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NOME, TRANSEXUALISMO E SEGURANÇA JURÍDICA: O DIREITO COMO CANAL AXIOLÓGICO DO PLURALISMO SOCIAL NA MODERNIDADE
Igor Jordão Alves
RESUMO
O presente artigo intenta avaliar a temática do direito ao nome em face a uma nova noção de identidade sexual, construída hodiernamente, com atenção à condição do transexualismo. Investiga o papel do judiciário na atualização do ordenamento jurídico a uma nova realidade.
Palavras chave: Direito ao Nome. Transexualismo. Judiciário.
INTRODUÇÃO
As raízes da construção jurídica revelam a ineficácia da aplicação normativa de
maneira desvinculada do meio circundante. Em verdade, a busca pela Justiça com letra
maiúscula é inviável se não considerada como elemento individual e mutável, a partir das
circunstâncias do caso concreto. A aplicação sumária de pactos legislativamente firmados em
momento passado apresenta elevado potencial de desconsiderar novas construções sociais no
presente, aptas a influenciar o futuro próximo.
Nesse sentido, os direitos da personalidade são revestidos de elevada importância,
posto que têm caráter existencial do indivíduo em face à ordem jurídica, de modo a constituir
influência cotidiana. O direito ao nome enquadra-se claramente nesse amplo rol de garantias,
mas não pode ser vertido em fardo ao indivíduo, ainda mais se considerada sua recorrência no
desenvolvimento da vida privada. Por tais razões, a realidade dos transexuais deve ser tratada
através de uma tutela que considere valores humanitários e busque conciliar princípios
jurídicos.
1. DIREITO CIVIL E A TUTELA DA PERSONALIDADE
A visualização do Direito enquanto elemento decisório no âmbito do pluralismo da
Sociedade moderna implica uma adaptação do mesmo à plurivocidade axiológica, imanente à
existência de uma miríade de grupos sociais, dotados de uma diversidade de demandas. Nesse
sentido, a tutela da personalidade jurídica deve ser concebida sob uma órbita da valorização
do indivíduo, a fim de promover a autonomia pessoal- considerada por Ronald Dworkin a
capacidade de expressar valores, compromissos, convicções e interesses críticos(FARIA,
2007. P. 68). Ou seja, a diferenciação funcional dos subsistemas sociais impede uma
universalização do discurso jurídico na Modernidade (NEVES, 1993. p.10), o que engendra
uma renovação do aparato judiciário enquanto elemento de filtragem de expectativas, com o
intuito de gerar uma segurança jurídica
Desta sorte, os mecanismos de individualização da personalidade merecem especial
destaque, sobretudo a denominação, que deve ser observada sob uma dupla perspectiva,
requerida a partir da necessidade de estabilização das relações sociais. Tal elemento apresenta
tradição vinculada ao Direito Privado, com tendência à imutabilidade, a fim de garantir a
concreção harmônica dos negócios jurídicos. Contudo, a realidade observada revela a
tendência de relativização da indisponibilidade do instituto civilista, em face à construção de
maior flexibilidade jurídica, requerida para contemplação dos direitos minoritários.
Ao se considerar uma nova realidade social, percebe-se o anacronismo engendrado por
uma visão estática da denominação, sobretudo com relação a um ambiente de maior liberdade
sexual. Ademais, a concepção de sexualidade no âmbito jurídico apresenta um aspecto
excessivamente lacunoso, de modo a estabelecer um envio de tal delimitação conceitual ao
âmbito médico(ZAMBRANO, 2003. p. 2). Ou seja, os efeitos jurídicos de tais características
encontram-se abertos a uma miscelânea de princípios, sobretudo a partir da
Constitucionalização do Direito Civil, o que confere aos tribunais a função de canal
axiológico entre uma legislação obscura e o meio social. Destarte, é valido considerar que a
noção de sexo, enquanto característica individual, é deveras recente, apresentando os
primeiros estudos analíticos em meados do século XVI, posto que anteriormente as
explicações eram fundadas em elementos místicos, como o “calor vital”. Com a evolução da
medicina, entretanto, a definição por um viés biológico adquire predominância, o que
representa uma clara evolução no sentido da discussão do tema, mas apresenta-se de maneira
restritiva no âmbito moderno(ZAMBRANO, 2003. p.9).
O Transexualismo, um transtorno de identidade sexual, é um fenômeno capaz de
abalar as definições clássicas acerca do tema, posto que requer uma nova visualização do
assunto, a fim de incluir interpretações de caráter psicossocial. Inicialmente comparado ao
homossexualismo, o processo em questão era entendido como uma inversão da mentalidade
de gênero, considerado, assim como as relações homoafetivas, um erro da
natureza(ZAMBRANO, 2003. p. 15). O advento de novos avanços biológicos, entretanto,
estabelece claras distinções entre os fenômenos, constantemente confundidos, o que requer
uma tutela jurídica especial aos transexuais. Os efeitos dessa necessidade são diversos,
abarcando desde a responsabilidade estatal pelo acompanhamento terapêutico e pela cirurgia
de transgenitalização até a possibilidade de retificação do registro civil como forma de
coadunar a nova identidade de gênero com a identificação jurídica.
De tal forma, o presente ensaio tem o intuito de desenvolver reflexões acerca da
inclusão dos transexuais no universo jurídico, avaliando sobretudo o direito à retificação do
nome de tais indivíduos. O tema reveste-se de grande importância a partir da colisão entre
princípios como segurança jurídica, autonomia privada, liberdade e proteção da boa-fé, o que
motiva a discussão em questão.
Além disso, sob tal óptica, a noção de segurança jurídica apresenta uma clara
dualidade, se visualizada nas dimensões objetiva e subjetiva. É evidente que a modificação da
denominação da personalidade pode representar certos impasses no contexto das relações
sociais, posto que apresenta função pública de reconhecimento no seio da sociedade e da
família(GONÇALVES, 2012. p. 104) Assim, a partir de uma visualização externa(objetiva),
indica-se uma contrariedade ao direito de retificação. Por outro lado, a percepção subjetiva do
processo, revela a necessidade jurídica de proteção ao constrangimento individual, dotando de
incrível importância a compatibilização entre identidade de fato e de direito. Portanto, torna-
se evidente a proficuidade de discussões no âmbito do tema, além de percebê-lo como
ambiente propício para visualizar o caráter aberto dos princípios, os quais, em seu uso
retórico, podem ser propugnados como argumento de ambos os lados. Por fim, vale-se
rememorar a impossibilidade de encerrar tais debates em um processo hermético de
conhecimento, posto que é exatamente a dialética opinativa o elemento essencial à adaptação
do direito a uma esfera pública pluralista.
2. TRANSEXUALISMO: ASPECTOS BIOLÓGICOS, SOCIAIS E
JURÍDICOS
O conceito de transexualismo só foi cientificamente cunhado nas décadas posteriores a
2ª Guerra Mundial, a partir da dissociação do conceito de homossexualismo(ZAMBRANO,
2003. p. 19), sendo hoje definido como um transtorno que afeta indivíduos biologicamente
pertencentes a um sexo, mas que, do ponto de vista psicológico, consideram-se pertencentes
ao outro(VIEIRA, 1998. p. 2-4). É válido salientar que a menção à existência de um
transtorno não intenciona considerar tais indivíduos como dotados de anomalia, quando, em
contrário, busca-se visualizá-los sob um ponto de vista humanitário, daí a necessidade do
Direito exercer proteção específica a tais indivíduos como instrumento integrativo no âmbito
social. Entretanto, o recorrido histórico revela uma forte tendência a um preconceito
direcionado a tais grupos, processo também vivenciado pelos homossexuais, posto que ainda
subsiste uma percepção essencialista da sexualidade, obtida pela mera observação biológica.
Os próprios estudos médicos, nos primeiros momentos, apresentaram-se incapazes de
contemplar adequadamente a nova realidade. Um exemplo claro foi H. Benjamin, que definia
o transexual como um hermafrodita psíquico(ZAMBRANO, 2003. p. 14), o que cria uma
ideologia repugnante das diferenças, como se o indivíduo fosse mero polo passivo da
constituição identitária, devendo, portanto, aceitar caracteres físicos mesmo que estes causem
prejuízos à inclusão social. Em verdade, a subjetividade é um paradoxo da unidade da
diferença(MAIA)1, de modo que classificações alargadas nunca são plenamente capazes de
abarcar toda especificidade do ser humano. A autobservação tem efeitos múltiplos nos
contatos intersubjetivos, de modo que a visualização de si mesmo (e da própria sexualidade)
reveste-se de gigantesca importância, o que deve ser considerado nas decisões jurídicas.
Assim, deve-se considerar que a constituição da identidade de gênero, concretizada até
os 2 anos e meio(VIEIRA, 1998. p. 4), abarca uma diversidade de aspectos, de modo a
transcender claramente os critérios biológicos. Segundo Focault, existe uma clara construção
discursiva da sexualidade individual, obtida através das interações(ZAMBRANO, 2003. p.8).
Em verdade, deve-se considerar uma noção construtivista social ao avaliar tal fenômeno, já
que ele engloba um processo de decisão do indivíduo, estando condicionada a aspectos
psicológicos e comportamentais(ZAMBRANO, 2003. p.10). É evidente, entretanto, que o
objetivo primordial do trabalho não é delimitar rigidamente o processo de consecução desse
fenômeno, mas faz-se necessária a superação da observação rígida de tal realidade. Ou seja,
deve-se adotar uma visão ampla da identificação pessoal, a fim de evitar reducionismos
biológicos. Da mesma forma, não se pode proceder de maneira inversa, superestimando o
potencial discursivo como o fez Foucault, de modo a desconsiderar fatores corporais.
Na modernidade, a identidade sexual transcende a verificação das características
sexuais primárias(MENIM, 2005. p. 16), dada a possibilidade de falibilidade da mesma em
face a elementos de outras ordens, como no caso do transexualismo. Além do sexo genético
(cromatínico e cromossômico), que determina a morfologia do indivíduo, consideram-se o
sexo psíquico- responsável pela forma que o indivíduo concebe o meio exterior- e o sexo
endócrino(gonadal e extragonadal)(MENIM, 2005. p. 17-19). A partir dessa miríade de
variáveis, emerge o sexo civil, cuja responsabilidade é garantir a contemplação de todas as
particularidades possivelmente existentes. Nesse sentido, entretanto, deve-se relativizar a
importância dos caracteres atávicos em face de um processo de personalização no âmbito, a
fim de valorizar os aspectos comportamentais e garantir uma autodeterminação sexual.
1Documento on-line não datado
Ou seja, o transexualismo não mais deve ser entendido como um erro da natureza, de
modo a resignar os indivíduos a uma situação de desconforto contínuo. Em verdade, a
viabilização de soluções para tal problemática é essencial. Um dos pontos primordiais para o
preconceito em relação aos transexuais é o fato de muitos analistas observarem tais
circunstâncias de maneira excessivamente distanciada, sem considerar o fardo inerente ao ser
humano que constitui uma identidade de gênero, mas não a vê contemplada em vivência
corporal. Além disso, concepções mais retrógradas tendem a considerar lesivas aos bons
costumes tais atitudes, sem ponderar a complexidade do contexto.
Nesse sentido, o desenvolvimento dos estudos revela a ineficácia dos tratamentos
terapêuticos, o que corrobora a impossibilidade de negligenciar a condições de tais indivíduos
(ZAMBRANO, 2003. p.56). Portanto, a possibilidade de transgenitalização não consiste em
mero deleite estético, como poderia ser falsamente presumido, mas em uma necessidade
inerente a um exercício pleno da sociabilidade. León Duguit julgava ser tal elemento(a
sociabilidade) o fator legitimador da ordem jurídica, construída como meio de reforçar os
laços de solidariedade(AFTALIÓN, 1999. p. 255) , opinião que, se trazida para tal discussão,
reforça a necessidade do Estado refutar uma posição absenteísta e intervir como forma de
garantir o bem-estar do indivíduo.
Dada a ineficácia dos métodos terapêuticos, a cirurgia de mudança de sexo se
apresenta como a metodologia mais viável para o enfrentamento do problema. Não obstante
os fatos citados justifiquem a ocorrência da mesma, diversos argumentos foram levantados na
ordem jurídica com o fim de retirar a legitimidade de realização do procedimento médico.
Genival Veloso de França censurava tal método com a alegação de tratar-se de uma cirurgia
fora do âmbito da medicina e com uma pretensão grosseira de simular ato moral. Da mesma
forma, subsiste a alegação de que a intervenção representaria uma lesão corporal de natureza
grave ao gerar perda ou inutilização de membro, pautada no artigo terceiro do artigo 129 do
Código Penal(VIEIRA, 1998.p.5) Contudo, tais argumentos não devem ter guarida em um
Direito Moderno, posto que a valorização da vida privada e da autodeterminação impedem a
vedação de indivíduo dotado de capacidade de discernimento dispor de seu próprio corpo a
fim de promover a saúde própria, além do fato do órgão retirado ser despido de utilidade na
conjuntura da transexualidade.
Infelizmente, a adaptação do universo jurídico brasileiro a tal realidade ocorreu de
maneira exógena, a partir da atuação dos Conselhos Regionais de Medicina, os quais
aprovaram a realização dos procedimentos cirúrgicos em questão em hospitais públicos e
universitários, após acompanhamento terapêutico bienal(1997). Por outro lado, a Suécia,
desde fins da década de 1970, foi capaz de regularizar tanto a transgenitalização quando a
retificação do nome por tais indivíduos passou a ser permitida(ZAMBRANO, 2003. p.58), o
que revela um elevado grau de preocupação com a diversidade axiológica da sociedade.
Nesse sentido, concebe-se uma incapacidade apriorística do Direito Brasileiro no
sentido de considerar de afastar interferências da moralidade dos grupos dominantes, o que
implica uma negligência à existência de grupos sociais dotados de valores e práticas próprias.
Isto é, a impossibilidade inicial da Jurisprudência nacional impor ações concretas de
promoção da igualdade sexual revela uma normatividade ainda arraigada a preconceitos
trazidos de concepções particularistas. Os últimos 12 anos, entretanto, revelam paulatinos
avanços na inclusão jurídica da comunidade LGBT, enquadrando-se nesse contexto o início
das operações de transgenitalização arcadas pelo Sistema Único de Saúde, a partir de 2008,
através da Portaria 1.707/2008 do Ministério da Saúde. Importa notar que tal evento, embora
não suficiente, parece representar um Judiciário mais atinado ao amparo de comunidades
minoritárias e menos influenciável por valores sociais hegemônicos.
Por fim, deve-se considerar que a saúde é o completo estado de bem-estar físico,
psíquico e social(HOGEMANN, 2011)2, o que induz à responsabilidade estatal no âmbito da
pesquisa em questão. A promoção de um Estado de Direito consiste em elemento
constantemente reconstruído, apto a considerar fatos sociais não sob uma órbita unívoca, mas
a partir da consideração da miríade de valores existentes, a fim de promover a valorização da
dignidade humana. Nesse sentido, a realização dos fins de uma comunidade sempre depende
de uma constante discussão acerca de temas vitais a esta, o que torna o Judiciário a última
instância da consciência social(MAUS, 2000. p.186). Segundo Capeletti, no Estado Liberal
não existia a percepção da vulnerabilidade das partes no processo de acesso à justiça, o que é
rompido na segunda metade do século passado, com a maior valorização dos interesses
coletivos e a promoção de uma jurisdição mais representativa(2002. p. 4-5) É, portanto,
dentro de tal contexto que se inclui a proteção aos direitos de personalidade dos transexuais,
mesmo que isso implique em uma relativização de elementos supostamente indisponíveis do
ponto de vista jurídico, a fim de permitir a flexibilização normativa.
2 Documento on-line não paginado
3. RETIFICAÇÃO DO NOME E DO REGISTRO CIVIL
O registro civil consiste em instrumento catalogador das características jurídicas do
indivíduo aptas a produzirem efeitos (nome, nascimento, óbito, casamento, filiação), o que
revela a importância de tal instrumento no processo de identificação das pessoas físicas e
jurídicas. O percurso histórico de tal instituto revela origens muito vinculadas à Igreja
Católica, no intuito de reunir informações sobre os fiéis e facilitar a cobrança do
dízimo(PEREIRA, 2011. p.197-198). Similares objetivos motivam sua utilização na
modernidade, como a garantia do Estado ter posse dos eventos relevantes da personalidade, o
que possibilita melhor exercício da autoridade. No âmbito da denominação, a legislação
relativa apresenta clara tendência a uma preservação do prenome de batismo, com exceções
de casos que envolvem exposição ao desprezo público, além da substituição por apelidos
públicos notórios(GONÇALVES, 2012. p.107). O oficial de registro público, nesse sentido, é
revestido de uma função de caráter eminentemente público, posto que deve ser capaz de
avaliar coerentemente a possibilidade concreta da denominação representar um fardo ao
indivíduo.
Contudo, a normatividade em questão não contempla totalmente uma nova realidade
de constitucionalização do Direito Civil. É inegável que a estabilidade do prenome tem
eminente função no âmbito das responsabilidades contratuais, e, sobretudo, no campo penal,
porém não se faz útil generalizar tal princípio ao ponto de torná-lo excludente. Nesse sentido,
existem grandes discussões sobre a possibilidade de retificação por parte dos transexuais,
além da necessidade ou não de fazer averbação dos motivos que ensejaram tal processo.
Portanto, fica claro que a estabilidade do prenome não pode ser fim em si mesmo, mas deve
ser considerado meio para consecução dos escopos do ordenamento jurídico, como a
harmonia e estabilidade. Assim, não se pode presumir o caráter absoluto do mesmo em face
de casos limítrofes, nos quais subsiste uma clara colisão principiológica.
De maneira similar, alega-se que a modificação em questão representaria uma
negligência em face à proteção da boa fé, como nos casos de relacionamento afetivos com
transexuais. Contudo, não soa coerente tal alegação, posto que já se revela comprovado o fato
de que o transexual não é enfermo, mas é dotado de um transtorno de identidade sexual, o que
expõe apenas uma incompatibilidade da subjetividade do indivíduo em face ao seu aspecto
físico. Assim, subsiste uma necessidade de igualar o transexual às pessoas do mesmo sexo, o
qual passa a gozar de todos os efeitos jurídicos da nova condição. Além disso, o Direito não
pode presumir a má-fé das relações, mas sim garantir a liberdade das interações sociais.
É interessante, entretanto, afirmar que a intenção jurídica expressa não tenta promover
a apologia de relacionamentos nos quais os parceiros desconheçam o passado do outro, mas a
questão é que não se pode indeferir um direito dos indivíduos a partir de uma hipotética
ocorrência de má-fé. Certamente, o aconselhável é que os transexuais revelem sua identidade
ao parceiro no momento adequado, possibilitando ao companheiro o conhecimento dessa
realidade, mas, sob a óptica da eticidade, o universo jurídico deve presumir que a conjunção
afetiva esteja vinculada a aspectos sentimentais, sem a influência de modelos estigmatizados
de sexualidade.
Em verdade, por processo analógico, deve-se considerar que o direito de redesignação
está pautado no mesmo princípio que veda as partes esdrúxulas do nome(possibilidade de
desprezo público). A manutenção da identidade anterior confere ao registro a possibilidade de
um afastamento excessivo da realidade, desconsiderando o livre desenvolvimento do
indivíduo. Assim, a vedação representaria uma perda de utilidade do registro civil, posto que
seria incapaz de contemplar uma nova realidade inerente à personalidade jurídica do
indivíduo, que, é válido salientar, já era elemento presente em seu substrato psicológico, não
sendo, apenas, contemplado do ponto de vista morfológico. Ou seja, a imutabilidade do
prenome tornaria o Direito um novo obstáculo à plena socialização de tais indivíduos, que,
após superada uma fase de dissociação do próprio corpo, estariam agora condenados à falta de
representatividade do próprio nome.
Assim, deve-se considerar a identidade sexual como um direito médico, sobretudo do
ponto de vista da sanidade psicológica. Destarte, uma excessiva valorização do viés publicista
configuraria intervenção não desejada do Estado na esfera privada, de modo a desrespeitar
inviolabilidade da mesma. Da mesma forma, a identificação não contempla apenas fatores
externos, posto que deve englobar todo o âmbito de escolhas ideológicas e culturais do
indivíduo, o qual deve ser necessariamente representado na sua designação.
Na Espanha, não se visualizam muitas problemáticas na alteração do prenome após a
transgenitalização, dado que se utiliza o viés biológico para promover a harmonização entre o
registro documental e a sexualidade(CAMPOS. p. 11).3 Contudo, embora permita a alteração
tal visualização é excessivamente simplista, posto que só considera o aspecto morfológico, de
3 Documento não datado
modo a negligenciar boa parte do conteúdo psicossocial inerentemente envolvido na
discussão. Isto é, não se propugna uma revisão prenominal como mero elemento exterior da
personalidade, mas consideram-se os efeitos internos do mesmo na autobservação. Isto é,
como já dito anteriormente, a consciência de si mesmo tem influência contingente nas
interações, e o nome claramente exerce influência na projeção imagética do indivíduo, o que
reveste sua alteração de grande importância.
Outro ponto importante é que o presente ensaio refuta a necessidade de averbação dos
motivos da retificação. Mais uma vez, deve-se relativizar a publicidade dos ato jurídicos em
prol de um processo de personalização do indivíduo no âmbito civil, processo configurado a
partir da eficácia dos princípios constitucionais nesse campo. O respeito à vida privada, nesse
contexto, é um valor de maior importância, posto que a menção da ocorrência da cirurgia de
transgenitalização nos registros documentais feriria claramente a tentativa de uma reinserção
igualitária de tais indivíduos no seio da sociedade. O prejuízo ao ulterior desenvolvimento
individual do transexual deve ser visualizado como óbice à necessidade de averbação, posto
que o Direito deve ser capaz de tutelar tais circunstâncias de maneira pacífica e a fim de evitar
quaisquer preconceitos.
Quando o assunto é a jurisdição nacional acerca do tema não se pode negar que a
vanguarda é exercida pelos Tribunais do Rio Grande do Sul, posto que o estado apresenta um
conjunto de decisões favoráveis ao processo de retificação, em oposição à resistência
encontrada em Minas Gerais. É válido salientar que o Judiciário gaúcho apresenta decisões
que permitem a alteração do prenome antes da própria cirurgia de modificação do
sexo(MENIM, 2005. p.12-16), o que mostra atuação compatível com o perfil psicossocial da
identidade de gênero. Nesse sentido, a diversidade decisória revela a capacidade do tema
suscitar polêmicas no âmbito jurídico.
Assim, a consideração da retificação do prenome antes mesmo da transgenitalização
consiste em prática acertada sob a óptica da pesquisa em questão. Não se pode afastar a noção
de que a homologação desse direito aos transexuais tem grande importância no sentido de
antecipar a compatibilidade do nome à autobservação, mas, sobretudo, evitar
constrangimentos que possivelmente ocorram antes da intervenção cirúrgica. Ou seja, o
exercício de uma tutela antecipatória apresenta-se extremamente coerente pra garantir a
proteção do indivíduo contra a ocorrência de distinções preconceituosas no âmbito
profissional e social. A consecução do processo de alteração do nome deve sempre considerar
que a ação em questão versa sobre um direito de personalidade que tem influência diária nas
circunstâncias cotidianas, dado que deve conduzir para decisões de caráter similar.
Por fim, a inexistência de uma tutela específica acerca da identidade sexual faz a
proteção desta ser realizada pelos direitos de personalidade, o que pode conferir perfil
excessivamente aberto a esta cláusula. Nesse sentido, é reforçada a necessidade do Judiciário
exercer papel relevante no processo de atualização da legislação à realidade, dado que a
criação normativa encontra-se impregnada de interesses políticos. Assim, a incorporação de
elementos técnicos à discussão se faz mais possível no âmbito dos tribunais. Isto é, as
bancadas parlamentares, excessivamente arraigadas a seus substratos eleitorais, revelam-se
muito distantes da possibilidade de encarar o tema do transexualismo de maneira mais
racional. Os exemplos dados pelos juízos do Rio Grande do Sul, por sua vez, revelam a
possibilidade de consecução de uma verdadeira adequação da tutela dos direitos de
personalidade dos indivíduos em questão, o que pode configurar uma saída eficaz para
debelar os constrangimentos diários aos quais são submetidos.
Considerações Finais
Destarte, verifica-se a dinamicidade do corpo social como elemento agravante da
complexidade jurídica, dada a incapacidade da estática normativa acompanhar a variabilidade
axiológica e opinativa sem a existência de um Judiciário capaz de atualizar tal sistema. A
própria discussão retórica no âmbito dos tribunais é imanentemente necessária para um
processo de ponderação dos valores, o que tende a ser inerente em litígios engendrados em
uma sociedade assumidamente plural. Em verdade, termos como segurança jurídica, boa-fé e
dignidade da pessoa humana, são esvaziados de valor quando analisados de maneira asséptica
e sem a consideração adequada do caso concreto.
Assim, por conseguinte, verifica-se a necessidade de conferir provimento às
pretensões de retificação do prenome como forma de coadunar o Direito ao novo perfil
psicossocial do sexo e da identidade do gênero. Ou seja, no âmbito discutido, a noção de
segurança jurídica deve ser entendida sob a óptica de permitir adequada inclusão social de tais
indivíduos, e não como argumento pela imutabilidade do pronome. Portanto, a modificação
em questão pode ocorrer inclusive em tempo anterior à cirurgia de transgenitalização a fim de
dirimir as dificuldades indenitárias que atormentam o transexual. A temática em questão
reforça a fragmentação da pós-modernidade, período em que se verifica uma impossibilidade
de universalização do discurso, alçando o Direito ao status de uma das poucas formas de
entrelaçamento individual no período em questão.
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