e no fim uma grande brincadeira? - fazendo gênero 10 ... · conceito de gênero apresentado no...
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Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X
E NO FIM... UMA GRANDE BRINCADEIRA?
Narcisa Castilho Melo1
Resumo: O presente trabalho apresenta-se como uma proposta de reflexão a respeito do grupo
social identificado como Otaku que é composto por jovens que se interessam pela cultura pop
japonesa e seus mais diferentes aspectos, tais como animês, mangás, cosplays (jovens que escolhem
determinado personagem da cultura pop japonesa e caracterizam-se como tal para as convenções e
eventos) e um conjunto de tecnologias. Quando voltamos nosso olhar de maneira mais atenta para o
campo, questionamentos surgem, tais como: O que representam as performances encontradas tanto
nos jovens quanto nos bonecos encontrados nos eventos? Existe alguma mobilidade de agência
entre os atores sociais que delimitam este campo? Dentro de um universo tão rico de personagens,
alguns acabam sendo escolhidos pelos jovens cosplays para realização de performances durante
eventos e essas escolhas são o que colocam o debate a respeito da configuração de
gênero/sexualidade em questão. Sendo assim, numa tentativa de compreender melhor tais questões,
este trabalho buscará explicitar as experiências vivenciadas no campo refletindo sobre as temáticas.
Palavras-chave: Cosplay. Gênero. Performance.
Otaquem?
Atualmente, no cenário brasileiro, podemos encontrar um grupo específico, que revela essas
questões implícitas ao debate de gênero e sexualidade, dentre outros, de forma bastante peculiar: os
chamados Otakus. Seriam jovens que se interessam pela cultura pop japonesa em todas as suas
nuances, como animês, mangás, cosplays e toda uma cultura tecnológica envolvida.
Ao acompanhar tais atividades, no lugar de jovens deslumbrados com esse campo,
começamos a observar com mais atenção algumas características que saltam aos olhos desde o
primeiro contato nesse contexto. Muitas foram as perguntas que começaram a se formar, dentre
elas, questões relacionadas com formação de sociedade; herança familiar; código de ética; conduta;
opções sexuais; comportamentos “entendidos como” masculinos e femininos – tudo muito presente
nos desenhos e revistas e conversado com muita ênfase pelos jovens brasileiros com quem nos
relacionávamos; mesmo sendo essas questões não pertinentes à nossa sociedade, ou melhor
dizendo, mesmo sendo essas questões percebidas e contextualizadas de maneira diferente numa
sociedade oriental.
Decidimos então buscar mais informações a respeito deste universo que se abria a nossa
frente e nos deparamos com o grupo que se identifica como Otaku – são os jovens que buscam
integrar às suas vidas, características de uma cultura pop japonesa. Ou seja, identificam-se com
determinados personagens e contextos, e reúnem-se em eventos com diversas atividades temáticas,
1 Mestranda em Ciências Sociais pelo PPGCS - UFRRJ, Seropédica, Brasil.
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com o objetivo inicial de interagir socialmente, compartilhar informações e conhecimentos sobre os
assuntos comuns de interesse e, porque não dizer, encontram-se para se divertir e brincar.
Decidimos então, acompanhar mais de perto este grupo social e estes encontros e buscar
compreender e, quem sabe, responder às questões que permeiam nossos pensamentos, até então sem
respostas fechadas.
A expressão “brincadeira” escolhida como referência no título do trabalho deve-se a uma
das primeiras reflexões que tivemos que fazer em nossa entrada no campo em São Paulo. Apesar do
conhecimento do que era a cultura pop que esses jovens acompanhavam em seu dia-a-dia, não
tínhamos noção do que era um evento com o propósito e tamanho que encontramos nessa feira –
que apesar da observação feita no eixo Rio – São Paulo, constatamos com mais força e “riqueza” na
cidade de São Paulo – momento em que milhares de jovens, durante quinze dias, se encontravam
para se “vestir”, compartilhar informação, comprar, e performatizar seus heróis e aventuras das
maneiras mais variadas e ricas possíveis, onde nesses eventos existem competições de fantasias,
competições de “quadros de animes”2 e as fotos tiradas de maneira incansável para registrar e
encenar suas identidades.
A partir de nossas observações mais atentas, pudemos perceber que neste grupo formado no
Brasil, a participação masculina e feminina envolvida com as atividades sociais chama a atenção e o
que desperta o interesse de estudo é o fato dos participantes deste grupo apropriarem-se de
personagens complexos, onde a definição de gênero e sexualidade se coloca de forma imbricada
onde aparentemente, essa complexidade não se torna uma questão para esses jovens brasileiros. Um
exemplo seria a escolha de um jovem do sexo masculino em realizar a representação fiel de um
personagem que no desenho se apresenta com aparência, fala, e vestimenta feminina, mas sua
identificação é masculina; o personagem se reconhece através da identidade masculina e o jovem
brasileiro que escolhe esse personagem para representar também.
Neste campo, podemos perceber que esse debate inicial a respeito de uma definição
biológica para a compreensão de sexo e uma definição natural para o entendimento de cultura não
estão bem delimitados; e possíveis “identidades andrógenas” - estão presentes com muita
intensidade. Quando voltamos nosso olhar de maneira mais atenta ao campo, questionamentos
surgem, tais como: Quais as representações relacionadas a gênero e sexualidade esses jovens estão
construindo? Como se constitui essa nova relação de gênero e sexualidade em um grupo surgido
2 Onde cenas de desenhos, filmes e jogos são representados com todos os participantes caracterizados.
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recentemente no Brasil, mas que busca vivenciar uma cultura tão tradicional? Quais as
representações e identidades surgem a partir deste novo olhar sobre o gênero e a sexualidade?
A ideia inicial, numa tentativa de compreender melhor esses questionamentos, seria buscar
suporte em autores que debatem as temáticas de gênero, sexualidade e identidade, focando nos
pontos centrais do debate apresentado. Para tal, levaremos em consideração os posicionamentos de
autores como Verena Stolcke, Judith Butler e Donna Haraway, que trabalham a temática gênero e a
forma como a mesma foi se construindo ao longo do tempo e de acordo com cada sociedade. Num
segundo momento, serão apresentadas as reflexões a respeito dessa nova construção em torno do
conceito de gênero apresentado no grupo social Otaku.
A partir da noção inicial onde compreende-se o conceito de gênero enquanto algo que se
mistura, mescla e funde com outros termos tão relevantes na antropologia, como sexo e identidade;
devemos refletir a respeito do gênero e suas nuances entendendo que, inicialmente, o conceito de
gênero foi apresentado enquanto algo natural, onde a concepção biológica seria a base para a
explicação e o entendimento das diferenças dos gêneros.
Essa ideia é apresentada por Stolcke, em seu texto ‘Sexo está para gênero assim como raça
para etnicidade?’, onde percebemos que a autora destaca a importância de se repensar essa visão de
gênero como fato natural e universal das diferenças do sexo, buscando considerar a possibilidade
do mesmo ser, na verdade, uma formulação cultural.
Para destacar o quanto essa ideia de gênero estar baseada em questões biológicas influenciou
no entendimento de outras categorias, Stolcke (1991, p.103) relata:
O conceito analítico de “gênero” se destina a desafiar a máxima
essencialista e universalista de que “a biologia é o destino”. Ele transcende o
reducionismo biológico, interpretando as relações entre homens e mulheres
como formulações culturais resultantes da imposição de significados sociais,
culturais e psicológicos sobre identidades sexuais. (STOLCKE, 1991,
p.103-104)
Ainda para a autora, a necessidade de se relacionar gênero enquanto uma criação simbólica;
sexo enquanto fatores biológicos e sexualidade enquanto preferências e comportamentos sexuais
mostram-se como relevante e, podemos dizer que no caso deste trabalho, essencial para a
compreensão do que está sendo apresentado. Para ela, o conceito de gênero acaba por representar
relações sociais definidas entre mulheres e homens, onde essas diferenças biológicas seriam a base
para o estabelecimento, pelo menos materialmente, das relações concretas formadas entre os
gêneros (STOLCKE, 1991, p.110).
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Uma outra ideia também defendida por Stolcke (1991) e apresentada por ela em seu texto,
baseia-se nas formulações propostas por Judith Shapiro, que na década de 80, no auge das
discussões sobre a relação entre gênero-sexo e raça-etnia, posiciona-se da seguinte maneira:
[Sexo e gênero] servem a um útil propósito analítico ao contrastar um
conjunto de fatos biológicos com um conjunto de fatos culturais. (...) Essas
categorias são, contudo, convencionais ou arbitrárias, na medida em que não
são redutíveis a fatos naturais, biológicos, nem diretamente derivadas
destes; elas variam de uma língua para outra, de uma cultura para outra, na
maneira em que ordenam a experiência e a ação. (SHAPIRO, 1981, cit. por
Collier e Yanagisako, 1987, p.33; in STOLCKE, 1991, p.104)
Assim, podemos entender que o debate a ser promovido neste campo nos mostra que tanto
gênero quanto sexo estão diretamente relacionados, e sua separação funciona com alguns propósitos
bem específicos, mas a estruturação da relação de gênero está claramente relacionada com fatos
biológicos que possuem dimensões naturais, culturais e que estão interligadas com fatores
socioeconômicos.
Ainda na busca do melhor entendimento a respeito de uma definição do conceito de gênero,
podemos recorrer à autora Donna Haraway, que em seu artigo ‘ “Gênero” para um dicionário
marxista: a política sexual de uma palavra’ relata as nuances de se explicar ou definir gênero.
A autora apresenta as variações de compreensão sobre sexo e gênero onde podemos
delimitar gênero como espécie, classe, categoria, geração e até mesmo diferença sexual. Essas
definições, que permeiam o entendimento sobre o que seria gênero se apresentam até hoje, onde o
mesmo acaba muitas vezes por ser visto enquanto formas de classificação das diferenças através de
uma universalização dos conceitos; gerando assim uma grande desigualdade entre os papéis
femininos e masculinos.
Haraway (2004) afirma ainda que, historicamente, o conceito de gênero surge com o
objetivo de descontruir a ideia das diferenças sexuais serem algo natural e universal; onde homens e
mulheres teriam lugares e funções previamente definidas na sociedade, e relações de hierarquia e
antagonismo seriam a base dessa interação homem-mulher. A compreensão de natureza e cultura
enquanto categorias e conceitos universais acabou se desconstruindo na medida que gênero começa
a se estabelecer numa relação direta com ambas, onde demais aspectos socioculturais, como sexo,
também passam a interagir diretamente nessa relação.
Esses conceitos de gênero – como marcadores de diferenças – são colocados a prova
constantemente no campo. Muitos dos jovens usam vestes de personagem que tem gênero diferente
dos seus – meninos vestido de personagem mulher e mulheres vestida de personagem homem – ou
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usam personagem de sexualidade ambígua ou andrógena, o que por muitas vezes nos surpreendeu
durante fotografias e conversas, já que muitos estavam tão bem fantasiados e com performances tão
perfeitas que nos faziam achar que o gênero do ator era o do personagem; o que por muitas vezes se
mostrava contrário quando ocorria nossa interação com os mesmos.
Fazendo então uma retrospectiva, os conceitos de gênero, sexo e sexualidade estão
diretamente relacionados com os debates de identidade presentes na antropologia, onde podemos
encontrar desde o inicial interesse pela distinção entre os sexos, até um olhar mais crítico sobre essa
compreensão da importância do gênero na sociedade.
Gonçalves (2000) apresenta um mapeamento relevante a respeito da trajetória da
antropologia com esses objetos/conceitos de estudo. O autor relata que além da compreensão de
gênero, diferença sexual e sexualidade enquanto construções sociais, a antropologia também teve
seu momento onde as feministas questionaram as diferenças sexuais enquanto aspectos políticos.
Este teria sido o momento onde o domínio masculino, inclusive e principalmente nos aspectos
biológicos, segundo o discurso predominante na época, foi questionado e os direitos femininos
teriam ganhado espaço neste cenário de poder masculino.
As feministas iniciam seus debates, buscando uma nova compreensão de gênero, que
desmistificasse a ideia de uma superioridade masculina, calcada em aspectos biológicos e/ou
culturais, a partir de uma não mais aceitação do conceito de universalidade.
Um terceiro momento de estudo e reflexão sobre essa temática, surge como desafio; a busca
de um melhor entendimento sobre questões como masculino, feminino, sexo e sexualidade; todos
presentes e interpretados de acordo com cada contexto sociocultural.
Podemos dizer então que, num último momento, o que se estabelece como foco no estudo
sobre gênero acaba por ser uma busca por entender os conceitos, não mais limitados à
universalidade masculina e feminina, mas sim todas as demais questões que se estabeleceram e
podem ser encontradas até hoje na sociedade. Gonçalves (2000) afirma com veemência sobre os
estudos atuais a respeito do conceito gênero:
Nosso programa de trabalho é o de tomar o gênero em sua acepção mais
abstrata, denotando, não mais ‘feminino’ ou ‘masculino’, mas diferenças
propostas em relação no interior de um sistema cultural e socialmente dado.
(...) Gênero pode comportar e transportar os significados de dominação,
exploração, subordinação, hierarquia, desigualdade, assimetria assim como
os de igualdade e semelhança, sem serem, necessariamente, mutuamente
exclusivos, visto que estes são temas relacionados aos sistemas que
imprimem as diferenças no mundo (...) (GONÇALVES, 2000, p.14)
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A partir desta evolução histórica nos estudos antropológicos a respeito de gênero, Butler
(2003) traz ao debate os problemas existentes derivados do paradigma de identidade. Inúmeras
foram as situações que trouxeram a tona a dificuldade em se lidar com o conceito de gênero, como
o determinismo biológico impondo-se ao construcionismo social, e como a separação entre biologia
e cultura e a consequente superposição da cultura, sendo a responsável por fazer o gênero produzir
uma nova pessoa.
A ideia de categorias binárias acaba por mostrar-se insuficiente e reflexões a respeito do que
realmente define e delimita a identidade; e como essa noção de pessoa se desenha a partir de
determinados significados sociais mostra-se relevante para a compreensão de novos cenários que se
apresentam como campo de estudo na antropologia.
Outro ponto de estudo que mostra-se como relevante para a antropologia é a androginia. A
mesma foi estudada por antropólogos através de sociedades onde a relação de jogo entre masculino
e feminino não acontecia como no ocidente. Correa (1995) relata que a figura do andrógino leva os
antropólogos ao limiar da compreensão entre feminino e masculino, muitas vezes “poluindo” as
definições existentes. Ainda segundo ela,
No Brasil, a especulação sobre a ambiguidade na definição da identidade
sexual também começou no século dezenove. (...) Mary Douglas e outros
antropólogos analisaram depois: o perigo está no indefinido, na quebra das
definições; em suma, nos limiares. Essas definições são frequentemente
implícitas, já que fazem parte do repertório supostamente (re)conhecido por
todos os integrantes de uma sociedade dada e é só quando são postas em
questão que elas adquirem feição mais clara, isto é, que mostram seu
potencial como definições não estabelecidas, mas com conflito por uma
significação precisa. (CORREA, 1995, p.125-126)
Baseando-nos na interpretação de Correa (1995), podemos compreender então que a
androginia ou a mistura de gêneros ressalta a dificuldade tanto de estudiosos, quanto da sociedade,
em lidar com algo que não pode ser definido. O que foge à compreensão e claro
entendimento/definição por parte da sociedade causa mal estar e estranheza, onde a busca por um
encaixe torna-se muitas vezes destaque em determinadas situações. Ainda segundo Correa (1995),
os ideais de masculinidade e feminilidade, mesmo tendo sido tão questionados desde seu
surgimento, frequentemente são colocados em dúvida, com novas situações que surgem a partir dos
comportamentos ‘sociais’.
Um exemplo desta situação limite, que vem questionar o olhar da sociedade sobre o que
seria comportamento biológico, natural, como também o que se compreende por sexo, sexualidade,
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gênero e identidade são os grupos citados anteriormente, denominados Otaku. Esse grupo
caracteriza-se por jovens, em sua maioria, numa faixa etária de 12 a 30 anos, que possuem em
comum interesses por elementos da cultura pop japonesa. Esses jovens acabam por reunirem-se em
eventos onde diversas atividades são realizadas, dentre elas, o que é identificado como Cosplay.
Cada jovem que opta por ‘ser um Cosplay’ precisa escolher algum personagem de referência
para o grupo e o mesmo deve se caracterizar e portar-se como tal durante todo o evento. Nada
saltaria aos olhos se não fossem algumas escolhas realizadas por estes jovens. Dentro de um
universo rico de personagens, alguns acabam sendo escolhidos e essas escolhas são o que colocam o
debate anterior a respeito da configuração de gênero/sexualidade em questão.
Retomando o debate antropológico de androginia e ideal de masculino e feminino, nestes
eventos acabamos por encontrar jovens que não ‘funcionam’ ou não estão estruturados de acordo
com esses conceitos; e para este grupo essa relação se estabelece de maneira simples, comum e, na
verdade, esperada e aprovada pelo grupo.
Podemos ver nas fotos a seguir que a relação estabelecida por esses jovens tanto com a
questão da identidade, quanto de aceitação do corpo transformam-se em destaque positivo para o
grupo. Um outro ponto que chama a atenção está relacionado com a performance; todos os jovens
Cosplays apresentam uma performance específica de cada personagem, onde muitas vezes temos de
observar mais atentamente para compreender o todo que aquele momento nos está mostrando.
Para que as imagens a seguir exemplifiquem o debate feito até o momento, cabe uma
explicação prévia sobre como este grupo age durante os seus eventos. Durante todo o dia, enquanto
transitamos3 pelo espaço onde as atividades acontecem, podemos perceber que os jovens Cosplays
preparam-se com suas indumentárias não apenas para o concurso, que é uma característica desses
eventos, mas também para caminhar entre os participantes e curiosos que lá estão.
Uma característica comum e que se repete inúmeras vezes é o jovem Cosplay ser solicitado
para que uma foto seja tirada. Aproveitando o trabalho que estávamos realizando, nos aproximamos
dos jovens e pedimos permissão para tirar uma foto, e em todos os casos, fomos prontamente
atendidos; sempre com atenção e disponibilidade. Vale ressaltar que tive a ajuda do pesquisador
Cleiton Machado Maia4 em ambos os eventos, onde as reflexões a respeito das situações
vivenciadas puderam ser melhor debatidas e uma melhor análise do contexto pôde ser construída.
3 Fui acompanhada durante todo o evento em São Paulo por mestrandos de Ciências Sociais (PPGCS) da UFRRJ.
4 Mestrando em Ciências Sociais da UFRRJ/PPGCS – sua presença nos eventos deu-se tanto pelo interesse na pesquisa
que está sendo realizada; quanto pelo suporte do amigo nos momentos de reflexão sobre o campo.
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Pensando em exemplificar o debate teórico apresentado até o presente momento, buscamos
então imagens que expressassem os pontos de reflexão. Neste primeiro exemplo, percebemos a
caracterização interessante de uma jovem que transitava pelo evento, identificada com uma
personagem feminina. Solicitei ao pesquisador Cleiton que tirasse a foto, pois percebemos que seria
útil num momento posterior.
O pesquisador estabeleceu contato com a mesma e perguntou se poderia tirar uma foto;
frente à afirmativa, nos posicionamos no melhor ângulo para tal. Durante sua performance para a
foto - ritual comum a todos os cosplays, onde eles acabam por realizar o movimento mais
característico de seu personagem escolhido, pois isso acaba por facilitar seu reconhecimento no
grupo - a mesma posiciona-se de tal forma que seus braços acabam por cobrir seu rosto, numa
possível reação de proteção. A foto então é tirada, agradecemos e continuamos nossa incursão pelo
evento.
Qual não foi a surpresa quando, num momento posterior, refletindo sobre as caracterizações
que nos chamaram a atenção, fui informada que esta jovem, na verdade era um menino. Sua
performance para o momento que foi fotografado acabava por esconder características, que na
verdade, mesmo na presença do jovem e com a foto posterior, onde podemos ver o rosto, não
transparece seu pertencimento ao sexo masculino.
A questão da androginia fica latente neste jovem, pois seus traços são tão mesclados que,
mesmo ao vivo, não foi possível perceber que se tratava de um menino; e a escolha da personagem
que se protege no momento da performance também acaba sendo relevante neste contexto. Somente
foi possível saber que era um menino, pois o pesquisador estabeleceu contato verbal e assim,
conseguiu identificar que não era uma jovem e sim um jovem (grifo meu); por isso uma segunda
foto foi tirada, já não mais quando ele realizava a performance característica da personagem.
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5 Menino caracterizado de menina e realizando performance para o momento da foto - Evento Anime Friends São Paulo
- Julho 2012 - Foto tirada por Cleiton Machado Maia.
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No segundo caso, pudemos identificar um exemplo de hibridismo entre os jovens
participantes do evento. Na foto abaixo podemos perceber que o jovem do sexo masculino acaba
por apresentar elementos de gêneros diferentes. Mais uma vez, a ideia de uma relação binária,
estanque, com a definição prévia de masculino e feminino não se encaixa neste contexto.
Vestir-se e identificar-se com uma personagem feminina é o que podemos encontrar neste
caso – o jovem apresenta características tanto masculinas quanto femininas onde, neste caso, não
apenas sua caracterização corresponde ao personagem feminino, mas também sua fala,
comportamentos, gestos e reações, mesmo fora do momento da performance. A identificação deste
jovem fica evidente com o feminino, apesar de suas características físicas nos mostrar que
conversávamos com um menino.
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Por último, temos alguns exemplos mais gerais encontrados durante o evento deste grupo
social. Muitos são os casos de identificação e performance opostas ao sexo do jovem. A escolha de
personagens não acaba por seguir algum fator determinante em relação ao sexo, gênero e
sexualidade, mas sim às características de comportamento, ações e personalidade, onde os jovens
mais se identificam. Assim, encontramos meninas caracterizadas de personagens masculinos, sendo
esses grandes guerreiros ou apenas simples estudantes; ou então nos deparamos também com
meninos caracterizados por personagens femininas que apesar da ideia de fragilidade, também
apresentam personalidades fortes.
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6 Caso de hibridismo onde menino apresenta características femininas e masculinas e realiza sua performance enquanto
personagem feminina - Evento Anime Friends São Paulo - Julho 2012 - Foto tirada por Cleiton Machado Maia.
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Os próprios personagens e suas histórias, muitas vezes, acabam por contribuir com essas
características nas opções e escolhas dos jovens “Otakus”. Durante a observação de bonecos,
imagens, camisas e objetos visuais diversos, verificamos como os personagens, por muitas vezes,
tem características que dificultam determinações marcantes de gênero ou sexualidade. Elementos
culturalmente vistos como marcadores estão colocados de formas misturadas ou trocadas – aos
olhos dos padrões ocidentais – o que geraria uma troca de elementos dentro dos padrões de gêneros,
ou mistura de gênero quando são colocados juntos. Algumas observações, feitas sobre histórias de
personagem possibilitaram o entendimento do porque, muitas vezes, esses elementos se encontram
de maneira tão variada e complexa. Alguns personagens vivenciam ocasiões em que, apesar do
personagem ser de um determinado gênero marcado, o mesmo tem uma identidade de outro gênero
(vida passada ou avatar), o que abre a esse personagem incorporar “algumas” dessas características.
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Em todos os casos apresentados nas fotos, encontramos jovens do sexo masculino e
feminino, na faixa etária entre 16 e 19 anos, caracterizando-se com personagens que poderiam ser
lidos como ‘diferentes’ deles, se esta não fosse uma situação característica encontrada tão
comumente neste grupo.
Questões como relação de poder, superioridade masculina, relação binária, diferença sexual,
entre outras, se diluem neste contexto, na medida em que encontramos jovens que assumem
identidades diferentes das suas e isso acontece com tranquilidade para tal grupo social. As
definições de gênero, sexualidade e identidade para tal grupo apresenta características marcantes,
onde a androginia, muito presente neste grupo social de origem oriental, chama a atenção.
7 Duas meninas caracterizadas como personagens masculinos – Evento Rio Anime Club - Julho 2012 - Foto tirada por
Narcisa Castilho Melo. 8 Rapaz caracterizado de personagem feminino e menina caracterizada de personagem também feminino. Ambos
realizando performance no Evento Anime Friends São Paulo - Julho 2012 - Foto tirada por Cleiton Machado Maia. 9 Menina caracterizada como personagem masculino de luta – Evento Anime Friends São Paulo - Julho 2012 - Foto
tirada por Narcisa Castilho Melo.
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Conclusão
Mesmo que numa análise inicial, a relação da cultura pop japonesa com as questões
relacionadas à gênero e sexualidade mostram-se abertas para as mais diferentes expressões, sem um
engessamento ou definição prévia de comportamentos esperados dos jovens integrantes deste grupo.
Especificamente no Brasil, percebemos que os jovens pertencentes a esse contexto acabam por
apoiar, participar e compartilhar de tais pensamentos e entendimento de mundo, sem qualquer
estranhamento de tal situação.
Podemos entender então esse contexto de diversidades de expressão do grupo de Otakus,
como algo não previamente definido e estruturado, onde as mais variadas formas de interação se
estabelecem, sem o determinismo prévio do sexo biológico e do gênero enquanto cultura estanque.
Os conceitos presentes e tão debatidos na antropologia podem ser explicados através de Haraway
(2004), quando ela afirma:
Como todas as teorias de sexo, sexualidade e gênero (...) significa o fazer e
desfazer de “corpos” num mundo de contestações; um relato de gênero é
uma teoria da experiência como corporificação significativa e significante.
(HARAWAY, 2004, p.208)
Após a reflexão sobre as questões apresentadas, podemos concluir que debates sobre a
importância de conceitos como gênero, sexo, sexualidade, identidade, entre outros, mostram-se
relevantes, na medida que a pluralidade toma forma numa sociedade ocidental, como a brasileira.
Podemos compreender que, como defende Haraway (2004), o corpo é uma forma de interação com
o mundo e todos os aspectos nele envolvidos devem ser estudados, debatidos e pensados de forma
mais ampla.
Pensar o grupo social Otaku, não deve restringir-se ao debate apresentado nestas páginas,
pois não somente questões referentes à gênero, sexualidade e identidade estão presentes neste
contexto. Quanto mais próximos ficamos deste universo, mais percebemos quão variado ele se
apresenta e quantas são as perguntas que surgem após um simples olhar mais dedicado. Devemos
então estar atentos para não apenas buscar entender essas escolhas, pois isso pode nos levar a uma
tentativa de nova classificação para esses novos comportamentos. Retomando a abordagem
apresentada por Haraway (2004), em relação à desconstrução do conceito de gênero, surge uma
questão ainda sem resposta: será que a ideia de gênero/sexualidade de fato não está universalizada?
Será que realmente a desconstrução proposta por Haraway (2004) é válida para esses jovens que
‘brincam’ com os conceitos de gênero e sexualidade? Será que se isso fosse algo tão natural para
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nossos olhares, teríamos ficado surpresos ao constatar que a ‘menina’ que tiramos foto no evento na
verdade era um menino?
O que se apresenta como uma simples forma de conclusão após as reflexões apresentadas,
não são respostas prontas aos questionamentos iniciais, com a tentativa de rotular tal grupo social.
Podemos levantar mais algumas perguntas, que merecem ser pensadas: as representações sociais
destes jovens brasileiros estariam, aparentemente, se espelhando nas representações dos jovens
japoneses quando relacionados ao mundo Otaku? Novas ideias de identidade e sexualidade
começam a surgir a partir da construção deste novo grupo? E por fim, estariam esses jovens
entendendo suas atitudes e comportamentos como novas formas de compreensão de gênero,
sexualidade e identidade ou isso tudo seria simplesmente uma forma de interação social, e porque
não dizer uma grande ‘brincadeira’?
Referências
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Civilização Brasileira, 2003.
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30/07/2012. Disponível em: http://www.ieg.ufsc.br/admin/downloads/artigos/Pagu/1995(5)/Correa.pdf
GONÇALVES, Marco Antonio. Produção e significado da diferença: re-visitando o gênero na
antropologia. In: Lugar primeiro, Rio de Janeiro, n.4, 2000.
HARAWAY, Donna. “Gênero” para um dicionário marxista: a política sexual de uma palavra. In:
Cadernos Pagu, Campinas, 2004.
STOLCKE, Verena. Sexo está para gênero assim como raça para etnicidade? Rio de Janeiro,
Estudos Afro-Asiáticos, 1991.
VELHO, Gilberto; DUARTE, Luiz Fernando Dias. Juventude Contemporânea culturas, gostos e
carreiras. Rio de Janeiro, 7LETRAS, 2010.
And in the end… a big joke?
Astract: This paper presents a proposal for a reflection on the social group identified as Otaku
which is composed of young people who are interested in Japanese pop culture and its different
aspects, such as anime, manga, cosplay (young people who choose certain character Japanese pop
culture and characterized as such for conventions and events) and a set of technologies. When we
turn our gaze so closer to the field, questions arise such as: What are the representations related to
gender and sexuality are constructed in this universe? The performances representing both found in
young and dolls found in the events? Is there any agency mobility among social actors that surround
this field? Within a universe so full of characters, some end up being chosen by young people to
perform cosplay performances during events and those choices are what put the debate about the
configuration of gender / sexuality in question. Therefore, in an attempt to better understand these
issues, this paper aims to clarify the experiences in the field reflecting on issues of gender,
sexuality, domination, submission and agency.
Keywords: Cosplay. Gender. Performance.