Download - Preview Ciranda da Solidão
o clube das pessoas normais
“Mais de uma vez, três, doze, vinte, eu repetia sempre, me olhando no espelho antes de dor-mir: pequeno, pequeno monstro, ninguém, ninguém te quer.”
Caio Fernando Abreu
01
De novo este inferno.
Sai gosma nojenta!
O que está acontecendo comigo?
Gregório, já acordou?
Já mãe.
Se arruma.Sua aula
de natação é daqui a pouco.
Eu tenhomesmo que ir, mãe? Eu tô de
férias...
E vaificar sozinho
enfurnado nesse quarto o tempo
inteiro?
Vou. Qual o problema?
Você sabe que o médico
mandou por causa da asma. E, se
não for, nada de mesada, nada
de gibi, nada de videogame...
Saco...
AndA, mEnino! dEixA dE EnrolAr!
Tô indo! CAlmA!
Queexagero de
roupa.é esse?
Táfrio. me deixa.
Quando eu era pequena, minha mãe me obrigou a fazer balé. odiei a ideia no começo. Achava
coisa de menininha fresca. mas acabei pegando gosto, me enturmei e fiz boas amigas. Você pode acabar gostando no fim das contas.
Hnf.
Toma o dinheiro pro lanche e vê se deixa essa cara amarrada de lado.Faça amigos e se divirta como as
outras criança da sua idade,meu filho.
Queria saber quem foi o idiota que inventou que esporte é diversão.
Ficar correndo atrás de uma bola ou indo de um lado pro outro numa piscina que nem um retardado... Qual a graça disso?
Vão é sedivertir às minhas custas
Se virem como eu sou, vão rir da minha cara nojenta e do meu corpo gosmento e deformado.
Eu não passo de uma aberração.
Tem um fliperama aqui perto, lá é mais minha praia.
Não faço parte desse clube, o clube das pessoas normais.
Me divertir aqui? Pff...
doze fichas, moço.
Pois então é exatamente isto que irei fazer.
Minha mãe falou para eu me divertir.
Todo mundo escolhe Ryu e Ken pra ficar na apelação de Hadouken e Shoryuken. Eu gosto do Blanka.
Ele sobreviveu a uma queda de avião quando era pequeno e cresceu entre os animais no meio da Amazônia. Virou um monstro, uma versão bizarra do Mogli.
Talvez eu devesse fazer isso: fugir de casa e me isolar do mundo em alguma floresta feito um animal selvagem.
Minhas férias ficaram mais suportáveis com o fliperama.
Eu só precisava molhar a sunga e a toalha no banheiro antes de voltar pra casa pra enganar minha mãe.
E passava as tardes em meu templo secreto, lutando contra os manés que só escolhiam Ryu e Ken.
Eu era praticamente um X-Men.
Só ali eu conseguia ser um vencedor. Um vingador encapuzado em mundo de pessoas normais que me odeiam.
Então, eis que um dia ele apareceu. Todo vingador encapuzado tem que ter um inimigo pra atazanar sua vida.
Pela cara de cantorzinho do New Kids on the Block, parecia ser mais uma pessoinha ordinária que escolheria Ken ou Ryu. Mas o desgraçado escolheu o Dhalsim.
Se tem alguém menos popular que o Blanka, é o Dhalsim: um indiano maluco que faz yoga, cospe fogo e estica o corpo, mas é mais lento que uma tartaruga.
Deu um pouco de trabalho, mas o venci.
Agora você vai
ver.
Achei que agora ele ia escolher Ryu ou Ken pra revidar, mas ele foi de E. Honda, outro esquisitão do jogo, um lutador de sumô.
Deu mais trabalho, mas o venci novamente.
Quase ninguém escolhe o Dhalsim.
Ele ficou tentando de novo e de novo. E eu sempre o vencia.
Mas ele nunca escolhia Ken ou Ryu como os outros. Tinha cara de galãzinho, mas também parecia ser deslocado como eu.
Cara, eu achava que euera viciado nesse jogo, mas tu joga demais. nunca perdi
tanta ficha assimpra ninguém.
Valeu.mas até que você joga
bem também.
Eu tenho esse jogo em casa. mas meus amigos não curtem muito
videogame. Acabo gastando a mesada em ficha aqui só pra não jogar
sozinho.
minha mãenão me deixa em paz nem quando eu tô de férias. É curso disso, curso daquilo, curso
não sei do quê!Argh!
“É pro seufuturo, meu filho. É pra
sua saúde, meu filho. Você tem que fazer amigos, meu
filho.” Quem tem tempo para fazer amigos com tanta
aula?
Eu venho aqui pra matar aula de
natação.
Não sei o que deu em mimnaquela hora. Comecei a tagarelar sobre essas coisas pesadas que a gente guarda só para si.
mãe é mãe. Todasacham que o filho será o próximo messias e às vezes cobram demais
mesmo.
É, nem fala.
masisso passa com o tempo... ou não. Vai saber... de
qualquer jeito, é normal.
É normal ter raiva
da própria mãe?
mais doque você pensa. Eu mesmo já
briguei tanto com aminha.
Nunca pensei que nada em mim fosse normal, muito menos que pudesse ter algo em comum com alguém como ele. Isso fez eu me sentir um pouco mais leve.
Vem cá.o que tu acha de
ir jogar lá em casa qualquer dia desses?Aí a gente economiza
umas fichas pelomenos.
ia ser bacana.
massa! Que tal depois de
amanhã?
mechamoAlex.
Poder ser.
Gregório.Tá marcado
então. Te prepara pra tomar uma
sova.
Quem diria. Meu suposto vilão era, na verdade, a pessoa mais legal que eu já tinha conhecido.
Qual o seu nome?
E aí,cara! Você
veio!
Mas alguma coisa em Alex também me deixava aflito. Eu não entendia o que era.
Parecia que algo iria explodir dentro de mim se eu me aproximasse demais dele.
Há! Ganhei!
Havia encontrado minha Shangri-La onde as únicas lutas que eu precisava batalhar eram as do videogame.
A partir desse dia, a casa de Gregório virou um novo templo.
não acredito!Venci o teu Blanka!A besta finalmente
foi domada! Hahaha!
Só apelandocom o ryu pra detonar
tuas viadagens com esse monstro, hein?!
Para, Alex.
não precisa choramingar que nem uma menininha só porque tomou um coió. Tô
só brincando,cara.
não teve graça nenhuma.
Ah, qual é?!Vai dizer que você é uma mariquinha
que não sabe perder?
não enche, porra!
Ficou brava a mariquinha
Para, Alex!
mariquinha. mariquinha.
PArA Com iSSo!!
mariquinha. mariquinha.
mariquinha. mariquinha.
Tudo voltou a ser pesado naquele momento.
Porra, Greg!Que merda foi essa?
Ficou maluco,cara?!
olha a merda que você fez...
Monstros como eu só destroem o que tocam.
Monstros como eu deveriam estar presos em algum lugar deserto, longe de tudo e de todos.
Greg?
Eu deveria poupar o mundo de toda a minha feiura.
Eu deveria poupar o clubinho das pessoas normais da visão grotesca de meu corpo disforme e cada vez mais gigantesco.
Eu deveria poupar o munda da minha existência inútil.
Eu deveria poupar o mundo de meus pelos tortos que crescem noslugares errados.
Ei, cara.Tá tudo bem
contigo?
SAi dAQUi, AlEx! mE dEixA
Em PAZ!
Calma, Greg.Você saiu lá de casa que nem um louco. Esqueceu
sua mochila.
nenhum.Só quero ficar
sozinho.
Pode falar comigo. Sou teu
amigo. Eu nãotenho amigo
nenhum! Eu sou um monstro
medonho que destroi tudo ao
seu redor.
Que bicho te mordeu?
Você não entende, Alex. Eu nunca vou ser bonitão que nem você. Eu nem ao menos vou ser normal. Eu souuma aberração.
E você acha que
esse capuz escondia seu
rosto?
olha pra você, cara.
Com essapinta de
galãzinho de novela, você vai é destruir
muitos corações
por aí.
Cara, quandoeu era mais novo eu era
gordinho e me achava o ser mais feio e esquisito do mundo. Eu parecia um bicho
selvagem. Vivia com raiva de tudo e repelia todo mundo ao meu redor. Tinha uma
dificuldade enorme para fazeramigos. isso é coisa de idade.
Uma hora passa.
ninguémvai querer ficar perto de mim
quando ver como eu sou.
Óbvio que esta cena só aconteceu na minha cabeça.
O mundo pode até ser um grande palco, mas a vida está longe de ser uma leve comédia romântica de sessão da tarde.
A vida está mais para um filme de terror com doses de humor negro.
Não sei nem como tive coragem de me abrir com o Alex. Tive um medo enorme de que ele não quisesse mais ser meu amigo ou até me espancar, mas consegui.
Ele só respondeu que não era a praia dele e que podíamos ser amigos. Apenas amigos. Para quem não tinha amigo algum, até que sai no lucro.
No fim das contas eu posso não ter virado um destruidor de corações como Alex havia premeditado
Na verdade, foi ele quem despedaçou o meu e isso foi a melhor coisa que já me aconteceu.
Meu coração de monstro estava era batendo todo errado. Precisava ser trocado.
Quem sabe agora o meu coração de monstro esteja começando a bater no ritmo certo.
Ou quem sabe Alex estivesse certo afinal.
Quem sabe eu irei mesmo despedaçar muitos corações por aí.
Preparem-se.
E está faminto.
Ele vai invadir o clubinho das pessoas normais.
Monstruosamente faminto!
Uma fera indomável acabou de despertar.
FIm.
O clube das pessoas normais é o primeiro capítulo de
Ciranda da Solidão, nova edição de EntreQuadros do autor
Mário César. Trata-se de seu primeiro trabalho com temática
GLBT que você pode ajudar a viabilizar por meio do site de
financiamento coletivo Catarse e ainda adquirir diversos itens
exclusivos.
Acesse e contribua:
http://catarse.me/pt/ciranda
contribua com a campanha no catarse