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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE LINGUAGENS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LINGUAGEM
JEAN CARLOS DOURADO DE ALCÂNTARA
CURTA-METRAGEM: GÊNERO DISCURSIVO PROPICIADOR DE PRÁTICAS MULTILETRADAS
CUIABÁ-MT/2014
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JEAN CARLOS DOURADO DE ALCÂNTARA
CURTA-METRAGEM: GÊNERO DISCURSIVO PROPICIADOR DE PRÁTICAS MULTILETRADAS
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem da Universidade Federal de Mato Grosso como exigência parcial para a obtenção do título de mestre em Estudos de Linguagem. Linha de pesquisa: Práticas textuais e discursivas: múltiplas abordagens Orientadora: Prof.ª Dr.ª Simone de Jesus Padilha.
CUIABÁ-MT/2014
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Ficha catalográfica
Alcântara, Jean Carlos Dourado de. Curta-metragem: gênero discursivo propiciador de práticas Multiletradas / Jean Carlos Dourado de Alcântara – Cuiabá: UFMT, 2014. 138 f. :il. Dissertação (Mestrado) -- Universidade Federal de Mato Grosso, Instituto de Linguagem, Programa de pós-graduação em estudo de linguagem, 2014. Orientação: : Prof.ª Dr.ª Simone de Jesus Padilha. 1. Linguística. 2. Curta-metragem. 3. Linguagem - filosofia. 4. Teoria – cinema. 5. Bakhtin, Mikhail
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Dedico esta conquista ao pequeno Matheus, que veio ao mundo para me constituir enquanto sujeito pai.
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AGRADECIMENTOS
À Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT, em especial à Maria Santíssima
de Lima;
Ao Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem – MeEL, em especial à
Divanize Carbonieri;
À Secretaria Estadual de Educação de MT – SEDUC, em especial à Angelise Cecília
Carmo Verlangieri;
Ao Sindicato dos Trabalhadores em Educação da UFMT – Sintuf-MT, em especial à
Leia Souza de Oliveira;
Aos teóricos e autores consultados para esta pesquisa, em especial ao Mikhail
Bakhtin;
A todos os meus professores, desde a pré-escola até o mestrado, em especial à
professora Simone de Jesus Padilha;
A todos os amigos e colegas que contribuíram com este trabalho, em especial à
Dinaura Batista de Pádua;
A todos os familiares que contribuíram com este trabalho, em especial à Donata
Alves Bonfim (minha mãe).
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RESUMO
Diante do crescente aumento dos recursos audiovisuais que têm adentrado o espaço escolar atualmente, esta pesquisa objetiva refletir sobre o uso didático da linguagem audiovisual, mais especificamente a do curta-metragem, por professores de língua portuguesa na construção de suas práticas de ensino. Discutimos, neste trabalho, não apenas o caráter pedagógico dessa ferramenta, mas também o seu potencial de produzir transformação nos alunos, tornando-os sujeitos ativos na construção e negociação de sentidos. Buscamos também, por meio do estudo da linguagem cinematográfica, caminhos que levem à valorização e respeito ao cotidiano, à diversidade e à pluralidade dos estudantes, conforme preceituado pelos PCN. Nossas reflexões têm como base as experiências de professores que se serviram do projeto Curta na Escola, desenvolvido pela Petrobrás, desde 2006, o qual disponibiliza em seu site curtas-metragens brasileiros, acompanhados de sequências didáticas, para uso de profissionais cadastrados. Nos relatos selecionados, buscamos verificar, por meio das práticas de ensino, as concepções de linguagem adotadas pelos professores, bem como sua relação com a linguagem do cinema e seus sistemas representativos. Esta pesquisa está respaldada pela teoria enunciativo-discursiva, de abordagem sócio-histórica, elaborada pelo filósofo russo Mikhail Bakhtin. Além disso, buscamos, à luz da teoria do cinema, compreender o processo de produção de sentidos pela linguagem audiovisual, utilizada nas produções cinematográficas. E, por fim, estabelecemos um diálogo entre as duas teorias, a fim de constatar a natureza dialógica também presente na linguagem cinematográfica. Para isso, aplicamos, nos enunciados fílmicos, bem como na análise dos relatos, categorias bakhtinianas, tais como: dialogia, exotopia, excedente de visão, cronotopia etc. Após análise dos dados, concluímos que os professores ainda carecem de formação para lidar com a linguagem audiovisual numa perspectiva enunciativo-discursiva. Pretendemos, com esta pesquisa, contribuir para que os docentes preencham essa lacuna ao lidar com as representações cinematográficas. Palavras-chave: Dialogismo. Cinema. Curta-metragem. Discurso. Linguagem.
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ABSTRACT
In view of the growing amount of audio-visual resources that have entered into the
school currently, this research aims to reflect about the didactic use of audiovisual
language, specifically the short film, by Portuguese teachers in the development of
teaching practices. The intention was to discuss not only the pedagogical nature of
this tool, but also its potential to produce a transformation in students, making them
active subjects in the construction and negotiation of meanings. Through the study of
film language, It also sought paths that lead to the valuing and respect to the daily
situations, to the diversity and plurality of the students, as specified by the NCP. Our
reflections will be based on the experiences of teachers who have used the Short
School project, developed by Petrobras since 2006, which provides on its site
Brazilian short films. Each short is accompanied by didactic sequences, for use by
registered educators. We seek to verify In selected reports, through teaching
practices, conceptions of language adopted by teachers, as well as their relationship
with the language of cinema and its representative systems. This research is
anchored in the enunciation-discursive theory, of social-historical approach,
developed by Russian philosopher Mikhail Bakhtin. In addition, we seek, in the light
of the cinema theory, understand the process of meaning production of audiovisual
language, used in film productions. And, finally, we establish a dialogue between the
two theories, in order to determine the dialogic nature also present in film language.
To achieve this We applied Bakhtinian categories in the analyze the reports, such as:
dialogism, exotopy, surplus of seeing, chronotope etc. After analyzing the data, we
concluded that teachers still need training to tackle with the audiovisual language in a
enunciative-discursive perspective. Through this research, We intend to contribute
for the teachers fill the gap by dealing with cinematic representations.
Keywords: Dialogism. Cinema. Short film. Speech. Language.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 9
CAPÍTULO I 16
GÊNERO CURTA-METRAGEM: ASPECTOS FORMAIS, HISTÓRICOS,
POLÍTICOS E PEDAGÓGICOS 16
1.1 Curta-metragem no Brasil: história e política econômica 17
1.2 Curta com personalidade 20
1.3 Demarcando território 21
1.4 Espaço público e independência: a reconquista 24
1.5 Curta-metragem e o conceito de gênero discursivo 26
1.6 Pertinência didático-pedagógica 31
CAPÍTULO II 38
CINEMA, LINGUAGEM E DISCURSO 38
2.1 Concepção(es) de linguagem: Fundamentos dialógicos do Círculo 39
2.2 Linguagem cinematográfica: diálogos entre cinema e as ideias de Bakhtin44
2.3 Categorias bakhtinianas: contribuições para uma análise dialógica do
discurso cinematográfico 48
2.3.1 Dialogia para uma compreensão ativa responsiva 48
2.3.2 O ético e o estético: a indissolubilidade entre arte e vida 54
2.3.3 Cronotopia: para uma análise contextualizada 57
2.3.4 Arquitetônica: em busca do (in)acabamento 61
2.4 Multiletramento: as linguagens multimodais no mundo contemporâneo 65
2.5 Os signos cinematográficos e seus efeitos de sentido 72
CAPÍTULO III 80
ANÁLISE DOS DADOS 80
3.1 Fundamentos Metodológicos 80
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3.2 Procedimentos metodológicos 82
3.3 Análise dos relatos 85
3.4 O Lobisomem e o Coronel 86
3.5 Velha História 92
3.6 Ilha das Flores 97
3.7 Negócio Fechado 105
3.8 Xadrez das Cores 111
CONSIDERAÇÕES FINAIS 118
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 124
ANEXOS 129
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INTRODUÇÃO
O Cinema, há muito tempo, tem sido notadamente uma profícua ferramenta
pedagógica utilizada pela escola nas aulas de linguagem. Contudo, segundo Duarte
(2002), essas instâncias culturais não se reconheciam enquanto parceiras na
formação social do sujeito. Isso acontecia porque o filme, na maioria das vezes, era
utilizado como pretexto para introduzir algum conteúdo curricular, ou como forma de
preencher o tempo. Tal postura se deveu, em parte, à omissão dos teóricos em
educação em refletir e orientar práticas educativas nas quais o texto fílmico
estivesse presente, gerando um hiato entre cinema e educação.
No entanto, segundo Sousa (2005), a partir dos anos 2000, com Robson
Loureiro, Rosália Duarte e Marcos Napolitano, emerge uma preocupação no meio
acadêmico em impingir um caráter educativo formal aos estudos de cinema e sua
relação com o ensino. A partir daí, com a presença cada vez mais frequente dos
filmes em ambientes escolares, tornou-se evidente a necessidade de assumir o
cinema enquanto objeto de pesquisa obrigatório nos estudos educacionais.
Essas iniciativas investigativas acerca do uso de filmes, inicialmente longas-
metragens, em sala de aula, revelaram o potencial desse recurso para desenvolver
nos estudantes certa medida de competência nos âmbitos socioculturais, linguísticos
e comunicacionais. Todavia, por questões estruturais, curriculares e temporais, o
uso do longa mostrou-se inadequado. Atualmente ele tem sido utilizado de forma
cada vez mais esporádica nas escolas, como em datas comemorativas, semanas
culturais ou eventos científicos promovidos pelas instituições de ensino. Por outro
lado, os filmes de curta-metragem, dada a sua duração e relativa acessibilidade,
resolveriam esse inconveniente. No entanto, os professores ainda não aderiram
plenamente ao gênero curta como elemento pedagógico substituinte dos longas-
metragens em sala de aula.
Diante disso, colocada a necessidade de pensar sobre a incontestável
presença do cinema na escola, considerando também a exiguidade dos estudos que
se dedicam a deslindar essas questões acerca do curta-metragem, coube-nos
propor esta pesquisa, cujo objetivo geral é elaborar uma descrição reflexiva acerca
das concepções e formas como esse gênero discursivo vem sendo utilizado pelos
professores em sala de aula. A ideia é conhecer melhor os reflexos, implicações e
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potencialidades pedagógicas concernentes ao uso dessa ferramenta no âmbito
escolar. Além disso, buscamos também investigar a razão da parca adesão por
parte dos educadores a essa variante curta do cinema e, em que pese à resistência
em utilizá-la de forma mais efetiva, procuramos fundamentar, teórica e
pragmaticamente, a eficácia do seu emprego no ensino de língua materna.
E como objetivos contíguos, tencionamos oportunizar novas perspectivas com
relação à linguagem cinematográfica, dar a conhecer possibilidades outras de leitura
que esse gênero proporciona, tanto nos aspectos cultural e ideológico quanto no
aspecto textual. Ambicionamos também propiciar ao leitor parâmetros de análise e
interpretação do texto fílmico, de como explorar os recursos e estratégias utilizados
pelo discurso cinematográfico e seus modos de significação e produção de sentido;
empenhamo-nos igualmente em demonstrar o efeito potencializador que as
narrativas fílmicas exercem na capacidade dos alunos de interpretar textos verbais,
por meio do confronto com outros gêneros que circulam socialmente, bem como as
possibilidades de uso didático de curtas-metragens nas atividades de leitura e
escrita.
Tais objetivos nortearão a busca de respostas às nossas perguntas de
pesquisas: 1- Qual a concepção de linguagem adotada pelo professor de Língua
Portuguesa na sua prática com curta-metragem? 2- Quais as motivações levam o
professor a valer-se de um texto audiovisual em sala de aula? Por último e não
menos importante: 3- Quais as dificuldades mais recorrentes encontradas nesse
processo?
Ao levantarmos tais questões, partimos dos pressupostos de que os recursos
mencionados no parágrafo anterior, em princípio, fortes aliados metodológicos nas
aulas de Língua portuguesa, vêm sendo utilizados, na maioria das vezes, de forma
infecunda, banalizada e deturpada, sendo relegados ao plano do mero
entretenimento, ou pretexto para o ensino da norma culta da língua, ou ainda como
meio de abordar temas transversais; e que tais fatores podem obstar a aplicação, de
forma efetiva, dos aspectos comunicativos da linguagem não verbal, bem como
mitigar seu potencial discursivo.
E para confirmar, ou não, essas e outras conjecturas, partimos das
experiências concretas vivenciadas em sala de aula por professores de língua
portuguesa que fizeram uso de curtas-metragens, conforme relatos publicados no
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site do projeto Curta na Escola1, desenvolvido pela Petrobrás. O objetivo do projeto
é incentivar o uso de filmes de curta metragem brasileiros como material de apoio
pedagógico em sala de aula. A iniciativa já consolidou, e vem ampliando a cada dia,
uma rede colaborativa de aprendizagem em torno de conteúdos relacionados ao uso
desses recursos em escolas de todo o país. Essa rede é alimentada por meio de
comentários, discussões em fóruns e, principalmente, pelo envio dos relatos por
parte dos professores que fizeram uso dos filmes com seus alunos em suas práticas
de ensino.
PETROBRÁS. Projeto Curta na Escola. Disponível em: www.curtanaescola.org.br/
Idealizado em 2006, o projeto oferece indicações de uso pedagógico para
centenas de curtas, cuja exibição é disponibilizada por meio do site. Profissionais
especializados produzem pareceres sobre como utilizar os curtas em cada
disciplina, bem como orientações de como abordar os temas transversais utilizando
as temáticas apresentadas nos filmes. Aos professores cadastrados é concedido um
espaço no banco de relatos, no qual suas experiências e estratégias relacionadas ao
uso dos curtas-metragens, baseadas nos pareceres dos especialistas ou não,
1 Disponível em: . Acesso em: 15/06/2013.
http://www.curtanaescola.org.br/http://www.curtanaescola.org.br/
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podem ser compartilhadas com milhares de outros educadores. E para aqueles que
possuem cadastro, é permitida a criação de sua própria cinemateca para fazer uso
dela no momento mais adequado, além de poderem compartilhar os links dos filmes
assistidos nas redes sociais das quais fazem parte. Os curtas são organizados e
classificados a partir de critérios como faixa etária, séries em que podem ser
trabalhados, bem como as disciplinas e os temas transversais aos quais podem ser
relacionados.
PETROBRÁS. Projeto Curta na Escola. Disponível em: www.curtanaescola.org.br/
Em 2007 o projeto lançou, em DVD, a Coleção Curta na Escola, que já está
no terceiro volume. São três compêndios compostos de seleções de curtas-
metragens, considerados pela equipe de educadores do projeto de alto potencial
didático. Todos os filmes selecionados vêm acompanhados de planos de aulas
elaborados por uma equipe multidisciplinar de professores, que indicam alguns
caminhos possíveis para uso didático dos curtas em diversas disciplinas, dentre elas
Língua Portuguesa. Até o momento, cerca de 4 mil escolas da rede pública de todo
o país já foram beneficiadas com os DVDs da coleção, patrocinada pela Petrobrás e
distribuída de forma gratuita. Para esta pesquisa vamos utilizar o primeiro volume da
http://www.curtanaescola.org.br/
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coleção, o qual contém oito curtas-metragens, dos quais seis possuem indicações
metodológicas para utilização em aulas de Língua Portuguesa.
PETROBRÁS. Projeto Curta na Escola. Disponível em: www.curtanaescola.org.br/
É nesse universo que se encontra nosso objeto de pesquisa, o qual será
explanado mais detalhadamente na seção metodológica. Passemos agora à base
teórica que fundamenta esta pesquisa.
Este trabalho está calcado na teoria do pensador russo Mikhail Bakhitn,
principalmente no que diz respeito à concepção de linguagem, dialogia, alteridade e
interação verbal. Outros conceitos desenvolvidos pelo filósofo, tais como exotopia,
excedente de visão, arquitetônica, cronotopia e a relação que ele estabelece entre o
ético e estético, bem como entre o autor e o herói, também serão imprescindíveis
para nosso estudo e fundamentais para entendermos melhor a linguagem
cinematográfica. Tais noções tornam-se especialmente importantes para discutir a
autonomia entre as vozes que se fazem presentes nas produções cinematográficas
de hoje, cada vez mais centralizadas na figura do diretor. A base do pensamento
bakhtiniano reside na estreita relação que ele estabelece entre o mundo ético, ou
seja, o mundo em si, a realidade, e o mundo estético, ou seja, sua representação
http://www.curtanaescola.org.br/
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por meio da linguagem. A partir daí, ele estrutura a arquitetônica do seu
pensamento, na qual a relação com o outro ocupa um lugar de centralidade.
Acreditamos sim que seja possível abordar o estudo da linguagem
cinematográfica sob a ótica de Bakhtin, embora este nunca tenha realizado algum
estudo sobre o cinema e seu sistema de significação. No entanto, partindo do
pressuposto de que o cinema tornou-se um meio de informação e expressão
artística, a linguagem passa a compor de forma intrínseca esse processo. E sendo
a linguagem a ponte necessária para qualquer interação, julgamos pertinente pensar
a linguagem do cinema e seu potencial educativo à luz das teorias bakhtinianas
acerca das interações sociais. Robert Stam (1992) obteve sucesso ao aplicar o
pensamento de Bakhtin à teoria do cinema, quando empregou, ao analisar
Macunaíma (1969), o conceito de carnavalização, que tem como mote central a
sátira e a inversão da hierarquia dominante, presente no texto “A Cultura Popular na
Idade Média e no Renascimento” (BAKHTIN, 1987).
Assim também procedendo, tentamos, na medida do possível, erigir nossas
análises dos filmes e das experiências relatadas pelos professores com base nas
categorias do pensamento bakhtiniano mencionadas acima, visando identificar e
esclarecer os processos linguísticos e interacionais presentes na relação entre o
sujeito social professor, o aluno e a linguagem cinematográfica, bem como seus
efeitos de sentido, seja na sala escura do cinema, seja no ambiente formal da
escola. Como constatado por Robert Stam (1992, p.59), “Embora a influência de
Bakhtin tenha-se feito sentir amplamente em estudos culturais, em disciplinas que
vão da crítica literária à linguística, essa influência ainda precisa revelar sua
fecundidade potencial na área dos estudos de cinema (...)”.
E assim como Stam (idem), prosseguimos reverberando esse diálogo
imaginário com Bakhtin a respeito de um tema sobre o qual o pensador russo nunca
tinha mencionado. Atende-se, portanto, sua convicção com relação à capacidade
das obras, ao caírem no grande tempo, de se enriquecerem com novos sentidos,
sendo o “autor um prisioneiro de sua época, de sua atualidade, esperando que os
tempos posteriores o libertem dessa prisão” (BAKHTIN, 2003, p.364).
No que se refere à ordenação metodológica, este trabalho está organizado
em três etapas que, embora distintas, se complementam. A primeira parte dedica-se
à contextualização histórica e caracterização do gênero curta-metragem, bem como
à fundamentação do seu potencial didático em sala de aula. No segundo capítulo,
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mergulhamos nas concepções teóricas sobre linguagem e cinema, bem como sobre
o uso de meios audiovisuais, sobretudo o cinema, no processo de letramento em
língua materna. E por último, buscamos demonstrar, por meio das análises dos
relatos, como interpretar um enunciado audiovisual, de modo a encará-lo como uma
unidade de sentido e não como mera ilustração para explicar o conteúdo do
currículo. Além disso, nessa etapa, ressaltamos as múltiplas possibilidades de
exploração didática que o gênero curta-metragem oferece para trabalhar de forma
dialógica o estudo de linguagem, embora não seja essa a sua natureza. Os
fundamentos e os procedimentos metodológicos da pesquisa e análise dos dados
estão detalhados no capítulo III.
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CAPÍTULO I
GÊNERO CURTA-METRAGEM: ASPECTOS FORMAIS, HISTÓRICOS,
POLÍTICOS E PEDAGÓGICOS
Neste capítulo, buscamos oferecer ao leitor uma noção do conceito de curta-
metragem, suas características definidoras e sua evolução como gênero discursivo.
Pretendemos, também, abordar seus aspectos históricos, bem como a política
econômica que, de certa maneira, deu os contornos que atualmente ele apresenta.
E por último, idealizamos elencar algumas vantagens de usar este gênero nas aulas
de linguagem, sobretudo se comparado com o longa-metragem. Na última seção,
procuramos fundamentar a aplicabilidade, bem como a pertinência pedagógica de
usar o curta-metragem como instrumento de ensino nas aulas de língua portuguesa.
Além disso, pretendemos, tendo como norte balizador os PCN, apresentar
possibilidades de aplicação concretas desse recurso em sala de aula.
Discutimos ainda o papel a ser desempenhado pelo professor na utilização
dessa ferramenta, desde a escolha do material até o desfecho do processo, com
vistas a contribuir para o ainda tímido emprego dos curtas no ensino de língua
materna. E, embora este trabalho não seja sobre curta-metragem, e sim sobre
professores que fazem uso dele em sua prática de ensino, faz-se mister trazer à luz
informações de natureza técnico-histórica sobre esse tipo de filme, que nos ajudarão
a entender melhor a importância desse gênero como um canal por meio do qual
múltiplas vozes puderam e ainda podem ecoar seus pensamentos de modo livre e
democrático.
Nos primórdios da história do cinema, a definição do curta-metragem era
associada a uma limitação técnica. Dessa forma, a produção de curtas não era uma
questão de escolha de seus produtores; ao contrário, tratava-se da única forma
possível de realização cinematográfica naquele momento embrionário das
produções cinematográficas. Mais de cem anos se passaram, as possibilidades e
aparatos tecnológicos se multiplicaram, os avanços estéticos vieram e algumas das
características e critérios que identificavam um curta-metragem naquela época ainda
são válidos até hoje: um curta-metragem é definido pela sua extensão. Todavia,
esse conceito foi adquirindo propriedades controversas. Cada vez mais surgiam
posições díspares e opiniáticas em torno da definição de um curta-metragem.
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Segundo definição da maioria dos dicionários, esse tipo de produção é definido
como Filme Curto, cuja duração é geralmente inferior a 30 minutos.
No entanto, as características de um curta-metragem vão muito além do seu
formato. Outras propriedades relacionadas à sua curta duração conferem-lhe
peculiaridades discursivas importantes, como o reduzido número de personagens e
diálogos, condensação narrativa que, por sua vez, leva à condensação da
linguagem e da ação; tempo da história, na maioria dos casos, linear;
verossimilhança com a realidade, grande carga emotiva e sugestiva, além de
apresentar desfechos geralmente surpreendentes. E, pela sua natureza
cinematográfica, é grande a possibilidade de veicular conteúdos culturais com
valores educativos. Por isso mesmo, torna-se uma fonte inesgotável e valiosa para
trabalhar aspectos da interação humana, como cultura e linguagem.
Mas algumas dúvidas ainda restam com relação ao que vem a ser um curta-
metragem. Ribeiro (2013) problematiza levantando a seguinte indagação: Embora
quase todos os dicionários estipulem o limite máximo de 30, 40 e até 50 minutos,
haveria um limite mínimo para um filme curto? Outra controvérsia lembrada por ela
refere-se ao nome “curta-metragem”, em oposição ao “longa-metragem”. Dessa
relação, pode-se deduzir, pondera a pesquisadora, que ambos estariam inseridos na
categoria “filme cinematográfico”. No entanto, a realidade sugere outra classificação
aos curtas, a de “produção audiovisual”, uma vez que sua difusão e exploração
comercial não estão, a princípio, direcionadas para as telas das salas de cinema,
embora partilhe das características definidoras de um filme cinematográfico. Essa
questão será tratada com mais profundidade na seção que se segue.
1.1 Curta-metragem no Brasil: história e política econômica
Para além de uma investigação sobre a definição do curta-metragem, faz-se
necessário um levantamento histórico do processo de formação e transformação
pelo qual o curta passou desde que se fez presente no Brasil. Qualquer conclusão
sobre o assunto baseada apenas em sua conjuntura atual seria superficial e até
mesmo equivocada. Na abordagem dialógica na qual nos baseamos, entendemos
que qualquer concepção, sobre qualquer assunto, é construída de forma dialogal
com os aspectos sócio-históricos que a constituem. Assim, consideramos
indispensável conhecer a história do gênero curta-metragem desde sua gênese no
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Brasil, bem como os fatos e circunstâncias sócio-políticas e culturais com os quais
se relacionou.
Desde 1895, com a invenção dos irmãos Lumière, mesmo com imagem
ampliada, o que se via eram filmes no formato curto, o único disponível naquele
período, haja vista as limitações da época. Superada essa fase, com a evolução
técnica e estética, da qual rapidamente se apropriou a indústria cinematográfica, o
curta adquire um caráter de complemento, uma espécie de coadjuvante do longa-
metragem. Perde sua posição de atração principal e assume uma posição
complementar em relação ao longa, formato que prosperava e atingia o gosto da
maioria das pessoas, cada vez mais submetidas à cultura de massa - motivo
suficiente para um maciço investimento da indústria cultural, que logo organizou um
sistema de comércio cinematográfico, de distribuição e, principalmente, de exibição,
que crescia dia a dia, o que resultou na consolidação da cultura do entretenimento
(NETO, 2012).
Diante desse fenômeno, já na década de 1950, o cinema passa a ser
encarado principalmente como divertimento, fator que passa a balizar o mercado
cinematográfico, tornando-se uma febre mundial, seguindo, em todos os cantos, o
modelo norte-americano. O fato é que o curta foi, de forma progressiva e rápida,
perdendo seu espaço, uma vez que o longa caiu no gosto popular - critério
necessário e suficiente, na lógica de mercado, para investir sem reservas no produto
em questão, no caso o longa-metragem. Ao curta restou a função de laboratório
para inovação e experimento de novas linguagens por parte da indústria
cinematográfica, sobretudo pelo seu baixo custo de produção. E o longa é eleito o
formato apropriado para competir no acirrado mercado do entretenimento
(BERNADET, 1995; DUARTE, 2002; NETO, 2012).
Com a chegada de Getúlio Vargas ao poder e a implantação do Estado Novo
no final da década de 1930, o curta-metragem adquire novos e imprescindíveis
papéis, agora, com proteção oficial. Não deixou de ser um complemento, mas desta
feita com status de oficialidade, novos tempos para o curta-metragem. O gênero
deixa de assumir uma posição de coadjuvante e passa a protagonizar um papel
fulcral, não nas salas de cinema, mas na educação. Os curtas-metragens passam a
ser instrumentos de ensino e meio de veiculação da ideologia varguista, baseada no
nacionalismo integrador. Isso só foi possível devido às mudanças realizadas no
processo de produção, distribuição e exibição de filmes, até então regulado apenas
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pelas leis de mercado. A ideia dos getulistas de universalização do ensino e da
informação, principalmente a oficial, valorizou os canais de difusão cultural e impôs
uma nova relação entre cinema e o poder (ALENCAR, 1988; NETO, 2012).
É nesse cenário que surge o intelectual, extremamente nacionalista,
admirador ardoroso dos novos meios de comunicação de massa, Roquette Pinto. É
ele quem vai conduzir um inédito processo de construção de uma legislação para a
indústria cinematográfica, até então regida apenas pelo mercado. A partir disso, ao
filme estrangeiro foi imposta a obrigação de pagar uma taxa, a qual tinha o objetivo
de financiar a produção de filmes curtas nacionais de caráter educacional. Uma
medida governamental fixa uma proporção de filmes educativos nacionais a serem,
obrigatoriamente, exibidos nas salas de cinema em todo o país. E, em 1936, o
governo pedetista de Getúlio Vargas, tendo como mentor intelectual Roquette Pinto,
cria o Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE), que passa a produzir filmes
curtos de caráter educativo. “Em seis anos, o órgão produziu cerca de 200 curtas
escolares, encaminhados para escolas e institutos culturais, bem como para os
circuitos de exibição pública de todo o país” (apud: Neto, 2012, p. 33).
Até aqui, temos um quadro no qual o curta-metragem figura como agente
didático de brasilidade, totalmente financiado pelo estado, não passando de mero
reprodutor de conhecimento e de propaganda ideológica, situação que impedia a
produção ficcional e autoral, uma vez que a perspectiva artística não interessava ao
financiador. A visão de que a narrativa ficcional e o entretenimento visando ao lucro
cabiam ao longa-metragem perpetuou absoluta até a década de 1960
(ALENCAR,1988; BERNARDET, 1995).
E é nesse período que alguns cineastas mineiros, entre eles Humberto
Mauro, começam a criar um ambiente fértil para o renascimento, ou retomada, da
chamada produção autoral. Ele inaugura um período em que os produtores,
influenciados por movimentos como o francês Nouvelle Vague, e o americano
Cinema Direto2, passam a buscar novos modelos estéticos produzidos pelo então
cinema moderno do pós-guerra. Um novo modelo de curta-metragem se impõe aos
certames brasileiros, graças, em parte também, a festivais internacionais, que
2 Movimentos artísticos dos cinemas francês e americano que se inserem no movimento contestatário
próprio dos anos sessenta. Participavam desse movimento novos cineastas, sem grande apoio financeiro. Os primeiros filmes dessa escola eram caracterizados pela juventude dos seus autores, unidos por uma vontade comum de transgredir as regras normalmente aceitas para o cinema mais comercial.
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passam a influenciar a estética, inclusive, de longas. Inaugura-se, então, como
veremos em seguida, uma nova etapa para o curta-metragem no Brasil (NETO,
2012).
1.2 Curta com personalidade
A partir do final da década de 1950, jovens autores, sedentos de expor suas
habilidades em produzir narrativas ficcionais, sem uma finalidade propriamente
didática, mas como expressão estética, ávidos a mostrar suas visões de mundo por
meio da sétima arte, cansados de produzir um cinema acrítico e de ser sala de
espera para os longas internacionais, partem para uma nova etapa da produção de
curtas no Brasil. Nesse período passam a abordar livremente os reais problemas da
sociedade brasileira, bem como explorar com mais liberdade os aspectos da
linguagem cinematográfica, agora voltada para uma nova estética, a do cinema
novo. Apesar dos primeiros filmes dessa época ainda serem, em parte, financiados
por órgãos fomentadores do governo e ainda apresentarem resquícios do modo
didático de produção, ainda um pouco reticentes diante das avançadas técnicas
trazidas pelas vanguardas da época, já era possível perceber um discurso mais
ousado, independente, diferente dos “envernizados”, produzidos pelo INCE (NETO,
2012).
É nessa época que os curtas brasileiros de ficção, como Couro de Gato, de
Joaquim Pedro (1961), ganham vários prêmios em festivais internacionais,
fenômeno que reforça a convicção da capacidade de produtores brasileiros
realizarem curtas autorais de ficção, de forma independente, afastando-se cada vez
mais do padrão “Complemento Nacional”. E, para coroar o bom momento do curta
nacional, uma tendência já praticada na Europa chega ao Brasil. Tratava-se de um
expediente que juntava alguns curtas transformando-os em um longa, estratégia
que, além de reduzir significativamente o custo da produção, garantia-lhes um
espaço na exibição pública nas principais salas de cinema do país. Foi assim com
Couro de gato, acoplado a Um favelado, de Marcos Farias, por sua vez acoplado
ao Zé da cachorra, de Miguel Borges, também acoplado ao Escola de samba,
alegria de viver, de Carlos Diegues e ao Pedreira de São Diogo, de Leon Hirszman,
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formando o longa Cinco vezes favela, produzido pelo CPC da UNE3 (ALENCAR,
1988; NETO, 2012).
Com o crescente interesse dos jovens autores pela produção cinematográfica,
surgem os primeiros cursos de cinema no Brasil. A UNB, com Nelson Pereira e
Jean-Claude Bernardet, toma a frente no projeto de fundar um curso de graduação
em cinema, sonho interrompido pelo endurecimento do regime militar. Diante dessa
tentativa frustrada, Pereira realiza nova investida, desta vez bem sucedida, em
Niterói – RJ, fundando o curso de cinema da UFF. Já Bernardet volta a São Paulo e
cria o curso de cinema na ECA – USP. O formato curto, por questões financeiras,
será o modelo de filme escolhido para as produções universitárias. E mais uma vez
o curta-metragem é protagonista num momento importante da história. Em uma
época de crescente endurecimento político, eles serão um importante instrumento
estético de militância e resistência.
Com a criação de vários cursos de cinema pelo país, o Jornal do Brasil,
visando à produção dessa nova geração de cineastas, prestes a se lançarem no
mercado, cria o Festival Brasileiro de Cinema Amador. Na sua primeira edição, em
1965, teve como tema o quarto centenário da cidade do Rio de Janeiro. Os filmes
foram exibidos no cinema Paissandu, ponto de encontro de muitos diretores
famosos e críticos consagrados de cinema. Jovens produtores, os quais ficaram
conhecidos como „geração Paissandu‟, sonhavam com uma carreira de cineasta.
Eles queriam ser vistos e comentados pelos seus ídolos presentes no festival. Todos
desejavam fazer parte do movimento de mudança em processo. Muitos curta-
metragistas tiveram suas carreiras de cineasta alavancadas com o sucesso obtido
pelo festival, que passa a se chamar, a partir de 1971, Festival Nacional de Curta-
metragem. Começa aí uma nova era para o curta no Brasil.
1.3 Demarcando território
Os novos produtores queriam ser reconhecidos e exigiam a intervenção do
estado na política de distribuição e exibição de filmes nacionais; no entanto, não
abriam mão da experimentação de novas linguagens e da crítica frente ao sistema
que ficou conhecido como anos de chumbo. O fato era que o governo possuía
3 Centro Popular de Cultura, organização associada à União Nacional de Estudantes - UNE, criada
em 1961, na cidade do Rio de Janeiro, por um grupo de intelectuais de esquerda, com o objetivo de criar e divulgar uma "arte popular revolucionária".
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programas de fomento oficiais via Embrafilme, mas jamais financiaria filmes de
caráter crítico, que revelassem as mazelas da sociedade brasileira da época. Na
concepção oficial, o cinema deveria prestar-se unicamente a entreter a população.
Esta era a função primeira do cinema: proporcionar filmes com abordagens lúdicas,
pouco politizadas, desvinculados da vida concreta. Por outro lado, os autores da
época queriam fazer uso expressivo de uma estética não oficial, a estética das ruas,
dos guetos, do lixo, experimentar novas linguagens, não padrão, como forma de
fazer frente ao regime militar (ALENCAR, 1988).
Diante de toda essa dificuldade de ordem financeiro-estrutural e da
imprescindibilidade de testemunhar cinematograficamente aquele período histórico
de forma crítica, surge o associativismo. Era preciso garantir o direito de expressar
visões díspares da propaganda oficial, que também se utilizava do mesmo recurso,
porém muito mais bem paramentada (MOURA, 2003). Esse movimento foi fruto da
luta política por mais espaço e liberdade estética. Nessa toada, é fundada, em 1973,
a Associação Brasileira de Documentaristas, que, apesar do nome, acolhia não só
os produtores de documentários, mas também os curta-metragistas ficcionistas.
Essa iniciativa produziu um efeito muito positivo para os produtores da época, os
quais tiveram seus filmes vistos em vários festivais amadores e profissionais de
curta-metragem. Esse período teve seu auge no início dos anos 80 com a criação da
CORCINA - Cooperativa dos Realizadores Cinematográficos Autônomos (ídem).
Mas era preciso ampliar a esfera de circulação dessas produções, as quais só eram
exibidas em festivais e centros culturais.
A grande luta dos produtores era a regulamentação da exibição dos curtas
ficcionais nas salas de cinema, dominadas exclusivamente pelos grandes produtores
de longas. Depois de muitas reivindicações e debates com produtores e governos, a
ABD conseguiu, finalmente, em 1979, a elaboração e aprovação da chamada Lei do
Curta. Tal dispositivo legal pôs fim a uma inquietude de há muito por parte dos curta-
metragistas ficcionais. A lei regulou a exibição do curta ficcional, experimental e
documentários nas salas do circuito comercial de todo o país. O órgão responsável
por fiscalizar e fazer com que a lei se cumprisse foi o CONCINE – Conselho
Nacional de Cinema4. Esse acordo estendeu a obrigatoriedade, em todo o país, de
4 O CONCINE tinha como objetivo formular políticas para o cinema brasileiro, bem como normatizar e
fiscalizar as atividades cinematográficas no país, como produção, reprodução, comercialização, venda, locação, permuta, exibição, importação e exportação de obras cinematográfica.
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exibição de curtas-metragens brasileiros antes dos longas estrangeiros. Começava
aí um novo ciclo para o gênero curta-metragem no Brasil.
Diante do sucesso alcançado pelos curta-metragistas independentes,
produtores da grande indústria cinematográfica começaram a produzir seus próprios
curtas de baixa qualidade, com o único objetivo de fazer com que o público se
voltasse contra o gênero e protestasse contra sua obrigatoriedade nas salas do
circuito oficial de cinemas. Mais uma vez, foi necessária a intervenção do CONCINE,
o qual, por meio de uma resolução, institui o chamado “sistema do curta-metragem”.
Essa medida criava um júri especial composto por membros da ABD, da Embrafilme,
do Sindicato dos Produtores de curta-metragem e por intelectuais pesquisadores de
cinema, os quais passaram a selecionar os filmes considerados aptos a serem
exibidos, garantindo com isso a qualidade das obras a serem assistidas pelo púbico.
Além disso, outra resolução do CONCINE cria um fundo, mantido por um percentual
da renda das sessões de cinema em todo o país, para fomentar a produção do
curta, fato que o levou a presenciar sua melhor fase, sendo chamada, segundo
Caetano (2006 apud NETO, 2012), de “Primavera do Curta”.
Ante as conquistas e transformações pelas quais passou o filme curto no
Brasil, os frutos não tardariam a chegar. Um dos curtas mais aclamados de todos os
tempos, Ilha das Flores (1989), de Jorge Furtado, ganha o Festival de Berlim, em
1989, sendo eleito pela crítica europeia um dos 100 curtas mais importantes do
século XX. Esse sucesso foi resultado da intensa interação entre produtores de
curtas ficcionais e documentaristas que conviveram por muito tempo na ABD,
período em que sofreram influências mútuas dos estilos e linguagens de cada
gênero. Resultado disso, tivemos o curta mencionado, que, dentro de um panorama
metalinguístico, faz uma paródia dos estilos já consagrados, além de criticar a
suposta objetividade e autoridade da linguagem documental até então praticada,
sem deixar de ser também um documentário, embora haja controvérsia. O mesmo
sucesso é obtido por A garota das telas (1988) e Frankestein Punk (1986),
de Cao Hamburger, e A revolta dos carnudos, de Eliana Fonseca (1988) (NETO,
2012). Contudo, o “sistema do curta-metragem”, cujo sucesso era patente, teve seu
fim com a chegada de Fernando Collor ao poder em 1990. Com sua avidez por
privatização, põe fim à Embrafilme, aos CONCINES e conselhos afins. Mais uma
vez, o curta precisa se reinventar, uma nova batalha recomeça.
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1.4 Espaço público e independência: a reconquista
A era Collor desestruturou um sistema que vinha funcionando de forma
equilibrada. A produção cinematográfica reduziu drasticamente, inclusive dos
longas. Em meio a essa falta de perspectiva para a produção e exibição de filmes
curtos nacionais, as salas de exibição do circuito de cinema voltam a sofrer o
monopólio dos filmes estrangeiros, sobretudo das produções homogêneas norte-
americanas. É nesse cenário desanimador que produtores apaixonados e amantes
do gênero, frutos da “primavera” da década anterior, engendram, em 1990, o
Festival Internacional de Curtas de São Paulo e, anos depois, no Rio de Janeiro,
criam o Curta Cinema. Esses dois espaços foram os responsáveis pela
reorganização e reestruturação do gênero, tornando-se referenciais de apoio, crítica
e divulgação do curta-metragem até os dias de hoje. Produções como Esta não é
sua vida e A matadeira (1991), de Jorge Furtado, revelam que os novos cineastas
mantêm muito da estética da época primaveril dos curtas, mas apresentam uma
nova tendência significativa.
Nota-se, nesse período, um certo arrefecimento da ficção e um ressurgimento
da preocupação com as questões sociais, fato que reivindica uma estética que
explore o aspecto poético da linguagem, sem, contudo, perder a ligação com a
realidade, com a vida. Essa tendência pode ser percebida nos documentários Vala
Comum (1994), de João Godoy e Socorro Nobre (1995), de Walter Salles (RAMOS,
2004). Outro fenômeno importante é o surgimento de subgêneros do curta-
metragem, como o curta-piada5 e o curta-portifólio6, os quais ganham simpatizantes
e depreciadores na mesma proporção. Independentemente da aprovação ou
desaprovação dos cinéfilos de plantão, o fato é revelador, na medida em que
evidencia a potência criativa desse gênero. E essa plasticidade criativa do gênero
curta ocorre em razão de não haver restrição a que estão submetidos os longas
comerciais no seu processo de criação e produção.
Essa nova retomada da produção de filmes curtas no Brasil demonstrou que,
por fim, o gênero tinha alcançado uma estabilidade permanente. Tal afirmação é
5 São curtas que contam, de forma humorada, histórias que teriam tudo pra ser um drama. Uma
forma descontraída de fazer crítica social. Como forma de denúncia, brincam com elementos que revelam as mazelas sociais. 6 São curtas produzidos por diretores que possuem a intenção de atuar com longas. Por isso não têm
compromisso com a estética e linguagem próprias do gênero. Esse tipo de produção está bem próximo dos padrões comerciais de um longa, porém no formato curto.
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possível por duas razões. A primeira está vinculada ao fato de diretores já
consagrados preferirem criar seus filmes no formato curto, deixando de encará-lo
apenas como trampolim para uma carreira de produtor de longas. Já era possível
construir uma carreira cinematográfica como produtor de curta-metragem. A
segunda razão tem a ver com o incentivo governamental e apoio advindos de
instituições privadas.
Com o impeachment de Collor e ascensão dos tucanos ao poder, cria-se a
chamada renúncia fiscal em favor das artes, e põe-se em prática o plano de retomar
a produção cinematográfica brasileira. Leis de incentivo à cultura são criadas e
milhares de espaços dedicados à arte são espalhados pelo país, tais como os do
Banco do Brasil e do Itaú, para citar os mais importantes. Isso permitiu que outras
regiões, para além do eixo Rio – São Paulo, entrassem para o circuito dos festivais.
No entanto, um fenômeno ainda mais contundente iria selar, de uma vez por todas,
o futuro do curta-metragem.
Em 1995, surge uma novidade que impactaria todos os aspectos da produção
humana, fossem eles científico, cultural ou comercial. Trata-se da Internet. Nunca
uma estrutura de rede representou tão bem o “Tecendo a Manhã”, de João Cabral
de Melo Neto. Enfim, o galo canta e todos podem ouvir, porque há tantos galos
quanto necessários a postos na rede, levando o seu grito a outro e a outros até que
todos possam ouvi-los, e com uma rapidez que João Cabral sequer sonhava. É o
espaço de exibição de filmes curtos mais eficaz e democrático que um produtor
independente puderia desejar. Em 1998, surge o site Portacurtas, que reúne em um
portal milhares de curtas nacionais e os disponibiliza, online, para quem quiser
assistir, em qualquer lugar do planeta. Isso numa época em que a tecnologia
webstreaming7 e a banda larga estavam apenas começando. O site é patrocinado
pela Petrobrás, financiadora das principais produções cinematográficas do país.
O Portacurtas possui atualmente mais de oito mil curtas catalogados, é o
maior banco de dados online de curtas brasileiros. O projeto disponibiliza as fichas
técnicas de todos os filmes, numa cinemateca acessível 24h por dia. Além desse
7 Tecnologia que permite a transmissão instantânea de dados de áudio e vídeo através das redes. Com
ela, o usuário consegue assistir a filmes ou escutar música sem a necessidade de fazer download, o que torna mais rápido o acesso aos conteúdos online.
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espaço, há outros espaços virtuais, como o Youtube e o Vmeo8, onde o próprio
produtor pode atuar como divulgador e exibidor de seus trabalhos. Por meio da rede,
produtores independentes podem organizar seus próprios festivais, abordando os
temas que desejarem, como é o caso do Festival Internacional de Cinema na
Internet, o Fluxus9.
Tal realidade proporcionada pela internet, na avaliação de Moletta (2009),
levou ao rompimento definitivo da fronteira entre produção cinematográfica e
audiovisual, acabando com a barreira entre película e fita, porque, na web, a
reputação de uma produção não está na bitola do filme ou no formato mini DV ou
HD; o prestígio de um filme está na quantidade de acesso e comentários dos
usuários, através do qual se obtém, em tempo real, a reação do público.
Assim, finalmente, o gênero curta-metragem atingiu sua maturidade, tanto em
independência quanto em público, conquistando de vez liberdade temática, esfera
de circulação e suporte infinitos. A Internet é um espaço onde as hegemonias ainda
encontram resistência. Lugar onde a tendência única perde sua força, um verdadeiro
sítio de exploração, no qual se acomodam e se compatibilizam todas as estéticas,
todas as linguagens e discursos. A internet, espaço não oficial, passou, num
movimento contrário, a influenciar decisivamente os espaços oficiais,
retroalimentando a exibição de filmes nos espaços físicos, impactando a frequência
do público tanto nas salas de cinema quanto nos centros culturais. Os festivais e
premiações, frequentemente, acabam contemplando diretores que começaram sua
carreira cinematográfica na internet.
1.5 Curta-metragem e o conceito de gênero discursivo
Quando pensamos na vasta produção cultural existente no mundo, das mais
variadas natureza, ordem, tipo, categoria, gênero, padrão e outros termos
classificatórios que possam existir, esbarramos com a dificuldade de encontrar
sistemas e teorias classificatórios que deem conta da complexidade dos fenômenos
culturais que atualmente presenciamos. Encontrar uma teoria capaz de abarcar esse
mundo cultural que se nos apresenta, cujas características principais são a
8 Assim como o Youtube, trata-se de um serviço de compartilhamento de vídeos na Internet. Possui
também versões para celulares e tablets. Com ele o usuário pode fazer vídeos e postar diretamente na rede.
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plasticidade, versatilidade e mutabilidade nos parece uma incumbência quase
impossível. De todas as teorias que se propõem a cumprir tal tarefa hercúlea, a que
nos parece mais adequada aos nossos tempos é a teoria de gênero discursivo
concebida pelo filósofo da linguagem Mikhail Bakhtin. Isso porque suas proposições
teóricas levam em conta aqueles aspectos pertinentes à produção cultural acima
citados: plasticidade, versatilidade e mutabilidade. Nas palavras dele:
O gênero sempre é e não é o mesmo, sempre é novo e velho ao mesmo tempo. O gênero renasce e se renova em cada nova etapa do desenvolvimento da literatura e em cada obra individual de um dado gênero. Nisto consiste a sua vida (BAKHTIN, 2003, p. 91).
Embora Bakhtin nunca tenha abordado questões referentes à produção
cinematográfica, restringindo-se, como os demais teóricos do Círculo que se
incumbiram do estudo do gênero discursivo, à análise de produções literárias nas
formas impressas e orais, consideramos profícua a aplicação de sua teoria sobre
gênero discursivo ao estudo específico do curta-metragem brasileiro. Não seremos
pioneiros em estabelecer essa aproximação entre Bakhtin e o cinema. O
pesquisador de cinema Robert Stam também enveredou por esse caminho:
Embora a influência de Bakhtin tenha-se feito sentir amplamente em estudos culturais, em disciplinas que vão da crítica literária à antropologia e à linguística, essa influência ainda precisa revelar sua fecundidade potencial na área dos estudos de cinema (...) Estarei conduzindo, portanto, um diálogo imaginário com Bakhtin a respeito de um tópico sobre o qual ele nunca se pronunciou: o cinema (STAM, 1992, p.58-59).
No entanto, o que pretendemos, de maneira singular neste capítulo, é aplicar
a teoria de gênero discursivo ao curta-metragem, especificamente. Trata-se de uma
categoria cinematográfica que emprega uma estética própria em seus filmes, cujas
características discursivas guardam especificidades, como conteúdo temático
inclinado para a crítica social, esfera própria de circulação, estrutura composicional
diferenciada, entre outras, que nos autorizam a classificá-lo como um gênero
discursivo dentro da concepção de gênero de Bakhtin. É importante salientar que
não estamos questionando sua classificação enquanto gênero cinematográfico, o
qual tem seus princípios definidores alicerçados na teoria do cinema. Não é nosso
escopo aqui questionar tal classificação.
Para Bakhtin, o fator responsável pela organização e uso adequado, de forma
orientada, plausível, de modo a garantir a inteligibilidade da linguagem, não é o
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sistema abstrato da língua, a gramática, e sim o gênero. De acordo com o filósofo, é
o gênero que regula as ações de linguagem nas diversas esferas da atividade
humana. Ele é encarregado de guardar e fornecer ao usuário da língua, sempre que
necessário, as tendências, vocações e propensões mais constantes e regulares da
linguagem, acumuladas ao longo das gerações de falantes, o que asseguraria uma
“relativa estabilidade” aos enunciados em determinada esfera comunicacional.
Ao gênero cabe ainda, segundo o autor, a função de organizador das formas
de pensamento apropriadas a determinados tipos de enunciados, além de
mantenedor de meios e recursos expressivos utilizados em determinada cultura, de
modo a garantir a comunicabilidade entre os seus falantes hodiernos e a
continuidade dessas matrizes discursivas junto a comunidades futuras. Poderíamos
afirmar também, dentro de uma perspectiva dialógica, que, pelo gênero, e só por
meio dele, é que conseguimos acessar nossas memórias, inclusive a de futuro. Sim,
só é possível acessar a memória de futuro10 por meio do gênero projeto e outros
afins, já a memória do passado é recuperada recorrendo a nossos conhecidos
arquivos, cartas, biografias, memórias, relatos, e outros tantos.
No entanto, não podemos concluir daí que os gêneros do discurso são
imutáveis e limitados. Com a mesma força que procuram manter essa estabilidade
comunicativa, os gêneros se renovam, se adequam, aglutinam novas tendências,
dialogam com outros gêneros, com o mesmo objetivo de manter a comunicabilidade.
Porque o mesmo risco que correria o falante de viver um pandemônio linguístico
caso não houvesse essa relativa estabilidade na língua, ele correria se não
acompanhasse as mudanças impostas pela dinamicidade das interações sociais em
constantes transformações. É por isso que, às vezes, os gêneros se reorganizam,
desaparecem, surgem novos, alguns predominam mais em determinada região
geográfica do que em outras, às vezes se subdividem em subgêneros, de acordo
com as demandas sociais. Tudo isso revela a amplitude dessa teoria, bem como a
diversidade amalgamar do gênero discursivo. Nas palavras de Bakhtin:
A riqueza e a diversidade dos gêneros discursivos são ilimitadas, porque as possibilidades de atividade humana são também inesgotáveis e porque cada esfera de atividade contém um repertório
10
Para Bakhtin, o sentido concreto do presente é o resultado da fusão entre a memória do passado e a memória do futuro, o devir. Aquela que faz com que o sujeito não se baseie apenas num passado, mas num devir, tornando-o um ser inacabado. As projeções do que se quer realizar constituem a memória de futuro, interferindo na forma de pensar e de se posicionar perante a vida.
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inteiro de gêneros discursivos que se diferenciam e se ampliam na mesma proporção que cada esfera particular se desenvolve e se torna cada vez mais complexa (BAKHTIN, 2003, p. 279).
E no que se refere ao curta-metragem, podemos dizer que se trata de um
gênero discursivo na concepção bakhtiniana? Um ponto de partida para refletirmos
sobre essa indagação é levantar as seguintes questões: Trata-se de uma atividade
humana? Produz enunciados concretos? Esses enunciados circulam em alguma
esfera específica de atividade humana? São utilizados para cumprir uma função
social? A resposta a todas essas perguntas é sim. Bakhtin afirma que só é possível
acessar determinada realidade via gênero do discurso, “como um filtro através do
qual visualizamos a realidade da vida social” (BARROS, 2012, p. 36). Neste ponto,
podemos afirmar que o curta-metragem é um gênero discursivo. Ele nos
proporciona, por meio de sua estética peculiar e seu forte vínculo com o real,
embora seja um enunciado da esfera artística, um contato com a realidade social,
sob um ponto de vista ímpar, singular e crítico ao mesmo tempo, com que, por outro
meio, não teríamos a mesma experiência.
Se pensarmos que o curta, no seu processo histórico, como vimos na seção
anterior, para além de suas conceituações e caracterizações formais, ganhou uma
conotação discursiva muito forte, na medida em que é pensado como instrumento
meio de crítica social, podemos afirmar que o mesmo cumpre uma função social,
assim como o cinema de entreter, a notícia de informar, a receita de orientar, o
artigo de expressar opinião, etc. Com isso, queremos dizer que o curta-metragem é
um gênero que tem como principal função fazer a crítica social. Não apenas pelo
caráter “marginal” que ocupou na história do cinema, mas também pela sua
capacidade atual de influenciar e ser influenciado. Portanto, se, conforme afirma
Bakhtin, só é possível cumprir uma função social por meio de um gênero, podemos
concluir que o curta-metragem é um gênero por meio do qual o enunciador cumpre
uma função social.
Sobre esse assunto, é pertinente lembrarmos as considerações do
pesquisador Sidney de Paulo (2009), o qual destaca a função social como elemento
determinante do gênero e não seus aspectos formais. Como exemplo, ele cita o
texto literário adaptado para o cinema; ao transformar-se num roteiro, deixa de
pertencer ao campo literário e passa a compor o campo do cinema. Isso acontece
porque, de acordo com Bakhtin, o gênero está relacionado à atividade humana. Com
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outro exemplo, ele fecha a questão: Uma receita de bolo não constitui gênero receita
de bolo pelo simples fato de ter em sua composição termos do campo semântico
culinário, ou por apresentar estrutura sequenciada, ou por apresentar verbos
predominantemente no imperativo. Receita de bolo apresenta-se como gênero
quando, em um evento social, por exemplo, uma visita, o anfitrião, ao preparar um
bolo, segue um roteiro de como fazê-lo. A mesma estrutura poderia estar no meio de
uma carta e, neste caso, não ser mais uma receita de bolo (Paulo, 2009, p. 69).
Sendo assim, torna-se improdutivo ficar questionando se um texto com uma
estrutura composicional parecida com uma receita presente em uma letra de canção
pertence ao gênero canção ou receita, já que o gênero está relacionado à atividade
humana. Ao ouvir uma canção no momento de lazer, com objetivo de relaxar ou
dançar, enfim, se divertir, isso é letra de canção, é ponto pacífico, pois se presta à
função social de entretenimento. Se um texto, mesmo apresentado uma estrutura
composicional típica de um poema, é utilizado para fazer um bolo de café da manhã,
então será do gênero receita. Pois o elemento determinante de um gênero é a sua
função social, sua relação com as atividades humanas. Nesta toada, um parecer de
um juiz, com a forma de um poema, nunca deixará de ser uma sentença, a menos
que saia da esfera jurídica e adquira outra função, a de produzir prazer literário.
Portanto, a esfera em que o enunciado circula e sua função social são
determinantes para definir o gênero, e não sua estrutura composicional, seu formato.
Todo gênero, de acordo com a teoria, necessita se materializar em algum tipo
de texto. Portanto, afirmar que o curta-metragem constitui um gênero discursivo
equivale dizer que o curta consiste em um texto. Sim, trata-se de um texto fílmico,
que, assim como qualquer outro tipo de texto, possui seus sistemas específicos de
significação, compostos principalmente de imagens e sons, os quais, ao serem
manipulados, por meio de planos, luzes e movimentos de câmera, além de outros,
produzem determinados efeitos de sentido. Assim, podemos afirmar que o objeto de
análise em questão, o gênero curta-metragem, está materializado no texto fílmico,
que se utiliza da linguagem cinematográfica para produzir seus sentidos, assim
como o texto verbal utiliza a escrita.
Quando pensamos no conteúdo temático, será que o curta-metragem nos dá
alguma garantia do assunto que será tratado? Se pensarmos de forma isolada, a
resposta é não, assim como ocorrerá com qualquer outro gênero. No entanto, se
contextualizarmos, a resposta é clara. Entre um longa-metragem exibido sábado à
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tarde, na sala de cinema do Shopping Pantanal, em Cuiabá, e um curta-metragem
exibido no centro cultural de São Paulo, durante o Festival Internacional de Curta-
Metragem, de qual desses dois enunciados espera-se um conteúdo voltado para a
crítica social? A resposta é óbvia.
Assim, o curta-metragem, enquanto gênero, atende àqueles requisitos formais
relacionados por Bakhtin em sua teoria, quais sejam: estilo de composição,
conteúdo temático, esfera de circulação e suporte de veiculação; embora, como já
frisado anteriormente, sua característica central deve estar relacionada ao uso social
e não à forma. Pois, como sabemos, o gênero é moldado o tempo todo pelo
contexto a sua volta, exposto a mudanças sociais e tecnológicas, em que novas
tendências e meios expressivos surgem numa velocidade assustadora, gerando
múltiplas combinações e possibilidades enunciativas e, consequentemente,
diferentes formas composicionais. Como reforça Stam: “O gênero cinematográfico,
da mesma maneira como antes dele o gênero literário, também é permeável às
tensões históricas e sociais” (STAM, 2003, p.29).
Coerentemente, não cabe aqui tentarmos estabelecer uma delimitação teórica
fechada para o gênero curta-metragem, pois acreditamos que mais importante do
que definir o gênero é refletir sobre as múltiplas possibilidades de relacioná-lo de
forma dialógica a outros gêneros, estabelecendo diálogos com outros discursos,
absorvendo contribuições advindas das mais divergentes áreas, tanto em termos
éticos quanto estéticos, assim como tem sido em todo seu processo histórico, para,
a partir daí, estabelecermos uma ponte com a educação, conforme veremos na
próxima seção.
1.6 Pertinência didático-pedagógica
Quando analisamos uma narrativa por meio de um curta-metragem, podemos
perceber facilmente a riqueza de elementos linguísticos e extralinguísticos, próprios
da interação humana, o que nos faz aproximar do texto fílmico e seus mecanismos.
As imagens que constituem o texto nos remetem automaticamente a um universo
cultural reconhecidamente nosso ou próximo de nós. Essa característica,
principalmente nas produções brasileiras, abre caminho para abordagens de
conteúdos socioculturais, além de revelar aspectos interculturais que nem sempre
são mostrados com tanta expressividade nos livros didáticos. Não queremos aqui
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defender a exclusividade de um recurso, no caso, o audiovisual. Compreendemos
que todos devem igualmente ser valorizados. No entanto, pretendemos colocar em
xeque a pretensa hegemonia que algumas escolas e professores ainda persistem
em atribuir ao livro didático.
Isso não significa que vamos tecer neste trabalho uma comparação crítica
entre os recursos que temos disponíveis em nossas escolas. Apenas desejamos
despertar uma consciência que contemple e respeite as diversidades culturais de
nossos alunos. E esse respeito às diferenças precisa reverberar também nas formas
e meios de ensinarmos e, ainda, nas escolhas dos instrumentos didáticos. Nesse
aspecto, merece aplausos a iniciativa do projeto Curta na Escola, que nos oferece a
oportunidade de diversificarmos nossas abordagens no ensino de linguagem,
fornecendo-nos direcionamento para trabalharmos textos fílmicos que nos
aproximam do mundo concreto onde os professores e alunos vivem de verdade.
De fato, ao “ler” um curta-metragem, a tarefa de recuperar os elementos
extraverbais fica menos árdua, porque a maioria deles está à mostra no texto,
potencializados por meio dos recursos da linguagem cinematográfica, como
mudanças de planos e efeitos sonoros. Tomemos, como exemplo, o curta 10
Centavos, o qual mostra o drama de um garoto, morador do subúrbio ferroviário de
Salvador, que ganha a vida guardando carros no centro histórico da capital baiana.
Ao contemplarmos esse objeto estético, notamos a existência de um elemento
vincular com a realidade, o que torna o processo de interação mais fluido.
Acreditamos que isso aconteça por se tratar de uma forma de representar a vida,
que, de alguma maneira, nos conecta ao enunciado, sem comprometer seu valor
artístico. Um dos fatores que proporcionam essa conexão é a imagem. Ela nos
permite fazer associações com a nossa realidade e ativar processos cognitivos que
levam à compreensão do enunciado. Por exemplo, na imagem em que o garoto
aparece pegando o trem, é possível, mesmo que não haja esse meio de transporte
na localidade de alguns, perceber realidades análogas entre o mundo representado
e o mundo real do aluno, como a precariedade do transporte público e o sofrimento
de quem o utiliza.
Mas isso vale também para o longa, alguém poderia questionar. Sem dúvida,
alguns filmes de longa-metragem também possuem esse potencial de estabelecer
uma estreita relação com o contexto sociocultural, oferecendo possibilidades de
atividades variadas e dinâmicas, portanto atrativas. Em suma, qualquer produção
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audiovisual pode vir a ser um excelente instrumento para explorar a linguagem, bem
como os aspectos socioculturais. O problema começa quando consideramos o
tempo de cada aula na escola, geralmente 40 ou 50 minutos. Tendo em vista esse
fator, teremos que trabalhar apenas trechos de um filme longo. Ao utilizar essa
estratégia, compromete-se a compreensão ativa do aluno, pois ele terá pouco
elemento para oferecer uma resposta ao enunciado, além de desperdiçar o potencial
expressivo do recurso. Por mais que escolhamos um trecho que melhor represente a
obra toda, por mais que contextualizemos a obra, dificilmente conseguiremos
envolver os alunos na história e, principalmente, apreender o discurso. Isso porque
nos longas e nos romances, o discurso aparece disperso ao longo da obra.
E qual é problema disso? Ora, considerando o contexto de sala de aula, em
que nem sempre é fácil estabelecer uma relação de continuidade, sobretudo nas
escolas públicas, em que a falta de assiduidade de professores e alunos é notória, o
estudante corre o risco de não identificar os fios discursivos presentes no filme e, por
consequência, não entender a obra. E, com base na concepção bakhtiniana de
dialogia, não podemos compreender um discurso sem sua contraposição com outros
discursos presentes no enunciado. Dificuldade que o professor não vai encontrar se
utilizar um curta-metragem, pois, em apenas uma sessão, o aluno consegue
assimilar e identificar os elementos discursivos produtores de sentido presentes na
obra, permitindo que ele estabeleça as várias relações necessárias para uma
compreensão ativa, refletindo e refratando os temas abordados na interação.
Não menos importante é o cuidado de não submeter o aluno a longos
períodos de exibição de um filme de que ele não goste. Pode ocorrer de o professor
não realizar uma boa escolha e a classe não apreciar o filme, impedindo o
envolvimento da turma na narrativa. Querendo ou não, todos somos, em certa
medida, expectadores críticos, e já passamos, pelo menos uma vez, pela
desagradável situação de termos que assistir até o fim a um filme que não nos
despertou interesse. Com o curta, esse risco é quase nulo, pois seu caráter
compacto apresenta argumentos sintetizados, menor número de elementos
secundários durante a narrativa, o que dificulta o desvio da atenção por parte do
telespectador. Contudo, usar excessivamente e sem critério, seja qual tipo for de
obra cinematográfica, pode levar também à perda de interesse.
A ideia de incorporar o uso de curtas-metragens no ensino de linguagem está
de acordo com as orientações dos PCN, na medida em que apresentam amostras
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da língua real e comunicação contextualizada, capazes de desenvolver nos
telespectadores uma atitude ativa, transformando-os em agentes sociais. Isso faz
todo sentido, porque, ao assistir a uma produção cinematográfica em aula, é (ou
deveria ser) desencadeado um movimento semelhante àquele que ocorre ao assistir
a um filme em outro espaço, em que o indivíduo, por meio de processos pessoais de
assimilação e interpretação acaba, naturalmente, desenvolvendo competências,
tanto de natureza comunicativa, como de uma forma geral (DUARTE, 2002). De fato,
os PCN lembram que o desenvolvimento de qualquer capacidade humana, seja ela
comunicativa ou não, baseia-se sempre em aspectos volitivos. Ou seja, o aluno
precisa ter vontade, e esse processo deve ser natural, assim como ocorre em outras
esferas em que ele atua.
Assim, ao assistirem ativamente a um curta-metragem, os alunos deverão se
sentir em uma ação concreta, real, como fazendo parte de seu dia a dia e não
apenas como atividade escolar; caso contrário aquele processo desencadeador de
capacidades e habilidades, visto anteriormente, não será disparado. Acreditamos
que o curta-metragem contribui com esse conjunto de processos mentais, detonador
da compreensão ativa e de competências comunicativas dos alunos, preparando-os
para eventuais interações verbais em diferentes esferas. Isso acontece porque
entram em contato com representações de diversas situações contextualizadas com
a sua própria realidade. E, no processo de interpretação e associações, trazem à
tona aspectos práticos, comuns do seu cotidiano.
O curta Xadrez das Cores, de Marco Schiavon, 2004, pode ser um bom
exemplo. A narrativa mostra a tensa relação entre patroa e empregada. Cida é uma
mulher negra, de 40 anos, que vai trabalhar para dona Stella, uma senhora branca
de oitenta anos, extremamente racista. Por ser esta uma situação vivida por
milhares de pessoas no mundo, aqui já se estabelece um link com a realidade. Cida,
apesar de ser tripudiada frequentemente pela patroa, consegue - na arena da
palavra, demonstrando habilidade e competência comunicativas, adequando seu
discurso à situação, mantendo os ritos discursivos protocolares exigidos na relação
patroa – empregada - inverter o “jogo” a seu favor. Esse enunciado, embora seja da
esfera artística, possui um vínculo com a realidade, o que leva o telespectador a se
conectar com a obra. E é isso que faz ativar nele os processos desencadeadores de
competências e habilidades na interação com o filme.
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Esse diálogo com a realidade concreta, mais presente nos curtas-metragens,
torna-se especialmente útil para entendermos essa natureza social da linguagem, de
que falava Bakhtin, pois evidencia a linguagem como produto das interações sociais
entre sujeitos reais, sem as quais a língua torna-se irreal, abstrata. Compreendendo
melhor: numa produção cinematográfica que mostra uma situação de interação entre
um europeu branco, o dominador, e um africano negro, o dominado, em que a
linguagem utilizada por ambos é homogênea, predominantemente do dominador, a
língua é artificializada. Essa linguagem apresentada nessa relação jamais estaria
presente numa real interação social entre tais sujeitos. Essa representação
monoglota do real perde a força vincular com a realidade concreta, diminuindo
sensivelmente seu potencial desencadeador de habilidades e competências
comunicativas. Além disso, transmite uma ideia distorcida da realidade, por maquiar
a linguagem com intuito de atingir a um gosto padrão. Ocorre também o apagamento
do sujeito; sua identidade cultural é anulada, uma vez que esse se constitui nas
interações verbais, necessariamente dialógicas.
Por outro lado, essa força comunicativa, do falar real, da língua praticada pelo
sujeito falante concreto, está presente sobremaneira nos curtas-metragens, que
apresentam sujeitos reais, inseridos numa sociedade, que se comunicam e
interagem de forma heterogênea, apresentando suas variedades linguísticas e os
acentos próprios dos sujeitos da interação, sem a tentativa de artificializar a
linguagem. Isso quer dizer que, de forma polifônica, o negro falará com as suas
idiossincrasias linguísticas; como podemos perceber na personagem Cida, do Curta
Xadrez das Cores, o jovem com suas gírias imanentes, a mulher com seus usos
expressivos característicos e o homossexual com seus estilos e marcas discursivas,
sem contudo ser estereotipado, como acontece em alguns filmes hollywoodianos
que trazem representações desses sujeitos. Essa heteroglossia linguística presente
nos curtas-metragens de cunho autoral, presentes no projeto Porta Curtas, favorece
o desenvolvimento da competência comunicativa do aluno, isso porque o indivíduo
se identifica por meio de grupos, classes, categorias, gêneros e pela linguagem. Se
ele não se vê numa representação, só lhe restará assumir uma posição passiva,
imaginativa, diante do discurso apresentado.
A esse respeito, podemos citar como exemplo o curta produzido em 2006 por
Gustavo Melo, Pintinho, Picolé e Pipa. Essa narrativa mostra a euforia das crianças
do Morro do Vidigal no dia em que passa o carro do “troca-troca”, o qual permuta
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garrafa velha, bacia velha e outros utensílios por picolé, pintinho e pipa. Esse filme
retrata a heterogeneidade inerente da favela, e a força expressiva dele está, do
princípio ao fim, na linguagem. Logo no início, a Kombi aparece e o alto-falante
“grita”: “Alô, garotada, o carro do troca-troca está passando, garrafa velha, bacia
velha, panela velha, o moço troca por picolé, pintinho e pipa”. É tão real que parece
ser a própria rotina da favela. E o que provoca esse efeito de realidade é
exatamente a linguagem utilizada, aquela que se usaria naquele contexto. Num
outro momento da narrativa, que também demonstra, por meio da linguagem, o
vínculo com a realidade, ocorre quando uma garrafa cai e se quebra, um dos amigos
de Pedrinho diz: “Esse moleque é o maior vacilão! Espera só eu pegar ele na rua,
vou destruir ele!”, reproduzindo o discurso do traficante que domina as favelas
cariocas, e em quem muitas crianças do morro se espelham.
Para além das habilidades comunicativas, o uso do curta-metragem permite-
nos conhecer os aspectos sociais e culturais de um povo. Os curtas permitem a
análise da cultura do país que o produziu, pois, assim como acontece com qualquer
produto cultural, eles revelam hábitos e costumes de quem os produziu. Assim, um
curta-metragem pode se apresentar como projeção socioeconômica e cultural do
seu país de origem, dos seus anseios, desejos, lutas e perspectivas. Por exemplo,
no festival de Cannes11 de 1960, houve uma participação significativa de curtas-
metragens africanos. Nessa época, havia um forte movimento anticolonial por lá.
Esse desejo de liberdade, de se livrar do colonialismo, foi demonstrado nos filmes
curtos apresentados no festival. A voz da liberdade, reprimida em seu próprio país
pelos verdugos europeus, ecoou e ganhou força, ironicamente, na terra dos
colonizadores (MOURA, 2003).
Isso reflete o que Bakhtin (1992) postulou sobre a ideologia do cotidiano,
aquela que é libertadora, o espaço onde todos os arquétipos da oficialidade ilusória
e alienante são desnudados e virados de ponta-cabeça. Bakhtin (1987) chamou a
isso de carnavalização. Assim, uma produção artística que não tem compromisso
com a estética monológica, limitadora e conformadora, financiada pelo capital, está
livre para mostrar, denunciar e provocar reflexão. Dentro dessa perspectiva, estavam
os filmes longas produzidos no Brasil, na década de 50, no chamado Cinema Novo,
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Festival de Cannes é um festival de cinema criado em 1946, um dos mais prestigiados e famosos festivais de cinema do mundo. Acontece todos os anos no mês de maio, na cidade francesa de Cannes. O mercado de filmes é, em boa medida, influenciado pelo festival.
http://pt.wikipedia.org/wiki/1946http://pt.wikipedia.org/wiki/Cinemahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Fran%C3%A7ahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Cannes
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no qual jovens cineastas, revoltados com o sistema e os critérios de financiamento
de filmes, comandados pelas grandes companhias cinematográficas, resolveram
reivindicar um cinema com mais realidade e menos ilusão, com mais conteúdo e
menos capital (BERNARDET, 1995).
Os filmes dessa época eram constituídos segundo a ideologia do cotidiano.
Utilizavam-se da estética do lixo, aquela que choca, que revela o lado feio, sombrio
e miserável da sociedade. Por isso mesmo, não recebiam ajuda financeira do
capital, sendo produzidos com pouco ou quase nada de recurso financeiro. Esse
modo de fazer cinema contrapunha-se à estética utilizada nas representações
hollywoodianas, que mostravam sempre um mundo ideal, perfeito, todo mundo
consumindo; um mundo de glamour e fantasia, totalmente abstrato, descolado da
realidade e da língua utilizada nas interações sociais reais. É verdade que nem
todos os longas possuem essa natureza seriada de produção, no entanto, uma parte
considerável deles são, principalmente os famosos enlatados americanos.
Assim, encerramos este capítulo, no qual traçamos, de forma breve, um
panorama histórico do gênero curta-metragem no Brasil, situamos essa forma de
expressão cultural dentro da concepção bakhtiniana de gênero discursivo, além de
demonstrar sua viabilidade didática. No capítulo que segue, abordaremos o
arcabouço teórico no qual foram embasadas nossas análises e reflexões.
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CAPÍTULO II
CINEMA, LINGUAGEM E DISCURSO
Neste capítulo, travamos um debate acerca das possibilidades de diálogo
entre o pensamento do Círculo de Bakhtin e a teoria do cinema, primordialmente no
que se refere à compreensão do fenômeno da linguagem cinematográfica. Para
tanto, como já mencionado no capitulo anterior, contamos, para esta reflexão, com
os estudos realizados pelo pesquisador e professor de Teoria Literária, o inglês
Robert Stam, o primeiro a estabelecer essa interação.
Nossa proposição neste trabalho foi repensar alguns conceitos de Bakhtin e
empregá-los na assimilação da linguagem cinematográfica, levando em conta as
peculiaridades do gênero curta-metragem. Nessa empreitada, revisitamos alguns
conceitos e concepções do pensamento de Bakhtin, como dialogia, heteroglossia,
alteridade, exotopia, cronotopia, arquitetônica, interação verbal, dentre outros, a fim
de oferecer ao leitor uma nova perspectiva de análise dos textos fílmicos, ao fazer
uso de categorias que, até pouco tempo, eram utilizadas apenas em análise de
textos verbais.
Inicialmente, nos empenhamos em trazer à baila a concepção de linguagem
para Bakhtin, pois entendemos que, ao pensar em quaisquer conceitos da sua
teoria, faz-se necessário articulá-los à concepção de linguagem adotada pelo Círculo
e a tudo o que está envolvido nessa noção. Procuramos também estabelecer
paralelos e pontos de contato entre a ideia de interação verbal apresentada por
Bakhtin e a concepção de cinema enquanto linguagem, especialmente quando
tomada pela esfera educacional. E, por fim, envidamos esforços no sentido de
evidenciar a proficuidade das categorias bakhtinianas na análise dialógica do
discurso cinematográfico.
A razão que nos move em direção a esse árduo e complexo, porém
necessário, empreendimento é a premência de realizar uma leitura mais crítica da
linguagem audiovisual, cada vez mais sofisticada e sutil e cada vez mais presente
na vida de nossos alunos, nas mais variadas esferas das quais eles participam, por
meio do cinema, televisão, publicidade, computadores, jogos eletrônicos, celulares,
tablets etc. Por esse motivo, torna-se imperioso compreendermos como o mundo é
representado pela indústria cinematográfica, sobretudo nas produções
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padronizadas, como acontece com alguns filmes produzidos pela indústria o
entretenimento. Para tanto, consideramos extremamente adequadas as ideias e
categorias bakhtinianas, as quais nos oferecem um novo horizonte para analisar o
cinema, levando em conta, além da dimensão estética, a dimensão ética (social,
cultural, ideológica), presentes nas obras cinematográficas.
2.1 Concepção(es) de linguagem: Fundamentos dialógicos do Círculo
Para começarmos essa reflexão, faz-se mister trazer à baila o modo de
pensar a linguagem presente nas correntes estruturalistas, o qual Bakhtin
denominou de “objetivismo abstrato”, para, de forma dialógica, trazer à luz a
concepção de linguagem construída pelo Círculo. Essa corrente, da qual o mestre
genebrino Ferdinand de Saussure é compositor e regente, nos apresenta a seguinte
dicotomia: Língua e Fala, sendo o primeiro elemento dessa bifurcação considerado a
dimensão social da linguagem, e o segundo é encarado pelo linguista como
expressão individual de cada sujeito falante.
Saussure, ao instituir as categorias analíticas fundamentais para estudo da
língua, como a fonética e a morfologia, baseou-se nos estudos da linguística
comparativa indo-europeia, aquela criada para estudar, de forma mais adequada, as
línguas mortas e as estrangeiras. Saussure não negava o aspecto social da língua,
contudo o modo de fazer ciência da sua época exigia que o objeto de estudo
apresentasse comportamentos idênticos, portanto passíveis de normatização, como
a fonética, a morfologia etc. Mas esse modo de tratar a língua atava a diversidade, a
pluralidade e a mutabilidade, constitutivas da linguagem, em um sistema fechado de
regras.
Dentro dessa perspectiva estruturalista de pensar o fenômeno da linguagem,
as variações sociais da língua, bem como as variantes individuais dos falantes não
podiam ser consideradas nos estudos linguísticos. Para os estruturalistas, esses
fatores eram considerados desordenados, demasiadamente heterogêneos e
aleatórios, fugindo do padrão e do rigor exigidos pela ciência. Isso fez com que a
fala assumisse um papel quase que irrelevante, nos estudos linguísticos do final do
século XIX, a fim de não inviabilizar o projeto estruturalista de instituir uma unidade
da língua como sistema.
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Esse modelo positivista de conceber a linguagem como um sistema abstrato,
tomando por base suas característica