edilene dayse araÚjo da silva...quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias...

147

Upload: others

Post on 15-Aug-2021

3 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva
Page 2: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA

QUANDO DESISTIR NÃO É UMA OPÇÃO:

SOCIALIZAÇÃO E ESTRATÉGIAS DE PERMANÊNCIA DE

ESTUDANTES POPULARES DA UFRN

Dissertação apresentada como requisito de conclusão do curso

de mestrado do PPGEd- Programa de Pós-Graduação em

Educação da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do

Norte)

Orientador: Prof. Dr. Adir Luiz Ferreira

Natal/RN

Julho/2017

Page 3: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN

Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro Ciências Sociais Aplicadas - CCSA

Silva, Edilene Dayse Araújo da.

Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de

permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse

Araújo da Silva. - Natal: UFRN, 2017. 147f.

Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Centro de

Educação, Programa de Pós-graduação em Educação. Orientador: Prof. Dr. Adir Luiz Ferreira.

1. Estudantes universitários de classes populares. 2. Acesso

e permanência no ensino superior. 3. Socialização acadêmica. I.

Ferreira, Adir Luiz. II. Título.

RN/UF/BS-CE CDU 373.55

Page 4: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA

QUANDO DESISTIR NÃO É UMA OPÇÃO:

SOCIALIZAÇÃO E ESTRATÉGIAS DE PERMANÊNCIA DE

ESTUDANTES POPULARES DA UFRN

Dissertação apresentada como requisito de conclusão do curso

de mestrado do PPGEd- Programa de Pós-Graduação em

Educação da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do

Norte)

Aprovada em 31/07/2017.

BANCA EXAMINADORA:

__________________________________________________________ Prof. Dr. Adir Luiz Ferreira

(UFRN - Orientador

__________________________________________________________ Profª Drª Andrezza Maria Batista do Nascimento Tavares

(IFRN - Examinadora Externa Títular)

__________________________________________________________ Profª Drª Elda Silva do Nascimento Melo

(UFRN - Examinadora Interna Títular)

__________________________________________________________ Profª. Drª. Guiomar de Oliveira Passos (UFPI - Examinadora Externa Suplente)

__________________________________________________________ Prof. Dr. Moisés Domingos Sobrinho

(UFRN - Examinador Interno Suplente)

Page 5: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

AOS ESTUDANTES POPULARES QUE OUSAM

CRIAR OS SEUS PRÓPRIOS DESTINOS.

Page 6: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

AGRADECIMENTOS

Às vezes, em meio aos dias mais difíceis dos últimos dois anos, eu me

imaginava escrevendo os agradecimentos da minha dissertação. Foi a minha fuga

preferida, enquanto sorria e ensaiava textos com os nomes das pessoas queridas.

Infelizmente, perdi todos os rabiscos que fizera. Agora, que reescrevo minha

gratidão, percebo que essas páginas traziam consigo a dimensão simbólica do dever

cumprido e agora, quando o momento finalmente chegou, a sensação de finitude

ainda não existe. Então, mesmo inacabado, mas com o coração grato por todo

caminho percorrido, celebro o apoio, amor, carinho e paciência das pessoas que

compõem cada espaço afetivo deste trabalho.

AGRADEÇO a todos que, de um modo ou de outro, colaboraram e

compartilharam dessa importante conquista na minha vida. A cada ser humano que

me ouviu, acolheu, amou e fez parte de cada linha dessa pesquisa.

De uma maneira muito tradicional e sincera, quero começar agradecendo as

duas figuras responsáveis pela minha socialização primária. Aqueles que não

apenas ―me trouxeram ao mundo‖, mas que sou grata pelo que sou e o que virei a

ser... A minha mãe, que além de todos os cuidados da minha infância, percorria

todos os dias vários quilômetros a pé para me deixar na escola. Por vezes, diante

das minhas constantes reclamações, me dizia que um dia eu entenderia o motivo de

tanto sacrifício para poder estudar. Eu agradeço por tudo! Sou grata também ao meu

pai que, mesmo embrutecido pela vida, sempre declara o orgulho que sente das

filhas. Não há incentivo melhor do que as suas palavras.

Também quero deixar registrado a minha profunda gratidão a minha irmã e

melhor amiga Deysiane, por ser a mulher mais estudiosa, forte, linda e dedicada que

eu conheço. Em todo meu caminho na pós-graduação, você foi fundamental.

Sempre me ouvindo, colaborando, inspirando... Obrigada! Também sou grata a

Caio, meu cunhado, por cuidar do meu bem mais precioso e pela relação de

amizade que construímos.

Page 7: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

A Elson Augusto, noivo-amigo-companheiro-cúmplice, meu agradecimento

pelo amor que colaborou para a conclusão desse enorme desafio que foi o

Mestrado. Gratidão por toda sua dedicação e por ser esse oásis na minha vida.

Agradeço ao grande responsável pelo meu ingresso, permanência e

conclusão nesse mestrado, o professor Adir. Sou grata pela compreensão, incentivo,

dedicação e gentileza, não apenas comigo, mas com todas as suas orientandas. A

sua liberdade intelectual e estilo de vida sempre me inspiraram, pois é impossível

ser indiferente ao seu carisma e inteligência. Estendo minha gratidão aos

professores que marcaram minha jornada na pós-graduação: Walter Pinheiro,

Márcia Gurgel, Rosália Silva, Erika Andrade, Moisés Domingos e a professora Elda

Melo, minha orientadora de monografia, que sempre foi um dos meus maiores

referenciais docentes e humanos.

Não poderia deixar de agradecer também ao Professor Saeed Paivandi,

pesquisador da Université de Lorraine, pelo encontro formativo realizado em Agosto

de 2015 que inspirou essa pesquisa e me fez vislumbrar novas possibilidades

científicas. Também registro a minha profunda gratidão a Professora Gerlúzia

Azevedo que não ministrou aulas para mim na Universidade, mas, na vida, me deu

excelentes ensinamentos... O maior deles, a resiliência.

Em uma pesquisa que envolve laços de amizade, estratégias de

sobrevivência e claro, afeto, não poderia deixar de agradecer as minhas amigas da

base de pesquisa ECOS (Escola Contemporânea e Olhar Sociológico): Gisele,

Patrícia, Ana, Luciana, Jullyana, Marília, Liana e Danniela, por nossas parcerias,

conversas, sorrisos e angústias compartilhadas. Meu agradecimento especial a

Natália e Franklândia, minhas companheiras de campo, obrigada por cada passo

que deram ao meu lado.

Gratidão a Hania Cavalcante, grande amiga e fotógrafa, que além de tudo que

já fez por mim, me deu a honra de registrar algumas das imagens que compõe esse

trabalho.

Agradeço a Kaline, pela amizade que já dura uma vida inteira e por toda

ajuda, estimulo e carinho dedicados ao meu mestrado.

Sou grata a Lorena, minha grande amiga da graduação, por ter permitido que

essa amizade se prolongasse na vida pós-universitária.

Page 8: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

A Isabelita, Pollyana, Morgana, Larissa e Elaine, por me inspirarem a lutar

sempre. Salve a malandragem que existe em toda mulher, minhas guerreiras

amadas.

Obrigada Marcos Adriano, meu grande amigo e irmão, por me ajudar a ter paz

em meio ao caos da vida acadêmica. Gratidão pela sua vida.

Agradeço a Válbia e Crislan, coordenadores pedagógicos da escola que

leciono, por toda compreensão e apoio dedicados na reta final do meu mestrado.

Quero ainda agradecer à Universidade Federal do Rio Grande do Norte,

instituição que tenho um profundo orgulho de fazer parte... Meu lócus de pesquisa,

minha segunda casa há oito anos e ao Programa de Pós-Graduação em Educação

(PPGED), pela excelente estrutura física e profissional, meu muito obrigada a todos

os docentes, equipe da secretaria, bolsistas, seguranças e profissionais da limpeza.

Agradeço imensamente ao CNPQ, pela bolsa no segundo ano de mestrado.

O apoio financeiro foi crucial para meu envolvimento no campo, dedicação as

minhas leituras, participação em congressos e avanço nos meus estudos.

Por fim, minha profunda gratidão aos professores dos cursos de Ciências

Sociais, Direito, Ciências Biológicas, Odontodologia, Matemática e Engenharia Civil,

que abriram as portas de suas turmas. Obrigada a cada estudante que colaborou

com essa pesquisa respondendo os questionários e, claro, meus agradecimentos

mais que especiais eu dedico aos meus seis entrevistados, sujeitos/atores/autores,

que tão gentilmente aceitaram contar suas histórias e construiram comigo esse

estudo.

"Ninguém escapa ao sonho de voar, de ultrapassar os limites do espaço onde nasceu, de ver novos lugares e novas gentes. Mas saber ver em cada coisa, em cada pessoa, aquele algo que a define como especial, um objeto singular, um amigo,- é fundamental. Navegar é preciso, reconhecer o valor das coisas e das pessoas, é mais preciso ainda."

Antoine de Saint-Exupéry

Page 9: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

RESUMO

Os lugares nas universidades paulatinamente estão sendo ocupados por mais estudantes das camadas populares, um fato recente nas instituições de ensino superior do Brasil. Estudos sobre o acesso aos diplomas universitários, especialmente na perspectiva da sociologia da educação, apontam que é crucial compreender não apenas o ingresso e a permanência desses discentes oriundos de grupos sociais desfavorecidos, como também conhecer a realidade de suas vivências acadêmicas. Assim, esse estudo tem como principal objetivo compreender a condição de permanência do estudante de origem popular na Universidade a partir do seu processo de socialização. A UFRN- Universidade Federal do Rio Grande do Norte foi o lócus da pesquisa, com a participação dos graduandos populares de cursos das áreas de Humanas (Ciências Sociais e Direito), Biomédica (Ciências Biológicas e Odontologia) e Tecnológica (Matemática e Engenharia Civil). Na primeira etapa da investigação, incluindo uma abordagem etnográfica com registros descritivos do campo das observações, aplicou-se um questionário em turmas a partir do terceiro período (semestre) do curso. No segundo momento, realizou-se entrevistas semiestruturadas com seis representantes, um estudante de cada graduação delimitada. A partir da fala dos sujeitos, definiram-se quatro categorias analíticas: a) Trajetórias formativas: escolares e familiares; b) Caminhos acadêmicos: tensionados e factíveis; c) Socialização universitária: formal e cordial; e, d) Prospectiva profissional: continuada e (des)continuada. Da análise dessas categorias resultou uma interpretação dos significados sociológicos e educacionais atribuídos pelos estudantes, a despeito das suas próprias condições econômicas desfavoráveis e de suas famílias, ponto crucial nesse estudo. Porém, considerando-se as várias dificuldades para a permanência, independentemente da origem social, todos os estudantes têm que (re)inventar-se para se manterem em seus cursos. Nesse cenário de barreiras econômicas e obstáculos educacionais, os laços de amizade, parcerias em grupos, sociabilidade nas praças, bares, cantinas e a ajuda dos pares, são vistos como sendo essenciais para a sobrevivência estudantil, fenômeno que devido a essas relações sociais e afetivas denominou-se de socialização acadêmica cordial.

Palavras–chave: Estudantes universitários de classes populares. Acesso e permanência no ensino superior. Vida estudantil. Cotidiano universitário. Socialização acadêmica.

Page 10: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

RESUME

Les places dans l‘université progressivement sont occupées davantage par les étudiants des couches populaires, un fait récent dans les institutions de l‘enseignement supérieur au Brésil. Des études sur l‘accès aux diplômes universitaires specialement dans la perspective de la sociologie de l‘éducation montrent qui est crucial comprendre non seulement l‘admission et la permanence des ceux étudiants provennant des groupes sociaux défavorisés, mais aussi bien connaître la realité des leurs vécus académiques. Ainsi, cette étude a comme but principal comprendre la condition de permanence de l‘étudiant d‘origine populaire à l‘Université à partir de leur processus de socialisation. L‘UFRN-Universidade Federal do Rio Grande do Norte a été le locus de la recherche, avec la participation des étudiants populaires des formations dans les Humaines (Sciences Sociales et Droit), les Biomédicales (Sciences Biologiques et Odontologie) et les Technologiques (Mathématique et Ingénierie Civile). Dans la première étape de l‘investigation, comprennand un approche ethnographique avec registres du champ des observations, on a appliqué un questionnaire dans les classes à partir de la troisième période (semestre) de la formation. Dans un deuxième moment, on a réalisé entretiens semi structurés avec six représentants, un étudiant sur chaque formation choisie. A partir des mots des sujets on a défini quatre catégories analytiques: a) Trajectoires formatives: scolaires et familliales; b) Parcours académiques: tensionés et factibles; c) Socialisation universitaire: formelle et cordiale; et, d) Prospective professionnelle: continue et (des)continue. De l‘analyse des catégories on a découlé une interpretation des significats sociologiques et éducationnels attribués par les étudiants, en dépit des leurs propres conditions économiques défavorables et de leurs familles, point crucial de l´étude. Néanmoins, en considerand les plusiers difficultés pour la permanence, indépendament de l‘origine sociale, tous les étudiants doivent se (re)invénter pour se maintenir dans leurs formations. Dans ce scénario de barrières économiques et d‘obstacles éducationnels, les liens d‘amitié, partenaires en groupes, sociabilité dans les places, les bistrots, cantines et le soutien des paires, sont vus comme étant essencials pour la survie étudiante, phénomène qui due à ces rapports sociaux et afféctifs on a dénommé de socialisation académique cordiale.

Mots-Clés: Étudiants universitaires des classes populaires. Accès et permanence dans l‘enseignement supérieur. Vie étudiante. Quotidien universitaire. Socialisation académique.

Page 11: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

ABSTRACT

More popular classes‘ students progressively occupy the universities places, a recent fact in the higher education institutions in Brazil. Studies about the access to universities diplomas, especially in the sociology of education perspective, point that is crucial understand not just the admission and permanence of those students arise from disadvantaged social groups, but as well know the reality of their academic living. Thus, this study have as principal aim understanding the permanence condition of the grassroots student in the University from the socialization processes. The Universidade Federal do Rio Grande do Norte was the research locus with the participation of popular classes‘ students of the Humanities courses (Social Sciences and Law), Biomedical courses (Biological Sciences and Dentistry) and Technological courses (Mathematics and Civil Engineering). In the first investigation step, includes an ethnography approach with descriptive registers of the observational field, it applied a questionnaire in the third period (semester) classes of the course. In a second moment, it realized semi structured interviews with six representatives, one student of which delimited course. From the subjects speech it defined four analytical categories: a) Formative trajectories: academic and familial; b) Academic paths: tensioned and feasible; c) University socialization: formal and cordial; e, d) Professional prospective: continue and (dis)continue. From those categories it resulted an interpretation of sociological and educational significances attributed by the students, in despite of their selves and theirs family disadvantaged economic conditions, crucial point in this study. However, considering the numerous difficulties for the permanence, independently of the social origins, all the students have to (re)invent their selves to remain in theirs courses. In the scenario of economic barriers and educational obstacles, the bonds of friendship, partnerships groups, squares sociability, bars, canteens and the pairs help, are seeing as essentials to the student survive, phenomena due to these social and affective relationships it named as cordial academic socialization.

Key-Words: Popular classes‘ University students. Access and permanence in higher education. Student life. University quotidian. Academic socialization.

Page 12: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

LISTA DE GRÁFICOS

GRÁFICO 1 - Bolsas do PROUNI ofertadas por ano ................................................ 33

GRÁFICO 2 - Número de matrículas em cursos de graduação ................................ 34

GRÁFICO 3 - Taxa de escolarização líquida no Brasil ............................................. 34

GRÁFICO 4 - Matrículas em cursos presenciais no RN ........................................... 37

GRÁFICO 5 - Origem escolar dos estudantes pesquisados da UFRN ..................... 47

GRÁFICO 6 - Origem escolar dos estudantes de Direito da UFRN .......................... 48

GRÁFICO 7 - Origem escolar dos estudantes de Odontologia da UFRN ................. 48

GRÁFICO 8 - Renda familiar dos estudantes de Matemática da UFRN ................... 49

GRÁFICO 9 - Renda familiar dos estudantes pesquisados da UFRN ...................... 51

Page 13: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

TABELA 1 - Evolução do FIES: Orçamento destinado pelo MEC para

financiamentos .......................................................................................................... 35

TABELA 2 - Matrículas projetadas pelo REUNI, UFRN ............................................ 39

TABELA 3 - Política Inclusiva da UFRN ................................................................... 50

TABELA 4 - Inscritos e matrículados da UFRN ........................................................ 51

QUADRO 1 - Quantitativo dos questionários aplicados nas graduações da UFRN .. 46

QUADRO 2 - Entrevistados da pesquisa ................................................................. 53

QUADRO 3 - Indicadores de afiliação ....................................................................... 83

FIGURA 1 - Lócus de Pesquisa .. ............................................................................. 44

FIGURA 2 - Mapa da UFRN e os seus setores .. ...................................................... 55

FIGURA 3 - Pracinha do Setor II, UFRN .. ................................................................ 57

FIGURA 4 - Bate papo no setor II, UFRN ................................................................. 58

FIGURA 5 - Conversas no setor I, UFRN ................................................................. 60

FIGURA 6 - Estudo solitário no setor IV, UFRN .. ..................................................... 62

FIGURA 7 - Estudo em grupo no setor III, UFRN .. .................................................. 63

FIGURA 8 - Conversa no CB, UFRN . ...................................................................... 64

FIGURA 9 - Cantoria no CB, UFRN ......................................................................... 65

FIGURA 10 - Departamento de Odontologia ............................................................ 66

FIGURA 11 - Categorias Analíticas das Entrevistas . ............................................... 73

FIGURA 12 - Amizade no setor V ............................................................................ 86

FIGURA 13 - Lanche e prosa no setor IV, UFRN ...................................................... 87

Page 14: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

LISTA DE SIGLAS

CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior

CB – Centro de Biociências

CNE – Conselho Nacional de Educação

CNPQ - Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico

DCE – Diretório Central dos Estudantes

ECOS – Escola Contemporânea e Olhar Sociológico

ENEM – Exame Nacional do Ensino Médio

FIES - Fundo de Financiamento Estudantil

GAT – Grupo de Apoio Terapêutico

INEP - Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira

LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira

MEC – Ministério da Educação

OVEU – Observatório da Vida do Estudante

PNAES – Programa Nacional de Assistência Estudantil

PHE – Programa de Extensão Hábitos de Estudo

PPGEd – Programa de Pós-Graduação em Educação

PROAE – Pró-reitoria de Assuntos Estudantis

PROUNI - Programa Universidade para Todos

SEMESP – Sindicato das mantendedoras do Ensino Superior

Page 15: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

SESu - Secretaria de Educação Superior

SINDATA - Sistema de Informações do Ensino Superior Particular

SIGAA - Sistema Integrado de Gestão de Atividades Acadêmicas

SISPROUNI – Sistema do Programa Universidade para Todos

UFRN – Universidade Federal do Rio Grande do Norte

UNE – União Nacional dos Estudantes

USP – Universidade de São Paulo

Page 16: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

SUMÁRIO

PRÓLOGO

QUANDO A PESQUISA ESTÁ EM NÓS: Implicações em uma trajetória de

resiliência na universidade ........................................................................................ 16

1. INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 20

CAPÍTULO 2. UNIVERSIDADE PARA TODOS? A busca pela universalização no

ensino superior .......................................................................................................... 24

2.1. CONFIGURAÇÕES CONTEMPORÂNEAS DA ACADEMIA: A Universidade de

Berlim (1808) e a Declaração de Bolonha (1999) ..................................................... 26

2.2. A EXPANSÃO DO ENSINO SUPERIOR NO BRASIL ...................................... 30

2.3. O RIO GRANDE DO NORTE NO CONTEXTO DAS MUDANÇAS NO ENSINO

UNIVERSITÁRIO ...................................................................................................... 36

CAPÍTULO 3. POR ONDE ANDEI: ROTEIRO DE PESQUISA E ITINERÁRIO

METODOLÓGICO ..................................................................................................... 43

3.1. UM PASSO DE CADA VEZ: Etapas da pesquisa ............................................. 44

3.2. O LÓCUS DE UMA “PESQUISADORA NATIVA” ............................................ 57

CAPÍTULO 4. A CONDIÇÃO DO ESTUDANTE UNIVERSITÁRIO DAS CLASSES

POPULARES NA UFRN............................................................................................ 68

4.1. JORNADAS FORMATIVAS: Escolares e Familiares ........................................ 73

4. 2. CAMINHO ACADÊMICO: Tensionado e Factível ............................................. 78

4.3. SOCIALIZAÇÃO UNIVERSITÁRIA: Formal e Cordial ....................................... 81

4.4. PROSPECTIVA DE VIDA: Continuada e (Des)Continuada ............................... 88

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 92

REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 93

APÊNDICE A Questionário ..................................................................................... 100

APÊNDICE B Roteiro-guia de entrevista semi-estruturada..................................... 101

APÊNDICE C Modelo de Ficha de Interpretação .................................................... 102

APÊNDICE D Transcrições das entrevistas ............................................................ 103

Page 17: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

16

PRÓLOGO

QUANDO A PESQUISA ESTÁ EM NÓS: Implicações em uma trajetória de

resiliência na universidade.

Meus pais, um vendedor ambulante do Ceará e uma costureira norte rio-

grandense, não concluíram o ensino fundamental no auge da Ditadura Militar. Meus

avós, agricultores, nunca frequentaram uma escola, viviam da roça e do labor em

carvoarias. Por acasos, encontros e partidas, nasci na capital do Rio Grande do

Norte, em maio de 1990, e não poderia começar esse trabalho sem relatar minha

pertença social e as origens da minha trajetória. Não tenho a pretensão de tornar

esse prólogo um extenso memorial da minha vida, longe disso. Meu intuito principal

é mostrar as minhas implicações enquanto pesquisadora, salientando a necessidade

de incluir-me no processo investigativo.

Vários caminhos, leituras, conversas e observações, culminaram na minha

pergunta de partida: ―Como sobrevive o estudante pobre na academia?‖. De modo

que não conseguiria delimitar o momento exato que fiz a minha escolha. Entretanto,

o principal motivador da pesquisa sobre a permanência de estudantes populares na

universidade foi reconhecer-me como uma. Oriunda de família pobre, fiz o pré-

escolar em 1996, em Natal/RN e tive muitas dificuldades na alfabetização, como

muitas crianças. Contava com a ajuda da minha mãe no aprendizado das primeiras

letras que dizia-nos sempre, a mim e a minha irmã caçula, ―os estudos são a única

maneira de vocês serem gente na vida‖. O incentivo materno para dedicação na

escola perdurou durante todo o meu ensino básico e não tenho dúvidas que foi

determinante na minha socialização primária.

Em busca de melhores condições de vida, em 1997, nossa família foi para

Brasília/DF, onde estudei até a metade da segunda série do ensino fundamental.

Fomos para o Rio de Janeiro no segundo semestre do ano letivo de 1998 e fui

matriculada numa escola de Duque de Caxias/RJ, baixada fluminense. Apesar das

mudanças repentinas, nunca tive reprovações e finalmente regressamos para Natal

em 1999, onde permaneço até hoje.

Aos 16 anos, na primeira série do ensino médio, comecei um estágio

remunerado em um órgão público: estudava pela manhã e tinha bolsa à tarde.

Permaneci nessa instituição por dois semestres e na terceira série do ensino médio,

Page 18: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

17

em 2007, comecei a trabalhar formalmente em uma loja de fardamentos e realizava

meus estudos à noite. Meu primeiro vestibular, ainda sob a jurisdição da Comissão

Permanente de Vestibulares (COMPERVE/UFRN), foi para o curso de Psicologia.

Apesar do Argumento de Inclusão, sistema de pontuação adicional para estudantes

de escolas públicas, eu não consegui ser aprovada. No ano seguinte, 2008, utilizei

os tempos ociosos do trabalho para estudar e consegui a aprovação no curso de

Ciências Sociais - Licenciatura da Universidade Federal do Rio Grande do Norte

(UFRN).

Não cursei a disciplina de Sociologia no ensino médio e muito menos tinha

compreensão do que seriam as Ciências Sociais. Como a maioria dos estudantes

universitários, ―caí de paraquedas‖ em uma realidade totalmente desconhecida. A

empresa em que eu trabalhava pediu falência e, para que eu tivesse alguma renda,

me inscrevi para uma bolsa de Apoio Técnico. Permaneci como bolsista da

Biblioteca Central por um semestre e, em 2010, ingressei no Programa Institucional

de Iniciação à Docência (PIBID). Foi através da inserção nessa nova realidade que

tive o primeiro contato com o ofício docente e com a pesquisa. Por motivos

financeiros, um ano depois, tive que me desligar da bolsa para ser funcionária de

uma central de telemarketing. Foi nesse período que eu praticamente larguei o

curso. Com problemas de saúde adquiridos pelo uso constante da voz, desanimada,

sem perspectiva de crescimento profissional, decidi voltar para o ensino superior.

Regressei ao PIBID, concorrendo em um novo edital e retomei a ―plenos

pulmões‖ minha vida acadêmica. Vivi experiências incríveis como pibidiana. Através

do meu envolvimento com a realidade escolar e as discussões teóricas nas reuniões

do grupo, pude considerar, pela primeira vez, a continuidade da vida acadêmica e

ser professora de Sociologia um dia. Apesar de todo meu envolvimento, fui

desligada do programa no fim de 2012 e iniciei uma bolsa de Extensão, onde

entrevistava moradores de um bairro periférico da capital. Após um semestre de

trabalho, o programa expirou e não foi renovado. Assim, para me manter, fui

trabalhar como corretora de imóveis durante seis meses.

Novamente me vi deixando a graduação de lado, uma vez que meu

expediente era de doze horas por dia, de segunda a sexta e aproximadamente

quatro horas aos sábados e domingos. Exausta e crente que a graduação seria a

minha única esperança de mobilidade social, decidi, novamente, retomar a

licenciatura e me inscrevi para concorrer a uma bolsa de Monitoria.

Page 19: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

18

Em 2013, assumi a monitoria, cursei as sete disciplinas finais e escrevi a

minha monografia que tratava sobre a sociabilidade de estudantes da rede pública:

tudo em um semestre. Recebi o diploma de ensino superior e vi, pela primeira vez

na vida, o meu pai usar um terno. Apesar da sensação de dever cumprido, sabia que

a jornada tinha que continuar. Iniciei uma nova graduação, o bacharelado em

Ciências Sociais, principalmente para manter o vínculo acadêmico e permanecer

como monitora. Eu compreendia que estar na universidade seria vital para que eu

continuasse meus estudos.

No final de 2013, participei da seleção para o Mestrado em Ciências

Sociais/UFRN e, apesar de aprovada na parte escrita, não tive o projeto aceito.

Durante o ano seguinte, continuei como bolsista e me inscrevi para outra seleção,

dessa vez em uma área diferente e fui aceita para a Pós-graduação em

Educação/UFRN. Mesmo com a imensa conquista e a euforia dos primeiros

instantes, a minha condição popular permaneceu com dificuldades ainda maiores.

Tenho total ciência que essa trajetória revelada não contempla todas as

vivências da minha condição de estudante popular. Compreendo também que ao

relatar nossas lembranças, agrupamos e ordenamos as narrativas em uma tentativa

de coerência histórica que não existe, uma vez que somos (re)inventores de nossas

memórias.

Nessa tarde quente de segunda-feira, refletindo acerca dos meus processos e

constantes recomeços, chego novamente à conclusão de que adotei muitas

estratégias para manter-me na graduação. Não foi um processo linear, coeso e

simétrico. Como todos os meus interlocutores da pesquisa, tive que me (re)criar para

(sobre)viver e assumo que recordei das minhas marcas a cada relato, desabafo e

observações dos meus sujeitos.

Diferentemente do que defende o positivismo e sua tentativa de neutralizar a

ação do pesquisador, compartilho do pressuposto de um intelectual implicado

(LOURAU, 1975), ou seja, como postula a fenomenologia, é impossível o cientista

se por, verdadeiramente, ―fora‖ do seu campo de investigação. O investigante traz

consigo suas impressões que perpassam desde a escolha do tema, até a sua

subjetividade na análise. ―Estar implicado é, ao fim de tudo, admitir que eu sou

objetivado por aquilo que pretendo objetivar: fenômenos, acontecimentos, grupos,

idéias, etc‖. (LOURAU, 1975, p. 88).

Page 20: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

19

Outro grande teórico que defende a assunção da subjetividade na pesquisa,

denominando-a de pesquisa-ação, foi Barbier (2002, p. 14) que declara:

A pesquisa-ação obriga o pesquisador de implicar-se. Ele percebe como está implicado pela estrutura social na qual ele está inserido e pelo jogo de desejos e de interesses de outros. Ele também implica os outros por meio do seu olhar e de sua ação singular no mundo.

Assumir este caráter da pesquisa científica é perceber a posição do

investigador no campo, a relação que estabelece com os sujeitos e quais os efeitos

dessa relação. Como estudante popular, pesquisando a universidade que faço parte

desde 2009, minhas implicações são, principalmente, institucionais e simbólicas

(LOURAU, 1975, p. 274) e lidar com elas, estudando o que considerava familiar, foi

um dos grandes desafios do meu estudo.

Reconheço então que sou parte do meu campo, sou integrante dos meus

sujeitos e a pesquisa está em mim: corporificada, impregnada e indissolúvel.

Sou Edilene Dayse Araújo da Silva, filha da classe popular, cientista social,

professora, estudante e pesquisadora. Sou mais uma, dentre tantos discentes, que

sobrevive na universidade. Até aqui, eu consegui. O caminho continua, não é o fim.

Page 21: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

20

1. INTRODUÇÃO

―Caia sete vezes; levante-se oito‖.

(Provérbio Japonês)

―Um dia você vai ser doutor‖, disse um pescador, cheio de esperança, para o

seu filho Jurista (pseudônimo), estudante popular de Direito da UFRN. O sonho aos

poucos foi ganhando forma e o seu garoto caminha com passos firmes na

universidade pública que, apesar das mudanças, ainda é um reduto de poucos.

No título desse trabalho afirma-se que ―desistir não é uma opção‖ e ao fazer

essa forte declaração, mais poética que literal, o intuito foi destacar a resiliência dos

sujeitos de origem popular na permanência universitária. Contudo, entre a escassez

de recursos financeiros e simbólicos, dificuldades de aprendizagem e os mais

diversos obstáculos da vida acadêmica, desistir é uma opção constantemente

presente. A diferença mais expressiva, no caso dos que sobrevivem, é nunca

escolhê-la... Ao menos integralmente.

No que diz respeito à socialização universitária, diversos autores como

Ferreira (2014; 2015; 2016), Paivandi (2014; 2015) e Coulon (2008), demonstram em

seus estudos que a interação entre os estudantes é determinante na sobrevivência

acadêmica, apontando o ato de socializar-se como uma estratégia de permanência.

Salienta-se ainda que o uso da expressão estudantes, no título e ao longo do

trabalho, foi inspirado na língua francesa que distingue os alunos (élèves),

pertencentes ao ensino básico, dos estudantes (étudiants) que fazem parte do

ensino superior.

Sobre a nomenclatura de estudantes populares para designar os discentes

pobres, baseou-se na denominação dada por alguns pesquisadores, especialmente

Zago (2006), Carneiro e Sampaio (2011), Ferreira (2014; 2016), Pereira e Passos

(2007), Piotto (2011) e Viana (1998). Para ser considerado como tal, o estudante

deve ter concluído o ensino básico em escola pública, de preferência integralmente,

possuir renda familiar de até dois salários mínimos (Classe E/IBGE) e pais com

profissões de pouco prestígio social e baixa escolaridade.

Page 22: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

21

Como motivador do presente estudo, percebeu-se variadas discussões sobre

o fenômeno da expansão universitária no Brasil que acompanha o percurso

internacional em busca da ―democratização‖ do ensino superior. O país ampliou

significativamente o acesso à universidade pública. Em 2015, o Sistema de Seleção

Unificada (Sisu) ofertou 82.879 vagas, 40% do total de ofertas, para ingresso nas

instituições de ensino superior (IES) públicas de estudantes que tenham cursado

todo o ensino médio em escolas públicas, ou seja, alunos que atendem parcialmente

aos critérios da Lei de Cotas. Gradualmente, as cadeiras universitárias nas IES

públicas estão sendo ocupadas por membros das camadas populares, um evento

recente na história educacional brasileira.

Apesar de todas as críticas acerca da concepção de ―democratização‖ é

inegável o impacto social do processo de ampliação do ensino superior e no número

de estudantes populares nas graduações do país. Milhões de brasileiros presenciam

seus filhos, sobrinhos, netos e entes queridos cursando uma graduação pela

primeira vez, pioneiros em toda a família. Nesse contexto atípico, os desbravadores

acadêmicos são os jovens que vivenciam o desafio de sobreviver em um meio

ambiente totalmente estranho de sua origem popular: a universidade.

Como apontam os estudos de Almeida (2007), Borges e Carnielli (2005),

Ferreira (2013; 2014), Sousa e Silva (2003), Paivandi (2014; 2015), Piotto (2011) e

Zago (2005) é crucial compreender não apenas o ingresso e evasão, mas como se

dão as vivências acadêmicas desses estudantes oriundos das classes populares.

Ciente que as instituições públicas de ensino superior, inclusive a UFRN,

ainda são para poucos; no cenário de favorecimento da privatização no ensino

superior, iniciado na ditadura militar e perdurado até os dias atuais; tratando-se das

relações cotidianas da universidade, como sobrevive um estudante pobre?

Socializar-se está, sem dúvida, entre as principais formas de perseverar no curso

superior.

A princípio, a palavra sobrevivência no contexto da vida acadêmica pode

causar estranheza. Empregado por alguns autores, especialmente por Ferreira

(2014), utiliza-se o termo para denominar a labuta que é se manter na academia.

Mesmo com diferenças econômicas, sociais, políticas e culturais entre os estudantes, a sobrevivência acadêmica, de fato, depende do engajamento cognitivo e social no meio ambiente universitário, com a construção de estratégias de aprendizagem e com o investimento em

Page 23: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

22

processos de socialização, efetivamente orientados mais por relações sociais, pessoais e coletivas, do que institucionais. Adaptar-se simultaneamente às exigências cognitivas e relações sociais do ensino superior, contando com amigos, colegas e professores para suprir as deficiências organizacionais, não é uma ―escolha‖ dos estudantes: a maioria descobre rapidamente que é a única chance de sucesso real nos seus projetos de estudo e de formação profissional (FERREIRA, 2014, p. 118).

Assim definida, a partir da noção de sobrevivência, questiona-se: ―Quais as

estratégias adotadas pelos estudantes pobres para sobreviver na academia?‖. A fim

de responder essa indagação inicial, tendo como base epistemológica a

etnometodologia, realizou-se esse trabalho dividido em quatro capítulos, sendo o

principal objetivo a compreensão da condição do estudante de origem popular em

sua permanência na universidade, focando principalmente no processo de

socialização estudantil. Desse modo, elencamos como específicos: 1) Analisar as

configurações acadêmicas contemporâneas e seus impactos no Brasil e no RN. 2)

Examinar as teorias acerca da socialização e da permanência dos estudantes

populares e estabelecer diálogos com o lócus de pesquisa, as narrações dos

sujeitos e com o olhar da pesquisadora e 3) Compreender, a partir da abordagem

etnográfica e dos relatos dos sujeitos, as vivências e significações na sobrevivência

acadêmica dos estudantes populares.

No capítulo 02, na primeira seção, será apresentado o contexto internacional

que influenciou as recentes transformações no cenário universitário brasileiro. O

enfoque principal é a Universidade de Berlim (1808) e o Tratado de Bolonha (1999),

que através dos dispositivos norteadores serviu de propulsor de mudanças no

sistema de ensino superior que influenciaram diversas academias a investirem em

competitividade e, consequentemente, privatizações. No segundo momento, será

abordado o cenário nacional, especialmente as políticas de incentivo a iniciativa

privada e atividades expansionistas das universidades brasileiras. No final do

capítulo, é tratado o contexto norte-riograndense de ensino superior, principalmente

no crescimento das instituições particulares e avanço da UFRN.

No capítulo 03, versa-se sobre os passos da pesquisa e particularmente, no

relato etnográfico do nosso estudo (URIARTE, 2012; MATTOS, 2011). Tendo como

pressupostos epistemológicos e metodológicos, aplica-se o viés qualitativo. O

presente estudo emprega a etnografia e as entrevistas como as principais

Page 24: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

23

ferramentas interpretativas. Especialmente nas apêndices e nas legendas de

algumas fotografias, ao me referenciar, utilizarei a nomenclatura de ―Dayse Araújo‖,

destacando assim o meu papel de sujeita e integrante da minha pesquisa. Nos

aspectos quantitativos com amostras não probabilísticas, utiliza-se questionários,

análise de gráficos, tabelas e quadros que, unidos na teia de sentidos, apontam para

possíveis significações do fenômeno estudado.

No Capítulo 04, é realizada uma análise e interpretação das entrevistas feitas

com seis estudantes populares, articulando-as com o conceito de socialização.

Como ferramentas metodológicas, aplicaram-se a Análise de Conteúdos

(MORAES,1999) e Entrevista Compreensiva (KAUFFMANN, 2013; SILVA, 2006). A

partir das falas dos sujeitos e da articulação com as teorias, elencaram-se quatro

categorias analíticas, a saber: (1) Trajetórias Formativas: Escolares e Familiares; (2)

Caminho Acadêmico: Tensionado e Factível; (3) Socialização Universitária: Formal e

Cordial e (4) Prospectiva de vida: Continuada e (Des)Continuada.

São especialmente nesses aspectos da socialização estudantil que apontam-

se alguns vislumbres de nossa pesquisa, incorporando a análise dos dados e a

interpretação de seus significados sócio-antropológicos e educacionais. Pode-se

afirmar que sobreviver na academia requer (re)fazer-se e se transformar

constantemente, em um intenso processo socializador. Quando os recursos

materiais são escassos, como na vida dos estudantes populares, a cordialidade

acadêmica presente no encontro com os pares, nas relações de companheirismo e

amizade é determinante na sobrevivência acadêmica.

Na montagem das conclusões, utilizou-se a metáfora de uma rede de práticas

e significados, perpassando os três fios hermenêuticos: o olhar do pesquisador, a luz

dos autores e da voz dos sujeitos; a identificação de trajetórias acadêmicas dos

estudantes e das cargas simbólicas decorrentes desse trajeto; e, as práticas sociais

cotidianas no meio ambiente acadêmico dos discentes de origem.

Page 25: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

24

CAPÍTULO 2

UNIVERSIDADE PARA TODOS?

A BUSCA PELA UNIVERSALIZAÇÃO NO ENSINO SUPERIOR

“O conhecimento é em si mesmo um poder”

Francis Bacon

“É uma quebra de tabu uma pobre fazendo Odonto, é quase impossível. É uma ferramenta de poder”.

Dentina (pseudônimo)

Estudante de Odontologia, UFRN.

Uma das frases escolhidas como epígrafe desses escritos é do filósofo,

considerado por muitos, fundador da ciência moderna. Muito embora suas palavras

tenham sido proferidas há muito tempo, na velha Londres do século XVI, o seu

aforismo permanece provocador e atual. Em solos potiguares, mais especificamente

no curso de Odontologia da UFRN, Dentina, uma das entrevistadas da nossa

pesquisa, refletiu na sua declaração o pensamento baconiano, ao mencionar o seu

ingresso como uma ferramenta de poder.

A universidade tem sido um grande símbolo da busca pelo conhecimento e

evidentemente do poderio que o saber oferece. Entre os seus muros, salas de aulas,

bibliotecas e corredores encontram-se os habitats dos estudantes universitários e

compreender suas vivências nesses espaços leva-nos a pensar acerca de uma

questão basilar: Quais as origens da universidade?

Para Cunha (1980, p.15) ―[...] o ensino superior é aquele que visa ministrar

um saber superior‖. Fica notório nessa sentença, especificamente na expressão

―saber superior‖, a forte presença do status do conhecimento acadêmico. Vale

salientar que na vida social não se encontra apenas uma forma de saber, mas

muitas maneiras de lidar com o conhecimento. Entretanto, como destaca Cunha

(1980), há os saberes dominantes (das elites) e, do outro lado, os conhecimentos

dominados.

Page 26: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

25

O autor defende que os conhecimentos estão hierarquizados entre os

dominantes inferiores, como o aprendizado da escrita nos colégios, e saberes

dominantes superiores, como por exemplo, o domínio da Filosofia clássica. Inserida

na lógica do saber dominante é impossível discorrer sobre o ensino superior sem

aludir às relações de poder.

Seja na busca pelo conhecimento e, principalmente, pela dominação, o

ingresso nas graduações permaneceu majoritariamente das elites, sejam

escolásticas ou leigas, durante a maior parte da nossa história. Não houve, por

muito tempo, sequer a presunção da classe popular adentrar os portões das

universidades.

O termo universidade surgiu do latim universitas, composto por unus que

significa um, remete a ideia de unidade e verto que, por sua vez, tem o sentido de

voltar/tornar. Assim, a junção das duas expressões latinas sugere ―tornado em um‖.

No que se refere às instituições que atualmente chamamos de ensino superior,

Minogue (1981) afirma que as escolas religiosas foram as bases para o surgimento

das universidades. Durante o século XII, houve o crescimento do studia generalia,

local onde mestres de grande prestígio social reuniam estudantes cristãos para

disseminação dos seus ensinamentos. Os dois primeiros centros tidos como

modelos situavam-se em Paris e Bolonha. Outros polos, rapidamente, multiplicaram-

se pela Europa.

Os mestres e estudantes dessas cidades decidiram reunir-se numa

corporação legal, adotando a palavra universitas: uma expressão usada em

qualquer tipo de associação formal. Aproximadamente no final da Idade Média, o

termo, paulatinamente, passou a ser exclusivo das instituições universitárias que

cresciam em prestígio e poder. Em alguns momentos, diversos escritores medievais

a colocaram no mesmo patamar hierárquico com os grandes poderes da sociedade

da época, formando assim um tríplice domínio: a Universidade (Studium), a Igreja

(Sacerdotium), e o Estado (Regnum) (MINOGUE, 1981).

Através da breve análise a seguir, perceber-se que a inserção dos pobres no

ensino superior é um ato político e histórico; heterogêneo e dinâmico; permeado de

conflitos simbólicos, na busca pela compreensão desse fenômeno multifacetado que

Page 27: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

26

se reflete no contexto contemporâneo da universidade, suas expansões, avanços e

retrocessos na vida dos estudantes populares.

2.1. CONFIGURAÇÕES CONTEMPORÂNEAS DA ACADEMIA: A UNIVERSIDADE

DE BERLIM (1808) E A DECLARAÇÃO DE BOLONHA (1999)

Após séculos de constantes mudanças e crises, foi em 1808, através do

projeto da Universidade de Berlim, que se constituiu o que se pode chamar de

―Universidade Moderna‖. Pereira (2009, p. 29) afirmou em seus escritos que foi

Wilhelm Von Humboldt (1769-1859) que realizou ― [...] a reflexão mais significativa e

concisa sobre a universidade‖. Através da sua obra escrita em 1810, intitulada

―Sobre a Organização Interna e Externa das Instituições Científicas Superiores em

Berlim‖, que, apesar de vir a público somente em 1899, traduziu de um modo

significativo o ideário em torno de universidade nos tempos contemporâneos.

(ARAÚJO, 2009).

Pereira (2009) defende que em nível de comparação, a Universidade de

Berlim teve, para a modernidade, a importância significativa equivalente aos centros

universitários de Paris, Oxford e Cambridge na Idade média (p. 30). Ou seja, para

compreender o contexto das Universidades atuais é muito importante debruçar-se

sobre o ideal universitário defendido por Humboldt, dissemelhante a tudo que existia

até então.

O projeto da universidade moderna se estrutura de forma a ser diferente de tudo o que se constituía universidade até aquele tempo. Surge em um período histórico onde a ciência já se despontava como o aspecto estruturante do mundo moderno e os ditames epistemológicos rigidamente controlados pela igreja já não detinham a força que teve durante os dez séculos anteriores. (PEREIRA, 2009, p. 30)

Antes da Universidade de Berlim, que nasce inspirada nos ideiais iluministas,

pode-se afirmar que os centros universitários eram reduzidos a espaços de difusão

de conhecimentos passados por mestres e absorvidos passivamente pelos

estudantes. Além disso, Humboldt foi um dos primeiros a defender uma universidade

autônoma e independente de pressões externas, sejam elas de ordem religiosas, do

Estado ou simplesmente do mercado.

Page 28: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

27

Apresentadas ao longo de sua obra, as principais tarefas do que denominou

de ―intituições superiores‖ eram: ―De um lado, promoção do desenvolvimento

máximo de ciência. De outro, produção do conteúdo responsável pela formação

intelectual e moral‖ (HUMBOLDT, 1997, p. 79). Assim, cabia a universidade a

formação dos sujeitos nos aspectos morais, intelectuais e, sobretudo, o bem comum

da Nação.

Pereira (2009, p.31) afirma que seus ideais como foram planejados tiveram

pouca execução, mas que, paradoxalmente, é a referência mais transmitida quando

se trata de universidade. Para a autora, os princípios difundidos por Humboldt dão a

universidade o seu ethos próprio, sendo eles:

Formação através da pesquisa;

Unidade entre o ensino e pesquisa;

Interdisciplinaridade;

Autonomia e a liberdade da administração da instituição e da ciência que ela

produz;

Relação integrada, porém autônoma, entre Estado e Universidade;

Complementaridade do ensino fundamental e médio com o universitário.

Sendo assim, compreende-se que uma das principais marcas propagadas do

que ideal é o universitário é a intrínseca união entre ensino e pesquisa, observada

no seguinte trecho de Humboldt (1997):

Outra característica destas instituições é que, para seus membros, a ciência é compreendida como um problema que nunca pode ser totalmente resolvido. Portanto, a pesquisa se transforma num esforço infinito. Pelo contrário, na escola, a tarefa da instituição se limita à transmissão de conhecimentos previamente estabelecidos. Já numa instituição científica superior, o relacionamento entre professores e alunos adquire uma feição completamente nova, pois, neste ambiente, ambos existem em função da ciência. (p. 80-81)

Segundo Janissek et al. (2013, p. 04), ―com isso, elevou o status da pesquisa

num patamar nunca antes alcançado e defendeu a ideia de indissociabilidade entre

ensino, pesquisa e formação‖. Contudo, Pereira (2009) destaca que efetivamente,

Page 29: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

28

poucas são as universidades que unem a pesquisa e o ensino. Segundo a autora, a

maioria dos centros universitários se dedica majoritariamente ao ensino, reduzindo a

esfera da pesquisa a um corpo docente pouco engajado, principalmente por falta de

incentivo.

Sobre a ausência de uma singularidade nas universidades europeias, Lima,

Azevedo e Catani (2008, p. 08), discorrem que ―a divergência de modelos

institucionais, de configurações e de regras organizacionais da educação superior na

Europa é um fato histórico reconhecido que não foi, até recentemente, representado

como um problema a resolver‖. Os autores defendem que multiplicidade é uma

construção histórica, cultural, política, religiosa e, claro, pertencentes às autonomias

de cada instituição.

Os contornos plurais das universidades europeias tiveram uma expressiva

transformação após a assinatura do Tratado de Maastricht (1992) e a criação da

União Europeia. As instituições universitárias da Europa, que desde a década de 80

vivenciavam novos modos de governo e regulação da educação superior, passaram

a experienciar as concepções liberais na academia, diferentes das conhecidas pelos

países nórdicos e do sul europeu. (LIMA, AZEVEDO E CATANI, 2008)

Em 1998, na capital francesa, os ministros da educação da Alemanha,

França, Itália e Reino Unido, assumiram uma perspectiva de criação de um espaço

de ensino superior europeu com a assinatura do Tratado de Sorbonne. Um ano

depois, os ministros de 29 países da Europa firmaram um acordo na chamada

Declaração de Bolonha (1999), a qual delimitava seis grandes objetivos.

Adoção de um sistema com graus acadêmicos de fácil equivalência,

visando promover a empregabilidade dos cidadãos europeus e a

competitividade do Sistema Europeu do Ensino Superior;

Implementação de um sistema baseado essencialmente em duas

fases principais, a pré-licenciatura e a pós-licenciatura com um sistema de

ciclo de estudos;

Criação de um sistema de créditos - tal como no sistema ECTS -

como uma forma adequada de incentivar a mobilidade de estudantes da

forma mais livre possível. Os créditos poderão também ser obtidos em

contextos de ensino não-superior, incluindo aprendizagem feita ao longo

Page 30: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

29

da vida, contando que sejam reconhecidos pelas Universidades

participantes;

Incentivo à mobilidade por etapas no exercício útil que é a livre

circulação com particular atenção aos estudantes e aos professores;

Fomento à cooperação Europeia na avaliação;

Promoção das necessárias dimensões a nível Europeu no campo do

ensino superior.

Na defesa da criação de um Espaço Europeu de Educação, os princípios

revelam fortes ideais políticos de promoção do ensino superior da Europa e de

competitividade, principalmente com os centros norte-americanos, baseados na

atração de estudantes de outras localidades do mundo. (LIMA, AZEVEDO E

CATANI, 2008) Sobre esses incentivos de competição, a Declaração de Bolonha

expressa:

Teremos que fixar-nos no objectivo de aumentar a competitividade no Sistema Europeu do Ensino Superior. A vitalidade e a eficiência de qualquer civilização podem ser medidas através da atracção que a sua cultura tem por outros países. Teremos que garantir que o Sistema Europeu do Ensino Superior adquira um tal grau de atracção que seja semelhante às nossas extraordinárias tradições culturais e científicas. (1999)

Com diretrizes que visavam os rumos até 2010, esse tratado influenciou

maciçamente as políticas educacionais não apenas na Europa, mas em boa parte do

mundo. No Brasil, sua forte marca é bastante presente, uma vez que, culturalmente,

as universidades são inspirações de modelos e políticas externas desde o seu

nascedouro.

Acerca da vida do estudante universitário, através do exposto até agora,

pode-se indagar: Quais seriam as características e as mudanças do estudante

universitário na Idade Média e a partir da Declaração de Bolonha? Em linhas gerais,

na tradição da universidade da Idade Média havia uma combinação entre a

Patrística (Santo Agostinho) e do Tomismo (São Tomás de Aquino). A primeira,

ancorada nos ideais gregos e romanos, defendia o ideal do vínculo entre mestre e

discípulo. A educação, mesmo em um nível mais avançado, era fruto de uma

relação muito próxima entre o professor e o seu estudante. No que tange ao

Page 31: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

30

financiamento desses estudos, o graduando tinha que custeá-lo, não apenas

sustentando-se, mas remunerando seus tutores. Já no Tomismo a maior

preocupação foi a sua metodologia, Escolástica, com um ensino mais coletivista com

anseios mais instrumentais. Embora ainda mantivesse a noção dos pequenos

grupos com seus respectivos mestres.

Mais tarde, com a Universidade do Humboldt, as disciplinas, institutos e

cursos passaram por uma grande organização, tendo como grande destaque o

advento dos grandes exames, provas e uma maior sistematização do processo

avaliativo e organizacional como um todo. O estudante tinha que possuir uma maior

autonomia para estudar nas bibliotecas, cursos, participar de reuniões, encontros e

na preparação para os exames. De qualquer maneira, desde a tradição da Idade

Média até a Universidade de Humboldt, os discentes vivenciavam os encontros com

os colegas, pares e claro, momentos de boemia. A partir do Tratado de Bolonha até

os dias atuais, os estudantes europeus são muito incentivados a realizar

intercâmbios internacionais com um grande espírito de circulação entre as

instituições.

2.2. A EXPANSÃO DO ENSINO SUPERIOR NO BRASIL

Ao explanar sobre a recente expansão do ensino superior no Brasil, é

necessário compreender as pressões e acordos que culminaram na criação de

programas que permitiram um aumento brusco no número de matrículas e

ampliação de centros universitários sem precedentes no país. Nos anos 90,

(CARNOY et al., 2016) as reformas do Estado e da educação superior tiveram por

referencial teórico o liberalismo, defendido pelo Banco Mundial. Assim como na

China e Índia, a expansão na educação superior ganhou amplitude nessa década.

A atual expansão da educação superior no Brasil, produto de pressões internacionais e de fatores e pressões internas, vem provocando uma reconfiguração do campo acadêmico nacional, posto que, como diz Bourdieu, a autonomia de um campo não existe isoladamente, dado o mesmo ser um microcosmo dentro de um macrocosmo, sofrendo, por consequência, as influências de outros campos sociais. (DOMINGOS SOBRINHO; LIRA; MIRANDA, 2016, p. 45)

Page 32: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

31

Portanto, essa noção de que as práticas científicas e, consequentemente, as

medidas políticas no campo acadêmico são apenas fruto de uma ―boa vontade‖ de

um governante ou partido é equivocada. ―Ler as políticas públicas adotadas pelo

governo Lula apenas como respostas à necessidade de gerar igualdade de

oportunidades e inclusão social parece reducionista‖ (AGUIAR, 2014, p. 114)

Segundo Mancebo, Vale e Martins (2015) se, por um lado, a expansão pode

ser considerada como benéfica, em virtude da ampliação do acesso da população

ao ensino superior, deve-se atentar para alguns pontos negativos desse fenômeno,

principalmente nos perfis das graduações e das carreiras criadas pelas instituições

privadas, ―cuja expansão se dá sob a influência direta de demandas mercadológicas,

valendo-se dos interesses da burguesia desse setor em ampliar a valorização de

seu capital com a venda de serviços educacionais‖. (p. 33) O crescimento no setor

privado e a constante valorização da inovação tecnológica, mesmo em

universidades públicas, refletem diretamente a lógica do capital que busca no ensino

superior uma mercadoria.

Segundo Pereira (2009), sem uma norma do ensino superior consolidada,

uma série de leis, medidas provisórias, resoluções ministeriais e do Conselho

Nacional de Educação (CNE). Alterações na Lei de Diretrizes e Bases da Educação

Brasileira (LDB - Lei 9394/96) permitiram a criação de diversas instituições

superiores não-universitárias que, com outros formatos de seus cursos, focavam

exclusivamente no ensino, se ocupando apenas na produção de mão de obra

trabalhista. ―Assim, a política adotada não conferia estímulo para a geração de

conhecimento, da mesma forma que para a formação de profissionais com esta

competência‖ (INEP, 2006, p. 28). Nesses aspectos, os ideais da Universidade de

Berlim defendidos por Humboldt foram esquecidos.

Assim, no início dos anos 1990, com a forte presença do neoliberalismo na

política brasileira, a partir dos governos do presidente Fernando Henrique Cardoso

(1995-2002), vários setores do país passaram por reformas e implementação de

medidas que tiveram a privatização do ensino superior como um dos eixos centrais

(CHAVES; AMARAL, 2015). Como destaca Aguiar (2016) ao fim dos anos 1990,

esse sistema pode ser descrito como:

(i) Bastante elitista em termos de possibilidade de acesso; (ii) Dual, no sentido de que os setores público e privado desempenham papeis complementares;

Page 33: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

32

(iii) Constituído por uma larga predominância do setor privado; (iv) Concentrado em poucas carreiras; (v) Pouco interiorizado e enraizado (p. 113)

Entre 2003 e 2014, as matrículas em graduações aumentaram 96,5% e,

nesse último ano, contabilizaram mais de 7,8 milhões de estudantes no país. O que

esse dado impressionante oculta é que a maioria dos discentes, 74% se encontra no

ensino privado. Como um aspecto decisivo dessa realidade, podemos destacar o

ProUni (Programa Universidade Para Todos) criado pelo Governo Federal em 2004,

que oferece bolsas de estudo, integrais e parciais (50%), em instituições

particulares, a estudantes brasileiros sem diploma de nível superior1. Para pleitear a

bolsa integral, o candidato deve comprovar renda familiar bruta mensal de até um

salário mínimo e meio por pessoa. Para a bolsa parcial (50%), a renda familiar bruta

mensal deve ser de até três salários mínimos por pessoa. Além disso, o candidato

deve satisfazer, obrigatoriamente, pelo menos uma das condições abaixo:

Ter cursado o ensino médio completo em escola da rede pública.

Ter cursado o ensino médio completo em escola da rede particular,

na condição de bolsista integral da própria escola.

Ter cursado o ensino médio parcialmente em escola da rede pública

e parcialmente em escola da rede particular, na condição de bolsista

integral da própria escola privada.

Ser pessoa com deficiência.

Ser professor da rede pública de ensino, no efetivo exercício do

magistério da educação básica, integrante de quadro de pessoal

permanente de instituição pública e concorrer a bolsas exclusivamente

nos cursos de licenciatura. Nesses casos, não há requisitos de renda.

Em nove anos foram concedidas aproximadamente dois milhões de bolsas

em faculdades particulares. No ano inicial, 2005, foram condidas 112.275 bolsas

saltando para 306.726 em 2014, um aumento de mais de 170%. Abaixo o gráfico

que demonstra o quantitativo de matriculas nessa modalidade.

1 Disponível em http://siteprouni.mec.gov.br. Acessado dia 10/01/2017.

Page 34: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

33

GRÁFICO 1 - BOLSAS DO PROUNI OFERTADAS POR ANO: 2005-2014

Fonte: Sisprouni, 2015.

Almeida (2007, p. 39), em seus escritos, critica a tese de que os estudantes

das camadas menos favorecidas encontram-se alocados majoritariamente no ensino

privado e defende que ―é exatamente o contrário; pelo fato de ser gratuita, é lá onde

o pobre, excluído, desfavorecido, popular, de baixa renda, dentre outras

designações, pode ter guarida‖. O autor afirma que o critério mais relevante na

escolha dos estudantes com desvantagens econômicas é a gratuidade no ensino.

Sabe-se que mesmo sem o pagamento das mensalidades, o estudante universitário

precisa, para ter o básico, custear os materiais didáticos, alimentação, transporte e

essa concepção de gratuidade acaba sendo parcialmente ilusória. Para além dessa

questão, os números apresentados a seguir indicam que a concepção do

pesquisador estava equivocada. Nela, mostra-se que, de 2003 a 2014, com pouca

alteração na proporção, aproximadamente 75% das matrículas em cursos de

graduação são feitos por estudantes com origem em escolas particulares.

Page 35: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

34

GRÁFICO 2 - Número de matros de Fonte: Censo da Educação Superior, 2014.

Além disso, como salienta Ferreira (2016, p. 164), ―83,5% da juventude

brasileira na idade teoricamente adequada para cursar esse nível de ensino (22,7

milhões de pessoas) continuava sem acesso à educação superior‖. Sobre esse

dado, o mapa do ensino superior no Brasil de 2016 apresenta o conceito de

escolarização líquida que é o percentual da população de 18 a 24 anos na educação

superior. No Brasil a taxa é de apenas 17,6%. No Rio Grande do Norte esse número

é ainda mais crítico: somente 14,1%, como é possível observar no gráfico a seguir.

GRÁFICO 3 - TAXA DE ESCOLARIZAÇÃO LÍQUIDA NO BRASIL

Page 36: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

35

Apesar dos inquestionáveis avanços, a educação superior brasileira continua

excludente e inacessível a uma parcela significativa da população, em especial para

os jovens das classes trabalhadoras (BITTAR; OLIVEIRA; MOSORINI, 2008).

Segundo Zago (2006), mesmo com as mudanças no cenário das universidades

brasileiras, ingressar numa graduação pública permanece ―inatural‖ e distante da

realidade de muitos jovens. Como mostrado anteriormente, essa política de

favorecimento da expansão do setor privado teve continuidade nos governos de Luiz

Inácio Lula da Silva (2003 a 2010), ―apesar de apresentar índices de crescimento

menores que o governo anterior‖ (CHAVES; AMARAL, 2015, p. 101).

Outra medida de favorecimento a iniciativa privada foi o FIES (Fundo de

Financiamento Estudantil). Criado em 2001, é um programa destinado a financiar as

graduações de estudantes matriculados em faculdades particulares na forma da Lei

10.260/20012. Trata-se de um empréstimo bancário que deverá ser pago após a

formatura nos termos do contrato assinado. É possível perceber o crescente

investimento por parte do Governo quanto ao orçamento destinado aos

financiamentos estudantis. No período de onze anos, o aumento foi de

aproximadamente 2.000%, que pode ser constatado na tabela abaixo:

TABELA 1 Evolução do FIES: Orçamento destinado pelo MEC para financiamentos

ANO Orçamento (R$)

2005 787.142.868 2006 913.774.135 2007 970.078.787 2008 1.169.059.300 2009 1.387.026.106 2010 1.724.850.519 2011 2.466.539.276 2012 5.357.453.931 2013 7.573.228.995 2014 12.252.517.111 2015 17.851.186.531

2016 18.732.625.658

Fonte: Autoria própria a partir dos dados do Ministério da Educação (MEC, 2016).

2 Disponível em http://sisfiesportal.mec.gov.br. Acesso dia 02/03/2017.

Page 37: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

36

2.3. O RIO GRANDE DO NORTE NO CONTEXTO DAS MUDANÇAS NO ENSINO

UNIVERSITÁRIO

Em 25 de Junho de 1958 foi criada a Universidade do Rio Grande do Norte

que, com a responsabilidade do governo, agrupou diversas faculdades particulares

existentes em Natal (INEP, 2006). Em menos de dois anos, em 18 de dezembro de

1960, foi federalizada, passando a ser denominada Universidade Federal do Rio

Grande do Norte (UFRN). Inicialmente, contava com os cursos de Farmácia e

Odontologia, Direito, Medicina, Filosofia e Serviço Social. Em seguida, agregou a

Escola de Engenharia. Com uma década de instalação, a UFRN atendia mais de

3.600 estudantes, com uma considerável estrutura física que incluía não apenas

estudantes do ensino superior, mas da Escola Doméstica, Escola de Música,

Colégio Agrícola de Jundiaí e a Escola de Auxiliar de Enfermagem (NEWTON

JUNIOR et al, 2005).

A respeito do ensino superior potiguar como um todo, a Reforma Universitária

de 1968 teve uma grande influência na expansão, uma vez que definiu a

universidade como instituição acadêmica de excelência, mobilizando os poderes

políticos e intelectuais em prol da sua permanência (INEP, 2006). Os departamentos

substituíram as cátedras e as chefias passaram a ter um caráter rotativo. Os

vestibulares deixaram de ser eliminatórios e assumiram uma função classificatória.

Praticamente todas as iniciativas de consolidação do ensino superior no Rio

Grande do Norte, até 1970, partiram da sociedade civil, por meio das associações

de classe, elites políticas e intelectuais, tanto em Natal quanto em Mossoró. ―A

escolha dos cursos que a constituíram revela a tendência adotada no país em

privilegiar a formação para as elites e a preparação de quadros para a burocracia

pública‖. (INEP, 2006, p. 25).

No Rio Grande do Norte a iniciativa privada fortaleceu suas ações a partir de

1971, com a criação do Centro Integrado de Formação de Executivos, que tinha

como principal objetivo a ministração de cursos para atender às necessidades do

mercado. Nessa época já havia uma grande demanda pelo ensino superior que não

era atendida pelo poder público. Além dos fortes incentivos dados a política

privatista que contavam com bolsas de estudos, isenções fiscais e demais medidas

Page 38: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

37

que criaram condições favoráveis para a expansão das instituições de ensino

privado no estado.

A década de 80, acompanhando o cenário nacional, foi de estagnação nas

instituições de ensino superior potiguares. Na primeira metade da década de 90, no

período que abrange 1991-1996, as pequenas faculdades foram sendo incorporadas

por outras de maior porte ou reunindo-se em torno de um único centro de ensino,

sejam faculdades ou universidades integradas. As mudanças na Legislação (a Lei

de Diretrizes e Bases da Educação Nacional/LBD nº 9394/96 e seus decretos

complementares) propiciaram o surgimento de novos formatos institucionais,

possibilitando uma grande diversidade de estabelecimentos e de cursos de

educação superior voltados exclusivamente ao ensino. A privatização ganhou então

um maciço incentivo perdurado nos anos seguintes.

Segundo dados do Mapa do Ensino Superior (2016), o ensino privado no Rio

Grande do Norte, de 2009 a 2014, obteve um crescimento de 44% em relação ao

número de matrículas. Enquanto o ensino público presencial apresentou um

crescimento de cerca de 20%.

GRÁFICO 4 - MATRÍCULAS EM CURSOS PRESENCIAIS NO RN, 2009-2014

Page 39: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

38

Em comparação com o restante do país, de acordo com os dados do Censo

de 2014, o estado do Rio Grande do Norte conta com apenas 1,7% das matrículas

em cursos presenciais de ensino superior do país.

A fim de expandir os cursos de graduação e pós-graduação, em 2007 a

UFRN aderiu ao Programa de Expansão e Reestruturação das Universidades

Federais (REUNI), criado pelo Decreto n° 6.096/2007. Em seu primeiro artigo é

apresentado o principal objetivo do programa que é criar condições para a

ampliação do acesso e permanência na educação superior. A medida aponta as

seguintes diretrizes:

I - redução das taxas de evasão, ocupação de vagas ociosas e aumento de vagas de ingresso, especialmente no período noturno; II - ampliação da mobilidade estudantil, com a implantação de regimes curriculares e sistemas de títulos que possibilitem a construção de itinerários formativos, mediante o aproveitamento de créditos e a circulação de estudantes entre instituições, cursos e programas de educação superior; III - revisão da estrutura acadêmica, com reorganização dos cursos de graduação e atualização de metodologias de ensino-aprendizagem, buscando a constante elevação da qualidade; IV - diversificação das modalidades de graduação, preferencialmente não voltadas à profissionalização precoce e especializada; V - ampliação de políticas de inclusão e assistência estudantil; e VI - articulação da graduação com a pós-graduação e da educação superior com a educação básica.

Ao longo de sete anos do pacto, mais de 50 mil estudantes conseguiram

ingressar na UFRN, número superior ao acordado com o Governo Federal. É

inegável a importância dessa iniciativa para a expansão do ensino público norte-

riograndense.

TABELA 2: Matrículas projetadas pelo REUNI, UFRN: 2007-2014

ANO PACTUADA EXECUTADA

2007 - 4.183

2008 4.263 4.169 2009 6.049 5.805 2010 6.642 6.467 2011 6.807 6.937 2012 7.112 7.201 2013 7.112 7.671 2014 7.112 7.665

Total 49.097 50.098

Fonte: Autoria própria, a partir dos Dados do SESu- MEC/ SIGAA-UFRN, 2017.

Page 40: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

39

Em consonância com o item V proposto pelo REUNI, o decreto Nº

7.234/2010 dispõe sobre o Programa Nacional de Assistência Estudantil – PNAES,

que tem como objetivos:

I – democratizar as condições de permanência dos jovens na educação superior pública federal; II - minimizar os efeitos das desigualdades sociais e regionais na permanência e conclusão da educação superior; III - reduzir as taxas de retenção e evasão; e IV - contribuir para a promoção da inclusão social pela educação.

As ações de assistência estudantil do PNAES deverão ser desenvolvidas nas

seguintes áreas: moradia estudantil, alimentação, transporte, atenção à saúde,

inclusão digital, cultura, esporte, creche, apoio pedagógico, acesso, participação e

aprendizagem de estudantes com deficiência, transtornos globais do

desenvolvimento e altas habilidades e superdotação.

Por meio da PROAE (Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis), são oferecidas a

comunidade acadêmica os seguintes programas e projetos de assistência3:

Programa de Atenção à Saúde Mental do Estudante: Atendimento breve

aos estudantes com fins de acolhimento a demandas pontuais, tanto no

âmbito pessoal, quanto no âmbito acadêmico, objetivando realizar o

encaminhamento adequado para cada caso, quando necessário.

Atendimento individual: Psicoterapia de apoio aos discentes,

acompanhamento psicoterapêutico, atendimento emergencial.

Atendimento Psiquiátrico: consulta e acompanhamento psiquiátrico a

estudantes.

Grupos de Apoio Terapêutico (GATs): São grupos de psicoterapia para

estudantes com atividades terapeutizantes, dinâmicas de grupo, dentre

outras atividades para minimizar os conflitos vivenciados. Há também a

oportunidade de escuta individual dos participantes após as atividades

com a psicóloga facilitadora.

Projeto de Extensão Hábitos de Estudo (PHE): desenvolvimento de

habilidades acadêmicas em estudantes universitários. São realizadas ações

3 Disponível em www.proae.ufrn.br. Acesso dia 02/03/2017.

Page 41: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

40

preventivas de apoio aos graduandos no desenvolvimento de suas

competências para estudar, buscando favorecer a aquisição de estratégias e

hábitos de estudo adequados às exigências atuais acadêmicas e de

preparação profissional.

Assistência médica e odontológica: é direcionada aos estudantes

residentes e aos considerados prioritários, ou seja, aqueles que possuem

baixa renda familiar e que, portanto, recebem algum auxílio da universidade.

Auxílio Óculos: A PROAE oferece para estudantes em primeira graduação

que apresentam situação de vulnerabilidade socioeconômica subsídio nas

despesas para aquisição de óculos com lentes corretivas, respeitando-se a

periodicidade mínima de doze meses para cada solicitação, contribuindo para

sua permanência e conclusão da Educação Superior através de recurso

financeiro no valor de até duzentos reais.

Auxílio financeiro para aquisição de instrumentos odontológicos: Visa

atender aos discentes do curso de Odontologia da UFRN, que apresentam

situação de vulnerabilidade socioeconômica e que necessitam de subsídio

nas despesas para aquisição de material odontológico voltado para as

necessidades dos componentes curriculares cursados, respeitando-se a

periodicidade semestral a cada nova solicitação.

OUTROS: Auxílio moradia em espécie, bolsa alimentação, auxílio

alimentação em espécie, auxílio transporte, auxílio creche, bolsa atleta,

bolsas de apoio técnico, além de apoio para participação em eventos

científicos, culturais, esportivos e políticos.

Para ser classificado em uma situação de vulnerabilidade socioeconômica, o

estudante deve possuir uma renda per capita igual ou inferior a um salário mínimo,

além de avaliação do índice de carência com os seguintes indicadores:

I – situação atual de moradia do aluno (casa de estudante, com a família, com amigos, dividindo as despesas, com os pais, no local de trabalho, com parentes ou amigos, em pensionato, sozinho com recursos próprios, sozinho com recursos da família); II – condição patrimonial da moradia do aluno (alugada, cedida, própria em aquisição, própria quitada); III – participação do aluno, ou não, na renda familiar; IV – informações sobre o trabalho do aluno (local, salário mensal, CTPS);

Page 42: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

41

V – quando casado o aluno, os dados do cônjuge e do núcleo familiar (salário do cônjuge, renda familiar, número de dependentes); VI – situação sócio-econômica da família do aluno (profissão, local de trabalho, escolaridade, renda mensal do pai e da mãe); VII – situação de saúde da família (doenças genéticas, crônicas); VIII – itens de conforto familiar e respectivas quantidades (aparelho de som, celular, empregado doméstico, moto, computador, geladeira, telefone fixo, carro, aparelho de dvd, máquina de lavar roupa, televisor, banheiro); IX – ter cursado o ensino básico em escola pública, filantrópica ou escola particular com bolsa. (RESOLUÇÃO N° 026/2009-CONSAD)

De acordo com as informações apresentadas nesses escritos, através da

PROAE, a UFRN oferece diversos auxílios aos estudantes populares que, embora

sejam limitados, são cruciais na permanência dos graduandos em situação de

vulnerabilidade social. Como estudante de graduação, nos momentos mais decisivos

e difíceis, ao recorrer à assistência ao estudante, tive acesso a consultas médicas e

exames, auxílio-alimentação e moradia, além das bolsas de apoio técnico, monitoria,

extensão e iniciação à docência que participei. Sem essa assistência oferecida pela

universidade, certamente não teria concluído meu curso.

Como destacou Ferreira (2014) e Coulon (2008), foi preciso, antes de mais

nada, conhecer esses dispositivos institucionais e, baseado nas minhas vivências e

relatos na pesquisa de campo, esses programas são pouquíssimos divulgados e

conhecidos no meio acadêmico. Meu conhecimento sobre esses mecanismos se

deu através de colegas, também populares e, a partir de então, por diversas vezes

fui a divulgadora dos auxílios institucionais para diversos conhecidos e amigos na

universidade.

Encerra-se esse primeiro capítulo com as seguintes provocações: O ensino

público brasileiro foi de fato democratizado? Ou ainda, o que é democratização das

universidades? De acordo o o que foi exposto até o presente momento, infere-se

que democratizar o acesso não se restringe ao aumento de quantidade de vagas

nos cursos superiores. Dentre os diversos fatores que fogem do senso comum sobre

a expansão universitária, é preciso averiguar em quais instituições de ensino os

estudantes populares encontram acolhida. Sabe-se que a maior parte dos

graduandos populares está nas faculdades particulares. Destaca-se também que o

percentual de jovens em idade ideal para cursar o ensino superior ainda é

Page 43: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

42

baixíssimo no país. A maioria dos jovens brasileiros permanece distante da

universidade.

Além disso, não basta inserir o estudante no ensino superior. É preciso

propiciar uma expansão das políticas de assistência que colaborem com a

permanência dos estudantes populares. Nos capítulos seguintes, serão abordados,

além dos aspectos formais de permanência, as estratégias de socialização que

abrangem esferas pouco trabalhadas quando se refere à sobrevivência dos

estudantes pobres. São fundamentalmente nesses elementos sociabilizantes que

discorreremos ao longo dessa pesquisa.

Page 44: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

43

CAPÍTULO 3

POR ONDE ANDEI: ROTEIRO DE PESQUISA E ITINERÁRIO

METODOLÓGICO

— "Poderia me dizer, por favor, que caminho devo tomar para sair daqui?" — "Isso depende bastante de onde você quer chegar", disse o Gato. — "O lugar não me importa muito...", disse Alice. — "Então não importa que caminho você vai tomar", disse o Gato. — “... desde que eu chegue a algum lugar", acrescentou Alice em forma de explicação. —"Oh, você vai certamente chegar a algum lugar", disse o Gato... "se caminhar bastante"...

Lewis Carroll

A pesquisa exigiu, como em todo processo científico, que fossem realizadas

escolhas em meio a diversas possibilidades metodológicas, teóricas e estratégicas.

E apesar de todos os percalços e angústias, trilhamos o nosso próprio caminho

contando sempre com o auxílio dos rastros dos intelectuais que passaram antes de

nós. No presente capítulo, explanaremos sobre a jornada científica, focando

principalmente nos aspectos metodólogicos do estudo sobre a socialização e

estratégias de permanência dos estudantes populares na universidade.

Com o intuito de vislumbrar a dinamicidade e os múltiplos sentidos das

vivências na academia, em conjunto com o fazer etnográfico, adotou-se a

etnometodologia como uma perspectiva de pesquisa e, mais do que isso, como uma

postura intelectual. Seguindo um caminho etnometodológico, o trabalho buscou nas

metodologias qualitativas uma saída para a compreensão, mesmo que parcial, da

teia de sentidos da vida universitária. Ao utilizarmos alguns dados quantitativos em

nossa exploração, eles são considerados como mostras significativas, usando-os

com o objetivo de colaborar em um entendimento mais abrangente dessa realidade,

eventualmente comparativo, não tendo a conotação de um quadro probabilístico, isto

é, sem qualquer caráter preditivo.

Partindo dessa premissa, buscou-se encarar com destemor a incompletude

de uma pesquisa que envolve a análise de significados das ações dos indivíduos em

sua condição humana e complexa. Acredita-se que refletir acerca da permanência

Page 45: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

44

de estudantes populares na universidade, um meio ambiente de pesquisa tão

familiar, requer uma postura crítica da realidade e sem o aporte socioantropológico,

esse objetivo não seria alcançado.

3.1. UM PASSO DE CADA VEZ: ETAPAS DA PESQUISA

A pergunta de partida do presente estudo foi: “Como um estudante de origem

popular sobrevive na universidade?”. O propósito principal não foi a análise do

ingresso ou a evasão, mas a permanência desses estudantes no ambiente

acadêmico. A fim de responder essa indagação e a necessidade de delimitar o

campo investigativo, realizou-se uma pesquisa no site de ―Mostra de Profissões‖ da

UFRN4. Na página, identificou-se a divisão de três grandes áreas acadêmicas:

Humanas, Tecnológicas e Biomédicas e como primeiro passo da investigação,

adotou-se essa mesma categorização em nosso trabalho.

O segundo passo foi a escolha dos cursos. Decidiu-se que o lócus seria

composto por duas graduações de cada grande área, sendo uma considerada

―popular‖ e outra de ―elite‖, respectivamente (Figura 1). Na escolha, observou-se a

tradição acadêmica, a concorrência para o ingresso e, principalmente, o prestígio e

imaginário social. No entanto, vale frizar que para a delimitação das graduações de

elite, notou-se que, como destaca Carneiro e Sampaio (2011), todos os profissionais

dessas áreas (Engenharia Civil, Odontologia e Direito) são comumente tratados no

senso comum como ―doutores‖, independentemente de possuírem a titulação

acadêmica correspondente.

FIGURA 1 - LÓCUS DE PESQUISA. Autoria da pesquisadora, 2017.

4 Disponível em <http://www.mostradeprofissoes.prograd.ufrn.br/>. Acesso no dia 10/03/2016.

Page 46: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

45

Dentre os 118 cursos ofertados pela UFRN5, divididos entre as três grandes

áreas, realizou-se a escolha dos seis cursos, considerando os critérios acima citados

e conforme nossas próprias vivências na universidade. Assim, os atores

pesquisados foram os estudantes das graduações de Ciências Sociais e Direito

(Humanas), Ciências Biológicas e Odontologia (Biomédica) e Matemática e

Engenharia Civil (Tecnológicas). É importante destacar que os três cursos populares

são licenciaturas, tendo em vista que, como aponta Ferreira (2016, p. 166), os

estudantes de famílias de baixa renda são encaminhados para diplomas de menor

valor e retorno financeiro, em um processo denominado de especialização social.

Feita essa importante escolha, como terceiro passo, pesquisou-se no

Sistema Integrado de Gestão de Atividades Acadêmicas (SIGAA)6 a listagem dos

cursos delimitados, as turmas ministradas no semestre de 2015.2 e foram enviados

e-mails aos docentes solicitando a realização da atividade antes das aulas.

Continuamos a caminhada com o quarto passo, realizando as etnografias e

a aplicação de questionários em turmas a partir do 3º período. Delimitam-se essas

fases mais adiantadas da formação (ZAGO, 2006), justamente devido ao foco na

permanência e que, de acordo com Coulon (2008) é no primeiro ano que ocorre o

maior número de desistências.

Com o aval dos docentes, no mês de novembro de 2015, estivemos em

diversas salas de aula onde são ministradas as disciplinas dos cursos pesquisados:

setor I (Direito), II (Ciências Sociais), III e IV (Engenharia Civil e Matemática), Centro

de Biomédicas (Biologia) e o Departamento de Odontologia da UFRN.

Foi um total de 128 questionários (Quadro 01) aplicados e, dentre as

graduações pesquisadas, a que mais contou com estudantes com a renda familiar

de até dois salários mínimos foi Matemática (46%). O curso com o menor índice de

discentes nesse perfil salarial foi Engenharia Civil (3%). No que diz respeito à faixa

etária, a graduação que apresentou o maior número de estudantes com a idade

teoricamente adequada para cursar esse nível de ensino (FERREIRA, 2016), de 18

5 Disponível em <https://sigaa.ufrn.br/sigaa/public/curso/lista.jsf?nivel=G&aba=p-graduacao>. Acesso

no dia 03/01/2017. 6 Disponível em

<https://sigaa.ufrn.br/sigaa/public/componentes/busca_componentes.jsf?nivel=G&aba=p-graduacao>. Acesso no dia 10/03/2016.

Page 47: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

46

a 24 anos, foi Odontologia (93,3%). O curso que mostrou um público mais velho foi

Ciências Sociais com 47,3% dos estudantes com 18 a 24 anos.

Segundo Zabalza (2004), com as diversas mudanças sociais referentes ao

acesso da mulher ao ensino superior, em diversos cursos, principalmente na área do

ensino e da saúde, observa-se uma crescente ocupação feminina nas cadeiras

universitárias. Sobre a participação da mulher na amostragem, destaca-se que o

curso de Odontologia contou com 76,6%, enquanto Ciências Sociais retratou apenas

um percentual de 21% de contigente feminino. Os demais cursos mostraram certo

balanceamento entre os gêneros, inclusive no curso de Engenharia Civil com grande

tradição masculina.

QUADRO 1 - QUANTITATIVO DOS QUESTIONÁRIOS APLICADOS NAS GRADUAÇÕES

DA UFRN, 2015.

CURSO Nº Quest. respondi

dos

Estudantes com renda

familiar de até dois salários mínimos (%)

Faixa etária 18 – 24 anos

(%)

Gênero (%)

Mulheres Homens

Ciências Sociais 19 37% 47,3% 21,0% 79,0%

Direito 21 5% 90,0% 50,0% 50,0%

Matemática 13 46% 61,5% 46,0% 54,0%

Engenharia Civil 29 3% 89,7% 41,3% 58,7%

Ciências Biológicas 16 31% 87,5% 56,3% 43,7%

Odontologia 30 23% 93,3% 76,6% 23,4%

Total de questionários

aplicados 128

Fonte: Questionários da pesquisa, UFRN, 2015-2016.

No que diz respeito à origem escolar (Gráfico 05), o curso de Ciências

Biológicas foi a graduação popular que mais apresentou estudantes oriundos do

ensino privado (63%). Enquanto na licenciatura em Matemática, por sua vez, 84%

tem sua origem escolar no ensino público. Na graduação em Ciências Sociais

percebemos que 52% dos graduandos vieram de escolas públicas, ou seja, dos

cursos delimitados na pesquisa, foi o que relevou as origens escolares mais

balanceadas.

Page 48: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

47

Dentre todas as graduações, Odontologia mostrou apenas 20% de

estudantes vindos de escolas públicas. No aspecto da vida escolar, ficou evidente

que grande parte dos discentes da rede pública encontrou, nos cursos de baixo

prestígio social, as possibilidades reais de cursarem o ensino superior.

GRÁFICO 5 - ORIGEM ESCOLAR: ESTUDANTES PESQUISADOS DA UFRN / 2015 (%)

Fonte: Autoria própria com base nos questionários da pesquisa, UFRN, 2015.

Para fins comparativos de uma realidade mais ampla, consultou-se o

Observatório da Vida do Estudante (OVEU), que é um centro de informações

estatísticas sobre os discentes que ingressam na UFRN, com dados de 2000 a

2013. Acerca das origens escolares percebe-se que em Odontologia e Direito, por

exemplo, a situação variou pouco ao longo dos anos, permanecendo com um

público majoritariamente oriundo de escolas particulares, assim como se evidenciou

em nossa pesquisa. Em Direito (Gráfico 06), o número de estudantes exclusivos da

escola pública passou de 15% em 2000 para 25% em 2013, apresentando 75% de

estudantes da iniciativa privada.

37

84

52

20 32 35

63

16

48

80 68 65

CIÊNCIASBIOLÓGICAS

MATEMÁTICA CIÊNCIASSOCIAIS

ODONTOLOGIA ENGENHARIACIVIL

DIREITO

Todo em escola pública Todo em escola particular

Page 49: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

48

GRÁFICO 6 - ORIGEM ESCOLAR DOS ESTUDANTES DE DIREITO DA UFRN: 2000-2013 (%)

Fonte: Autoria própria a partir dos Dados do Observatório da Vida do Estudante, UFRN, 2016.

Em Odontologia (Gráfico 05), o número de estudantes de escola pública

aumentou de 2% em 2000 para 22% em 2013. Embora seja digno de notável

avanço, para ser denominado de ―democrático‖, as políticas afirmativas nessa

graduação ainda precisam evoluir muito.

GRÁFICO 7 - ORIGEM ESCOLAR DOS ESTUDANTES DE ODONTOLOGIA DA UFRN: 2000-2013 (%)

Fonte: Autoria própria a partir dos Dados do Observatório da Vida do Estudante, UFRN, 2016.

Essa lógica restritiva fica ainda mais evidente quando nos debruçamos na

análise da renda familiar dos estudantes pesquisados. De acordo com Pereira e

0102030405060708090

100

20

00

20

01

20

02

20

03

20

04

20

05

20

06

20

07

20

08

20

09

20

10

20

11

20

12

20

13

Todo em escolapública

Todo em escolaparticular

0102030405060708090

100

20

00

20

01

20

02

20

03

20

04

20

05

20

06

20

07

20

08

20

09

20

10

20

11

20

12

20

13

Todo em escolapública

Todo em escolaparticular

Page 50: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

49

Passos (2007), apenas 8,2% dos universitários do país pertencem a famílias com

renda de até dois salários mínimos. Nos dados da pesquisa, apenas as graduações

populares contaram com alguns discentes com renda familiar de até um salário

mínimo, enquanto somente os cursos elitistas apresentaram estudantes com renda

familiar acima de 20 salários mínimos.

O curso de Matemática, por sua vez, demonstrou que 45% dos estudantes

possuiam renda familiar de até dois salários mínimos. Foi a graduação que mais

apresentou o critério econômico para determinação da condição de estudantes

populares.

Nos dados do OVEU, dentre as variáveis, uma categoria agrupou as rendas

familiares de um até cinco salários mínimos. Esse recorte tão amplo limitou a análise

sobre o estudante de origem popular. Entretanto, algumas informações muito

pertinentes são disponibilizadas nesse banco de dados. No curso de Matemática,

percebe-se que em 2001, o número de estudantes com renda familiar acima de 20

salários mínimos era de 51%. Ao longo dos anos houve um grande salto no ingresso

de estudantes com até cinco salários mínimos. Em 2004, eram cerca de 15% e no

ano seguinte, passaram a ser 60%. Em 2007, alcançou o seu máximo com 76% de

discentes com esse perfil de renda familiar.

GRÁFICO 8 - RENDA FAMILIAR DOS ESTUDANTES DE MATEMÁTICA DA UFRN: 2000-2013 (%)

Fonte: Autoria própria a partir dos dados do Observatório da Vida do Estudante, UFRN, 2016.

Como uma possível justificativa desse aumento tão expressivo em 2007,

sabe-se que no ano anterior entrou em vigor na UFRN o Argumento de Inclusão.

0

10

20

30

40

50

60

70

80

90

100

20

00

20

01

20

02

20

03

20

04

20

05

20

06

20

07

20

08

20

09

20

10

20

11

20

12

20

13

Até 1 salário mínimo

Mais de 1 até 5 saláriosmínimos

Mais de 5 até 10salários mínimos

Mais de 10 até 20salários mínimos

Mais de 20 saláriosmínimos

Page 51: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

50

Siginificava uma pontuação extra destinada ao candidato da rede pública que

conseguia aprovação nas etapas iniciais do vestibular, tornando-o mais competitivo

em relação aos demais concorrentes. Para se beneficiar do Argumento de Inclusão,

o candidato deveria ter cursado todo o Ensino Médio e parte do Ensino Fundamental

na rede pública, na modalidade regular (não Supletivo). Ao longo de cinco anos, de

2006 a 2010, 1.282 estudantes foram matriculados com o benefício do Argumento

de Inclusão.

Percebe-se na tabela 03, com maior clareza, que o número de estudantes

escritos no vestibular oriundos de escolas públicas, de 2003 a 2009, aumentou cerca

de 35%. Entretanto, no que se refere ao Argumento de Inclusão, de acordo com

dados do Observatório da Vida do Estudante, em 2007 apenas 127 estudantes

matriculados foram beneficiados com o argumento.

Em seu último ano em vigor, 2010, 765 estudantes usufruiram dessa medida

afirmativa, um número baixo se levado em consideração o público ingressante nesse

período de 15.661 estudantes7.

Na Tabela 4, que versa sobre as escolas de origem dos matriculados, em

2003 apenas 31,2% advinham de instituições de ensino públicas, em 2009 esse

número passou a ser de 35,6%, um avanço de apenas 4,4%.

7 Disponível em: http://dados.ufrn.br/dataset/discentes. Acesso em 30/03/2017.

Page 52: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

51

TABELA 3 - Inscritos e matrículados da UFRN

Vale salientar que nos dados da nossa pesquisa, embora tenha sido

delimitado a categoria de até dois salários mínimos, percebe-se que no curso de

Matemática, 84% da turma tem uma renda mensal de até cinco salários mínimos

(Gráfico 07). Em Direito, esse número é de apenas 23%.

GRÁFICO 9 - RENDA FAMILIAR: ESTUDANTES PESQUISADOS DA UFRN / 2015 (%)

Fonte: Autoria própria a partir dos questionários da pesquisa, UFRN, 2015.

18 15 5

12 30

30 24

3 4

70 39

40

24

27 19

8 20

16

32

19

8 5

30 20

38

6 18 20

CIÊNCIASBIOLÓGICAS

MATEMÁTICA CIÊNCIASSOCIAIS

ODONTOLOGIA ENGENHARIACIVIL

DIREITO

Até 1 salário mínimo Mais de 1 até 2 salários mínimosMais de 2 até 5 salários mínimos Mais de 5 até 10 salários mínimosMais de 10 até 20 salários mínimos Mais de 20 salários mínimos

Page 53: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

52

Além dos dados quantitativos, um dos principais objetivos dos questionários

foi encontrar estudantes da UFRN que atendessem os seguintes indicadores de

condição social desfavorecida (PEREIRA; PASSOS, 2007):

(1) Ter concluído o ensino básico em escola pública, de preferência

integralmente;

(2) Ter renda familiar de até dois salários mínimos (Classe E/IBGE);

(3) Pais com profissões de pouco prestígio social e baixa escolaridade.

Com o exame dos questionários, identificou-se os possíveis entrevistados de

acordo com os indicadores e agendamos as entrevistas semiestruturadas com os

sujeitos. Em nosso quinto passo, iniciou-se os diálogos com seis representantes da

classe popular, um de cada curso delimitado. Antes de começarmos as conversas,

pedimos para que os entrevistados escolhessem o seu pseudônimo de acordo com

sua área de conhecimento. Tal postura foi encontrada em outros trabalhos que

adotam essa perspectiva, especialmente a obra de Oliveira (2006).

As nomenclaturas adotadas pelos entrevistados foram inspiradas nas suas

graduações e, em alguns casos, homenagens a autores, como no caso da estudante

de Ciências Sociais que decidiu ser chamada de Ruth em homenagem a grande

antropóloga americana Ruth Benedict (1887-1948). Os outros nomes foram

inspirados em áreas de conhecimento, elementos de estudos ou até mesmo,

conceitos como é o caso da estudante de Matemática que será chamada de

Hipotenusa.

A fim de apresentar os sujeitos e seus respectivos cursos, ano de ingresso,

período e demais informações gerais, a seguir encontra-se o Quadro de

Entrevistados sobre os depoimentos com os interlocutores.

Page 54: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

53

QUADRO 2 - ENTREVISTADOS DA PESQUISA, UFRN, 2015-2016

Fonte: Dados da pesquisa, 2015-2016.

Pseudônimo Idade

Curso Ano de

Ingresso Período Domiciliado em:

Profissão do pai e escolaridade

Profissão da mãe e

escolaridade

Renda familiar (SM)

Data e situação da entrevista

Rosa, 21 anos

Ciências Biológicas

2012.1

8º Natal/RN Planalto –

Zona Oeste

Desempregado, Ensino

Fundamental

Dona de casa, Ensino médio

Menos de 1 salário mínimo

23/11/15 Centro de

Biociências da UFRN.

Ruth, 23 anos

Ciências Sociais

2012.1 8º Parnamirim/RN

Nova Parnamirim

Agricultor Ensino

Fundamental Incompleto

Dona de casa Ensino

Fundamental Incompleto

1-2 SM 10/11/15

Praça do CCHLA da UFRN.

Hipotenusa, 21 anos

Matemática 2014.1 5°

Natal/RN Planalto –

Zona Oeste

Torneiro mecânico,

Ensino Fundamental

Operadora de máquinas,

Ensino Fundamental

1-2 SM 31/05/16

Setor III da UFRN.

Dentina, 20 anos

Odontologia 2014.1 5º Natal/ RN

Cidade Satélite Pedreiro,

Ensino Médio

Dona de casa, Ensino

Fundamental Incompleto

1-2 SM

01/03/2016 Dep. de

Odontologia. Muito barulho de obra.

Barbotina, 19 anos

Eng. Civil 2014.2 4º Natal/RN Planalto –

Zona Oeste

Montador de móveis

Ensino Médio

Costureira, Ensino Médio

1-2 SM

26/11/15 Centro de

Biociências da UFRN.

Jurista, 19 anos

Direito 2015.1 4º

Natal/RN – Zona Sul:

Residência Universitária

Pescador, Ensino

fundamental.

Pensionista, Ensino Médio

1-2 SM

29/06/16 Residência

Universitária da UFRN.

Page 55: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

54

Ancorando-se em uma perspectiva socioantropológica, se buscou o diálogo

com os sujeitos/autores/atores, sempre cientes da importância de suas narrativas e

vivências. No que se refere, especificamente, a etnografia na pesquisa educacional

contemporânea Eckert e Rocha (2003) afirmam:

A etnografia consiste em descrever práticas e saberes de sujeitos e grupos sociais a partir de técnicas como observação e conversações, desenvolvidas no contexto de uma pesquisa. Interagindo-se com o Outro, olha-se, isto é, ―ordena-se o visível, organiza-se a experiência‖ conforme propõe Régis Debray. O etnógrafo descreve, tradicionalmente em diários, relatos ou notas de campo, seus pensamentos ao agir no tempo e espaço histórico do Outro-observado, delineando as formas que revestem a vida coletiva no meio urbano. (p. 3)

Como parte da metodologia, utilizou-se a etnografia na pesquisa. Foi no

lócus, a universidade, transitando em meio aos estudantes com um diário de campo

em uma mão e uma câmera fotográfica em outra, que o nosso trabalho ganhou os

primeiros contornos. Inserir-se no campo requer persistência e principalmente,

desprendimento. No meu caso, foi preciso estar disposta a conhecer de uma

maneira nova um lócus familiar que, sem dúvida, me surpreenderia.

Ao todo percorri, juntamente com minhas colegas de pesquisa, nove meio

ambientes, sendo eles: o Setor II, III, IV, V, Centro de Biociências, Residência

Universitária e Departamento de Odontologia da UFRN. O último foi o único que não

se localiza dentro do Campus Universitário. Cada uma das localidades possui sua

própria dinamidade e cultura acadêmica, bem como seus códigos e público. Como

em toda instituição universitária não se pode falar em homogeneidade e sim, em

pluralismo. A fim de situar o leitor acerca dos vários percursos do estudo, apresenta-

se a seguir um mapa da UFRN com destaques da localização dos setores.

Page 56: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

55

FIGURA 2 - Mapa da UFRN e os seus setores (Em amarelo, os lócus de pesquisa percorridos). Autoria da Secretaria de Relações Internacionais e Interinstitucionais – SRI (com modificações da pesquisadora), 2017.

Page 57: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

56

Segundo Uriarte (2012), há um grande interesse na etnografia nas mais

diversas áreas de conhecimento. Segundo a antropóloga, o método etnográfico

consiste em três etapas: A formação, o trabalho de campo e a escrita. O fazer

etnográfico é muito mais que um ―modismo‖ ou uma maneira de executar um

trabalho de campo, envolve profundamente as teorias e o método, tornando-os

inseparáveis.

Entretanto, a autora destaca que a realidade sempre superará a teoria. O que

em outras palavras quer dizer que o lócus sempre terá a capacidade de

surpreender, não importa o quanto acreditamos conhecer aquele contexto. ―Vamos a

campo munidos de teorias e voltamos retroalimentando-as, transformando-as‖

(URIARTE, 2012, p. 02). Além disso, realizar uma etnográfia é estabelecer relações

com os sujeitos e ―[...] damos voz, não por caridade, mas por convicção de que têm

coisas a dizer. E essa voz não é monológica, é dialógica. O pesquisador e o nativo

conversam, falam, dialogam.‖ (Ibid., p. 05)

Mattos (2001), por sua vez, defende que:

(...) a utilização de técnicas e procedimentos etnográficos, não segue padrões rígidos ou pré-determinados, mas sim, o senso que o etnógrafo desenvolve a partir do trabalho de campo no contexto social da pesquisa. Os instrumentos de coleta e análise utilizados nesta abordagem de pesquisa, muitas vezes, têm que ser formuladas ou recriadas para atender à realidade do trabalho de campo. Assim, na maioria das vezes, o processo de pesquisa etnográfica será determinado explícita ou implicitamente pelas questões propostas pelo pesquisador. (p. 50)

No próximo tópico, partilharei as experiências da pesquisa de campo,

evidenciando o olhar de uma pesquisadora nativa (VELHO, 1980). A linguagem

nessa seção, assim como no prólogo, será mais literária e pessoal. Um dos maiores

motivos dessa escolha é o caráter impressionista da narração das vivências e o

estilo próprio do fazer etnográfico. E isso pode ocorrer quando adentramos no

universo de uma abordagem etnográfica, com revelação de indícios do campo e

interação dos sujeitos na dinâmica acadêmica.

Page 58: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

57

3.2. O LÓCUS DE UMA ―PESQUISADORA NATIVA‖

LAR DOCE LAR: O SETOR II DA UFRN E O REENCONTRO.

Quarta-feira de um fim de semestre, 09 de Novembro de 2015. Ainda era dia

quando adentrei o ônibus em direção ao campus da UFRN. Agendamos a aplicação

do questionário em uma turma noturna de Ciências Sociais, durante a aula

ministrada por um dos docentes mais queridos do curso. Aquele caminho já fizera

incontáveis vezes durante os anos de faculdade. No entanto, eu não era mais uma

estudante de graduação em busca do meu diploma, tornei-me uma pesquisadora

realizando seu estudo de Mestrado. Pensar nisso me deixou desconfortável e tensa,

mas com uma mochila nas costas, segui rumo ao meu destino. Já diz o bom ditado

popular que ―uma boa filha a casa torna‖.

Ao longo dos anos, não fui a única a mudar. O setor II também passou por

reformas. Rampas de acesso aos portadores de deficiência física foram construídas,

mesas e bancos inseridos em um lugar que era famoso pela ausência de espaços

formais de sociabilidade (Figura 3).

FIGURA 3 - Pracinha do Setor II, UFRN. Fotografia por Dayse Araújo, 2015.

Sorri satisfeita com o que via, pois tudo estava melhor. O setor II é o principal

responsável pelo ensino das Ciências Humanas e graduações como História,

Geografia, Filosofia, Psicologia, Libras, Gestão de Políticas Públicas e Ciências

Sociais tem a maior parte das suas aulas ministradas nesse local. É um espaço

Page 59: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

58

muito plural e dinâmico, mas que carrega muitos preconceitos da comunidade

acadêmica. No imaginário estudantil, infelizmente, acredita-se que seja um território

exclusivo de ―maconheiros‖ e ―baderneiros‖. Contudo, ao ir além dos rótulos,

percebemos que há uma multiplicidade humana que ultrapassa as (pré)concepções

negativas.

FIGURA 4 - Bate papo no setor II, UFRN. Fotografia de Hania Cavalcante, 2015.

Quando cheguei ao corredor principal, constatei novamente toda a riqueza

desse universo acadêmico. Observei as pessoas com cabelos multicolores, óculos

redondos nos moldes dos anos 70, moças de turbantes e um rapaz tocando violão.

Embora não reconhecesse nenhum sujeito, havia muita semelhança com o que eu

me recordava. Nas paredes, vários ―grafites‖, assinaturas e frases de efeito. (Figura

4)

Agora então acompanhada da minha colega de base de pesquisa, Natália

Medeiros, entramos na sala para a aplicação dos questionários. A minha maior

surpresa da noite foi com o perfil visual da turma. Notoriamente, pela minha

estranheza, era muitíssimo diferente de tudo que fui acostumada. Por ser um curso

com tradição em acolher as classes populares, uma licenciatura noturna, a

graduação geralmente era composta por uma maioria de trabalhadores de origem

popular. Na turma na qual eu me encontrava, era marcante a presença de muitas

garotas que aparentavam ter saído do ―Festival Lollapalooza‖, importante evento de

música alternativa realizado anualmente em São Paulo. Trajavam botas, outras tênis

Page 60: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

59

caros, bolsas de couro de ―franjinhas‖, jaquetas: um estilo que, aparentemente,

demonstrava um bom poder aquisitivo.

O professor pediu que nos apresentássemos e em seguida fosse aplicado o

questionário e em apenas 10 minutos, todos já haviam respondido. Agradecemos a

turma e formos embora. Muito curiosa, rapidamente, folheei rapidamente os papéis e

pude confirmar minha suspeita. Os estudantes das Ciências Sociais, pelo menos

daquela turma específica, eram mais diversos do que eu imaginava. Além dos

estudantes de origem popular que eram esperados, existiam os filhos(as) de piloto

de avião, jurista e engenheiro agrônomo, por exemplo. Um campo, por mais familiar

que seja, sempre terá a capacidade de surpreender.

Velho (1980), ao tratar sobre a familiaridade na pesquisa, relata que

geralmente levamos ao campo nossos estereótipos sobre os sujeitos observados.

Olhares preliminares que, muitas vezes, transmitem uma dimensão de poder e

hierarquia que precisam ser refletidas sistematicamente. ―A realidade (familiar ou

exótica) sempre é filtrada pelo ponto de vista do observador‖ (VELHO, 1980, p. 129).

Aquilo que é considerado corriqueiro, como a vida universitária, não é

necessariamente conhecido na sua multiplicidade de significados e até mesmo o

que é considerado estranho, pode ser conhecido. Transformar o familiar em exótico

e o desconhecido em familiar é um exercício científico que visa a constante reflexão

do que é posto, buscando a interpretação da complexidade da vida social e sua teia

de sentidos.

Setor I: O Direito e as Ciências Sociais Aplicadas da UFRN.

10 de Novembro de 2015. Poucas vezes estive nesse espaço durante a minha

graduação. E até mesmo depois de formada, raramente transitei pelos corredores do

setor I, famoso pelo DCE (Diretório Central dos Estudantes) e pela cantina que serve

almoço aos que desejam e podem escapar das longas filas do Restaurante

Universitário (RU). Fui vestida com um traje social, na tentativa de mostrar seriedade

e não me destacar tanto entre os estudantes de Direito. Pelo que sabia e já havia

visto, em virtude dos estágios e audiências entre as aulas, a maioria usava esse tipo

de roupa no período letivo.

Quem me acompanhou nesse dia foi a minha colega de base de pesquisa,

Franklândia Moreira, juntas observamos a movimentação nas mesinhas de estudo.

Page 61: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

60

FIGURA 5 - Conversas no setor I, UFRN. Fotografia de Hania Cavalcante, 2015.

Era perceptível que os grupos comentavam sobre trabalhos acadêmicos.

Entre planejamentos de seminários e estudos para as avaliações, se ouvia risos e

olhadas rápidas nas redes sociais. O perfil era muito jovem, composto

principalmente por mulheres na faixa dos 18-24 anos de idade. No horário marcado,

a professora de Direito e coordenadora do curso chegou e nos dirigimos para a sala

que aplicaríamos os questionários. Ao observarmos a turma, percebemos o quanto

os estudantes correspondiam ao senso comum que eu carregava. Uma turma

composta majoritariamente por jovens brancos com roupas alinhadas e notebooks

caros sobre a mesa. Ao olhá-los, era impossível acreditar que havia algum

estudante popular naquela turma. E não existia mesmo. Saímos da sala e

conferimos rapidamente os questionários e, para nossa frustação, não havia

nenhum potencial entrevistado. 58% da turma possuia uma renda familiar (Gráfico 9)

acima de 10 salários mínimos e de todas as graduações, foi a que mais apresentou

sujeitos com renda familiar de mais de 20 salários mínimos (20%). Em busca de

nosso representante do Direito, foi da minha amiga a ideia de irmos conversar com

um grupo de cerca de dez estudantes que estavam no corredor.

Após nossa apresentação, falamos da pesquisa em curso e pedimos que

respondessem o questionário. O grupo foi muito solícito e dentre eles, se encontrava

Page 62: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

61

um dos coordenadores do Centro Acadêmico (CA) de Direito. Muito articulado e

simpático, rapidamente chamou uma colega que já se apresentou dizendo ―Eu sou

muito popular, viu?‖. Chegamos a realizar uma entrevista com essa estudante de 19

anos, moradora de Ceará Mirim/RN, cidade da região metropolitana. A jovem

acordava todo dia às 5h da manhã para vir de trem a Natal, era ex-aluna do Instituto

Federal do Rio Grande do Norte (IFRN) e atual estagiária de um importante tribunal.

Apesar de ter uma história de vida digna de destaque nessa pesquisa, graças

ao seu pai, récem-formado em Direito pelo ProUni, a moça não atendeu totalmente

os indicadores de condição social desfavorecida no que tange a escolaridade e

profissão paterna. Nosso entrevistado do Direito, que escolheu ser chamado de

Jurista, também com 19 anos, foi encontrado por intermédio de sugestões de

amigos e trataremos mais profundamente sobre sua história no Capítulo 03.

Setor III e IV: Matemática e Engenharia Civil

Os setores das Exatas, como sempre ouvimos falar nos corredores da

universidade, são muito diferentes de todos que observamos até então. Não me

refiro apenas a estrutura física com paredes cinzas, mas imediatamente nos chamou

a atenção a masculinização das graduações, algo que já conhecíamos. A imensa

maioria dos rapazes vestiam bermudas, camisetas casuais e chinelos de dedo.

Havia pouca interação social e as conversas não se estendem muito, se

assemelhando a apenas saudações educadas. Alguns estudantes, sozinhos,

demonstravam certa aflição na tentativa de resolver seus cálculos (FIGURA 06). A

sociabilidade tão comum no meu setor II, por exemplo, naquele meio ambiente era

raridade. Mesmo nos horários entre as aulas e até mesmo no intervalo, dificilmente

os grupos se envolviam em conversas mais animadas e prolongadas.

No dia 17 de Novembro de 2015, pela manhã, aplicamos o questionário em

uma turma de Engenharia Civil. Fomos recebidas, eu e Franklândia, por uma turma

muito simpática e solícita. Rapidamente responderam o questionário e a

representante da Engenharia Civil, denominada de Barbotina, era membro desse

grupo. Na turma, diferentemente do que se via nos corredores, existia um bom

número de mulheres (41,3%).

Page 63: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

62

FIGURA 6 - Estudo solitário no setor IV, UFRN. Fotografia de Dayse Araújo, 2015.

No dia 12 de Novembro de 2015, no turno noturno, aplicamos o questionário

na turma de Matemática. O público da noite é mais velho e muito assistiam aula

vestidos com seus fardamentos do trabalho. A turma que nos recebeu era de

Cálculo II, disciplina oferecida pelo Departamento de Matemática. Ao consultarmos

as respostas, identificamos que não havia nenhum futuro matemático na sala, sendo

a maioria composta por estudantes de Geologia.

Regressemos em busca de mais uma turma de Matemática em Maio de 2016

e fui sozinha na ocasião. À noite, presenciei alguns grupos reunidos, estudando.

Discutiam uma lista de exercício, onde um dos alunos ensinava as demais (FIGURA

07). Na turma que apliquei o questionário, um dos estudantes se manifestou dizendo

que a minha solicitação atrapalhava o andamento da aula. Foi a primeira e única vez

durante a pesquisa que passei por algum constragimento. Expliquei que seria o mais

breve possível, me desculpei e apesar da objeção, consegui atingir meu objetivo e

ainda entrevistei a representante da Matemática, denominada de Hipotenusa,

naquele mesmo dia.

Page 64: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

63

FIGURA 7 - Estudo em grupo no setor III, UFRN. Fotografia de Dayse Araújo, 2015.

Um passeio pelo CB: Centro de Biociências

Foi a primeira vez que entrei no famoso CB e, de cara, achei um lugar muito

singular. Era noite do dia 16 de Novembro de 2015 e mais uma vez contei com

companhia e apoio de Natália. Estávamos completamente perdidas naquele meio

ambiente. Muitos cartazes, cores, aromas, tudo demonstrava muita vida naqueles

espaços. Diferentemente de todos os setores que vimos até então, o CB é um prédio

muito grande que foge do padrão dos demais. Seguimos rumo à turma que

aplicaríamos os questionários, mas era muito difícil encontrá-la sem pedir

informação. Enquanto procurávamos, aproveitamos para observar as reuniões e

conversas entre os discentes (FIGURA 08). Pareciam acertar os últimos detalhes de

algum seminário de fim de ano.

Page 65: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

64

FIGURA 8 - Conversa no CB, UFRN. Fotografia de Dayse Araújo, 2015.

Observando a figura, pode-se refletir sobre o mundo acadêmico que, de certo

modo, é globalizado e possui uma certa homogeneidade na tradição ocidental. Um

exemplo disso é a fotografia acima. Se a imagem fosse apresentada como um

registro de estudantes canadenses, norte-americanos ou europeus, a informação

seria aceita sem dúvidas de sua veracidade. Ninguém ia achá-la discrepante da

realidade dos centros universitários de outros países com grande prestígio

acadêmico. Em meio há singularidades existem muitas semelhanças.

Continuei a caminhada e a proximidade dos laboratórios deixava tudo com um

―cheiro de hospital‖. Em alguns momentos, o odor de formol se espalhava pelo ar me

causando arrepios e náusea. Passamos em frente ao Laboratório de Anatomia o

mais rápido que eu pude e ao adentrarmos na sala de aula, havia pouquíssimos

alunos presentes. Era uma sexta-feira e segundo o professor, a maioria certamente

havia ido para o show de Gilberto Gil que se apresentou gratuitamente no Centro da

cidade.

Mesmo com o show, alguns estudantes não deixaram de fazer suas próprias

apresentações particulares. Já na saída, encontramos um grupo de alunos cantando

e tocando, em um clima de descontração (FIGURA 09)

Page 66: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

65

FIGURA 9 - Cantoria no CB, UFRN. Fotografia de Dayse Araújo, 2015.

A respeito dessa situação observada, destacamos que desde o seu ingresso

na universidade, o estudante necessita, num complexo processo de ressocialização,

(re)criar-se, aprendendo novas maneiras de estudar e lidar com os novos códigos e

regras. A cultura acadêmica precisa, por mais peculiar que seja, ser corporificada e

apreendida pelos recém-chegados. Nesse contexto, a socialização afetiva é crucial,

vinculando-se essas relações afetivas com a convivência acadêmica, como

destacado por Adir Ferreira:

As relações afetuosas, na intimidade ou no coletivo, vividas em diferentes graus de intensidade como experiências de realização pessoal, em geral contribuem para motivar e sustentar o esforço para os estudos. (FERREIRA, 2014, p. 134).

Separado do Campus: Departamento de Odontologia

A busca do curso representante das elites da saúde foi especialmente difícil.

No princípio, a graduação definida foi Medicina. Em todos os contatos que estabeleci

com os docentes da área, em nenhum obtive êxito. Então, substituímos o curso por

outro, também de muito destaque e prestígio social: Odontologia. Rapidamente fui

respondida e aceita para aplicar o questionário em uma das turmas.

Page 67: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

66

Novamente, estava conhecendo um espaço acadêmico da UFRN inédito para

mim, mostrando que a relatividade da minha condição de nativa na Universidade.

Era manhã do dia 24 de Novembro de 2015 e estranhei a ausência de pessoas no

prédio. Tudo estava muito silencioso e asséptico. A impressão que tive do CB, de

um ambiente hospitalar, no Departamento de Odontologia se intensificava ainda

mais (FIGURA 10). Tudo lembrava mais um hospital do que uma faculdade. Não tive

autorização para fotografar e segui rumo às salas de aulas. Os estudantes,

completamente de branco, reforçavam essa imagem hospitalar ao transitarem pelos

corredores. Já na sala de aula, fui recebida pela professora que me permitiu aplicar

o questionário antes da prova.

FIGURA 10 - Departamento de Odontologia, UFRN. Fotografia do site <www.brechando.com>, 2015.

Todos me observaram atentos e, assim como aconteceu no Direito,

visualmente, era impossível identificar algum estudante popular apenas com uma

primeira impressão. Bem vestidas, com Iphones e muito bem maquiadas, as

mulheres se destacavam na turma majoritariamente feminina. O aroma de bons

perfumes importados foi uma marca que encontrei apenas nessa turma dentre todas

as pesquisadas. Em um primeiro olhar, evidentemente revestido de

(pré)concepções, nada naquele ambiente era popular.

Posteriormente, ao consultar os questionários, pude perceber alguns

estudantes que, aparentemente, se classificavam como populares. Ao tentar

Page 68: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

67

contato, nenhum aceitou ser entrevistado. Uma delas me respondeu que ―não se

sentia a vontade para falar a respeito‖, o que reforçou a minha hipótese de vergonha

pela origem social. Em nenhuma das graduações obtive tantas negativas para a

entrevista. Uma das moças indicou uma colega que não frequentava aquela

disciplina e me disse que ela aceitaria ser entrevistada. Dentina, como quis ser

chamada, apontou em sua entrevista diversas situações vivenciadas naquele

Departamento e no próximo capítulo daremos uma maior ênfase aos seus relatos e

vivências.

Page 69: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

68

CAPÍTULO 4

A CONDIÇÃO DO ESTUDANTE UNIVERSITÁRIO DAS

CLASSES POPULARES NA UFRN

―Não, não vou largar a minha faculdade. É um curso que eu gosto e que daqui a um tempo eu vou terminar. E hoje, inclusive, eu penso em um mestrado, que era uma coisa assim, surreal no começo, no meio do curso. Mas assim, eu parei pra estudar e fiz ―não, não vou desistir‖. Minha irmã até falou: ―Desista, o mercado não é bom e tudo mais. Vá fazer um curso que tenha retorno financeiro‖... Eu fiz ―não, não vou. não vou‖.

Ruth, estudante de Ciências Sociais, UFRN

A representante popular das Ciências Sociais não desistiu e ignorou as vozes,

externas e internas, que a aconselhavam buscar novos horizontes. É possível

perceber ao longo desses escritos que ela não foi a única a tomar essa decisão.

Pesquisar, como em todos os demais aspectos da vida, é fazer escolhas. De

acordo com o que foi exposto no capítulo anterior, defende-se que uma pesquisa,

sobretudo no campo das Ciências Humanas, pode ser realizada de maneira

dinâmica e criativa, propiciando aos pesquisadores uma autonomia, sem desfazer-

se do rigor científico e da ética. Esses são os preceitos da fenomenologia que

norteiam nosso estudo. Adotar essa abordagem é estar ciente do caráter rígido em

demasia e fragmentado da ciência, sempre em busca de suas ―verdades absolutas‖.

Partindo dessa premissa, a fenomenologia busca encarar a incompletude de uma

pesquisa que envolve o estudo de indivíduos em sua condição humana e complexa.

Em conjunto com a aplicação dos questionários, pesquisas bibliográficas e

etnografias, utilizamos a técnica de entrevista que, de acordo com Júnior e Júnior

(2011, p. 241), ―[...] pode desempenhar um papel vital para um trabalho científico se

combinada com outros métodos de coleta de dados, intuições e percepções

provindas dela‖. Em virtude de sua enorme flexibilidade, o avanço das Ciências

Humanas nos últimos anos se deve, parcialmente, pela utilização dessa ferramenta.

Dentre as principais vantagens dessa metodologia, destaca-se a grande riqueza

informativa, a oportunidade de esclarecimentos de dúvidas com os próprios

Page 70: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

69

interlocutores e uma profundidade maior que a obtenção de respostas por

questionários.

Como elucidado introdutoriamente no capítulo 02, na presente pesquisa

entrevistou-se seis sobreviventes universitários oriundos da classe popular, sendo

eles: Ruth (Ciências Sociais), Jurista (Direito), Rosa (Ciências Biológicas), Dentina

(Odontologia), Hipotenusa (Matemática) e Barbotina (Engenharia Civil). Em uma

breve categorização dos entrevistados, a maioria são mulheres, cinco no total. Três

delas são moradoras do mesmo bairro periférico e duas, em outras regiões da

capital (Quadro 02, p. 51). Jurista, único representante masculino, vive atualmente

na Residência Universitária no Campus Central da UFRN. A faixa etária dos

entrevistados varia dos 19 aos 23 anos. Todos eram solteiros, sem filhos e para

custear seus estudos, tinham bolsas ou estágios. Os sujeitos/atores/autores da

nossa pesquisa apresentavam os seguintes perfis:

Ruth - (Ciências Sociais): A escolha do nome foi uma homenagem à

antropóloga Ruth Benedict.

―23 anos, cursando o 8º período de sua graduação, nasceu no interior do

estado, filha de um lavrador e uma dona de casa. Estudou todo o ensino

fundamental e médio em escolas públicas na sua cidade de origem. Veio para a

capital a fim de cursar sua primeira graduação e fora aprovada em seu segundo

vestibular. Sonhava com Psicologia, mas não passou no exame. Após ingresso nas

Ciências Sociais, para se manter, durante dois anos conciliou o trabalho no Call

Center das lojas Riachuelo com o curso noturno. Há um ano, saiu do emprego para

se formar e, no momento da entrevista, era bolsista de apoio técnico na UFRN‖.

Jurista – (Direito): O pseudônimo é inspirado no título daquele que atua no

Direito.

―19 anos, estudante do 4º período, é natural de Natal/RN, mas passou a

maior parte da sua vida em Tibau do Sul/RN. Atualmente mora na Residência

Universitária no Campus da UFRN. Foi criado por mãe pensionista e um padrasto

pescador e teve pouco contato com o seu pai biológico. Jurista estudou o ensino

fundamental em uma pequena escola particular do interior, mas, por problemas

Page 71: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

70

financeiros, cursou o ensino médio em uma instituição pública. Aprovado

primeiramente em Comunicação Social (Radialismo), desistiu do curso para

ingressar em Direito. Nos primeiros semestres do novo curso, cantava nos bares de

Pipa/RN para ajudar no seu sustento. Na época da entrevista, Junho de 2016,

comemorava a conquista da sua primeira bolsa de apoio técnico na UFRN.

Rosa - (Biologia): Em virtude da Botânica, área preferida da entrevistada, ela

escolheu essa nomenclatura.

―21 anos, estudante do 6º período, é natalense, filha de um desempregado e

uma mãe dona de casa. Estudou o ensino fundamental e médio em escola pública.

Na época da entrevista mantinha seus estudos e ajudava a família com uma bolsa

de quatrocentos reais que ganhava no setor de Botânica da UFRN‖.

Barbotina - (Engenharia Civil): O termo escolhido significa ―argila finamente

misturada para fazer cerâmica‖. A entrevistada justificou que como é uma

engenheira civil em formação, esse seria um ótimo pseudônimo.

―19 anos, graduanda do 4º período, nascida na capital natalense, morava com

sua família no bairro do Planalto. Filha de um montador de móveis e uma dona de

casa estudou o ensino fundamental em escola pública. Além de ter sido destaque

em diversos concursos, foi campeã brasileira nas Olimpíadas de Matemática. Logo

em seguida ingressou no IFRN, onde cursou o ensino médio. Na graduação, sem

bolsa, tendo disciplinas nos dois turnos, não sabia como conseguir manter-se no

curso‖.

Dentina - (Odontologia): A Dentina é um tecido conjuntivo avascular,

mineralizado, especializado que forma o corpo do dente, suportando e

compensando a fragilidade do esmalte. A estudante escolheu esse nome referindo-

se ao seu curso e a sua trajetória de resistência.

―20 anos, cursando o 5º período em Odontologia, também nasceu em

Natal/RN, filha de um pedreiro e uma dona de casa. Estudou o ensino fundamental e

médio em escolas públicas. No Pré-vestibular, fez um cursinho gratuito na UFRN e

Page 72: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

71

ingressou em seu primeiro ENEM no curso de Odontologia. Na época da entrevista,

não tinha bolsa e precisava de aproximadamente três mil reais para comprar os

equipamentos para cursar as disciplinas práticas. Aguardava o resultado do edital de

bolsas do Programa de Assistência ao Estudante (PROAE/UFRN), mas em virtude

da ausência dos materiais estava perdendo trabalhos e pontuações. Alegou que os

docentes não entendiam a sua condição desfavorecida‖.

As entrevistas foram realizadas em encontros únicos e devidamente

gravadas. Posteriormente, como uma escolha ética e metodológica, todas as

conversas foram transcritas na íntegra e encontram-se nos apêndices desse

trabalho. Transformando, assim, os materiais orais, para uso apenas do

pesquisador, em um documento textual disponível ao público.

Vale salientar que, dentre todas as opções metodológicas ao longo do

Mestrado, escolher como executar, analisar e interpretar as entrevistas foi a mais

difícil. Encantei-me por diversas metodologias qualitativas e tive como uma grande

paixão a Entrevista Compreensiva que conheci durante uma disciplina na Pós-

graduação. Segundo Silva (2006),

Na metodologia da entrevista compreensiva, o processo de desvelamento do objeto de estudo se constrói pouco a pouco por meio de uma elaboração teórica que aumenta, dia após dia, a partir de hipóteses forjadas no campo da pesquisa. Deveria, assim, realizar uma articulação criativa e o mais estreita possível entre os dados e as questões-hipótese. Encontrava nessa metodologia um caminho aberto à reinvenção no processo de desenvolvimento do trabalho a partir de uma relação, em tríade constante, entre o eu (pesquisador), os sujeitos/autoresatores com suas falas [...]. (p. 07)

A Entrevista Compreensiva, formulada por Kaufmann (2013), defende a ideia

de um ―artesão intelectual‖, onde o pesquisador não se limita apenas na coleta de

informações, na descrição densa e análise dos dados, mas reflete a realidade

pesquisada a partir de sua imersão na mesma. Em sua crítica, relata a hierarquia da

relação pesquisador-pesquisado, tornando a entrevista um momento frio e

pragmático. Propõe em sua obra que a Entrevista Compreensiva, mesmo sendo

para fins acadêmicos, seja semelhante a uma conversa entre duas pessoas que

desejam aprender uma com a outra.

Nesse contexto, ―o informante se surpreende por ser ouvido profundamente e

se sente elevado, [...] a um papel central. Ele não é vagamente interrogado a

respeito de sua opinião, mas por aquilo que possui, um saber precioso que o

Page 73: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

72

entrevistador não tem.‖ (KAUFMANN, 2013, p. 80). A entrevista não é levada em

consideração como um instrumento aplicado após a construção do referencial

teórico, mas como um ponto de partida para a sua estruturação.

A Entrevista Compreensiva apresenta diversos instrumentos e técnicas e,

dentre elas, fizemos uso das ferramentas:

Roteiro de Entrevista (ver apêndice) que, segundo Silva (2006, p. 13) é

flexível, ajustável e construído com base em blocos temáticos que permite um

envolvimento ativo nas questões.

Quadro de Entrevistados (ver p. 49) que para a autora ―situa os

sujeitos/atores/autores na pesquisa e no texto. (SILVA, 2006, p. 13).

Por fim, as Fichas de Interpretação (ver apêndices), que são ―instrumentos de

anotações das falas, das observações postas nas fichas de forma parcial‖. (SILVA,

2006, p. 13). Em uma folha divide-se um lado para transcrição de trechos

significativos e, no outro, observações do pesquisador que podem incluir algum

conceito que faz ligação a fala do sujeito/ator/autor.

Entretanto, em uma abordagem múltipla, além dos postulados da Entrevista

Compreensiva, utilizou-se a Análise de Conteúdo a fim de categorizar, descrever e

interpretar os dados qualitativos. Segundo Moraes (1999):

A categorização é um procedimento de agrupar dados considerando a parte comum existente entre eles. Classifica-se por semelhança ou analogia, segundo critérios previamente estabelecidos ou definidos no processo. Estes critérios podem ser semânticos, originando categorias temáticas. Podem ser sintáticos definindo-se categorias a partir de verbos, adjetivos, substantivos, etc. As categorias podem ainda ser constituídas a partir de critérios léxicos, com ênfase nas palavras e seus sentidos ou podem ser fundadas em critérios expressivos focalizando em problemas de linguagem. Cada conjunto de categorias, entretanto, deve fundamentar-se em apenas um destes critérios. (p. 10)

Com uma ―escuta sensível‖ (SILVA, 2006, p. 07) dos áudios e leitura atenta

das transcrições, destacou-se fragmentos significativos das falas dos sujeitos que,

de acordo com a Análise de Conteúdo, podem ser consideradas também como

unidades de análise. ―Uma vez identificadas e codificadas todas as unidades de

análise, o analista de conteúdo estará pronto para envolver-se com a

Page 74: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

73

categorização‖. (MORAES, 1999, p. 10). Assim, definimos as quatro Categorias de

Análise da pesquisa:

FIGURA 11 - CATEGORIAS ANALÍTICAS DAS ENTREVISTAS.

Autoria de Dayse Araújo, 2017.

4.1. JORNADAS FORMATIVAS: ESCOLARES E FAMILIARES

A gente sempre era estimulado a pegar livro na biblioteca, levar pra casa, quando crianças e tudo. Até quando mesmo não sabiam ler. A gente levava para os nossos pais lerem pra gente. Então eu fui gostando. E lá eu me dedicava muito a escola, quando criança.

Rosa, estudante de Biologia

O estímulo à leitura e o empenho dos pais, mesmo com a escassez de

recursos financeiros, sem dúvida tiveram uma forte ligação com a dedicação escolar

de Rosa. Percebendo narrativas semelhantes na fala dos seis sujeiros, escolheu-se

essa categoria dual para iniciar a análise das trajetórias dos entrevistados por

acreditar na importância do resgate escolar e familiar nas vivências dos

universitários populares. Entretanto, acerca da nomenclatura, é preciso destacar que

a formação de um sujeito permeia toda a sua vida, em um processo constante de

construção e (re)arranjos socializadores. Ferreira (2009, p. 32), afirma que ―a

socialização é sempre um processo contínuo com ciclos, episódios e

Page 75: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

74

transformações, compreendendo um desenvolvimento no espaço-tempo e no

decorrer da história de cada um‖.

Os hábitos, costumes, linguagens, valores, regras e os mais variados

aspectos sociais são apre(e)ndidos em um processo de socialização que perdura

toda a vida de um indivíduo. Então, sociologicamente, é correto afirmar que a

humanização se dá ao longo das trajetórias dos sujeitos em constantes

reformulações, continuidades e rupturas. Nas visões clássicas, a família e a escola

são as principais instâncias de formação humana. Assim, na denominação dessa

categoria analítica, o enfoque principal foi na socialização primária dos indivíduos

(BERGER; LUCKMANN, 1976) que se estabelece na infância, entre a realidade

familiar e escolar. Como nos mostra Dubar (1997):

Esses saberes básicos, objetos da socialização primária, dependem essencialmente das relações que se estabelecem entre o ―mundo social‖ da família e o universo institucional da escola. Com efeito, a escola assegura a legitimação de determinados saberes sociais em detrimento de outros – favorecendo também determinados tipos de família – e, desse modo, desempenha um papel decisivo na distribuição de saberes. (p. 121)

Os alunos pertencentes às classes sociais mais favorecidas acabam trazendo

de berço o que se denominou de capital cultural. No conceito, o intuito principal é

revelar que o ensino não é transmitido de modo igualitário como a escola faz

parecer. Em uma sociedade divida em classes, a cultura se transforma em uma

espécie de moeda onde os mais privilegiados economicamente utilizam-na para

acentuar as diferenças. Dessa forma, os bens culturais se tornam instrumentos de

dominação. E nessa relação, a escola, dissimuladamente, contribui para que esse

capital cultural dominante continue sendo transmitido como tal.

Portanto, a instituição escolar favorece alguns alunos em detrimento de

outros. Os desfavorecidos são justamente aqueles que não tiveram contato, através

da família, com o capital cultural seja por meio de livros, dispositivos concretos ou

simplesmente por não terem tido acesso a lugares e informações facilmente

acessíveis aos alunos mais abastardos.

Evidentemente, diante de uma teoria tão complexa, o que apresentou-se

sobre capital cultural reflete apenas um vestígio dos postulados de Bourdieu e

Passeron (2008). Os autores ressaltam que o alunado desfavorecido não consegue

Page 76: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

75

dominar os mesmos códigos culturais que a escola valoriza, por isso, o aprendizado

para esse público é muito mais difícil. Assim, entendem que a escola marginaliza os

alunos das classes populares.

Ainda no âmbito da relação intrínseca entre família-escola, Viana (1998)

afirma que ―as famílias populares participam da construção do sucesso escolar dos

filhos, de modo diferenciado, ainda que nem sempre facilmente visível e nem

sempre voltado explícita e objetivamente para tal fim‖. Piotto e Alves (2011), por sua

vez, em seus escritos sobre estudantes das camadas populares no ensino superior,

refletem sobre o sucesso acadêmico e a contribuição escolar. Segunda as autoras,

as trajetórias escolares colaboraram diretamente para que estudantes populares

ingressassem em lugares sociais não-previstos: a universidade.

Salienta-se que não existe a pretensão, na nossa pesquisa, de reduzi-la a um

caráter reprodutivista da realidade. Contudo, a noção de capital cultural é

imprescidível como um possível apotamento para compreender a realidade social

dos estudantes populares do Brasil. A maioria dos jovens pertencentes às classes

populares do país, como destacado anteriormente, permanecem excluídos do

sistema universitário e até mesmo os incluídos acabam, como afirma Bordieu

(1998), ocupando posições marginais dentro na universidade.

Acerca da temática percebe-se que, na saga dos sujeitos entrevistados da

nossa pesquisa, a relação família-escola teve uma marca muito expressiva:

Ah, eu sempre fui uma boa aluna, sempre, nunca reprovei, nunca tirei nota baixa, sempre fui dedicada, tanto eu, como meus irmãos. A gente sempre teve essa, vamos dizer assim, essa ―cultura‖, minha mãe sempre, meus pais, eles sempre... na educação, educação, educação, e a gente sempre foi muito esforçado.

(Ruth – Ciências Sociais)

Do trecho acima, chama-nos a atenção a repetição do termo ―educação‖,

indicando o forte processo socializador dos pais, principalmente da mãe, que

incentivava constantemente os estudos dos filhos. Hipotenusa, estudante de

Matemática, em uma de suas declarações, afirmou que em virtude da ―livre e

espontânea pressão‖ dos pais, ela e a irmã acabaram gostando de estudar.

Page 77: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

76

Sem dúvida, a presença familiar e a sua ―cultura‖ da valorização do ensino –

como bem destacou Ruth – são grandes diferenciais que colaboraram com o

percurso de êxito de estudantes populares no ingresso na universidade pública.

Os pais das classes populares, na ausência de uma vida escolar bem

sucedida e de hábitos ligados aos estudos, acabam, muitas vezes, recorrendo a

estratégias como a explicitada no trecho acima. Para Almeida (2007), em seu estudo

sobre estudantes com desvantagens econômicas, todos os sujeitos de seu trabalho

apresentavam um ambiente familiar favorável, sempre baseado no dialógo e nunca

com imposição ou pressão. Porém, em nosso estudo percebeu-se que a influência

familiar também se manifesta através de cobranças severas e impositivas, onde o

estudante acaba enxergando o curso superior como a única salvação de vida.

Não, eles não gostam muito de estudar não. Eles sempre falaram assim ― ai eu colava na prova‖, não sei o quê, mas não é para fazer isso não. Sabe, não... não... não... eles incentivavam, mas não faziam. É o problema desses pais, né. Ah! Faça! Mas não faça o que eu faço. Faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço.

É… meu pai e minha mãe. Eles puxavam muito para mim. Tipo... Olhe, você tem que estudar! Senão você não vai ser o que você quer. Você tem que estudar pra...pra… é… conseguir sua casa, entendeu? De certa forma, tipo, tem que conseguir boas notas, porque isso vai ser bom para o futuro.

(Barbotina, estudante de Engenharia Civil)

Além dos perfis familiares semelhantes, as trajetórias de sucesso escolar são

presentes nas falas de todos os entrevistados e, segundo Ferreira (2014), ―parece

lógico imaginar a importância do bom desempenho escolar anterior para o sucesso

nos estudos universitários‖.

Duas de nossas entrevistadas, Hipotenusa e Barbotina, representantes das

Exatas, vivenciaram o que pode-se denominar de ―Estrelismo Escolar‖. Foram

medalhistas da Olimpíada Brasileira de Matemática, além de participações em

concursos nacionais de poesias, redações e aparições em programas de TV. No

trecho abaixo, da interlocutora Barbotina, é possível perceber a sua jornada escolar

excepcional.

Eu viajei para Brasília para... que eu tinha ganhado um concurso de poesia daqui, do Rio grande do Norte, aí eu fui representando o Rio Grande do Norte, aí fui para Brasília com a minha professora. Aí quando eu voltei teve um concurso de redação do... da Marinha, aí

Page 78: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

77

ganhei do Nordeste, aí todo mundo ficou assim... ―Meu Deus‖. Aí foi assim, foram anos de loucura, de muita celebridade na escola.

As duas estudantes vivenciaram esse estrelismo escolar de uma maneira

semelhante. Sobre esse desempenho acima da média, Ferreira (2016) destaca que,

partindo de uma performance escolar excepcional, os estudantes populares sempre

foram vistos por colegas, familiares e, por eles mesmos, como prodígios, membros

de uma elite escolar que chegou na universidade. Apesar das similaridades no

ensino fundamental, Barbotina, aprovada no exame de seleção, cursou o ensino

médio no Instituto Federal do Rio Grande do Norte e, posteriormente, garantiu sua

vaga em um dos cursos mais concorridos da UFRN, o de Engenharia Civil.

Hipotenusa, por sua vez, estudou em uma escola estadual e não conseguiu a vaga

em Ciências Contábeis que tanto desejava.

Assim, segundo Ferreira (2016), o que esse ―elitismo às avessas‖ omite ―é a

ilusão ou a promessa não cumprida de uma ação governamental de inclusão social

através de um diploma superior de boa qualiade acadêmica e profissional‖ (p. 167).

Está em oculto a seletividade social manifestada no sistema escolar. Mesmo com a

valorização dos esforços individuais e da resiliência desses representantes da

classe popular, não se pode deixar de observar que essa visão tradicional de

elitismo escolar é excludente e meritocrata. Esse fato se evidencia na fala de

Dentina, estudante de Odontologia:

Eu sempre fui de desempenho bom. Minhas notas sempre foram altas. Eu sempre me considerava próxima das alunas, sendo que eu me esforçava mais que elas. Só que eu fui uma das poucas que entrou na Universidade Federal.

Na fala de Dentina fica claro o ethos de heroísmo e esforço, no qual permitiu

sua ascenção à universidade. Ferreira (2014) aponta que os estudantes populares,

enxergando-se como ―a elite escolar das categoriais populares‖, muitas vezes veem

a si mesmos como ―hérois‖, ―com a mobilização subjetiva compensando as

carências materiais das suas famílias‖. (p. 126).

Entretando, o autor destaca que ao ignorar as dificuldades inerentes das

origens sociais, vale-se do argumento de que os estudantes populares, ingressantes

na universidade, fazem parte de uma elite escolar. Sendo assim, é realizada uma

Page 79: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

78

comparação com os aprendentes oriundos do ensino privado e esse ato oculta a

manifestação das desigualdades sociais. Em virtude do nível de ensino, mesmo com

históricos medianos, os estudantes da rede privada permanecem majoritariamente

dominantes no ensino superior público.

Segundo Pereira e Passos (2007, p. 20), ―os membros das classes

desfavorecidas, contrariando as probabilidades estatísticas, que conseguem

ingressar no ensino superior apresentam vantagens sociais‖. Mas, segundo as

autoras, apesar desses benefícios, esses fatos não os isentam de uma inclusão

marginal na universidade, como indica a teoria bourdieusiana.

Falar sobre a marginalidade dos estudantes populares causa certa polêmica,

talvez pela força da expressão. Um estudante nessas condições é aquele que, como

a nomenclatura sugere, é colocado à margem da vida universitária em virtude dos

baixos acúmulos de capitais, enfrentando dificuldades no cumprimento de suas

atividades acadêmicas, financiamento de seus estudos e, evidentemente, inserção

simbólica e social, devido ao seu pertencimento de classe (PEREIRA E PASSOS,

2007, p. 20).

Conclui-se que, como defende Paivandi (2014), a experiência dos estudantes

é contruída a partir de lógicas e processos sociais que interagem e transformam as

realidades. Assim, ―o que‖ o estudante vive está intrinsecamente ligado a ―como‖ ele

vive, compreende e organiza suas práticas. A seguir, se discutirá sobre as

escolhas feitas pelos estudantes populares que ingressam na academia. Trilhando

as pistas do questionamento: Até que ponto as decisões são resultados de escolhas

desejáveis ou imposições reduzidas de opções?

4. 2. CAMINHO ACADÊMICO: TENSIONADO E FACTÍVEL

Aí eu consegui passar em Matemática. Na verdade não era o que eu queria. Passei porque era o que eu me identificava com o disciplina, o curso, mas realmente não era o que eu queria. Como a minha nota dava, então deu certo.

(Hipotenusa, estudante de Matemática)

O sonho de Hipotenusa era cursar Ciências Contábeis, mas lamentavelmente,

apesar de toda uma vida escolar exemplar, não obteve nota suficiente para o

Page 80: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

79

ingresso. Em uma visão ingênua, como já discutido nesse trabalho, acredita-se que

o aumento no acesso da classe popular nas graduações deu-se de modo igualitário

em todos os cursos, até mesmo nos mais prestigiados.

Ao longo das discussões apresentadas até aqui, já constatou-se que a

realidade ―democrática‖ no ensino superior ainda não existe. Nesse fenômeno, o

caminho acadêmico pretendido pelo estudante é tensionado por contextos

escolares, familiares, simbólicos, econômicos e políticos, tensões essas decisivas na

vida do pré-universitário, o que acaba culminando no abandono do curso que

almejava e realizando uma escolha factível, isto é, que pode ser realizada.

Sobre a temática, Dionísio (2004) aborda os sentidos estudantis da formação

acadêmica e as categoriza em dois tipos: A escolha com sentido e a escolha

consentida. Na primeira, como a nomenclatura sugere, o estudante enxerga a sua

decisão basicamente como uma vocação, considerada muitas vezes uma ―escolha

natural‖ construída desde a infância. De todos os entrevistados, apenas Jurista já

cursou parte de outra graduação. É o único também que apresentou em suas falas

uma vocação por área, sem interesse específico por nenhum curso. Ao optar pela

graduação em Direito considera-se uma escolha com sentido.

Eu já sabia minha área. Eu sabia que eu queria um curso de Humanas, mas eu ainda não sabia qual. Eu tinha aquela vontade ―ah, eu faria Direito sim‖. Mas eu sabia que não importasse o curso da área de Humanas, por causa dos métodos, eu me daria bem. E eu achava tudo muito interessante, eu não sabia se eu queria Direito ainda, se eu queria comunicação. Foi mais naquele período, porque a nota deu. (Jurista, estudante de Direito)

Os outros estudantes da pesquisa tiveram escolhas consentidas, ou seja,

diante das tensões e as constigências referentes ao acesso, ingressam em

graduações que não pretendiam anteriormente. Encontraram, ao longo das

vivências universitárias, motivações a posteriori para justificar suas trajetórias. A

escolha consentida, ou, como chamamos, caminho acadêmico factível, fica evidente

na falas de Hipotenusa, apresentada no início desse tópico e na declarações abaixo:

Mas, eu queria na verdade Serviço Social. Aí eu fiz Serviço Social primeiro, na minha primeira opção e Ciências Sociais na minha segunda opção. A princípio eu não sabia o que era Ciências Sociais, mas quando chegou o período de inscrição, eu fui pesquisar e tudo. Aí não passei em Serviço Social. É… Fiz Ciências Sociais, né?

Page 81: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

80

Passei. Aí cursei. É… No começo eu fiquei encantada pelo curso. (Ruth, estudante de Ciências Sociais)

Ciências biológicas foi a minha última opção. Eu pensei primeiro nos cursos que todo mundo fala: psicologia, nutrição... Eu sempre tive muito... uma chamativa por nutrição (Rosa, Ciências Biológicas)

Os caminhos percorridos pelas três estudantes de licenciaturas podem ser

destacados, por Ferreira (2016), como parte integrante de uma lógica de restrição de

escolhas. O autor destaca que nessa lógica de especialização social dos cursos

superiores, as classes populares recorrem às graduações formadoras de

professores. As escolhas se dão principalmente em virtude das notas mais baixas

nos processos seletivos de ingresso.

Na pesquisa de Coulon (2008), realizada na França, mais especificamente em

Paris 8, os estudantes populares muitas vezes afirmavam que as escolhas dos seus

cursos foram ao ―acaso‖, ou seja, cursariam o que pudessem e, se não se

adaptassem, mudariam. Todavia, o autor evidencia que diferentemente do que

pensam os estudantes, essas escolhas não são entregues a causalidade. ―Sua

história escolar, suas estruturas cognitivas, elas mesmas informadas por sua

posição social e cultural, evidentemente, interferem nisso tudo.‖ (p. 165)

Barbotina queria Astronomia, graduação que no Brasil é ofertada apenas no

Rio de Janeiro e sua família não poderia mantê-la na cidade. Rosa gostaria de ter

cursado Nutrição, mas sua nota no vestibular não propiciou a sua aprovação.

Dentina, apesar de ter garantido seu ingresso em um curso de grande prestígio

social, sonhava com Engenharia Civil. ―Foi nem que eu escolhi o curso. Eu queria

Engenharia Civil, mas botei como segunda opção. Tudo a ver né? Assim, mas aí

quando eu comecei a cursar, eu de fato me adaptei, gostei e fiquei‖.

Como postulou Dionísio (2004), os sujeitos (re)significam suas jornadas e

criam novos sentidos para as suas escolhas, mesmo que suas decisões não sejam

apenas frutos de suas vontades e vocações. Ao longo das entrevistas, apenas Ruth

demonstrou dúvida acerca do seu curso, especialmente pelo mercado. Todos os

outros, cheios de esperança, demonstraram acreditar que fizeram a escolha mais

acertada em meio às possibilidades factíveis da vida.

Page 82: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

81

4.3. SOCIALIZAÇÃO UNIVERSITÁRIA: FORMAL E CORDIAL

A universidade carrega consigo suas próprias dinâmicas, pois falar da

realidade acadêmica é discorrer sobre pluralidades. E nessa conjuntura, como se

aprende a ser estudante? Como a socialização se insere nesse cenário? Ferreira

(2009, p. 25) destacou que o termo ―[...] socialização deriva do vocábulo socialis,

que significa camaradagem e companheirismo, e que também se refere a palavra

socius, parceiro‖. Assim, segundo o autor, o sentido de pertença é profundamente

ligado ao convívio e identificação com um grupo social. É o que também defende

Paivandi (2014, p. 50), ao afirmar que ―toda socialização constitui um fenômeno

interacional e um processo de aquisição de saberes que se impõe ao

desenvolvimento de trocas e nos laços sociais‖.

A universidade oferece a possibilidade de explorar um domínio de saber, de aprender no quadro de uma disciplina fundada sobre uma linguagem e um conjunto de discursos, de teorias e de construções abstratas e complexas. A universidade propõe que se trabalhe em um projeto pessoal ou profissional, que se desenvolva uma nova autonomia intelectual e social. Essa transformação implica uma aculturação ao mundo universitário e uma mudança qualitativa de atitude diante do ato de aprender. (p. 44-45)

Para Ferreira (2014, p. 117) até mesmo os alunos com ótimo desempenho

escolar se sentem estranhos nessa nova realidade. ―O que dizer, então, daqueles

que chegam inseguros e com menos recursos de conhecimentos e de condições

materiais, devido às suas deficiências escolares e de meios sociais populares?‖.

Coulon (2008) afirma que para muitos graduandos a dificuldade não se limita

ao acesso, mas principalmente a permanência. O período inicial da vida do

estudante na universidade é marcado por rupturas que se dão no processo de

transição do status de aluno para a posição de estudante. Nesse contexto, filiar-se é

fundamental para a continuidade nos estudos, onde se aprende o ofício de

estudante para que, só assim, se torne um membro do contexto social universitário.

A primeira etapa do processo de filiação é o estranhamento, vivenciado

aproximadamente até o final do primeiro mês. Durante esse período, a grande

ruptura é emocional, externada com o sentimento de solidão. Outra dificuldade,

vivenciada especialmente por estudantes de origem popular, são as limitações

intelectuais e cognitivas. O trecho da fala do Jurista, estudante de Direito, transmite

bem as aflições dessa fase.

Page 83: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

82

Eu não tive professores capacitados que dessem aula de Filosofia, nem de Sociologia. Nem de Física, nem de Química. Mas eu estou em Humanas e essas são as disciplinas que interessam. Mas foi bastante frustrante, porque eu senti dificuldade inicialmente, foi algo que me desmotivou e me fez assim: ―Talvez eu não tenha nascido para o Direito‖. Porque eu não tinha essa preparação anterior.

O limitado capital econômico, social e cultural dos estudantes populares

potencializa o estranhamento frente às exigências cognitivas e intelectuais da

universidade. Além disso, a capacidade de concentração que deve ser aprendida,

muitas vezes é insuficiente em virtude não apenas da ausência de práticas

anteriores, mas de cansaço oriundo das duplas jornadas de alguns estudantes

trabalhadores. Foi esse o caso de Ruth que, na tentativa de conciliar os estudos com

o seu trabalho, confidenciou a seguinte situação:

Operadora de Telemarketing que é uma profissão extremamente estressante, cansativa. Eu trabalhava seis horas, mas assim… Pareciam 12 horas. Porque meu horário era de 12 as 6, eu saia de lá direto pra cá, sem jantar. Às vezes sem jantar. Aí tipo assim, isso também atrasou muito minha faculdade, porque eu já não estava mais assimilando as coisas. Minha mente a mil, só pensava em chegar em casa e dormir.

No grupo de entrevistados, Ruth e Hipotenusa foram as únicas que

trabalharam formalmente durante os seus cursos. As duas abandonaram os

empregos para continuarem em suas graduações. Narraram que sem essa decisão

dificilmente conseguiriam a dedicação necessária para prosseguir seus estudos.

Sobre essa realidade, Ferreira (2014) afirma:

Os estudantes das classes de renda superior podem ficar despreocupados com a sustentação material e têm condições de projetar percursos longos de formação, contando com o apoio financeiro e cultural das famílias. Ao contrário, no realismo cotidiano da vida acadêmica, os universitários das classes populares são constantemente atormentados pela angústia com o seu sustento material e com a cobrança moral dos familiares. Isso faz com que esses estudantes oriundos de famílias desfavorecidas economicamente, estejam mais ansiosos por uma rápida colocação profissional, estando menos disponíveis, no sentido financeiro e emocional, para uma longa formação tecnológica ou científica, evitando, normalmente, protelar o seu ingresso no mundo do trabalho. (p. 127-128)

Diante de contextos contraditórios, de resiliências e rupturas, a segunda etapa

de filiação de Coulon (2008) é o tempo de aprendizagem que, segundo o autor, dura

Page 84: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

83

até o primeiro ano. No período de progressiva adaptação, o estudante elabora

estratégias cognitivas e institucionais para manter-se na universidade. É nesse

momento que o estudante já deve perceber as especificidades da academia e as

novas posturas que precisam ser adotadas.

Segundo Ferreira (2014), rapidamente os estudantes necessitam estabelecer

competências mínimas no âmbito organizacional e social da universidade, ou seja,

além da compreensão do funcionamento da instituição e suas instâncias, o

estudante deve se integrar numa rede de interações sociais que interliga a execução

de trabalhos e estudos acadêmicos e pode, muitas vezes, suscitar vínculos

duradouros de amizades.

No que diz respeito às competências do estudante universitário, Coulon

(2008) apresenta a terceira e última etapa: o tempo de afiliação. Para isso, o autor

enfatiza dois tipos de indicadores, os institucionais e os intelectuais. No quadro a

seguir, destaca-se os principais marcadores apontados pelo pesquisador.

QUADRO 3 - INDICADORES DE AFILIAÇÃO

INSTITUCIONAIS INTELECTUAIS

Saber interpretar corretamente as regras da universidade (explícitas e implícitas);

Gerência das diversas obrigações estudantis;

Habilidade de ―jogar‖ com as regras, inclusive por meios clandestinos;

Interpretação do que se espera de um estudante;

Capacidade de montar o seu currículo de acordo com suas necessidades e limitações;

Bons resultados nas avaliações;

Conhecer os dispositivos institucionais que regem o cotidiano universitário;

Identificar e concluir trabalhos não solicitados explicitamente;

Elencar as estratégias que deve adotar no futuro a fim de atingir seus objetivos acadêmicos e profissionais.

Capacidade de criticar e contestar professores;

Conciliar a graduação com os demais aspectos da vida.

Fonte: Autoria própria a partir da obra de Coulon (2008).

Quando se elegeu a categoria de Socialização Formal, o foco foi a estrutura

organizacional da universidade que visa o aprendizado das novas exigências, bem

como os programas de permanência que buscam auxíliar o estudante ingressante

Page 85: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

84

nesse novo cenário. Por conseguinte, os conteúdos das disciplinas, núcleos de

assistência ao estudante, eventos como palestras e congressos, participações em

bases de pesquisa, bolsas em programas de monitoria, tutoria, extensão e iniciação

à docência, são os protagonistas em um complexo circuito formal de socialização no

ensino superior.

A interlocutora Dentina frizou durante a entrevista, sua expectativa com

auxílio financeiro para aquisição de instrumentos odontológicos. Para cursar os

componentes práticos em sua graduação de Odontologia naquele semestre, a

estudante necessitava de equipamentos no valor de três mil reais. Era março de

2016 e até aquele presente momento, o resultado do edital com a lista de deferidos

ainda não havia saído. Sobre essa situação, desabafou:

[...] se você insere um aluno de nível inferior no curso... porque abriram as portas. Então se abriram as portas, porque realmente abre essa brecha de ter um aluno que não tem meios para pagar, que dê o suporte. Porque é obrigação da universidade dar esse suporte para esses alunos, que realmente necessitam e que seja providenciado logo, porque está fazendo mal tanto para psicológico do aluno como é humilhante também. E o que as pessoas não entendem é que a universidade… é que a universidade dê suporte para essas pessoas… Você dá a oportunidade, mas que o aluno possa lá dentro... Aqui... Por mais que universidade diga que vai lhe dar um auxílio, mas é uma demora, é como se fosse... ―Não estou nem aí para você, vou resolver o teu caso quando der‖. Bem descaso. É um descaso muito grande. Então, se dá o acesso, tem que dar o suporte. A gente tem que ser mantido por igual aqui. Tem que ser mantido na mesma forma, ter o mesmo respeito. E os professores justamente tem que entender que existe essa realidade.

A fala da entrevistada denota uma inquietação quando se observa a

expressão ―aluno de nível inferior‖. Pelo contexto, infere-se que a estudante se

referia aos aspectos econômicos. Todavia, essa interpretação pode ser ampliada à

medida que se avança na leitura do fragmento, pois a sujeita salienta que os

estudantes populares precisam ser tratados como iguais. Isto é, a inferioridade não

se manifesta apenas nos aspectos financeiros, mas também nos âmbitos sociais,

culturais e simbólicos. A narrativa carregada de sentidos complexos transmite muito

pesar com as atuais condições de permanência dos estudantes populares na UFRN,

além dos aspectos formais de socialização que visam o auxílio, na fala de Dentina é

externada a deficiência desses programas.

Page 86: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

85

Outro ponto abordado pela interlocutura é o papel dos docentes na

permanência estudantil. Segundo Dentina, os seus professores não compreendiam

a sua vulnerabilidade social. Partindo desse fato, é relevante destacar que imerso no

processo formal de socialização, a função social do docente é determinante. Dentre

as estratégias de permanência, a proximidade entre sujeitos é um diferencial para os

estudantes que almejam se manter na vida acadêmica, como defende Ferreira

(2014).

Aludir sobre os laços entre estudantes e professores suscita outro domínio da

socialização que denominaremos de cordialidade acadêmica. Para compreendê-la, é

necessário resgatar o conceito de homem cordial elaborado por Sérgio Buarque de

Holanda, na obra Raízes do Brasil escrita em 1936. Nela, o historiador explicita o

que, sob sua ótica, é a maior marca cultural do povo brasileiro: a cordialidade. O

termo ―cordial‖ ao contrário do que se presume, não indica somente a simpatia e

gentileza. A expressão vem do latim ―cordis‖, isto é, relativo a coração.

No ―homem cordial‖, a vida em sociedade é, de certo modo, uma verdadeira libertação do pavor que ele sente em viver consigo mesmo, em apoiar-se sobre si próprio em todas as circunstâncias da existência. Sua maneira de expansão para com os outros reduz o indivíduo, cada vez mais, à parcela social, periférica, que no brasileiro — como bom americano — tende a ser a que mais importa. Ela é antes um viver nos outros. (HOLANDA, 1995, p. 147)

O homem cordial pode ser definido, em linhas gerais, como um sujeito

adaptado no seio familiar a objetivar vivências de simpatia e afeto, rejeitando as

interações impessoais, sendo, ao contrário personalista e guiado, muitas vezes, pela

passionalidade, até agressiva, característica das relações familiares. A cordialidade

nega a polidez e deseja a convivência em sociedade, viver nos outros, como

extensão do círculo familiar, possuindo uma grande aversão à individualidade,

confundindo a vida pública como espaço privado. Assim, a cordialidade é um tipo

ideal que pressupõe comportamentos da esfera afetiva como estratégias na vida

social do brasileiro.

Na academia, esse traço cultural também é manifestado. Embora os estudos

sobre a realidade universitária debrucem o olhar especialmente nos aspectos

formais da vida estudantil, as esferas afetivas e, portanto, consideradas informais,

são tão importantes quanto as demais. Ao versar sobre esse tema, Ferreira (2014)

Page 87: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

86

destacou a presença da didática profana na vivência dos estudantes. Segundo o

autor, é por meio dessa prática difundida nos encontros com colegas são

transmitidas as ações mais recorrentes de estudos como truques, formas de

negociação com os professores e também motivação para que permaneçam em

seus cursos (Figura 12) Nesse cenário, as afinidades são decisivas para que os

estudantes se agrupem, buscando, na maioria das vezes, conviver com sujeitos com

uma trajetória de vida semelhante que a sua, como confidencia Dentina:

Sim, mas no início era extremamente difícil pela discrepância de vivência, porque eles têm uma vivência e eu tenho outra, porque... ―é‖ mundos diferentes. Então com tempo é que eu consegui inserir dentro de um grupo, eu consigo ter as amizades, mas justamente pela diferença de renda que eu me juntei com pessoas do mesmo jeito que eu.

FIGURA 12 - Amizade no setor V, UFRN. Fotografia de Dayse Araújo, UFRN, 2015.

Essa característica foi identificada em todos os depoimentos dos sujeitos.

Seja pelos laços de amizade e apoios mútuos, em vários trechos destacou-se a

importância da cordialidade acadêmica na jornada do ensino superior. Fato esse que

pode ser constatado nos fragmentos a seguir:

Eu tenho apenas uma amiga aqui que eu ajudo ela e ela me ajuda… E a gente está sempre bem unida o tempo todo. O que ela estiver precisando, fala comigo e o que eu estou precisando, falo com ela. Então, a gente criou o vínculo de amizade nesse sentido. (Hipotenusa)

Page 88: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

87

Assim, é muito bom, porque a troca de conhecimento e de vida é muito boa. É, tem uns que não são muito estudiosos, né? (risos). Aí a gente lida com isso e ajuda, eles ajudam. É muito legal assim... Você conhecer essas pessoas além do curso que você tem. (Barbotina)

Na cordialidade acadêmica, o estudante experencia, por meio das trocas com

seus pares, a esfera socializadora de caráter afetivo e malandrice como uma das

estratégias de permanência. Independentemente das lacunas e escassez de

recursos financeiros, institucionais e simbólicos, o discente alcança, através da

relação com o Outro, uma maneira positiva para sua aprendizagem e afetivamente

calorosa de prolongar a sua vivência na universidade.

FIGURA 13 - Lanche e prosa no setor IV, UFRN. Fotografia de Dayse Araújo, UFRN, 2015.

Esse Outro, o indivíduo com quem se interage, não se restringe ao colega

que partilha da mesma vulnerabilidade econômica ou o amigo que advém da mesma

classe social privilegiada. Na teia universitária, as relações se entrecruzam em um

emaranhando de conexões que ultrapassam os papéis sociais esperados. Docentes,

funcionários, estudantes, mesmo com vínculos mais superficiais acabam ligados, de

uma maneira ou de outra. Todavia, os laços mais firmes e duradouros não surgem

Page 89: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

88

de causalidades, são frutos de escolhas por afinidades e objetivos em comum,

sejam eles singulares ou múltiplos.

4.4. PROSPECTIVA DE VIDA: CONTINUADA E (DES)CONTINUADA

―O que você vai ser quando você crescer?”. Certamente, todo mundo já ouviu

essa indagação na infância. A própria pergunta já denota uma imposição, mesmo

que implícita. Para ―ser‖ é preciso exercer um ofício e a partir dele, definir-se no

mundo. Professora, médico, jornalista, dançarino, astronauta... Sonhamos com

carreiras ao projetar um olhar além, em uma realidade que não se pode ao menos

ser enxergada ainda. Segundo Aulete (2011), prospectiva significa exatamente

aquilo que diz respeito ao futuro.

Quando se dissertou sobre o caminho pretendido, as expectativas dos

estudantes foram destacadas frente as suas escolhas, por vezes tensionadas e

restringidas a opções factíveis. Na carreira acadêmica, o estudante necessita, mais

uma vez, responder à questão elementar presente em diferentes momentos da vida.

―Uma passagem bem sucedida é sempre uma passagem que não apenas projeta o

presente no futuro, mas que dá, no presente, lugar para o futuro‖ (COULON, 2008,

p. 230).

De um modo diferente do que foi experienciado pelos sujeitos no momento

anterior ao ingresso à universidade, agora carregados de maiores pressões ainda

precisam encarar os desafios de uma construção do futuro a partir de um caminho

percorrido no presente. Nas entrevistas, ficou claro que todos os interlocutores

pretendiam continuar os seus estudos.

Para Paivandi (2014) há quatro tipos de perspectivas de aprendizagem e a

partir dessa tipologia, se articulará com a noção de prospectiva. Antes de darmos

seguimento as análises e interpretações dos sujeitos, faz-se necessário esclarecer o

que significa a noção de perspectiva: ―[...] designa o ponto de vista dos professores

e dos alunos sobre a situação, ou ainda a maneira pela qual os alunos percebem e

julgam a escola, o trabalho escolar e o trabalho dos professores.‖ (p.49)

Como uma representante da perspectiva minimalista, encontrou-se Ruth. Boa

parte da graduação foi conciliada com um emprego formal e segundo suas palavras,

levou o curso ―com a barriga‖. Isso quer dizer que a sujeita fazia apenas o

Page 90: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

89

necessário para ser aprovada nas disciplinas que cursava, sem se importar com a

real compreensão do conteúdo ministrado. Como defendido por Paivandi (2014), as

perspectivas são mutáveis e um estudante pode, ao longo de uma graduação,

transformar os seus modos e estratégias de lidar com o aprendizado. Já na reta

final, Ruth declarou o desejo de ingressar numa pós-graduação em Ciências Sociais.

Jurista assim como Ruth, também manisfestou a vontade de prosseguir na

carreira acadêmica. Conquanto, sendo muito mais ambioso. Sua meta era ser

professor universitário. No decorrer das suas falas é possível notar que o sujeito

possui uma perspectiva compreensiva exteriorizada na sua graduação. Como tal, o

estudante busca de fato apreender os conteúdos ministrados, compreendendo-os e

atribuindo sentido, e não apenas obter aprovação em componentes curriculares. O

seu envolvimento acadêmico ultrapassa os muros da universidade, era envolvido em

militâncias e projetos de extensão, participava ativamente de congressos, palestras

e ativismos.

Na perspectiva do desempenho que busca sucesso na carreira e obtenção do

diploma, temos o exemplo de Rosa, Barbotina e Hipotenusa. A estudante de

Ciências Biológicas declarou o desejo de permanecer na área de Botânica.

Hipotenusa externou a vontade de ser professora de alguma instituição federal e

deixou claro ao longo de toda sua entrevista o quanto era desejosa de inserir-se no

mercado de trabalho. Visão partilhada de uma maneira mais forte por Barbotina.

Com a perspectiva de desengajamento, apresentou-se Dentina. Deixando

claro em seus relatos que se sentia excluída e assim, pode-se inferir que a sujeita

vivenciava um processo de desfiliação, deslocada e à margem da realidade da

Odontologia. Mesmo com a iminência do abandono do curso ocasionada por sérias

crises financeiras e identitárias, Dentina aspirava seguir carreira acadêmica,

ingressando em um mestrado, justamente para colaborar com a mudança da

realidade cultural de negligência aos mais necessitados na universidade. Isso quer

dizer que as perspectivas podem intercalar e se complementar, apesar de certo

desengajamento a estudante também buscou um sentido para sua permanência.

Foi preciso realizar uma breve análise das perspectivas para que a partir

delas pudéssemos discutir as prospectivas, uma vez que as duas noções não são

desarticuladas. As prospectivas na academia são o reflexo da trajetória universitária.

Page 91: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

90

Passado aproximandamente um ano desde que realizaram-se as entrevistas

contactou-se, por meio virtual, todos os participantes a fim de sondar como estão

atuamente no mês de junho de 2017.

Jurista está no 5° período de Direito e animado por ter conseguido uma bolsa

numa base de pesquisa. Hipotenusa casou, está no penúltimo semestre de sua

graduação em Matemática. Continua no PIBID e ministra aulas em uma pequena

escola particular e no cursinho do DCE. Rosa formou-se no final do ano de 2016,

declarou estar procurando emprego e começou um curso técnico em Gestão

Ambiental no IFRN. Barbotina está no 6° período de Engenharia Civil e externou

preocupação, pois a sua bolsa acabará em Agosto de 2017 e apesar dos infortúnios,

afirmou que deseja ingressar no mestrado em 2019. Dentina finalizou o 7° período e

permanece no curso de Odontologia, conseguiu uma bolsa de pesquisa e encontrou-

se nesse estímulo mais força para continuar. Ruth foi a única estudante presente

nesse estudo que não respondeu nosso contato.

Apesar da dura realidade excludente dos desfavorecidos que

lamentavelmente se quer adentram os portões universitários, em toda pesquisa

buscou-se o afastamento da noção de heroísmo a respeito dos estudantes

populares. Ao longo desses escritos, constatou-se que a expansão no ensino

superior mesmo expressiva, oculta uma realidade de desigualdade social, cultural e

claro, acadêmica.

Defende-se que o Brasil vive um cenário de ―democratização‖ universitária,

contudo, ao debruçar-se sobre dos dados e trabalhos produzidos constatou-se que

ainda estamos longe de promover o acesso universal ao ensino superior e propiciar

a classe popular a real possibilidade de escolha de suas carreiras e condições

efetivas de permanência.

Sobre os sujeitos desse estudo, suas trajetórias de resiliência são

incontestavelmente admiráveis. Todavia, não podemos reduzir a reflexão apenas na

esfera meritocrática. Ao longo de suas vidas adotaram importantes estratégias para

atingir os seus objetivos e executá-los com êxito, sem falar nas oportunidades que

mesmo limitadas, foram aproveitadas.

Na jornada universitária não foi diferente, com escassos capitais financeiros,

sociais e culturais tiveram que se adaptar em um meio ambiente totalmente

Page 92: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

91

desconhecido. Como destacado ao longo do nosso trabalho, todos os estudantes,

independentemente da origem social, precisam dominar os novos mecanismos da

universidade que muito se diferem da dinâmica escolar. Para isso, necessitam se

ressocializar.

Dito isto, pode-se afirmar que o estudante popular que permanece na

academia é um indivíduo que foi capaz de adaptar-se e metaforicamente, aprendeu

jogar com o que dispunha nas mãos. Sem os amigos, as artimanhas, truques,

afetos, paixões, enfim, sem a cordialidade acadêmica dificilmente sobreviveriam.

Page 93: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

92

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao iniciar esse trabalho, eu carregava em meu imaginário social algumas

noções muito simplórias acerca da realidade das universidades no Brasil.

Acreditava, talvez ingenuamente, que as mudanças tinham sido mais contundentes

do que vislumbrava. Fui surpreendida ao longo das leituras, aulas, debates e o

campo com a constatação de que embora diferentes, as realidades das instituições

públicas de ensino superior permanecem excludentes para a classe popular do país.

Através das minhas vivências, compreendi que os estudantes populares ainda

precisam traçar um árduo caminho até que seu ingresso e permanência na

academia sejam garantidos efetivamente.

Durante a pesquisa, a postura intelectual do pesquisador implicado, ou seja,

pertencente e envolvido na realidade estudada, serviu como um guia norteador

durante todo o estudo. Assumi minha condição popular desde o início, já no prólogo,

mostrando a minha subjetividade em meio ao fazer científico, sem deixar a conduta

ética de lado. Assim, ser uma estudante popular foi crucial na escolha do tema e no

modo como percebi o fenômeno social que me debruçara. Contudo, evidentemente,

tive que ir além das minhas presunções e adentrar espaços nunca antes percorridos

em minha trajetória acadêmica.

A jornada começou com a tentativa de compreender o panorama

internacional das universidades que surgiram na Idade Média. Constantemente

criticada, a universidade sobrevive há oito séculos, incompreendida, em um

paradoxo itinerante de domínio e submissão. Sua relação com a Igreja, governos e

burguesia em ascensão definiram os seus rumos e rotas de amplicação acadêmica.

Já no século XIX, por meio da Universidade de Berlim e, posteriormente, na

Declaração de Bolonha, constatou-se que foram importantes no que se refere às

configurações atuais do ensino superior, influenciando as universidades

principalmente no que tange as privatizações e competitividade.

Mesmo com todas as transformações, o estudante universitário sempre

buscou, em variadas medidas, uma estratégia de aprendizado que se baseava na

relação com o outro, sendo o processo cognitivo e as relações de socialização

Page 94: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

93

elementos indissociáveis. Como seres sociais, necessitamos de trocas simbólicas e

afetivas para aprender e nos reinventar e na academia não seria diferente.

No lócus, aprendi na prática o que postula a fenomenologia, isto é, a

pesquisa se reconstrói conforme avançamos e nos inserimos nela. Pude perceber

que as noções que eu levava a campo rapidamente se metamorfoseavam e exigiam

de mim várias quebras de paradigmas. Além disso, por diversas vezes tive que

mudar os enfoques, as leituras e até mesmo as estratégias para que o estudo fosse

ganhando forma. Nos corredores da UFRN, fui mais uma em meio aos transeuntes

que apressados se dirigiam as suas salas de aula. Vi beijos, cantorias, estudantes

solitários demonstrando suas angústias, testemunhei sonhos e frustrações e posso

dizer sem medo do exagero que foi uma das experiências mais enriquecedoras que

tive.

Com a etnografia, pude experienciar uma imersão de modo que em alguns

momentos era difícil diferenciar quem era pesquisadora e quem eram os sujeitos,

pois estávamos entrelaçados em uma grande teia de significados. A distinção só foi

possível porque uma pergunta de partida me guiava, bagagens teóricas me

embasavam e a vontade de entender a realidade dos estudantes populares no

ensino superior me impulsionaram.

Conheci seis estudantes das classes populares com trajetórias de resiliência

que me despertaram grande empatia e admiração. Jovens que apesar das

dificuldades encontraram estratégias de sobrevivência que os permitiram prosseguir

no ensino superior público em uma universidade federal. Apesar das trajetórias

dignas de estima, os sujeitos não podem ser classificados como heróis, uma vez que

rotulá-los dessa maneira seria reforçar o discurso meritocrata tão vigente em nossa

sociedade.

Percebeu-se que, oriundo das classes abastardas ou das camadas

populares, qualquer estudante que ingressa na academia precisa reaprender a

estudar, se adaptando a uma nova realidade que muito se difere da escola. A

universidade exige uma postura autônoma, novos aparatos cognitivos e

instrumentais, maturidade emocional e como um catalizador desse processo

encontram-se as estratégias de socialização. Isso significa dizer que o estudante

popular não sobrevive apenas por meio de recursos de assistência ou por uma

Page 95: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

94

enorme força de vontade, mas, sobretudo, pelo uso da cordialidade acadêmica que

o faz manter-se na academia.

Nos diversos estudos que sustentaram essa dissertação pude observar a

preocupação com a permanência dos estudantes populares, diversos fatores

matérias foram destacados e em poucos trabalhos percebi a atenção nos aspectos

socializadores dos discentes. A sobrevivência acadêmica não é fruto somente de

laboriosos estudos e maciço investimento de capital, mas também de um sólido

sentimento de filiação e pertença que faz desse estudante um membro da

comunidade universitária.

Dissertar sobre o ensino superior e seus atores e não versar sobre

sentimentos, amizades, afetos e malandrices nunca fez parte dos meus planos.

Entendo os estudantes como agentes dotados de subjetividades e, portanto, seres

complexos que não podem ser reduzidos a apenas corpora de pesquisa. Creio que

um dos maiores diferenciais do meu estudo foi justamente o olhar para o processo

de socialização em articulação com a sobrevivência do estudante popular que

timidamente, avança na ocupação das cadeiras universitárias.

Na mesma medida que é inédita a inserção desse estudante na

universidade, também é novo o expressivo ingresso nos programas de pós-

graduações federais. Um fenômeno que requer atenção uma vez que observou-se

no decorrer desse estudo a necessidade de responder outra questão, tão complexa

quanto a pergunta de partida: ―E o estudantes populares na pós-graduação, como

sobrevivem?‖. Encerro essa travessia com a certeza de que a caminhada deve

continuar.

Page 96: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

95

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Wilson Mesquita de. Estudantes com desvantagens econômicas e educacionais e fruição da universidade. Caderno CRH, Salvador, jan./abr., v. 20, n.49, p. 35-47, 2007.

AGUIAR, Vilma. Um balanço das políticas do governo Lula para a educação superior: continuidade e ruptura. Rev. Sociol. Polit., v. 24, n. 57, p. 113-126, 2016.

ARAÚJO, José Carlos Souza. O projeto de Humboldt (1767-1835) como fundamento da pedagogia universitária. Aprender: Cad. de Filosofia e Psic. da Educação, Vitória da Conquista, v. 12, n., p.65-81, 2009.

AULETE, Caldas. Minidicionário contemporâneo da língua portuguesa. 3. ed, Lexicom, Rio de Janeiro: 2011.

BERGER, Peter. LUCKMANN, Thomas. A Construção Social da Realidade, Editora Vozes, Petrópolis, 1976.

BITTAR, Mariluce; OLIVEIRA, João Ferreira de; MOROSINI, Marília. Educação Superior no Brasil: 10 anos pós-LDB. Brasília: Inep, 2008.

BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-Claude. A Reprodução: Elementos para uma teoria do sistema de ensino. Petrópolis: Vozes, 2008.

BOURDIEU, Pierre. ―Campo intelectual e projeto criador‖. In POUILLON, J. et al. (orgs.) Problemas do estruturalismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1968. p. 105-45.

BOURDIEU, Pierre; CHAMPAGNE, Patrick. Excluídos do Interior. In NOGUEIRA, M.A. & CATANI, A. (orgs.). Escritos da Educação. Petrópolis: Vozes, 1998. pp. 217-227.

BOURDIEU, Pierre. Futuro de classe e causalidade do provável. In NOGUEIRA, M. A.; CATANI, A. (Org.). Escritos de educação. Petrópolis: Vozes, 1998. pp. 81-126.

BORGES, José Leopoldino das Graças; CARNIELLI, Beatrice Laura. Educação e estratificação social no acesso à universidade pública. Cadernos de Pesquisa da Fundação Carlos Chagas, São Paulo, v. 35, n. 124, pp. 113-130, 2005.

BRASIL. Decreto n° 6.096, de 24 de abril de 2007. Institui o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais – REUNI.

BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional: nº 9394/96. Brasília: 1996.

BRASIL. Lei N° 10.260, DE 12 DE JULHO DE 2001. Dispõe sobre o Fundo de Financiamento ao estudante do Ensino Superior e dá outras providências.

BRASIL. Ministério da Educação. Censo da Educação Superior 2014 – Notas Estatísticas. INEP, 2014.

BRASIL. Relatório de Primeiro Ano. Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais. 2008. Disponível em: http://reuni.mec.gov.br. Acesso em 20/05/2017.

BRITTO JÚNIOR, Álvaro Francisco de; FERES JÚNIOR, Nazir. A utilização da técnica da entrevista em trabalhos científicos. Evidência, Araxá, v. 07, n. 07, pp.237-250, 2011.

Page 97: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

96

CARNEIRO, Ava da Silva Carvalho; SAMPAIO, Sônia Maria Rocha. Estudantes de origem popular e afiliação institucional. In SAMPAIO, S.M.R., org. Observatório da vida estudantil: primeiros estudos. Salvador: EDUFBA, 2011, pp. 53-69.

CARNOY, Martin et al. Expansão das universidades em uma economia global em mudança: triunfo dos BRIC? Brasília: CAPES, 2016.

CASPER, G.; HUMBOLDT, W. Um mundo sem universidades? Rio de Janeiro: EdUERJ, 1997.

CHAVES, Vera Lúcia Jacob; AMARAL, Nelson Cardoso. A educação superior no Brasil: os desafios da expansão e do financiamento e comparações com outros países. Educação em Questão, Natal, v. 51, n. 37, pp.95-112, abr. 2015.

COULON, Alain. A condição do estudante: a entrada na vida universitária. Tradução Georgina Gonçalves dos Santos e Sônia Maria Rocha Sampaio. Salvador: EDUFBA, 2008.

COSTA, António Firmino da; LOPES, João Teixeira. Os estudantes e os seus trajectos no ensino superior: Sucesso e Insucesso, Factores e Processos, Promoção de Boas Práticas. Porto: Centro de Investigação e Estudos em Sociologia, 2008.

CUNHA, Luiz Antônio. A universidade temporã. Da colônia à Era Vargas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1986.

DECLARAÇÃO de Bolonha. Disponível em: <http://media.ehea.info/file/Ministerial_conferences/05/3/1999_Bologna_Declaration_Portuguese_553053.pdf>. Acesso em: 10 mai. 2017.

DIONÍSIO, Bruno Miguel. Sentidos estudantis da formação académica. In: Congresso português de sociologia: sociedades contemporâneas: reflexividade e acção, 5, 2004, Braga. Anais. Braga: Universidade do Minho, 2004.

DOMINGOS SOBRINHO, Moisés; LIRA, André Augusto Diniz; MIRANDA, Marly Medeiros de. Representações sociais e a construção dos novos sentidos de universidade no Brasil contemporâneo. In DOMINGOS SOBRINHO, Moisés; ENNAFAA, Ridha; CHALETA, Elisa. La educación Superior, el estudiantado y la cultura universitaria. València: Editorial Neopatria, 2016. pp. 37-64.

DUBAR, Claude. A socialização: construção das identidades sociais e profissionais. Portugal: Porto Editora, 1997.

ECKERT, C.; ROCHA, A. L. C. da. Etnografia de rua: estudo de antropologia urbana. Iluminuras, Porto Alegre, v. 3, n. 7, pp. 1-22, 2003.

ENNAFAA, Ridha. O acesso à educação superior no Brasil: o exemplo da UFRN (2000-2012) In: DOMINGOS SOBRINHO, Moisés; ENNAFAA, Ridha; CHALETA, Elisa. La educación Superior, el estudiantado y la cultura universitaria. València: Editorial Neopatria, 2016. pp. 97-136.

FERREIRA, Adir Luiz. Socialização na universidade: quando apenas estudar não é o suficiente. Revista Educação em Questão, Natal, v. 48, n. 34, pp. 116-140, jan./abr. 2014.

FERREIRA, Adir Luiz. Como a relação entre capital cultural e formação no ensino superior aparece para os universitários. In: DOMINGOS SOBRINHO, Moisés;

Page 98: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

97

ENNAFAA, Ridha; CHALETA, Elisa. La educación Superior, el estudiantado y la cultura universitaria. València: Editorial Neopatria, pp. 161-190, 2016.

FERREIRA, Adir Luiz. A escola socializadora: além do currículo tradicional. Natal: EDUFRN, 2009.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

HUMBOLDT, W. Sobre a organização interna e externa das instituições científicas superiores em Berlim. In: CASPER, G.; HUMBOLDT, W. Um mundo sem universidades? Rio de Janeiro: EdUERJ, 1997.

INEP. Educação Superior Brasileira: Rio Grande do Norte (1991-2004). Brasília: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira/INEP, 2006.

JANISSEK, Janice et al. Concepções de universidade no Brasil: uma análise a partir da missão das universidades públicas federais brasileiras e dos modelos de universidade. In: Coloquio de gestión universitaria en Américas. Anais... Montevideo, 2013.

JÚNIOR, Álvaro Francisco de Britto; JÚNIOR, Nazir Feres. Evidência, Araxá, v. 7, n. 7, pp. 237-250, 2011.

KAUFMANN, Jean-Claude. A entrevista compreensiva: um guia para pesquisa de campo. Petrópolis: vozes; Maceió: EDUFAL, 2013.

LAHIRE, Bernard. Sucesso escolar nos meios populares: as razões do improvável. São Paulo: Ática, 1997.

LIMA, Licínio C.; AZEVEDO, Mário Luiz Neves de; CATANI, Afrânio Mendes. O processo de Bolonha, a avaliação da educação superior e algumas considerações sobre a universidade nova. Avaliação, Campinas; Sorocaba, v. 13, n. 1, p.7-36, mar. 2008.

LOURAU, René. Análise institucional. Petrópolis, Vozes, 1975.

MANCEBO, Deise; VALE, Andréa Araujo do; MARTINS, Tânia Barbosa. Políticas de expansão da educação superior no Brasil 1995-2010. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v. 20, n. 60, p.31-50, 2015.

MATTOS, Carmem Lúcia Guimarães de. A abordagem etnográfica na investigação científica. In: MATTOS, Carmem Lúcia Guimarães de; CASTRO, Paula Almeida. Etnografia e educação: conceitos e usos. Campina Grande: EDUEPB, 2011. p. 49-83.

MINOGUE, Kenneth. O conceito de universidade. Brasília, EdUNB, 1981.

MILLS, Charles Wright. A imaginação sociológica. Tradução de Waltensir Dutra. 6. Ed. São Paulo: Zahar, 1982.

MORAES, Roque. Análise de conteúdo. Revista Educação, Porto Alegre, v. 22, n. 37, 1999. pp. 7-32

NEWTON JUNIOR, Carlos et al. Portal da Memória: Universidade Federal do Rio Grande do Norte 45 anos de federalização (1960-2005). Brasília: Senado Federal, 2005.

OLIVIERA, Agnes Schutz de; ANTONIO, Priscila da Silva. Sentimentos do adolescente relacionados ao fenômeno bullying: possibilidades para a

Page 99: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

98

assistencia de enfermagem nesse contexto. Revista Eletrônica de Enfermagem, v. 08, n. 01, p. 30-41, 2006.

PAIVANDI, Saeed. A relação com o aprender na universidade e o meio ambiente deestudos. Revista Educação em Questão, Natal, v. 48, n. 34, p. 39-64, jan./abr. 2014.

PAIVANDI, Saeed. Que significa o desempenho acadêmico dos estudantes? In: Observatório da vida estudantil: avaliação e qualidade no ensino superior. Salvador: EDUFBA, 2015.

PEREIRA, Elisabete Monteiro de Aguiar. A Universidade da modernidade nos tempos atuais. Avaliação, Campinas, v.14, n.1, pp.29-52, mar. 2009.

PEREIRA, Samara Cristina Silva; PASSOS, Guiomar de Oliveira. Desigualdade de acesso e permanência na universidade: trajetórias escolares de estudantes das classes populares. Linguagens, educação e sociedade, Teresina, v. 16, n. 12, pp.19-32, 2007.

PIOTTO, Débora Cristina; ALVES, Renata Oliveira. Estudantes das camadas populares no ensino superior público: qual a contribuição da escola? Psicol. Esc. Educ, vol.15, n.1, pp.81-89, 2011.

SILVA, Rosália de Fátima. Compreender a ―Entrevista Compreensiva‖. Revista Educação em Questão, Natal, v. 26, n. 12, p. 31-50, maio/ago. 2006.

SIMMEL, Georg. Sociologia. Ática: São Paulo, 1983.

SINDICATO NACIONAL DOS DOCENTES DAS INSTITUIÇÕES DE ENSINO. As novas faces da reforma universitária do governo Lula e os impactos do PDE sobre a educação superior. Caderno Andes, Brasília, v. 25, n. 1, pp.1-41, ago. 2007.

SINDICATO NACIONAL DOS DOCENTES DAS INSTITUIÇÕES DE ENSINO, Sindicato dos Mantenedores do Ensino. Mapa do ensino superior no Brasil: 2016. São Paulo: Semesp, 2016.

SOARES, Maria Susana. A Educação Superior no Brasil. CAPES: Porto Alegre, 2002.

SOUSA E SILVA, J. Por que uns e não outros? Caminhada de jovens pobres para a universidade. Rio de Janeiro: Editora Sette Letras, 2003.

VELHO, Gilberto. "Observando o familiar". In VELHO, G. Individualismo e cultura: notas para uma antropologia da sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,1980.

VIANA, Maria José Braga. Longevidade escolar em famílias de camadas populares: algumas condições de possibilidade. 1998. 264 f. Tese (Doutorado) - Curso de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1998.

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE. Observatório da vida do estudante. Disponível em: <http://www.comperve.ufrn.br/conteudo/observatorio/>: Acesso em: 02 junho. 2017.

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE. RESOLUÇÃO N° 026/2009-CONSAD. Dispõe sobre os critérios de avaliação da condição sócio-econômica de alunos da UFRN para fins de caracterização da condição de aluno carente.

Page 100: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

99

URIARTE, Urpi Montoya. O que é fazer etnografia para os antropólogos. Ponto Urbe: Revista do núcleo de antropologia urbana da USP, São Paulo, v. 11, pp.01-13, nov. 2012.

ZABALZA, Miguel Ángel. O ensino universitário: seu cenário e seus protagonistas. Porto Alegre: Artmed, 2004.

ZAGO, Nadir. Do acesso à permanência no ensino superior: percursos de estudantes universitários de camadas populares. In: REUNIÃO ANUAL DA ANPED, 28, Caxambu, MG, pp. 1-16, out. 2006.

Page 101: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

100

APÊNDICE A

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

PESQUISADORA: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA ORIENTADOR: ADIR FERREIRA

Estamos desenvolvendo uma pesquisa de mestrado cujo tema principal é a permanência e socialização de estudantes das camadas populares no ensino superior. Sua participação é muito importante para realização desse estudo. O ANONIMATO dos respondentes é garantido, sendo parte essencial da ética da pesquisa.

QUESTIONÁRIO

Nome:

Sexo: Feminino ( ) Masculino ( ) Idade:

Curso:

Turno: Período:

E-mail: Telefone:

1. Onde você cursou o ensino médio? Escola pública ( ) Escola privada? ( ) 2. Com quem você mora? Com os pais ( ) Com o(a)

cônjuge/companheiro(a) ( ) Residência Universitária ( )

Com familiares ( ) Com amigos ( ) Sozinho ( ) 3. Qual o principal meio de transporte que você utiliza para chegar à Universidade? A pé/ carona ( ) Veículo motorizado próprio ( ) Transporte fretado ( ) Transporte coletivo ( ) Bicicleta ( ) 4. Qual a ocupação de seu pai? (Caso seja aposentado ou falecido, escrever a profissão que exerceu) __________________________________________________________________________ 5. Grau de escolaridade paterna? Pós-graduação ( ) Superior ( ) Ensino Médio ( ) Fundamental ( ) Analfab/Semi-alfabet.( )

6. Qual a ocupação de sua mãe? (Caso seja aposentada ou falecida, escrever a profissão que exerceu) __________________________________________________________________________ 7. Grau de escolaridade materna? Pós-graduação ( ) Superior ( ) Ensino Médio ( ) Fundamental ( ) Analfab/Semi-alfabet.( )

8. Qual é a renda familiar mensal de sua casa? 1 Salário Minimo ( ) 2-5 Salários Minimos ( ) 10-20 Salários Minimos ( ) 1-2 Salários Minimos ( ) 5-10 Salários Minimos ( ) + 20 Salários Minimos ( ) 9. Quantas pessoas contribuem para a obtenção dessa renda familiar? __________________________________________________________________________ 10. Você exerce atualmente atividade remunerada? Qual? __________________________________________________________________________

Page 102: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

101

APÊNDICE B

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

PESQUISADORA: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA ORIENTADOR: ADIR FERREIRA

ROTEIRO DE ENTREVISTA SEMI-ESTRUTURADA

Parte I - Perfil socioeconômico, educacional e familiar. Nome: ___________________________________________________________________ Idade: _________________ Sexo: Feminino ( ) Masculino ( ) Curso: __________________________________ Período: _______________________ BLOCO 1 - Perfil escolar, familiar e de lazer. 1. Infância 2. Profissões dos pais 3. Profissões dos avós 4. Você tem irmãos? Caso tenha, me fale um pouco sobre eles. 5. Você fez ensino fundamental em escola pública ou privada? Onde ficava a escola? 6. Você fez ensino médio em escola pública ou privada? Onde ficava a escola? 7. Em seu percurso escolar houve alguma interrupção ou repetência? 8. Como era seu desempenho na escola? 9. Em casa, qual era o tipo de distração praticado por você e sua família? 10. Vocês praticavam algum tipo de leitura? Quem praticava e qual tipo? 11. Como seus pais e sua família lidam com o fato de você ser universitário (a)? 12. Como você se preparou para o vestibular? Por quanto tempo? 13. Por que você escolheu esse curso? 14. Como pretende manter-se durante seus estudos universitários? BLOCO 2 - Relações de Sociabilidade 15. Por que esse curso na universidade? 16. A quem você atribui o maior incentivo para fazer esse curso? 17. Que significado você atribui para a entrada na universidade pública? 18. Quais os maiores desafios que você encontrou e vivencia na Universidade? 19. Narre sua rotina na Universidade. 20. Como é sua relação com os colegas de turma? 21. Você fez amigos na graduação? Se sim, qual a importância deles na sua trajetória universitária? 22. Vocês se encontram extraclasse e fora do Campus? Se sim, em quais locais? 23. Que expectativas você tem para o seu futuro?

Page 103: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

102

APÊNDICE C

MODELO DE FICHA DE INTERPRETAÇÃO Interlocutor(a): Ruth

FALAS

Ah, eu sempre fui uma boa aluna, sempre, nunca reprovei, nunca tirei nota baixa, sempre fui dedicada, tanto eu como meus irmãos, a gente sempre teve essa, vamos dizer assim, essa ―cultura‖, minha mãe sempre, meus pais, eles sempre... na educação, educação, educação, e a gente sempre foi muito esforçado. Foi um adicional para que eu tenha conseguido entrar numa federal assim que eu acabei o ensino médio... Porque meus outros amigos, da minha turma eu fui o único que conseguiu, foi eu ter feito cursinho no semestre do Pré. Eu estudava lá de manhã e vinha de tarde e a noite para cá para poder estudar. Porque eu sabia que o ensino da minha escola não eram suficiente.

ANOTAÇÕES

PEREIRA E PASSOS, 2007, PÁG. 20 Os membros das classes desfavorecidas, contrariando as probabilidades estatísticas, que conseguem ingressar no ensino superior apresentam vantagens sociais que os distinguem dos demais de sua categoria social. Isso, contudo, não é o suficiente para poupá-los de uma inserção marginal na universidade. Esses estudantes, devido ao seu escasso volume de capitais, ocupam as posições inferiores no campo universitário e tendem a enfrentar dificuldades no cumprimento das atividades acadêmicas, além dos problemas no financiamento dos estudos e na inserção social e simbólica, tudo em decorrência de sua condição de classe.

Page 104: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

103

APÊNDICE D TRANSCRIÇÕES DAS ENTREVISTAS

ENTREVISTA COM RUTH Estudante de Ciências Sociais, 23 anos. Data: 10/11/15 Local: Praça do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA- UFRN) Duração: 32:29

Dayse: Então, eu queria que você começasse falando seus dados, seu nome, sua idade, curso e período para ficar registrado aqui.

Ruth: Tá! Meu nome é Rute, eu estou no oitavo período, tenho 23 anos, faço ciências sociais.

Dayse: Qual foi o ano de ingresso? Você entrou que ano?

Ruth: 2012.1.

Dayse: Já que a gente vai começar, é bom pelo início mesmo. Como é que foi a sua infância, você nasceu onde, foi criada onde?

Ruth: É... Eu nasci aqui em Natal, morava no Satélite, e me mudei, meus pais moram atualmente em Currais Novos, eu moro aqui em Natal, depois voltei quando passei no vestibular, e moro aqui com a minha irmã. É... Minha irmã já é formada, se formou na UFRN de Currais Novos, aí ela terminou lá, a faculdade lá e veio morar comigo. Aí hoje em dia a gente mora juntas e ela se formou em Administração.

Dayse: Então deixa eu ver se entendi: sua família fez meio que movimento contrário, ela saiu da zona urbana e foi para zona rural.

Ruth: É, é! A gente morava aqui e foi para lá.

Dayse: Aí qual a profissão do seu pai? E o que levou ele a essa profissão hoje, se você sabe bem da história.

Ruth: Bom, é meu pai ele a gente, meu pai tem um sítio, e cria animais, vaca, porco, cabra.

Dayse: Na época do Satélite, já tinha esse sítio?

Ruth: Não, não, não. A gente foi ter esse sítio quando a gente se mudou para Currais Novos. Porque quando a gente se mudou, meu pai foi contratado numa empresa, lá em Currais Novos, foi por isso que a gente foi para lá.

Dayse: Aqui ele vivia como?

Ruth: Aqui a gente tinha um supermercado. Sendo que com a violência, estava muito grande, aí meu pai decidiu vender e a gente foi para o interior, porque minha família é do interior. A família do meu pai é de Lagoa Nova, e a família de minha mãe é de Cerro Corá, lá depois de Currais Novos. A gente resolveu morar lá. E quando a gente foi morar lá, é... Meu pai começou a trabalhar nessa empresa, minha mãe também, sendo que num determinado período essa empresa fechou. Aí né, meu pai ficou desempregado e tudo e, aí ele comprou esse sítio e foi como ele começou a criar vaca, porco, cabra e tal, tem uma lavoura lá, tem ele planta.

Dayse: E os pais dele? Seus avós paternos? Eles eram o que a profissão deles?

Ruth: Meus avós hoje, os dois são vivos, meu avô e minha avó, e eles são aposentados hoje, minha avó quando era mais nova, era funcionaria do Estado, e meu avô, nem sei. Meu avô eu não lembro. Mas, ele tinha sítio também, acho que ele mexia com isso, provavelmente.

Dayse: Aí o mesmo, as mesmas perguntas só que voltada para sua mãe, a profissão da sua mãe.

Page 105: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

104

Ruth: É... Os pais da minha mãe moravam no sítio, sempre morou no sítio lá em Cerro Corá. Então eles viviam mais disso, sabe. Da vaca, é... Agricultura, mais isso.

Dayse: Então, a sua família tanto paterna como materna, tem essa raiz rural.

Ruth: Isso, isso, exatamente. E meu pai sempre gostou disso, porque ele foi criado nesse meio, aí por isso que ele decidiu seguir esse rumo.

Dayse: É, você já falou que tem só essa irmã administradora?

Ruth: Não, eu tenho outro irmão, é... Meu irmão mora no Rio de Janeiro, a gente morava em Currais Novos, aí tem um tio meu que morava lá, se casou e tal, vive lá já há muitos anos, mais de 20 anos e ele chamou porque ele tem uma empresa de produtos naturais lá, no interior do Rio de Janeiro, Campos dos Goytacazes. Aí ele chamou meu irmão para ir trabalhar com ele, aí meu irmão foi, aí hoje eles tem tipo uma parceria com juntos nessa empresa.

Dayse: Ele não fez faculdade, ele?

Ruth: Não, ele é Técnico de Segurança do Trabalho, aí fez o IF de lá, aí hoje ele é casado, tenho um sobrinho. É o único sobrinho que tenho.

Dayse: A sua irmã tem quantos anos e seu irmão tem quantos anos?

Ruth: Meu irmão tem 32 e minha irmã tem 28. Eu sou a mais nova.

Dayse: O seu ensino fundamental ele foi em escola pública, privada? Narre um pouco de como foi.

Ruth: Foi todo, sempre estudei em escola pública, desde sempre, quer dizer, só quando morava aqui em Natal, creche, essas coisas, foi em escola privada, mas depois que o fundamental e o médio foi todo em escola pública, tanto eu como dos meus irmãos também.

Dayse: O fundamental você estudou aqui em Natal, e o médio também foi em Natal?

Ruth: O fundamental eu comecei os primeiros e segundo, no meu tempo era assim, primeiro e segundo, terceira, quarta, quinta, hoje em dia mudou né? Mas eu comecei aqui em Natal, mas eu fui morar em Currais Novos em 2000. Então, praticamente eu me considero de lá, aí vivi toda a minha adolescência lá então...

Dayse: Entendi... Seu ensino médio foi lá, escola pública de Currais Novos?

Ruth: Isso.

Dayse: Bem interessante. Aí nesse seu percurso, tanto do fundamental como do médio, você teve reprovação, uma desistência?

Ruth: Não, nunca fui reprovada.

Dayse: Como era o seu desempenho na escola? Como você se considera assim?

Ruth: Ah, eu sempre fui uma boa aluna, sempre, nunca reprovei, nunca tirei nota baixa, sempre fui dedicada, tanto eu como meus irmãos, a gente sempre teve essa, vamos dizer assim, essa ―cultura‖, minha mãe sempre, meus pais, eles sempre... Na educação, educação, educação, e a gente sempre foi muito esforçado.

Dayse: Esse, pronto, essa pergunta não tem aqui, mas eu já vou acrescentar. É, se você pudesse analisar o que levou você a ser essa aluna destaque que você aparenta que foi, você atribuiria o que?

Ruth: Ah, a minha família. Minha família sempre teve essa cultura. Meus pais, assim eles não tiveram tanta oportunidade de estudar, minha mãe sempre viveu nessa parte da agricultura e tudo, só fez até o ensino fundamental e meu pai terminou o ensino médio. É, mas aí né minha mãe engravidou no tempo ele terminou o ensino médio e veio aqui para Natal, aí trabalhava aqui. Aquela história que ter que parar de estudar para sustentar a família e tudo, meu pai nunca teve tempo para estudar, mas, é... aí essa cultura familiar, mainha sempre no pé da gente, ―vamo, vamo‖ e também assim, a gente sempre fomos bem responsáveis, sabe, tanto eu como meus irmãos então eles nunca tiveram trabalho com a gente na escola.

Page 106: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

105

Dayse: Na sua casa, você disse que sua mãe e seu pai tiveram pouco letramento, não estudaram muito, mas você via alguma prática de leitura na sua casa, ver seu pai lendo, alguma coisa, sua mãe...?

Ruth: Assim, meu pai é muito inteligente, ele... Porque naquela época, há uns anos atrás, não tinha faculdade, né, você terminava tipo o ensino médio, e daí ia fazer tipo alguma coisa, algum ensino profissionalizante, pronto, meu pai quando ia ingressar, aí parou. Então ele adora cálculo, naquela época era mais contabilidade, né, essas coisas de administração, aí ele meu pai sempre está assistindo, se informando, ele é muito inteligente, já minha mãe, ela é um pouco preguiçosa, sabe, mas aqui e acolá eu pego ela lendo alguma coisa, mas não tanto, com tanta assiduidade, como meu pai é.

Dayse: Tá. Quando sua família fazia algo de lazer, com você e com seus irmãos, vocês costumavam fazer o que de lazer?

Ruth: A gente sempre ia para casa dos meus avós, é... Porque lá, tanto lá do lado do meu pai tanto do lado da minha mãe eles têm sítio né, e a gente sempre ia para lá, era nossa diversão, sabe... Porque eu fui criada nessa área, nesse círculo, é... De avós e de família, que sempre teve sítio, gado, bicho, então eu adoro. Meu sonho de criança era ser veterinária e não deu para cursar, mas o nosso divertimento era esse. Eu adorava. Para mim um lugar onde tenha bicho, mato, era nossa diversão.

Dayse: Então os ―lazeres burgueses‖ como o teatro, cinema...

Ruth: Não, até porque lá não tinha.

Dayse: Não fazia parte desse seu universo.

Ruth: Lá em Currais Novos não tinha… Não tem ainda essas coisas.

Dayse: Uma pergunta interessante: Como seus pais hoje lidam com o fato de vocês serem estudantes da UFRN. Como eles encaram? Eles têm a real dimensão da grandeza que é isso? Como eles agem?

Ruth: Ah, sim. É... assim, eu passei dois anos fazendo vestibular. Minha irmã já cursava administração na UFRN. Eu queria seguir, não queria ir para faculdade particular. Sempre quis ir para UFRN. E quando passei foi o maior orgulho e tal. Dos meus pais, da família e tudo. É, e eles são super satisfeitos por eu estar fazendo um curso na UFRN.

Dayse: A sua irmã, ela foi a primeira da família a entrar? Ou teve primo... tio… Assim, pessoas do seu núcleo familiar.

Ruth: De federal? Ela foi a primeira.

Dayse: ela foi a que...

Ruth: No ano que ela passou, na verdade ela e uma prima minha passaram no mesmo ano na UFRN.

Dayse: Ela e sua prima foram as primeiras de toda sua família?

Ruth: Sim.

Dayse: Antes dela?

Ruth: Sim, federal sim, só particular, já tinha outras primas, mas federal...

Dayse: É… Você falou que estudou dois anos para esse vestibular, então no caso você fez um ano, não teve sucesso, não passou e continuou estudando para o próximo. Você entrou no segundo ou entrou no terceiro?

Ruth: Eu entrei no terceiro. No primeiro eu tentei fa… porque eu sempre quis fazer veterinária, sendo que veterinária só tinha em Mossoró e na Paraíba e não tinha condições de ir para lá porque não conhecia ninguém, família, enfim… mainha não deixava também ir para lá. Aí vim para cá porque aqui eu tenho família e tudo, era mais acessível vim para cá, sabe? É… foi o meu primeiro vestibular eu fiz para zootecnia, sendo por gostar dessa área de bicho e tudo mais, sendo que eu nunca fui boa em química nem física, apesar de gostar do curso, mas das específicas eu nunca fui boa. Aí zerei química. Aí não passei.

Page 107: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

106

Dayse: Isso no primeiro.

Ruth: No primeiro.

Dayse: Aí era da época do vestibular da COMPERVE.

Ruth: Isso.

Dayse: Você fazia direcionado...

Ruth: Isso, da COMPERVE. No segundo tentei de novo, aí também não passei, dessa vez não zerei, mas não passei. Acho que… que… que… é… é porque assim… escola pública você tem uma grande deficiência, né? com as matérias, professores que não estão nem aí e isso acontecia muito na minha escola em química, em física e em biologia também. Então minha base dessas matérias não é boa.

Dayse: Mesmo você sendo uma aluna...

Ruth: Mesmo eu sendo uma aluna...

Dayse: Destacada na escola você...

Ruth: É… mas na verdade...

Dayse: Aí no primeiro foi zootecnia...

Ruth: Na verdade eu demorei para entender, mas minha área era de humanas, era uma mater… história, geografia, essas coisas realmente eu gosto.

Dayse: O segundo foi qual?

Ruth: O segundo foi Zootecnia de novo. Até que eu fiz ―Não. Vou mudar no terceiro‖. Aí fiz Ciências Sociais. Apesar de não querer.

Dayse: Porque você escolheu? Você sabia o que eram as Ciências Sociais?

Ruth: Sabia, porque eu pesquisei. Mas, eu queria na verdade Serviço Social. Aí eu fiz Serviço Social primeiro, na minha primeira opção e Ciências Sociais na minha segunda opção. A princípio eu não sabia o que era Ciências Sociais, mas quando chegou o período de inscrição, eu fui pesquisar e tudo. Aí não passei em Serviço Social. É… Fiz Ciências Sociais, né? Passei. Aí cursei. É… No começo eu fiquei encantada pelo curso, mas depois, sabe? Vai batendo aquela coisa: ―será que era isso mesmo que eu queria?‖, ―será que eu não vou me arrepender e tudo?‖. Eu pensei em desistir, teve uma época, lá pelo terceiro ou quarto período.

Dayse: É tanto que a minha pesquisa, eu estou pesquisando a partir do quarto.

Ruth: É mesmo?

Dayse: Meu porque meu foco não é a desistência, nem o ingresso. Eu foco nos alunos que permanecem. Eu meio que passo essa etapa, porque de fato, se você passar do quarto período, a probabilidade de você se formar é imensa.

Ruth: É grande. Não, é na turma são 40, 50 pessoas, né? 40, 50… Se hoje tiver uns 30 é muito. O nível de desistência muito alto. Então teve esse período: ―será que eu desisto, será que não?‖, mercado também não é lá dos melhores. Isso fui colocando na balança, até que eu fiz: ―Não, vou desistir. Vou fazer uma outra faculdade. Uma faculdade, um outro curso na faculdade privada‖. Aí foi quando eu inventei de pagar só uma ou duas matérias aqui. Eu passei dois semestres pagando só duas matérias, nessa ―faço, não faço… Faço, não faço‖. Acabei não fazendo e acabei me atrasando completamente que foi mesmo na época das introduções. Por isso que eu estou no oitavo período, mas ainda cursando teoria política III. Aí, é… Por isso que eu estou tão atrasada.

Dayse: Você falou da crise. Você citou o mercado, só que, pensando nas maiores dificuldades que as Ciências Sociais trouxeram na sua vida. Você conseguiria listar: ―foi isso, isso, isso‖.

Ruth: Eu tive de maior dificuldade. Minha maior dificuldade foi vir para cá, né? Fazer o curso, porque, é… Assim, minha mãe não queria tanto que eu viesse para cá. Ela queria que eu fizesse uma faculdade em Currais Novos. Sendo que os cursos que tinha lá eu não

Page 108: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

107

gostava. Já meu pai não, meu pai: ―Não, vá‖. Minha mãe: ―não, não, não vai dar certo, num sei o que‖. Enfim, a princípio essa foi a minha maior dificuldade, sabe? Só que depois eu fiz ―Ah, eu vou e pronto‖.

Dayse: Você tinha quanto anos nessa época?

Ruth: Tinha 20.

Dayse: Aí você já veio direto morar com sua irmã?

Ruth: Não. Eu consegui, tinha umas amigas de Currais Novos que dividiam apartamento aqui perto. Eu vim morar com elas. Estava morando com elas. Minha irmã só veio ano passado. Começou ano passado que ela terminou a faculdade dela, aí veio para cá. Foi chamada para um emprego aqui, aí veio morar aqui. Aí eu sai de lá e estou morando com ela.

Dayse: Aí quando você veio para cá, toda essa parte de custos, era do seu pai e da sua mãe.

Ruth: Era do meu pai e da minha mãe.

Dayse: Eles arcaram...

Ruth: E é assim, é… Não era muito folgado, né? Meus pais não tinham muitas condições de me manter e tudo e os custos aqui são muito altos. Pagava aluguel… Aí eu tive que arrumar um emprego. Eu vim para cá já ciente disso, que eu tinha que trabalhar e tudo mais. Aí, eu trabalhava no Call Center da Riachuelo. Eu vim para cá em Fevereiro, em Maio já comecei a trabalhar lá. Trabalhei lá até ano passado. Trabalhei dois anos e meio lá.

Dayse: Aí como você analisa hoje, já no oitavo período, né? Já já se forma… Como esse trabalho, ele interferiu na sua graduação?

Ruth: Assim, interferiu para bem e para mal. Porque eu pude me sustentar, ganhar meu dinheiro. Foi meu meio de trabalho e tudo. Ainda tirei o peso e a responsabilidade dos meus pais que era enorme, mas você estudar e trabalhar é muito complicado. E principalmente, é… Operadora de Telemarketing que é uma profissão extremamente estressante, cansativa. Eu trabalhava seis horas, mas assim… Pareciam 12 horas. Porque meu horário era de 12 as 6, eu saia de lá direto para cá, sem jantar. Às vezes sem jantar. Aí tipo assim, isso também atrasou muito minha faculdade, porque eu já não estava mais assimilando as coisas. Minha mente a mil, só pensava em chegar em casa e dormir. E você sabe que Ciências Sociais é um curso que requer muita leitura, muito tempo. E assim, eu estou tendo que tirar o atraso. Teve uma hora que eu fiz: ―Não‖. Em Agosto do ano passado eu disse: ―Não dá mais certo. Eu vou sair. É, porque eu preciso aprender alguma coisa no meu curso. Porque eu estava ―levando com a barriga‖. Aí saí. É… Por isso que eu digo que influenciou pro bem e pro mal. Porque muita coisa eu levei com minha barriga, não aprendi. Só decorei. Então assim, estou tendo que correr atrás do atrasado agora. Estou tendo que estudar o dobro para ver se eu ainda me norteio no curso.

Dayse: Então você saiu do Call Center e atualmente você é bolsista do apoio técnico?

Ruth: Isso. Aí eu saí de lá em agosto do ano passado e... aí fiquei recebendo seguro, né? Aí porque eu pedi para eles me demitirem já pensando no seguro. Aí eu solicitei uma bolsa pelo SIGAA, no mesmo mês… duas semanas depois eu já comecei a trabalhar já, aí desde então eu estou trabalhando no apoio técnico.

Dayse: É em qual local daqui?

Ruth: No Biociências.

Dayse: Biociências. Aí vamos para o último bloco, quase televisão, vamos para o último bloco. É bem importante na minha pesquisa, eu foco bem nisso. Como é que você encara a relação com amigos e colegas na sua vida universitária? Você... melhor, reformulando essa pergunta, você fez amigos aqui? Você tem um grupo formado ou você foi meio uma loba solitária... assim?

Page 109: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

108

Ruth: Já fiz muitos amigos desde o começo do curso, assim... no começo do curso tinha… sempre se forma os grupinhos, né? Meu grupinho todo mundo desistiu, aí... mas...

Dayse: Desistiu em qual altura desse curso?

Ruth: Quar… Segundo período já.

Dayse: Foram para degola...

Ruth: Foi, foi.

Dayse: Que é o período da degola. Você ficou sozinha?

Ruth: Foi só que aí, eu... eu tinha uma boa relação com as meninas que sentavam perto de mim, aí a gente meio que eu... já... pulei o terceiro grupinho.

Dayse: Sim.

Ruth: Aí...

Dayse: Você fez uma transferência.

Ruth: Aí fiz assim, tenho outros amigos também, eu fiz as Ciências Sociais e deu vários amigos muito bons que eu quero levar para a vida.

Dayse: É... você... Qual é o significado que você atribui a estudar numa universidade pública?

Ruth: Ah… é muito bom, né? Inclusive, é... é… a gente vê a diferença no dia a dia, né? Claro, tem muitas coisas a melhorar, mas eu acho que já... já houve um bom progresso. Por exemplo, eu tenho em Currais Novos eu tenho uma bolsa de apoio técnico, tenho um auxílio residência que a gente recebe um valor, né? Todo mês quem é do interior, quem tem a bolsa residência tem o auxílio alimentação.

Dayse: Você recebia a bolsa mesmo estando no Call Center?

Ruth: No começo não, eu fui solicitar ela já no final porque todo mundo falava, ah... você tem carteira assinada, então você não vai conseguir e tal... e tal... e tal. Aí no final já para sair de lá eu solicitei. Eu saí de lá em agosto, aí foi o período de… de solicitação em julho, né? Que é quando o semestre começa. Aí solicitei e fui… e consegui, desde então, desde meio do ano passado que eu tenho a...

Dayse: Então, no seu ponto de vista... é… você teve uma assistência da universidade nessa sua... é...

Ruth: ... trajetória.

Dayse: Nessa sua trajetória. Você é de origem popular, da classe popular, alguns chamariam de outro nome, pobre...

Ruth: É.

Dayse: Vários… eu uso da classe popular, que é aquela renda de dois a três salários mínimos por família, e na sua fala eu vi você teve o apoio, assim que você ficou desempregada você teve a bolsa e o auxílio, tem toda a alimentação no RU.

Ruth: Almoço e janto lá.

Dayse: Sem isso… sem esses auxílios você acha que seria possível você continuar a graduação? Desempregada e...

Ruth: Ah, não! Não mesmo! Assim, meus pais iriam me ajudar no que fosse possível, né? Mas a situação já não é muito das melhores, então eu tinha que trabalhar, realmente, mesmo para me manter, porque os gastos e o aluguel que não é barato e tudo mais, alimentação… então assim, essa ajuda que a UFRN me dá é de extrema importância. E até porque com essa bolsa é só quatro horas, lá é bem tranquilo. Eu tenho tempo para estudar, sabe? Então melhorou bastante.

Dayse: Como é hoje a sua rotina na universidade? Tipo, quantas... rotina... olha... eu venho… eu vou para bolsa e lá eu estudo, quantas horas você acredita que dedica, assim, à graduação de Ciências Sociais?

Page 110: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

109

Ruth: Venho de manhã para cá, meu curso é de manhã, aí... é... saio de lá, vou almoçar no RU, saio do RU vou para casa, aí sempre paro uma horinha, duas horas para estudar, aí de cinco horas venho para cá, é…

Dayse: Você mora em qual bairro?

Ruth: Nova Parnamirim. Venho para cá, e… aí janto e venho para aula.

Dayse: E você já tentou pegar direto, porque é muito cansativo.

Ruth: Não, porque assim, é… eu e a menina, por que tem bolsista de manhã, tarde e outro a noite, às vezes a gente, quando eu não posso vir, ela vem e a gente, tipo, passa um dia aqui, de manhã e à tarde. No outro dia ela passa de manhã e tarde. Às vezes a gente troca. Já o semestre passado, ela tinha que pagar aulas à tarde, e eu vinha um dia sim e outro não, um dia sim e outro não, a gente ficava revezando. É cansativo, por que eu venho para cá umas 7:30 vou até 11:30, aí almoço, aí volto de 13h e fico até 17h. Então assim, é muito cansativo. Me acostumei, mas é cansativo passar o dia todo aqui.

Dayse: Sim, você já falou dos seus amigos… esse seu grupo que chega no final né? O grupo meio que se dispersa. Você, durante a graduação, você tinha momentos que você se encontrava com esse grupo fora e você sair, ir para algum barzinho ou para uma praça… Vocês tinham esses momentos de... Ou era aquela coisa só acadêmica?

Ruth: Não, a gente só conversava e tudo, mas a gente nunca foi de sair. Por que onde as meninas moram, em Nísia Floresta, então acessibilidade é horrível. Aí outras meninas são casadas, é da igreja… então tem toda uma programação, uma… Nunca ocorreu que tinha tempo para sair, sabe? Então a gente sempre foi muito daqui da universidade. Então, mas assim…

Dayse: Mas assim, extraclasse, tipo, tem um momento que vocês estão na classe. Mas qual era o lugar do campus que vocês utilizavam, assim, sei lá…

Ruth: Ah, para conversar? Sempre naqueles banquinhos, naquela pracinha.

Dayse: Ah, os banquinhos do corredor.

Ruth: É, por que a pracinha foi feita recentemente.

Dayse: Deixa eu só pensar nessa temática… Na minha pesquisa, eu vejo os meus atores, meus sujeitos, até a mim mesma. Depois eu vou contar a minha história para você entender como é muito parecida, as histórias se batem. Eu não acho que você, por exemplo, é dotada de superpoderes. Tem muitos autores que eu tô estudando que tratam o aluno de origem popular como um quase um X-MAN, assim, uma pessoa dotada. Não. Eu vejo a gente como seres humanos que adotaram estratégias para sobreviver.

Ruth: Para sobreviver...

Dayse: Eu uso essa palavra: sobreviver. Sobreviver academicamente. É tanto que tem um termo que eu vou usar que é Darwinismo Social, Darwinismo Acadêmico. Por que a teoria de Darwin não mostra que o mais forte vence, ela mostra que o mais adaptado é o que vence.

Ruth: É o que vence…

Dayse: Então, tanto ricos como pobres, elite e classe popular, todos entram em momentos de crise.

Ruth: Com certeza.

Dayse: Você tem que se reinventar para sobreviver.

Ruth: Tem que se adaptar né?

Dayse: Se adaptar… Então, e aí o tema central é socialização. Quando o estudante entra aqui ela é ressocialização, ele aprende novos códigos, novas culturas.

Ruth: Uma nova visão do mundo né?

Dayse: Uma nova visão… Ele é acostumado com a escola, ele tem que se acostumar com tudo. Então, diante disso que eu te falei, de estratégias, de resiliência, é uma palavra central

Page 111: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

110

que tem até no meu título que é a capacidade que a gente tem de passar por momentos difíceis, mas se manter… Eu nem falei o nome do meu título né? O título do meu trabalho é ―Quando desistir não é uma opção: resiliência, socialização e estratégias de permanência dos estudantes das classes populares na UFRN‖. Barra né?

Ruth: É…

Dayse: Então, eu noto pela sua trajetória, porque estamos encerrando a entrevista, você teve momentos de muita crise, momentos de desistir… ficou com matérias apenas em cima do muro. Você fez uma graduação empurrando com a barriga muito tempo, mas, para eu entender, o que foi crucial para esse seu regresso e para essa conclusão de que em breve você vai concluir, o que foi determinante, assim, eu tive esse estralo, assim.

Ruth: Assim, quando eu realmente parei… Assim, no começo do curso é aquela coisa como eu falei, encantador né? É uma visão diferente, daquela que você é acostumada a ver. Parece que eles colocam, tipo, os professores mais carismáticos nas introduções para a gente se encantar, ai depois vem só ó… os barra pesada. Mas assim, no começo é aquela coisa, mas depois, começa a… como eu disse, a parar para pensar se era isso que eu queria e tudo mais, não sei o que. E eu fui levando o curso com a minha barriga, com a barriga. Sendo que, mas sempre eu gostei do curso. Sempre foi um curso que me atraiu. Apesar de não ter certeza se era isso que eu queria, mas sempre me atraiu Ciências Sociais. Mas, quando eu realmente parei para estudar, assim, eu pensei em desistir, mas ao mesmo tempo não queria.

Dayse: Mas não queria por quê?

Ruth: Por que eu gosto do curso. Eu gosto da temática. Eu gosto de trabalhar, dessa área de humanas. Eu pensei até em ir para Fisioterapia, era a faculdade que eu iria fazer se eu fosse fazer em outra universidade, visando o mercado. Mas, assim, eu parei eu fiz ―não, não vou largar a minha faculdade. É um curso que eu gosto e que daqui a um tempo eu vou terminar‖. E hoje, inclusive, eu penso em um Mestrado, que era uma coisa assim, surreal no começo, no meio do curso. Mas assim, eu parei para estudar e fiz ―não, não vou desistir‖. Minha irmã até falou ―desista, o mercado não é bom e tudo mais. Vá fazer um curso que tenha retorno financeiro‖, eu fiz ―não, não vou. Não vou‖.

Dayse: Você teceu muitos elogios na sua fala, falou da sua assistência. Mas se você pudesse fazer alguma ressalva, alguma melhoria que a universidade poderia melhorar essa assistência estudantil popular. O que você acha assim, tal coisa que está deixando a desejar que poderia melhorar um pouco mais.

Ruth: Eu acho que deveria ter mais bolsas, sabe? Para atender mais pessoas, que a gente vê que tem muitas pessoas aqui que precisam também de fato e que não são assistidas nos programas. Tem gente aqui, principalmente no meu curso, tem gente que eu vejo que passa o dia aqui e não tem um auxílio, solicita bolsa alimentação, mas não é contemplado, não ganha. Então, acho que essa questão das bolsas deveria aumentar abranger mais estudantes e dar realmente esse apoio a todo mundo que precisa, né? Apesar que, isso é difícil acontecer, mas eu acho que deveria melhorar nesse ponto, né?

Dayse: E agora a última pergunta, oficial, para a gente encerrar. Como e que você enxerga o seu futuro hoje? Seu futuro profissional. Você vai concluir… qual a perspectiva que você tem de mercado de vida.

Ruth: É complicado. Eu faço licenciatura, mas não quero ser professora. Penso em um Mestrado futuramente, quem sabe. Também penso em fazer outra faculdade. É bem confuso na minha cabeça, mas eu quero seguir na área de humanas. Eu não sei, eu não quero terminar por aqui, quando terminar de fazer essa graduação parar. Eu pretendo fazer outro curso, outra graduação ou em Serviço Social que eu sempre quis ou então Psicologia. Eu gosto dessa área, dessa questão de conviver com pessoas, de saber os problemas e tudo mais. Eu gosto disso. É nesse caminho que eu quero seguir. Mas não sei né? Também tô começando a fazer concurso para ver que a gente sabe que é uma área de estabilidade

Page 112: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

111

né? Mas ainda tô tentando trilhar, porque eu tô no oitavo período, mas não vou terminar esse ano, vou terminar só no final do próximo. Então eu ainda tenho um tempinho aí para ver o que eu pretendo da minha vida. Eu iria fazer o ENEM, eu até pensei em fazer o ENEM esse ano, mas se eu passasse não iria dar certo porque eu vou só terminar o curso próximo ano. Mas próximo ano eu vou fazer o ENEM para ver né, no que vai dar.

Dayse: Muito obrigada, Ruth. ENTREVISTA COM JURISTA Estudante de Direito, 19 anos. Data: 29/06/16 Local: Residência Universitária - UFRN Duração: 50:38

Dayse: Dia 29.06, na Residência Universitária, essa primeira pergunta é mais para você dizer a sua idade, período e ano de ingresso.

Jurista: Eu tenho 19 anos, eu ingressei na UFRN em 2014.1, mas mudei de curso um ano depois e entrei em Direito em 2015.1.

Dayse: Qual foi sua primeira graduação?

Jurista: Minha primeira graduação foi Comunicação Social - Radialismo. Fiz um ano, interrompi e fui para Direito.

Dayse: E está no quarto período?

Jurista: Sim, quarto período em Direito.

Dayse: Você nasceu aqui em Natal?

Jurista: Sim, nasci em Natal, mas fui criado no interior. Inicialmente, minha infância foi em Ceará-Mirim e aos 9 anos me mudei para Tibau do Sul, onde meus pais moram até hoje.

Dayse: E a sua infância escolar?

Jurista: Minha infância escolar foi até muito boa. A minha mãe trabalhava, era diretora de uma escola estadual e eu acabei tendo uma infância estudando em escola particular. Meu ensino infantil e o ensino fundamental, até o fundamental II que seria o sétimo, e no oitavo ano eu saí da escola particular e fui para escola estadual lá na minha cidade em Tibau do Sul. Mas meu ensino fundamental foi excelente, muito bom. Estudei em boas escolas e tive uma base muito boa, até hoje.

Dayse: Você tem irmãos?

Jurista: Tenho. Da minha mãe e do meu padrasto eu tenho um irmão, que eu fui criado. Paternos eu tenho outros, mas não tenho contato, não tive uma criação com eles. Fui ter contato com eles já na adolescência.

Dayse: Sua mãe se casou com seu padrasto, você tinha quantos anos?

Jurista: Eles tinham namorado na juventude, eles voltaram eu tinha uns dois anos. Eles se casaram no papel recentemente, mas estão juntos desde quando eu tinha dois anos.

Dayse: Qual a escolaridade da sua mãe?

Jurista: A minha mãe tem o magistério que fez quando cursou o ensino médio. Na época recebia para dar educação básica. Aí foi isso, ela fez. Ela estudava em Recife, o pai dela era militar, foi lá em Recife que ela acabou.

Dayse: E o seu padrasto?

Jurista: Meu padrasto parou de estudar na quinta série, sexto ano. Ele não tem o ensino fundamental completo.

Dayse: E a profissão dele?

Page 113: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

112

Jurista: Ele trabalha com pesca. Ele sempre trabalhou, arranjou um ―bico‖ com algo relacionado a isso, porque a gente vive numa cidade turística e também tem a pesca que é bem forte lá. No início da minha adolescência ele trabalhava com pesca ainda, com Jangada e tal. Depois ele começou a trabalhar com turismo. Ele era piloto de uma lancha lá em Pipa. Ele trabalhava para um cara lá. Atualmente, ele tem um barco e pesca. Tem um pessoal que ele contrata.

Dayse: Você fez o ensino médio em escola pública. Como foi essa transição do fundamental?

Jurista: Foi uma coisa bem complicada, porque teve uma crise na nossa condição financeira quando eu estava no sexto ano. Minha mãe ainda quis me segurar na escola particular, mas não tinha mais condições. Ela queria que eu tivesse pelo menos o ensino fundamental na escola pública para tentar entrar no IF, entrando pelo PROITEC que é para o pessoal de escola pública. Ela queria que eu tivesse entrado no IFRN e eu não entrei. O resto da minha formação escolar foi em escola estadual. Teve toda uma crise financeira, ela teve um problema com a pensão dela. Ela ganhava um certo valor, ganhava 50% da pensão… Ela e a irmã dela. A madrasta entrou nessa pensão e ela acabou ficando com apenas 25% e teve que devolver tudo que ela ganhou ao longo dos anos.

Dayse: A madrasta dela que era esposa do seu avô?

Jurista: Sim, namorava. Tinha uma relação estável. Até hoje ela tem uma conta com a Marinha que ela devolve uma boa parte do que ela ganha. Isso foi a principal causa dessa queda da nossa condição financeira.

Dayse: Como foi essa sua estadia na escola pública?

Jurista: A estadia na escola pública, como eu era criança, foi bem tranquila. Eu estava mudando para um lugar novo. Eu sabia que tinha de ir e fui. Inicialmente não foi tão frustrante. Hoje quando eu analiso assim, mas quando eu cheguei, logo vi que tinham alunos que se destacaram bastante e eu consegui manter o meu rendimento escolar, mas não como antes. E acabei percebendo que eu me desestimulei bastante. Faltava professor, aqueles problemas de escola pública do interior. Os alunos não tinham muita perspectiva. Era um pessoal que era muito desligado para estudar. Isso acaba desmotivando alguém que estava desmotivado. Eu estava entre os três melhores na minha turma anterior e eu continuava sendo o melhor, mas não me esforçava. Porque, eu não sei se tem muito a ver, mas aquela competição era saudável para mim. Me estimulava a estudar. Sempre querendo me destacar e quando eu mudei, eu percebi que não tinha mais razão para isso. Acabei me desmotivando bastante. Foi péssimo. Foi muito ruim isso que aconteceu, porque hoje eu tenho muitas dificuldades devido a isso, eu ter me desestimulado. A ausência de professor já era um déficit muito grande. Só no final do ensino médio que a gente foi ter professores realmente bons. Teve um concurso do Estado e eles realmente vieram. Professores do IF, com mestrado, aquela coisa toda. Mas tinha muito aquele problema de professores dando disciplinas que não eram da sua área de formação. Professor faltando, professor com planejamento ruim… Uma educação que não tinha o propósito de preparar um aluno para um ENEM, por exemplo. Eu sofri muito com isso. Foi um adicional para que eu tenha conseguido entrar numa federal assim que eu acabei o ensino médio... Porque meus outros amigos, da minha turma eu fui o único que conseguiu, foi eu ter feito cursinho no semestre do Pré. Eu estudava lá de manhã e vinha de tarde e a noite para cá para poder estudar. Porque eu sabia que o ensino da minha escola não era suficiente.

Dayse: E onde foi que você fez esse cursinho?

Jurista: Foi no CDF. Não foi exatamente um semestre. Foram 3 meses, o ENEM foi em Outubro e eu comecei em Agosto… Agosto, Setembro e Outubro. Aí ajudou bastante para que eu tivesse pelo menos um foco no fim da minha graduação. Mas eu percebi muito que meus amigos não tiveram facilidade. Da minha turma, como eu falei, somente eu passei numa federal. Um ano depois… Dois anos depois, um menino da minha turma passou no IF.

Page 114: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

113

Ele faz Edificações no IF. De universidades federais e institutos federais, o único que conheço é ele. Na minha escola tinham essa dificuldade de passar na federal.

Dayse: Como era sua relação com os amigos na escola?

Jurista: Eu não era muito próximo das pessoas da escola.

Dayse: Você consegue analisar alguma razão para isso?

Jurista: Eu não era muito próximo das pessoas da escola, talvez porque eu tive uma criação diferente. Por mais que eu tenha tido a crise financeira, aquele decrescente na renda todinha... Eu tinha uma mãe que era educadora, eu fui criado a vida inteira numa secretaria de escola. Meu pai, por mais que ele não tenha toda essa instrução, ele me cobrava muito, muito mesmo. Ele cobra de mim o que não faz por meu irmão, por exemplo. Eu tinha parentes que já estavam na universidade. Eu tinha parentes do meu pai biológico que se formaram e tinham tido um certo sucesso profissional. Enquanto meus amigos já estavam mais propensos com aquilo ali. Desde pequeno eu queria estudar inglês, eu queria sair, eu queria fazer um intercâmbio. Mesmo sem ter dinheiro e as outras pessoas não tinham essa vontade. Aí eu acabei o ensino médio todo e só tenho uma amiga. As outras pessoas eram colegas. Ela não era não era da minha sala e ela também está na Federal. Com ela aconteceu o mesmo que eu. Ela teve uma educação básica na mesma escola particular que eu, embora a gente não se conhecesse. Hoje está na UFPB e é isso. O resto das pessoas eu não me identificava, até hoje eu não me identifico com essas pessoas. Você via que essas pessoas seguiam muito aquele ciclo de cidade do interior… Estudava, acabava, casava com 18, 19, 20 ou, se não se casar, mesmo assim ia trabalhar no hotel, numa pousada, numa lojinha.

Dayse: Sua amiga era de outra turma, mas você a conheceu como?

Jurista: Eu era da igreja na época. Uma igreja evangélica protestante. A gente se conheceu nesse período da igreja. Eu tive outras pessoas próximas, mas ela foi a única pessoa que eu mantive a amizade porque a gente se identificava muito. Até mesmo nessas crises espirituais até mesmo nas crises mais céticas. A gente saiu junto da igreja inclusive. E também nessas aspirações quanto ao futuro, de estudar, ter um curso superior. As outras pessoas não pensavam nisso... As pessoas pensavam em ficar naquilo ali e acabar. E foi o que aconteceu. Inclusive, quando eu volto a minha cidade... Não hoje, porque eu já me acostumei, mas quando eu voltei a primeira vez, porque quando eu vim morar aqui eu passei 3 meses sem voltar, em 2014. Quando eu voltei para lá, eu percebi que as pessoas que estudaram comigo estavam trabalhando no mercadinho, trabalhando como recepcionista do hotel e era tanta gente que tinha tanto potencial, mas não foi trabalhado porque a escola não deu condições para isso.

Dayse: Certo... Tentando fazer essa retrospectiva, você fez um pouquinho do cursinho do CDF, estudou alguns meses... Você chegou a tentar vestibular ou já era ENEM?

Jurista: Já era ENEM.

Dayse: Daí você ingressou em Comunicação Social. Era o que você almejava?

Jurista: Eu já sabia minha área. Eu sabia que eu queria um curso de Humanas, mas eu ainda não sabia qual. Eu tinha aquela vontade ―ah, eu faria Direito sim‖. Mas eu sabia que não importasse o curso da área de Humanas, por causa dos métodos, eu me daria bem. E eu achava tudo muito interessante, eu não sabia se eu queria Direito ainda, se eu queria Comunicação. Foi mais naquele período, porque a nota deu. Mas eu gostei bastante quando eu comecei Comunicação… Foi excelente. E até mesmo quando eu mudei de curso, que eu entrei no Direito, eu não sabia se eu queria mesmo. Foi só um teste eu acabei ficando porque gostei. Estou no quarto período.

Dayse: A transição se deu através de quê? Você fez um exame?

Jurista: Fiz ENEM de novo. Eu comecei a fazer ENEM no segundo ano do ensino médio e eu continuei fazendo ENEM todos os anos. Ano passado eu ia fazer também, mas eu tinha

Page 115: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

114

uma prova na mesma semana. Eu preferi estudar para a minha prova. Era a graduação que eu estava gostando, mas eu ia fazer de novo. Tenho o costume de fazer ENEM.

Dayse: Esse ano que você fez Comunicação Social, você estudou algo para o ENEM?

Jurista: Não. Eu não estudei nada. Foi até uma surpresa a nota ter aumentado a ponto de eu poder entrar no meu curso.

Dayse: Você escolheu Direito por quê? Você acredita que porque, sendo bem sincero...

Jurista: Pelas possibilidades. Tanto de se desenvolver academicamente, pela área de pesquisa tão grande, tão extensa, com tantas possibilidades. E também pela possibilidade de ascensão social, aquela coisa toda. Eu não escolhi Direito exclusivamente pela possibilidade de crescer ou pelo dinheiro. Eu realmente me interessei pela pesquisa na área, achei muito interessante. Eu cheguei meio perdido, meio que de paraquedas, mas depois eu fui compreendendo e fui gostando bastante. E foi inicialmente um teste para eu não me arrepender de não ter cursado o curso que eu havia passado. Eu disse: ―Vou cursar Direito, se eu não gostar, eu volto‖. Mas não foi muito pelo financeiro, eu posso dizer isso.

Dayse: E como foi esse seu primeiro semestre aqui?

Jurista: Meu primeiro semestre em Direito foi frustrante. Porque em Comunicação, talvez seja pelo o perfil do alunado de Comunicação é totalmente diferente dos alunos de Direito. O perfil do alunado de Comunicação é bem mais... o pessoal em si, é bem mais alternativo, não liga mais. Além disso, o curso não… O curso talvez seja só uma desculpa porque a gente precisa de um diploma. Mas o curso de Comunicação da universidade não prepara tanto para o mercado. O pessoal focava mais no mercado, aí por isso que não me achei. As minhas notas não eram tão boas, mas eu estava ali com todo mundo, porque ninguém estudava. Ninguém levava aqui muito a sério e o importante era o mercado que não ligava para nota. Já em Direito eu senti uma dificuldade muito grande. Foi frustrante no início, porque eu me vi numa sala com gente que tinha feito ensino médio no Canadá, que tinha estudado no Marista, no CEI, no Salesiano. Tinha vindo das melhores escolas de outras cidades, aquela coisa. E gente que tava… Tinha família que já tinha uma estrutura no Direito, muita gente já tem família que tem escritório, pai que é juiz. O pai já montou aquela coisa toda e foi frustrante para mim, porque eu me senti incapaz inicialmente. Veio toda aquela coisa, eu não tive… A gente trabalha muito com Filosofia, Sociologia… Com essa parte de Ciência Política e tudo tem a ver, que eu não tinha tido no ensino médio. Eu não estudei Filosofia que se aproveitasse. Eu não tive professores capacitados que dessem aula de Filosofia, nem de Sociologia. Nem de Física, nem de Química, mas eu estou em Humanas e essas são as disciplinas que interessam. Mas foi bastante frustrante, porque eu senti dificuldade inicialmente foi algo que me desmotivou e me fez assim: ―Talvez eu não tenha nascido para o Direito‖. Porque eu não tinha essa preparação anterior. Nas disciplinas específicas de Direito, eu fechei com 9,7, por exemplo. Mas disciplinas como Sociologia, como Filosofia, eu tirei 5 no semestre. Acontecia muito isso, porque por mais que o professor esteja dando aquilo de novo, ele pressupõe que você já tenha estudado um pouco daquilo. E eu não tinha estudado aquilo direito, foi bem difícil. Foi muito difícil para mim nessa parte. E também porque o perfil do curso já é um perfil mais elitizado. Os projetos são assim para… Quando você vai ver, tinha gente no primeiro período já tava estagiando no escritório do pai, aquela coisa toda. E você que é uma concorrência muito grande, pessoas que têm uma capacidade muito grande, porque foi aproveitando tanto no ensino fundamental, quanto ensino médio. E isso desmotiva bastante. Aí, eu nos meus dois primeiros períodos eu fiquei muito desanimado em relação a isso, me sentia incapaz demais. Fui me encontrar mais no terceiro período quando eu percebi vou focar, que começou as disciplinas mais específicas, e aquelas de Filosofia, Sociologia, Política, foram ficando para trás. Eu fui focando nas disciplinas como Direito Civil, Direito Penal, Direito Constitucional que eram uma coisa nova para mim, quanto para todo mundo. Eu estava ali no nível deles naquele conhecimento que era novo. Mas inicialmente foi muito ruim para mim.

Page 116: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

115

Dayse: E sua relação, você formou amigos?

Jurista: Sim, desde do início, na universidade, desde Comunicação Social, meus amigos de Comunicação até hoje são meus amigos. Sou próximo deles. Fiz amigos na turma, tenho meu grupinho lá na sala. Sempre estou com eles e então foi muito bom para isso. É porque teve isso de identificação. Quando eu entrei na universidade eu consegui realmente ter amigos. Não só na universidade, mas desde o cursinho. Embora os amigos do cursinho não tenha ficado, mas eu consegui fazer amizades no cursinho. E na universidade como eu estava estudando todos os dias com aquelas pessoas, eu também acabei fazendo amigos que eu vou levar para vida, por exemplo.

Dayse: E sua relação no início do curso de Direito com esse pessoal que você falou, com uma realidade social totalmente diferente da sua. Como que era?

Jurista: O meu curso me surpreendeu. O Direito me surpreendeu inicialmente, porque eu vinha de Comunicação e por mais que eu já estivesse na universidade, todo mundo, de todos os outros cursos, tem uma visão muito ruim dos estudantes de Direito. É aquela visão de que é o pessoal elitizado, mais reacionário... Direito conservador e não… Principalmente nas turmas, uma coisa que eu percebi analisando as turmas de Direito depois que o ingresso passou a ser pelo ENEM, ficou um perfil de alunado, tipo… Muito mais diferenciado. Pois o pessoal é bem mais envolvido com ativismo, com ativismo estudantil, com o DCE, com toda aquela coisa. O pessoal é bem mais de esquerda ou liberal. E o pessoal é mais diversificado, tem um perfil mais alternativo, não é aquela coisa coxinha, engravatada e engomadinha, como a gente espera que seja. São coisas que me impressionou. Por isso que eu não tive dificuldades de fazer amigos no meu curso.

Dayse: E você sentiu um impacto com relação à questão específica de classe?

Jurista: Sim.

Dayse: Fale mais sobre isso.

Jurista: Sim, porque o que acontece. Tem toda aquela coisa, você tem que… Você vai trabalhar com um pessoal que é da elite. Você vai… O pessoal do curso é dentro dessa elite. Tipo, há muita coisa assim. O pessoal do Marista e quando esse pessoal do Marista entra na UFRN, eles continu am bem unidos e não só de um período, mas de todos os períodos. Por exemplo, esse pessoal do Marista que organizou a formatura a formatura do Marista, do Pré deles, vão organizar provavelmente a formatura do curso da graduação. E fica aquela coisa, tanto no curso, quanto num projeto de extensão, sempre essas pessoas estão mais presentes. Talvez assim, porque eles tinham contato antes. Todos se conhecem e é natural que aconteça esse tipo de coisa, que as pessoas terem se aproximado de uma forma mais rápida. Para mim não achei tão difícil, porque digamos que eu tenho uma capacidade boa de socializar com as pessoas. Mas eu conheço pessoas que sentiram dificuldades e se sentiram até oprimidas nesse sentido de não conseguir penetrar nesses grupinhos, para entrar num projeto de extensão, num projeto de pesquisa ou alguma coisa assim. Tem até boatos, que eu acredito que sejam boatos de por exemplo, determinadas revistas do curso, muitas revistas e muitos projetos extensão que aí só entra, tipo assim… Alguém falar ―Nossa, queria tanto entrar em tal revista, mas não tenho o perfil. Não tenho carro‖. É um boato muito antigo, provavelmente não é verdade. Provavelmente só seja um boato que eu acredito que sim. Mas tem muito isso, muito de estágios, priorizam pessoas que tem carro. É toda aquela coisa. Um amigo meu da residência aqui mesmo, uma vez falou que teve que ir para uma entrevista e teve que pegar um ônibus. E foi um dia que estava com dificuldade para pegar ônibus, tava um sol quente. Ele chegou na entrevista de estágio todo suado e o pessoal tinha chegado de terno, com seu carrinho, aquela coisa toda e ele se sentiu como se estivesse bem atrás dos outros nesse sentido. E é uma coisa que eu também escuto. Porque, é… Você vai percebendo que realmente faz uma diferença você ter um carro, porque você tem que ir no Ministério Público, tem que num juizado ―num sei o que‖ pegar um documento. E eles vão priorizar isso. Não pensam geralmente naquele aluno que tem que pegar ônibus, que vai ter dificuldades no transporte público.

Page 117: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

116

Dayse: E no aspecto assim extraclasse… Churrasco, reunião de turma, você está inserido, você estava presente?

Jurista: Sim, eu sempre estive presente no chu… Na verdade, eu não me insiro muito no… Por exemplo, teve o São João da turma, eu não participei. Algumas festas da turma mesmo, não participo. Mas porque eu não gosto muito desses momentos. Quando eu participo não é nada relacionado a isso, porque eu não tenho tantos amigos na turma. Tantos amigos próximos. Meus amigos próximos não vão. Acaba que eu não vou, como teve agora e eu não fui. Mas churrasco… No curso tem algumas tradições que são bem interessantes. Como todo início do período temos três churrascos que são promovidos pelos calouros. Um da turma da manhã, um da turma da noite e um das duas turmas juntas. E sempre tem esses momentos de integração entre os alunos, tal e eu não senti nenhum problema em me integrar com as outras… E me juntar as outras turmas, aquela coisa toda. Foi bem fácil, eu não senti nenhuma dificuldade neste sentido não. O pessoal foi bem aberto para me receber. Tanto eu como os outros cotistas, por exemplo. E eu acho que alguém que esteja numa situação financeira pior que eu, talvez tenha dificuldades por não poder participar do churrasco, bancar o churrasco.

Dayse: Qual é a média de contribuição?

Jurista: Geralmente, eu acredito, porque eu não participei dos meus churrascos. Eu fui remanejado, eu acabei chegando depois. Eu ia participar do terceiro churrasco que era das duas turmas. O terceiro churrasco ele daria 25 reais para cada um. Eu acabei não podendo ir porque tinha outro compromisso no dia, mas para mim eu poderia pagar, por exemplo. Tanto os 25 de um churrasco... é… Do churrasco integrado das duas turmas, como os 50 de uma turma só. Eu poderia pagar isso, mas eu acredito que tem pessoas que poderiam ter essa dificuldade.

Dayse: Os três churrascos seria no caso 75 reais, em média.

Jurista: Você só paga dois. Você é de uma das turmas. Você paga o primeiro que talvez seja em torno de 50 reais, por exemplo, no máximo. E o segundo dá uns 25. Aí você, para mim dava. Dava… Eu conseguiria pagar isso, participar. Mas para outras pessoas talvez tenha alguém com dificuldade, por exemplo.

Dayse: Aí você hoje, falo amigos um termo mais… O pessoal que você faz trabalho… O pessoal mais unido, né? O seu núcleo, núcleo na amizade na sua turma é de quantas pessoas? Você e mais quantas?

Jurista: Agora uma pergunta que entra outros fatores, não somente…. Porque bem assim, meu grupo realmente na turma de pessoas mais… Eu me dou bem com a maioria da turma. Eu me dou bem com a maioria dela, não tenho ninguém que eu me dê mal realmente. Que eu… Mas eu me dou bem com quase todo mundo. É… Tem as pessoas que são próximas de mim que eu posso encontrar numa festa, por exemplo. E tem as pessoas que são as que realmente andam comigo, fazem trabalho comigo. Eu acho que são umas 4, não são 4 porque um desses meninos desistiu do curso. Mas também entra nessa questão… nisso não, são pessoas de classes sociais totalmente, mas entra aquela questão do ativismo LGBT, por exemplo. São pessoas que estão mais envolvidas nessa coisa de questões LGBT. Sou gay. Tenho minhas amigas que são lésbicas, bissexuais, simpatizantes, apoiam a causa. Consomem a cultura igual, consomem os mesmos artistas. O mesmo tipo de conteúdo de conhecimento, entende? Acaba que meu grupo mais próximo, são as 4 pessoas.

Dayse: Então vocês foram unidos pelo ativismo e pelos estilos de vida.

Jurista: Ativismo entre aspas. Tem muitas aspas. Pelo estilo de vida sim, não, a classe não interferiu não.

Dayse: Interessante e quê mais? Hoje você tem algum… Vou continuar nesse foco que é muito interessante. Esse seu grupo é o grupo que você frequenta festas… O grupo que passou das paredes da universidade e fazem parte da sua vida? Como você encara?

Page 118: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

117

Jurista: De certa forma passou, apesar de não ter… A gente não frequenta as mesmas festas. A gente já saiu para festas juntos, já fomos para Ponta Negra uma vez ou outra. Já marcou na casa de um amigo para fazer uma noite, todo mundo assistindo filme. Mas não saiu tanto, porque o tipo de música que eu consumo é diferente da minha amiga lésbica que gosta de MPB (risos). Eu prefiro uma coisa mais POP. Acaba que não sai para tantas festas juntos. Mas a gente sai para festas juntos sim.

Dayse: Como você analisa a presença desse seu grupo na sua permanência na universidade?

Jurista: É… Não só do meu...

Dayse: Tanto positiva como negativamente...

Jurista: Não só do meu grupo, mas de vários grupos semelhantes no meu curso. Porque o curso de Direito, principalmente o perfil dos alunos mais antigos. A partir do quinto período... O quinto período já era ENEM. Não, não agora. O sexto período que é o anterior aos meus veteranos diretos. Mas o pessoal que entrou só do vestibular tem sempre uma dificuldade em relação a isso. É… As famílias geralmente são mais conservadoras, religiosas e os alunos são mais contidos, mais conservadores, entende? É um perfil predominantemente heterossexual, não turmas. É um perfil predominantemente nas turmas, mas… Talvez não sejam um fenômeno do ENEM e sim, também. Eu pensei agora no porquê. Porque depois do ENEM as turmas são bem mais alternativas, fogem daquele padrão de aluno de uma família rica e católico, protestante, bem conservadora… Aquela família tradicional. O perfil de aluno que entrou com o ENEM é bem mais diferente, bem mais empoderado nesse sentido LGBT, principalmente, os alunos que vieram do IF.

Dayse: Por que você acredita… Você trás sempre o ENEM como esse divisor?

Jurista: Porque, bem assim… O ENEM tem pontos positivos e negativos. Um ponto positivo dele é que permite o pessoal do IF, é… Ter uma… Tipo 50% da turma, por exemplo. Mas é… Também o lado de que eu acredito que a universidade não é feita para o aluno de uma escola estadual. Eu acredito que eu fui uma exceção. A universidade não é preparada, porque a gente vê que… é… Os 50% de ampla concorrência são de escola particular e os 50% de vagas das cotas são do IF. Com exceção de alunos que vieram de uma escola estadual. Nesse sentido o IF é muito bom, porque o IF permite uma… Um universo parecido com a universidade já no ensino médio. As pessoas geralmente entram… As pessoas… Os LGBTS eles geralmente têm uma dificuldade de se identificarem com as pessoas no fundamental e ensino médio. Eu por exemplo não me identificava muito com as pessoas, já na universidade eu encontrei meu grupo de amigos que eu me identificava, que… É, viviam, passavam pelas mesmas coisas. Eram, tinham se aceitado. Isso vai te fortalecendo. Já o IF, as pessoas encontram isso… é… Bem anteriormente e quando chegam na universidade já chegam de uma forma mais segura. Isso vai criando, por exemplo, hoje o perfil das turmas é… Existem basta… Quando não só depois, mas no primeiro período já tem muitos gays assumidos, muitas lésbicas assumidas, bissexuais. E o pessoal já envolvido nesse ativismo LGBT.

Dayse: Quando você fala ativismo entre as aspas, o que é esse ativismo para você? Qual o ativismo que você vive?

Jurista: É porque esse ativismo seria um ―Latu Sensu‖ de ativismo. Porque, exis… Seria desde o ativismo em coletivos que lutam pelos direitos LGBTS numa coisa mais concreta na realidade, até ativismo no sentido de propagar os… os… As pautas e defender as pautas publicamente. Defender publicamente as pautas desses grupos.

Dayse: Você é inserido em algum ativismo formal?

Jurista: Em grupo não. Eu já participei de evento. Eu fui para o encontro LGBT da UNE em São Paulo e… Graças à universidade que deu as condições de ir, porque eu não teria como ir sozinho. A universidade deu um ônibus para o pessoal ir, muita gente na mesma condição que eu. E o evento também deu isenção para os cotistas, facilitou muito. Mas tem… Quando

Page 119: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

118

eu falo ativismo é nesse sentido desde. Desde o ativismo mais pessoal, no sentido de se impor, de defender a sua causa nos seus espaços sociais até o ativismo envolvido num grupo, por exemplo, um ativismo mais concreto.

Dayse: Aí… você faz parte do DCE, de algum diretório, de algum…

Jurista: Não. Eu não faço parte de nenhuma organização, assim, mais do movimento estudantil, nem LGBT. A única coisa que eu participo atualmente, que tem mais um cunho social, é meu projeto de extensão, que é o MOTIRUM. Não sei se você conhece…

Dayse: Conheço.

Jurista: É um programa de educação popular em Direitos Humanos.

Dayse: No caso, como você teve acesso a esse congresso da UNI? Como é que se deu?

Jurista: Porque… em meio aos eventos, ao meio que eu vivo, eu conheço pessoas que são envolvidas. Por exemplo, DCE, que tem uma, que eu acredito que tenha uma cadeira LGBT para cuidar dessas questões de diversidade. E essas pessoas organizaram e meus amigos acabaram falando ―Ah, vai ter esse evento, você quer ir?‖. Eu falei que eu queria ir. Foi mais assim. Tanto, não só para mim, como meus outros amigos, porque não tem nenhum grupo, nenhum desses participava de um grupo específico, quase nenhum deles participavam.

Dayse: E como foi o seu ingresso aqui na residência universitária?

Jurista: Na residência, eu não entrei primeiramente aqui no campus. Foi inicialmente… inicialmente eu vim para Natal é… eu vim dividir apartamento. Eu tinha juntado um dinheiro nas minhas férias que eu trabalhei tocando. Eu tocava em Pipa. Eu trabalhei, juntei um dinheiro e acabei vindo. Até mesmo contra a vontade da minha mãe eu dividi apartamento. Com o dinheiro que eu tinha ainda consegui me manter dois meses, pagando meu aluguel e depois eu pedi ajuda da minha mãe. E nesse período que eu precisei da ajuda da minha mãe eu decidi pedir o auxílio da universidade e quando eu fui pedir o auxílio falaram: ―Você também tem a opção da vaga na residência‖, eu falei que queria. Com… no mesmo mês que teve que foi deferido meu auxílio, mesmo depois do prazo. Eu gostei muito do serviço social, porque ele viu a minha situação e ele deferiu o auxílio logo, tanto o auxílio alimentação no RU quanto o auxílio financeiro para pagar minha parte do apartamento, que eu dividia. Aí, com 15 dias depois, apareceu uma vaga para residência da Rua Mipibu lá em Petrópolis e eu aceitei. Eu preferi ir para residência mesmo. Eu passei lá o primeiro semestre, 2015.1 eu passei lá. Eu entrei em março e fiquei até, fiquei até agosto, início do segundo semestre. Aí quando chegou no segundo semestre, por que eu já tinha uns amigos aqui no campus, aí acabei decidindo me mudar para cá. Até porque era mais perto também, não ia gastar com passagem, ia poder dormir mais. Acabei vindo para o campus e inicialmente foi tranquilo. Eu peguei um… porque aqui no campus, tem aquela coisa: você está convivendo com pessoas vai ser difícil. Só que eu peguei um quarto tranquilo.

Dayse: O quarto é dividido com quantas pessoas?

Jurista: São 4 pessoas por quarto, duas beliches. Meu quarto foi bastante tranquilo. As pessoas são… algumas delas se tornaram minhas amigas mesmo. E até hoje estou no meu quarto ainda. Continuo lá. Teve algumas conflitos, mas devido a convivência entre outros meninos. Por exemplo, um saiu do quarto com raiva do outro. Mas coisas que acontecem. Mas em relação… como você pergunta? Relação a ser LGBT na universidade, na residência também?

Dayse: Também. Como é a sua vivência aqui?

Jurista: Quando eu cheguei aqui foi bastante fácil. Bastante fácil mesmo. E eu me impressionei porque, antes de eu vir para residência, ouvia muito daqueles conversas sobre opressão contra os LGBT‘s aqui dentro da residência. E era real. Só que quando eu cheguei não tinha mais isso. Sempre tem alguns… alguns com umas histórias bem bizarras até aqui dentro da residência. Hoje o pessoal LGBT, tanto gays como lésbicas, bissexuais, a gente tem uma trans hoje na residência feminina. É bem mais seguro de si. Eu não senti diretamente um preconceito, por exemplo. Pode ser que falem pelas minhas costas. Mas

Page 120: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

119

nunca ninguém me tratou de uma forma desrespeitosa. Talvez tenha a ver com o fato de eu sei de Direito, de eu ser uma pessoa mais firme, mais segura. Talvez tenha a ver. Por exemplo, acredito que outras pessoas que sejam de outros cursos ou outro tipo de personalidade possam sofrer esse preconceito. Como eu sei que sofreram. Antes de eu encontrar o LGBT da UNI em São Paulo, a gente fez um pré-encontro aqui na universidade, na residência, porque não somente eu, mas somos 5 pessoas na residência, 5 meninos da residência. A gente foi para esse encontro e antes disso a gente fez um encontro, um pré-encontro da LGBT aqui na residência. Foram umas 10, 11 pessoas, o que mostra que apesar de muita gente ser assumida, não se envolvia nesse… nessas atividades voltadas para pautas LGBT e muita gente contou, gente que está aqui há mais tempo. Eu cheguei em 2015.1 na residência da Mipibu, 2015.2 aqui. Já foi bastante fácil para mim, eu estou aqui há um ano. Menos de um ano. Mas teve gente que contou que quando chegou, inicialmente, sofreu muita... Muita repressão por parte dos estudantes. Tinha sempre uma piadinha, uma coisa assim. Foi uma coisa bastante difícil, tanto para mim, quanto meus amigos mais próximos daqui da residência, não foi difícil porque a gente já chegou bem depois e também porque a gente já chegou dentro desse meio que se impõe, defende seus direitos, aquela coisa toda, entende? Foi fácil…

Dayse: E já estamos na reta final já. Ciente de que você está sendo entrevistado para uma dissertação e que você terá assim, voz em relação a políticas de permanência da universidade. Quais aspectos você acredita que essa política precisa ser aperfeiçoada ou elogiada. Então você fica à vontade para tratar dessa pauta.

Jurista: É… eu acredito que a assistência estudantil tem mais defeitos do que qualidades positivas. Para começar, é... eu acredito que por mais que tenhamos tantas vagas, elas ainda são poucas. A gente tem aqui… são 4 prédios, 2 deles tem 64 pessoas e o outro tem 132 e mais outro com 132 pessoas. Sendo que um desses de 132 pessoas é somente feminino, acho que são 132, sou de Humanas. Dois andares, dois andares, quatro. Só o último lá atrás é feminino. Apesar de tantas vagas, ainda falta muita gente para ser alcançada com essa política de assistência estudantil. Tem muitos defeitos. E, apesar de faltar tanta vaga, nós somos 4 por quarto, 4 em um quarto que eu acho que são 3 por 3. 3 metros por 3 metros e é muito pequeno, o que ocasiona até mesmo esses conflitos entre os estudantes. É… a gente tem o auxílio estudantil, mas eu não sei falar sobre o auxílio porque eu tive um mês só de auxílio. Mas, eu acredito que é bem complicado, tanto. É porque, deixa eu pensar um pouco. Vou pensar um pouquinho. Vou esquematizar meu pensamento.

Dayse: É porque você está falando de algo que você tem mais propriedade, que no caso é o auxílio de no caso de residência.

Jurista: Sim, exato.

Dayse: Mas se você for pensar numa forma mais ampla, tipo de vários aspectos da permanência que vai envolver outros né?

Jurista: É… A gente já, teve umas… sempre umas discussões aqui na residência, reuniões às vezes. Sempre tem não, às vezes tem, sempre o conselho organiza, mas quanto a por exemplo, auxílio médico, é uma dificuldade muito grande. Eu, por exemplo, quando fui fazer esse óculos eu precisei de um auxílio… eu pedi uma consulta. Foi muito rápido, muito rápido mesmo. No dia que eu fui já me deram autorização, na mesma semana já estavam marcando. É… mas, quanto a outras coisas, por exemplo, já é mais difícil. Não tem, por exemplo, ambulância aqui. Já teve uma vez caso de gente passar mal aqui e não ter o que fazer, ter que sair correndo. Nenhum residente aqui tem carro, uma moto dessas não dá para levar uma pessoa doente para o hospital direito, uma pessoa que às vezes está desmaiando. Outra coisa que, eu vou tentar pontuar umas coisas assim, que eu acho falha. Quanto à permanência de grávidas, por exemplo, uma menina engravida aqui, eu sei que a universidade às vezes não tem condições de fazer tanto, mas é um problema que a gente deve pontuar. Mulheres grávidas não podem ficar mais ficar… mulheres quando… quando a menina tem um filho, ela não pode mais ficar na residência. Ela praticamente é expulsa,

Page 121: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

120

entende? E o que acontece? Eu acho que se torna um problema muito grande. Acho que mereceria até um estudo sobre isso quanto a permanência de mulheres mães na universidade. Tanto grávidas quanto mães.

Dayse: Tem um período gestacional que ela é convidada a se retirar? Como é?

Jurista: Eu não sei se ela é convidada a se retirar. Eu não tenho nenhuma amiga muito próxima, que tenha sido mãe. Eu tive uma amiga grávida, eu não sei como foi com ela. Eu posso perguntar depois e informar você. Porque ela acabou tendo que fazer um aborto cirúrgico porque bebê dela era anencéfalo. Mas, você nenhuma menina que é mãe, por exemplo, você precisa contar com a ajuda da família. E o que é bem difícil porque a gente já vê que a gente tem uma única residência feminina aqui no complexo residencial do campus e mesmo assim, essas tem menos vagas para as mulheres e mesmo assim, as que precisam ser mães, porque é uma realidade. Não tem essa oportunidade. Eu acho que isso afasta muito da universidade. Não tem um auxílio, sabe? Uma coisa presente. Outra coisa que eu vejo... eu tive problemas quanto a isso, foi conseguir uma bolsa de apoio técnico. Eu não tenho ainda, pelo menos eu acredito que eu não tenha ainda um período, eu não estou em um período suficiente para conseguir um estágio em um escritório, algum outro canto assim, e eu passe muito tempo procurando bolsa de apoio técnico. Foi muito difícil, apesar deles priorizarem os estudantes que são carentes no cadastro único. Apesar de eu me enquadrar nessas condições, não fui chamado. Tive muita dificuldade para conseguir uma bolsa. Eu consegui agora com essa sexta. E eu conheço gente que está na mesma situação que eu, que está… tem uma amiga minha, por exemplo, que está… ela falou ―Se eu não conseguir uma bolsa eu vou ter que sair‖ porque ela já tem 26 anos, eu acredito, e ela já não está podendo contar com o apoio da família dela para se manter aqui. E é bastante difícil. A gente ganha as três refeições, a gente ganha… todos os restos das coisas não. Ás vezes a gente tem uma passagem para pagar, tem que comprar alimento, porque a gente ganha um kit de quatro refeições, que é para lanches. Esse kit não dura um mês. Não dura nunca. Nunca vai durar um mês. E a gente precisa comprar lanche, precisa se alimentar em outros momentos, porque a gente tem café, almoço e janta, mas a gente precisa fazer outras refeições, que não vai só comer três vezes ao dia.

Dayse: Esse kit é composto de quê que vocês recebem?

Jurista: Ele é composto por 1kg de açúcar, 2 pacotes de café, 2 biscoitos Cream Cracker, 2 biscoitos Maisena, que pode ser Maisena ou Mara que são doce, 2 latas de leite Ninho, 1 lata de farinha láctea e 1 lata de Nescau.

Dayse: Isso por quatro.

Jurista: Não, por pessoa. Parece muito. Não dura. Não dura, realmente. Principalmente agora nesse período de recesso. Eu tive que ficar porque eu tenho uma bolsa. Muita gente teve que ficar porque tem uma bolsa. A janta vai das 5h às 6h da noite e você come às 5:30 da tarde, que é tarde para mim ainda, você vai ter fome no resto da noite ainda. Aí você tem sempre que gastar dinheiro para comprar alguma coisa para comer. Até o seu lanche… seu lanche não vai durar. O meu, por exemplo, acaba rápido. Eu ainda estou tendo, mas passar um mês com quatro biscoitos, quatro pacotes de biscoito não dá, né? Aí é bem difícil. Muitos estudantes precisam de bolsa de apoio técnico e não conseguem.

Dayse: Essa vai ser a sua primeira bolsa desde que você entrou aqui?

Jurista: Minha primeira bolsa de apoio técnico. Eu não… eu participei de duas entrevistas. Mês passado eu participei de quatro entrevistas para bolsa de apoio técnico. Não fui chamado para nenhuma. Eu fui chamado esse mês porque eu era suplente, e deu problema com outro… com a pessoa que ficou em primeiro lugar. Eu não teria ganhado, mais uma vez, se essa pessoa tivesse conseguido.

Dayse: Você exerceu alguma atividade remunerada nesses quatro períodos no direito?

Jurista: Não, não.

Dayse: De bolsa, estágio… voltou para Pipa para tocar…

Page 122: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

121

Jurista: Sim, eu voltei para Pipa para tocar, mas foi só nas minhas férias. Eu não passei as férias aqui, por exemplo. Eu passei lá no interior mesmo. Lá em Tibau.

Dayse: E você toca qual instrumento?

Jurista: Eu toco violão e eu canto. Eu tocava nos restaurantes, alguma coisa assim, lá em Pipa.

Dayse: E, a última pergunta, para encerrarmos. Quais são suas perspectivas? Que você encara para o futuro. Um aspecto realmente focado no curso, mesmo. Como você se vê daqui a algum tempo?

Jurista: Eu hoje, felizmente, muito felizmente, eu me identifico com o meu curso. Encontrei realmente... Principalmente agora que me envolvi com as disciplinas mais específicas e com extensão eu me encontrei com o meu curso. Eu estou num projeto de extensão já, eu estava tentando me envolver… Inicialmente, me segurei muito para me envolver porque eu não tinha certeza, não me achava capaz para nada, eu não queria participar das seleções. Eu não participei das seleções. Eu não… toda aquela minha insegurança até de participar das seleções. Aí, finalmente, esse semestre passado, quando eu estava no terceiro, eu vou para o quarto agora, eu participei para seleção da extensão, eu consegui entrar. Já participei de outras seleções. Já quero entrar na bolsa de pesquisa, numa base de pesquisa, voltada também para essa questão… meu núcleo do MOTIRUM é infanto-juvenil. E a gente atua no CEDUC, Padre João Maria lá na zona norte promovendo educação popular em Direitos Humanos para as meninas que cumprem medidas socioeducativas lá. Hoje eu gosto muito de ter me envolvido com isso e eu pretendo entrar em uma base de pesquisa, uma base já voltada para isso, porque... e que me permita até mesmo desenvolver uma linha de pesquisa em torno disso. Eu já tenho uma base de pesquisa que já é um núcleo de estudos em trabalhos, núcleo de estudos sobre o trabalho infantil, e eu quero focar nessa parte mais voltada para a criança, adolescente, talvez idoso. E talvez desenvolver uma dissertação no futuro sobre isso, porque eu pretendo continuar na universidade quando eu acabar. Eu pretendo ir para um mestrado, um doutorado. Não tenho nenhum plano ainda concreto quanto ao mercado fora. Seja tanto um mercado privado nos escritórios, tanto nas repartições públicas de Direito. Não tenho ainda. Eu pelo menos não pretendo com o curso, eu não tenho assim em mente fazer isso, exceto para o mestrado, para ser professor na universidade.

Dayse: Eu lembrei. Ia ser a última, mas eu me lembrei de um ponto bem importante. Você falou dessa sua total exceção em ser egresso da escola pública, né? Por que você acredita que conseguiu isso?

Jurista: Eu… o que acontece: o que eu tinha falado antes tem muito a ver, por exemplo, eu não me identificava com as pessoas por quê? Porque eu tinha tipo, uma criação totalmente diferente da delas. Eu tinha visto a minha mais, por mais que ela tenha estudado somente o magistério, minha mãe trabalhava numa... Minha mãe foi diretora, ela foi vice-diretora, foi diretora na DIRED, quando eu morava em Ceará-Mirim, eu tinha contato com pessoas que tinham tido instrução, que tinham tido acesso a universidade entende? Por mais que tenha sido tão… elas me incentivarem diretamente, mas eu via aquilo e aquilo me dava uma possibilidade, me dava uma, me fazia poder idealizar, por exemplo, aquilo para mim também. Enquanto outras pessoas simplesmente seguem isso daí de… ―Meu pai trabalhou em um hotel, minha mãe trabalhou numa lojinha, minha mãe é governanta de um hotel e minha avó é não sei o que, e acabou vou fazer isso‖. Hoje mudou, tem outros alunos, graças ao PROUNI, até mesmo o FIEIS entraram em universidades particulares, mas quanto a Universidade Federal, nós temos: eu, Monique, Miguel, Carol, Cícera… Eu acho que tem em torno de… o ônibus escolar que vem de Tibau ele pega as pessoas aqui, acho que tem em torno de 10 pessoas da Universidade Federal assim, que estudam à noite, que o ônibus é à noite. Aí eu acho que tem muito disso eu ter tido a oportunidade de ver minha mãe trabalhando com pessoas que tinham isso e eu pensava ―nossa‖, inclusive, engraçado que quando eu era criança eu queria ser escritor e eu lia muito, sempre ficava na secretaria

Page 123: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

122

lendo aqueles paradidáticos das escolas estaduais tem e eu tinha muito isso de contato com os professores. Na minha escola, eu forcei aquele aluno diferente, aquele aluno que, até mesmo talvez pela minha sexualidade eu não me identificava com os outros meninos, nem pelo meu perfil de aspirações sociais eu me identificava com as pessoas em geral… eu vivia na sala dos professores. Meu intervalo era na sala dos professores conversando com o meu professor de inglês, até porque no tempo eu era apaixonado por inglês. Foi aquela coisa toda, entende? No meio do meu ensino médio, quando eu tinha 15 anos, eu pedi para minha mãe para me matricular em um curso de inglês baratinho aqui em Natal e eu estudava de manhã em Tibau e eu vinha duas vezes por semana pra Natal. No meu curso de inglês, eu estudava com pessoas que hoje eu vejo aqui na UFRN, aí eu já via pessoas que estavam na UFRN. Eu fui tendo contato com essas pessoas. Depois de um ano de curso de inglês, eu decidi fazer o cursinho para o… eu saí do inglês e fui fazer curso para o ENEM. Aí eu já tive contato com pessoas que estavam querendo isso, a UFRN mais do que tudo na vida. Isso acabava me motivando, enquanto outras pessoas não tiveram isso. Por exemplo, uma coisa que me deixou bastante chocado, inclusive me motivou até a querer voltar na minha escola e hoje não tenho tempo, infelizmente, porque eu estou trabalhando agora na semana eu estou ocupado. Mas a querer voltar na minha escola porque, uma menina que estudava comigo, eu fiquei muito triste. Eu cheguei no mercado, o nome dela é Gleydiane, quando eu cheguei no caixa ela estava lá e ela ―E aí, tudo bem? tá sumido. Não passa mais por aqui‖ aí eu falei que estava morando em Natal e ela ―tá fazendo o que?‖ eu falei ―Ah, to estudando direto‖, ela ―Você tá estudando aonde?‖ eu falei ―Na UFRN‖ ela ―É particular é?‖ ela falou ―Como faz para estudar lá?‖. Era uma menina que estudava na minha turma e ela não sabe até hoje, eu já estava no meu segundo ano de universidade, no segundo curso, mas já no segundo ano de universidade e ela não sabia como entrar na universidade. Para você ver como… e não é somente a realidade dela, é a realidade de muitas outras pessoas lá do meu interior que não sabem como se entra na universidade. Que não sabem como… por mais que pareça absurdo para a gente, por mais que a gente ache que é obrigação da pessoa procurar as informações, mas não é sempre assim. Nem sempre a pessoa vai ter noção daquilo. Eu achei isso muito… eu fiquei muito triste quando eu soube disso. Eu falei para ela ―Você tem que fazer o ENEM, tem que botar sua nota, tem que ficar ligado nisso‖ comecei a explicar para ela, mas eu fiquei muito triste porque eu percebi que não era somente ela. Ela estava ali trabalhando num mercadinho porque ela não via outra alternativa para ela senão aquilo, porque outra alternativa para ela seria o quê? Pagar uma universidade particular, para ela é UFRN particular e ela não tinha dinheiro para pagar uma universidade particular. Eu achei uma coisa que me chocou bastante, porque era uma coisa que estava do meu lado, que estava na minha turma por um tempão, e eu não percebia, talvez por eu ser mais longe de todo mundo, não tive a oportunidade de falar para as pessoas ―Gente, é assim e assim‖. Pronto? ENTREVISTA COM ROSA Estudante de Ciências Biológicas, 21 anos. Data: 23/11/15 Local: Centro de Biociências (CB) - UFRN Duração: 26:30

Dayse: Hoje é 23 de novembro às 18:24. Eu vou entrevistar Rosa que é representante das Ciências Biológicas. Então, a primeira pergunta é bem geral. Sua idade, seu período e essas informações iniciais.

Rosa: Então, eu tenho 21 anos. Estou no 8° período, teoricamente. Mas assim, como a gente faz matrícula né, então é bem... eu estou adiantada, mas ao mesmo tempo atrasada em uma matéria.

Dayse: Você entrou em qual ano, então?

Page 124: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

123

Rosa: Entrei em 2012.1.

Dayse: Então, já que é o início né, então como foi a sua infância? Tanto escolar quanto da sua vida, se você pudesse resumir para mim, que eu não conheço você, né?

Rosa: Então, minha infância, em relação a estudo, foi... Eu não gostava de ler. Mas a escola que eu frequentava era tipo um regime religioso. Não sei se você já ouviu falar na escola.

Dayse: Era pública?

Rosa: Era pública e a diretora era uma freira.

Dayse: Daqui de Natal?

Rosa: Não, de Parnamirim.

Dayse: Eu acho que já ouvi falar.

Rosa: Então estudei toda a minha infância lá. E lá, a gente é meio que induzido a gostar de lá. Aprender a gostar de ler. Tipo, a gente sempre era estimulado a pegar livro na biblioteca, levar para casa, quando criança e tudo. Até quando mesmo não sabiam ler. A gente levava para os nossos pais lerem para gente. Então eu fui gostando. E lá eu me dedicava muito à escola, quando criança. Quando eu saí dessa escola eu fui para outra escola pública, só que não tinha um controle.

Dayse: Também de Parnamirim.

Rosa: Também de Parnamirim. Não era muito rígida quanto era no meu ensino básico, assim, fundamental mesmo. Da 5° ao 9° ano eu fiquei mais livre. Então, para adolescência e tudo, teve várias influências. Tinha matéria que eu tirava nota péssima, tinha matéria que eu me dava bem. Mas, aí pronto. Saí dessa escola fui para uma escola pública no ensino médio, uma escola pública de Natal. E lá, meio que eu senti na responsabilidade por estar saindo de perto de casa. Com a responsabilidade de estudar em si.

Dayse: Você se locomovia todos os dias de Parnamirim para Natal?

Rosa: De Parnamirim para Natal.

Dayse: E por que você se mudou? Você acreditava que lá seria melhor ou...

Rosa: Foi minha mãe, na verdade, que por indicações de pessoas assim, por ser uma escola boa. Aí minha mãe por indicação preferiu me colocar lá.

Dayse: Você respondeu no questionário, mas só para entender, por exemplo, a profissão do seu pai e como foi a trajetória dele nessa profissão.

Rosa: Então, meu pai hoje em dia não tem profissão. Ele tá desempregado.

Dayse: Só que antes do desemprego.

Rosa: Antes ele fazia... Ele sempre trabalhou no sítio com meu avô antigamente. Depois ele viajou para São Paulo para tentar algo melhor e tal, e voltou novamente para o interior, para morar com a família dele. Foi quando conheceu a minha mãe e quando eles casaram, ele sempre trabalhou em empresa, oficial, que era da família, da família do meu tio, na verdade. Meu pai trabalhava lá. Tipo, tinha um emprego garantido pela família, tipo isso. Mas ele recebia sempre um salário mínimo, normal. As condições sempre foram assim, básicas lá em casa.

Dayse: E os pais dele? Também eram de origem rural?

Rosa: Eram...

Dayse: Todos nessa...

Rosa: Todos. A família dele, tanto do meu pai quanto da minha mãe são do interior até hoje.

Dayse: Qual o interior?

Rosa: Lagoa Salgada.

Dayse: Os dois né? Eles são casados até hoje? O seu pai e sua mãe.

Rosa: Sim.

Page 125: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

124

Dayse: Você tem irmãos?

Rosa: Tenho um irmão, mas já casou há pouco tempo. Semana passada.

Dayse: Esse irmão fez faculdade? Estudou?

Rosa: Estudou, mas assim, ele entrou na faculdade e não seguiu... Não conseguiu terminar. E tentou um curso técnico de Administração. E formou no curso e exerce a profissão.

Dayse: Qual foi a faculdade que ele entrou? Qual curso?

Rosa: Foi faculdade particular. Foi assim que ele começou a trabalhar. Ele mesmo pagava.

Dayse: Você tem pessoas na família que estudam aqui na UFRN?

Rosa: Não.

Dayse: Você foi a primeira?

Rosa: A primeira a entrar.

Dayse: Já pensou...

Rosa: E até agora a única.

Dayse: A profissão da sua mãe. Você do seu pai...

Rosa: Minha mãe não. Ela nunca trabalhou. Assim, ela trabalhava quando ela foi jovem. Assim, primeiro emprego, essas coisas, em prefeitura, por influência de família, assim, conhecimento com políticos do interior.

Dayse: E a manutenção da sua família... Ela se dá de qual maneira? Você mora com seu pai e com sua mãe, avós...

Rosa: Com meu pai e minha mãe eu moro, aqui em Natal.

Dayse: Está confuso. Seu pai está desempregado e sua mãe é do lar.

Rosa: Não, meu pai é. Mas hoje em dia meu pai trabalha assim...

Dayse: Bicos.

Rosa: É, autônomo.

Dayse: Que interessante. O interessante de entrevistar vocês é enxergar minha história. Você sabe aqueles prestamistas, que carregam aqueles carrinhos que vendem panela, lençol...

Rosa: Sim.

Dayse: Que o povo chama de mascate. Que fica nas portas vendendo.

Rosa: Eu sei.

Dayse: Pronto, meu pai trabalha naquilo ali.

Rosa: E é?

Dayse: E minha mãe do lar. Minha vida assim, se eu tentasse explicar como eu sobrevivi... Eu não sei dizer. É um dia após o outro.

Rosa: Eu acredito.

Dayse: Aí você já falou do seu irmão, já falou do... Me fale um pouco mais do seu ensino médio. Qual era a sua relação com os professores... Com os amigos. Como foi o seu ensino médio. Você estudou em qual escola daqui?

Rosa: Na escola Ferreira Itajubá, lá em Neópolis. Era próximo assim, uns 10min de ônibus. Eu ia e vinha todo dia de ônibus e eu tinha dois amigos que iam e vinham comigo também. Também tem minha prima. Minha prima nunca gostou de estudar, entendeu? Aí ela não era muito, não tinha um vínculo muito grande comigo. A gente só ia e voltava juntas da escola. E eu gostava dos meus professores. Alguns eu tinha uma relação melhor do que outros. Outros eram assim, indiferentes, normal, entendeu? Nunca tive raiva de nenhum professor não.

Page 126: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

125

Dayse: Nesse seu percurso na escola, você era aquela aluna que ia para recuperação... Como era o seu desempenho, assim?

Rosa: Não. Recuperação não. Já tive uma época, bem na pré-adolescência que eu ficava em recuperação, essas coisas. Mas no ensino médio, acho que se eu fiquei em recuperação foi em pouquíssimas matérias. E tipo, geralmente era história, essas matérias que eu não muita afinidade.

Dayse: De onde vinha a sua motivação de estudar?

Rosa: Sinceramente?

Dayse: Se você pudesse se autoanalisar, olhe, de onde veio isso de você ―Eu preciso estudar, eu preciso...‖

Rosa: Na verdade, eu não sei. Acho que eram as minhas relações. Por exemplo, eu só tinha amigas que gostavam de estudar. A gente se juntava para estudar ou ia para casa da outra fazer trabalho, essas coisas. Minha relação de amizade geralmente foi em estudar. E eu também nunca pude sair muito. Eu era muito presa, assim, em casa. Então, o que eu ia fazer? Estudar, ou ler.

Dayse: A sua família, com relação aos seus estudos. Qual o papel da sua família? Ela era mais neutra ou se importava com o fato de você estudar?

Rosa: Antigamente, assim, quando eu era criança, minha mãe ficava sempre no meu pé, e me ajudava. Só que ela mesma dizia que à medida que eu fui avançando os anos assim, ela mesma dizia que não sabia me ajudar. Então eu meio que me virava só. Mas me virava só assim, eu pedia sempre ajuda as professoras na escola, se tivesse dúvida, ou as minhas amigas mesmo.

Dayse: Qual eram as formas de lazer da sua família? Vocês saiam para algum lugar ou...

Rosa: Não. Todo final de semana era ir para casa, para o interior para casa dos meus avós. Tipo, quando eu era criança, eu não saia. Minha diversão era minha família, estar, tipo, todos os meus tios, todo mundo iria para casa da minha avó reunir toda a família. Todo final de semana era isso. Até hoje é, mas assim, hoje em dia os jovens não vão mais. Eu mesma, ave Maria, só vou no Natal no interior.

Dayse: Como os seus pais eles lidam você estar aqui na... Eles conseguem mensurar, entender o que é você estar dentro dessa universidade?

Rosa: Aham. Eles ficaram realizados, como se fosse um prêmio, quando eu passei. E na verdade quando eu fui tentar o vestibular, porque eu entrei na época do vestibular ainda. Quando eu fui tentar o vestibular, eu tentei primeiro a prova do ENEM, e foi o que me desmotivou, porque a prova do ENEM não tinha muito a ver com a prova da COMPERVE em si.

Dayse: Engraçado, você está seguindo bem a ordem. Você falou do seu vestibular. Como foi essa preparação. Você entrou no primeiro?

Rosa: Ah, não. Eu fiz o 1° e o 2° ano e no 3° ano, aí eu fiz o 3° e o cursinho. Aí eu fiz o cursinho para o Procem que é de graça da UFRN. Então... aí, foi o ano mais difícil da minha vida. Tipo, era vir para o cursinho de manhã, voltar para casa de ônibus, sempre. Acordava logo cedo, vinha para cá de manhã, para estar aqui de 7h eu acho que começava. Aí terminava aqui, ia para casa e almoçava, tomava banho e voltava para escola. Aí passava a tarde na escola, voltava para casa de quase 18h, era mais ou menos 18/19h a hora que eu chegava porque eu dependia de transporte público, muito. Aí fazia atividades...

Dayse: Como você soube do Pro100?

Rosa: Do Procem? Acho que foi pela TV. Na verdade, minha mãe viu e pediu para mim correr atrás.

Dayse: Aí vem a pergunta chave. Por que Ciências Biológicas? Por que você escolheu esse curso?

Page 127: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

126

Rosa: Porque eu sempre gostei muito de animais e eu queria trabalhar com animais e tipo assim, alguma coisa que não fosse ver sofrimento. Tipo, eu não queria ser veterinária, entendeu? Para eu não ver sofrimento deles. Mas eu queria estar perto da natureza e dos animais de alguma forma.

Dayse: Então ele era a sua opção mesmo. Ou você queria fazer outro e esse foi o mais...

Rosa: Não. Na verdade, ele foi a minha última opção. Ciências Biológicas foi a minha última opção. Eu pensei primeiro nos cursos que todo mundo fala: Psicologia, Nutrição... Eu sempre tive muito... Uma chamativa por Nutrição. Só que o que me fez decidir, eu fiquei em dúvida no dia que eu fui fazer minha inscrição para o vestibular. Eu fiquei em dúvida entre Nutrição e Biologia. E, tipo, todas as minhas amigas faziam, só colocavam curso muito conhecido, muito concorrido. E eu vim ver a Mostra de Profissões. Então quando eu vi Psicologia, aí eu tipo assim ―Não é para mim. Acho que não vou gostar da área‖. Em si, é interessante, mas pelo mercado de trabalho aqui também, aí eu não gostei não. Desisti. Fui para Nutrição e gostei muito, fiquei muito motivada e pronto. Tinha decidido. Vou fazer Nutrição e não assisti a de Biologia na Mostra de Profissões. Só que no dia que eu fui fazer a inscrição muita gente ficava falando sobre a dificuldade de entrar, não sei o que. Eu fiquei com medo e coloquei Biologia na primeira e na segunda opção. Eu iria colocar Nutrição na primeira e Biologia na segunda, só que eu coloquei Biologia no primeiro e no segundo. Aí, enfim, passei. Quando entrei aqui foi uma coisa que eu queria também. Era a minha última opção, mas era uma opção que eu gostava. Então, quando eu entrei aqui e começou as aulas, foi abrindo minha mente e eu fui me apaixonando pelo curso.

Dayse: Você entrou no primeiro, né? Primeiro vestibular.

Rosa: Foi.

Dayse: Interessante... Qual foi o significado... Você falou o que os seus pais acham de você. E você? Qual é o significado para você de estar aqui dentro, assim?

Rosa: Eu também me sinto realizada e foi realmente... Eu acho assim, não é um prêmio, mas... É como um... É como se fosse um prêmio. É algo bom. Eu me sinto feliz em estar aqui. Tipo, eu quero um futuro melhor. Eu não quero estar, não desmerecendo nada, mas eu não queria estar como vendedora de loja, sabe? Eu queria algo melhor para minha vida.

Dayse: Você falou das amigas. Quanto às amigas do ensino médio te ajudavam. E aqui? Qual o papel dos amigos, das relações que você formou no curso de Biologia?

Rosa: Então, no começo muito complicado, porque a gente estava conhecendo pessoas novas e não existia tipo, confiança. Eu acho que consegui fazer vínculos de amizade hoje, entendeu? Estou no oitavo período e hoje em dia eu posso dizer que eu tenho vínculos de amizade verdadeira. Mas, no começo é muito difícil e a gente vai muito para o individualismo aqui. As pessoas... Não sei. Na minha área, tipo, é sempre um querendo sobressair o outro. Muito competitivo aqui dentro mesmo e eu não sou assim. Então, eu me machuquei muito, assim, quebrei muito a cara com essas coisas aqui, mas eu tirei um aprendizado, porque me influenciou a correr mais atrás, a querer ser melhor também. Só que existe uma competição aqui dentro muito...

Dayse: E quais foram as suas estratégias de aprendizagem? Por que você chegou em um ambiente totalmente diferente, né? Totalmente novo. O que você foi fazendo, como...?

Rosa: No começo, eu me dei muito mal quando eu entrei aqui. Muito mal mesmo. Eu reprovei no primeiro semestre em duas disciplinas. No segundo semestre eu reprovei em uma. Porque, tipo assim, o nível daqui é muito diferente do que o ensino médio numa escola pública. Não sei se numa escola particular. Dizem que... Mas eu não sei. Eu não conheço a realidade. Mas assim, que é assim mais ralo, mais puxado. Mas eu não sei. Não posso confirmar uma coisa que eu não conheço. Só que eu notei, eu senti muita dificuldade e não tinha no começo pessoas para recorrer. Eu sempre fui vergonhosa, até hoje eu não sei muito chegar no professor para tirar dúvida não. Hoje em dia eu tiro as minhas dúvidas com os meus colegas. Eu sempre fui muito vergonhosa com professor, principalmente aqui. Eu

Page 128: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

127

vejo mesmo, tipo, a imagem do professor... porque tem professores que não são tão acessíveis a você. Então, tem professores que eu consigo dialogar, tirar dúvidas, só que tem outros que não. Que eu não consegui no começo, eu não conseguia fazer isso.

Dayse: Você tocou em um ponto interessante. Você falou que hoje você consegue tirar dúvidas com seus colegas, né? E esse é um ponto central da minha pesquisa, porque uma das minhas teses que eu elaboro é que: como as relações de amizade elas são estratégia para você sobreviver dentro dessa... Ricos, pobres, todas as classe sociais. O estar com o outro faz toda a diferença. Eu vim sozinha fazer essa entrevista com você. Aí eu olhando um bocado de pessoas eu tenho certeza que a maioria dessas pessoas são das Ciências Biológicas, né? E eu louca para aplicar questionário com eles e a vergonha? Só que se eu tivesse com uma das minhas amigas da pesquisa, eu não teria. Iriam as duas, né? Você já falou das estratégias. Quando você tomou essas reprovações aí, o que fez você conseguir sair daquele turbilhão e melhorar o seu desempenho?

Rosa: Na verdade, eu tive assim... Eu me cobrei mais. Eu me cobrei mais. Eu dei mais prioridade a essas disciplinas depois, do que a qualquer outra. Mas realmente era muito complicado. Teve uma matéria que eu fazia relatórios, eu fazia tipo, pilhas de relatórios para estudar para prova e eu só tirava nota baixa.

Dayse: Quais foram, quais são ainda, que você está estudando, os maiores desafios que você encontrou aqui dentro da UFRN?

Rosa: Em relação a que?

Dayse: A cursar. Assim, quais foram as maiores dificuldades?

Rosa: Assim, os gastos com transporte, comida, tudo isso foi muito difícil no começo. Mas assim, no começo, mas eu consegui uma bolsa assim logo que eu entrei. Fui atrás... Ah, eu tinha um primo assim, distante, que já tinha feito Matemática aqui na UFRN também. E ele me informou dessa bolsa.

Dayse: É uma bolsa de que?

Rosa: Assim, ele não é meu primo de verdade. Eu porque eu chamo de primo.

Dayse: De consideração, né?

Rosa: Aham...

Dayse: E é uma bolsa de apoio técnico?

Rosa: Aham, de apoio técnico. Aí eu trabalhei primeiro lá no Onofre Lopes. Então era complicado em relação à distância e tal, de tempo que eu gastava com transporte. E eu ia para lá de manhã e ia para casa e vinha, porque meu horário era à noite. Então eu geralmente tinha aula só a noite no começo do curso. Hoje em dia eu passo o dia aqui, das 7h da manhã às 10h da noite.

Dayse: Sim, era essa a próxima pergunta. Qual é a sua rotina. Sua rotina. Acorda tal hora...

Rosa: Esse semestre está assim: acordo, venho para cá, trabalho.

Dayse: Você trabalha em qual setor?

Rosa: No Herbário da UFRN, então eu passo a manhã no herbário. Assim, a manhã, às vezes eu chego um pouquinho tarde por causa do trânsito, então eu...

Dayse: Herbário eu imagino que é um lugar com plantas.

Rosa: Isso.

Dayse: Correto, né? Herbário, com H.

Rosa: Isso. É onde fica a coleção botânica.

Dayse: Então você já está na área.

Rosa: Estou.

Dayse: Por isso você seu nome Rosa. Já está na história botânica. Olha aí. Vou explicar lá.

Page 129: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

128

Rosa: Eu entrei na Biologia pensando em animais, mas eu acabei me identificando com plantas.

Dayse: Com plantas... Sim, você vai para o herbário...

Rosa: Mas assim, não é nem que eu me identifique mais, eu adoro a área. Mas foi até uma facilidade, sabe? Porque quando eu vim, eu quis transferir minha bolsa de apoio técnico, quis sair lá do Onofre, aí eu vim procurar aqui em qualquer área uma bolsa de apoio técnico, aqui no centro de Biociências. Aí o que tinha era na área da Botânica e eu fiquei feliz porque já era na minha área também. Então estou lá.

Dayse: Já faz quanto tempo que você está lá?

Rosa: Vai fazer dois anos em abril.

Dayse: Ah meu Deus, já vence a bolsa.

Rosa: É...

Dayse: A gente já fica agoniado ―já já expira‖. Aí sim, você passa a manhã com as plantinhas...

Rosa: Aí almoço. Às vezes eu vou para casa almoçar, dependendo do dia. Vou para casa almoçar, mas é almoçar e voltar para aqui de novo.

Dayse: Aí você faz o que de tarde aqui?

Rosa: Aqui de tarde eu geralmente vou fazer trabalho aqui porque tem o laboratório de informática. Eu tenho computador em casa, mas aqui é melhor porque tem os amigos também para ajudar e geralmente a gente sempre se encontra por aqui. Ou eu passo o dia no laboratório fazendo as coisas no laboratório e a noite é a minha aula. Tem dia que eu tenho aula de 5 da tarde às 8:30 da noite. E tem dias também que eu tenho... O horário como é a gente que faz então é bem bagunçado.

Dayse: Você está pagando quantas disciplinas agora?

Rosa: Seis...

Dayse: É o seu último semestre?

Rosa: Não...

Dayse: Ainda tem mais...

Rosa: Dois.

Dayse: Mais um ano aí pela frente.

Rosa: É...

Dayse: Você encontra com esses amigos fora daqui? Para um barzinho, para sair para o cinema...

Rosa: Encontro. Hoje em dia eu tenho uma relação muito boa com muitas pessoas.

Dayse: Para quais lugares?

Rosa: Sexta-feira ou Tomas ou Pedrão. Toda sexta-feira a gente sai para barzinho ou eu vou com minha turma do trabalho ou com a turma de amigos assim, de fusos e matérias, né? Vai sempre uma turma boa. Tanto as pessoas que entraram comigo em 2012.1, quanto pessoas novas que eu fiz amizade depois.

Dayse: Tá bom. Estamos chegando ao final. O que você acha que essa universidade poderia melhorar para dar apoio para pessoas como eu, você e outras que virão? Quais seriam assim, meio, as soluções que você apontaria, até quase como uma denúncia, né? Por que você vai ter voz, assim, de pelo menos um mestrado ter alguém escrevendo o que você... O que você poderia elencar, né?

Rosa: Assim, algo muito complicado para a gente eu acho assim, pelo menos para o pessoal de Parnamirim, é o transporte público. Só dois ônibus entram aqui na UFRN e...

Dayse: E eu nem sabia. Ônibus de Parnamirim entra aqui na UFRN?

Page 130: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

129

Rosa: Só lá perto... Ele só vai até a Reitoria e volta. Só vai até ali. Então o transporte público é muito difícil. Pronto, o ônibus do meu bairro não entra. Então se eu quiser pegar o ônibus que entra aqui eu tenho que descer para passarela que é muito longe da minha casa, esperar o ônibus lá para poder pegar e vir para cá para descer na reitoria e vir andando para cá. Aí tipo, eu pego qualquer um de Parnamirim e desço no Via Direta, pego o circular. Acho que transporte público é um pouco cansativo, sabe? Você depender muito assim...

Dayse: E de assistência da UFRN? Por que o transporte seria mais uma parceria com a prefeitura. Mas, você citou algo muito crucial. Essa bolsa salvou a tua vida.

Rosa: Foi...

Dayse: Porque se essa bolsa não existisse você não estaria aqui. Igual a mim também. Eu também tive bolsa.

Rosa: Pois é. Acho que aumentar a oferta de bolsa seria uma solução para, tipo assim, dar suporte a várias pessoas. Tem gente aqui que não tem. Eu tenho amigos que trabalham como voluntário.

Dayse: Às vezes eu fico querendo pegar todos os entrevistados até agora tem bolsa. Eu queria ouvir alguém que não tem. Acho que não existe uma pessoa que é de origem popular e não tem bolsa ela vai embora. Porque olhe, o RU é 3,00 reais. A gente pensa que é barato, mas não é.

Rosa: Eu não como no RU...

Dayse: A Xerox 10 centavos.

Rosa: É...

Dayse: Ou seja, meu professor diz, meu orientador, não existe ensino gratuito. Todo ensino é pago. Porque você tem que ter dinheiro para pagar.

Rosa: E você tem que trabalhar de qualquer forma.

Dayse: Então vamos para a última pergunta até que em fim. Quais são as suas expectativas para o seu futuro? Ligado né, a Ciências Biológicas. O que você pretende fazer da sua vida.

Rosa: Tem tanta coisa. Tipo assim, ainda me sinto uma formiguinha ainda. Ainda acho que tem um leque muito grande de oportunidade para mim. Sei que o mercado de trabalho de Natal é muito voltado para educação, só que eu também gosto da área ambiental e gosto de estar assim, envolvida em projetos. Então eu espero poder continuar aqui em projetos com o meu laboratório que eu já estou começando uma pesquisa em iniciação científica. Só espero conseguir conciliar meus horários, porque eu não tenho tempo agora. Aí, realmente, sem bolsa é muito difícil. Eu acho que eu não ficaria sem bolsa. Tipo, não sei o que aconteceria. Eu também não consigo trabalhar o dia inteiro e vir estudar à noite. Acho que não conseguiria dar conta.

Dayse: É um valor pouco, mas é o suficiente para pagar passagem.

Rosa: Isso!

Dayse: É assim...

Rosa: Nos manter aqui.

Dayse: Nos manter aqui. E tem essa brecha temporal de estudar e tal. Você pretende fazer mestrado, doutorado?

Rosa: Ainda estou... eu só quero fazer mestrado quando eu tiver assim, uma certeza de algo assim ―Quero muito pesquisar aquilo‖, mas eu pretendo sim continuar aqui. ENTREVISTA COM DENTINA Estudante de Odontologia, 21 anos. Data: 01/03/2016 Local: Departamento de Odontologia (DOD) – UFRN

Page 131: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

130

Duração: 13:14

Dayse: Hoje é dia 01/03. Às 15:24 eu estou no Departamento de Odontologia entrevistando Dentina. Então vamos, para eu conhecer geral: idade, período em que você está e o ano que você entrou.

Dentina: Eu tenho 21 anos, estou no 5º período e entrei em 2014.

Dayse: Você está nivelada, não é?

Dentina: Estou.

Dayse: Então, brevemente, como foi sua infância (se você puder dizer, relatar)?

Dentina: Foi ótima. A infância de uma família popular, mas não foi nada passar fome. Eu tinha tudo assim.

Dayse: Você nasceu em Natal?

Dentina: Sim.

Dayse: Sua família... Seus pais são de Natal?

Dentina: Não. São do interior.

Dayse: Qual interior?

Dentina: São José do Campestre.

Dayse: Qual a profissão dos seus pais?

Dentina: Minha mãe é dona de casa. E meu pai é servente de pedreiro. E agora...

Dayse: Embora fosse popular, você sempre teve o que comer, o que vestir. Qual a escolaridade do seu pai?

Dentina: Meu pai tem ensino médio completo e minha mãe fundamental incompleto.

Dayse: Você estudou em qual local?

Dentina: Escola pública ou o nome da escola?

Dayse: Se era pública. Foi no interior?

Dentina: Pública. No município. Foi aqui.

Dayse: Qual foi o momento que vocês saíram de Campestre e vieram para cá?

Dentina: Eu sempre morei aqui. Não nasci lá, nasci aqui. Meus pais é que são de lá.

Dayse: Ah, entendi. Para mim você era do interior.

Dentina: Não, só meus pais são do interior, eu nasci aqui em Natal.

Dayse: Você tem irmãos?

Dentina: Não, sou filha única.

Dayse: O médio também foi em escola pública?

Dentina: Foi.

Dayse: Como você avalia seu fundamental e seu médio? Em professores, escola, estrutura.

Dentina: A escola, assim, não era uma escola sucateada. Era uma estrutura boa para uma escola pública, tinha uma estrutura muito boa, mas, como sempre, deficitária.

Dayse: Qual foi a escola no médio?

Dentina: Minha escola foi lá no Cidade Satélite, na Escola Estadual Antônio Pinto de Medeiros. E a escola fundamental também foi em Satélite, na Ascendino de Almeida. Foram estruturas boas, mas sempre tem aquelas limitações de escolas públicas, falta recursos, né?

Dayse: Aí como foi seu desempenho? Você era considerada que tipo de aluna?

Dentina: Eu sempre fui de desempenho bom. Minhas notas sempre foram altas. Eu sempre me considerava próxima das alunas, sendo que eu me esforçava mais que elas. Só que eu fui uma das poucas que entrou na Universidade Federal.

Page 132: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

131

Dayse: Na sua casa, você praticava algum tipo de lazer com sua família? Quando vocês tinham hora vaga, vocês saíam para algum lugar?

Dentina: Praia, né? Praia e ir para casa da minha avó. Não é um lazer além disso, não. Mas assim, passeios normais.

Dayse: Aí como foi a sua preparação para o ingresso? Você fez mais de um vestibular?

Dentina: Não. Fiz só um. Fiz um ano de cursinho… E passei no primeiro.

Dayse: Foi ENEM?

Dentina: Foi.

Dayse: O cursinho que você fez foi onde?

Dentina: Foi o CDF.

Dayse: Daqui do Via Direta?

Dentina: Foi.

Dayse: Aí como sua família lidou com o fato de você ter passado para Odontologia?

Dentina: Eles acharam ótimo, né? Área da saúde! Mas até então não sabia dos gastos. Acharam muito bom, porque não tem ninguém com curso superior na minha família. Eu fui a primeira, então ficaram super felizes, assim.

Dayse: Você tocou num ponto chave, os gastos. Fale mais sobre isso.

Dentina: Porque os gastos são estupendos. Acho que nenhum curso de todas as graduações da universidade tem esses gastos.

Dayse: Me fale números. Eu não conheço. Eu quero números. Você entrou caloura. Quanto você precisava ter?

Dentina: Calouro não precisa pagar nada. A gente começa a ter gastos no quarto período que é quando a gente começa realmente as práticas clínicas da ―Odonto‖. A gente precisa de... são instrumentais para executar os procedimentos. No primeiro período, a lista é de 2000 a 2500 reais...

Dayse: No primeiro período?

Dentina: No quarto período, no ano que a gente começa a gastar.

Dayse: No primeiro é jaleco...

Dentina: É, não precisa de nada. Só coisa besta. A gente não tem aula aqui, só no CB, então a gente vem para cá só no terceiro período, então até o terceiro período tem a lista sim, mas é insignificante, só uns cento e poucos reais. A primeira lista é bem insignificante quando comparada a uma lista do quarto período, que é de 4 mil.

Dayse: É insignificante, mas há.

Dentina: É dinheiro, mas aí no quarto período, é 2500 reais no mínimo.

Dayse: Aí o aluno que não dispõe, como é? Eles dão suporte?

Dentina: Tem um auxílio que a universidade - a PROAE - dá, mas aí está sendo parcial nesse período, então eu vou ter que custear alguma parte do meu instrumental.

Dayse: Esse auxílio é de quanto da universidade?

Dentina: No período passado era total, aí agora não se sabe qual vai ser o valor. Ainda está para sair esse auxílio. Nesse período, no caso, eu vou gastar 3800 reais. Então assim...

Dayse: Está uma incógnita o valor que vai sair.

Dentina: Está uma incógnita o valor que vai sair. Então dependendo do valor eu vou ter que custear.

Dayse: Voltar um pouquinho agora. Por que você escolheu esse curso?

Dentina: Foi nem que eu escolhi o curso. Eu queria engenharia civil, mas botei como segunda opção. Tudo a ver né? Assim, mas aí quando eu comecei a cursar, eu de fato me adaptei, gostei e fiquei. Só que como disseram que tinha um auxílio eu disse ―Ah, eu vou ter

Page 133: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

132

que conseguir o auxílio senão eu não vou ter como seguir o curso.‖ O problema que dificulta no meu caso o aprendizado é o auxílio porque demora muito a chegar.

Dentina: As matrículas do laboratório já começaram, então a gente perde muito, tem muito prejuízo em relação à aprendizagem.

Dayse: Aqueles alunos que estão no pleito do auxílio, eles ficam prejudicados?

Dentina: A gente perde pontuação, e é um departamento... Não... Apesar da boa vontade do chefe, mas os professores às vezes não tem consciência bota realmente zero. Eles não têm mentalidade ―Eles não tão fazendo porque não querem, é porque não podem‖. E eles e algumas pessoas não têm essa consciência. Eles fazem isso porque... porque não é um não é um fato velho, é novo, é algo novo para eles, antigamente tinham alunos que tinha muito dinheiro aqui, quem não tinha dinheiro não entrava porque não tinha esse auxílio. Esse auxílio é novo, ele surgiu faz quase 4 anos, então as pessoas de antigamente não tinham dinheiro para fazer o curso. Esse curso é mais ele pesado que qualquer outro curso acho que até mais do que o de medicina.

Dayse: Além da dificuldade do ingresso, os alunos que conseguiram chegar recebem um ―por gentileza, podem se retirar?

Dentina: Pode se retirar, é.

Dayse: Como você está mantendo seus estudos? Você tem bolsa? Alguma coisa?

Dentina: Não, por enquanto não tenho bolsa de nenhum tipo, a única coisa que estou mantendo, se vier, é o auxílio.

Dayse: Porque você me falou que passa o dia aqui...

Dentina: Fico... o dia.

Dayse: ... Estudando?

Dentina: Estudando.

Dayse: Desde o dia todo? Manhã, tarde e noite?

Dentina: Manhã e tarde. E no meu caso eu vou ficar à noite porque também tenho o projeto, então eu vou ficar o dia todinho.

Dayse: Esse projeto é voluntário?

Dentina: É.

Dayse: Reta final da entrevista. Me fale sobre seus colegas e amigos. Você tem bons vínculos de amizade aqui no curso?

Dentina: Sim, mas no início era extremamente difícil pela discrepância de vivência, porque eles têm uma vivência e eu tenho outra, porque... É mundos diferentes. Então com tempo é que eu consegui inserir dentro de um grupo eu consigo ter as amizades, mas justamente pela diferença de renda que eu me juntei com pessoas do mesmo jeito que eu.

Dayse: Você sentiu em algum momento... Você falava preconceito... Você sentia de fato alguma diferenciação com você do tipo... ah?!

Dentina: Sim, na divisão de grupo. Você começa a analisar... Trabalho em grupo, todo mundo se forma e você fica sem ninguém me aceitar... Não tem aquele grupo que aceita.

Dayse: Desde essa amizade que você fez com uma pessoa parecida com a sua vida, foi recente? Após o primeiro período?

Dentina: Foi no segundo, foi no segundo período. Aí depois foi no terceiro... No terceiro do mesmo jeito, já conhece a turma, aí no quarto período que realmente eu tive um grupo, foi só uma dupla... Foi assim, um grupo de pessoas.

Dayse: E como você analisa a presença deste grupo na sua vida acadêmica?

Dentina: É de extrema importância… É... Porque você vive metade do curso aqui... Então, você tem que amigos aqui, não tem como você se isolar num canto que você está... Metade do tempo eu passo aqui... Vou na sala de aula que só... Volto que só... Tentei um grupo de

Page 134: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

133

amizade para manter um ambiente agradável. Tanto que no primeiro e no segundo período foi bastante difícil.

Dayse: Eu perguntei do que seus pais acharam, mas qual é o significado para você que está aqui neste departamento fazendo esse curso?

Dentina: É uma... É uma quebra de tabu que uma pobre fazendo ―Odonto‖ é quase impossível. É uma ferramenta de poder.

Dayse: Então, eu vou fazer a última pergunta, só mais uma, se você pudesse deixar uma mensagem... Se pudesse não, você pode! Boa parte de um capítulo vai ser só de dentina, boa parte... Eu vou colocar trechos das suas falas. É meio que uma denúncia. Se você pudesse deixar uma mensagem um manifesto sobre o estudante popular de Odontologia, porque você não é a única, o que você diria como solução como apelo para as universidades?

Dentina: Como solução eu diria que se você insere um aluno de nível inferior no curso... porque abriram as portas, então se abriram as portas, porque se realmente abre essa brecha de ter um aluno que não tem meios para pagar que dê suporte. Porque é obrigação da universidade dar esse suporte para esses alunos, realmente, que necessitam e que seja providenciado logo porque está fazendo mal tanto para psicológico do aluno como é humilhante também. E que as pessoas não entendem é que a universidade… é que a universidade dê suporte para essas pessoas… você dar a oportunidade, mas o aluno possa lá dentro... Aqui... Por mais que universidade diga que vai lhe dar um auxílio, mas é uma demora, é como se fosse... ―Não estou nem aí para você, vou resolver o teu caso quando der‖. Bem descaso. É um descaso muito grande. Então, se dá o acesso tem que dar o suporte. A gente tem que ser mantido por igual aqui. Tem que ser mantido na mesma forma ter o mesmo respeito e os professores justamente tem que entender que existe essa realidade, e na maioria... E alguns não tem, sobre isso.

Dayse: E aí a última pergunta, como você se vê no futuro? Se intitular assim, de um médio prazo? Depois de formada, imagina exercendo a profissão?

Dentina: Me imagino sim, exercendo e pretendo fazer mestrado, justamente para mudar essa visão… De eu estar... Não, eu estou entendendo você, vejo a situação, sei como é que é, vamos tentar reverter esse caso porque é bem difícil.

Dayse: Pois, Dentina, muito obrigada!

ENTREVISTA COM HIPOTENUSA Estudante de Matemática, 21 anos. DATA: 31/05/2016 LOCAL: SETOR III – UFRN DURAÇÃO: 25:56

Dayse: 31 de Maio, às 18:45, entrevista com a matemática Hipotenusa. Qual é a sua idade, o seu período e o ano que você ingressou na UFRN?

Hipotenusa: Eu tenho 21 anos, estou no quarto período e ingressei em 2014.1.

Dayse: Como foi a sua infância escolar? Você estudou em qual escola, em qual cidade? Me fale um pouco da sua infância.

Hipotenusa: Do Jardim I até a quarta série, que atualmente é o quinto ano, eu estudei numa escola particular do bairro. Num é nada muito chique, mas bem simples mesmo. Eu tenho uma irmã gêmea e foi um pouco difícil para minha mãe nos manter na escola. Tanto eu, como minha irmã gêmea e minhas outras duas irmãs mais velhas, nós passamos por essa escola particular para poder, a partir do sexto ano em diante, até o ensino médio, terminar o ensino médio. Conclui em escola pública, na Escola Antônio Pinto, uma escola estadual do bairro.

Page 135: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

134

Dayse: Qual é a profissão dos seus pais?

Hipotenusa: Minha mãe, ela hoje é aposentada, mas ela trabalhava como operadora de máquinas na Coats Corrente, que é uma Indústria Têxtil. E ela faz alguns bicos de costura também. Meu pai é autônomo. Ele teve a própria serraria. Mas ele mudou de profissão e agora é torneiro mecânico na própria oficina mecânica dele.

Dayse: Aí você nasceu em Natal?

Hipotenusa: Nasci em Natal e desde quando eu nasci que moro no mesmo bairro que é o Planalto e a minha família é composta pela minha mãe, meu pai e quatro mulheres, quatro filhas, sendo que sempre na nossa casa morou primos, tios… Atualmente mora um primo e um tio também.

Dayse: Qual a escolaridade dos seus pais?

Hipotenusa: Meu pai estudou até a sexta série e a minha mãe, quando ela estudou normal fez até a sexta série também, mas depois... Quando ela completou 40 anos, ela então terminou o ensino médio junto com o Magistério. Mas ela não exerceu a profissão de professora depois disso, só concluiu mesmo. É que ela teve a ajuda da minha irmã também, uma das minhas irmãs mais velhas que também fazia magistério. Então ela conseguiu passar, mas eu acredito que ela sozinha não conseguiria.

Dayse: Qual a idade das suas irmãs?

Hipotenusa: A minha irmã mais velha tem 29 anos, vai fazer 30. A minha irmã do meio tem 25 e a gêmea tem a minha idade.

Dayse: Todas fazem faculdade?

Hipotenusa: A mais velha faz Ciências Contábeis na UNP e vai concluir junto comigo, ano que vem, no final do ano que vem. A minha irmã do meio engravidou há pouco, mas ela estava fazendo a faculdade de Contábeis. Começou ano passado. Então, como ela teve que parar, acredito que ela só vai acabar em 2018. E a minha irmã gêmea faz faculdade. Entrou em 2013 e faz Engenharia Têxtil aqui na UFRN e vamos concluir juntas… Ela também vai concluir ano que vem.

Dayse: Como foi a sua essa sua transição da escolinha do bairro para a escola pública? Como foi a sua passagem?

Hipotenusa: Foi assustador. O primeiro dia de aula foi horrível, eu queria sair da escola. Foi em 2006, no sexto ano que eu saí da quarta série foi quando foi implantado o sistema de anos. Aí foi bem difícil a adaptação, principalmente no primeiro ano. No sexto ano, no caso, a gente sofreu bastante por ser de estatura muito baixa também, por diversos fatores para que a gente fosse discriminada… Sofresse bullying.

Dayse: As duas, você e sua irmã, estudavam na mesma turma?

Hipotenusa: Sim.

Dayse: Se você pudesse enumerar quais eram os aspectos que assustavam, quais eram?

Hipotenusa: Na escola que a gente estudava antes, na quarta série, nunca vimos brigas. E nessa escola era comum todo dia ter, brigas de meninas… Essas coisas. O tamanho da escola também era muito grande e a falta de professores era muito grande também. Isso foi bem difícil para a gente porque a gente sempre gostou de estudar. E a gente ficava realmente sem ter o que fazer. Às vezes a biblioteca nem era aberta e a gente ficava fugindo dos outros… Se escondendo.

Dayse: Você tocou num ponto legal. Você falou assim: ―A gente gostava muito de estudar‖... A que você atribui essa vontade de estudar junto com a sua irmã?

Hipotenusa: Na verdade, quando a gente estudava na escola particular do bairro, minha mãe, meus pais na verdade, eles forçaram muito que a gente tirasse notas boas. Porque como ela pagava a escola, ela realmente queria ver um retorno por parte da gente. Então, a gente acabou meio que por ―livre e espontânea pressão‖ de estudar a gente acabou gostando de estudar. A gente quando passou a frequentar a escola pública, a gente viu que

Page 136: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

135

tinha muitas oportunidades... Existia a Olimpíada Brasileira de Matemática, a Convenção do Soletrando... Existiam muitas coisas que faziam que a gente gostasse de estudar, porém o ensino não ajudava tanto. Então a gente buscava isso em casa mesmo, pesquisas com outros livros... A gente mesmo ia atrás do estudo.

Dayse: E como foi essa sua estadia no ensino médio com relação à transição para a universidade? Você tentou quantos Exames?

Hipotenusa: 2012, que foi o ano que eu terminei, na terceira série do ensino médio. Eu tentei o vestibular, que era o último vestibular… Eu e minha irmã tentamos. Só ela passou no curso que queria. Eu tentei Ciências Contábeis, que eu também queria isso, mas não passei. Então em 2013, eu passei o ano inteiro de 2013 trabalhando mesmo, de carteira assinada no primeiro emprego.

Dayse: E foi onde?

Hipotenusa: Foi no supermercado do bairro, como operadora de caixa, recebendo um salário mínimo comercial e eu trabalhei durante um ano e um mês. Foi justamente no ano seguinte… Eu comecei a trabalhar em 2013, em 2014 eu tentei o ENEM. Eu havia tentado o ENEM no final de 2013, aí consegui passar em Matemática. Na verdade não era o que eu queria. Passei porque era o que eu me identificava com o disciplina, o curso, mas realmente não era o que eu queria. Como a minha nota dava, então deu certo. É... aí acabei gostando do curso. Pronto, quando eu comecei a estudar na UFRN, que eu estudava o período da noite toda, trabalhava de manhã e de tarde, eu só aguentei mesmo dois meses fazendo as duas coisas. Aí eu pedi demissão do meu emprego para poder terminar aqui… É, me dedicar mais ao curso.

Dayse: E como foi seu primeiro semestre aqui na universidade?

Hipotenusa: Foi bem difícil, porque eu nunca imaginava que eu ia tirar as notas que eu tirei justamente nas disciplinas que eu mais gostava que era realmente de cálculos. Aí foi bem difícil, porque a minha primeira nota numa prova que valia 10… Quando eu me deparei com 4, eu fiquei indignada. Não, não sou eu. Porque eu sempre… As minhas médias em Matemática eram 10. Eu não entendi o que estava acontecendo. Eu achava que realmente, o trabalho me prejudicou muito. E também teve outra disciplina que eu tirei 1,5 e valia 10. Eu achava que aquilo ali era o fim para mim. Eu pensei em desistir do curso depois dessas notas. Primeiro semestre para mim foi, mais assim, de indecisão. Eu a todo momento pensava em desistir do curso ou não. Ficava nesse impasse. Mas no final das contas eu passei em todas as disciplinas, apesar de que as médias não foram tão legais.

Dayse: Qual foi a reação da sua família com a sua entrada em Matemática?

Hipotenusa: Eu percebi que eles ficaram… Surpresos. Não era o que eles queriam. Eles queriam realmente que eu seguisse aquele meu desejo inicial: Ciências Contábeis. Mas como só deu para Matemática, eles ficaram orgulhosos por ser numa Universidade Federal e tudo mais. Só que eles sabiam que eu ia sofrer como professora. E que a profissão que eu escolhi não ia me trazer o retorno que Ciências Contábeis iria me trazer.

Dayse: Você falou das dificuldades do primeiro semestre, qual foi o momento que as coisas começaram a mudar? Se é que mudaram...

Hipotenusa: Foi justamente quando eu saí do meu emprego lá que estava me deixando com falta de tempo, o emprego de operadora de caixa, eu consegui um mês após da saída, eu consegui entrar no Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência, que é o PIBID de Matemática. Então foi quando eu passei a vivenciar realmente, é... Dar aulas realmente na escola pública. Fiquei sabendo como é, de verdade, eu não precisei esperar estágio para entender isso aí. Então, eu acabei realmente me encantando com isso, mesmo que as escolas públicas tenham seus desafios e os alunos, alguns alunos, venham realmente só para bagunçar... Não vem com o objetivo de entender o assunto, mas mesmo assim para mim aquilo era um desafio. É, era como seu eu tivesse que preparar uma aula realmente motivante que chamasse atenção de todo mundo. Eu tomei aquele desafio para

Page 137: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

136

mim. Foi quando eu realmente comecei a gostar do curso e ter tempo para isso também. Então, eu me senti mais motivada.

Dayse: Você entrou no PIBID no primeiro semestre?

Hipotenusa: No primeiro semestre, é muito difícil conseguir… Mas eu consegui.

Dayse: Como foi?

Hipotenusa: Realmente assim, estavam precisando de bolsistas, porque tinha saído… Tinham se formado muitos naquele ano, no ano anterior. E estavam precisando e eu fui, participei da entrevista e fiquei em primeiro lugar na suplência. Eu não cheguei a assumir assim que aconteceu a entrevista de vez. Aí eu tive que esperar cerca de dois meses após essa seleção para eu poder entrar. E foi, eu não escolhi a escola que eu ia ficar. Eu simplesmente entrei para substituir uma menina que saiu… Uma pessoa viajou naquele tempo. E, assim, até, como eu posso dizer… [pausa] Não sei como eu posso dizer… É, não conseguia muito bem entender o porquê de eu não poder escolher a escola. Eu queria poder escolher a escola mesmo. Eu pensava em dar aula numa escola chamada Walfredo que era próximo a minha casa, próxima a universidade. Para mim era melhor. Mas só me colocaram na escola que a menina saiu e pronto. Não quiseram saber das minhas condições. Mas mesmo assim eu acabei gostando de lá, não tive nenhum problema com as coordenadoras nem nada. Deu tudo certo.

Dayse: E como foi a sua entrada na escola com esse novo papel? Não era mais estudante, você era uma pibidiana...

Hipotenusa: Foi bem desafiador mesmo para mim. Porque eu sempre era, impressionante, quando a gente não está na sala de aula… Pelo menos eu, sempre que eu estou lá ensinando alguma coisa, eu me lembro exatamente de como estava naquele momento que o professor estava passando aquele mesmo assunto. Eu me lembro de como eu estava como aluna… De como era difícil para assimilar um conteúdo. Então, eu tentava sempre, tento ainda, quando eu estou passando algum conteúdo lembrar quais eram as minhas dificuldades e tentar explicar detalhadamente o assunto para que o aluno não tenha dúvida, como eu tive. E como em alguns aspectos eu fui prejudicada.

Dayse: Então você é pibidiana até hoje?

Hipotenusa: Até hoje.

Dayse: Como você está lidando com essa iminência do programa acabar?

Hipotenusa: Eu fiquei muito triste, porque não consigo entender como uma pátria educadora quer acabar com esse programa de educação. Eu não estava conseguindo entender isso aí. E para mim, é... Acabar com o PIBID é acabar com os professores… As poucas pessoas que ainda querem ser professores ainda aqui no Brasil. E assim, o fim do PIBID poderia trazer mais, poderia dizer, piores resultados do que o Brasil já se encontra. Então, assim, depois de várias discussões sobre a continuação ou não do PIBID, decidiram continuar com o Projeto e até ampliaram os bolsistas do curso de Matemática. Mas em compensação tiraram cursos como da área de Artes. E eu acho que não deveria fazer isso, porque o pessoal da área de Artes que ―é‖ a dança, teatro, música e artes mesmo, visuais, eles em parceria com outras disciplinas podem contribuir muito, muito mesmo, para a formação do conhecimento do aluno. Então eu fiquei muito triste e com o fim do PIBID das Artes.

Dayse: E o quanto você acredita que o PIBID pode ter importância na permanência dos estudantes, principalmente dos estudantes populares?

Hipotenusa: Realmente assim, a bolsa, ela ajuda com certeza, 400 reais e tal. Mas ainda não chega a ser suficiente. Quando eu vi essa bolsa de 400 reais eu fiquei assim ―Caramba, é assim que eles querem que a gente seja professor. Com esse pensamento que a gente vai ganhar pouco mesmo?‖. Porque quando a gente para ver alguns estágios de algumas engenharias ou de outros cursos mesmo, de meio período, chegam a receber muito mais que um salário. A gente que é do PIBID, que cumpre 20 horas, que é a mesma coisa

Page 138: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

137

praticamente de meio período, 400 reais… Metade de um salário. Parece que já é para gente se acostumar, de saber que a gente vai receber pouco mesmo. Por que? Eu não consigo entender. É, realmente não é suficiente, porque só de passagens os alunos já gastam uns 150 reais, aí de alimentação… Pagar o almoço no RU, os que não são bolsistas. Aí já gasta bastante também. E tem muitas outras coisas, porque os eventos quando a gente quer participar, os eventos da Matemática, que em média custam 50 reais, de 50 a 100, então assim, fica difícil da gente querer participar de tanta coisa com esse valor tão pequeno, né? Fica difícil de aperfeiçoar no curso que a gente gosta.

Dayse: Você acredita que fez amigos até agora na graduação?

Hipotenusa: Sim, fiz amigos, mas na verdade eu… Nessa questão de amizade, eu diria que vem de mim mesma. Eu não sou de fazer tantos amigos, mas quando faço, eu procuro ser amiga primeiro. Então, assim, eu tenho apenas uma amiga aqui que eu ajudo ela e ela me ajuda… E a gente está sempre bem unida o tempo todo. O que ela estiver precisando, fala comigo e o que eu estou precisando, falo com ela. Então, a gente criou o vínculo de amizade nesse sentido. É, mais assim, eu percebo que entre os colegas de curso a noite é muita competitividade. Assim, alguns parecem ser amigos, mas nem sempre são. Quando aparece algumas oportunidades de bolsas, até maiores que o valor dos 400, para qualquer outra coisa que tragam benefício para gente, eu percebo que um esconde do outro essas informações que é para concorrência não ficar tão grande a concorrência.

Dayse: Você conheceu essa amiga no primeiro período?

Hipotenusa: Sim, no primeiro período e até hoje ela, no caso, durante todo primeiro ano ela trabalhava numa escola como auxiliar de professora mesmo. Aí no ano seguinte ela ingressou no PIBID, aí a gente ficou o ano todo, todo o ano passado, na mesma escola, com a mesma turma. Éramos duplas, então nós trabalhávamos em grupo e a gente aprendeu muito uma com a outra também, mais ainda, e foi muito bom. Esse ano que a gente se separou de turma, mas a gente continua na mesma escola do PIBID.

Dayse: Você costuma se reunir com os seus colegas/amigos fora da universidade? Em algum local, saem...

Hipotenusa: Só no primeiro ano que a gente ainda chegou a fazer isso, que foi uma confraternização. Mas depois disso, não. Eu particularmente não. Eu sei que a maioria vai beber, eu como sou evangélica, não curto esse tipo de coisa.

Dayse: A última pergunta, você tem aula agora?

Hipotenusa: Tenho, mas não é nem aula.

Dayse: Último bloco. Se você pudesse… Pudesse não, você pode, porque é a representante da Matemática, deixar uma mensagem com relação à permanência estudantil… Quais fatores você acredita que colaboram para que o estudante popular permaneça na universidade? Quais seriam?

Hipotenusa: No caso, é acreditar que eu, eu estudante, pode fazer a diferença no ensino, para os futuros ingressantes na universidade. Porque eu sempre quando dou aula, penso nas dificuldades que eu tive e procuro mudar a maneira que me foi ensinado, né? Eu procuro passar de uma forma diferente, de uma forma que os alunos realmente entendam. E é tão gratificante quando a gente ouve de um aluno ―Aí professora, eu estava todo tempo tentando entender isso e agora, quando a senhora explicou, eu entendi‖. Ou mesmo quando a gente ouve de um aluno que nunca gostou de Matemática, mas só porque eu estava ali ensinando, passou a gostar… Isso não tem preço.

Dayse: Como você se enxerga daqui uns anos na sua carreira?

Hipotenusa: Eu sempre procuro me enxergar como alguém que possa fazer a diferença. Porque se for para ser mais um, melhor nem estar nesse curso mesmo. Nem está fazendo nenhum curso na universidade. Então eu procuro realmente pensar grande. Meu objetivo é ser professora de alguma instituição federal… Meu objetivo é esse. Mas até lá eu sei que posso passar por várias fases, várias escolas e eu quero que os alunos possam, assim, em

Page 139: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

138

uma entrevista que eu apareça na televisão coisas assim (risos), eles possam dizer ―Ah, essa já foi minha professora‖. Eu quero isso, eu quero que os alunos realmente sintam orgulho de me ter como professora e eu quero sempre sentir orgulho dessa minha profissão.

Dayse: Você não pretende mais ir para as Contábeis?

Hipotenusa: Não, já fugiu há muito tempo já.

Dayse: Agora só alguns pontos da entrevista que eu quero deixar claro. Você chegou a participar das Olimpíadas da Matemática e do Soletrando?

Hipotenusa: Participei das Olimpíadas da Matemática, é, dos 7 anos que eu participei da prova eu passei para a segunda fase em 5 e em dois eu fui premiada. E um desses prêmios eu ganhei uma bolsa de mil reais que é a premiação dos medalhistas. Eles podem escolher ou não fazer um curso, no qual eles ganham esse valor dos mil reais.

Dayse: É mensal esse valor?

Hipotenusa: É o valor total dividido em 10 meses. Aí era um encontro mensal que tinha no IFRN que é o PIC (Programa de Iniciação Científica). Aí a gente passava o sábado o dia todo lá aprendendo coisas assim, no caso, naquele tempo eu estava no nono ano. Então assim, eu estava aprendendo combinatória, estava aprendendo aritmética, parecia com Teoria dos Números, o que a gente vê aqui na universidade. Então assim, eu já estava indo mais além do que os outros que estavam na mesma série que eu. E eu acredito que ainda todo aquele ensino que eu tive lá no PIC ainda me ajudou muito em algumas disciplinas que eu paguei aqui. Principalmente as disciplinas mais atuais eu paguei Teoria dos Números, Análise Real… Então me ajudou bastante esse Programa. E quanto ao Soletrando, eu participei, representei a minha escola no Soletrando, mas na seletiva estadual, na terceira rodada, eu fui desclassificada. Errei uma palavra por puro nervosismo.

Dayse: Qual era a palavra? Você se lembra?

Hipotenusa: Era chacota. Que a parte difícil da palavra, o ch, eu acertei. Mas de tão nervosa que eu estava, eu falei ―c-h-o‖. E não podia nem voltar atrás. Era ―c-h-a‖. Aí já comecei a chorar dali e não parei de chorar mais até chegar em casa. E várias outras coisas que tinha na escola como ―Leitor do Mês‖, apesar da escola quase não abrir a biblioteca, nas poucas vezes que abria, eu aproveitava para ficar lá o tempo todo. Eu alugava, pegar todo dia um livro. No mesmo dia até mais de um livro, lia um e pegava outro. Eu cheguei a ser uma das três leitoras do mês, eu e minha irmã. Sempre servimos muito de exemplo para os outros alunos. O que era até chato porque os outros alunos não gostavam da gente já por causa disso. É como se a gente fosse meio que inimigas deles por conta da nossa organização, a gente sofreu (risos).

ENTREVISTA COM BARBOTINA Estudante de Engenharia Civil, 19 anos. Data: 26/11/2016 Local: DEPARTAMENTO BIOCIÊNCIAS (CB) – UFRN Duração: 32:25

Dayse: Hoje dia 26/11 às 18h52min estamos realizando uma entrevista no CB com a aluna de Engenharia Civil que o pseudônimo será Barbotina. Eu queria que você explicasse o que é a Barbotina em termos mais científicos possíveis para nós que somos leigas, e depois disso falasse a sua idade, o ano de ingresso e período que você está.

Barbotina: Primeiro vou falar sobre a Barbotina. Barbotina é a pasta que se dá para moldar qualquer material cerâmico, seja tijolo, seja telha. Então o material argiloso mais a água dão a Barbotina. O meu ano de ingresso foi em 2014.2, eu tenho 19 anos e sou de Engenharia Civil.

Dayse: Está em qual período?

Page 140: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

139

Barbotina: No terceiro.

Dayse: Já que estamos no início, não sei nada da sua vida, como foi a sua infância? Tanto familiar quanto escolar.

Barbotina: Foi sempre muito boa, eu tive sempre um convívio muito bom com a minha família, sempre tive muito apoio, e na escola também eu nunca fui antissocial, sempre fui bastante estudiosa.

Dayse: Você é daqui de Natal e sua família?

Barbotina: Não, sou do Rio Grande do Norte.

Dayse: De qual cidade?

Barbotina: Macau.

Dayse: Essa escola do ensino fundamental era pública?

Barbotina: É daqui, eu morei um ano lá e vim para cá. A escola era privada, eu estudei em escola privada até o sexto ano do ensino fundamental II e depois eu fui para a pública.

Dayse: Por que se deu essa mudança?

Barbotina: Porque eu tenho duas irmãs, aí o meu pai queria privilegiar a educação básica delas, então colocou elas na privada e eu fui para a pública.

Dayse: Qual é a função do seu pai?

Barbotina: Meu pai é montador de móveis.

Dayse: E a escolaridade dele?

Barbotina: Ele terminou o ensino médio.

Dayse: E a sua mãe?

Barbotina: Ela é costureira em casa e terminou o ensino médio também.

Dayse: Ambos com o ensino médio, né?

Barbotina: Sim.

Dayse: E você sabe a profissão dos avós paternos e maternos?

Barbotina: Sei. A minha avó materna era costureira e o meu avô materno era carpinteiro e pedreiro. E a minha avó paterna eu não sei, eu acho que ela era dona de casa enquanto meu avô era pescador.

Dayse: Já vimos que seu ensino fundamental foi parcial, né? Até o sexto ano em escola privada e depois foi para o público. E o médio?

Barbotina: Eu estudei no Instituto Federal.

Dayse: Você era aluna do IF (IFRN)?

Barbotina: Isso.

Dayse: Eu imaginava isso, que você vinha do IFRN. Como se deu essa preparação para você ir para o IFRN? Por que você estudava numa escola pública e fez o ProIF, né?

Barbotina: Eu fiz um cursinho, mas eu não estudava muito não. Porque assim, foi um período muito difícil da minha vida porque eu não sabia o que eu queria. Eu estava no nono ano e não queria sair da escola porque eu gostava muito da escola, aí eu ―Meu deus‖, o que eu faço? Era uma situação muito cansativa porque tinha o curso e tinha o nono ano, eu não queria diminuir as minhas notas, mas acabou que eu fui levando o curso como aula normal aí eu fazia os simulados. Eu lembro até que eu fui me preparar para um simulado que valia uma bolsa no curso, aí que fiquei em segundo lugar, aí sendo que eu não fiquei porque eu já tinha um cursinho e não queria mudar de curso. Aí pronto, eu estudei na escola, estudei no cursinho, mas não dei muita atenção (ao cursinho). Eu lembro que eu fiquei muito receosa de não passar porque eu não estava estudando. Eu passei em 2011.

Dayse: Como foi essa sua entrada no IF?

Page 141: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

140

Barbotina: Foi uma loucura, eu achei que eu não ia me dar bem não porque todo mundo botava medo que lá era muito difícil. O primeiro ano foi muito complicado para me adaptar, assim... Todo mundo da minha turma.

Dayse: Quais eram as complicações?

Barbotina: Primeiro que as matérias eram muito difíceis, segundo que no primeiro ano você não tem muito apoio da escola, então você está lá e precisa almoçar e você não sabe onde são os lugares para você, assim... As pessoas com quem você deveria ter auxilio, digamos a pedagoga. Entendeu? No começo eles sempre dão esse suporte de dizer onde são as coisas, mas você não é tão, digamos assim, jogado quanto aqui, que você tem que ir atrás, lá você sabia mais das coisas, mas a questão de o aluno do ensino médio ter que ficar o tempo inteiro lá. Você tinha um turno que você tinha que ir para as suas aulas, mas você obrigatoriamente tinha que ir estudar à tarde e tinha que ficar à noite estudando e fazendo os trabalhos. Entendeu? No primeiro ano foi muito complicado, no segundo foi melhorando porque a gente foi tendo informação de bolsa, é... Aí... É... Eu fiquei muito tempo, assim... No segundo ano foi quando eu comecei a ficar bastante tempo no IF.

Dayse: Qual era a sua habilitação lá? O técnico que era?

Barbotina: Edificações, aí no segundo ano a gente conseguiu a bolsa, metade da turma conseguiu a bolsa.

Dayse: Essa bolsa que você fala é de apoio técnico? Bolsa de quê?

Barbotina: Era de pesquisa para a Petrobrás. Aí melhorou significativamente. Principalmente... Porque assim... É... Eu ficava de tarde para estudar, mas algumas vezes o meu pai não gostava muito. Eu ficava de teimosa que eu era, mas ele não gostava que eu chegava muito tarde em casa, chegava seis horas em casa, saía cedo...

Dayse: Essas bolsas elas eram remuneradas?

Barbotina: Sim, eram remuneradas.

Dayse: Então, deixa eu só terminar de entender sua fala. Você falou que melhorou muito também pelo critério financeiro.

Barbotina: Isso, porque você começar a ter o seu próprio dinheiro é bastante importante. Dá certa liberdade. Antes eu participava do programa de iniciação cientifica júnior da OBMEP, então eu recebia cem reais por mês, mas isso não ajudava tanto porque eu praticamente dava para o meu pai para ele, sei lá... Fazer ―n‖ coisas que ele precisava, como eu ainda não era ―independente‖, digamos assim, eu não precisava tanto do dinheiro, mas quando veio o PETRH que é a bolsa, aí eu achei... Foi melhor.

Dayse: Aí qual era o valor dessa bolsa?

Barbotina: 350 reais.

Dayse: E você com meados de 14-15 anos, né?

Barbotina: 15 anos, mas eu já recebia a bolsa do PIC, que é o programa de iniciação científica desde os 13, 12, não...13.

Dayse: Você entrou com 13 anos no IF?

Barbotina: Não eu entrei com 15, mas eu já recebia desde antes.

Dayse: Desde a escola que você estudava antes, qual era a escola?

Barbotina: Gerônimo Gueiros.

Dayse: Como é que você se inscreveu para essas bolsas de iniciação científica Junior nessa escola?

Barbotina: Porque eu passei na Olimpíada Brasileira de Matemática, aí como eu ganhei medalha, aí eles dão a bolsa.

Dayse: Entendi. Você era uma aluna muito destaque. Na sua carreira estudantil.

Page 142: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

141

Barbotina: Muito, fui muito assim , tipo... Era bem estranho porque eu não tinha tantos amigos lá na escola, mas acabava que todo mundo me conhecia por causa dessas coisas e também porque eu tinha ganhado dois prêmios para a escola, aí todo mundo acabou me conhecendo porque era sempre muitas fotos minhas lá, aí eu ―Meu deus do céu‖ o que eu faço? O povo... Todo mundo vendo minhas fotos lá e... Porque... Tipo... Eu viajei para Brasília para... Que eu tinha ganhado um concurso de poesia daqui, do Rio grande do Norte, aí eu fui representando o Rio Grande do Norte, aí fui para Brasília com a minha professora. Aí quando eu voltei teve um concurso de redação do... Da marinha, aí ganhei do Nordeste, aí todo mundo ficou assim... ―Meu deus‖ aí foi assim, foram anos de loucura, de muita celebridade na escola, mas assim... Mesmo com esse monte de coisa eu ficava com muito medo de não passar no IF e reprovar assim... Sabe? Não sei o nível, né?

Dayse: Entendi. Agora estou entendendo sua trajetória. Você tocou num ponto crucial para nós, assim... Para a pesquisa dela e para a minha que é essa específica, como eram as suas relações de amizade no fundamental, essa subcelebridade aí, e no IF? Como é que você se analisa enquanto amigos?

Barbotina: Eu acho que eu era uma pessoa muito chata porque eu não gostava muito, assim, eu tinha muitos amigos, mas... Não sei... O problema é porque como eu era muito trancada em casa, eu não tinha tantas amizades, quando eu fui para o Jardim Nogueiras eu morava no bairro, mas eu não conhecia muita gente, eu não conhecia, eu sempre não conhecia porque era um bairro distante da minha escola.

Dayse: Essa que você morava... Em qual bairro? A escola onde estud...?

Barbotina: O bairro na minha escola era o Barro Vermelho. E eu morava no Planalto.

Dayse: Você mora até hoje no Planalto?

Barbotina: Até hoje. Eu morava no Alecrim, aí como as minhas irmãs nasceram. Eu fiquei... Eu fiquei... Aí a gente precisou ir para uma casa maior, a gente foi para o Planalto. Aí pronto. É... Aí eu não tenho muitos amigos no bairro. Aí lá eu comecei a ter uma certa amizade porque eu permaneci muito tempo na escola, permaneci 3 anos. E com isso a galera veio, né? Só que como era uma galera tipo... Ah! eu não quero estudar, ah! Eram muito bagunceiros e eu não era bagunceira, aí não ficou muito... Eu era amiga, mas não era.

Dayse: Mas você tinha aquela pareia, assim... Aquela...?

Barbotina: Pronto, aí no nono ano que eu comecei a tipo, esquecer um pouco porque como eu estava no cursinho, eu não estava estudando, comecei a perder um pouco aquela… Aquela fase de só estudar para ter aquele ambiente mais amizade, não sei o quê, conversar e faltar um pouco a aula e tal... Essas coisas… Então eu tive duas melhores amigas nessa época, e… Aí eu comecei a sair mais de casa e essas coisas no… Quando chegou no IF aí eu conheci bastante gente, muita gente, o IF é enorme, todo mundo parava e dava ―Oi, não sei o que?‖. Aí pronto, era bastante amizade. No entanto, como eu era pirralha, né? Não saía, porque eu não tinha com quem sair, eu tinha 15 anos, meu pai estava morrendo de medo dessas coisas.

Dayse: Certo. É… Na sua vida em casa, familiar, vocês praticavam algum tipo de lazer, de sair, vocês saiam para algum lugar?

Barbotina: Saía, eu saía muito.

Dayse: Com a família, né?

Barbotina: Com a família. A gente saía muito porque a família é grande, né? Então a gente sempre estava na casa dos tios, na casa de fulano de tal, aí a gente para o parque aquático que minha tia é sócia. Aí a gente sempre estava saindo.

Dayse: É você m… (mora) Não sei se você falou e eu esqueci…

Barbotina: É eu, meu pai, minha mãe e minhas duas irmãs.

Dayse: Certo. Você via seu pai ou a sua mãe com algum hábito de leitura? Você teve de presenciá-los estudando?

Page 143: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

142

Barbotina: Não, eles não gostam muito de estudar não. Eles sempre falaram assim ―Aí eu colava na prova‖, não sei o quê, ―mas não é para fazer isso não‖. Sabe, não... Não... Não... Eles incentivavam, mas não faziam. É o problema desses pais, né. Ah! Faça! Mas não faça o que eu faço. Faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço.

Dayse: Tá. Pelo que eu estou tentando traçar da sua trajetória, né? Desse seu estrelismo estudantil, como você atribui, principalmente, a que o fato desses seus sucessos escolares? Se você pudesse se autoanalisar.

Barbotina: É… Meu pai e minha mãe. Eles puxavam muito para mim. Tipo... Olhe, você tem que estudar! Senão você não vai ser o que você quer. Você tem que estudar para... É… conseguir sua casa, entendeu? De certa forma, tipo, tem que conseguir boas notas, porque isso vai ser bom para o futuro. Do mesmo jeito que eles fazem com as minhas irmãs, mas eles não fazem tanto com as minhas irmãs porque são duas e eles ficam meio que...

Dayse: Elas têm que idade?

Barbotina: Uma tem… Vai fazer 12 eu acho e a outra tem 10.

Dayse: Elas têm um bom desempenho também?

Barbotina: A minha irmã de 12 anos ela tem bom desempenho, mas a outra já é meio revoltada, só que ela é bastante inteligente, só que ela não gosta muito de estudar, essas coisas… Mas eu fico botando... Pegando muito no pé dela porque como as duas têm uma idade muito perto… Eu tenho 19 e a outra tem 12 e a gente tem 7 anos de diferença, então as duas, é… Minha mãe sempre ficou muito ocupada com elas duas. Então ela (a mãe) não se atentou tanto quanto quando era eu, que só tin…

Dayse: Era sozinha.

Barbotina: Era sozinha.

Dayse: É… Você tem familiares que estão que estão na UFRN?

Barbotina: Meu primo se formou em música, é… Meu tio...

Dayse: Anterior a você?

Barbotina: É, já se formou. É… Minha tia se formou em Letras, teve alguns que se formaram também, acho que a minha tia se formou em Geografia, teve alguns, mas sempre, assim… Da área do ensino.

Dayse: E como é que seus pais lidam hoje com a filha cursando Engenharia Civil?

Barbotina: Meu Deus, quando eles descobriram, eles ficaram mais animados que eu porque meu ingresso não era em 2014.2, era em 2015.1, aí eu fiz o ENEM só por fazer, foi só para testar, né? Aí quando eu vi, eu passei. ―Beleza, e agora, ‗tou com o IF, ‗tou estagiando, como é que eu vou entrar na faculdade?‖ Aí pronto. Eu contei para o meu pai, e meu pai espalhou para a família inteira. Sendo que ―Num sei o quê! Fazer Engenharia Civil era o que ela queria! Num sei o quê, num sei o quê o quê‖. Aí foi isso. Eles lidaram muito bem dessa forma sim, mas eu fiquei super preocupada com meu tempo. Sinceramente foi o que eu mais me preocupei.

Dayse: Estamos chegando ao fim. Você se preparou para esse ENEM? Pelo que entendi, você fez como teste.

Barbotina: Foi porque eu estava muito preocupada. Assim, eu ―tava no IF, era o último ano, aí eram as matérias técnicas que eu deveria prestar mais atenção‖. E eu estava estagiando (que é o estágio obrigatório ou o trabalho de conclusão de curso). Aí eu fiz ―vou estudar esse ano‖. Não consegui estudar. Estava muito preocupada. Estava com muito medo - muito medo mesmo - de não passar, de não fazer uma boa nota, né? Aí eu fiz o ENEM. Quando eu vi minha nota… Eu estava estudando bem pouco, né? Quando eu vi minha nota: ―Vish, não vai dar para passar não.‖ Aí eu botei só por botar. Eu tinha botado no primeiro semestre. Aí tinha passado lá num interior do Rio Grande do Sul. Só para dizer que passei. Mas aí eu fiz com o conhecimento que eu ganhei no IF mesmo, porque não estava com tempo.

Page 144: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

143

Dayse: Por que você escolheu engenharia civil?

Barbotina: Olhe, eu sou uma pessoa muito aleatória. Assim, eu ia fazer… Eu ia para Marinha. Queria ir para Marinha. Achava bonito. Ou era Marinha ou era Aeronáutica. Disse ―Pai, quero ir‖, mas aí ele disse para fazer o IF, aí ―Que danado é IF que ele está querendo que eu faça?‖ Aí eu fiz e descobri que dentre as áreas lá - eu pesquisei - edificações era a melhor saída para mim. Eu não gostava bem de informática. Controle ambiental não era comigo. Esse negócio de ambiente, de meio ambiente, não era comigo. E nem mecânica e nem eletrotécnica, que eram áreas muito masculinas para mim, muito! Aí eu entrei em edificações. Gostei da área. Eu sempre gostei de Astronomia, mas eu entrei na área de civil, gostei, me apaixonei por essa coisa meio bruta, de construção e tal. Aí fui fazer Engenharia Civil. Eu queria ter feito Astronomia, só que só tem no Rio de Janeiro, aí eu fiz ―Vou fazer Engenharia Civil‖ que é uma coisa que eu gosto também e vou estudar depois só para não ser leiga no assunto de astronomia, que eu adoro. Aí eu fiquei muito preocupada também de novo porque era Engenharia Civil, um curso muito concorrido, que é cheio de homens. Eu não me preocupei muito com essa história de homens não. Nunca me preocupei com isso, mas com o fato de ser muito concorrido eu fiquei preocupada. Depois que eu passei eu fiquei ―Meu Deus, como é que eu consegui passar nisso?‖.

Dayse: Hoje em dia você tem estágio, bolsa?

Barbotina: Eu tenho estágio. Estagio desde o… Dois anos atrás eu comecei a estagiar.

Dayse: Você mantém o estágio da época do IF?

Barbotina: Isso, estou estagiando lá. O estágio vai terminar no próximo ano. E eu tenho a bolsa do Mestrado de Matemática, que é desde aquela história do Programa de Iniciação Científica.

Dayse: Estou confusa. Porque sou totalmente leiga, tente me explicar.

Barbotina: É assim: quando o aluno que fez o programa de Iniciação Científica de Matemática Júnior...

Dayse: Você ganhou essa Olimpíada a nível RN?

Barbotina: Não. Brasileira.

Dayse: Olimpíada Brasileira?

Barbotina: Não. Assim… São 1200 medalhas de ouro. 1200 de prata e 900 de...

Dayse: Não existe um campeão, são 1200, vários, e você foi uma das 1200.

Barbotina: É. Por aí. Sendo que você tem esse curso que você faz quando você ganha a medalha. Você ganha o curso de Iniciação Científica Júnior. Você vai estudar todos os sábados.

Dayse: E ganha esse valor de cem reais todos os meses?

Barbotina: Isso. Quando esse aluno entra na universidade pública, ele tem direito de participar do PICME, que é o Programa de Iniciação Científica e Mestrado, em Matemática.

Dayse: Já pensou? Que maravilha.

Barbotina: Aí o que acontece? Você vai em busca, porque são muitas pessoas que ganham, então tem que ir atrás. Tem que ser da área tecnológica - Matemática e essas coisas -, de Cálculo.

Dayse: Você fica com aquela herança. Quando você entrar...

Barbotina: Você pode ganhar essa bolsa. Não é que você vai conseguir… Algum momento você consegue… É que é muito aluno para pouca bolsa, de Mestrado. Aí eu consegui esse semestre.

Dayse: É igual ao valor de uma bolsa de mestrado. É mil e...

Barbotina: Não. É porque é Iniciação Científica, então é 400 reais.

Dayse: Ah tá.

Page 145: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

144

Barbotina: É porque é da graduação. Aí pronto, é 400 reais. Aí eu tenho aulas de mestrado, mas acabou já. Aí eu estou nessas duas rendas.

Dayse: Agora nessa fase final da entrevista, vamos focar na graduação. Você já falou do fundamental, celebridades, autógrafos, fotos. Que interessante, eu fico só cruzando as informações, porque meus alunos dos cursos de elite - eu acho assim Direito, Civil e Odonto... Eu já entrevistei a menina de Odonto e entrevistei você - as duas vieram do IF, as duas eram celebridades estudantis, eram alunas de ponta. Eu fico assim, são informações muito relevantes para entender como um aluno de origem popular - e eu não posso dizer na minha dissertação que todo aluno popular que se insere nas faculdades de elite são alunos celebridades estudantis -, entretanto os meus dados coletados mostram que as alunas eram alunas assim. É o meu dado. Acho interessantíssimo. Você passou, foi aprovada, saiu do IF e chegou na UF. Como foi seu início aqui, na realidade universitária?

Barbotina: No primeiro semestre eu só paguei duas matérias, então eu vinha aqui só para ter a presença. Foi muito lá no IF. O que começou mesmo foi 2015.1. Tinha acabado TFRH, o estágio. ―Pronto. Vou me focar na UF!‖. Quando eu cheguei na UF: ―Cadê dinheiro?‖. Aí...

Dayse: Foi o período que você ficou zerada?

Barbotina: Foi. Eu… Acho que sou uma pessoa muito orgulhosa, porque eu não ia ficar com o dinheiro do meu pai. ―Num sei o que... Me dê vinte reais para almoçar.‖ Não, entendeu? Aí eu estava nos três turnos, então eu passava o dia todo aqui. Minha nossa senhora! Eu fiquei cogitando procurar os estágios e as bolsas. Eu passei e soube que estava tendo vaga no local que eu estou estagiando. Aí era para outra bolsa. Eu fui, que não tinha condições de eu passar um ano, 2015 inteiro, sem dinheiro. Lá fui eu estagiar de novo. Aí eu estou até agora, né? Sendo que não dá, é muito pouco.

Dayse: Esse é o momento que a gente chegou no ápice para entender sua vida aqui na universidade. Você chegou e tal. Como é você e os outros? Como é você e seus colegas que não compactuam da mesma realidade que você? Como se dá sua relação interpessoal com os colegas?

Barbotina: Sempre foi muito boa. Eu vejo que minha turma não tem muito esse problema. É uma galera muito misturada. Tem bastante gente do IF, uma parcelado do IF... Também tem uma galera da elite, bem da elite. Mas até agora ainda não senti essa disparidade. Com certeza a gente vê, né? Nos lugares que a gente frequenta. É... No sentido dos bairros que você mora, essa foi a diferença que eu senti, só. E principalmente que a maioria tem carro. Mas, assim...

Dayse: Você tem amigos formados na graduação?

Barbotina: Sim.

Dayse: Você se encontra com esses amigos, extra classe?

Barbotina: Sim. A turma de Civil se encontra sempre.

Dayse: Quais locais?

Barbotina: A gente sempre faz churrasco nos condomínios.

Dayse: Aí você está lá?

Barbotina: Estou, porque assim, às vezes, né. Não. Sempre não. Sempre que é muita... Vez ou outra eu vou.

Dayse: Você é convidada.

Barbotina: É. Tipo todo mundo convida e a gente faz a cotinha, quando dá eu vou. Quando não dá...

Dayse: Eles já fizeram um programa que era ―surreal‖ você ir? Tipo, passeio de lancha, jet sky?

Barbotina: Não, não.

Dayse: Então, narre um episódio.

Page 146: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

145

Barbotina: A que eu não pude ir mesmo (risos) foi semana, SEEC, Semana de Educação ―num sei o que‖, que era da construção civil. Só que tipo era 300 reais, era uma semana. Tipo, seria muito bom para a graduação.

Dayse: Era um encontro pedagógico? Não era um ―churras‖ não...

Barbotina: Era um encontro pedagógico. Só que era 300 reais. Não ia dar 300 reais para ir a um negócio desses não, nunca. Aí alguns foram. Outros não. Mas pronto... Sempre é churrasco, balada, a galera também é muito cervejeira. Aí vamos num bar, qualquer bar e bebem. É assim. A galera tem um carrão ―desse tamanho‖, enorme assim, e diz ―vamos pro bar‖... É assim. A galera é desse jeito. Minha turma é muito ―de boa‖.

Dayse: E você? E você nessa turma? Estou amando essa turma (risos). Você nessa turma aí, do bar e do churrasco. Você participa?

Barbotina: De vez enquanto eu participo. Porque assim, como meu horário é muito corrido e meu pai assim também é ―Aí, você vai para onde? Você vai para que balada‖. Aí eu não vou tanto assim. Mas de vez enquanto eu estou participando. Eu estudo, estagio, aí depois eu estudo. Aí vou para casa. Final de semana a galera se encontra e eu me encontro mais com a turma que eu conheço do IF ou com meu namorado. Aí vez ou outra a gente combina ―Ah, vamos para um churrasco‖. Inclusive, tem um nesse final de semana que eu estou querendo ir, só que eu não sei se vai dar tempo.

Dayse: Eu seu namorado estuda na UFRN?

Barbotina: Ele faz Civil.

Dayse: Você o conheceu aqui?

Barbotina: Não. Eu conheci no IF. Só que do mesmo jeito que, tipo...

Dayse: Vocês dois entraram juntos?

Barbotina: Não. Ele é meu calouro. Porque eu entrei adiantada, né? Aí, mas ele é rico. Digo que ele é rico porque não tenho o que dizer... Ele é rico e pronto. Ele é rico.

Dayse: Tá você e ele andando de jet sky (risos).

Barbotina: Não. Não dá não. É porque ele é muito, muito quietinho. Ele é todo assim... Sabe aquele rico que, como é, que vive como pobre... ―Não, não vou comprar isso porque é muito caro‖, ele é muito assim.

Dayse: Você acredita que esses amigos cervejeiros, eles contribuem de alguma maneira na sua graduação? Seja positiva ou negativamente... Qual a contribuição dos amigos cervejeiros?

Barbotina: Assim... Contribuição... Deixa eu ver. É, eu não sou muito cervejeira. Não gosto muito de beber. Eu gosto, assim, de conviver e tal, porque é minha turma... Vou passar 5 anos com eles. E com a galera que de vez enquanto, por causa das turmas, eu conheço. Assim, é muito bom, porque a troca de conhecimento e de vida é muito boa. É, tem uns que não são muito estudiosos, né? (risos). Aí a gente lida com isso e ajuda, eles ajudam. É muito legal assim... Você conhecer essas pessoas além do curso que você tem.

Dayse: Você tem que lidar com o fato deles serem da ―elite‖, alguns, os do ―carrão‖ e tal. Mas como eles lidam com o fato de você vir dessa realidade que você vem? Morar no Planalto, andar de ônibus... Como eles lidam?

Barbotina: Eles não tão nem aí.

Dayse: Você nunca sentiu nenhum tipo de...

Barbotina: Não. Tipo, ―Vou pegar o ônibus‖. Aí ‗Vixe, tu vai pegar o circular cheio?‘‖. Aí falam ―Não, vou te deixar ali em tal lugar‖. Mas tipo, a galera nunca, assim... Tem uns que até pegam ônibus. Tem tipo a minha amiga que ela foi para Medicina, ela até pega ônibus. Aí tipo, não tem essa besteira não. ―Vai pegar o ônibus? Beleza‖. Não vai poder ir, beleza, não tem problema. ―Mas vamos? Vamos‖. Se for, beleza, se não for, beleza também. Não tem muita frescura com isso não. Pelo menos na minha turma não.

Page 147: EDILENE DAYSE ARAÚJO DA SILVA...Quando desistir não é uma opção: socialização e estratégias de permanência de estudantes populares da UFRN / Edilene Dayse Araújo da Silva

146

Dayse: Entendi. A sua realidade. A última pergunta: Quais são as suas perspectivas para o futuro?

Barbotina: (risos) Eu estava pensando isso hoje, porque eu estou muito ferrada. É, sério, eu estou muito ferrada. O meu estágio vai acabar, aí eu vou ficar só com 400 reais. Aí estou vendo como vai ser minha situação aqui, porque não sei, é complicado você ter que lidar apenas com 400 reais. Estou pensando em trabalhar. É isso assim. A minha perspectiva é que depois que eu terminar o curso e começar a trabalhar, eu vou focar mais em trabalhar, conseguir mais dinheiro e tal, para sei lá, ter um carro. Mas enquanto graduação é em busca de bolsa, porque é o jeito. É estudar e... Não vai ter jeito. Eu não vou conseguir estudar muito tempo sem trabalhar. Porque eu não vou conseguir ficar assim. Eu já me tornei independente há muito tempo, para ficar dependendo do meu pai, entendeu? Pedindo dinheiro.