Download - Revista Ensaio Fotográfico - 1a edição
#1, 08/2015
A revista Ensaio Fotográfico é uma publicação
eletrônica quadrimestral, distribuída
gratuitamente, cujo propósito é promover a
fotografia autoral e a pesquisa em fotografia
produzidas em Belo Horizonte no cenário
nacional e internacional.
A revista Ensaio Fotográfico é realizada com
recursos da Lei Municipal de Incentivo à
Cultura da Prefeitura de Belo Horizonte.
Fundação Municipal de Cultura.
Editor Flávio Valle
Curadores
Flávio Valle, Isabel Florêncio, Tibério França
Colaboradores Alexandra Simões de Siqueira,
Daniela Paoliello, Guilherme Bergamini, Helena Teixeira Rios, Isabel Florêncio
e Laura Fonseca
Revisora e Tradutora Junia Mortimer
Produção, Diagramação e Projeto Gráfico CultivArte
Fotografia de capa Helena Teixeira Rios, Laura Fonseca,
Daniela Paoliello e Guilherme Bergamini
Email [email protected]
Site www.revistaensaiofotografico.com
Facebook www.facebook.com/
revistaensaiofotografico
EXPEDIENTE
Este novo LugarFotografias e Texto HELENA TEIXEIRA RIOS
Fotografia e velocidade: o paradoxo do olhar Texto ISABEL FLORÊNCIO
Editorial
Fotografia, Mediação e Pesquisa Biográfica:uma experiência de ensino em artes visuaisTexto e Fotografias ALEXANDRA SIMÕES DE SIQUEIRA
Hotel EsplêndidoFotografias e Texto LAURA FONSECA
Educação para todos Fotografias GUILHERME BERGAMINI | Texto MARCELO SEVAYBRICKER
ExílioFotografias e Texto DANIELA PAOLIELLO
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EDITORIAL
Ao longo dos últimos anos, a fotografia
autoral e a pesquisa em fotografia vêm se
consolidando em Belo Horizonte.
Prêmios de reconhecimento nacional
e internacional foram recebidos por
belorizontinos e cursos de graduação e
pós-graduação foram criados. Além da
dedicação de cada profissional da cidade, a boa
fase da fotografia também se deve a uma política
cultural de estímulo às artes visuais. Desde
2010 tem sido crescente o número de projetos
apresentados e aprovados na Lei Municipal de
Incentivo à Cultura. Alguns destes projetos,
como esta revista, tem como principal
característica promover a obra desses
fotógrafos e pesquisadores.
Nesse sentido, a Ensaio Fotográfico não é
apenas uma revista, mas também uma ação de
incentivo à fotografia autoral e à pesquisa em
fotografia produzidas em Belo Horizonte. Isso
porque a criação e manutenção de um espaço
onde fotógrafos e pesquisadores possam
publicar e debater suas obras tem a capacidade
de estimular a produção de novos trabalhos.
Produzida de maneira independente e
colaborativa, o principal objetivo desta
plataforma é destacar e apresentar aos leitores
produções fotográficas que tenham relevância
artística, científica e cultural. Além disso, para
assegurar o acesso de todos a seu conteúdo, a
publicação é distribuída gratuitamente no site
www.revistaensaiofotografico.com e oferece ao
leitor ferramentas conceituais para a leitura de
imagens. Dessa maneira, a Ensaio Fotográfico
se constitui como um instrumento de execução
de uma política cultural voltada para difusão
da produção fotográfica belorizontina, para a
democratização do acesso a bens simbólicos
e para a formação de público para as artes
visuais.
A Ensaio Fotográfico opera com uma linha
editorial que abrange distintas concepções
da fotografia, as quais vão desde
investigações acerca de processos históricos
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até o desenvolvimento de linguagens
contemporâneas. Nesta primeira edição,
são publicados 4 ensaios fotográficos e 2
ensaios críticos sobre fotografia: em Este
novo lugar, a fotógrafa Helena Rios propõe
uma ressignificação do espaço por meio do
processo fotográfico; Laura Fonseca, em Hotel
Esplêndido, narra o cotidiano das mulheres
que trabalham como prostitutas em hotéis da
Rua Guaicurus; em Exílio, Daniela Paoliello
exibe a relação que seu corpo estabelece com a
natureza ao seu redor em uma performance que
realiza para a câmera; Guilherme Bergamini,
em Educação para todos, registra o abandono
da educação no país; em Fotografia, mediação
e pesquisa biográfica, a pesquisadora Alexandra
Simões apresenta o relato de uma pesquisa-
ação de ensino em fotografia; Isabel Florêncio,
em Fotografia e velocidade: o paradoxo do olhar,
debate a temporalidade do gesto fotográfico
por meio do comentário da obra de quatro
fotógrafos contemporâneos alemães.
O valor desta publicação não se deve apenas
à riqueza dos ensaios publicados. Mas
também à colaboração de cada um que curte
a revista, dos fotógrafos e pesquisadores que
enviaram seus trabalhos, dos curadores que
selecionaram as obras, da equipe editorial que
revisou e diagramou a revista, da CultivArte que
a produziu e da Fundação Municipal de Cultura
que a financiou.
Flávio Valle
Editor
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Este novo Lugar Fotografias e Texto HELENA TEIXEIRA RIOS
O mundo diante da câmera é real, mas o que
perpassa a máquina é a nossa percepção,
captada e transformada no que dá sentido
àquele momento, e que pode ser ressignificado
momentos depois.
A proposta deste ensaio fotográfico é buscar
uma maneira de ampliar a comunicação entre
lugar, imagem e pessoa, tornando as fotos
não simplesmente meras coletas de cenas.
Assim, não há interesse em copiar momentos
acontecidos, enquadrados e dispostos em
composições adequadas, e sim buscar através
da imagem, o que sinto ao conviver naquele
espaço, construindo imagens não óbvias, que
sejam estímulos à construção do local por meio
do meu imaginário.
Desta forma, decidi liberar a câmera do usual,
não olhar o visor e não compor para conseguir,
assim, buscar movimentos, cores, texturas e
sombras. Esta ação possibilitou que surgissem
formas instáveis, sem contorno, desfocadas e
tremidas, onde os gestos iam sendo pensados
e ampliados com o objetivo de transmitir e
descobrir este novo lugar e a minha forma de
representá-lo por meio da minha percepção.
Após este processo, passei a selecionar imagens
que pudessem interagir entre si. Percebi que
as fotos captadas ainda não configuravam ou
passavam o que eu buscava como resultado. Na
pós produção, comecei a sobrepor superfície
sobre superfície, buscando links de cores,
texturas, movimentos, que faziam com que eu
escolhesse uma imagem em detrimento de
outra. Desta maneira, camadas de fotos foram
sendo trabalhadas, permitindo transformar
sombras em manchas e jardins em pinturas,
criando dissoluções, recriações e gerando uma
fruição. Assim, o que passo a mostrar nunca foi
visto, mas é revelado através do meu olhar, do
meu imaginário.
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Fotografia e velocidade: o paradoxo do olhar Texto ISABEL FLORÊNCIO
INTRODUÇÃO
Este texto é parte integrante da palestra que
realizei em 23 de junho de 2015, na abertura da
exposição The day will come when photography
will slow again, dentro da programação
da Trienal de Fotografia, em Hamburgo. A
exposição reúne o trabalho de 4 fotógrafos
alemães contemporâneos (Oliver Rolf, J. Conrad
Schmidt, Hendrik Faure e Ralf von Kaufmann) e
pôde ser vista em Hamburgo no período de 24
de junho a 18 de julho de 2015.
Os quatro artistas utilizam processos artesanais
(fotogravura e colódio úmido) ou processos
híbridos que envolvem a captura digital e
impressão artesanal (entaliogravura). Esses
processos têm em comum o fato de remeterem
aos primórdios da fotografia, um tempo em
que o ato fotográfico exigia do fotográfo uma
consciência prévia em termos estéticos e
conceituais. Este ensaio propõe pensar a relação
entre fotografia e velocidade considerando
os impactos da era tecnológica sobre o gesto
fotográfico e a capacidade perceptiva do sujeito
na sociedade atual.
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VELOCIDADE: EXPERIÊNCIA VICÁRIA A E VISÃO
SEM OLHAR
Em diversos níveis é possível observar como
o mundo atual se organiza em torno das
noções de velocidade, eficiência tecnológica
e competitividade. A valorização da técnica, a
onipresença do instantâneo na realização de
imagens, na transmissão e recepção de dados,
a comunicação em tempo real marcam nossa
experiência na vida privada como também
servem de parâmetro no âmbito político e
econômico global. Essa tríade, velocidade,
tecnologia e competitividade, tem orientado
amplamente nossa forma de viver, tanto no
campo subjetivo quanto material. Seja na micro
ou na macro esfera, a vida contemporânea exige
dos sujeitos modos cada vez mais acelerados
de comportamento (SANTOS, 2006).
Diante deste quadro, torna-se difícil, senão
impossível, não nos rendermos à tentação
permanente da velocidade. Quando a eficácia
se torna um credo e a pressa, uma espécie de
virtude, nos termos de Milton Santos (2006),
somos quase que automaticamente impelidos
a participar desta corrente, que nos arrasta
em busca do “futuro”. Dentro deste credo,
sustentado pela extrema competitividade da
sociedade atual, somos alimentados pela
crença de que ser atual significa também
estar de posse de toda técnica e informação
que possibilite estar sintonizados 24 horas por
dia com o mundo exterior, conectados com a
ampla aldeia que é o mundo globalizado, como
já teorizado pelo sociólogo Marshall McLuhan
em 1960. Ser “up to date” tornou-se palavra
de ordem e a velocidade tornou-se sinal de
eficácia.
É preciso, no entanto, indagar se será esta
velocidade realmente algo imperativo, do qual
não se pode escapar. Estamos realmente
encapsulados nesta nave acelerada em
busca do futuro? Em que medida a velocidade
representa de fato um ganho para a nossa
sensibilidade, para a percepção e para as
relações intersubjetivas, que são a base do bem
estar social?
O conceito de velocidade que problematizo
aqui não está relacionado apenas com o
tempo de exposição necessário para realizar
uma fotografia e transmiti-la ao outro lado
do planeta. Trata-se, sim, de uma noção
filosófica, ideológica, que molda as relações
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e o comportamento dos sujeitos e que, afinal,
condiciona nossa percepção e nossa forma
de nos relacionarmos com o mundo ao nosso
redor.
Minha perspectiva teórica se alinha àquela
do filósofo Paul Virilio, segundo o qual
padecedemos de uma “poluição dromosférica”,
fruto da síndrome de velocidade a que estamos
sujeitos. Para Virilio as próteses visuais (tais
como câmeras, telescópios, screencast, dentre
outros aparelhos de visão) proporcionam
uma forma de percepção artificial que, ao
substituirem o olho humano, acabam por gerar
uma perda no poder de representação dos
sujeitos. Ainda nos termos de Paul Virilio, a era
da velocidade e suas próteses visuais tornam
a visão disléxica e provocam uma redução da
experiência e da fé perceptiva. Vivemos nessa
era, marcada pela velocidade da luz, na qual
buscamos ampliar o alcance de nossa visão
e tornar tudo visível. Por meio da aceleração
técnica torna-se possível, de um lado, avançar
rapidamente no espaço. Encurtamos o espaço,
mas achatamos a paisagem, pois a máquina
de visão, que toma o lugar da visão humana,
transforma-se numa espécie de visão sem
olhar“ (VIRILIO, 1951, p. 59).
Acredito que esta relação possa ser transposta
para a nossa experiência do cotidiano, em
que tudo parece existir para se tornar uma
fotografia, embora a pressa e a aceleração
das ações nos permita olhar cada vez menos
para o nosso entorno. Já que não temos
tempo, fotografamos. Na esperança que esta
imagem armazenada venha a substituir, pelo
menos vicariamente, a vivência que nos escapa
enquanto corremos em busca do futuro.
Há algo na contramão dessa valorização
extrema da velocidade que pede para ser olhado
com mais cuidado. Não são apenas o meio
familiar, as relações subjetivas e a empatia
que padecem com a falta de tempo. Este é
um problema de ordem planetária. Também o
meio ambiente, as instituições e as relações
entre as nações sofrem de um tipo de patologia
cuja origem está no movimento resultante da
aceleração a que todos somos submetidos.
O contraditório é pensar que, justamente porque
fazemos tudo muito rápido, também deixamos
de ter tempo. Deixamos de ter tempo para olhar
o detalhe esquecido na turbulência urbana;
para olhar a subjetividade alheia, os aspectos
efêmeros da vida, o desejo de interação que
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todo sujeito demanda. E o resultado desse
movimento acelerado em busca do futuro, em
busca do que tem que ser atingido o mais rápido
possível – se possível, ontem – é a cegueira em
relação ao presente. A cegueira em relação à
presença, eu diria. Estar aqui e estar em lugar
nenhum tornaram-se sinônimos.
No campo das artes, tem-se ainda o privilégio
de, pelo menos parcialmente, contarmos
com certas ações que, a meu ver, funcionam
como uma espécie de oásis dentro da
paisagem desertificada pela compulsão ao
up to date, da qual somos todos compelidos
a participar. Nessas ações que subvertem o
modo technological fix, nossa subjetividade
encontra caminho na contramão da aceleração
exacerbada em que vivemos. Neste sentido,
eu diria que a arte tem uma missão para além
do campo estético. À arte fica incumbida a
missão de operar como uma espécie de elogio
à lentidão, na medida que oferece espaços
simbólicos de contemplação e de reflexão. É
essa experiência que temos o prazer de fruir
por meio das obras dos quatro artistas reunidos
nesta exposição que, em sentidos diversos,
consiste numa expressão do que a lentidão – a
qual eu denomino de modo NO up to date – pode
operar no campo estético e sensível.
FOTOGRAFIA, VELOCIDADE e A OBLITERAÇAO
DO OLHAR
A aceleração dos processos técnicos e a
velocidade da sociedade atual tiveram um
impacto relevante nas nossas forma de
expressão e nas nossas formas de comunicação
com as imagens. Detenho-me, especialmente,
nos aspectos que se referem ao gesto fotográfico
e à imagem fotográfica em si. Vários aspectos
e atos empreendidos isolada ou coletivamente
dentro da história da fotografia mostram que
a velocidade tem uma relação íntima com a
evolucão estética da linguagem fotográfica,
mas que também há nesta relação aspectos de
ordem contrasensual. Cito apenas alguns:
É sabido que a primeira imagem técnica,
realizada por Niépce em 1826, durou cerca
de 8 horas de exposição. O primeiro processo
fotográfico à base de sais de prata, o
daguerreótipo, divulgado ao público na França
em 1839, representou um grande salto no
que diz respeito à aceleração do tempo de
exposição, porque necessitava apenas de
alguns minutos para que uma fotografia fosse
realizada. Cenas urbanas e naturezas mortas
eram alvo das primeiras imagens. Mas as ruas
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pareciam sempre vazias, porque o longo tempo
de exposição não permitia que a imagem dos
transeuntes fosse capturada. Apenas por acaso,
em Paris no sec. XIX, foi possível registrar pela
primeira vez, um homem que engraxava seus
sapatos numa esquina.1
Nessa época, uma fotografia borrada era
considerada uma fotografia imperfeita, ruim,
porque não oferecia o que a fotografia trazia
de mais novo na história da representação: a
fidelidade oferecida por um recurso técnico.
Devido a restrições técnicas resultantes da
baixa sensibilidade da emulsão e da baixa
qualidade ótica das objetivas, a realização
de uma fotografia exigia longos tempos de
exposição. Assim, para evitar o borrão, eram
utilizados recursos tais como objetos de cena,
cadeiras de pose, apoios atrás da cabeça, a fim
de imobilizar o posante.
A partir de 1850, o uso da emulsão de colódio
úmido (processo utilizado pelos artistas Oliver
Rolf e J. Konrad Schmidt) foi revolucionário para
a fotografia. Primeiramente porque, dada a alta
sensibilidade da emulsão, era possível realizar
tempos de exposição da ordem de segundos;
depois porque o suporte de vidro permitia a
reprodutibilidade com extrema fidelidade e
verossimilhança.
Esses são apenas alguns dados que mostram
como, desde a sua invenção, a fotografia tentou
superar os limites impostos por longos tempos
de exposição. À medida que os processos de
apreensão se tornaram mais sensíveis e as
objetivas mais luminosas, tornou-se também
possível o uso de tempos mais rápidos. Assim,
a aceleração dos processos permitiu revelar
aspectos da realidade que escapam ao olhar
humano como, por exemplo, a ergonomia
do movimento de animais e de pessoas.
Nesse sentido, as investigações visuais feitas
por Eadweard Muybridge e também por
Étienne-Jules Marey trouxeram contribuições
importantes tanto no campo científico como
também estético, na história da representação.
De outro lado, a aceleração dos processos
e a agilidade de câmeras portáteis também
tornaram a fotografia uma atividade fácil e mais
comercial. A partir de 1880, com o lançamento
das câmeras portáteis, qualquer pessoa
1 Daguerre realizou esta imagem em 1838 em Paris. Cf. ROSENBLUM.pags. 17-20.
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poderia ser capaz de realizar uma fotografia. A
primeira campanha da Kodak traz, por exemplo,
uma mulher jovem, muito elegante, utilizando
uma câmera. Vista de forma crítica e irônica,
pode-se dizer que desde então, todo mortal,
até mesmo as mulheres elegantes e vaidosas,
seriam capazes de fotografar.
Ironia à parte, pode-se constatar que aceleração
nos meios de apreensão e distribuição da
imagem foi decisiva para a estética fotográfica
ao longo do século XIX e XX, especialmente
quando o instantâneo tornou-se possível e a
reprodução de imagens na mídia impressa
tornou-se viável. Estes fatores trouxeram
a possibilidade de registrar e fazer circular
aspectos da vida cotidiana, que passaram a ser
densamente divulgados em jornais, panfletos,
revistas e cartazes de todos os tipos. Desde
então, passamos a conviver com as imagens
de forma tão próxima que quase não as
enxergamos mais na turbulência da vida diária.
Mas esta aceleração dos processos técnicos
tornou-se também, de certa forma, um
problema para a fotografia. À medida que os
aparelhos se tornaram mais ágeis, leves e
automatizados, o gesto fotográfico passou a
ocupar todos os lugares e ao mesmo tempo
lugar nenhum, porque se tornou algo consumido
no dia a dia, sem muita reflexão prévia, e sem
consequências. A eficácia tecnológica e a
agilidade dos meios de reprodução serviram,
de um lado, para popularizar a fotografia,
mas, de outro lado trouxe consigo um menor
compromisso na forma de observar e de se
valer da técnica.
Olhar, ver e perceber não são sinônimos. Na era
digital e de aparelhos cada vez mais compactos,
a quantidade tomou lugar da qualidade e o
ato consequente, contemplativo em relação
ao olhar e à percepção, foi substituído pelas
técnicas de edição, tratamento e manipulação
de imagens. A contemplação foi substituída
pela aceleração e pela compulsão do disparo.
Antes mesmo que a imagem seja percebida,
ela já é capturada. Este é um dos principais
aspectos problematizados pelo filme Blow Up
na década de 1970. O filme tornou-se um marco
na história do cinema e dentro dos estudos da
linguagem fotográfica.
O paradoxal é pensar que quanto mais rápido
se realiza uma imagem, menos contato se
estabelece com a cena diante da câmera.
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Acredito que hoje seja difícil para a nova
geração, que já cresceu na era digital, imaginar
um tempo em que a fotografia era feita “às
cegas”, desejada como potencialidade através
do visor, mas vista, materialmente, apenas
dias, às vezes semanas, depois da exposição do
material sensível.
Voltemos à expressão que usei anteriormente
para chegar ao centro da minha reflexão:
eu usei o termo fotografia feita às cegas,
intencionalmente, referindo-me ao tempo
quando, para fotografar, qualquer pessoa
precisava ter não somente perícia técnica para
controlar o aparelho e processar suas imagens.
Acima de tudo, precisava ter uma visão anterior,
para guiar a operação adequada do aparelho
e do aparato de laboratório a fim de atingir
seu objetivo. Cada fotografia envolvia muito
investimento de tempo e de recursos. Acima de
tudo, cada fotografia envolvia uma percepção e
um ato de observação prévios através do visor
ótico. Isto é, envolvia o ato de imaginar.
Há na era tecnológica uma tendência paradoxal
de selecionar a imagem não no momento da
captura, mas sim na tela. Isso significa que a
fotografia não é mais resultado de um ato de
percepção anterior. O momento da tomada é
decidido pelo aparato e não exatamente pela
sensibilidade do fotógrafo.
Hoje, dispara-se antes mesmo que a percepção
seja acionada. Dispara-se o botão dezenas ou
centenas de vezes e o ato de perceber, que é a
grande potência e habilidade do ato criativo, é
delegado ao aparelho. A tela digital tornou-se,
portanto, além de instrumento de visualização
da imagem, um meio através do qual o mundo
é observado e que oferece o mundo capturado
como um troféu, como atestado de presença
a ser mostrado no futuro. E seguimos assim.
Contentamo-nos com a imagem armazenada
e levada no chip, sem pensar que a fotografia
é apenas o esqueleto (ou a múmia) do ato
perceptivo.
O que se observa não é mais a cena, mas uma
representação de segunda ordem da cena.
Nos termos de Platão, vivemos na era das
projeções, em que as imagens substituem a
nossa relação com o mundo. Perde-se, assim,
o contato com mundo referencial e valoriza-se
mais a relação de segunda mão que a imagem
oferece. A relação háptica com o mundo é
substituída pela ansiedade em capturar a vida
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que se passa na tela através de dezenas ou
centenas de disparos.
Disparo e captura. Termos de combate, que
nada têm a ver com contemplação. Nada têm a
ver com a percepção acurada, necessária a todo
fotógrafo, no tempo em que o ato fotográfico
ainda exigia uma certa consciência estética e
uma modo consequente de se utilizar o aparato
como meio de expressão de uma sensibilidade
interior.
Na fotografia analógica, a imagem latente é
parte constituinte da poética que envolve o gesto
fotográfico. Uma imagem que está ali, invisível,
fruto da imaginação e da perícia técnica, mas
que aguarda silenciosamente ser revelada, ser
dada à visão. Eu me iniciei na fotografia ainda na
época analógica e consigo compreender muito
bem o que significa esperar horas, às vezes
dias, para ver o resultado de um shooting. Um
misto de mistério e ansiedade. Um espaço de
tensão e expectativa que compreende a relação
entre o imaginado, o percebido e o realizado
que só se pode degustar quando a fotografia
não é dada a ver imediatamente. Hoje não se
usa mais fazer fotos às cegas. Mas fazem-se
fotos cegamente. A velocidade, a eficácia da
técnica trazem para a fotografia a garantia e
a agilidade do resultado, mas retiram do ato
fotográfico a capacidade de imaginar, de ante-
ver, de criar imagens antes mesmo que elas
sejam efetivadas através do aparelho.
Se, de um lado, a era da velocidade nos oferece
a possibilidade de obtenção e difusão rápidas
de imagem, de outro, ela nos retira este aspecto
contemplativo e ritualístico que envolve o gesto
de se fazer e de se observar as imagens. Este
exercício visual, que permite que uma imagem
se apresente virtualmente diante do nosso olhar
antes que ela seja capturada pela câmera, é o que
a velocidade nos rouba enquanto potencialidade
imaginadora. Um tipo de cegueira se interpõe
entre nossa sensibilidade e o mundo.
Sem dúvida, o avanço técnico trouxe para
a linguagem fotográfica novos recursos
expressivos e permitiu ainda a criação de novas
formas estéticas. Os tempos de exposição cada
vez mais curtos e a aceleração dos processos
(de captura e transmissão) permitiram, como
já esboçado anteriormente, capturar aspectos
da vida que não eram perceptíveis a olho
nu. E esses aspectos foram distintivos para
potencializar o caráter inusitado, metonímico
e específico da linguagem fotográfica. Mas a
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velocidade dos processos e o uso de aparelhos
cada vez mais tecnológicos pode conduzir à
obliteração do olhar, na medida que o aparelho
deixa de estar à serviço de uma sensibilidade,
de um gesto perceptivo anterior à captura da
imagem.
ELOGIO AO GESTO PERCEPTIVO
Não é minha intenção valorizar o modo “no up to
date” acima de todas as questões que envolvem
a linguagem fotográfica. Nem mesmo pretendo
colocar o processo ou o aparato técnico à
frente dos aspectos conceituais e estéticos, que
considero serem o cerne da potência figurativa
de uma imagem fotográfica. A reflexão acima
pretende contribuir para a compreensão de
que, para além dos processos artesanais
(complexos, trabalhosos, lentos e que remetem
estética e tecnicamente aos primórdios da
fotografia), o que reúne o trabalho desses
quatro fotógrafos é a consicência em torno do
gesto perceptivo que antecede o ato fotográfico.
O que os une é principalmente a forma como os
processos utilizados colaboram para que seja
estabelecida uma outra relação com o olhar.
Assim, de modos distintos, cada artista nos
conduz a pensar o gesto fotográfico em si, a sua
relação com o olhar e o impacto da velocidade
na percepção do nosso entorno: percepção do
outro, dos espaços simbólicos na vida cotidiana,
do detalhe na vida urbana, do nosso próprio ato
de imaginar, perceber e realizar imagens.
A grande mensagem deste encontro estético é
induzir-nos a refletir sobre o gesto fotográfico
como um ato de contemplação, que nos
solicita envolvimento perceptivo e consciência
estética e conceitual. Para além dos processos
artesanais aqui envolvidos, esses artistas nos
mostram que a aceleração da técnica coloca
a nossa percepção em risco. Risco de sermos
atropelados pela agilidade e pela falta de
reflexão que envolve a vida acelerada. Risco de
que o olhar e a percepção sejam obliterados
pela aceleração técnica.
Esses artistas não resgatam apenas processos
artesanais que reportam ao início da fotografia.
Através de seus processos, estes artistas
resgatam na verdade a atenção e a potência
perceptiva que todos nós acabamos perdendo na
vida acelerada atual. A atitude de envolvimento,
compromisso estético e contemplação, em
que as decisões técnicas e plásticas são
tomadas lentamente, é mais que uma simples
característica de restrição do processo
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utilizado. É, na verdade, uma opção filosófica,
ética e estética diante do gesto fotográfico e
da imagem que se pretende realizar. Nesses
termos, a maior contribuição desta mostra
não é apenas o resgate histórico de técnicas
trabalhosas nem a estética resultante delas,
mas, sim, a postura filosófica e estética diante
do que a velocidade representa para a vida e,
mais especificamente, o que ela significa para
a potencialidade do olhar. Esses artistas nos
dizem, afinal, que os gestos de olhar e perceber
também têm se tornado anacrônicos.
BIBLIOGRAFIA
BURGIN, Victor. Photographic practice and art theory. In: ___ (Ed.). Thinking photography. London: MacMillan Publishers, 1982a. p. 39-83.KRAUSS, Rosalind. O fotográfico. Barcelona: Gustavo Gili, 2002a.___. The optical unconsciouns. London: MIT Press, 1994.___. Anmerkung zum Index: Teil I. In: WOLF, Herta (Hg.). Paradigma Fotografie: Fotokritik am Ende des fotografischen Zeitalters. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2002b. p. 140-157.FLORÊNCIO-BRAGA, Isabel. Figuralidades: da tradução ao poético na fotografia contemporânea. Belo Horizonte: UFMG, 2009. FLORÊNCIO-PAPE, Isabel. Andreas Müller-Pohle: poesia visual e de-figuração. In: ALETRIA: revista de estudos de literatura, v.6. Belo Horizonte: POSLIT, Faculdade de Letras da UFMG. Pp. 151-168. SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: EdUSP, 2006.VIRILIO, Paul. “Echtzeit-Perspektiven”. In: Christos M. Joachimides [et.al.] (ed.), Metropolis (Katalog zur Internationalen Kunstausstellung, Matrin-Gropius-Bau), Berlin 1991, p. 59.ROSENBLUM, Naomi. A world history of photography. New York: Abbeville, 1984.
29
Hotel Esplêndido Fotografias e Texto LAURA FONSECA
O projeto fotográfico “Hotel Esplêndido”
foi realizado com o objetivo de registrar o
contexto da vida diária das mulheres que
trabalham como prostitutas nos hotéis da Rua
Guaicurus, conhecido ponto de prostituição em
Belo Horizonte. Trata-se de uma perspectiva
decididamente feminina e compassiva,
recusando tendências exploradoras banais e
com foco na condição humana dos sujeitos
retratados.
A ênfase desse projeto está, portanto, no contexto
da vida diária das prostitutas, e não apenas
nas atividades e atitudes inerentes à profissão.
Para tanto, esse trabalho registra não apenas
as mulheres, mas também os ambientes,
os objetos, as situações “desmontadas” de
um tempo mais íntimo, do “entre”. Trata-
se de momentos que a artista, como mulher
e fotógrafa, teve acesso e possibilidade de
documentar ao longo das inúmeras visitas
realizadas aos hotéis da Rua Guaicurus a partir
de 2011. Esse recorte é fundamental para a
descrição da vida dessas mulheres, além de
contribuir para a construção de corpos que não
são aqueles registrados na mídia tradicional.
Nesse contexto, o projeto tem como objetivo
aproximar e modificar o olhar do público para a
realidade cotidiana das prostitutas por meio de
uma abordagem humana, respeitosa e livre do
sensacionalismo habitual que está associado a
trabalhos com esse tema. É uma oportunidade
para modificar a visão convencional da
sociedade sobre a prostituição através das
artes audiovisuais, fornecendo uma perspectiva
alternativa que vai muito além dos preconceitos
legais, morais e religiosos, que, infelizmente,
continuam a prevalecer na sociedade atual.
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31Hotel Esplêndido
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33Quarto No 207 / 1
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35Quarto No 210 / 4
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Quarto No 121 / 1
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39Quarto No 210 / 3
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Quarto No 113
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Quarto No 105
44 Quarto No 114 / 2
45Quarto No 117 / 1
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47Quarto No 234
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Quarto No 121 / 2
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Quarto No 210 / 1
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Quarto No 137
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Quarto No 123
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Exílio Fotografias e Texto DANIELA PAOLIELLO
Nas imagens de EXÍLIO é estabelecida uma
relação entre fotografia e performance, em que
o corpo atua exclusivamente para a câmera,
distante do olhar direto do público. A encenação
se presta à narrativa fotográfica, já parte da
lógica bidimensional, do tempo estático e mudo.
Fotografar sem ver a cena: é uma imagem da
ordem do antes (imagem-projeção) e do depois
(imagem ao acaso). Na gênese da fotografia,
o sensor da câmera é invadido pela luz, sem
a direção de um olho; a imagem fotográfica
surge de um instante anônimo, na abstenção do
sujeito. Não há caça, não há um ver-decisivo.
É como um tiro ao contrário. Não é a câmera
que vai ao encontro do objeto, mas um corpo
que se atira sobre o disparo: corpo-projétil.
Na relação do corpo com a natureza, ele retoma
aquilo que lhe é mais próprio, sua dor no
encontro com a exterioridade, sua condição de
corpo afetado pelas forças do mundo. Vivencia
a experiência do ser deglutido, processado,
reinventado na ação relacional, em que o corpo
se desprograma, volta a ser um campo de forças
vivas que afeta o mundo e é por ele afetado.
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Fotografia, Mediação e Pesquisa Biográfica:uma experiência de ensino em artes visuais
Texto ALEXANDRA SIMÕES DE SIQUEIRA
1. A LINGUAGEM VISUAL
As imagens sempre foram influentes na
existência do homem. Desde o nosso surgimento
como espécie, somos produtores de imagens.
No mundo contemporâneo, as imagens
são onipresentes. Vivemos sob uma chuva
ininterrupta de imagens, sobretudo de imagens
técnicas, como a fotografia. Hoje todo mundo
possui pelo menos um aparelho fotográfico e o
utiliza para fotografar. Mas isto não quer dizer
que as pessoas tenham o entendimento dos
processos envolvidos nem a garantia de que as
imagens produzidas sejam o resultado de suas
intenções.
As mudanças tecnológicas alteraram não apenas
o modo de circulação e reprodutibilidade, mas
também nossa subjetividade quanto ao modo
de ver. Atualmente, a convergência midiática
incide sobre nossas escolhas. Ana Mae Barbosa
faz um interessante alerta sobre esta situação:
A tecnologia não apenas transformou as práticas cotidianas, mas também os modos de produção intelectual [...]. Percepção, memória, mímesis, história, política, identidade, experiência, cognição são hoje mediadas pela tecnologia. A tecnologia é assimilada pelo indivíduo de modo a reforçar sua autoridade, mas pode também mascarar estratégias de dominação exercidas de fora. O fator diferencial dessas duas hipóteses é a consciência crítica.(BARBOSA, 2005: 111)
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Flusser também aborda o perigo da alienação
do homem frente à tecnologia. Partindo da
fotografia para denunciar a dominação que
sofremos muitas vezes sem saber, o autor
afirma que a pessoa “domina o aparelho, sem,
no entanto saber o que se passa no interior
da caixa. Pelo domínio do input e do output,
o fotógrafo domina o aparelho, mas pela
ignorância dos processos no interior da caixa,
é por ele dominado” (FLUSSER, 2002: 25).
Contudo, ele também aponta para possíveis
saídas:
O aparelho Fotográfico é o primeiro, o mais simples e relativamente mais transparente de todos os aparelhos. O fotógrafo é o primeiro “funcionário”, o mais ingênuo e o mais viável de ser analisado. [...] Portanto, a análise do gesto de fotografar, este movimento do complexo-“aparelho-fotógrafo”, pode ser um exercício para a análise da existência humana em situação pós-industrial, aparelhada.(FLUSSER, 2002: 28)
Neste sentido, a nossa proposta foi a de uma
pesquisa-ação de mediação e criação de
imagens a partir do desvendamento de um
dispositivo tecnológico como a fotografia, numa
tentativa de suscitar a crítica no indivíduo
e a consciência de suas escolhas, de suas
subjetividades e de seu papel de criador e
consumidor de símbolos.
2. A PESQUISA-AÇÃO
Este trabalho foi desenvolvido com um grupo de
13 crianças de 10 a 12 anos, no segundo semestre
de 2013, durante as oficinas de arte do Centro
Educativo Escolápio1, em Belo Horizonte, MG,
Brasil, que oferece educação complementar à
escola. O curso teve duração de 30 horas, com
duas aulas semanais, durante o 2° semestre de
2013.2
2.1 A EXPERIÊNCIA
Um ponto de partida importante para a pesquisa
foi a proposição formulada por Jorge Larrosa de
“pensar a educação a partir do par experiência/
sentido”, de modo a explorar uma via mais
1 Itaka-Escolápios é uma Fundação criada e impulsionada pela Ordem religiosa das Escolas Pías e pelas fraternidades escolápias. A partir do trabalho social desenvolvido pela “Pastoral do Menor” desde 1995, o Centro Educativo-Social Escolápio foi inaugurado em julho de 2010 e atende uma área com cerca de 10 bairros da periferia de Belo Horizonte.
2 A presente pesquisa foi aprovada como Trabalho de Conclusão de Curso para obtenção do título de Especialista na Pós-Graduação Lato Senso Mediação em Arte, Cultura e Educação da Escola Guignard da Universidade do Estado de Minas Gerais, sob a orientação da Professora Rosvita Kolb Bernardes.
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existencial e estética sem cair, no entanto, no
existencialismo ou esteticismo (BONDÍA, 2002,
p. 19). Para tal, foram propostos três ateliês
concomitantes: um ateliê biográfico, um ateliê
fotográfico e um ateliê de mediação. O ateliê
é entendido como um local de provocação,
como propõe Malaguzzi, que permite “novas
combinações e possibilidades criativas
entre as diferentes linguagens (simbólicas)”
(Malaguzzi,1990: 84).
2.2 ATELIÊ BIOGRÁFICO
Segundo Jorge Larrosa, “o sujeito da
experiência é, sobretudo, um espaço onde tem
lugar os acontecimentos” (Bondía,2002: 19).
Deste modo, essa proposta se colocou como
um lugar de receptividade de subjetividades e
narrativas de cada um dos participantes, numa
escolha metodológica em que “a narrativa é
o lugar onde o indivíduo humano toma forma,
onde ele elabora e experimenta a história de
sua vida” (Delory-Momberger, 2006, p. 363).
Já no primeiro encontro, os alunos foram
estimulados a falarem das suas relações com
a fotografia. Ela apareceu ligada ao espaço da
memória e ao território do afeto. Todos também
foram convidados a levar uma foto que eles
gostassem muito para falar sobre ela, sobre as
histórias a elas relacionadas e os sentimentos
que elas evocavam. Metade da turma levou
fotos com os irmãos, em que se podia perceber
a importância dessa relação na constituição
daqueles sujeitos. É o que vemos na fala de
Davi, de onze anos, que levou um retrato de
quando ele tinha três anos, no quintal de casa,
junto ao irmão mais velho: “eu trouxe esta foto
por causa de que me representa muito [sic]”.
Delory-Momberger, pensando sobre a
fotografia, o trabalho de memória e formação de
si, coloca que “o face a face com as imagens do
passado permite a recuperação de lembranças,
fornece um espaço de encontro dos indivíduos
com a sua própria imagem e daqueles que
lhes são próximos, ativando assim um trabalho
biográfico que participa de um movimento de
construção de si.” (Delory-Momberger, 2010:
96).
Ao mesmo tempo, todas as imagens produzidas
durante as aulas retratavam o bairro, os
colegas e os parentes e construíam um novo
repertório de imagens e significados para
aqueles sujeitos. Esse novo repertório sempre
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era compartilhado quando as imagens eram
exibidas nos ateliês de mediação, seguindo
“um caminho metodológico no qual as histórias
vividas e compartilhadas nem sempre se
apresentam pela escrita (o caminho mais
comum, entre os procedimentos escolares)”,
mas pelo oferecimento de um espaço “onde a
palavra une-se a outras materialidades” para
as narrativas de si mesmo (Bernardes, 2010:
75).
2.3 ATELIÊ FOTOGRÁFICO
Neste espaço, os alunos foram apresentados
aos processos que deram origem à fotografia,
como o processo físico de formação da imagem
e o processo químico de revelação e fixação de
uma imagem.
O primeiro momento foi a intervenção “A
Experiência Renascentista”, que consiste em
repetir uma ação difundida a partir do século XVI:
o ato de observar dentro de uma câmera escura.
Este ato no ateliê foi sempre acompanhado
de um “oh” coletivo, quando se olhava pela
primeira vez a projeção da imagem exterior na
tela translúcida no interior da câmera. Trata-
se de um momento de descerramento de
um dispositivo que possibilitou o surgimento
daquilo que chamamos de imagem objetiva,
que é o tipo de imagem dominante no mundo
moderno e contemporâneo. A isto se seguiu
a construção de pequenas câmeras escuras,
uma por aluno, a fim de que eles pudessem se
apropriar completamente do processo e dos
conhecimentos imbricados a ele.
Em um segundo momento, foi montado um
pequeno laboratório fotográfico e a primeira
atividade desenvolvida no laboratório foi a
realização de fotogramas, que consiste na
impressão de objetos diretamente sobre o
papel fotográfico preto e branco. Em uma
toalha esticada no chão, colocou-se uma
grande quantidade de plantas secas (folhas e
ramos diversos) e cada aluno pode escolher
aquelas que mais lhe atraiam para compor seu
fotograma. Segundo Bernardes, “em momentos
como este, de escolha frente aos materiais a
serem utilizados, é que a percepção estética
se manifesta” (Bernardes,2010: 79). Nas fotos
abaixo, podemos perceber o cuidado e a atenção
de Fabrício, de onze anos, ao escolher as folhas
para compor seu fotograma, que traduz sua
sensibilidade e suas escolhas estéticas.
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FIGURA 1 - Foto de Fabrício escolhendo folhas e ramos para a realização do seu fotograma.
FIGURA 2 - Fotograma de Fabrício digitalizado. Fonte: Fotograma do Fabrício (negativo e positivo) - 2013
A atividade subsequente foi uma fusão das
duas práticas anteriores, com a realização de
fotografias pinhole feitas em papel fotográfico
preto e branco dentro de uma latinha com um
buraco de agulha. Este é um processo que
requer do sujeito parar para pensar, parar
para olhar, errar, acertar, observar, examinar
o trabalho do outro, pensar mais devagar,
suspender o automatismo da ação, cultivar a
ação, aprender a lentidão, ter paciência e dar-
se ao tempo e ao espaço. Nas fotos a seguir,
vemos Thalia, de dez anos, preparando a sua
câmera pinhole, posando para ela e o resultado
deste autorretrato, tornado digitalmente
positivo para o ateliê de mediação.
FIGURA 3 - Thalia posicionando a sua câmera pinhole para fazer uma foto.
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FIGURA 5 - Pinhole de Thalia digitalizado para o ateliê de mediação e impresso para a exposição.Fonte: Pinhole da Thalia positivado digitalmente - 2013
As crianças se apropriaram rapidamente
do laboratório. Eles discutiam as variáveis
que determinavam cada foto e, de posse de
suas análises e conclusões, partiam para a
próxima foto com uma intenção mais definida e
consciente. Era visível neles o empoderamento
de um processo, dominando suas consequências
e seus produtos.
Um quarto momento consistiu na construção de
pequenas câmeras fotográficas com caixas de
fósforo e filme negativo colorido. Esta ocasião
foi muito interessante, pois foi a primeira vez
que eles viram um filme e, posteriormente, um
negativo de filme, já que todos eram nascidos
na era do digital. Mais tarde, um aluno realizou
uma foto no celular usando o recurso digital
de efeito negativo, numa clara transformação
do conhecimento apreendido em obra
intencionalmente criada (ver figura 8).
2.4 ATELIÊ DE MEDIAÇÃO
O ateliê de mediação foi um espaço para a
circulação dos discursos, do sujeito, da arte e
da cultura e para tal foi o lugar da escuta e da
fala.
FIGURA 4 - Thalia realizando um autoretrato com a sua câmera pinhole.
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FIGURA 6 - Ana Guilia e Fabrício comentando um pinhole realizado na oficina durante o ateliê de mediação.
À medida que as imagens iam sendo produzidas
e digitalizadas, todas eram projetadas e uma
leitura coletiva era realizada, o que permitia
a cada participante ter a oportunidade de
comentar as imagens, os seus significados
simbólicos, bem como revelar sua experiência
com aquela forma de expressão.
Ao mesmo tempo, os trabalhos de alguns
fotógrafos eram exibidos para que os alunos
tivessem acesso a referências de uma cultura
visual a partir do ponto de vista da arte, e não
do mercado. A exibição desses trabalhos era
sempre acompanhada de leituras coletivas
em que todos eram estimulados a comentar e
opinar sobre as imagens.
Durante grande parte do trabalho, a cada
aula um aluno era selecionado para fazer a
documentação das atividades com uma câmera
digital disponível. Estas imagens também
eram projetadas para as análises e reflexões
do grupo, o que implicou uma experiência de
metalinguagem. Os alunos passaram a incluir
suas imagens e a si próprios nas fotografias
dos outros, gerando uma série de imagens de
grande força visual e apropriação simbólica,
como vemos nas fotos a seguir.
FIGURA 7 - Foto de autoria de Davi, cuja sombra esta inserida na imagem, feita com um celular durante a cobertura do ateliê de mediação, quando era projetada uma foto de Glauber, que já exibia a sua sombra sobreposta ao retrato que fez do irmão mais novo com uma caixa de fósforos.Fonte: Foto de Davi feita com um celular - 2013
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3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A metalinguagem parece surgir como uma
manifestação de alteridade simbólica, quando
aquelas crianças, através da imagem do outro,
incluem sua visão ou sua própria imagem, num
diálogo que expande muito as possibilidades
de significação das imagens. Foi um exercício
criativo de alteridade, em que uns incluíam sua
autoria na autoria do outro.
Toda a proposta esteve baseada no protagonismo
de seus participantes, pelo estado de
“experiência” e acolhimento das subjetividades
e saberes de cada aluno para a construção de
FIGURA 8 - Foto de autoria de Júnior durante a cobertura do ateliê de mediação, que aqui utiliza o efeito negativo do celular para realizar a foto de Fabrício junto ao seu autoretrato feito com uma caixa de fósforos que utilizava filme negativo. Fonte: Foto de Júnior feita com um celular.
um conhecimento coletivo. Todos estávamos
envolvidos com as técnicas e materiais usados,
com as ideias a serem exploradas e com o
desenvolvimento do trabalho de cada um, ou
seja, compartilhávamos ateliês.
Os ateliês ofereciam a atmosfera para se
vivenciar diferentes gestos de criação, de
observação, de escuta, de fazer de novo, de
suspender o automatismo da ação e de falar
sobre o que nos acontece. Fundamentalmente,
tudo foi realizado de forma coletiva, o que
remeteu todos participantes à importância da
convivência social para a produção cultural e
artística.
O que percebo é que a experiência criativa
e sensível pode subverter o fascismo da
linguagem, numa referência à fala de Roland
Barthes em seu ensaio “A Aula”: “Mas a língua,
como desempenho de toda linguagem, não
é nem reacionária, nem progressista; ela é
simplesmente: fascista; pois o fascismo não é
impedir de dizer, é obrigar a dizer” (BARTHES,
2007: 14). Para ele, só a literatura teria condições
de lograr este sistema, ou seja, a arte.
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REFERÊNCIAS
Barbosa, A. M. Dilemas da arte-educação como mediação cultural em namoro com as tecnologias contemporâneas. In: ______(org.). Arte-educação Contemporânea: consonâncias internacionais. São Paulo: Cortez, 2005. cap. 2, p. 98-112.Barthes, R. Aula. 2 ed. São Paulo: Cultruix, 2007. 185 p.Bernardes, R. K. Segredos do coração: a escola como espaço para o olhar sensível. Caderno CEDES. Campinas, v. 30, n. 80, p. 72-83, 2010.BONDÍA, J. L. Notas sobre a experiência e o saber de Experiência. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, n. 19, p.20-28, 2002. Delory-Momberger, C. Formação e socialização: os ateliês biográficos de projeto. Revista Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 32, n. 2, p. 359-371, 2006.Delory-Momberger, C. Álbuns de fotos de família, trabalho de memória e formação de si. In: VICENTINI, P.P.; ABRAHÃO, M. H. (Org.) Sentidos, potencialidades e usos da (auto) biografia. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010.Delory-Momberger, C. De onde viemos? O que somos? Para onde vamos?. In: Eggert, E.; Fischer, B. D. (Org). Gênero, geração, infância, juventude e família. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2012.Flusser, V. Filosofia da Caixa Preta. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002. 82 p.Malaguzzi, Loris. História, Idéias e Filosofia Básica. In: EDWARDS, C. (org). As Cem Linguagens da Criança: Abordagem de Reggio Emilia na educação da primeira infância. Porto Alegre: Artmed, 1999. cap. 3, p. 59-104.
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Educação para todos Fotografias GUILHERME BERGAMINI e Texto MARCELO SEVAYBRICKER
Sociedades democráticas pressupõem
cidadãos educados, isto é, bem informados e
críticos, tanto porque se requer que eles sejam
capazes de determinar suas preferências e
escolher entre alternativas distintas, tanto
porque se supõe que devam fiscalizar seus
representantes e agir na política diretamente,
quando necessário.
Nesse contexto, a educação é considerada um
direito universal e, consequentemente, um dever
do Estado, que deve provê-la gratuitamente e
com qualidade a toda comunidade que governa.
O Brasil, marcado pelo seu passado
profundamente desigual e injusto, vive ainda
hoje o desafio de garantir esse bem essencial
a seu povo.
E a democracia brasileira parece ser, então,
um sonho ainda mais distante quando se nota,
por um lado, que nossa carência de educação
pública inicia-se por sua dimensão mais
elementar – a do espaço físico das escolas
(salas, carteiras, livros, etc.) -, e, por outro lado,
que priva-se, sobretudo, precisamente aqueles
que por ela mais poderiam ser beneficiados: as
crianças do país.
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COLABORADORES
Alexandra Simões de Siqueira
Flávio Valle
Daniela Paoliello
Guilherme Bergamini
Helena Teixeira Rios
Alexandra Simões de Siqueira é graduada em História pela UFMG e tem Pós-Graduação Lato Sensu em Mediação em Arte, Cultura e Educação pela Escola Guignard da UEMG. Foi pesquisadora do Museu de História Natural da UFMG e do Projeto Arqueológico Franco Brasileiro “Pré-História e Paleo-Ambiente da Bacia do Paraná”, coordenado pelo Museu de História Natural de Paris e pela USP. Foi também professora de história concursada da rede municipal de ensino de Belo Horizonte. Desde 1994 trabalha como fotógrafa profissional, atendendo ao mercado editorial de Minas Gerais, e atualmente dedica-se à fotografia no âmbito artístico e educacional.
Doutorando em Comunicação Social na UFMG. Mestre e Bacharel em Comunicação Social, habilitação Jornalismo, pela mesma instituição. Professor com experiência em atividades de ensino, pesquisa e extensão nas seguintes áreas: Cultura Visual, Fotografia, Imagem, Narrativa e Jornalismo. Editor e Curador da revista Ensaio Fotográfico. Produtor Cultural com experiência na realização de projetos fotográficos. Colaborador do Núcleo de Estudos Tramas Comunicacionais: Narrativa e Experiência. Membro fundador do Fora das Bordas, coletivo de artes visuais integradas.
Mestranda no programa de ARTES da UERJ. Foi contemplada com o XIII Prêmio Funarte Marc Ferrez de Fotografia. Participou de exposições no Museu de Arte da Pampulha, Madalena CEI, Laboratório Curatorial SP-ARTE, Galpão 5 Funarte, Inverno Cultural de São João Del Rei, entre outras. Conta também com publicações virtuais em revistas internacionais como a LatPhotomagazie e a L’Oeil de la Photographie, além de espaços como o Fórum Foto Latino Americano, Paraty em Foco e Olhavê. Publicou em abril de 2015 seu primeiro livro: Exílio.
Guilherme Bergamini tem 36 anos e nasceu em Belo Horizonte, Minas Gerais. Graduado em Jornalismo há 10 anos, trabalha com fotografia há muito tempo. Com essa arte, Bergamini procura expressar suas vivências pessoais, sua visão de mundo e suas angústias. Apaixonado pela fotografia desde a infância, Guilherme é um entusiasta das novas possibilidades contemporâneas que esta técnica permite. Crítico e persistente, o artista tem a fotografia como meio de crítica política e social. Premiado em concursos nacionais, participou de festivais e exposições coletivas e individuais, além de ter fotos publicadas em diferentes veículos de comunicação brasileiros e estrangeiros.
Helena Teixeira Rios graduou-se em Arquitetura e Urbanismo em Belo Horizonte, Minas Gerais. Fez máster na Universidad Politécnica de Catalunia em Barcelona, na Espanha. Em 2012 começou a trabalhar com fotografia, tendo como objetivo a elaboração de ensaios fotográficos. Realizou o Curso Completo de Fotografia na Escola de Imagem, concluindo-o em set/2014, e graduou-se no em Fotografia, Arte e Cultura na Puc Minas em julho/2015. Participou, em jul/2015, da exposição coletiva no Pátio de Convivência do Centro Cultural do Banco do Brasil, intitulada “Cultura e Liberdade”, sob coordenação do professor e fotógrafo Guto Muniz.
Isabel FlorêncioPesquisadora no campo da intermedialidade, fotógrafa e curadora no eixo Brasil/Alemanha. Doutora em Literatura Comparada e Sistemas Semióticos pela Faculdade de Letras/UFMG. Sua tese, intitulada “Figuralidades: da tradução ao poético na fotografia de arte contemporânea”, discute a intermidialidade na fotografia contemporânea e estabelece uma relação comparada entre as estratégias discursivas da fotografia de arte e da literatura a partir da década de 1970. Possui mestrado em Comunicação Social/UFMG e graduação em Artes Plásticas pela Escola de Belas Artes/UFMG.
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Junia Mortimer
Laura Fonseca CultivArte
Tibério FrançaFotógrafa, professora e pesquisadora em Teoria da Arte e da Arquitetura. É doutora em Arquitetura pelo NPGAU, UFMG (2011-2015), mestre em Artes e Humanidades pela Université de Perpignan, University of Sheffield e Universidade Nova de Lisboa (Erasmus Mundus, 2008-2010) e graduada em Arquitetura pela UFMG (2007).
Laura Fonseca é uma jovem artista visual brasileira, com trabalhos voltados para a fotografia documental e contemporânea. Nascida em Belo Horizonte, é formada em economia pela Face/UFMG, com especialização em Filosofia pela Fafich/UFMG. Dedica-se integralmente à fotografia desde 2011.
A CultivArte é um coletivo que trabalha com projetos culturais na área das artes visuais. Formado em 2013 pelos fotógrafos Beto Eterovick, Déia Quintino e Madu Dorella vem atuando na produção de exposições, de publicações, workshops e na organização de eventos ligados à fotografia. A CultivArte participou do Festival de Fotografia de Tiradentes nas edições de 2014 e 2015 com instalações e produção de exposições, além de ser a responsável pela realização das mostras fotográficas e dos eventos culturais que acontecem no Espaço Cultural Sou Café, no CCBB-BH.
Fotógrafo e professor de Fotografia da Escola Guignard/UEMG. Entre 2003 e 2006 foi curador da Primeira Fotogaleria de Belo Horizonte realizando exposições. Co-fundador do Núcleo Imagem Latente, coordenador do Forum Mineiro de Fotografia Autoral e realizador da Semana da Fotografia de Belo Horizonte. Membro do Colegiado Setorial de Artes Visuais do Ministério da Cultura no período de 2010 a 2013. Atual Presidente Nacional da Associação de Fotógrafos Fototech e Diretor Administrativo da Rede de Produtores Culturais de Fotografia no Brasil.
Patrocínio:
Projeto 123/FPC/2013
Produção: Apoio: