Rio de Janeiro a Janeiro Vinícius Antunes
2
É permitida a livre reprodução desta obra com a divulgação de seus autores
Índice
Joycilene, a passista da Intendente Magalhães ................................................. 3
A Feira de Trocas ............................................................................................... 5
O milagre do Fred Astaire do sertão .................................................................. 6
Rose: genérica, alternativa, pirata ...................................................................... 8
Rio do janeiro ..................................................................................................... 9
“Onde as estrelas menten.” .............................................................................. 11
O Mendigo 3 do Mural 45 ................................................................................. 12
O queijinho do Piscinão .................................................................................... 14
Rio de Janeiro a Janeiro Vinícius Antunes
3
Joycilene, a passista da Intendente Magalhães
Minha irmã está naquela
fase em que não quer ficar o
carnaval dentro de casa, mas
tampouco descobriu ainda que a
melhor opção para o carnaval é
realmente ficar dentro de casa.
Busquei-lhe, então, o avesso do
tradicional turismo, levei-a,
junto com minha esposa, para
conhecer o carnaval da
Intendente Magalhães e o
samba no pé de Joycilene Silva.
O leitor nunca deve ter ouvido
falar, mas Joycilene é uma
passista da Acadêmicos Trás de
Mim, escola de Jardim Sulacap.
Ao começar o desfile, minha irmã ainda estava incrédula com a magia
carnavalesca que estava ali bem debaixo do seu nariz: sambistas de muletas, mendigos
felizes, malandros de bigode e chapéu, reticências e etceteras de pessoas com camisas
da Portela e do Império, trezegueteando pela estrada que tinha virado passarela do
samba. Porém, o melhor estava por vir, Joycilene Silva, entraria junto à quinta escola,
com seus sapatos altos um tanto rotos, com seu biquíni encravado, com suas
gordurinhas que a humanizavam, com seus cabelos loiros e cacheados sobre a pele
escura.
Já era tarde, lembro bem, minha esposa, minha irmã e eu, esperávamos nossa
vizinha Joycilene. À calçada, centenas de cadeirinhas de plástico ou de ferro, deixavam
claro que ali era subúrbio, com pessoas esperando qualquer coisa que não fosse
Joycilene, pois afinal, quem a conhecia além de nós? Joycilene entrou na avenida,
sambando como se tivesse outra no corpo, rodopiando sorrisos, beijando a platéia à
Rio de Janeiro a Janeiro Vinícius Antunes
4
distância. Alguns a olhavam, outros preferiam ver o único carro alegórico que trazia
um São Jorge, um Ogum, chame como quiser, leitor. No meio do desfile, o salto de
Joycilene quebrou. Ela tirou-os e os deixou pelo caminho. Seus pés pareciam copular
com o chão, saltavam alegres, calejavam-se e se satisfaziam. Apontei e disse à minha
irmã: ali vai Joycilene! Entre os outdoors e o cheiro de mijo, entre os cães perdidos e as
crianças de bate-bola, entre as carrocinhas de cachorro quente e os banheiros
químicos, ia a passista de olhos fechados, ia feliz a imaginar-se no sambódromo,
imaginava até o close que lhe dava a Rede Globo e já ouvia a voz do apresentador do
desfile que dizia: samba, Joycilene, levanta essa Marquês de Sapucaí!
Rio de Janeiro a Janeiro Vinícius Antunes
5
A Feira de Trocas
Peguei esta estória antiga na Feira de Trocas, se ao leitor não couber, troque-a
por outra:
Seu José Pedro chegou às 4 da manhã na Praça XV, as barracas estavam de pé
antes do sol. Ia o velho, levando no colo uma boneca de pano feita pela esposa há 10
anos, coisa rara e bem feita, sem valor nenhum financeiro, mas lotada de cifrões
afetivos. Na primeira barraca que lhe interessou viu um lustre bonito que serviria para
alumbrar todo quarto, quis trocar a boneca por ele, mas o vendedor lhe perguntou de
que serviria aquela porcaria. Andou mais um pouco, resfriado pelo sereno da
madrugada, e viu uma jaqueta feita de couro e teias de aranha. Disse ao moço das
roupas que a trocasse pela boneca, mas este lhe disse que era cedo para piadas.
Andou até parar pela terceira vez, ao avistar um canivete inglês, e o vendedor lhe disse
que não lhe interessavam joguetes. Quando já estava a desistir, avistou uma caixa de
ferramentas, seminova, numa tenda dum
homem de barbas brancas. Zé Pedro
envergonhado lhe ofereceu a boneca e, na
mesma hora, o homem barbudo aceitou.
Os amigos encarnaram ao feirante que se
desfizera dos utensílios para tomar um
brinquedo pra si. De noite, com as
ferramentas, Zé Pedro dava novo jeito a
sua casa, num raro momento de alegria e,
Marcelinha, a filhinha do homem barbudo,
tinha a noite mais feliz de sua vida, ao
dormir abraçadinha com a nova boneca
que um dia havia sido da filha de Zé Pedro
que morrera de tuberculose.
Rio de Janeiro a Janeiro Vinícius Antunes
6
O milagre do Fred Astaire do sertão
“Tudo é música, meu amigo. No princípio era o dó, e do dó fez-se ré etc.”
(Machado de Assis, Dom Casmurro)
Raimundinho Dó Ré é figura
marcada em São Cristóvão. Sujeito
dançante. Vive se requebrando pela
Quinta da Boa Vista, pelo Largo da
Cancela, por São Januário e,
principalmente, pela Feira dos Paraíbas.
Os seguranças já o conhecem. Entra pela
saída, de graça, não precisa deixar a
moedinha de um Real. E justificam: “este
é amigo do Luiz Gonzaga.” E se alguém
resolve argumentar que o Luiz Gonzaga
já morreu, eles explicam: “Você não
entendeu, ele é amigo da estátua do Luiz Gonzaga. Ficam ali no maior papo.”
Raimundinho vai pelos corredores da Feira, cumprimentando a Deus e ao mundo,
dando bom dia ainda que de noite, dando boa noite ainda que de dia e todo mundo
retribui. Passa na barraca dos doces e cata um quebra-queixo pra chupar na boca
banguela. Pelo caminho, cata pedacinhos de carne-de-sol no prato alheio, dá golada
num Guaraná Jesus, troca passos com as moças, com as senhoras, com uma brisa
besta qualquer. Até que chega diante do palco.
Alguns cantores e algumas bandas já conhecem o cabra. Espertos, chamam-lhe
pro tablado e garantem o espetáculo. Outros, menos experientes ou mais vaidosos,
deixam Raimundinho de lado. Aí é fatal, pois o sujeito, bom como é, rouba a cena. A
última vez que fui, presenciei fato assim. O nordestino chegou já dançando com as
pernas moles pela música e pela birita, trazia sua pochete atravessada no corpo por
cima do blusão largo e, cobrindo a calvície, estava o tradicional chapeuzinho. A banda
tentou chamar mais atenção, a cantora balançava os glúteos, cantava música lenta,
Rio de Janeiro a Janeiro Vinícius Antunes
7
cantava música rápida e só dava Raimundinho. Abriu-se uma clareira imensa ao redor
do homem e os que puderam, sacaram suas máquinas fotográficas e filmadoras pra
registrar o Fred Astaire nordestino. Cansados de disputar, os membros da banda
boicotaram o show e desligaram os instrumentos. Ele, nem aí, continuou a dançar ao
som do silêncio, deixando os músicos boquiabertos a assistir do tablado. Foi assim, tal
um Padim Ciço, que Raimundinho fez o milagre da transformação do palco em público
e do público em palco.
Rio de Janeiro a Janeiro Vinícius Antunes
8
Rose: genérica, alternativa, pirata
Mal começavam a berrar os alto-falantes da Saara e Rosecleide já se aventurava
sob o sol. Tinha por hábito começar as compras de sábado pelas lojas com vista pro Campo
de Santana e acabava batendo perna pelo Camelódromo da Uruguaiana. As lojas de panos
eram caminho certo, as de bijuterias também. Era impossível não comprar uns calçados e
as bolsas, tê-las era lei. Sabia escolher o que era bom e o que ficava bem. Sexta-feira ia
sempre ao shopping, olhava as lojas de grife pra, no sábado, comprar os produtos
genéricos, alternativos, piratas (chame como quiser), na Rua da Alfândega. E acertava,
quando não, comprava coisa ainda melhor. Porém, ultimamente, Rosecleide andava com
um amor maior, na verdade uma paixão, talvez um vício: era o swarovski! Ela dizia que a
culpa era da maldita voz que gritava por todas as ruas: swarooooovski! swarooooovski!
Acabou fazendo-lhe lavagem cerebral e obrigando-a a consumir loucamente. Quando batia
a hora do almoço, resistia à tentação de entrar no Cedro do Líbano e torrar o dinheiro que
economizara num arroz com lentilha e kafta. Optava por parar numa barraquinha ao lado
da Biblioteca Estadual e comer uma esfiha de carne cheia de cebola, acompanhada de
guaraná natural. A parte da tarde reservava pro camelódromo e esbanjava nos produtos
eletrônicos. Sua última grande aquisição fora um celular, cópia perfeita do da loja, só que
made in China. De tarde voltava pra casa, no Méier, no máximo 30 minutos do Centro,
tomava um banho caprichado e se
cobria com as imitações de perfumes
franceses que abusavam na
quantidade de fixador. Quando
chegava à noite, despencava pra casa
do seu paquera lá no Leblon. Ele, ao
vê-la e cheirá-la, subia pelas paredes,
lhe abraçava no sofá e dava a
perguntar: Como é que você
consegue ficar tão linda assim, Rose?
A moça, toda vaidosa respondia: Vem
tudo de Paris, Carlos! É tudo coisa
boa, coisa importada!
Rio de Janeiro a Janeiro Vinícius Antunes
9
Rio do janeiro
A piada, aprendi no berço:
inda pequeno meu pai dizia, se a
fralda teimava em baixar da
cintura: tá com o janeiro de fora,
garoto. Na fase das interrogações
lhe perguntei: janeiro?, explicou-
me fácil: é o comecinho do ânus!
Na estória que conto, o
protagonista não tem nome. A
bem da verdade, até tem, mas não
lhe posso revelar pois, por ser
amigo próximo, pediu-me que guardasse segredo. Imagine-o João, Pedro, Daniel,
talvez, um nome russo: Gorbatchev. Lhe darei dois dados: antes tinha uma imensa
barriga e não tem mais, antes tinha peitos enormes e os operou. Se acertas, ganhas
um doce, mas não será isso que adoçará a narrativa.
A Central do Brasil às 18 parece ser o ponto de encontro de todos os
trabalhadores do Rio de Janeiro. Ali, vão os das biroscas, das farmácias, dos escritórios,
das ruas. Vai também o protagonista desta estória: um gordo desajeitado, ou, se o
leitor é de eufemismos, um cheinho simpático. Vão todos juntos, ladeados, o
protagonista e os coadjuvantes, parece que a disputar o mesmo último espaço no
vagão do trem. A corrida até o vagão é desrespeitosa, cruel, inumana. Cada qual faz
uso das armas que tem: as senhoras, das bolsas; as moças, das unhas; os cavalheiros,
dos guarda-chuvas; os senhores, das bengalas. Ao protagonista, por conta de seu
sobrepeso, sempre subestimado e humilhado, cabe suportar a união de bolsas, unhas,
guarda-chuvas e bengalas, além de ter que ouvir todas as reclamações por ser o último
dos últimos a entrar no vagão e por espremer ainda mais o que já era espremido.
Neste dia de longo azar – após o protagonista encontrar um lugar para seu
braço direito sobre o ombro direito do velhinho, para sua perna direita entre as saias
da senhora, para o braço esquerdo sobre a cabeça do anão, para a perna esquerda
entre dois senhores de terno, seu corpo entre dezenas de corpos e sua cabeça com o
Rio de Janeiro a Janeiro Vinícius Antunes
10
nariz pra cima buscando ar – noticiou o maquinista da geringonça: esta composição
não realizará serviços por problemas técnicos. Por favor, dirijam-se à composição na
linha 8H.
Passo a este parágrafo, pois de desordem já basta o que aconteceu naquele
momento do anúncio. Todos resolveram descer do trem quase ao mesmo tempo,
porém os de trás antes dos da frente e o protagonista foi atropelado pela manada
humana. Se pensas que todos resolveram usar os métodos recomendados para a
transferência de composição, te digo que nunca deves ter ido à Central do Brasil. Os
passageiros foram saltando de um trilho a outro, atirando-se na vala com cerca de
metro e meio que os protegeria de possíveis atravessamentos. O gordinho,
estarrecido, arregalou os olhos e ficou com aquelas dúvidas de um segundo que
parecem levar eternidades: pulo ou não pulo? faço o caminho do povo ou o caminho
correto? Nos segundos seguintes, atrás dos malandros que saltaram, foram os
senhores, as senhoras, as crianças, até os mais idosos e deficientes. Pensou o
gordinho: lá vou eu. Tomou distância, saltou na vala dos trilhos do trem, riu-se por ter
se saído bem até ali. Porém, quando foi subir de volta para plataforma, encalhou.
Ficou ali, de bunda pro ar e suas calças desceram, exibindo o comecinho do ânus. Os
outros passageiros e eu, que estávamos ali apenas para observar, rimos, rimos daquele
janeiro.
Rio de Janeiro a Janeiro Vinícius Antunes
11
“Onde as estrelas menten.”
“Estou cansado de dizer que os malucos foram os reformadores do mundo.”
(Lima Barreto, Elogio da Morte)
A inscrição está no aqueduto
da Colônia Juliano Moreira: “onde as
estrelas menten.” Pichação, poesia ou
somente uma frase sem significado e
com erro ortográfico? Conheci seu
autor, chama-se Epimênides da Rocha
e diz-se filho de Lima Barreto com
uma enfermeira, logo, o próprio Lima
Barreto, pois para ele, pai e filho são a
mesma coisa vide os impérios antigos
e a Santíssima Trindade. Para quem
não sabe, o escritor Lima Barreto foi
dado como louco e passou parte da
sua vida, ou de sua morte, na Colônia em Jacarepaguá.
Os moradores do lugar atribuem loucura a Epimênides, dizem ser apenas um
interno cheio de invenções sem sentido algum. O cotidiano deste velho louco é
preenchido por músicas que canta diante da igreja, rabiscos que faz nas paredes das casas
antigas e passeios sob o aqueduto. Segundo ele, não há mais loucos ali, pois sua missão foi
curar a todos. “Antes haviam lunáticos, agora só olhamos pra terra, deixamos o mundo da
lua.” Diante do aqueduto, tive o prazer de perguntar a Epimênides o porquê de sua curiosa
frase. Respondeu-me: “As estrelas mentem porque são um falso espelho, refletem sempre
beleza. Mas, na verdade, o que há aqui não é belo: é dor, é feiúra. O que há aqui é aflição,
gritos de tortura de muitos que têm seus espíritos ainda em sofrimento. Por isso as estrelas
mentem, pois sobre a Colônia elas deveriam ser feias e tristes.” Depois que me respondeu,
ele levantou-se e saiu a rodopiar, livre. Fiquei em dúvida de quem era o louco e quem era
o são.
Rio de Janeiro a Janeiro Vinícius Antunes
12
O Mendigo 3 do Mural 45
“Tudo aquilo que a nossa
civilização rejeita, pisa e mija em cima,
serve para poesia”
(Manoel de Barros, Matéria de Poesia)
Há um tempo, os murais do
Gentileza não valiam de porcaria
nenhuma. Não que agora valham,
mas pelo menos têm certo
reconhecimento de alguns ditos
intelectuais, estudiosos, artistas e
até da classe política. Há um
tempo, chegaram a ser
censurados, cobertos, atacados,
hoje em dia já há quem lhes dê o
status de cultura. Os murais do
Gentileza, hoje, já são mais
importantes que gente. Pergunte
pra qualquer carioca convicto: o que há debaixo do Viaduto do Caju? E lhe responderá:
os murais do Gentileza. Ninguém dirá: há mendigos, e, olhe, é o que mais há.
Uma família desabrigada: Mendigo 1, Mendigo 2, Mendigo 3 e Mendigo 4 –
afinal, pra gente mendigo nunca tem nome – se abriga bem em frente ao mural 45,
que diz: “PENSEM DEUS PAI GENTILEZA CRIADORRR A NATUREZA DA TUDO DE GRAÇA
JESUS NOS CONDUZ CAMINHO DE DEUS DISSE GENTILEZA”. Ali estão também seus
poucos pertences e sua ausência de dignidade. Pela manhã, quando acordam com os
raios de sol que driblam o viaduto, fazem bochecho, enrolam os trapos e começam a
petição de moedas. Aprenderam que não se deve mijar em casa e vão até o pé do
mural mais próximo cumprir a necessidade matinal.
Rio de Janeiro a Janeiro Vinícius Antunes
13
Neste dia, Mendigo 3, um mendiguinho de uns 12 anos, acordou apertado pra
cacete. Logo abriu os olhos, saiu com pressa, tentando correr e cruzar as pernas ao
mesmo tempo. Chegou ao mural, arriou a calça e irrigou o asfalto. Vinha vindo uma
senhora distinta em seu carro importado e foi freando ao lado do moleque: ô, garoto!
Não tem vergonha de mijar aí, não? Não sabe que isso é uma obra de arte? E o
moleque lhe respondeu: Dona, é justamente porque eu mijo em cima que isso é uma
obra de arte!
Rio de Janeiro a Janeiro Vinícius Antunes
14
O queijinho do Piscinão
Ó o quejo! Ó o quejo! E dribla uma
perna, passa por um braço, pula uma bunda,
quase acerta uma cabeça. Ó o quejo! Ó o
quejo! Uns nem aí, outros mal podem sentir o
cheiro. Ó o quejo! Ó o quejo! Ia Waltinho com
seu isopor e fogueirinho, orégano e molhinho
d’alho. Ó o quejo! Ó o quejo! Quanto tá, seu
moço? Dois Real, dona. Vê dois. Pra já. Ó o
quejo! Ó o quejo! Quanto tá? É dois. Quero
não, tá caro. Se levá dois, paga três
cinqüenta. Qué, Dilma? Vai então. Ó o quejo!
Ó o quejo! A especialidade do moço é queijo
coalho com orégano e molho d’alho, não
vende refrigerante, não vende doce, não
vende biscoito Globo, não vende mais nada. É
um produto específico pra não perder a especialização e a clientela. Sabe o tempo
direitinho no fogo pra não ficar duro nem queimado, mede o tempero pra não ficar
sem gosto ou exagerado. Waltinho tá no Piscinão de Ramos desde que inaugurou em
dezembro de 2001, quando a prefeitura nem chamava o lugar de Parque Ambiental da
Praia de Ramos, era Piscinão mesmo e ainda é, pois é Piscinão que o povo fala. Certa
vez, Waltinho quis ser elegante, disse que trabalhava no Parque Ambiental da Praia de
Ramos e logo lhe falaram que pomba afrescalhada era aquela, nunca mais voltou a
chamar assim. O diferencial de Waltinho é sua conexão com o mundo globalizado,
trabalha duro no marketing do seu negócio. Apercebeu que os restaurantes das
revistas colam as reportagens nas paredes, Waltinho colou no isopor reportagem
sobre o Piscinão que saiu no jornal que tem nome de biscoito: Coliformes altos na
água e na comida do Piscinão. Quando tava com minha esposa tomando um bronze
por lá, pedi dois queijinhos pro Waltinho e me assustei, vi a reportagem e perguntei: E
esse negoço de coliformes, tá alto mesmo? Tá, mas não se preocupa não, que o preço é
Rio de Janeiro a Janeiro Vinícius Antunes
15
igual! Não entendi nada e insisti: mas não é ruim pra você não? Nada, é tempero que
nem tem no quejo lá da Zona Sul e quem tem que gostar é o senhor, não eu. Sem
entender se o papo era sério ou se ele tava zoando da minha cara, resolvi cancelar:
deixa, irmãozim, vô querê queijo não. Foi quando, malandreado, me veio Waltinho
cheio de palavreado: Beleza, vô cobrá pro sinhô só a taxa dos coliforme!
Rio de Janeiro a Janeiro Vinícius Antunes
16
Deu bode
Eu fazia manutenção de computadores na Microcamp do Valqueire, tinha uns
16 anos e era amigo de um figuraça chamado Julião. O cara ia fazer dezoito e era
reserva do Madureira, cheguei até a ir ao estádio na Conselheiro Galvão na tentativa
de vê-lo jogar, mas segundo constatei e ele me confirmou, nunca entrava em campo,
ou por falta de futebol, ou, segundo ele, por implicância do treinador. Um dia, Julião
chegou no curso com a pérola: “Minha vó mandou comprar um bode e sacrificar, disse
que é pra Exu liberar meus caminhos.” Num primeiro momento, achei que fosse
sacanagem, mas ele me explicou que dona Francisca era mãe ou vó de santo, algo
assim que não lembro bem. O que Julião queria era ter a oportunidade de mostrar seu
futebol, pois senão nunca conseguiria realizar seu sonho de jogar no exterior. Partimos
nós dois pro Mercadão de Madureira atrás do bode. Julião tava com pouca grana e
resolveu pechinchar os acompanhamentos: pratão de barro, mel e cachaça seriam
coadjuvantes do bode preto (tinha que ser preto, sei lá o porquê). Andamos por todas
aquelas galerias lotadas, atrás do lugar que vendesse mais barato, acho que Julião fez
até alguns bons negócios e conseguiu alguns descontos razoáveis. Quando chegou a
hora do bode, deu-se o susto: “É 50 Reais, pode escolher o bode que quiser.” Só que o
malandro tinha no bolso só 40 Reais, ainda me pediu 10, mas eu carregava apenas o da
passagem e não estava com vontade nenhuma de contribuir financeiramente praquilo
que eu julgava uma doidice. Julião chorou, chorou, chorou, explicou sua condição pro
vendedor e, no final das contas, conseguiu por 40 porque o dono da loja era
freqüentador do centro de dona Chica, avó de Julião. Fui andando na frente,
carregando os bagulhos que havia ajudado a comprar e atrás vinha ele com o bode
amarrado num barbante, teimando em não andar. Depois, pra descer as escadas,
Julião teve que colocar o animalzinho no colo e as pessoas o olharam de rabo de olho
com um certo nojo como se nunca tivessem abraçado um bode na vida. Pior é que
ainda tivemos que ir a pé até a casa dele, pois não teve motorista de taxi, nem de
ônibus, que quisesse dar uma carona amiga pro bodão preto.
Passada uma semana, encontrei com Julião no curso e me veio com nova
história: “Num sabe a merda, rapá: o bode ainda tá lá no meu apartamento.” Não
Rio de Janeiro a Janeiro Vinícius Antunes
17
entendi nada, pois achei que ele já tivesse dado um fim no bicho. “Rapaz, não tive
coragem de matar o bichinho. Toda vez que eu tento, volto atrás. Parece que ele fica
me olhando com carinha de coitado. Já levei até pra alguém matar, mas na hora volto
atrás.” O resultado é que Julião, compadecido do bicho, passou a conviver com o bode
que ficava amarrado no pé de sua cama. Toda semana me contava das brigas com sua
mãe que se queixava do animal. O curso acabou, a novela não se resolveu e eu, amigo
desnaturado, nunca mais soube de Julião. Mas, essa vida é assim, o passado sempre
retorna. Outro dia, voltando do trabalho, encontrei Julião no centro da Taquara.
Apertamos as mãos e ele me disse que não tava mais aí pra esse negócio de futebol.
Disse que agora tava morando em Jacarepaguá, sozinho, sem mãe e sem vó, e que
vivia num terreno grande, no qual criava cabras e bodes donde tirava seu sustento.
Rio de Janeiro a Janeiro Vinícius Antunes
18
Cidade do adeus
“É que arrisco a prosa mesmo com balas atravessando os fonemas.”
(Paulo Lins, Cidade de Deus)
Eu voltava da igreja com a minha esposa, caminhando pela estrada Miguel
Salazar Mendes de Moraes, a principal da Cidade de Deus, quando avistei um livro
caído na calçada. Já o tinha: era a Antologia Poética do Carlos Drummond de Andrade.
Lamentei que alguém o tivesse perdido. Abri-o para ver se por dentro constava nome,
telefone, endereço, ou alguma informação relevante para encontrar dono ou dona. Na
primeira página estava escrito de esferográfica azul: Gênesis Silva do Rosário, Travessa
Tabor, 7 – Cidade de Deus. Como eu não conhecia por ali nada além da rua em que
estava e como o lugar conserva a fama de perigoso, resolvi levar o livro comigo.
Em casa, estava curioso pela antologia que já lera. Deitado no sofá, resolvi
folhear algumas páginas e ler alguns versos em voz alta: “Perdi o bonde e a esperança./
Volto pálido pra casa.” e “No caminho onde pisou um deus / há tanto tempo que o
tempo não lembra.” Minha surpresa se deu, quando às margens, ao lado de alguns
versos do Drummond, encontrei versos escritos com letras trêmulas e frágeis
provavelmente de autoria da dona do livro. Cito os que li e nunca mais esqueci: “Ao
lado de minha casa / há uma planta dormideira / todo sábado a acaricio / pra acordar
na segunda-feira.” Eram riminhas singelas e pueris. Fiquei impressionado com a escrita
de Gênesis, pois mesmo sendo moradora da Cidade de Deus, nenhuma de suas linhas
expressava violência, medo, vingança. Pensei: esta menina é como a flor
drummondiana, furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio. Digo menina, pois pelo nome
e pela letra, já imaginava quem era Gênesis: garota de 17 anos como minha irmã, só
que com cabelos enrolados e óculos fundo de garrafa como os da estátua do
Drummond. Compadecido de sua perda e curioso por conhecê-la fisicamente, tive
total certeza: devolverei o livro, não me importa o trabalho que dê.
No domingo que seguiu o achado, conversei com uma amiga minha,
freqüentadora da igreja e também moradora da Cidade de Deus. Expliquei-lhe a
situação e disse que muito queria lhe devolver o livro pessoalmente. Ela se dispôs a
Rio de Janeiro a Janeiro Vinícius Antunes
19
levar-me ao local e me
tranqüilizou dizendo que a
Travessa Tabor era de fácil
acesso. Por volta do meio-dia,
pegamos um ônibus que nos
deixou na Miguel Salazar e
entramos a pé na Travessa
Maressa. Confesso que estive
bastante assustado e só lembrava
das cenas protagonizadas pelo Zé
Pequeno. O ápice do
estranhamento foi quando passei
por uma tal Praça do Apocalipse, minha amiga me tranqüilizou explicando que a maior
parte dos nomes das praças possuía uma indiscriminada referência bíblica, afinal,
estávamos na Cidade de Deus. Rapidinho e com toda tranqüilidade, chegamos à
Travessa Tabor, casa 7. Bati palmas à porta da casinha simples. De dentro, saiu uma
moça gorda e morena. Disse-lhe de imediato: vim devolver o livro e exibi o achado. Ela
tomou a antologia de minhas mãos, a abraçou e começou a chorar. Feliz, pensei
comigo mesmo: que bom que o devolvi, deve ser um livro de estimação, vide o pranto.
Porém, a moça gorda me explicou entre lágrimas: era da minha filha, ela foi
assassinada voltando da escola e trazia este livro na mão.
Rio de Janeiro a Janeiro Vinícius Antunes
20
O autor
Vinícius Antunes da Silva é carioca, educador e escritor. Autor de
crônicas, contos, poemas e peças de teatro.
Contato: [email protected]
Blog: http://cronicasdumasviagens.wordpress.com
O ilustrador
Rogerio Tadeu Monteiro da Silva é arquiteto e cartunista. Trabalhou para
diversos jornais: O Pasquim, Jornal dos Sports, O País, A Tarde, A Notícia,
Gazeta de Notícias, Espírito da Coisa, Nas Bancas e Feira Hoje. É criador,
em conjunto com Luís Pimentel, de personagens como Mão Estendida e Zé
Bode. Foi premiado na I Bienal Internacional de Quadrinhos (prêmio na
categoria Charge). Contato: [email protected] Blog:
http://rogercartum.zip.net