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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA JLIO DE MESQUITA FILHOFACULDADE DE HISTRIA, DIREITO E SERVIO SOCIAL
EDUARDO MEI
TEORIA DA HISTRIA E RELAES INTERNACIONAIS:
DOS LIMITES DA OBJETIVIDADE HISTRICA HISTRIAUNIVERSAL EM RAYMOND ARON
Franca
2009
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Mei, EduardoTeoria da histria e relaes internacionais : dos limites da
objetividade histrica histria universal em Raymond Aron /Eduardo Mei. Franca : UNESP, 2009
Tese Doutorado Histria Faculdade de Histria, Direitoe Servio Social UNESP
1. Histria Teoria. 2. Relaes internacionais. 3. RaymondAron Crtica e interpretao. 4. Histria universal.
CDD 327
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EDUARDO MEI
TEORIA DA HISTRIA E RELAES INTERNACIONAIS:
DOS LIMITES DA OBJETIVIDADE HISTRICA HISTRIA
UNIVERSAL EM RAYMOND ARON
Tese entregue ao Programa de Ps-Graduao daFaculdade de Histria, Direito e Servio Social, daUnesp-Franca para obteno do ttulo de Doutor emHistria e Cultura. rea de concentrao: CulturaPoltica
BANCA EXAMINADORA
Presidente_____________________________Orientador: Prof. Dr. Hctor Luis Saint-Pierre
1 Examinador
______________________________________
2 Examinador______________________________________
3 Examinador
______________________________________
4 Examinador
______________________________________
Franca, _____de___________, de 2009.
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Agradecimentos
Como todo trabalho acadmico, este o resultado da colaborao direta, indireta
ou mesmo annima de muita gente. Desde j aceitem minhas escusas porqualquer omisso.Primeiramente gostaria de agradecer ao meu orientador, professor Hctor LuisSaint-Pierre, pelo estmulo, ateno, pacincia e presso sem os quais estetrabalho jamais seria concludo.Agradeo tambm s professoras Suzeley Kalil Mathias e Teresa Malatian pelassugestes, advertncias e comentrios feitos ao meu trabalho no exame deargio desta tese.
CAPES, pela bolsade estudos a mim concedida.A todos os professores do programa de ps-graduao em Histria, pela atenodispensada s minhas demandas bastante inusitadas.A todos os professores e colegas do DECSPI e , em especial, Vnia e a Denis,que sempre so muito solcitas para comigo.Sou tambm muito grato ao servidores da Secretaria de ps-graduao, Masa,Luzinete, Gigi, caro e Alan, que foram sempre muito atenciosos e pacientescom minha inaptido para prazos e regulamentos.
Sou muito grato tambm aos funcionrios da biblioteca da FHDSS,especialmente, Laura e Silvana, que sempre foram muito solcitos paracomigo.Agradeo, enfim, a todos os professores e funcionrios, efetivos e terceirizados,da FHDSS, que de alguma maneira contriburam para que minha passagem pelocampus fosse mais cmoda e agradvel.Agradeo tambm aos meus amigos, que so muitos e, em especial,Ao Hctor, o terno aguilho, pelo afeto e lealdade com que sempre me tratou.
Suzeley, que com muito carinho e zelo disps-se prontamente a corrigir otexto desta tese.Aos meus afetuosos amigos de Franca, rica, Maria Ceclia e Lucas, sempremuito atenciosos, carinhosos e leais comigo, e tambm aos de Campinas, semcujo lenitivo tudo seria mais difcil.Agradeo tambm a todos os colegas do GEDES, que indireta ou anonimamentecolaboraram para a realizao deste trabalho.Agradeo, enfim, minha me, meus irmos e Claudia, que facilitaram tudocom seu afeto.
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TEORIA DA HISTRIA E RELAES INTERNACIONAIS:Dos Limites da Objetividade Histrica Histria Universal em Raymond
Aron
Resumo
Analisamos neste trabalho a articulao entre a teoria da histria e as relaesinternacionais na obra de Raymond Aron (1905-1983). A obra de Aron assentaseus fundamentos na sua tese de doutorado de inspirao neokantiana(Introduction la philosophie de lhistoire). Essa obra ainda no mereceu suatraduo para a lngua portuguesa e talvez por isso seja pouco conhecida noBrasil. Ao criticar o positivismo, ento predominante na universidade francesa crtica hoje amplamente aceita , Aron deparou-se com um problema
fundamental: como evitar que essa crtica implicasse numa soluo relativista oumesmo ctica e niilista? Nossa tese que a tentativa de superar o relativismoencaminha Aron para uma reflexo sobre a histria universal. Perguntamo-nosse e em que medida o estudo das relaes internacionais contribuiu para essasuperao. Defendemos que um retorno a Kant o que melhor soluciona oproblema apresentado por Raymond Aron.
Palavras-chaves: Raymond Aron, neokantismo, historicismo, relaesinternacionais, guerra fria, histria universal.
ResumenCon en este trabajo analizamos la articulacin entre la teora de la historia y lasrelaciones internacionales en la obra de Raymond Aron (1905-1983). La obra deAron se fundamenta en su tesis de doctorado de inspiracin neokantiana(Introduction la philosophie de lhistoire). Esa obra an no ha merecido supublicacin en lengua portuguesa, tal vez por eso sea tan poco conocida en elBrasil. Al criticar al positivismo, en aquel entonces predominante en launiversidad francesa crtica hoy ampliamente aceptada , Aron se depar conun problema fundamental: como evitar que esa critica implicase en una solucinrelativista o mismo escptica y nihilista? Nuestra tesis es que la tentativa desuperar el relativismo encamina a Aron para una reflexin sobre la historiauniversal. Preguntmonos si y en que medida el estudio de las relacionesinternacionales contribuy para esa superacin. Defendemos que un retorno aKant el lo que mejor soluciona el problema colocado por Raymond Aron.
Palabras claves: Raymond Aron, neokantismo, historicismo, relacionesinternacionales, guerra fra, historia universal.
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Rsum
Nous analysons dans cette tude, la relation entre la thorie de l'histoire et
les relations internationales dans les travaux de Raymond Aron (1905-1983). Luvre de Aron affermit son fondement dans sa thse de doctoratd'inspiration neokantiana (Introduction la philosophie de l'histoire). Cetravail n'a pas encore reu leur traduction en portugais, et peut-tre rconsquent elle soit peu connue au Brsil. En raison de sa critique dupositivisme, alors en vigueur dans l'universit franaise critiquedsormais largement admis , Aron a t confront un problmefondamental: comment viter que cette critique a entran une solutionrelativiste ou mme sceptique et nihiliste? Notre thse est que la tentativede surmonter le relativisme entrane Aron une rflexion sur l'histoireuniverselle. Nous nous demandons si et dans quelle mesure l'tude desrelations internationales a contribu ce dpassement. Nous croyons que leretour Kant est celui qui correspond le mieux de rsoudre le problmeprsent par Raymond Aron.
Mots-cls: Raymond Aron, neokantisme, historicisme, relationsinternationales, guerre froide, histoire universelle.
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SUMRIO
NOTA BIBLIOGRFICA1
INTRODUO2
Captulo I S MARGENS DO RENO 21
Desesperado ou Satnico? 22
De Caminhos e Fronteiras 32
A Terceira Repblica 40
Captulo II LIMITES DA OBJETIVIDADE HISTRICA 58
Captulo III A SUPERAO DO RELATIVISMO HISTRICO 83
Captulo IV AAURORA DA HISTRIA UNIVERSAL 106
CONCLUSO 131
ANEXO: 139CRONOLOGIA 140
BIBLIOGRAFIA 145
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Abreviaturas utilizadas para as obras de Raymond Aron
CG Chroniques de Guerre
DAS Les dernires anns du sicle
DCH Dimensions de la conscience historique
EP Etudes Politiques
EPS Les tapes de la pense sociologique
ES tudes Sociologiques
HP Histoire et politique
IPH Introduction la philosophie de lhistoireLGC Les guerres en chane
LSH Leons sur lhistoire
Mm Mmoires
MI Dune Sainte Famille lautre. Essai sur les
marxismes imaginaires
MTM Machiavel et les tyrannies modernes
OI Lopium des intellectuels.P Polmiques
PCH La philosophie critique de lhistoire
PGN Paix et guerre entre les nations
PLG I e
II
Penser la guerre, Clausewitz. t. I. Lge europen,
t. II. Lge planetaire
RI Rpublique imperiale les tats-Unis dans le
monde, 1945-1972
SAC La sociologie allemande contemporaneSE Le spectateur engag. Entretien avec Jean-Louis
Missika et Dominique Wolton
SIG La socit industrielle et la guerre
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Introduo
Raymond Aron nasceu em Paris, a 14 maro de 1905, e faleceu na
mesma cidade em de outubro de 1983, consagrando-se como um dos grandes
intrpretes do mundo contemporneo. Porm, embora seu interesse fosse a
histria vivida e sua vida praticamente coincida com o breve sculo XX, por
ora deixemos de lado suas tribulaes. Permita-nos, pois, primeiramente
discorrer sobre o interesse da obra. Ao que parece, s tardiamente esta teve omerecido reconhecimento e este s aumentou aps a sua morte. A queda do
muro de Berlim, o colapso da URSS, o fim da guerra fria so marcos dessa
guinada. Todavia, por isso mesmo talvez a imagem que temos de Aron deva ser
retocada. De qualquer modo, a sua obra, embora conhecida, ainda no mereceu
muitos estudos sistemticos. Provavelmente porque, como disse um estudioso,
a amplitude da obra de Raymond Aron sempre desesperou os comentadores.1
Este autor manifestara a esperana de que a publicao de obras inditas e
pstumas, das obras completas, enfim permitisse estudar sua contribuio em
profundidade.
No obstante, essa tarefa parece ainda longe de concluda. De fato,
alm da amplitude em volume de pginas e diversidade de assuntos, outras
dificuldades se acrescentam, entre as quais se destaca a de digerir sua filosofia
da histria, formulada s vsperas da Segunda Guerra Mundial. Com efeito, nas
suas Memrias, Aron notara que a Introduo filosofia da histria sua tese
1Stanley HOFFMANN, Raymond Aron et la theorie de las relations internationales In:
Politique trangre, Anne 1983, Volume, Numro 4. Disponvel em:http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/polit_0032-342x_1983_num_48_4_5707 .ltimo acesso em 15/07/2008.
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de doutorado defendida em 1938, s vsperas da Anschluss2
esclarecia para ele
mesmo sua maneira de pensar a poltica (Mm, p. 125) e registrara a dificuldade
de leitura da obra (Mm,pp. 115 e ss). Assim, no causa espanto que mais de 30anos depois algum ponderasse:
Como possvel que teses to magistrais, to revolucionrias para apoca e que levantam tantos problemas no tenham sido antesexaminadas e discutidas? Pois enfim, eu o repito, de meu
conhecimento, no existe ainda um estudo de conjunto digno delas.3
Nem surpresa que, treze anos depois, reiterassem tais palavras, ou que em 1995,
ainda notassem o reconhecimento pblico tardio da obra de Aron, acrescentando
que talvez a especializao universitria representasse um obstculo sua
compreenso.4
Se assim na Frana, que dizer de outros pases?
Alm disso, outra dificuldade se impe ao estudo da obra de Aron.
Embora seja referncia obrigatria em vrias reas das cincias histrico-sociais,
poucos so os estudos sistemticos que a tomam por objeto, e as referncias a
ela esto dispersas numa mirade de artigos e livros. Por isso, faz-se necessrio
privilegiar a anlise interna da obra em detrimento de outras abordagens. Porm,
nesse caso, corre-se o risco de perder-se numa anlise estrutural que, embora
tenha o seu valor, tem o inconveniente de descurar a influncia que a obra sofre
da histria-que-se-faz, justamente no caso de um autor em que a histria em
processo o centro da reflexo. Inconveniente maior ainda para aqueles que no
esto familiarizados com a histria francesa e europia do perodo em questo.Por tudo isso, optei por um caminho diferente do tomado por Sylvie Mesure
que, em Raymond Aron et la raison historique, intenta expor a crtica da razo
2A anexao da ustria pela Alemanha.
3
Gaston FESSARD Apud SylvieMESURE, Raymond Aron et la raison historique. Paris: Vrin,1984, p. 7.4
Stephen LAUNAY, La pense politique de Raymond Aron. Paris: P.U.F., 1995, p. 3.
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histrica aroniana com base numa anlise das obras afetas a essa problemtica,
mas no faz distino entre as obras anteriores sovietizao do Leste europeu e
as que lhe so posteriores, como se a Segunda Guerra Mundial e suasconseqncias fossem eventos de pouca monta. Por um caminho diferente
tambm do tomado por Stephen Launay, que intenta apresentar uma anlise
sistemtica do conjunto da obra a partir da sua inteno filosfica.
Meu propsito mais modesto. Trata-se apenas de apresentar uma
interpretao da obra de Aron alicerada no estreito vnculo da sua teoria da
histria com a teoria e a anlise das relaes internacionais. O prprio Aron
insistia sobre este vnculo. Em um artigo intitulado "Thucydide et le rcit
historique", Aron se pergunta se a guerra de 1914-1945 no encontraria seu
Tucdides para conferir-lhe a devida importncia (DCH, pp. 148-9). De fato, as
guerras que devastaram a Europa no sculo XX no se assemelhariam guerra
que levou a civilizao helnica ao colapso? Se as duas grandes guerras
mudaram a fisionomia do mundo, porque ento seria ilegtimo fazer-lhes a
narrativa? Esse tema recorrente retomado em um curso ministrado no Collge
de France em 1973-4 e publicado sob o ttulo Leons sur lhistoire, no qual
Aron refere-se importncia da histria e teoria das relaes internacionais:
nesse domnio que a narrativa se impe mais freqentemente, e que a narrativa
de estilo tucididiano continua a guardar sua legitimidade. (LSH, p. 334)
Portanto, ao que parece, esse domnio estrategicamente o mais apropriado parauma anlise da obra de Aron.
Entretanto, mesmo excluindo da anlise uma parte expressiva da obra
de Aron como o caso, por exemplo, da referente ao debate poltico-
ideolgico e Sociologia das sociedades industriais , o tema referente ao
vnculo da teoria da histria com os estudos das relaes internacionais ainda
demasiado amplo. Diante dos limites que se nos impem, faz-se necessrio
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circunscrever o tema a um problema especfico. Como, porm, espero contribuir
para a compreenso do conjunto da sua obra, este problema deve envolver os
seus fundamentos e, portanto, convm que o tema no seja perifrico. Ora,segundo o prprio Aron, em 1931 que ele define o tema de suas reflexes: a
condio histrica do homem. Os estudos na Alemanha levaram-no ao contato
com autores e obras de inspirao neokantiana, que partiam do pressuposto que
Kant no conhecia a histria e que sua Crtica da razo pura aplicava-se apenas
s cincias naturais. Da a necessidade de uma crtica da razo histrica,
conforme a expresso cunhada por Dilthey. Haveria em Kant uma tenso entre a
delimitao dos limites do conhecimento histrico e uma teleologia da histria.
Contudo, os neokantianos alemes, concordes na recusa de toda metafsica,
digladiavam-se em torno do que fundamentaria a especificidade da cincia
histrica. Depois de defrontar-se com o que denominou filosofia crtica da
histria, Aron assenta os alicerces da sua filosofia da histria e de toda sua
obra. De fato, ele considera acerca da Introduo filosofia da histria (sua tese
de doutorado e ponto culminante dos seus estudos na Alemanha): ela
"esclareceu o modo de pensar poltico que se tornou depois disso o meu e
assim permanece no outono de minha vida" (Mm, p. 125 [137]). Porm, no se
deve confundir a filosofia a esboada com a filosofia da histria e os grandes
sistemas do incio do sculo XIX (IPH, p. 9). A filosofia da histria concebida
por ele em sua tese de doutorado consiste em uma filosofia da existncia
histrica. Em suas palavras, o livro conduzia a uma
Filosofia histrica que tambm em um sentido uma filosofia dahistria, na condio de definir esta no como uma viso panormicada coletividade humana, mas como uma interpretao do presente oudo passado vinculada a uma concepo filosfica da existncia.(Mm, p. 119)
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histrico e definiam os termos da filosofia poltica aroniana. Contudo essa
soluo denota o contexto muito particular em que suas teses foram escritas.
Com efeito, em suas Memrias, Aron esclarece o pthos sob o qual redigiu aIntroduo. Alm de faz-lo aodadamente, devido iminncia da guerra (Mm,
p. 129), ele pondera: as ltimas pginas da tese testemunham a tenso entre
minhas reaes imediatas, afetivas experincia histrica, e minhas
especulaes. (IPH, p. 128)
Colocados nesses termos, o problema talvez parea demasiado
abstrato. Entretanto, podemos recoloc-lo de tal modo que, dissipando as
brumas etreas da reflexo filosfica, se apresentem mais palpveis seus
contornos concretos. Se consideramos a objetividade histrica; se formulamos
o problema da possibilidade ou impossibilidade de um conhecimento
universalmente vlido, situamo-nos na Europa.6
Porm, so tambm europias a
criao de um mercado mundial e a presuno ou idia de uma histria
universal, esta ltima, legado das Luzes europias. Sob essa perspectiva, o
historicismo tanto a crtica das verdades estabelecidas da ingenuidade ou
arrogncia positivista quanto a manifestao da crise europia. No causa
surpresa, portanto, que essa crise apresentasse um carter gnosiolgico e moral.
Notadamente em Husserl, filsofo judeu, que em 1935, em conferncias
proferidas em Viena e Praga sobre A crise das cincias europias e a
fenomenologia transcendental, considera A crise das cincias como expresso
6Notveis a respeito as consideraes de Hans Georg-Gadamer: Quando o que est em
questo a cincia, ns sempre necessitamos de uma reflexo sobre a Europa, sobre a unidadeda Europa e sobre o seu papel no dilogo mundial no qual entramos. Como quer que se queiradescrever mais exatamente a cincia, e qualquer que possa ser o carter particular da cinciado homem, totalmente inegvel que se trata a da cincia desenvolvida na Grcia, a cinciaque apresenta o carter distintivo da cultura mundial que teve seu ponto de partida naEuropa. CF. Hans-Georg GADAMER, Cidados de dois mundos (1985) In: Hermenuticaem retrospectiva (Vol. III: Hermenutica e filosofia prtica). (Traduo de Marco AntonioCasanova). Petrpolis: Vozes, 2007, p. 9.
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da crise radical da vida na humanidade europia7
mesmo que palavras como
Europa e humanidade deixem-nos perplexos. Nem causa surpresa, que essa crise
se manifestasse tambm em Aron, que frisa o carter histrico dos cdigosmorais e questiona os valores transcendentes. As dvidas quanto objetividade
histrica e sua superao esto atreladas, pois, ao destino da Europa
extremamente duvidoso at o limiar dos anos 1990, pois, dividida, no poderia
fazer frente aos dois super-Estados.
Podemos considerar, por conseguinte, que o cerne da teoria da histria
aroniana constitudo por dois elementos: a demarcao dos limites da
objetividade histrica e a exigncia de superar o relativismo que tais limites
implicam. justamente o segundo elemento que distingue a inteno filosfica
de Aron daquela de Weber.8
Porm, se a demarcao de tais limites implicava a
refutao do positivismo, ento dominante nas universidades francesas, tambm
poderia tudo dissolver no relativismo e mesmo no niilismo. De fato, como na
investigao histrica, no possvel pretender que o conhecimento seja uma
simples cpia do objeto, nela intervm a subjetividade do historiador que jamais
um sujeito transcendental. Coloca-se portanto a necessidade de determinar o
papel da subjetividade do historiador na construo do mundo histrico.
Entretanto, se praticado irrefletidamente, a ponderao do carter subjetivo do
conhecimento histrico precisamente o que poderia precipitar a teoria do
7Trata-se do ttulo da primeira parte da obra que rene as conferncias sob o ttulo
mencionado. CF. Edmund HUSSERL, La crise des sciences europennes et la philosophietranscendantale. (Traduit de lallemand et prefac par Grard Granel). Paris : Gallimard,1976.8
Cf. Sylvie MESURE, Note pour la prsente dition In: Introduction la philosophie delhistoire. Essai sur les limites de lobjectivit historique. Nouvelle dition revue et annotepar Sylvie MESURE. Collection Tel, n. 58. Paris: Gallimard, 1986; pp. I-X, passim. N.BAVEREZ, Raymond Aron: un moraliste au temps des idologies. Paris: Flammarion, 1993; p.143.
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conhecimento histrico de uma tese objetivista em uma anttese subjetivista e
relativista, e finalmente ctica.9
Inconveniente particularmente temerrio diante
da ameaa de uma guerra para a qual a Frana no estava preparada.
Todavia, alm de estabelecer os fundamentos da sua obra, a tese de
Aron coloca um problema cuja soluo o acompanhar at seus ltimos dias.
Com efeito, a crtica da razo histrica aroniana coloca os limites da
objetividade histrica entre margens estreitas: de um lado, os limites da
objetividade histrica, de outro, os limites do relativismo histrico. Assim, Aron
ensaia formular uma epistemologia da Histria simultaneamente antipositivista e
anti-relativista.10
Porm, como o prprio Aron observa em suas Memrias, a
obra no atingiu o equilbrio esperado:
A construo do universo histrico, tal como eu o descrevia, noimplicava tanto relativismo quanto freqentemente se me atribuiu(por falta minha, doutra parte). (Mm, p. 122)Depois da concluso das minhas teses, na primavera de 1937 [],eu pensava em uma introduo s cincias sociais que corrigiria orelativismo excessivo imputado Introduction. (Mm, p. 152)
O projeto de corrigir esse excessivo relativismo permaneceu at os ltimos dias
de Aron.11
Entretanto, cabe lembrar que, embora assente-se em uma
epistemologia do conhecimento histrico isto , em uma reflexo sobre a
compreenso e a explicao causal nas cincias histrico-sociais, os limites e a
complementaridade recproca entre ambas , a filosofia da existncia histrica
aroniana uma reflexo sobre a condio histrica do homem, tanto do cientista
9Cf. Sylvie MESURE, De lantipositivisme lantirelativisme. Raymond Aron et le problme
de la relativit historique. Paris: Julliard, Commentaire, Automne 1986, volume 9/numro35, p. 473.10
Cf. Sylvie MESURE, De lantipositivisme lantirelativisme. Raymond Aron et le
problme de la relativit historique. Paris: Julliard, Commentaire, Automne 1986, volume9/numro 35. pp. 471-478.11
Cf. S. MESURE, Op. cit., p. 471.
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quanto do poltico. Isso explica a ausncia em sua tese de um estudo sobre o
mtodo historiogrfico e a recente historiografia francesa. De fato, a
Introduction aux tudes historiques de Langlois e Seignobos sequer mencionada. No obstante, a tese de Aron representa uma revolta contra o
establishment acadmico francs, particularmente em seu carter positivista e
racionalista dogmtico. Essa revolta contra o positivismo, disseminado na
academia francesa, foi o efeito mais notrio da ascenso de Hitler e do contato
de Aron com o relativismo historicista, dominante nas universidades alems.12
Assim, se a subjetividade do historiador marca a perspectiva com a
qual ele observa o passado, se do presente e das inquietaes quanto ao futuro
que surgem os temas e problemas que levam seleo do objeto, definio do
mtodo de trabalho, e mesmo os resultados da pesquisa, como evitar o
relativismo? Como evitar que a prpria Histria seja condenada ao passado uma
vez que a situao mude? Claro est que para resistir ao efeito deletrio do
tempo, para manter-se atual, o conhecimento histrico deve ter algo de perene.
Ento cabe a pergunta: em que medida a obra de Aron marcada pela situao
em que produzida? Em que medida ela resistiu s transformaes que se
processaram no mundo desde o final do sculo XX? Para responder a essas
questes preciso examinar sua obra e o contexto em que ela foi produzida.
Ora, Aron via o sculo XX como extremamente belicoso. De fato, a guerra, mas
12A esse respeito sujestiva a resenha de Marrou : Votre tche est facile dfinir: liquider le
positivisme, retrouver l'originalit de la connaissance historique. Je sais bien que lesthoriciens de l'histoire scientifique, Langlois-Seignobos par exemple, se sont toujoursdfendus en principe d'appliquer sans transposition les mthodes des sciences physico-chimiques. Bien entendu! On ne fait pas de l'histoire avec des prouvettes et une balance!Mais dfaut du dtail concret de la mthode, ils ont emprunt la physique classique sescatgories fondamentales, et son idal de connaissance. L'histoire elle aussi serait une science,objective, valable pour tous, contraignante; objective encore par son mode d'laborationcollective, progressive, procdant par accumulation de dcouvertes partielles etfragmentaires.
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tambm a paz, est no centro de suas reflexes.13
Desse modo, as relaes
internacionais a alternncia de paz e guerra incidem no apenas nas suas
obras histrico-sociais, mas tambm na prpria elaborao da filosofia que asalicera. Com efeito, a dcada de 1930 no marcada apenas pela crise
econmica. A Primeira Guerra Mundial est ainda viva nas runas, nos
mutilados, nas freqentes homenagens aos soldados. E, medida que a dcada
avana, exacerba-se a terrvel ameaa de outra guerra. Porm, h os que diriam
que guerras como aquelas so coisa do passado, ao que os cticos, realistas e
belicistas replicariam que sob esse ponto de vista a obra de Aron no apenas
atual, mas trata de um problema inerente condio humana, o conflito, a
violncia e a guerra.
Todavia, ainda de outro modo o problema do relativismo histrico se
vincula s relaes internacionais. Como, afinal, no se colocar diante da guerra
de uma posio que no seja relativa? O problema da objetividade histrica est
estreitamente vinculado s relaes internacionais. Com efeito, como observa
Aron ao comentar a obra de Rickert, o acordo quanto a valores formais
restringe-se a uma poca ou coletividade e a objetividade do conhecimento
histrico ou limita-se a um grupo consensual de observadores ou depende de
valores universais (PCH, pp. 151-2, passim). Pode-se presumir que haja valores
e interesses comuns quando se trata de estudar a histria de uma nao. Em
13A respeito sintomtico o dilogo de Aron com Jean-Louis Missika reproduzido em O
espectador engajado. Perguntado se sua obcecao pela guerra era uma reao ao seupacifismo dos anos 30, Aron redargiu: "Mais, dites-moi, est-ce que vous savez qu'um desgrandes vnements de cette histoire a t la Premire Guerre mondiale, et un vnementencore plus grande la Seconde?" Lamentavelmente no dispomos do vdeo da entrevista. Cf.R. ARON, Le Spectateur Engag: entretiens avec Jean-Louis Missika et Dominique Wolton.Paris: Juliard, 1981; p. 218. Sobre o pacfismo de Aron ver tambm: Jean-Franois SIRINELLI,Deux intellectuels dans le sicle, Sartre et Aron. Paris: 1995; pp. 55-76. Raymond Aronavant Raymond Aron Vingtime Sicle. Revue dhistoire, Anne 1984, Volume , Numro 1.Tambm disponvel no endereo: http://www.persee.fr/showPage.do?urn=xxs_0294-1759_1984_num_2_1_1666, acessado em 10 Jan 2008.
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alguns casos, o interesse mesmo imposto. Porm, quando se trata da histria
das relaes internacionais, o conflito e a multiplicidade de interesses se
impem. Em outras palavras, a superao do relativismo histrico remete possibilidade de uma Histria universal, ou ainda possibilidade de um
conhecimento histrico de fenmenos circunscritos no tempo e no espao de um
ponto de vista universalmente vlido. Independentemente de sermos cticos
quanto a tal possibilidade, o problema inevitavelmente apresenta-se quando se
trata de debater os critrios de soluo de qualquer conflito internacional a no
ser que nos resignemos a considerar como nico critrio a fora. Alm disso,
esse vnculo estabelecido pelo prprio Kant, e por isso possvel afirmar que
tanto o problema da objetividade histrica quanto o da Histria universal se
inscrevem em sua obra.
Ora, no obstante seu grande empenho em definir os limites do
conhecimento, Kant no se furtou a fomentar a idia de uma histria
universal. Porm, a ausncia de uma crtica da razo histrica kantiana no se
deve presuno de que Kant no conhecia a histria. De fato, a escola histrica
alem posterior a Kant, mas tambm no consistiu numa cincia consensual
como a Fsica newtoniana.14
O prprio Aron afirma: no existe cincia histrica
cuja validade impor-se-ia de maneira to indiscutvel como a fsica newtoniana
impunha-se aos olhos de Kant. (IPH, p. 53) Entretanto, a ausncia em Kant de
uma quarta crtica deve-se a motivos outros. Em Kant h trs e somente trscrticas, uma para cada faculdade da razo, numa das acepes que esse conceito
adquire em sua obra: faculdade de conhecer, faculdade de desejar e faculdade de
julgar.15
Cada faculdade corresponde a um interesse da razo, expresso nas
14
Tambm notado por Sylvie Mesure. Cf. Op. cit. p. 9-10.15
Gilles Deleuze apresenta uma excelente introduo filosofia crtica kantiana e esclarece osdois sentidos da palavra faculdade, bem como as complexas relaes entre as faculdades. Cf.
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seguintes interrogaes: que posso saber? correspondente ao interesse
especulativo; que devo fazer? correspondente ao interesse prtico; que me
permitido esperar? correspondente ao interesse judicativo. Os trs interessessubordinam-se ao interesse prtico e correspondem interrogao sntese: que
o homem? Todavia, o neokantismo, francs ou alemo, fez uma leitura
desequilibrada da relao entre os interesses da razo. Como nota Henrique C.
de Lima Vaz,
A leitura que se pode chamar cannica da Crtica, consagrada peloneokantismo nos fins do sculo XIX, interpreta a grande obra de Kant
sob o ponto de vista estritamente gnosiolgico, como soluo doproblema do conhecimento, tal como Descartes o formulara e que
acabara por desenhar a linha mestra da filosofia moderna.16
Ao que parece, a Filosofia crtica da histria tal como Aron a examinara padece
desse vcio especulativo. De fato, a releitura da obra de Kant, que restituiria o
primado da razo prtica, s daria seus primeiros passos na dcada de 192017
,
no incidindo na obra de Weber, ltima e maior referncia de Aron entre os
filsofos crticos da histria.
Essa releitura permite reexaminar a concepo kantiana da histria,
expurgando-a do vcio especulativo das interpretaes dos filsofos crticos da
histria. Primeiramente, ao responder questo o gnero humano est em
progresso constante?18
, Kant considera trs casos possveis de concepo
dogmtica da histria: terrorista, eudemonista e abderitista. Aplicam-se ao
futuro, mas podem encerrar o passado em seu discurso. O primeiro considera
Gilles DELEUZE, La philosophie critique de Kant. Paris: P.U.F., 1963. La philosophiecritique de Kant. Lisboa : Edies 70, 2000, principalmente a Introduo.16
Henrique C. de LIMA VAZ, Escritos de Filosofia IV Introduo tica Filosfica. SoPaulo, Edies Loyola, 2006, p. 326.17
Idem, ibidem, pp. 327 e 321, nota 9.18Immanuel KANT, Le conflt des facults In : Opuscules dur lhistoire. Paris: Flammarion,
p. 203.
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que o gnero humano est em perptuo retrocesso; o segundo, em constante
progresso quanto sua destinao moral; e o terceiro, que ela permanece
eternamente no nvel atual, ou em perptua oscilao, voltando sempre aomesmo ponto. Essas trs concepes dogmticas da histria padecem do
equvoco de considerar que o futuro do homem a mera repetio do passado ou
de uma viso inevitavelmente parcial do que se passou.19
A essas concepes
dogmticas da histria, podemos opor a Histria composta apenas
empiricamente (Historie).20
Esta teria o mrito de denunciar os equvocos
dogmticos. Como conhecimento histrico
21
, vale-se da evoluo do mtodoemprico, dos cuidados epistemolgicos, do convvio com as demais cincias.
Sob sua forma emprica, a histria, ou as aes humanas, como todo evento
natural, restringe-se s leis naturais universais.22
Entretanto, relegada ao
mundo fenomenal, a histria como cincia e objeto da filosofia torna-se incerta e
confusa.23
De fato, segundo o prprio Kant, seria at possvel ver algum
aspecto isolado da conduta humana como manifestao de sabedoria, contudo o
cenrio mundial mostra-se em seu conjunto entretecido de tolice, capricho
pueril e freqentemente tambm maldade infantil e vandalismo24
ou ainda,
para usar as palavras postas nos lbios de MacBeth, um conto narrado por um
idiota, repleto de rudo e fria, que nada significa.25
Uma Histria meramente
19Idem, ibidem, pp. 203-9.
20Immanuel KANT, Idia de uma histria universal de um ponto de vista cosmopolita (Edio
bilnge). So Paulo: Brasiliense, 1986, p. 21 (Nona Proposio).21
No h propriamente falando cincia histrica para Kant, pois s h cincia onde hMatemtica. Cf. Alexis PHILONENKO, La thorie kantienne de lhistoire. Paris, Vrin, 1986, pp.8 e 14.22
Idem, ibidem, p. 9 (Introduo).23
Alexis PHILONENKO, Op. Cit., p. 13.24
Immanuel KANT, Idia , op. cit., p. 10 (Introduo).25
William SHAKESPARE, MacBeth, Ato V, Cena V.
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emprica carece, portanto, de significado. O homem condenado a errar pela
Terra, conduzindo a carroa de tudo pela estrada de nada. Sem progresso nem
sentido.
Todavia, alm da Histria emprica (Historie), Kant concebe outra
modalidade de Histria (Geschichte), a Histria universal (Weltgeschichte)
enquanto idia da razo. Como toda idia kantiana, a idia de uma Histria
universal no tem nenhum fundamento emprico. E nem por isso deixa de ser
legtima. Com efeito, ela responde a um interesse prtico da razo: a realizao
histrica da moral. Por isso, a Histria, pice da eidtica transcendental e
horizonte ltimo das analogias encerra dentro de si a questo mais prestigiosa
que governa o criticismo: Que o homem?26
Assim, se na Histria emprica
inevitvel o enredo em aes e reaes tolas e insensatas; se a histria de um
povo muitas vezes o extermnio de outro e o fim da sua histria; se as
civilizaes nascem e morrem sem que se chegue a nenhum consenso quanto ao
seu sentido; para Kant legtimo e mesmo um dever conceber uma Histria
proftica da humanidade que lhe sirva de perspectiva consoladora.27
Um nico
ponto de vista legtimo e confere sentido a esse enredo entretecido de tolice e
loucura. O que nossos descendentes longnquos adotariam: o ponto de vista
daquilo que lhes interessa, ou seja, o que povos e governos fizeram de positivo
e prejudicial de um ponto de vista cosmopolita.28
Desse modo, se apenas a perspectiva cosmopolita que confere
sentido histria humana, ela tambm que deve ser considerada caso os
26Alexis PHILONENKO, Op. Cit., p. 24.
27
Immanuel KANT, Le conflt des facults, op. cit., pp. 208 e ss ; Idia , op. cit., pp.22-4.28
Immanuel KANT, Idia , p. 24 (Nona Proposio).
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documentos estejam h muito tempo perdidos29
, ou em outras palavras apenas
essa perspectiva que preenche legitimamente as lacunas da explicao causal. Se
o conhecimento emprico sempre remonta dos efeitos a suas causas,restringindo-se explicao causal, e esta jamais exaustiva chegando no
melhor dos casos explicao do mais e do menos provvel , a perspectiva
cosmopolita que, na perspectiva kantiana, possibilita a nica compreenso
legtima do processo histrico. Assim como o interesse prtico subordina o
interesse especulativo, a idia de uma Histria universal subordina e orienta a
Histria emprica, preenchendo suas lacunas. Em outras palavras, a objetividade
prtica subordina a objetividade cientfica. A grande dificuldade, desse ponto
de vista, consiste ento em evitar a recada numa concepo dogmtica da
histria. Ao que me parece, o maior engodo disfarar interesses demasiado
comezinhos com o manto sagrado de direitos pretensamente universais a paz e
a democracia ocidental destacando-se entre esses. No que tange a isso, a tarefa
das cincias histrico-sociais denunciar tais sofismas.
Por outro lado, se uma histria universal possvel, aos olhos de Kant
fiel ao esprito da Aufklrung , ela est associada ao destino da Europa, cujas
instituies a representao dos cidados no Estado e a limitao do poder real
moldariam as do restante do mundo. Se a guerra, ou as guerras levam a Europa
ao colapso, impossibilidade da sua reconstruo como foi o destino da
civilizao helnica , a histria universal desmorona com ela. Assim, sosugestivas as consideraes na Introduction sobre a possibilidade de uma
Histria universal. Segundo Aron, h uma tendncia generalizante na filosofia
da histria, pois ela se caracteriza por um duplo esforo para apreciar a
contribuio de todas as pocas s aquisies comuns e conferir a seus juzos
29Idem, ibidem, p. 24 (Nona Proposio).
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um alcance ilimitado e na Sociologia, pois ela tem necessidade de conceitos
que distinguem os traos comuns a todas as pocas (IPH, p. 360). Por outro
lado, ele pondera que a poca em que viviam era aparentemente favorvel tentativa de uma histria universal, pois pela primeira vez, o planeta inteiro
participa de uma sorte comum (IPH, p. 361). Porm, o rigor cientfico
condena essas vises desmedidas e as relaes dos diversos povos permanece
ainda hoje frouxa, sua comunidade pobre, sua unidade parcial e externa (IPH,
p. 361). Alm disso, embora seja possvel falar em uma sorte comum, ou
concordamos com Oswald Spengler e consideramos que as diversas culturas so
incomunicveis30
ou admitimos a existncia ou possibilidade de valores
universais. Porm, Aron pe em dvida esta alternativa. Segundo ele,
Se o Ocidente ainda confiasse em sua misso, escrever-se-ia,coletiva ou individualmente, uma Histria universal que mostraria, apartir de aventuras solitrias, a ascenso progressiva de todas associedades civilizao presente. (IPH, p. 361. Mm, p. 117)
No obstante, nada disso impossibilitaria uma histria universal: O que torna
tal histria impossvel que a Europa no sabe mais se ela prefere o que ela cria
ou o que ela destri. (IPH, p. 360. Mm, p. 117) Os esforos da Sociedade das
Naes para evitar a guerra no pareciam muito consistentes.
Enfim, ao estudar a obra de Aron, parece-me interessante relacionar
sua teoria da histria com a teoria e as anlises das relaes internacionais. Na
impossibilidade de examinar toda ampla gama de questes que o tema suscita,ater-me-ei ao que me parece fundamental: o problema da superao do
relativismo e suas implicaes no estudo das relaes internacionais. Teoria e
30Nas palavras de Aron, dupla tradio ocidental, unidade da histria humana, evoluo
para um fim mais ou menos fixado de antemo, Spengler ope os dois dogmas contraditrios:ciclos inevitveis no interior de culturas solitrias. [] Individualidades desmedidasobedeceriam cegamente a leis transcendentes que, por milagre, um crebro individual saberiadecifrar. (IPH, p. 304; cf. tb. DCH, p. 33)
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histria articulam-se na tentativa de elucid-lo. Porm, se a teoria requer apenas
a ateno aos principais textos que concernem o problema, a histria que lhe
pertinente envolve desde o incio um dilema. De fato, impunha-se que a histriaviva e pulsante do sculo XX reanimasse e enriquecesse a minha reflexo. Ora,
ningum mergulha neste rio impunemente. Como, afinal, selecionar na
caudalosa torrente os acontecimentos relevantes para esse trabalho? Como
organizar de maneira coerente, porm fluda, os vrios fios em firme tecido,
trama e urdidura? Ocorreu-me, ento, que o melhor critrio para destilar esse
riocorrente deveria ser buscado na obra do prprio Aron. O cerne da questo so
as relaes interestatais. Trata-se primeiramente, portanto, de defini-las.
Aron define como traos especficos das relaes interestatais a
"ausncia de tribunal e polcia, o direito de recorrer fora, a pluralidade dos
centros de deciso autnomos, a alternncia e continuidade da paz e da guerra"
ou ainda weberianamente a ausncia de uma instituio que detenha o
monoplio da violncia legtima. Considera ainda que o sistema internacional
homogneo ou heterogneo, de acordo com os regimes internos dos atores
coletivos e que possvel a partir disso definir a especificidade de um
subsistema, caracterizando assim o sistema como bipolar ou multipolar, alm de
homogneo ou heterogneo. Alm disso, essa teoria, segundo Aron, esclarece a
multiplicidade dos fins que os atores podem propor-se e a diversidade dos
interesses em conflito. Ora, o fato de no convir descartar a eventualidade de umconflito violento entre atores polticos obriga a
[] um clculo de foras e, em particular, das foras armadasdisponveis em caso de guerra. [] esse clculo de foras supe terem conta o espao que ocupam os atores, a populao, e os recursoseconmicos de uns e outros, o sistema militar ou a capacidade de
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mobilizao caracterstica de cada um e a natureza das armas." (EP,p. 371)
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Enfim, os sistemas militares e as armas no so objetos transcendentes,
acessveis apenas a uma casta de privilegiados, mas a expresso dos sistemas
polticos e sociais. Temos a, muito sumariamente, os elementos do que Aron
considerava uma introduo teoria das relaes internacionais, ou do que
alguns denominaram sua Sociologia das relaes internacionais.32
Porm, a
narrativa dos acontecimentos julgados relevantes devem tambm pautar-se pelos
"limites da objetividade histrica" demarcados na sua tese de doutorado. A esse
respeito cabe frisar, primeiramente, que todo o conhecimento histrico-socialtem um carter idealtpico que marca a subjetividade do pesquisador e os
valores em jogo. Assim, podemos definir objetivamente rio como um curso
de gua natural, mais ou menos torrencial, que corre de uma parte mais elevada
para uma mais baixa e que desgua em outro rio, no mar ou num lago,33
mas
tambm como uma fronteira, ou uma via de comunicao ou ainda um lao de
unio. Em segundo lugar, toda explicao causal tem carter probabilstico,variando entre o mais provvel e o menos provvel.
Isto posto, apresento no Captulo I, s Margens do Reno, o contexto
histrico no qual Aron redige a Introduction. No se trata, contudo, de exaurir o
tema nem quanto compreenso referente pluralidade de perspectivas
possveis nem quanto explicao que concerne s probabilidades
31Raymond ARON, Quest quune thorie des rlations internationales? foi publicado, em
1967, originalmente em ingls e no mesmo ano em francs. Foi reproduzido em tudespoltiques (EP, pp. 349-72). Disponvel no stio:http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/rfsp_0035-2950_1967_num_17_5_393043ltimo acesso em 25/02/2009.32
Idem, ibidem, pp. 349-72.33Antnio HOUAISS (DIR.), Dicionrio eletrnico Houaiss da lngua portuguesa. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2001.
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retrospectivas. Para selecionar o que julgamos relevante, um critrio se impe.
Esse critrio busco na prpria obra de Aron, o que ele denominou centro de
interesse (DCH, p. 17). No se pense, todavia, que h nesse caso um crculovicioso que explica o contexto pela obra e a obra pelo contexto. Esse vai-e-vm
entre o contexto histrico e a obra constitui o que Aron denominou crculo
hermenutico ao tratar da obra de Clausewitz (PGC I, pp. 20 e ss). Trato para
tanto da origem e destino da Terceira Repblica, ambos ligados Alemanha.
Como contraponto percepo que Aron tinha daquele momento histrico, fao
alguns apontamentos sobre a origem da escola dos Annales e acerca da longa
durao do Reno.. Nos Captulos II e III, analiso sumariamente o problema dos
limites da objetividade histrica e a soluo apresentada por Aron, isto , a
maneira como pretende superar tais limites. No captulo IV, trato da relao do
que Aron denominou a aurora da histria universal (DCH, pp. 305-45) com as
relaes internacionais, tanto no que tange sua teoria como no que concerne
analise da originalidade histrica do ps1945.
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Captulo I
s Margens do Reno
No incio dos anos 1980, Raymond Aron recordava-se, talvez s
margens do Sena, de seus passeios 50 anos antes s margens de um outro rio.
Aps uma profunda crise existencial que se iniciara em 1928, foi s margens
do Reno que, na primavera de 1931, ele teve a iluminao que definiria os
rumos que tomariam seus estudos e sua vida (Mm, p. 53). Meditava, quem
sabe, na ribeira deste rio como na ribeira daquele, no tanto no rio quepassava, mas no que o futuro reserva do que ficou para trs. Pode-se imaginar
que, comparadas s guas tranqilas do Sena, as guas do Reno pareciam mais e
mais revoltas como se o degelo do mais terrvel dos meses colocasse o rio, como
a histria, outra vez em movimento. Ora, o que teria dito o septuagenrio ao
jovem Aron se, como que transportado por um sonho, um encontro entre os dois
fosse possvel? Afinal, meio sculo no passa em vo. Em 1931, se bem que acrise econmica se manifestasse na desacelerao da economia, no pnico dos
especuladores, no aumento do desemprego, o futuro ainda no parecia to
sombrio. O nazismo ainda era apenas uma ameaa. Provavelmente o
septuagenrio alertaria o jovem que uma segunda grande guerra, ainda mais
catastrfica que a primeira, poderia devastar a Europa. Talvez dissesse para
reanim-lo que, se anos sombrios eram possveis e mesmo provveis, tambmpoderia vislumbrar-se um longo perodo de paz e prosperidade e que, portanto,
ele deveria evitar o tom pessimista desesperado e satnico que a argio
de Paul Fauconnet censurara em sua tese (Mm, p. 105). De qualquer modo, essa
curiosidade retrospectiva assemelhar-se-ia a uma redescoberta, quase como se
estivesse diante dum outro (IPH, p. 67; Mm, p. 116).
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Desesperado ou Satnico?
A vida de Raymond Aron praticamente coincide com o que
Hobsbawm denominou a Era dos Extremos. Ora, a vida de Aron tambm
parece como que dividida em dois perodos bastante distintos. Nos anos de
formao, Aron era em sua prpria definio vagamente socialista e fervoroso
pacifista. Embora tenha abandonado seu pacifismo utpico quando se deparou
com Hitler e o nazismo, ele permanece socialista at o imediato ps-Segunda
Guerra, momento em que os contornos do que veio a se chamar guerra fria
ainda no estavam delineados. O adeus ao socialismo de Aron ocorre apenasaps a socializao forada do Leste europeu. em uma conjuntura muito
especfica, portanto, que Aron assume os posicionamentos polticos pelos quais
ele comumente reconhecido. O mundo ocidental caracteriza-se
predominantemente como democrtico com todas as restries e crticas que
possamos fazer a essa democracia e liberal-heterodoxo, no que concerne
organizao da economia; o Estado de bem-estar social e os direitos sociais eeconmicos avanam; os pases semiperifricos se industrializam e
modernizam-se; a Europa ocidental recupera-se da catstrofe com o auxlio dos
Estados Unidos.
No obstante, pouco tempo depois da morte de Aron, a situao se
altera por completo: com o desabamento do muro de Berlim e da URSS, avana
o neoliberalismo; regredimos ortodoxia anterior ao crash de 19291; os direitos
econmicos so reduzidos quando no aniquilados; os limites da democracia
meramente formal apresentam-se cotidianamente mais estreitos, como a cada dia
reduzem-se as chances de reformas progressistas. Como nota Hobsbawm,
1Porm, a crise de outubro de 2008 inaugurou o perodo de revises dessa ortodoxia.
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Na dcada de 1980 e incio da de 1990 , o mundo capitalista viu-senovamente s voltas com problemas da poca do entreguerras que aEra de Ouro parecia ter eliminado: desemprego em massa,depresses ciclcas severas, contraposio cada vez mais espetacular
de mendigos sem teto a luxo abundante, em meio a rendas limitadasde Estado e despesas ilimitadas de Estados. [] O colapso dosregimes comunistas entre Istria e Vladivostok no apenas produziuuma enorme zona de incerteza poltica, instabilidade, caos e guerracivil, como tambm destruiu o sistema internacional que deraestabilidade s relaes internacionais durante cerca de quarenta
anos.2
Ora, no se trata de enveredar por um tema to polmico e carregado de paixes,
mas apenas de registrar as profundas transformaes que ocorreram no mundo
nos ltimos 20 anos para melhor circunscrever o mundo ao qual Aron se reporta.
Na iminncia da Segunda Guerra Mundial, isto , em meio
catstrofe, Aron redige e defende sua tese de doutorado. Em suas Memrias, 45
anos depois, ele aponta que ela define a sua maneira de conceber a poltica: o
livro inteiro esclarecia o modo de pensamento poltico que se tornou desde ento
o meu e assim permanece no outono de minha vida (Mm, p. 125). Asinquietaes, ou antes a angstia, de prever a guerra e nada poder fazer para
impedi-la marcam a sua concepo da histria. Porm, para compreender o
ambiente intelectual e poltico em que essas reflexes se inscrevem, preciso
retroceder no tempo. De fato, a dcada de 1930 foi marcada na Frana por uma
crescente angstia dos intelectuais. Mesmo antes de deflagrada a guerra, havia a
percepo bastante difundida entre os cleros de que se vivia a decadncia da
Frana. Segundo Tony Judt, A noo de que a Repblica e o mundo que ela
representava estavam podres e condenados runa era amplamente aceita.3
2E. HOBSBAWM, Era dos Extremos: o breve sculo XX 1914-1991. [Traduo Marcos
Santa Rita]. So Paulo: Companhia das Letras, 1998; pp. 19-20.3 T. JUDT, Passado imperfeito um olhar crtico sobre a intelectualidade francesa no ps-guerra. [Traduo de Luciana Persice Nogueira]. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008; p. 30.Sobre a angstia dos intelectuais no apenas franceses mas europeus em geral no
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De fato, a economia francesa soobrava desde 1930.4
Essa profunda
crise manifestou-se nas inquietaes de muitos intelectuais franceses no
entreguerras e culminou na prpria Segunda Guerra Mundial, mas, maisimportante, teve reflexos importantes na academia francesa. Sugestiva a esse
respeito a anlise que Lucien Febvre faz de uma obra de Lon Brunschvicg
(1869-1944), coincidentemente orientador de tese de Raymond Aron.
Brunschvicg ministrara na Sorbonne, entre dezembro de 1939 e maro de 1940,
isto , em plena drle de guerre (03/09/1939-09/04/1940) um curso intitulado
Esprit Europen, publicado em 1947. Iniciou-o com as seguintes palavras: Eu
me proponho tratar do esprito europeu assunto de ordem puramente
especulativa, e cujo estudo ser mantido nos limites de uma anlise estritamente
filosfica. Depois de criticar o fato de Brunschvicg furtar-se a definir as
palavras do ttulo, particularmente numa poca em que elas adquiriam um
carter to equvoco, Febvre vaticina, no sem muita ironia, o destino da
gerao da qual Brunschvicg era um dos prceres:
Mais vale dizer que este pequeno livro , sua maneira e em seuslimites, uma dessas obras-primas da velha Universidade, que talvezno tenhamos mais muitas ocasies de acolher e de louvar, pois a suagerao se vai, seus autores possveis ela vai com grande pompa.Gerao ainda fortemente nutrida nas letras, nas boas letras gregas elatinas. Gerao bem enquadrada, no incio, por mestres que elatrabalhou muito naturalmente para ombrear e aos quais ela pode darcontinuidade sem aflio nem ruptura, nem verdadeira crise parafalar a linguagem de Lon Brunschvicg: pois de Lachelier [1832-
entreguerras, ver tambm J-B DUROSELLE, L'Europe Une Histoire de ses peuples. Paris:Hachette, 1990; pp. 547-50.4
Considerando o ndice 100 para o Produto Interno Bruto da Frana em 1929, ele atingir onvel mais baixo da dcada em 1932, tornando a subir para voltar a 100 em 1939. Embora oimpacto da crise tenha sido menor na Frana, a recuperao da economia francesa bastantelenta a mais lenta dos pases desenvolvidos. Cf. . Dominique BORNE et Henri DUBIEF, op.cit., pp. 20-35.
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1918] e de Lagneau [1851-1894] Boutroux [1845-1921] e, acol,quais causes profundas de ruptura ou de incompreenso!
5
Na drle de guerre, j se ouviam os estrpitos dos alicerces: o castelo de marfim
estava ruindo. Porm, no apenas a filosofia descurada da histria padeceria. O
colapso da III Repblica arrastaria ao fundo do abismo algumas das mais slidas
instituies francesas, e entre elas a prpria Histria.
A obra de Aron gravada, pois, pela decadncia da Terceira
Repblica; a angstia e o pessimismo dos anos 30 impregnam sua concepo de
histria e desse modo reverberam em sua obra posterior. Contudo, no bastadizer que a obra de Aron sofre o estigma da decadncia da III Repblica. Depois
do colapso em julho de 1940 e da guerra nos anos subseqentes, s restava
Frana renascer no ps-guerra. Assim, a catstrofe no marca apenas a obra de
Aron. Toda a histria da Frana ps-45 marcada pelo declnio da III
Repblica. Tudo que estava a ela associado desmoronou com a dbcle. A
compreenso da obra de Aron depende, portanto, da compreenso da III
Repblica.
A instabilidade permanente e a decadncia no entreguerras conferem
III Repblica um carter peculiar. A tenso obstinada, os nimos exaltados, as
polmicas crispam os ossos, msculos e tendes, e afloram pele. Dois
momentos so os mais significativos a esse respeito: o Affaire Dreyfus e os
decadentes anos 30. Talvez a Frana s tenha vivido um ambiente mais
impregnado de intrigas, no ps-1945 com as polmicas pr e antibolcheviques
no imediato ps-guerra. Porm, na questo territorial que essa crise assume um
carter abissal. nas fronteiras que o paroxismo apresenta-se como crise de
5L.FEBVRE,Esprit europen et phiosophie: un cousr de Lon Brunschivicg In: Combats
pour l'Histoire. Paris: Armand Collin, 1992;op. cit., p. 290.
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identidade. Pelo Tratado de Frankfurt, de 1871, a Frana cedia a Alscia-Lorena
Alemanha. Durante 48 anos, o territrio permaneceria sob domnio alemo at
que o Tratado de Versalhes o restitusse Frana. Deve-se notar que importantespersonagens da intelectualidade francesa eram ligadas regio: Lucien Febvre
nasceu em Nancy, capital da Lorena, e com Marc Bloch lecionou, a partir de
1919, na Universidade de Estrasburgo, na Alscia, quando ela foi restituda
Frana, e a fundaram a revista dos Annales. Ambos alm disso, defenderam a
Frana na Primeira Grande Guerra. Fernand Braudel nasceu em Lumeville-en-
Ornois, vilarejo situado na Meuse, tambm na Lorena. A famlia do prprio
Aron era oriunda da Lorena. Seu av era um negociante de tecidos que abrira
um atacado em Rambervillers, aldeia Lorena, e depois se transferira para
Nancy.6
A Alscia e a Lorena no eram apenas provncias amputadas da
Frana, elas impunham a reflexo do que era a Frana e do que era a Alemanha.
De fato, como nota Aron, os partidrios de uma concepo fatalista da histria
procuravam em Bismarck as origens da catstrofe alem e um ancestral de
Hitler. Essa interpretao condenada por Aron. Em suas palavras, Eu vejo
mal em nome de qu nos condenaramos a unidade alem seno, vtimas da
iluso retrospectiva de fatalidade, tomando por necessrias as seqncias
efetivas dessa unidade. (PGN I, pp. 19-20) De qualquer modo, o xito da
realpolitik bismarckiana permitiu a unificao Alem e levou-a a suplantar aFrana no cenrio poltico europeu. Entretanto, das vrias conseqncias
decorrentes da vitria alem em 1871, apenas uma impossibilitava a sua
reconciliao com a Frana: a anexao da Alscia-Lorena. De fato, perguntava-
se Aron um sculo depois, A anexao da Alscia-Lorena no abria um fosso
6Cf. R. Aron, Mmoires, op. cit., p. 12; Memrias, p. 14. N. BAVEREZ, Raymond Aron. Paris:
Flammarion, 1993; pp.23 e ss.
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entre a Alemanha e a Frana que nada mais podia preencher? No semeia os
germes de um dio que devia um dia ou outro explodir? (PGNI, pp. 25)
Assim, podemos atribuir uma significao mais profunda recordao
de Aron sobre o momento em que define os rumos da sua carreira intelectual e
da sua vida como um todo. O fato que o Reno dava margem h muita
meditao ... e polmica. Podia-se definir o Reno como fronteira simblica entre
dois mundos diametralmente opostos: de um lado a Terceira repblica francesa,
decadente, democrtica, pacifista; do outro, a o Terceiro Reich alemo,
totalitria, ascendente, belicosa. No passado, uma formao francesa, idealista,
positivista, anistrica; pela frente, uma formao alem, histrica, crtico-
historicista, criticista em suma, aroniana. Porm, no se pense que essa
meditao s margens do Reno uma idiossincrasia de Aron. Ao contrrio, o
Reno a pedra angular da velha Europa ocidental e, provavelmente, guarda
em suas margens o seu destino e est no centro da narrativa que segue. O Reno
enseja, portanto, uma reflexo no apenas sobre toda a histria consecutiva, mas
tambm sobre o que vem a ser a prpria Histria. A decadncia da III Repblica
engendrar tanto a filosofia da existncia histrica aroniana como tambm as
mutaes na Historiografia francesa.
A escola metdica representava a Histria oficial da Terceira
Repblica e o destino de ambas estavam atrelados. Entrementes, s margens doReno, o futuro da Historiografia francesa comeou a ser moldado logo aps o
Tratado de Versalhes. Marc Bloch e Lucien Febvre estreitaro sua amizade num
posto avanado da ptria francesa: a Universidade de Estrasburgo, na Alscia.
Tratava-se de renacionalizar essa instituio, ora francesa, ora alem. Como o
seu prprio stio registra, Em 1871, a cidade anexada pela Alemanha. O
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Kaiser quer fazer de Estrasburgo uma vitrine da excelncia alem. Ele cria por
isto uma universidade que deve servir de modelo.7
a que uma nova
concepo de histria e porque no dizer? de ptria comear a ser gestada. sugestivo que, segundo o prprio Febvre, depois de defender sua tese de
doutorado (Rois et serf, un chapitre d'histoire captienne, publicada em 1920),
Bloch hesitasse quanto ao rumo a dar a sua carreira acadmica. Subjacente s
influncias multidisciplinares do filsofo durkheimiano Henri Berr e do
gegrafo Vidal de la Blache, entre outros, havia a insatisfao com os
historiadores de gabinete e com a Histria vnementtielle. Segundo Febvre,
Bloch era propenso a voltar-se para a histria real: [] a geografia, era o ar
puro, o passeio no campo, o retorno com uma braada de jacintos ou de digitais,
os olhos vivos, a mente aberta e o gosto do real assaltando o abstrato.8
Ora,
aps assistir ao eloqente discurso de Henri Pirenne sobre Histria comparada,
Bloch intui que a soluo de muitos problemas de Histria francesa se
encontrava fora da Frana. notvel que o coroamento desse percurso faa de
Bloch um historiador no mais francs, mas europeu. Como notou Febvre, A
sociedade feudal s poderia ser compreendida no quadro europeu:
em roda evidncia, a histria das sociedades medievais da qualresultou a nossa s poderia ser estudada no quadro europeu. precisamente na Idade Mdia que nasce a Europa, no sentido humanoda palavra, pela aproximao de elementos nrdicos, que Romadeixara fora de sua atrao, e de elementos mediterrneos
dissolvidos, desagregados pela queda da Europa (sic).9
Assim, os Annales de Strasbourg, posteriormente transferido para Paris, surgem
no bojo de uma nova concepo de histria, de Frana e de Europa. Contudo, se
7Disponvel no stio:
http://www-umb.u-strasbg.fr/c1.php3?Id=001&cadre=c1Acessado em 11/04/2008.8
L.FEBVRE,Survenirs d'une grand histoire: Marc Bloch et Strasbourg In: Combats pourl'Histoire, op. cit., p. 394.9
Idem, ibidem, p. 400.
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a Histria estava sofrendo uma surpreendente mutao, os Annales ainda
estavam longe da consagrao, a qual s viria depois da Segunda Guerra
Mundial. A escola metdica ainda reinaria sobranceira at os estertores daTerceira Repblica. No causal que as crticas mais contundentes de Febvre
velha escola sejam publicadas a partir da decadente dcada de 30; menos ainda
que Bloch tenha escrito a Apologie pour l'Histoire logo aps a dbcle de 1940.
Embora a escola metdica seja identificada mais freqentemente com
Langlois e Seignobos, autores da Introduction aux tudes historiques, Ernest
Lavisse que melhor representa a Histria oficial durante a Terceira Repblica.10
Franois Dosse o apresenta como o evangelista da nao.11
Segundo Dosse, na
obra de Lavisse,
A Frana ento uma, integral, a mesma desde Vercingetorix atValmy, e a narrativa histrica conta batalhas hericas nas quaismuitos sacrificaram a vida pela ptria. A Terceira Repblica apresentada como o melhor dos mundos, e a partir dela so julgados
os regimes anteriores.
12
Essas consideraes lembram as palavras de Febvre sobre a Histoire sincre de
la nation franaise de Seignobos: Eis Vercingetorix sobre o Mont-Auxois. []
Um heri nacional! Para os crdulos! E o que quer de ns essa inveno de
10Sobre a Escola Metdica, Langlois, Seignobos e Lavisse ver: Guy BOURDE et Herv
MARTIN, Les coles historiques. Paris Seuil, 1981; pp. 137-70. Jean Maurice Bizire et PierreVayssire. Histoire et historien Antiquit, Moyen ge, France moderne et contemporaine.Paris: Hachette, 1995; pp.155-67.11
Franois Dosse confere sua reflexo sobre a identidade nacional do discurso histricofrancs o seguinte subttulo: O evangelho nacional: Ernest Lavisse . Cf. F. DOSSE, Aidentidade nacional como forma organizadora do discurso histrico na Frana nos sculos
XIX e XX In: A histria prova do tempo Da histria em migalhas ao resgate do sentido.[Traduo de Ivone Castilho Benedetti]. So Paulo: Editora da UNESP, 2001; p. 16.12
Idem, ibidem, p. 18.
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patriotas retrospectivos? [] Os Gauleses jamais formaram uma nao
[].13
Alm de ser o evangelista da nao, Lavisse padecia como Seignobos
e Langlois, do vcio factual. Nas palavras de Bloch:
Fiel espelho da escola francesa, cerca de 1900, a Histria da Franade Lavisse avana ainda tropeando de reino em reino; a cada mortede prncipe, narrada com o detalhe que se concede aos grandes
acontecimentos, ela marca uma pausa.14
Ora, justamente na Histria das relaes internacionais que, ao que parece, os
vcios da histoire vnementtielle parecem mais evidentes. notvel a esse
respeito as crticas de Febvre Histria Diplomtica. Segundo ele,
Eles [os redatores da Histoire diplomatique de l'Europe],entrincheirados atrs de um preconceito simples, o de no utilizarjamais seno os documentos diplomticos propriamente ditos:aqueles das compilaes oficiais, azuis, cinzas, amarelos ouvermelhos; duas das grandes colees nacionais, a alem, e a inglesana falta da francesa, recente demais; juntemo-lhes as
correspondncias e as memrias dos atores e os testemunhos dosacontecimentos; eles se ocupam apenas com a crosta aparente de seuglobo, de sua esfera poltico-diplomtica preciso lastim-los?
Eles, no. Os homens, no. Uma tradio, talvez.15
A oposio Histria factual e o desdm pelos seus heris ntida. Talvez a
decadncia da Terceira Repblica tenha conferido mutao da Historiografia
um carter mais crtico e polmico do que teria ocorrido se fossem dias mais
tranqilos e felizes; isto , poderia ter passado sem ruptura. Ao que parece, o
desprezo pela histria factual tinha como paralelos o desprezo pelos heris da
13L. FEBVRE, Ni histoire these ni histoire manuel. Entre Bernda et Seignobos In:
Combats pour la Histoire, op. cit., p. 89.14
Marc BLOCH, Apologie pour l'Histoire ou Mtier d'Historien In: L'Histoire, la Guerre la
Rsistance. Paris: Gallimard, 2006; p. 972.15L.FEBVRE,Histoire ou politique (Contre l'Histoire Diplomatique en soi) In: Compats
pour l'Histoire, op. cit., p. 62.
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histria e pela histria do tempo presente. O desprezo pela poltica foi um efeito
colateral da eterna decadncia da Terceira Repblica.
Os historiadores abjuram os polticos, militares e diplomatas e
mergulham na longa durao. Sugestiva a esse respeito a tese de Jos Carlos
Reis sobre a evoluo da escola dos Annales. Segundo ele,
portanto neste contexto de derrotas militares, polticas eindividuais dos chefes polticos que se elabora este tempohistrico desacelerado e que desconfia dos militares, dos polticos edos grandes indivduos. [] Minha hiptese que Braudel vai
pesquisar as razes dessa derrota [1914-1945] l onde a Europa seanunciava e se constri como uma grande potncia: o mundomediterrnico do sculo XVI. [] Foi no sculo XVI, e no no XX,que a Europa comeou a deixar de ser o centro da histria , quando oMediterrneo foi substitudo pelo Atlntico, os Turcos no o atacarammais e o Leste tornou-se desconhecido. [] Pondo no sculo XVI oincio do declnio da Europa, ele o constitui enquanto um processo delonga durao e no o resultado de acontecimentos dramticos
vividos em meio sculo.16
sugestivo tambm que, aps um longo desvio, a Historiografia francesa volte-
se novamente para a poltica e, como nota Dosse, Braudel se debruce sobre a
identidade da Frana.17
Em suma, nos turbulentos anos 1930, histria e
historiografia, Frana e Europa eram temas controversos, e o Reno no fluiu
alheio s polmicas.
16Cf. Jos Carlos REIS, Philosophie et historiographie: Le lieu pistmologique et le temps
historique des annalles. Thse de doctorat en Philosophie prsente l'Institut Suprieur dePhilosophie de l'Universit Catholique de Louvain. Louvain-la Neuve: 1992; p. 415. Texto
reproduzido em Jos Carlos REIS, Nouvelle histoire e tempo histrico A contribuio deFebvre, Bloch e Braudel. So Paulo: tica, 1994; p. 93.17
Cf. F. DOSSE, A identidade nacional op. cit, p. 31.
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De Caminhos e Fronteiras
No final dos anos 1920, para comemorar seu 50 aniversrio a Socit
gnrale alsacianne de banque (fundada em 1881 em Estrasburgo, capital da
Alscia) decidira publicar um livro sobre o Reno, tema ento muito espinhoso,
j que, ao trmino da Primeira Grande Guerra, a Alscia como tambm a Lorena
foram restitudas, aps quase 50 anos, Frana e que a Rennia alem fora
recentemente ocupada pelo exrcito francs para forar a Alemanha a pagar as
reparaes da mesma guerra. Lucien Febvre foi incumbido de redigir a parte
histrica da obra. 18 Seu propsito ser dissipar trs mitos: o determinismopseudogeogrfico das fronteiras naturais; o racismo pseudocientfico to em
voga na poca; e o mito dinstico, to caro Histria diplomtica.19
Reno. A palavra significa gua que corre; curso d'gua. Rio
Reno , portanto, uma expresso redundante, ou, antes, recorrente. :
na histria de um rio, heraclitianamente, tudo flui, e rio e Histria se confundem.E a histria do Reno apresentar-se- a Febvre como a ocasio para questionar o
prprio ofcio da Histria e compar-la Geografia. Para o Gegrafo, ntida
torna-se a imagem de uma grande via renana, vales, corredores e campos
alternados, que cria entre os pases laos de solidariedade e unio. Uma das
reas da Terra onde mais vivamente fermenta o trabalho pacfico, a labuta
18L.FEBVRE,Reno: Histria, mitos e realidade. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2000.
A primeira edio de 1931. O livro reeditado com vrias alteraes em 1935. Sobre ahistria do livro e A luta pelo Reno , cf. Peter SCHTLER, Apresentao In: L.FEBVRE,Reno, op. cit., pp. 25-33.19
Esses temas so retomados brevemente na Aula Inaugural apresentada no Collge deFrance, em 13 de dezembro de 1933, e publicada originalmente na Revue de Synthse, em1934. L.FEBVRE,De 1892 1933 Examen de conscience d'une Histoire et d'un historienIn: Combats pour l'Histoire, op. cit., pp. 9-10.
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produtiva da humanidade.20
O historiador, por sua vez, tem a tarefa rdua de
confrontar os livros dos seus predecessores que se obstinam a ver somente uma
fronteira a conquistar ou conservar. [] A tragdia que vivem, eles a imaginameterna.
21A Histria do Reno apresenta-se a Febvre como a frente de batalha
contra a Histria historizante para retomar a expresso forjada por Henri Berr
e, em particular, contra a Histria diplomtica em si.22
Trata-se para Febvre de substituir uma histria desumana, pesada de
mortes e guerra, por outra, extremamente humana de trocas, de emprstimos,
de contatos intelectuais, religiosos ou artsticos.23
Ele busca as origens do Reno
nos primrdios da ocupao da Europa central para demolir o mito do rio
fronteira. Mito muito em voga numa poca em que havia uma luta pelo Reno,
e que remontava a ningum menos que Jlio Csar. Como nota Febvre, Csar
observa em seus Comentrios que o Reno separa a Glia da Germnia.24
Todavia, o primeiro uso que os homens fazem do rio o de uma via de
transporte e comunicao, o bom caminho: um fio condutor que se estende
direto, fcil de seguir, entre a plancie do P e os pases do Norte.25
Assim, o
que, desde a origem, clareia como um raio luminoso o destino do Reno que ele
foi forjado pelo homem [] para que fosse no mais uma barreira, mas um
caminho. Um lao, no um fosso.26
Eis o Reno, portanto. Passagem por onde
20L.FEBVRE,Reno, op. cit., pp. 63 e 65.
21Idem, ibidem, pp. 65-6.
22Compare-se a esse respeito as obras de Febvre sobre o Reno com os combates contra a
Histria diplomtica. Cf. L.FEBVRE,Histoire ou politique (Contre l'Histoire Diplomatiqueen soi) In: Combats pour l'Histoire. Op. cit., pp. 62.23
L.FEBVRE,Reno Op. cit., p. 66.24
Idem, ibidem, pp. 80 e ss.25
Idem, ibidem, p. 74.26
Idem, ibidem, p. 79.
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desfila um sem nmero de tipos humanos. Primeiramente, celtas, lgures, indo-
europeus, que desde logo Febvre apoiado na lingstica, e consonante com a
atual genmica esclarece que no eram raas, opondo-se ao discurso nazistae pseudocientfico ento batido e rebatido.
27Seguem-se diversas tribos: gauleses,
romanos, francos, frsios, chates, usipianos, tencteros, tongrianos, cugrnios,
sunucos, vangiones, tribocos, bios, trevianos e lngones.28
Depois, vndalos,
alanos, suevos, visigodos, ostrogodos 29
E em cada movimento, um trabalho
de mestiagem, de amalgamento recomeava melhor, prosseguia com a ajuda
de elementos em parte novos.
30
Tal era a miscigenao, o amlgama, que omelhor expressar-se como os romanos que, prescindindo da palavra ou do
conceito de raa, se referiam s naes dizendo apenas nomem Latinum,
nomem romanum.31
Tambm por isso Febvre louva a Tcito por no falar em
gauleses e germanos, mas em cisrenanos e transrenanos.32
No obstante tamanha heterogeneidade, Roma estabelece no Reno um
regime coerente, apazigua suas margens e aumenta sua navegabilidade, criando
as condies para um comrcio em grande escala no qual no faltaram
banqueiros e cambistas. Assim, gentes e mercadorias de toda parte afluam ao
Reno, graas uma civilizao ecumnica geradora de poderosas empresas de
alcance mundial.33
Mrito tambm de Roma a criao das cidades renanas,
fora verdadeira de regies que, durante sculos, s participaram da civilizao
27Idem, ibidem, p. 87.
28Idem, ibidem, p. 119.
29Idem, ibidem, p. 120.
30Idem, ibidem, p. 89.
31Idem, ibidem, p. 87.
32Idem, ibidem, p. 119.
33Idem, ibidem, p. 102.
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atravs desses poderosos organismos urbanos.34
A vida dessas cidades, um
pulular de homens vindos de toda parte sob a cobertura da unidade imperial,
era animada pelo exrcito e pelo fausto dos administradores romanos.
35
Nos doisprimeiros sculos de nossa era, nas duas margens do Reno estende-se a
civilizao romana. Avanando ao Oriente, o limes, uma srie de povos
germnicos mais ou menos romanizados e agregados ao Imprio.36
Limite
lingstico mas no corte de uma civilizao, nas palavras de Febvre,
colonial.
Eis a grande palavra esquecida. Nessas povoaes do Reno, todivididas, to heterogneas pelo solo, pelas relaes, peloshabitantes , Roma conseguiu estabelecer um regime coerente. []
[e] uma cultura uniforme.37
E, subitamente, as invases brbaras. E, embora constitusse um regime coerente
e uma cultura uniforme, o mundo romanizado parece vido de barbarizar-se.38
E a conjuno prossegue com elementos novos. Segundo Pirenne, a converso
dos Godos ao cristianismo trazido de Bizncio por Ulfila, seu chefe
contribuiu para a assimilao dessas primeiras hordas de povos germnicos.39
Estes povos ocupam o Reno e os contornos pouco ntidos de uma fronteira
lingstica se esboam: e essa fronteira que avana e recua que vai comandar
34Idem, ibidem, p. 102.
35Idem, ibidem, p. 109.
36Idem, ibidem, p. 116.
37Idem, ibidem, p. 119. Se tomssemos essas palavras de Febvre e as colocssemos no auge
da crise colonial, haveria certamente reaes febris. O desenvolvimento desse tema, contudo,nos levaria muito longe do Reno.38
Idem, ibidem, p. 112.
39 Henri PIRENNE, Historia de Europa. Desde las invasiones al siglo XVI. Mxico: Fondo deCultura Econmico, 1992; pp. 19 e ss. Cf. tb. Jean-Baptiste DUROSELLE, L'Europe UneHistoire de ses peuples. Paris: Hachette, 1990; p. 118.
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durante sculos a vida profunda das regies renanas.40
Entrementes, Carlos
Magno estreita os laos com a Igreja e promove o renascimento dos estudos
latinos. O Reno que cortava a regio central do Imprio Franco transforma-se na frente de batalha e depois na base de apoio de uma reconquista espiritual
mas tambm secular. Ao cristianizar os brbaros, a Igreja estava criando a
Alemanha.41
Desse modo, segundo Febvre, o vocbulo Germnia foi
incorporado lngua administrativa de Roma e da Igreja: Bem antes que uma
Alemanha poltica fosse criada, ela fundava por assim dizer, uma Alemanha
eclesistica [].
42
Porm, na mesma poca em que a palavra Europa (de usomuito raro at ento) passa a designar a unidade ocidental crist
43, o Tratado
de Verdun definia, em 843, os termos da partilha do Imprio Franco entre os
netos de Carlos Magno, filhos de Luis, o piedoso, demarcando as terras a leste e
oeste do Reno. Os mistificadores buscam a, mais uma vez, uma explicao para
uma suposta hostilidade hereditria entre a Frana e a Alemanha.44
Assim, trs influncias ou fermentos predominariam no Reno:
Roma, o germanismo e a Igreja. Porm, alerta Febvre, tais fermentos j no
eram puros, mas apresentavam-se adulterados e prontos para outras misturas.45
E
nota que tendncia da Igreja para criar sociedades ecumnicas, indiferentes
s fronteiras, somava-se a tendncia eterna do Reno a contribuir para o
40L.FEBVRE,Reno, Op. cit., p. 126.
41Idem, ibidem, p. 137.
42Idem, ibidem, p. 137.
43J-B. DUROSELLE, LEurope, op. cit. p. 156.
44Segundo o historiador alemo Heinz-Otto Sieburg a noo dos franceses como inimigos
hereditrios surge entre os alemes apenas em 1840, e dos alemes entre os franceses, em
1866. f. J-B. DUROSELLE, LEurope, op cit., p. 157 ; L.FEBVRE,Europa, op. cit., pp.112 e ss.45
L.FEBVRE,Reno Op. cit., p. 144.
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amlgama de diversos fermentos. Pois no eixo renano, misturavam-se alemes a
italianos e franceses, e, por meio destes, o Reno beneficiava-se do contato com
outro eixo e matriz comum do velho mundo: o Mediterrneo, em cujas guas asia e a frica vieram comungar com a antiga Europa.
46Assim, mais uma
vez, o Reno no se resigna a ser apenas um limite [] No contato entre
civilizaes diversas, ele quer ser um cruzamento.47
Na opinio de Febvre, contudo, um perigo havia. O risco de que os
dinastas saxes, que tomaram o poder na Alemanha, se desviassem das
tendncias romanas e das lies carolngias. Porm, a converso de Oto I ao
cristianismo afastou essa ameaa e fortaleceu o esprito renano de oposio e
resistncia ao Leste.48
Em Roma, a 2 de fevereiro de 962, o papa Joo XII
coroava Oto imperador. Ento, em uma Europa recm-sada da decomposio
do imprio carolngio, feito das runas do edifcio que cara em 800, um novo
Carlos Magno nascia.49
Segue-se um Renascimento das artes e das letras,
clssico, italiano e oriental, que, conjugado ao vigoroso ressurgimento do
comrcio, recarrega as cidades renanas de energias fecundas e a vida urbana,
adormecida desde o ocaso do Imprio Romano, renasce com novos traos
traos no de cidades antigas, mas de cidades medievais. Essas cidades assistem
banqueiros e ousados comerciantes misturando moedas de cem prncipes, de
cem cidades; so influenciadas e influenciam toda a Europa. Cidades cujo ar
liberta e onde so lanados os germes da tolerncia, da independncia crtica e
da viso de mundo ampliada pela experincia. Cidades, enfim, que mais uma
vez sero a passarela por onde transitam gentes de todas as partes, pois h no
46Idem, ibidem, p. 145.
47Idem, ibidem, p. 143.
48Idem, ibidem, p. 140.
49Idem, ibidem, p. 141.
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Reno um desfile interminvel, uma mistura perptua de homens e idias, de
costumes e linguagens.50
Mercadores, banqueiros e artistas; estudantes,
peregrinos e msticos; sacerdotes, doutos e hereges; de toda a Europa afluemgentes e influncias diversas que, por sua vez, a imprensa renana cuidar de
disseminar. De fato, o prprio Gutenberg era renano de Mayena, e Frankfurt
am Mein sedia at hoje a feira de livros mais antiga do mundo. E a, o eterno
fermento do pantesmo popular vicejar nas inmeras pequenas comunidades
pululando em toda uma fauna de heresias de nomes inquietantes e bizarros e
enriquecendo o pandemnio religioso das terras renanas. O burbulhar de
seitas, o labirinto de inquietudes mais um indicador da mestiagem e do
amalgamento que prosseguiam no Reno.51
No eixo renano confluem, portanto, as mais diversas influncias
europias, mas tambm asiticas e africanas, que vieram a germinar nos pases
baixos, no mar do Norte, na Escandinvia e Inglaterra. As palavras de Febvre
encontram eco em conferncia pronunciada recentemente em Paris por Eric
Hobsbawm. De fato, segundo Hobsbawm, subjacente sua fragmentao e
heterogeneidade, a Europa articula-se em torno de um centro dinmico e sua
periferia. O centro dinmico justamente o eixo que se estende do Norte da
Itlia aos pases baixos, atravs dos Alpes ocidentais, da Frana oriental e da
bacia renana.52
50Idem, ibidem, p. 164.
51Idem, ibidem, p. 170-72, passim.
52E. HOBSBAWM, LEurope: mythe, histoire, ralit. Confrence donne Paris le 22
septembre. Publi dans Le Monde, 25/09/08. Disponvel no stio: http://www.indigenes-republique.org/spip.php?article1633 . Acessado em 23/10/2008. Reproduzida parcialmenteem: E. HOBSBAWM, Uma histria da Europa . Folha de S. Paulo, Caderno Mais,05/10/2008.
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s margens do Reno, cujas cidades s conhecero tardiamente a
unidade sob o manto de um poder estatal, a influncia francesa se faz mais
presente sob Luis XIV o Rei Sol. durante o reinado de Luis XIV (1654-1715) que a Frana conquista o Franco-Condado e a Alscia. Na perspectiva de
Febvre, a Frana cresceu unificando, conciliando e introduz a ordem e a
clareza.53
Perspectiva no despida de preconceito, segundo Peter Schtler, que
observa que Febvre apresenta a expanso da monarquia para o leste e a
conquista da Alscia por Luis XIV [] como uma espcie de pacificao e a
e a poltica hegemnica da Prssia no sculo XIX designada como uma
Reconquista.54
Porm, a presena francesa no se faz sentir apenas na
poltica. No reinado de Luis XIV, a cultura francesa em seus diversos aspectos
lngua, costumes, artes, arquitetura, filosofia, etc. conhece seu apogeu na
Europa continental. Insinuam-se, ento, dois movimentos divergentes: em uma
direo, o cosmopolitismo das lumires, o ideal de uma identidade europia que
precederia as particularidades nacionais ou regionais; em outra, opondo-se
hegemonia francesa e a esse cosmopolitismo, os nacionalismos. A Revoluo
Francesa e Napoleo aceleraro esses dois movimentos e acentuaro sua
divergncia. Desde ento, o confronto entre unionistas e secessionistas se
estender at os dias atuais. No sculo XIX, novas condies econmicas e
polticas acrescentaro histria do Reno o elemento que faltava: a unificao
alem.
53L.FEBVRE,Reno, op. cit., pp. 196 e 194, respectivamente.
54Peter SCHTLER, Apresentao In : L.FEBVRE,Reno, op. cit., p. 41.
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A Terceira Repblica
A III Repblica proclamada durante a guerra franco-prussiana de
1870-1. Logo enfrenta, portanto, uma primeira dbcle: a desastrosa derrota
francesa para o exrcito alemo em 1871.55
Bismarck havia provocado a guerra
para incitar o sentimento patritico alemo e unificar a Alemanha. O Imprio
Alemo proclamado na galeria dos espelhos no Palcio de Versalhes em 18 de
janeiro de 1874.56
A Frana perde as provncias da Alscia e da Lorena. A
unidade alem se fizera s custas da diviso da Frana. Esta, por sua vez, alm
de amputada de duas ricas provncias, mostrava suas fissuras internas na
Comuna de Paris. Porm, a guerra no envolvia apenas uma questo territorial.
O crescimento econmico tardio, mas acelerado e a unificao fizeram da
Alemanha a primeira potncia europia e do seu Exrcito o melhor do mundo
at 1945,57
superando a Frana no balano do poder Europeu. A proclamao do
Imprio o coroamento da Alemanha como a primeira potncia da Europa
continental. A economia francesa, por sua vez, desenvolvia-se lentamentedevido escassez de mo-de-obra e mercado consumidor; a populao
majoritariamente rural durante todo o sculo XIX e baixa e declinante a taxa
de natalidade.58
Na Alemanha, ao contrrio, o crescimento demogrfico e a
55O impacto dessa derrota pode ser medido pela comemorao da revanche em 1918 e o
bordo l'Allemagne paiera, isto , para os franceses a Alemanha e seus aliados deveriam serconsiderados os nicos responsveis pela guerra e deveriam indenizar os pases vitoriosos.56
Jean CARPENTIER et Franois LEBRUN, Histoire de l'Europe. Paris: Seuil,1992; p. 320; J-B.DUROSELLE, op. cit., pp. 491 e ss.57
A considerao de Aron (PGC II, p. 19). Como veremos, durante a dedada de 1920, oexrcito francs que ocupa esse posto, no por mritos prprios contudo, uma vez que oTratado Versalhes reduzira os efetivos do exrcito alemo e obrigara a Alemanha ao
desarmamento.58O problema populacional francs ser examinado por Aron no Paz e guerra (PGN, pp. 226-
35).
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urbanizao so mais cleres. No fim do sculo XIX, a produo industrial
alem equipara-se britnica, selando seu rpido desenvolvimento econmico.59
A III Repblica nasce, pois, em um momento difcil. Quase 2/3 da
Assemblia Nacional eleita em 1871 era monarquista, mas viu-se
impossibilitada de um consenso em torno de quem deveria assumir a Coroa, pois
3 grupos disputavam o trono: os favorveis casa dos Bourbons, os que
apoiavam a casa de Orlans e os bonapartistas. Os bonapartistas eram entre eles
uma minoria crescente, mas outra minoria, que crescia muito mais rapidamente
era constituda por republicanos. Depois de 4 anos sem decidir-se sobre quem
deveria assumir o trono, os deputados optam pela Repblica sem nenhuma
convico e por um voto: 353 a 352.60
Nos anos seguintes, a poltica parlamentar
francesa ser disputada por radicais e moderados ambos republicanos , por
monarquistas e bonapartistas, que depois de mais uma derrota em 1899
denominar-se-o conservadores, e um grupo nfimo de socialistas. At o fim do
sculo XIX, estes grupos no constituam partidos polt