem um português que ele monta lá uma padaria.

No setor político, os luso-descendentes também se têm afirmado, ocupando altos cargos de representação nas diversas esferas que vão de vereadores de Câmaras, passan-do por Deputados da Assembleia e até Ministros de Esta-do.

No setor militar, os luso-descendentes fazem honra aos seus ancestrais, ocupando cargos de chefia, na marinha da Venezuela. Muitos são os oficiais da Marinha que levam sangue dos antigos descobridores portugueses, homens e mulheres dignos que levam com orgulho a farda da Ar-mada Naval da Venezuela. Mas não só na Armada, estão também presentes na aviação e no exército.

Já agora não posso deixar de contar uma passagem da minha vida. Certo dia, ocorreu-me uma má passada, três dos pneus do meu carro foram esvaziados por travessura de alguém. Encontrava-me num lugar afastado e sem po-der resolver o problema sem ajuda. No momento, passava pelo lugar um Coronel do Exército que se disponibilizou a transportar na sua viatura os pneus esvaziados e trazê-los de volta cheios. Quando manifestei o meu agradecimento, vi o nome gravado na farda, não podia ser menos delator. Nela podia-se ler, ”António Gomez Da Silva”. Ele sorriu, ao ver o minha expressão e disse: o meu Gomez é com “s” só tem “z” por erro, mas “Da Silva” está bem escrito.

Na parte social, os portugueses integram relevantes posições, desde artistas plásticos reconhecidos, atores de

cinema, teatro e televisão, algumas das mais cotiza-das modelos da passarela são luso descendentes, e porque não lembrar a actual Miss Venezuela, Vane-sa Gonçalves, filha de uma muito querida família de origem madeirense.

Nós, os portugueses residentes na Venezuela, encontramo-nos geograficamente distantes de Por-tugal, mas moral e culturalmente mantemos a nossa proximidade à terra que nos viu nascer. Não pôde a distância, nem puderam os anos de ausência fazer esquecer as nossas raízes. Souberam estes homens e mulheres emigrantes como fazer para manter viva a nossa cultura, as nossas vivências.

No ano mil novecentos cinquenta e sete, emi-grantes portugueses reuniram para fundar uma associação capaz de manter viva a nossa cultura, e foi a dez de Junho de mil novecentos cinquenta e oito que um grupo de conterrâneos encabeçados por Daniel Morais fundou, em Caracas, o Centro Português, exemplo seguido por outros portugue-ses, em quase todas as cidades desta nação. Hoje, o Centro Português é considerado o maior Centro Português no mundo. Conta com uma área de vinte e quatro mil metros quadrados aproximadamente e, recentemente, os associados adquiriram um terreno de aproximadamente cem mil metros quadrados, disponibilizando-o para aumentar as áreas desporti-vas da associação, e continuar a manter vivo o sentir português nesta terra de Bolívar.

Se alguma vez alguém nos acusou de não nos recordarmos de Portugal, por mim, eu confesso, é verdade! Eu nunca recordei Portugal! Pela simples razão, que o levo sempre presente e nunca o pude esquecer!

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32A Comunidade Portuguesa no Reino Unido ultrapas-sa já os setecentos mil, sendo a maioria oriundos da

Região Autónoma da Madeira. Em Londres, existem muitas ruas com o nome Madeira, enquanto que o nome de Por-tugal Street apenas uma no Strand. A Comunidade ao sul de Londres, chamada “Little Portugal” (Portugal Pequeno), atinge os cinquenta mil portugueses, e aqui está situada a maior parte dos restaurantes portugueses e do comércio português, à frente dos quais está na sua maioria elemen-tos da Comunidade Madeirense. A Câmara de Lambeth e outras Câmaras seguem o exemplo, publica em português, boletins para a Comunidade Portuguesa.

Em serviço religioso, temos um capelão, homem novo, pouco experiente em emigração mas que emprega grande esforço e boa vontade em cumprir o seu dever. Temos missa em português, no leste de Londres, pelas onze horas, missa em Fulham, sudoeste de Londres, pelas três horas da tarde e, às cinco horas, em Camden Town, norte de Londres e em Clapham, sul de Londres. Claro que há sempre colaboração de sacerdotes brasileiros e italianos, pois em Oval, sul de Londres, na igreja italiana dos Padres Scalabrinis, a Comu-nidade Madeirense aflui em grande número.

Existem algumas Associações Portuguesas em Londres, mas a maior parte transformou-se em restaurantes para sobreviverem. Saindo de Londres para o sul, encontramos alguns restaurantes madeirenses, por todas as cidades e al-deias. Muitos conhecem-se pela bandeira da Madeira has-teada em frente ao estabelecimento. O mesmo acontece no Norte da Inglaterra e na Escócia.

Em Londres, o Madeira Grupo da propriedade do João Luís, de Santana, tem os melhores restaurantes portugueses frequentados por ingleses e portugueses. O Pico Bar é fre-quentado totalmente por britânicos, enquanto que a Casa da Madeira a uns metros afastada, é frequentada por por-tugueses em especial aos sábados por apresentar música ao vivo para bailarico.

Todos os anos, celebra-se no Kensington Park, sul de Londres, o Dia de Portugal, sempre no domingo após o dia 10 de Junho, onde participam mais de quarenta mil pessoas. O Dia da Madeira e das Comunidades Madeirenses é cele-brado no primeiro domingo de Maio, também no Kensing-ton Park, com a presença de mais de vinte mil portugueses da Madeira.

Carta de Londres

O Conselho das Comunidades Madeirenses atende a quantos precisam, no Centro Cultural de Londres, verificando-se um aumento de madeiren-ses a pedir ajuda ou informação. Felizmente que as autoridades portuguesas do Reino Unido têm boas relações com o Conselheiro Permanente das Comu-nidades Madeirenses. Por sua vez, as autoridades ca-marárias britânicas estão sempre atentas aos pedidos do Conselheiro.

Lamentamos a nova onda de portugueses a che-gar a Londres, muitos pensando apenas nos benefí-cios e nada em trabalho ou produção. No entanto, a Comunidade instalada há mais tempo, progride, trabalha e honra a sua Pátria e, em especial a Comu-nidade Madeirense honra a sua Terra Madeira.

Londres 25 de Setembro de 2011

João Carlos Freitas

Conselheiro Permanente das Comunidades Madeirenses

no Reino Unido.

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33D uring my four visits to Portugal, as a researcher and as a conference participant, I felt very welcome -

not because English is so widely spoken, but because of the friendliness and patience of the Portuguese. Speaking Por-tuguese certainly helps, and my friends and contacts are usually pleased when an English-speaking foreigner (espe-cially one with a Portuguese surname) makes an effort to learn and speak the language of Camões.

As a Trinbagonian of Portuguese descent on my pater-nal side, It was especially interesting to see familiar family names everywhere – Vieira, Sabino, Vasconcellos, de Sou-sa, de Freitas, Ferreira, Gomes, Teixeira, and more– althou-gh, of course, our anglicised pronunciation of Portuguese names made it difficult for me at first to recognise the same names when said the right way, the Portuguese way. Many a Portuguese face also recalled many a Luso-Trinidadian face, so with familiar names and faces, Portugal did not seem foreign on my first or subsequent visits.

My visits to Madeira were especially meaningful. Going to Madeira the first time was like seeing an old black-and--white photo transformed into living and vibrant colour. The Madeira I imagined was, of course, the Madeira of my paternal ancestors, not twentieth and twenty-first century modern Madeira. Everything I’d heard of and seen in pho-tographs, the famous embroidery, wickerwork, Madeira wines, folklore costumes, the flowers, and of course, carne vinha d’alhos (the ‘garlic pork’ so well known to the Trini-dadian Christmas palate), all came to life. It was also very interesting to see the mix of the tropical and the temperate – bananas and grapes growing side by side, which some Madeirans in Trinidad also managed to cultivate.

Portuguese cuisine, in general, and Madeiran cuisine, in particular, is unforgettable, especially the many, varied fish dishes, espetada and more. My cookbooks can only help me to remember the many I tried, and to experiment with the scores more I didn’t have time to experience.

Portugal, on the whole, struck me as a marvellous combination and contrast of the ancient and the new. For me, Portuguese azulejos evoke the best of Portugal and are truly representative of the creativity of the Portuguese spirit and the history of the Portuguese people. The tra-ditional, mournful fado of Lisbon, now on the list of the Intangible Cultural Heritage of Humanity, filled with lon-ging and saudade, is tucked away in taverns, while English

Uma Trinidadiana em Portugal

language pop music is blared in public squares. Of great interest to meis the architecture, not to men-tion the many cobbled streets. I also enjoyed the book stores, libraries, archives, the philatelic bure-aux and museums. A Portuguesa, which I had heard a few times in Trinidad from my grandparents and other elderly patriotic Portuguese, recalls the glories of the old Portuguese empire, while modern Portu-gal sometimes seem to fight to gain recognition as a truly ‘first world’ country. Apart from Madeira and Lisbon, I visited other parts of Portugal, but I missed out on the Azores (which I passed through when I was 3 years old), and hope to see this and other parts of the country on my next visit; for return to Portu-gal, I shall, se Deus quiser!

Many other Luso-descendants of Trinidad & To-bago continue to visit relatives and friends in Ma-deira, and to talk about our ancestral homeland with much affection. Madeiran emigration to Trinidad started in 1846, eleven years after the first ever Por-tuguese emigrant workers to the Caribbean left the Azores for Trinidad. In this our 165th anniversary, we remember those who left the Pearl of the Atlan-tic to start a new life, including agricultural workers, religious refugees, small traders, those following family members and friends, those fleeing military service, and all those who came for other reasons. Madeiran Portuguese and their descendants have left their mark on the country through the Portu-guese Church (St Ann’s Church of Scotland), the As-sociação Portuguesa Primeiro de Dezembro, and in-fields such as politics, business, education, the arts, religion, and many more. Paintings, theatre, novels, songs, all commemorate the Portuguese presence in-Trinidad & Tobago, and saudades for Madeira still fill the heart of Luso-descendants throughout the West Indies, including Trinidad & Tobago, St Vin-cent and the Grenadines, Antigua and Barbuda and Guyana, and these newer nations remain grateful to Madeira and all of Portugal for blessing us with so many citizens in so many arenas. • http://freepages.genealogy.rootsweb.ancestry.

com/~portwestind/

• http://www.facebook.com/groups/7103487815/

Jo-Anne Ferreira Professora Universitária em Trinidad e Tobago

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O português é um povo marinheiro. O ilhéu também. Ao longo do tempo, foi respondendo ao chama-

mento do mar e foi embarcando nas caravelas da vida à procura do mundo.

Para além do mar e do céu pode estar a sorte – é nisso que acredita quem decide partir e ir à procura do que não tem na sua terra natal: trabalho, pão, liberdade. Quem parte leva na mão o destino, esfera armilar do que há-de ser, um futuro possível, talvez mais rico, mais completo, mais universal, mais feliz. Quem parte leva no peito a sau-dade e a voz de alguém a chorar,

“que voltesmeu amor, que voltes cedo!” (Irene Lucília Andrade in Ilha que é Gente)

Leva na mala uma constelação de projectos. Acredita

num lugar de terra doce, de trabalho possível, de di-nheiro mais fácil, de vida mais branda.

“Hei-de voltar minha terraminha gente a quem abraçoa outros vou dar o sanguea minha força, o meu braço”

(Irene Lucília Andrade, in Ilha que é Gente)

Ficam abraços no cais. De basalto. Molhados. Azuis. Suspensos na incerteza do regresso,

“Partir é quase morrerPode ser p’ra nunca mais”

(Jaime Cortesão, «Os emigrantes»)

Entre o mar e a saudade[Notas de alguns poetas]

Graça Alves (CEHA)

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mas na vontade marítima de voltar para o colo da casa que fica sempre ancorada no chão. A casa é a razão do re-gresso. É quem fica, com o coração em espera,

“que volte cedo e bem”

(Fernando Pessoa, «O Menino da sua Mãe»).

A despedida é um grito de gaivota a anoitecer a esperança. Rompe-se, aí, o fio que liga o emigrante à terra, à mãe, à casa. A angústia de uma eternidade que dura o momento do adeus, disfarçado de um

-adeus, até ao meu regresso. A solidão:“há sempre uma ilha para quem se despede,um lenço que as mães bordaram quaseimóveis nas cadeiras de vime”

(José Agostinho Baptista, in Biografia)

Há sempre um mar desconhecido, uma língua que não se entende, uma terra escrita no longe do mapa, um travo amargo na garganta, uma sombra líquida no olhar.

“So long,hasta siempre,até à vista,a palavra, o abraço, a lágrima,a mão perdida no azul,sob o azul –era assim que deixando tudo,deixava a vida,soluçante era assim que partia,pássaro ferido, cego, de mudo canto e dócil”

(José Agostinho Baptista, in Biografia)

A alma do emigrante tem a cor do mar. Ou do céu. E o azul é sonho e é angústia. A ilha vai ficando longe, mais longe, cada vez mais longe. E sim, há-de voltar. Há-de ser como os outros, os que não precisaram de partir, há-de os-tentar roupas felizes, há-de mostrar um estilhaço de sol no dedo ou no sorriso.

“E, no vapor, embarcarCusta pouco, vai depressa,Mas a saudade é um marE esse não se atravessa”

(Jaime Cortesão, «Os emigrantes»)

Pensar Emigração é pensar Saudade. Ela foi im-pressa no cartão de embarque, junto com o destino – Rio de Janeiro, Caracas, Toronto, Londres. É ela que o há-de ajudar a construir a memória do que ficou para trás: o cheiro da terra, o toque do sino, o segredo das ondas a marulhar na praia.

Vem quando puder, se puder. Traz os olhos cheios de outro lugar. Quando chega, derrama o mar que acumulou na distância, abre ‘valises de recuer-dos’ e de abraços. Preenche os vazios de que traz com promessas renovadas.

- Eu volto, minha mãe. Talvez na festa… Quem fica na ilha estica os olhos para o mar por-

que o mar é a porta de todas as chegadas. Apesar do avião. Na ilha, é o mar que une a terra e as saudades. Na ilha, é o mar.

O pão está na mesa. A mesa está posta. No terrei-ro, os velhos vivem na ausência. E esperam.

Talvez para o ano.

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D esde o século XV a História refere o tema da emi-gração como uma presença constante na literatura

tradicional oral portuguesa (contos, romanceiro tradicio-nal, cantigas narrativas e outras histórias).

Paralelamente à vertente popular, ao longo do tempo, muitos foram os escritores e poetas madeirense que abor-daram nas suas obras este tema que ainda está bem presen-te na memória do povo.

Em relação à Madeira temos como exemplo o escritor Horácio Bento de Gouveia em “Torna Viagem”, onde abor-da a temática de emigração e seus envolvimentos sociais e económicos.

O impacto que a emigração teve nas décadas de 40/50 do século XX, nas ilhas da Madeira e Porto Santo, obrigou que grande parte da população rural madeirense mais des-favorecida que se encontrava em precária situação econó-mica, emigrou para outros países (Brasil, Venezuela, EUA

A EMIGrAçãona canção popular madeirenseRui Camacho

(Associação Xarabanda)

– New Bedford, África do Sul) em busca de melho-res condições de vida.

Relativamente ao cancioneiro tradicional madei-rense, não existe um género musical popular especí-fico sobre a emigração. Esporadicamente aparecem quadras soltas cantadas de improviso no popular bailinho, na forma de despique em contexto de ar-raial. O grupo Xarabanda recorreu ao livro “ Ilha da Madeira” do escritor Eduardo Antonino Pestana, de onde retirou estes versos da tradição poética popu-lar madeirense, com a finalidade de musicar um tex-to que reflectisse o fenómeno emigratório.

Nos versos abaixo transcritos, está bem patente o sentimento de quem fica na ilha por vontade pró-pria e de quem parte imbuído de espírito de aventu-ra com o sonho de encontrar uma vida melhor, com o desejo de fazer fortuna. Os madeirenses sempre

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se habituaram a olhar o mar, o horizonte, a distância que os separa. Note-se a presença de elementos físicos, varan-da do cais, como ponto de partida e de chegada, os altos montes, com o sentido de avistar, ao longe na barra, os bar-cos que chegam e que partem; as expressões de sentimen-tos de amor, de ciúme e de lágrimas; a fé depositada em Deus de que tudo vai decorrer bem e a esperança de um dia regressar à sua terra natal.

Música de Paulo RosadoTexto da tradição popular madeirense

Adeus varanda do caisOnde o meu bem embarcouForam os olhos mais lindosQue as ondas do mar levou

Dizes que vais emboraAmor do meu coraçãoSe tu vais é por teu gostoPor minha vontade não

S’eu embarcar p’ra foraDa barra te hei-de acenarNão ponhas os olhos noutra,Que eu vou mas p’ra voltar

Eu subi aos altos montesPara te ver embarcar,Meus olhos são duas fontesDeitam ribeiras ao mar

Já lá vai pelo mar foraQuem seu coração me deuDeus lhe dê tanta fortunaComo as estrelas do céu

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A s Ilhas, locais de chegadas e partidas – temporárias ou definitivas – foram, desde cedo, os espaços elei-

tos para desterrar condenados e, mais tarde, aqueles que se opunham ao poder e conduta vigentes. Aqui, as prisões tornavam-se um duplo cerco: “o cerco da prisão circunda-da pelo cerco líquido do mar”1. Entre 1926 e 1939 houve mais de 11 600 prisões, por motivos políticos, e mais de 1 500 deportações2.

É, primeiramente, sob o regime de Ditadura Militar e, depois, com o Estado Novo que a deportação para as Ilhas, nomeadamente as do Atlântico Africano (Cabo Verde e S. Tomé), ganha “contornos e práticas cada vez mais metó-dicas e modernas. Inicialmente, vincava o sistema de con-denação à residência fixa numa ilha que passou a contar posteriormente com a adição do cerco dos desterrados em prisões especiais”3.

Abracemos um caso específico: General Adalberto Gas-tão de Sousa Dias (Chaves, 1865 – Mindelo, Cabo Verde, 1934). O General Sousa Dias, apoiante da causa republi-cana desde a Revolta Militar de 31 de Janeiro de 1891, filiou-se no Partido Democrático após a proclamação da República, sendo eleito deputado pelo círculo eleitoral do Porto em 1921. Foi várias vezes indigitado para o Governo, na qualidade de Ministro da Guerra, e recusou sempre o desempenho destas funções, uma vez que rejeitava a parti-cipação de militares na área governativa. “A constância na fidelidade aos ideais republicanos, civilistas, democráticos e constitucionais marca toda a sua vida, desde a juventude à morte: apoiou o «5 de Outubro», recusou o «pimentis-mo» e o «sidonismo», combateu Paiva Couceiro e a «Mo-narquia do Norte», resistiu ao «28 de Maio» e chefiou as revoltas militares de 3 de Fevereiro de 1927 e de 4 de Abril de 1931, (…).” 4

A Revolta de 3 de Fevereiro de 1927, no Porto, na qual o General assumiu o comando “Pela constituição e contra a opressão”5, resultou na sua primeira deportação para S. Tomé (1927 – 1928). Esta “(…) revestiu-se ainda de aspec-tos benignos e até cavalheirescos, na boa tradição republi-cana.”6

À semelhança dos Açores, Cabo Verde e restantes pro-víncias africanas, aportaram à Madeira muitos exilados,

favorecendo o clima de contestação à Ditadura. Em finais de 1927, o General é transferido para os Aço-res, via Funchal. E era aqui que se encontrava, com residência fixa, em 1931, quando eclodiu a Revolta da Madeira. “No Arquipélago existia um ambiente receptivo, hospitaleiro e de convívio entre os ilhéus e os deportados, que muito teria contribuído para o clima de adesão por parte dos madeirenses ao Mo-vimento.”7

No dia 4 de Abril de 1931 revoltaram-se as vá-rias unidades militares da Ilha, sendo o comando supremo entregue ao General Sousa Dias. “A eclo-são do movimento foi favorecida pelo ambiente lo-cal de revolta contra o regime das farinhas e do pão, que opusera grande parte das classes trabalhadoras aos monopólios vigentes, apoiados pelo governo central.”8 Existia, segundo Elisa Brazão e Manuela

DEPorTAção – A migração forçada (general Sousa Dias)

General Adalberto Gastão de Sousa DiasFonte: VALENTE, Major - general Augusto José Monteiro, “Em Memória do General Adalberto Gastão de Sousa Dias”, in Revista Militar. [Em linha]. Disponível em <http://www.revistamilitar.pt/modules/articles/article.php?id=3>. [Con-sultado 2 de Novembro de 2011]

Ana Paula Almeida

CEHA

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Abreu, uma ligação entre políticos e deportados militares e civis, demonstrando a conjugação de interesses dos diver-sos intervenientes no processo revolucionário. As reuniões preparativas do Movimento ocorreram no Golden Gate, onde se agrupavam militares e civis “(…) com o pretexto de jogar às cartas, ao xadrez e às damas, mas cujo fim pri-mordial era planear a Revolta da Madeira em todos os seus detalhes.”9

Como em Fevereiro de 1927 esperava-se a adesão à Re-volta noutras partes do país, principalmente em Lisboa. Si-tuação que não se veio a verificar, tornando-se demasiado fácil às forças da Ditadura neutralizarem os vários focos rebeldes. O último a ser controlado, em 2 de Maio, foi o do Funchal, onde tudo se iniciara. “Assim, durante quase um mês, existiu na Madeira um governo revolucionário, que chegou a tomar providências de carácter legislativo e administrativo de certo interesse.”10

“Debelada a revolta da Madeira, em Maio de 1931, mais algumas centenas de deportados seguiram para as colónias de África e de Timor. Foi então que se criaram, para os in-ternar, os primeiros campos de concentração, prática odio-sa do regime que não cessaria senão na década de 1950.”11 Enviado, inicialmente, para a Praia (ilha de Santiago), o General é transferido para o campo de concentração dos presos políticos de S. Nicolau e, mais tarde, para a Ponta do Sol (ilha de Santo Antão).

Foi de Cabo Verde que escreveu ao seu filho relatando a sua chegada e vida no exílio: “(…) o nosso desembarque na Praia, entre filas de soldados indígenas de baioneta ar-mada, até ao local do Lazareto , onde nos meteram, cer-cados de arame farpado, (…) numa aglomeração a mais antihigienica; dando-nos uma agua insalubre para beber, em que se encontravam varios vermes em suspensão; e uma vala comum, sem escoante onde, sem distinção, todos iamos satisfazer as nossas necessidades corporeas. A isto, acrescia a mais rigorosa incomunicabilidade, só nos sendo permitido, por intermédio de um sargento, efetuarmos al-gumas requisições, em parte, só atendiveis dai a 2 dias. A hospitalisação era proibida, e os medicamentos solicitados, nem sempre eram satisfeitos. A alimentação, mal confec-cionada, e sempre a mesma, deixava muito a desejar e pro-vocava protestos nunca atendidos. (…) A vida em clausura que se passa em S. Nicolau é deveras enervante. Passei ali 2 meses sem sair do meu quarto, a não ser para as refeições e satisfação de necessidades. O resto do tempo ou estava no quarto lendo ou dormindo, ou a passear no estreito corre-dor interno ao longo de todo o edifício, que os deportados «batisaram» com o titulo «avenida Gen.al Sousa Dias».”12

Os degredados, “(…) defensores dum ideal patriótico assumiram o desterro numa prisão longínqua, onde du-rante longos anos permaneceram e resistiram coerente-mente contra a Ditadura”13, falecendo, muitos, sem voltar

a ver o seu país, como é o caso do General Sousa Dias. “Trazido em segredo de Cabo Verde, em 1936, dois anos depois de haver falecido deportado em S. Vicente, o seu corpo foi depositado às escondidas, pela calada da noite, no cemitério da Guarda, (…) onde permanece (…) à espera do funeral a que não teve direito (…).”14

BIBLIOGRAFIA

BARROS, Victor, “Cabo Verde: de ilhas de degredo a colónia penal do Estado Novo”, in Expresso das Ilhas. [Em linha]. Disponível em <http://www.expressodasilhas.sapo.cv/in-dex.php/pt/noticias/go/cabo-verde-de-ilhas-de-degredo-a--colonia-penal-do-estado-novo> . [Consultado 10 de Ou-tubro de 2011]

BRAZÃO, Maria Elisa de França e ABREU, Maria Manuela, A Revolta da Madeira – 1931, Funchal, DRAC, 1994

MARQUES, Oliveira A. H. (organização de. Com a colabora-ção de A. Sousa Dias), O General Sousa Dias e as Revoltas Contra a Ditadura 1926-1931, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1975

MATTOSO, José (direcção), História de Portugal. O Estado Novo (1926-1974), Vol. 7, Circulo de Leitores, 1994

VALENTE, Major - general Augusto José Monteiro, “Em Me-mória do General Adalberto Gastão de Sousa Dias”, in Revista Militar. [Em linha]. Disponível em <http://www.revistamilitar.pt/modules/articles/article.php?id=3>. [Con-sultado 6 de Outubro de 2011]

Notas

1 BARROS, Victor, “Cabo Verde: de ilhas de degredo a colónia penal do estado novo”, in Expresso das Ilhas. [Em linha].

2 ROSAS, Fernando, “Da ditadura militar ao Estado Novo: a «lon-ga marcha» de Salazar”, in MATTOSO, José (direcção), História de Portugal. O Estado Novo (1926-1974), Vol. 7, Círculo Leitores, 1994, p. 208

3 BARROS, Victor, Idem4 VALENTE, Major - General Augusto José Monteiro, “Em memó-

ria do General Adalberto Gastão de Sousa Dias”, in Revista Militar. [Em linha]

5 General Sousa Dias citado por MARQUES, Oliveira A. H. (organi-zação de. Com a colaboração de A. Sousa Dias), O General Sousa Dias e as Revoltas Contra a Ditadura 1926 – 1931, Lisboa, Publica-ções Dom Quixote, 1975, p. 70

6 MARQUES, Oliveira A. H., Idem, p. 537 BRAZÃO, Maria Elisa de França e ABREU, Maria Manuela, A Re-

volta da Madeira – 1931, Funchal, DRAC, 1994, p. 848 MARQUES, Oliveira A. H., Idem, p. 729 BRAZÃO, Maria Elisa de França e ABREU, Maria Manuela, Idem,

p. 8310 MARQUES, Oliveira A. H., Idem, p. 7211 MARQUES, Oliveira A. H., Idem, p. 12112 Carta do General Sousa Dias ao filho Adalberto de Sousa Dias, a 21

de Agosto de 1931, in MARQUES, Oliveira A. H., Idem, pp. 139 a 149 (Sic)

13 BRAZÃO, Maria Elisa de França e ABREU, Maria Manuela, Idem, pp. 144 e 145

14 VALENTE, Major - General Augusto José Monteiro, Idem

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«Photographs are perhaps the most mysterious of all the objects that make up, and thicken, the environment we recognize as modern […] a photograph can be treated as a narrowly se-lective transparency. But […] in deciding how a picture should look, in preferring one exposure to another, photographers are always imposing standards on their subjects»

Susan SONTAG, On Photography

Num conjunto de textos publicado no início da década de 1970 e hoje considerado fundamental para o estudo da fotografia enquanto fenómeno cultural, Susan Sontag, não deixando de destacar a coincidência temporal da emergên-cia e desenvolvimento da técnica e arte fotográficas com o surgimento da actividade turística e a intensificação de hábitos cosmopolitas nas sociedades ocidentais, chama-va sobretudo a atenção para a importância que a imagem fotográfica assumia na sociedade contemporânea, nome-adamente na construção da nossa percepção do mundo. A autora demonstrava, então, como o nosso conhecimen-to é muitas vezes remediado pela fotografia (incluindo-se aqui também a imagem televisiva e fílmica), sendo nós conduzidos, pela retórica visual sempre implícita em toda a fotografia, a ver apenas aquilo que é mostrado à superfí-cie dessas imagens2. Ainda segundo Sontag, a reprodução acelerada e descontextualizada de imagens, a que cada vez mais o cidadão contemporâneo está sujeito, conduz a uma saturação do olhar, que faz esvaziar as imagens dos seus sentidos antropológicos e socio-culturais, desenvolvendo em nós uma percepção acrítica dessas representações vi-suais e, por conseguinte, uma incapacidade de ler em pro-fundidade quer o processo criativo da fotografia, quer até o peso emocional e a densidade humana que uma imagem fotográfica sempre comporta.

Por seu lado, Xavier Antich, numa recente conferência apresentada na Universidade Católica Portuguesa, lem-

Breves apontamentos sobre mobilidade humana, fotografia, novos media e globalização

Ana Salgueiro Rodrigues1

CECC – Universidade Católica PortuguesaCEHA

brou que – mesmo quando se trata de fotografia-do-cumento, i.e., de fotografias que se apresentam como imagens transparentes e objectivas, que parecem dizer tal qual é uma dada realidade – a fotografia, de facto, nunca diz o que existiu/aconteceu3. Ne-gociando, consciente ou inconscientemente, o que torna visível com o que deixa invisível, a fotografia antes mostra uma particular visão do existente/vivi-do. Ela apenas constrói e propõe ao observador uma narrativa sobre essa realidade, que é sempre subjec-tiva, por se tratar, justamente, de uma perspectiva físico-geograficamente situada e ideológica, afectiva e culturalmente implicada.

Neste sentido, importa sublinhar a relevância, muitas vezes esquecida, da fotografia (e em espe-cial da fotografia-documento) na cristalização de um determinado conceito (não raras vezes tornado pre-conceito) de mobilidade humana madeirense (e não só), que se foi banalizando ao longo do século XX.

Imagem 1 – Fotografia de migrantes madeirenses a trabalharem numa plantação de cana de açúcar nas Ilhas Sandwish/Hawaii5

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Imagem 2 – retrato de migrantes Madeirenses em New Be-dford4

Visualizadas repetidas vezes, fotografias como as aqui apresentadas (imagens 1 e 2) foram sujeitas ao mesmo processo de saturação visual a que se refere Susan Sontag, condicionando altamente o olhar do observador acrítico, que, assim, se torna incapaz de ver toda a complexidade sócio-cultural e afectiva que efectivamente existe em qual-quer processo de deslocação/deslocalização humana. Um condicionamento que, para além disto, muitas vezes inibe também a percepção de outras formas, mais actuais, mas igualmente complexas, de mobilidade humana, e as quais escapam ao conceito, hoje profundamente redutor, de emi-gração/imigração que fotografias como as imagens 1 e 2 ajudaram, afinal, também a construir6.

Umas vezes procurando dar a ver o doloroso embarque ou a atribulada travessia que conduziria os insulares até ao porto de chegada, outras representando (as difíceis condi-ções de) o trabalho nas novas terras (cf. imagem 1), e ou-tras ainda tentando dar testemunho do êxito e bem-estar económico-social granjeados com a deslocação dos ilhéus para paragens distantes (cf. imagem 2), toda esta tradição fotográfica se assume (criando essa mesma ilusão junto do público) como retrato fiel, como documento objectivo e verídico, como imagem única e transparente (actualizada, depois, a cada novo contexto geo-cultural) dessa realidade humana.

Ora, recuperando os argumentos de Susan Sontag, de Xavier Antich e de Isabel Capeloa Gil já aqui enunciados, convém lembrar, ainda a propósito destas fotografias-docu-mento, que, mesmo nestes casos, as imagens nunca deixam de ser construção. Elas sempre implicam uma certa dose de manipulação (mais ou menos acentuada; com maiores ou menores preocupações estéticas e ético-deontológicas),

que nunca está isenta de implicações ideológicas e sócio-culturais. Mais: enquanto construtoras de uma narrativa do que foi a experiência da mobili-dade humana madeirense ao longo dos séculos XIX e XX (experiência essa, muitas vezes traumática), é necessário não esquecer que também esse tipo de fotografia teve o poder de imaginar (i.e., criar ima-gens de) os heróis, as vítimas e os carrascos dessa história, embora, em complementaridade, tenha, de igual modo, rasurado do horizonte perceptivo do observador outras versões dessa mesma narrativa, cujo confronto com a versão dada a ver pela fotogra-fia-documento torna bem mais complexo o conhe-cimento do que foi (no passado) e é (ainda hoje) a mobilidade humana madeirense.

Umas vezes procurando a denúncia da miséria humana, da exploração do homem pelo homem e de uma suposta marginalização do insular migrante pelas sociedades de chegada (cf. imagem 1), outras vezes, pelo contrário, encenando a realização do so-nho migrante que, assim, era legitimado e alimen-tado junto da própria comunidade madeirense (cf. imagem 2)7, fotografias como as aqui apresentadas convidam-nos a reflectir sobre duas questões rele-vantes: (1) poder-se-á reduzir a narrativa da mobili-dade humana madeirense ao longo dos séculos XIX e XX apenas ao que foi cristalizado nestas imagens ou, para além do que elas mostram, permanecem invisíveis (porque fora de campo) as reais histó-rias de vidas (bem mais complexas) dos homens fotografados e de outros possíveis heróis, vítimas e carrascos?; (2) poderão servir estas imagens como representação absoluta da mobilidade humana ma-deirense, sobretudo no mundo globalizado de hoje, em que a itinerância (empírica e virtual) tem vindo a ganhar um relevo sócio-cultural incontornável e em que palavras como «verdade», «realidade» ou «iden-tidade» deixaram de poder ser flexionadas no singu-lar e assumidas como conceitos dotados de valores definitivos e não-subjectivos?

Para esta segunda questão, encontraremos talvez resposta (negativa) num conjunto de fotografias da autoria de O. A.8, um jovem fotógrafo madeirense que reside desde há alguns anos em Lisboa e o qual, embora sem possuir formação técnica ou académica na área das artes visuais, tem vindo a publicar a sua fotografia na plataforma Facebook, dando especial atenção a temas como a mobilidade humana, a tran-sitoriedade, a itinerância ou a indagação identitária, mas equacionando-os de forma bem diversa daque-la que foi sendo seguida pela fotografia-documento desde o séc. XIX.

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Esta série de fotografias, que terminará com a re-presentação da janela de uma casa amarela (um dos estereótipos da casa portuguesa) de um bairro típico de Lisboa e a que o fotógrafo deu, significativamen-te, o título «Saudade» (imagem 6), traça um per-curso elíptico estruturado a partir de dois centros: Lisboa e Madeira9. Abrindo com «Faut que je m’en aille» (imagem 3), legenda em francês da fotografia que nos dá a ver um afastamento aéreo de Lisboa, este conjunto de fotografias começa por sugerir a ideia de movimento em relação à ilha, ao justapor essa primeira imagem a uma outra fotografia com a legenda «Madeira», onde surge representado o por-menor de uma trama de vimes. Esta, também pela legenda, insinua-se ora como indicação do lugar de chegada do sujeito itinerante que saíra de Lisboa,

Para além da novidade que se evidencia no recurso a um novo medium de publicação – a plataforma Facebook -, o qual aponta, desde logo, para novos tipos de mobilidade humana, bem diversos dos que a fotografia-documento ha-via representado até agora, O. A. distancia-se ainda dessa anterior tradição fotográfica, ao privilegiar, em alternativa ao realismo-denotativo desta, um discurso visual não-de-notativo, assente em processos de referência metafóricos, simbólicos e/ou metonímicos. Uma estratégia discursiva que, rejeitando a hipótese de dizer o mundo de uma forma absoluta, definitiva e de modo transparente, assume im-plicitamente que a realidade é algo demasiado complexo e opaco para poder ser dito objectivamente e através do discurso visual realista.

Ocupar-nos-emos aqui brevemente de quatro fotogra-fias de O. A., postadas de forma sucessiva ao longo do mês de Setembro, no mural do Facebook deste fotógrafo madei-rense e aquando de uma sua viagem à Madeira e retorno a Lisboa:

Imagem 3 - «Faut que je m’en aille»Fotografia de O. A.

Imagem 4 - «Madeira»Fotografia de O. A.

Imagem 5 - «The way back home»Fotografia de O. A.

Imagem 6 - «Saudade»Fotografia de O. A.

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ora como representação metafórica e subjectiva da realida-de/identidade madeirense (cf. imagem 4).

Por sua vez, entre estas duas primeiras imagens e «Sau-dade» surge uma outra fotografia, acompanhada pela ins-crição em inglês «The way back home», a qual, não menos significativamente, dá a ver o pormenor de uma janela de carro em movimento, através da qual se vislumbra o mar, sem que fique claro se se trata do mar da Madeira ou do de Lisboa. Aqui, o objecto central fotografado é o espelho, símbolo por excelência da auto-reflexividade, onde, no en-tanto, se entrevê, desfocadamente, não o rosto do fotógra-fo, mas o caminho percorrido atrás de si (imagem 5).

Neste contexto, «Saudade» (até pelo jogo de redução le-xical verificado na legenda), mais do que representar, de facto, a janela de uma casa amarela da Rua da Saudade em Lisboa, antes parece querer mostrar-sugerindo o destino--fim do sujeito em mobilidade que, na fotografia anterior (imagem 5), se insinuava como figura humana em busca do regresso a (uma) casa.

Interessante é notar que, à semelhança do que verifi-cámos em «The way back home», também em «Saudade» o sujeito permanece aquém ou além da casa portuguesa, apesar de, agora, se encontrar em paragem auto-reflexiva e não em andamento. Uma casa entendida aqui como es-paço físico, mas sobretudo como espaço afectivo e sócio--cultural que, nesta narrativa, é paradoxalmente desejada e rejeitada, como se torna evidente ora na oscilação entre a legendagem em português, inglês e francês, ora na arti-culação da legenda «Saudade» com a perspectiva adoptada na imagem 6. Se a legenda sugere o desejo da casa e a ur-gência em regressar ao seu acolhimento (embora pressu-pondo, sempre, tratar-se de um desejo inconcretizado ou inconcretizável), pelo contrário, o olhar fotográfico que se detém apenas no exterior dessa mesma casa e nos exibe uma janela, onde se sobrepõem os reflexos do exterior e as insinuações do interior, põe a tónica numa espécie de reserva ou inviabilidade do nostos protagonizado por esse sujeito. Um nostos inviável, para o qual também aponta, afinal, o conceito de saudade.

É neste contexto que o elemento janela, assumindo o valor simbólico de um lugar de fronteira, emerge como possível tradução visual do lexema saudade, podendo ser lida, assim, como representação não-denotativa da própria experiência de mobilidade humana e das consequências afectivas, sócio-culturais e até epistemológicas que a condição de sujeito itinerante tantas vezes implica.

Analisando a noção de fronteira, Yuri Lotman afirma:

Every culture begins by dividing the world into ‘it’s own’ internal space and ‘their’ external space […][Between internal and external spaces

there is the boundary] the area of semiotic dynamism […] the field of tension […]: it both separates and unites. It is always the boundary of something and so belongs to both frontier cultures […] it is the place where what is ‘external’ is transformed into what is ‘internal’, it is a filtering membrane […] [, a translation space] whi-ch marginalized social groups make ‘their own’ [sempre que não se identificam to-talmente, mas apenas em parte, ora com o espaço interior, ora com o espaço exterior percepcionados].10

Como têm notado diversos autores ocupados com o estudo dos fenómenos de mobilidade huma-na, o lugar do sujeito migrante é quase sempre, de facto, o lugar negocial e/ou conflitual da fronteira, onde a tensão entre o dentro e o fora, a identificação e o estranhamento em relação ao outro e ao outro-eu conduzem, não raras vezes, à emergência de com-plexas e paradoxais identidades exílicas:

With their memories perpetually on over-load, exiles see double, feel double, are double. When exiles see one place they’re also seeing – or looking for - another be-hind it. Everything bears two faces, ev-erything is shifty because everything is mobile […]. They are in permanent tran-sience […] forever looking at alien land as land that could conceivably [be or] be-come his11

Ora, é justamente este olhar duplo e tensional do sujeito itinerante da modernidade tardia, descentra-do por excesso de centros de referência, esse olhar nostálgico - português e madeirense - em busca do regresso a uma única e exclusiva casa (que, no en-tanto, se sabe/sente já não ser viável, nem ser tão--pouco completamente apetecível), que encontra-mos em «Saudade».

Encerrando a série de fotografias a que comecei por me referir, esta última imagem mostra-nos, im-plicitamente, que, de facto, o lugar do português ou madeirense de hoje, marcado por inúmeros e vari-áveis fenómenos de mobilidade humana, já não se pode circunscrever apenas à casa amarela da Rua da Saudade, identificando-se muito mais com o trans-gressivo espaço-simbólico do automóvel (em «The way back home») ou do avião (em «Faut que je m’en

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aille»), numa permanente viagem que vai complexificando cada vez mais a tessitura cultural dessa sua identidade dias-pórica e por vezes exílica12.

Daí não ser de estranhar que em «Madeira», o sujeito fotográfico que parece querer definir a (sua) identidade in-sular, optando uma vez mais por um discurso visual não--denotativo, represente a Madeira sob a forma metafórica de uma teia de vimes, cujos fios, em cruzamento e tensão, constroem uma tessitura complexa. Esta, pela representa-ção não acabada e não-total do trabalho de vimes, é dada a ver na fotografia de O. A. como uma realidade cultural em permanente reelaboração/renegociação, à qual sempre serão acrescentados, ad infinitum e enquanto o ser madei-rense se mantiver em rota ou em deriva, novos fios/vimes (locais, nacionais e/ou estrangeiros) que adensarão e darão uma renovada fisionomia (não sem conflitos) à identidade cultural madeirense.

Bibliografia:ACIMAN, André, 1999, «Foreword. Permanent Transients», in André

ACIMAN (ed.), Letters of Transit. Reflections on Exile, Identity, Language, and Loss, New York, The New Press, pp.7-14.

CALDEIRA, Susana C. O. Castro, 2010, Da Madeira para o Hawaii: a Emigração e o Contributo Cultural Madeirense, Funchal, SREC/CEHA.

CANCLINI, Néstor García, 2000, «La Globalización: ¿ Productora de Culturas Híbridas?», in AAVV, Actas del III Congresso Latinoameri-cano de la Asociación Internacional para el Estudio de la Música Po-pular, [disponível em http://www.hist.puc.cl/historia/iaspmla.html] (acesso em 12-06-2010).

GIL, Isabel Capeloa, 2011, Literacia Visual. Estudos Sobre a Inquietude das Imagens, Lisboa, Ed. 70.

___ 2011a, «Olhando as Memórias dos Outros… Uma Ética da Foto-grafia de Freud a Daniel Blaufuks», working paper apresentado a 30 de Setembro de 2011, em Field Work.CULCO/CECC – Culture and Conflict, 25pp.

GOODMAN, Nelson, 2006 [1976], Linguagens da Arte. Uma Aborda-gem a uma Teoria dos Símbolos, trad. Vítor Moura e Desidério Mur-cho, Lisboa, Gradiva.

LOTMAN, Yuri M., 1990, Universe of the Mind. A Semiotic Theory of Culture, trad. Ann Shukman, introdução de Umberto Eco, London/New York: I. B. Tauris Publishers.

ROCHA, Clara, 1996, «A Imagem do Emigrantes na Ficção Portuguesa dos Sécs. XIX e XX», in O Escritor, n.º 7, Lisboa, Associação Portu-guesa de Escritores, Março de 1996.

ROCHA-TRINDADE, Maria Beatriz, 2009, «Diáspora: Denotação, Evolução Histórica e Funcionalidade Política», in Anuário do Cen-tro de Estudos de História do Atlântico. 2009, nº 1, Funchal, SREC/CEHA, pp. 458-465.

___, 2011 (no prelo), «Portugal – A Criação Literária de ‘Estereótipos’ Decorrentes da Mobilidade Espacial e Social Transnacional», in AAVV, Escritas das Mobilidades, Funchal, CEHA, pp.606-620.

RODRIGUES, Ana Salgueiro, 2010, «Insulated Voices Looking for the World: Narratives from Atlantic Islands (Cabral do Nascimento, João Varela, João de Melo)», in AAVV, A Comparative History of Literature in Iberian Peninsula, Amesterdam, John Benjamins Pu-blishing Company/ICLA, pp. 309-323.

SONTAG, Susan, 2006 [1973], Sobre la Fotografia, trad. Carlos Gardini, Ciudad de Mexico, Alfaguara.

Notas1 Ana Salgueiro Rodrigues é doutoranda em Estudos de Cultura na Fa-

culdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa e, neste âmbito, é bolseira FCT desde 2008. O texto aqui apresentado corresponde a uma versão abreviada de um outro trabalho mais ex-tenso e já concluído, mas que apenas será publicado no Anuário 2012 do CEHA, e intitulado «Da (I)Mobilidade Fotográfica e das Repre-sentações Migratórias (por) Insulares».

2 SONTAG, 2006, Sobre la Fotografia, pp.39-41. Entenda-se aqui reme-diação como processo, muitas vezes intersemiótico, de (re)constru-ção de versões de mundo. Como bem lembrou Nelson Goodman, a construção do nosso conhecimento sobre o mundo não resulta de uma percepção imediata desse mesmo mundo, sendo antes o resul-tado da mediação e remediação promovidas por outras e múltiplas anteriores versões de mundo: o conhecimento resulta, justamente, de um reiterado processo de revisitação, questionação e/ou legitima-ção dessas outras versões, construídas em e por via de outros media (GOODMAN, 2006, Linguagens da Arte).

3 Referimo-nos à conferência «Memórias Olvidadas. La Fotografia en la Guerra Civil Española», proferida por Xavier Antich a 30 de Se-tembro de 2011, na Universidade Católica Portuguesa, aquando da sessão de abertura dos Programas de Mestrado e Doutoramento em Estudos de Cultura, ministrados pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas no âmbito do Consortium de Lisboa.

4 Fotografia disponível on-line em: http://madeiragenealogy.com/2010/12/os-madeirenses-em-new-bedford-massachusetts/

5 Fotografia de capa de CALDEIRA, 2010, Da Madeira para o Hawaii.6 Contra esta cegueira acrítica relativamente às imagens, um proble-

ma generalizado na sociedade contemporânea e que torna o cidadão incapaz de ler conscientemente as imagens que o vão manipulando, Isabel Capeloa Gil defende a urgente necessidade do desenvolvimen-to de uma literacia visual (GIL, 2011, Literacia Visual).

7 A encenação torna-se evidente na fotografia 2, desde logo, pela mos-tração do cenário (cf. tela de fundo, coluna clássica e mesa de pé alto, elementos que conferem elegância àquele espaço físico e sócio--cultural) e pela selecção da indumentária envergada pelos fotografa-dos (fato completo, gravata, sapatos e correntes de supostos relógios, índices imagéticos que apontam para a pertença dos fotografados a uma classe social abastada e, por conseguinte, para a concretização do sonho migrante.)

8 O. A. é a abreviatura por que prefere ser conhecido o fotógrafo aqui em causa, como forma de preservar o anonimato da sua identidade e de distinguir a sua actividade profissional na área da medicina, da sua prática fotográfica amadora. Agradeço a O.A. a disponibilização das suas fotografias para o presente trabalho.

9 A respeito da representação da identidade insular madeirense (aço-riana e cabo-verdiana) sob a forma geométrica da elipse ver: RODRI-GUES, 2010, «Insulated Voices Looking for the World».

10 LOTMAN, 1990, Universe of the Mind, pp.131-140.11 ACIMAN, 1999, «Foreword. Permanent Transients», p.13.12 A respeito da identidade insular madeirense (cabo-verdiana e aço-

riana também) como identidade diaspórica ou exílica ver: RODRI-GUES, 2010, «Insulated voices looking for the world».

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H enrique Fernandes Rodrigues, doutorado em His-tória Moderna e Contemporânea pela Faculdade de

Letras da Universidade do Porto, com a dissertação “Alto--Minho no Século XIX, contextos migratórios, sócio-cultu-rais e familiares”, publicou em 2006 um estudo sobre a emi-gração no norte de Portugal, mais precisamente no Vale do Lima, prefaciado por Eugénio Francisco dos Santos.

Este trabalho é o resultado de duas décadas de investi-gação e recolha de informações a partir do Arquivo do Go-verno Civil de Viana do Castelo. Foram consultados cerca de cem mil documentos, referentes ao período de 1835 a 1901, nomeadamente os Livros de Registo de Passaportes. Foi compilada toda a informação constante nestas fontes, como os dados de identificação como o nome, o nascimen-to, origem geográfica, se sabem ou não assinar, o destino, o retrato biométrico, como a estatura, rosto, olhos, cabelo, entre outros.

A partir destas informações o autor pode analisar a mo-bilidade e o fenómeno migratório do Noroeste português,

ao longo do século XIX.Esta obra pode dividir-se em três partes: A primeira a partir de fontes impressas, como

legislação e Diários do Governo, onde o autor apre-senta a evolução da legislação sobre a circulação de pessoas a partir do século XVII e expõe um primei-ro levantamento dos Livros de Registos de Passapor-tes e os Processos no continente.

A segunda parte faz uma abordagem quantita-tiva à emigração do Noroeste com passaporte. São cerca de vinte e dois mil indivíduos que requereram passaporte no período estudado, o que permite uma análise de várias variáveis.

Por último, o autor apresenta uma compilação dos indivíduos com licença de embarque emitida pelo Governo Civil de Viana do Castelo.

RodRiguEs , Henrique

Emigração e Emigrantes do Vale do Lima no século XiXCentro de Estudos Regionais/ Henrique RodriguesViana do Castelo2006413 páginas

Amílcar Pereira

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