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Paulo Leminski
Anseios Crpticos2
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OORREELLHHAASSDDOOLLIIVVRROO
Em 1986, a convite de Criar Edies, Paulo Leminski
organizou, em dois volumes, textos nos quais deixara fluir seu
talento de polemista-ensasta-demolidor-criador: seus anseios. O
resultado foram duas pastas abarrotadas com recortes de jornais,
cpias de posfcios e prefcios, e textos datilografados. O primeiro
volumeAnseios Crpticos 1 / anseios tericos foi editado em
1986. O segundo, os anseios prticos, deveria sair no ano
seguinte.
No entanto, s hoje chega aos leitores. Por um lado, osazares dos planos econmicos colocaram a Criar numa
quarentena da qual s retornou em outubro de 2000. Por outro,
em 1989, Paulo resolveu polemizar em outras dimenses. No
bastasse, os originais sumiram, resistindo a trs mudanas e, 15
anos depois, se materializaram no fundo de uma caixa na qual
deveriam estar apenas exemplares de antigos suplementos
literrios.
So estes os anseios/ensaios que publicamos agora.
Diferentemente dos que esto no primeiro volume, no qual
Leminski dizia ter reunido as noes tericas bsicas a partir
das quais pensava, estes, os prticos, esto voltados para a
anlise de obras e de autores.
Reunidos pela primeira vez em livro e na ordem queLeminski estabeleceu, discutem obras de Brecht, Rimbaud,
Haroldo de Campos, Sartre, Guimares Rosa, Euclides da Cunha,
Dante, Whitmann, Fante, Jarry, Ferlinghetti, John Lennon,
Mishima, Becket, Joyce, Petrnio.
Alguns so inditos, outros so inditos em livro, outros
foram publicados em jornais e revistas de circulao nacional
(Folha de S.Paulo, Leia Livros, Veja), e outros saram em jornais de
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tiragem restrita ao Paran (Gazeta do Povo, Correio de Notcias).
Em todos, a marca que fez de Leminski um polemista de talento,
colocando em questo as obviedades literrias do momento, do
que estamos todos muito carentes nos dias de hoje, quando opensamento nico nos provoca infindveis bocejos de tdio.
Outras obras da CRIAR EDIES:
Crtica da Razo Tupiniquim, de Roberto Gomes
Mal Comportadas Lnguas, de Srio Possenti
Riachuelo, 266, de Carlos Dala Stella
Alma de Bicho, de Roberto Gomes
Nuvem Feliz, de Alice Ruiz
Paulo Leminski Filho nasceu em
Curitiba, em 24 de agosto de 1944. O
pai descendia de poloneses e, a me,
urea Pereira Mendes, de portugueses,
ndios e negros. Aos 8 anos, fez oprimeiro poema. Dos 12 aos 14 anos
permaneceu como oblato no Mosteiro
de So Bento/SP. Aos vinte anos j
participa de eventos relacionados
literatura. Iniciou duas faculdades direito e letras ,
abandonando ambas. Foi professor de cursinho, jornalista,
redator de publicidade, tradutor, compositor, letrista. Traduziu,
entre outros, Um atrapalho no trabalho, de John Lennon, Sol e ao,
de Mishima, e Satyricon, de Petronius. Foi parceiro de Moraes
Moreira, Itamar Assumpo, Arnaldo Antunes, Guilherme Arantes
e Ivo Rodrigues. Como compositor, teve canes gravadas por
Caetano Veloso e Ney Matogrosso, entre outros. Apresentou o
polmico Jornal de Vanguarda, na TV Bandeirantes, em 1988.
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Catatau (prosa experimental) foi publicado em 1975. Seus
poemas esto em vrios livros: Quarenta cliques, 1979, No fosse
isso e era menos/No fosse tanto e era quase, 1980, Polonaises,
1981, Caprichos e relaxos, 1983, Agora que so elas, 1984,Distrados venceremos, 1987, Guerra dentro da gente, 1988.
Faleceu em 7 de junho de 1989, aos 44 anos.
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sumriom, de memria
latim com gosto de vinho tinto
um texto bastardo
taiyo to tetsu: entre o gesto e o texto
lennon rindo
ferlinguete-se!
o uivo e o silncio
jarry, supermoderno
folhas de relva forever: a revelao permanente
mxico
sertes anti-euclidianos
trans/paralelas
significado do smbolo
o veneno das revistas da inveno
grande ser, to veredas
e o vento levou a divina comdia
poeta roqueiro
aventuras do ser no nada: quem tem nusea de Sartre?
tmidos e recatados
traduo dos ventos
prosa estelar
bonsai: niponizao e miniaturizao da poesia brasileira
histria mal contada
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m, de memria.
Os livros sabem de cor
milhares de poemas.
Que memria!
Lembrar, assim, vale a pena.
Vale a pena o desperdcio,
Ulisses voltou de Tria,
assim como Dante disse,
o cu no vale uma histria.
Um dia, o diabo veio
seduzir um doutor Fausto.
Byron era verdadeiro.
Fernando, pessoa, era falso.
Mallarm era to plido,
mais parecia uma pgina.
Rimbaud se mandou pra frica,
Hemingway de miragens.
Os livros sabem de tudo.
J sabem deste dilema.
S no sabem que, no fundo,ler no passa de uma lenda.
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latim com gostode vinho tinto
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as veias abertas da roma antiga
De C. Petrnio no h muito que dizer. Dormia o dia
inteiro e dedicava a noite para seus trabalhos e prazeres. Muitos
ficam famosos por seus empenhos (industria). Ele era famoso porsua preguia (ignavia). No era considerado um homem que corre
atrs do proveito, mas dos prazeres sutis (erudito luxu).Tudo que
dizia e fazia era descontrado e sem esforo, e sua simplicidade
cativava como uma gentileza. Mas soube ser enrgico quando no
servio pblico, primeiro como procnsul na sia, depois como
cnsul. A seguir, retirou-se para a vida privada e seus vcios
favoritos e, como tal, foi aceito no crculo mais ntimo do
imperador Nero, onde reinou como um verdadeiro rbitro da
elegncia (el egantiae arbiter). Nero nada fazia sem antes consultar
seu sofisticado corteso. Isso suscitou a inveja de Tigelino, outro
corteso, que contra Petrnio arma uma intriga, envolvendo seu
nome com conspiradores. Sabendo-se perdido, antes da ordem do
prncipe, Petrnio decide suicidar-se, abrindo as veias do brao.
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Um mdico grego abria-as, o sangue corria, e ele as fechava
depois. Voltava a abri-las, e as fechava, assim muitas vezes.
Enquanto isso, impvido, Petrnio no se entregava a conversas
sobre a imortalidade da alma. Na realidade, fazia versos lbricos efteis. E assim fazendo morreu, com a maior naturalidade. Nunca
lisonjeou os poderosos, nem o prprio Nero. Ao contrrio.
Escreveu uma narrativa onde descreve os excessos do imperador,
atribuindo-os a jovens depravados. E ao morrer enviou-lhe a
narrativa. Assim Tcito, o maior dos historiadores romanos,
descreveu, em seus Anais, a vida e o fim de Petrnio, e a gneses
do Satyricon.
2
Poucos livros tm biografia to acidentada como este
Satyricon, o primeiro dos romances, a obra mais
escandalosamente original da literatura latina.
Oficialmente, consta como sendo o romance escrito porCaius Petronius dito Arbiter, corteso e ntimo do imperador Nero,
que este condenou ao suicdio, no ano de 65, por se achar
envolvido na conspirao da famlia dos Pises contra o louco
imperador poeta.
Mas na ficha do Satyricon, tudo so conjecturas e
hipteses que j produziram rios de tinta entre os sbios, do
Renascimento para c: o livro, alis, foi um dos primeiros textos
impressos; sua primeira edio, em Milo, de 1477.
O texto que hoje temos , certamente, parte de um texto
maior, que se perdeu nos azares da Histria, talvez um quinto
apenas do original (fragmentos dos captulos XV e XVI). Mesmo
assim, esse texto se sustenta como uma obra inteira.
A autoria tambm no segura.
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Toda a argumentao sobre a autoria se baseia num
clebre trecho do historiador romano Tcito, que viveu por volta de
120 da nossa era, cinqenta e cinco anos depois da morte de
Caius Petronius.Nele, Tcito fala do corteso voluptuoso que, condenado
ao suicdio por Nero, escreve ao morrer uma longa stira para
zombar do ridculo tirano.
Certas evidncias, porm, laboram contra a identificao
do Satyricon, que temos hoje, com essa stira do corteso de Nero.
Primeiro, porque no verossmil que um homem pouco
antes de morrer tenha foras para compor uma obra que, no
original, deveria ter algo como duas mil pginas.
Depois, h indcios de linguagem e estilo que acusam,
me parece, a presena de giros e palavras caractersticos de
pocas posteriores ao reinado de Nero. A oralidade e o registro
escrito do latim vulgar, por exemplo, o sermo humilis, parecem ter
sido introduzidos pela pregao cristPor fim, h o estranho silncio dos escritores romanos
posteriores (Marcial, Suetnio, Plnio, Juvenal, Quintiliano) sobre
uma obra que deveria ter causado grande impacto na poca em
que surgiu.
Os primeiros escritores latinos que mencionam o
Satyricon, entre eles, So Jernimo, j so do sculo III da nossa
era.
Alguns estudiosos chegaram mesmo a atribuir ao
Satyricon uma data muito mais tardia. Um erudito mais precavido
atribuiu a obra a um bispo de Bolonha do sculo V!
Nem sequer se sabe ao certo se o nome original da obra
era mesmo Satyricon.
Em meio a todas essas brumas de dvidas, s uma
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certeza permaneceu unnime. a obra mais original da literatura
latina. Aquela que traz mais fundo a marca da personalidade de
um autor.
Coisas assim a gente costuma chamar, hoje, de obras-primas.
3
No adianta. A literatura latina plido reflexo da grega,
com a qual mantm uma relao espetacular, de original para
espelho. Virglio j est todo em Homero e Tecrito. Horcio
Alceu, Safo e Pndaro. Ccero Demstenes. Ovdio uns
alexandrinos. Tcito e Tucdides. Todo escritor romano parece
algum grego.
Claro. Em literatura, a forma que social. E o
elemento material transmissvel, a concretude do processo
criativo. As formas e que so o material herdvel. E da literatura
grega a latina recebeu todas as suas formas. Seus designs detexto. Seus programas. Seu software morfolgico. Suas
configuraes desejveis. Suas Gestalts significativas.
Nesse quadro de dependncia semitica, alguns
momentos de originalidade romana: o teatrlogo Plauto, o poeta
Catulo, o satrico Marcial, o elegaco Proprcio, quem sabe.
Isso tudo, porm, talvez, no tenha muita importncia.
Em arte, o conceito de originalidade muito recente,
tendo surgido com a Revoluo Industrial e o romantismo, que a
expressa.
A maior parte do que chamamos obras de arte so
aproximaes a um modelo considerado padro de performance: a
humanidade clssica, um mundo romntico indesejvel,
porque ingovernvel.
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A felicidade do escritor romano era poder reproduzir, em
latim, as proezas e feitos de algum escritor grego do passado, que
ele tivesse tomado por paradigma.
Nesse sentido, a literatura romana clssica porexcelncia.
Para ns, homens do sculo XX, esse mundo reflexo
lembra o folclore, onde a tradio tudo e a insurreio do
arbitrrio do talento individual vista e tratada como tal, um
ligeiro desequilbrio que o peso da inrcia logo tratar de
reconduzir aos canais competentes da boa e verdadeira forma,
aceitvel e reconhecvel por todos.
Mas isso so complicaes modernas. Os romanos no
sofriam com isso. Seu universo verbal e literrio era bilnge,
grego e latim. E era na Grcia, dominada militarmente, que os
jovens romanos iam completar sua educao, como, hoje, vamos
fazer o mesmo na Europa ou nos Estados Unidos.
4
roma romance
Pelo menos no Ocidente (a China outra histria), o
romance, enquanto forma, parece ter nascido das variaes
retricas escolares em torno de fatos histricos, prtica habitual
no ensino da oratria no mundo greco-romano.
Ironia: a histria (a fico literria) nasce da
Historiografia, o discurso que pretende ser o relato/espelho fiel da
Histria.
Nesse caso, d pra dizer que a mentiranasceu da ver-
dade, da qual a mentira no passaria de uma verso
romanceada.Depois de Tucdides, seco, racional, cientfico, a
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historiografia grega comea a ser influenciada pela linguagem
altamente cultivada das escolas de retrica, e vai virar alguma
coisa a meio caminho entre a cincia e a arte, entre a verdade dos
fatos e as belezas da fantasia, a tal ponto que o romanoQuintiliano pde dizer que os historiadores gregos tomavam
tantas liberdades quanto os poetas.
Neste territrio furta-cor, nesta twilight zone, entre a
Histria e a histria, nasceu o romance.
A saga sobre-humana de Alexandre Magno, por
exemplo, produziu toda uma linhagem de histrias meio-reais,
meio-fantsticas, hbridos centauros, sereias, esfinges, das quais,
s nos chegaram notcias.
Mas o precursor grego de Petrnio teriam sido as
Milsias, ficciones ertico-pornogrficas, ambientadas na cidade de
Mileto e atribudas a um certo Aristides de Mileto (sculo II a.C).
Quem no gosta de sacanagem? As Milsias tiveram
grande irradiao no mundo mediterrneo, e chegaram a ser aleitura predileta dos soldados romanos. Em Roma, quase um
sculo antes do Satyricon, foram traduzidas para o latim pelo
historiador e orador Lucius Cornelius Sisenna, ao que tudo indica,
o precursor imediato de Petrnio.
Alm das Milsias, este texto romano parece dever a
outra vertente helnica, de maior complexidade textual, a
chamada stira menipia, tipo de texto que alternava partes em
prosa com partes em poesia, criando uma espcie de dilogo,
intratextual, entre dois discursos de natureza, fins e efeitos
distintos, o chamado prosimetrum, cuja inveno os antigos
atribuam ao filsofo Menipo de Gandara, que viveu por volta do
sculo III a.C.
Uma das caractersticas da menipia era o monlogo,
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muito freqente no Satyricon.
Mas nada disso afeta a originalidade e a primazia do
romance de Caius Petronius: at segunda ordem, o Satyricon a
primeira obra da literatura ocidental que podemos chamarpropriamente de romance. Dele descendem todos, do Decameron
de Bocaccio picaresca espanhola do barroco, do romance ingls
do sculo XVIII a Balzac, de Flaubert a Joyce.
H, portanto, uma espcie de justia etmolgica no fato
de o vocbulo romancetrazer dentro de si o nome de Roma.
Como se sabe, a palavra romance, vem do advrbio
latino medieval romanice, isto , em romntico, em lngua vulgar,
palavra cunhada na Idade Mdia quando as narrativas de fico
eram escritas em lngua vulgar, em contraste com as obras ditas
srias, escritas em latim.
Roma, romance. Nada mais justo. Foi com o Satyricon
que o homem ocidental comeou a apanhar a vida atravs dessa
forma muito singular que, s no sculo XIX, se transformou numaespcie de O Maior de Todos os Gneros, a epopia burguesa da
iniciativa privada e da vida particular.
Poucos livros tiveram to prspera descendncia.
5
baixo latim, baixo-ventre: o cdigo dionisacoParece haver algum mistrio no fato de, do Satyricon, s
nos ter chegado, essencialmente, o Banquete de Trimalcio,
fragmentos dos captulos XV e XVI da obra original.
O Satyricon, para ns, um texto onde, sobretudo, se
come. E como se comia naquela Roma Imperial! Comia-se tudo,
animais da terra, aves, peixes, salsichas, plantas, frutas, umapetite universal, absoluto, at o limite da fome. Bebia-se vinho
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em quantidades inverossmeis.
E Roma, o imperialismo romano, devorando o mundo
mediterrneo, o trigo da Siclia e do Egito, os figos da frica, o mel
da Grcia, a pimenta do Oriente.A devorao do mundo, a elefantase do desejo e da
gula.
O Satyricon fala a linguagem do baixo-ventre, sob o
signo da orgia, da bacanal, da embriaguez, de Dionsio, da
confuso carnavalesca de todos os apetites.
Este cdigo devoratrio do Satyricon encontra sua
contrapartida numa espcie de complemento excretrio: o
Satyricon todo percorrido por aluses ao ato de cagar, vomitar e
mijar. Trimalcio chega ao ponto de comentar suas dificuldades de
evacuar diante de seus convivas que devoram um javali.
Comer, cagar: o Satyricon come e caga. Como todo ser
vivo.
6
menipia, picaresca, carnaval
Quem nunca leu Petrnio no conhece as delcias do
latim, o sumo, o suco, o tutano, o perfume desse latim gil, vivo,
vulgar, malandro, espertssimo, nico.
O latim que aprendemos nas escolas (quando havia
latim) era aquela coisa pesada, retrica, altamente artificial, dos
chamados grandes clssicos, Ccero, Virglio, Csar, Ovdio,
Horrio, Tito Lvio.
Mal conseguimos imaginar a milionria riqueza verbal
da cultura greco-latina, baseada na retrica, na tradio escolar
da oratria, meticulosa acumulao de saberes verbais, quecomea no sculo V antes de Cristo e s termina com a queda do
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Imprio Romano, no sculo V depois de Cristo. Mil anos de
repertrio!
At as vanguardas do incio do sculo XX, pouca coisa
inventamos de novo em relao civilizao greco-latina: recursosde estilo, figuras de linguagem, a distino entre poesia e prosa,
gneros literrios, formas de dizer, moldes do sentir e do pensar,
esquemas mentais, tudo devemos a esses gigantes em cujos
ombros estamos trepados.
Essa cultura, claro, era altamente aristocrtica.
Uma aristocracia cria, naturalmente, uma linguagem
aristocrtica que a expresse enquanto grupo social.
No caso de Roma, do que nos chegou, pouqussima
coisa tem sabor popular, quase nada sabemos de como se falava
nas ruas, nos mercados, nas tabernas, nos lupanares, nas
oficinas, nas esquinas, no interior das casas. E desse latim que
descendem o italiano, o francs, o espanhol, o portugus...
Traos de latim vivo, vulgo latim vulgar: o comedigrafoPlauto, o lrico Catulo, cartas de Ccero, o satrico e epigramtico
Marcial. E s.
Nesse quadro, Petrnio discrepa.
Nas falas dos personagens do fabuloso banquete de
Trimalcio, vemos desfilar um latim vivo, direto, o raro do reles,
enfim, diante de ns.
Expresses corriqueiras. Torneios familiares. Locues
proverbiais. Frases feitas. A lngua viva, na boca de pessoas vivas.
Por isso mesmo, o latim de Petrnio, apesar da sua
preciso, particularmente difcil, um latim concentrado, onde
cada palavra remete a uma instituio, a um hbito da poca, a
um gesto preciso.
Pragas. Invocaes religiosas. Frmulas mgicas. O
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Satyricon rico de raridades.
Nenhuma obra da literatura romana que nos chegou
apresenta nmero to elevado daquilo que a filosofia chama apax
legomena, palavras que s aparecem uma vez, nesse autor, numadada obra.
Em nenhuma outra obra da literatura latina,
encontramos palavras como baliscus, matus, carica, embasiceuta,
scordalia, mixcix, bucolesias, caldicerebrius, laecasin e centenas de
outras que se perderam no tempo, como plumas ao vento.
O texto de Petrnio, refletindo uma cultura bilnge,
grega e latina, est eivado de palavras e expresses gregas, que
deviam ser correntes no meio em que ele vivia.
Tanto que os nomes dos personagens do Satyricon so
todos gregos, com subsentidos significativos para seu pblico.
Ascilto, em grego, quer dizer infatigvel. Eumolpo, canta bem.
Giton quer dizer semelhante. Encolpo d a idia de
passividade. Outros personagens se chamam Psyche,Hermeros, Echion, Agamenon, Phileros, todos nomes
helnicos, que funcionam como mscaras verbais no carnavalesco
e carnavalizado romance de Petrnio.
O nome de Trimalcio (Nero?) um composto burlesco
greco-semita: tri, trs vezes grande, e malkion, em semita, rei, o
imensamente ridculo trs vezes rei.
No caso de Petrnio, esse latim, salpicado de grego,
estava a servio de um talento (ou diremos gnio?) narrativo, de
que mal podemos fazer idia, dada a natureza fragmentria do
Satyricon.
Seja como for, ainda no foi superada a capacidade de
Petrnio em marcar o carter, e at a profisso e a origem social,
de um personagem pela linguagem que usa. O Satyricon uma
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galeria de tipos, o liberto arrivista e cpido, o mestre de retrica,
pedante e livresco, o eunuco bbado, o ridculo nouveau riche, o
cnico, o amoral aproveitador dos esbanjamentos de uma
sociedade absurdamente desigual, um carnaval de mscaras efantasias, uma polifonia.
Acrescenta riqueza do texto o fato de o Satyricon
conter em seu fluxo de prosa inmeros trechos em poesia,
metrificados: o que se chama de menipia, uma forma mista,
compsita, hbrida, coincidentia oppositorum.
No Satyricon, entre outras coisas, uma stira ao ensino
retrico, a prosa plana, vulgar, popular, coloquial. Os poemas
so inflados de uma retrica beirando o burlesco e o ridculo.
Ao tradutor que quer devolver um vivo aos vivos, uma
tarefa ingrata.
Entre trair Petrnio e trair os vivos, escolhi trair os dois,
nico modo de no trair ningum.
A conciso extrema do latim obriga a alongar certasfrases para que no se tornem incompreensveis ao leitor atual.
Impossvel entender o Satyricon sem ter alguma noo
das instituies da Roma escravagista, to distintas das nossas.
Gestos, hbitos, significados, tudo nos to estranho
quanto num romance de fico cientfica.
O que nos aproxima de Petrnio, e nos une, a
presena forte de uma condio humana, uma humanidade feita
de grandezas e baixezas, de esplendores e misrias, coisa, alis,
que o romance vem fazendo desde que o Satyricon nasceu, e deu o
primeiro exemplo.
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Um texto bastardo
1
Joyce o maior prosador do sculo XX.
Semelhante afirmao est sujeita a dois tipos de
contestao, extremos. No bem assim. Maior, em que sentido?
Afinal, h Proust. H Kafka.
Thomas Mann.
Faulkner!
No terreno ideolgico, as objees se multiplicam pela
infinita imbecilidade que caracteriza o pensamento ideolgico.
Solido aristocrtica.Insensibilidade aos problemas reais do seu povo.
Elitismo hermtico.
Intelectualismo pedante e cosmopolita.
Do outro lado, cada vez mais abundantes os que
objetam.
No o maior prosador do sculo XX. o maior
prosador que jamais houve.
Maior que Cervantes? E Quevedo?
E Balzac?
E Stendhal? E Flaubert?
E Dostoievski?! E Tolstoi?!
Em que sentido, nesse time de gigantes, Joyce vem a ser
o maior?Primeiro, claro, pelo insupervel domnio dos poderes de
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som e sentido da lngua em que escreve: a mquina material com
que se expressa a alma de James Joyce s tem paralelo nos
poderes sinfnicos de um Beethoven, de um Wagner, de um
Stravinski (e esse domnio sobre a arte um domnio sobre avida).
Depois, pela coerncia arquitetnica nica que
conseguiu imprimir ao conjunto de sua obra o autor de
Dublinenses (1906), Retrato do Artista Quando Jovem (1914),
Ulysses (1922) e Finnegans Wake (1939). Os dois primeiros livros,
um, uma coletnea de contos, e o outro um romance de formao
(um Bildungsroman, como dizem os alemes, grandes cultores do
gnero, que comea, no sculo V, com as Confisses, de S.
Agostinho), os Dublinenses e o Retrato ainda cabem dentro da
esttica textual do sculo XIX.
Ulysses, porm, puro sculo XX, o sculo das
megalpoles, das massas, do comunismo, do fascismo, o sculo do
cinema, do rdio, da psicanlise, da bomba atmica, que encerroua guerra, que comeou no ano em que foi publicado o Wake.
Mas o Ulysses ainda , apesar de tantas inovaes, um
romance, mesmo que seja o romance para acabar com todos os
romances, do dito clebre.
O Wakej um texto para o sculo XXI, prosa, poesia?,
o qu?
Ulysses foi difcil ( cada vez menos).
O Wake, cpsula do tempo, ilegvel (por enquanto).
A irradiao da obra de Joyce atinge uma rea imensa
na prosa defico do sculo XX. Suas conquistas tcnicas, como o
monlogo interior, no Ulysses, fazem, hoje, parte do repertrio
comum, do parque de recursos de qualquer ficcionista que preze
seu ofcio. Hoje em dia, o monlogo interior j foi incorporado at
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pela fico dita comercial, de consumo de massas: em best-seller
mundial, James Clavell tira um belo partido desse recurso,
outrora, de vanguarda.
Ulysses /Joyce influncia determinante na prosacriativa deste sculo. E a lista dos influenciados, direta ou
indiretamente, impressiona pela excelncia literria: Faulkner,
Beckett, Virgnia Woolf, Musil (O Homem Sem Qualidades), Broch
(A Morte de Virglio), Guimares Rosa, Cario Emlio Gadda,
Augusto Roa Bastos, Lezama Lima, Cabrera Infante, Burgess...
2
Impecvel a coerncia crescente da engenharia de vo
entre as quatro obras-primas de Joyce.
Nos trinta anos entre os Dublinenses e o Wake, sempre
escreveu-se o mesmo livro, o mesmo universo sempre levado a
graus cada vez mais agudos de criatividade verbal e inventiva
arquitetnica.O mesmo Universo: a Irlanda, a Irlanda, a Irlanda,
maldita ilha maravilhosa, duende, sempre rebelde e sempre
submissa Inglaterra, terra de bbados e excntricos, de
hipcritas e humoristas, com toda a parda mediocridade pastosa
de Dublin, sua capital, Irlanda papista, abafada debaixo de um
catolicismo retrgrado, castrador, aldeo.
O mesmo Universo: vidas rotineiras, sem grandeza, sem
horizontes, sem sentido.
Joyce s partiu para um exlio espontneo pela Europa
(Paris, Zurich, Trieste) para melhor cultivar, distncia, sua
obsesso pela Irlanda, execrada e idolatrada na prpria veemncia
dessa execrao, idia fixa, agenbite of inwit, memria, o nico
tempo possvel.
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Os temas, os tipos, e at frases inteiras se repetem,
crescendo, dos Dublinenses ao Wake.
Joyce nunca saiu da Irlanda. Nunca saiu de sua obra.
3
Os Dublinenses: a Irlanda, vista do lado de fora.
Retrato do Artista: a Irlanda, vista de dentro.
Ulysses: entrechoque entre o fora e o dentro, monlogo
interior, o Dia, a Histria.
Finnegans Wake: sntese dialtica entre o fora e o
dentro, pura linguagem, a Noite, o Sonho.
Na triunfal cavalgada das valqurias dessas quatro
obras-primas, Giacomo Joyce faz s vezes, talvez, de um filho
bastardo, fruto de um prazer furtivo, de um amor clandestino, de
um erro da juventude, de uma fantasia ertica.
Alinha, assim, com os livros de poemas, Chamber Music
e Tomes Penyeach, performances lricas de uma maestria mtricae verbal extraordinria, mas apenas um pouco mais que isso, no
sculo dos Cantares de Ezra Pound e do Waste Land, de T. S.
Eliot.
Ou com Exiles, a pea que Joyce quis fazer, mas o
mundo do teatro nunca amou.
Mas, por favor, no faamos pouco de Giacomo Joyce.
Quando o escreveu, Joyce, terminando o Retrato e grvido do
Ulysses, j era, visivelmente, um dos maiores escritores da
Europa.
Em Giacomo Joyce, j d pra ver o surgimento dos
germes do monlogo interior, a tcnica central do Ulysses e uma
das grandes conquistas da fico do sculo XX.
Joyce teria descoberto o recurso em um obscuro
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romance francs do sculo passado, Les Lauriers Sont Coups
(1887), de douard Dujardin, figura de menor importncia, ligada
ao movimento simbolista.
Esse monlogo interior parece consistir, sobretudo,numa sbita (e no anunciada) passagem da terceira para a
primeira pessoa no universo do discurso, uma passagem direta,
sem ndices do tipo, disse consigo, pensou, refletiu, e outros verbos
que acusam a interioridade de um emissor.
A fico clssica, realista, naturalista, repousa sobre a
falcia da objetividade, fundada, lingisticamente, na terceira
pessoa, no plo do ELE, o plo das coisas, como se as prprias
coisas falassem de si em lugar de um narrador. E a linguagem de
Deus, o narrador onisciente.
O monlogo interior representa um princpio de
economia narrativa. E, conseqentemente, um aumento de
velocidade no tempo do texto e da leitura.
Alguns traos dele em O Vermelho e o Negro, de Stendhal(1830).
E em Dostoiesvski (1821-1881).
O monlogo interior, de resto, representa uma espcie
de carnavalizao do eixo pronominal do relato. A tarde est linda.
Preciso dizer a ela tudo o que sinto. Voc no perde por esperar.
Ela, eu, voc: sem aviso, sem hierarquia, como no fluxo da vida e
da conscincia, onde eu, tu e ele podem ocupar o mesmo lugar no
espao tempo, sem antes nem depois.
No quarto bloco de Giacomo Joyce, a voz que diz algum
quer falar com a senhorita j comparece sem aviso, como uma
pgina de Ulysses.
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4
Das circunstncias particulares em que foi escrito, que
fale Richard Ellmann.
Da paixo do professor maduro pela bela aluna judiaitaliana de Trieste. Dos destinos do manuscrito quase perdido, no
fosse a solicitude de um irmo.
Para ns interessa, sobretudo, encontrar o Joyce que
conhecemos e aprendemos a admirar, senhor de todas as foras
da lngua inglesa, num momento fragmentrio, em mosaico,
isomrfico com a situao pessoal que Joyce vivia naquele
momento.
Giacomo Joyce uma novela, cinematogrfica,
ideogrmica, como uma pea No, feita de flashes, um grande
poema de amor, uma vertigem vista de soslaio.
Neste texto, o arquiteto de Ulysses ensaiou,
orquestrando relmpagos.
Bem-vindo de volta casa, Giacomo Joyce.
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taiyo to tetsuentre o gesto e o texto
guerra sou eu
guerra voc
guerra de quem
de guerra for capaz
guerra assunto
importante demais
para ser deixado
na mo dos generais
(p. leminski, 85)1
Certo dia de novembro de 1970, os jornais da capital do
Japo estamparam em suas colunas policiais uma notcia, no
mnimo, inquietante.
No dia anterior, um pequeno grupo de praticantes de
artes marciais tinha invadido, com violncia, as dependncias do
Quartel das Foras Armadas de Tquio. O lder do grupo, um
homem forte, aparentando uns quarenta anos, acompanhado de
um jovem, chegou at o gabinete do Comandante da praa, diante
do qual os dois cometeram harakiri, o suicdio ritual da classe
samurai.
Antes do gesto supremo, acrescentaram os peridicos, o
lder dos invasores leu para a tropa que se encontrava no localuma proclamao onde denunciava violentamente a
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ocidentalizao, a decadncia dos cdigos de honra tradicionais do
Pas do Sol Nascente. E a tropa ps-se a rir.
O grupo invasor era o Tate no Kai, a Sociedade do
Escudo, um exrcito privado de cultores de artes marciais,organizado e dirigido pelo escritor Yukio Mishima1, que, assim,
declarava guerra, sozinho, ao Exrcito japons.
1Na manh do dia quando se matou, Mishima enviou a seu editor o ltimovolume da sua tetralogia, O Mar da Fertilidade.
Yukio Mishima (pseudnimo de Kimitake Hiraoka)
nasceu em Tquio, de famlia samurai, em 14 de janeiro de 1925,
filho de um oficial do Ministrio da Agricultura. Formou-se em
Direito e, depois do sucesso de seu romance Confisses de uma
Mscara (Kamen no Kokuhaku), em 1949, entregou-se literatura
e outros excessos. Sua obra compreende mais de doze romances,
Confisses de uma Mscara, Sede de Amor (Ai no Kawaki), Morte
no Meio do Vero, Kinkakuji, Sei no Jida, Kinjiki, Higyo, focalizando
a dissoluo dos costumes tradicionais no Japo do ps-guerra.
Deixou mais de uma centena de narrativas curtas. E peas para o
teatro N e Kabuki, os estilos ancestrais do teatro nipnico (Peas
Modernas para o N).
Em 1952, Mishima faz uma viagem Grcia, onde, em
contato com a beleza da estaturia helnica antiga, seu
pessimismo de derrotado toma nova direo com a descoberta do
prprio corpo e da fora do corpo humano exposto luz do sol.
Foi ator num filme de gangsters. Gravou discos. E
participou de debates em programas de TV, tornando-se uma
celebridade nacional.
Uma viagem a Nova Iorque enriquece ainda mais o
complexo de suas idias. quando, conhecendo o existencialismo,
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desenvolve o nihilismo ativo, doutrina na qual o suicdio aparece
como o supremo gesto de liberdade humana.
Seu homossexualismo de tipo drico, militar, msculo,
tinge-se cada vez mais de coloraes sadomasoquistas,transparentes em seu exibicionismo narcisista de tantas fotos,
onde se compraz em posar nu, a musculatura de halterofilista
saltando sob a pele, a espada samurai a meio caminho entre a
bainha e o olhar do observador, objeto sexual absoluto, sujeito
sexual absoluto.
Em Mishima, realiza-se, em carne viva, o drama
essencial da inter-subjetividade, no qual olhar um ato agressivo
de apropriao do objeto pela conscincia de outro, no qual ser
olhado sinnimo de estar morto. No pleno exerccio do existir, as
pessoas so invisveis. S a morte lhes d a opaca presena
absoluta de um objeto do mundo, de uma obra de arte, por
exemplo.
Mais que fazer apenas obras de arte, Mishima quis sefazer todo, corpo, histria e vida, uma obra de arte, entidade alm
e acima da mudana, da corrupo e da perda de sentido,
condio natural de todos os seres deste mundo sub-lunar.
Da fase novaiorquina de Mishima so Gogo no Eiko
(1963) e Sado Koshakufujin (1965).
Sol e Ao, de 1970, manifesto e sntese de seu
pensamento final, foi seu ltimo livro.
Com tanto texto, engana-se, porm, quem imaginar
Mishima como pacato escriba, todo dedicado a seus livros e seu
trabalho literrio, nos moldes erasmianos do scholar ocidental,
ltimo descendente do monge beneditino, a meio caminho entre o
cu e o texto, Alm e Signo.
Cultor das artes marciais, Mishima viveu entre o sol e o
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ao. Praticava karat e a esgrima Kend (da qual era faixa preta
quinto grau). Na procura do mximo de seu limite fsico, fazia
halteres. Narcisista, aparece em suas fotografias mais conhecidas,
quase nu, msculos flor da pele, um super-homem pronto paraa batalha final consigo mesmo. Que perdeu-ganhou.
Quando o intelectual ocidental parte para a ao, sua
sereia, vai normalmente para a poltica, esse simulacro da ao,
que substitui a verdadeira ao, que a guerra, pelos vai-e-vens
das conversaes e negociaes, prprias da classe dos
comerciantes. Mishima era um primitivo. Um primitivo
sofisticadssimo, herdeiro de uma verdadeira civilizao, alguma
coisa pela qual vale a pena morrer.
Antes de condenar Mishima, vamos perguntar: e ns?
Ser que ns temos alguma coisa pela qual valha a pena morrer?
2
O isolamento insular e a benigna (porque buscada, noimposta) influncia cultural chinesa criaram no Japo uma das
civilizaes mais originais da Histria, cultura de uma coerncia
interna nica. Onde todos os aspectos da vida esto (estavam?)
integrados numa harmonia geral. Poder, sociedade, religio, arte.
Uma civilizao que , ela toda, uma gigantesca obra de arte viva
de mil anos. Por isso ou por pura sorte geogrfica, o Japo foi a
nica cultura da frica, Amrica e sia que escapou inclume da
agresso planetria que o Ocidente gosta de chamar,
pomposamente, de Grandes Descobrimentos, o mais vasto ato de
rapina da Histria. Assim que percebeu o que significava a
chegada dos navegadores e missionrios, a elite governante do
Japo, o Xogun frente, fechou o pas, ferozmente, a qualquer
contato com o exterior. Um ovo que s a Revoluo Industrial em
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1865 comeou a quebrar. E nem se sabe se quebrou: o Japo foi o
pas no europeu que melhor soube deglutir a Revoluo
Industrial.
Era a integridade de uma cultura que Mishima defendiaquando abriu o ventre diante do Comandante do quartel de
Tquio, escrevendo com ao na pele da sua vida as letras de
sangue que diziam: EU NO CONCORDO.
Mishima pertence a uma espcie particular de
revoltados, encontradia entre os artistas: os revolucionrios para
trs, os utpicos nostlgicos. Os artistas so as antenas da raa,
de Ezra Pound, sempre tem sido entendido num sentido futurista,
progressista, pra frente. O que talvez seja um equvoco. Nem
Pound era to progressistaassim... Como no o eram Fernando
Pessoa, Eliot, Yeats, Gottfried Benn, Guimares Rosa, Drieu, e,
curiosamente, Pasolini, que dizia trocar uma florzinha de terreno
baldio por todas as instalaes industriais da Itlia.
Mishima era um artista. E os artistas soparticularmente sensveis s alteraes do meio ambiente.
O que no leva necessariamente a um triunfalismo
futurista. Quem foi que disse que a felicidade se encontra l na
frente? Oprogresso (com que horror escrevemos esta palavra hoje!)
uma inveno da burguesia dos sculos XVIII e XIX, que sempre
confundiu avano da Humanidade com a prosperidade dos (seus)
negcios.
3
Quando a Marinha Imperial japonesa e sua aviao,
num tresloucado gesto, atacou de surpresa e afundou a frota
norte-americana do Pacfico, em Pearl Harbor, no Hava, o
samurai Yukio Mishima tinha dezesseis anos. E vinte, quando,
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sombra dos cogumelos atmicos de Hiroshima e Nagasaki, o
Japo se rendeu, depois de anos de vitrias, senhor do Extremo
Oriente. O Imprio do Sol Nascente foi ocupado, a seguir, pelos
Estados Unidos, que desmilitarizaram o pas e incluram-no emsua esfera de influncia, depois de obrigar o Imperador, at ali um
deus, a proclamar sua humanidade e apoiar uma Constituio
que introduzia bruscamente as instituies parlamentares anglo-
saxs num pas ainda meio feudal, apesar da industrializao.
Esse foi o quadro em que Yukio Mishima se tornou
adulto, um mundo estraalhado, uma cultura estuprada, um
campo de runas, algo comparvel ao Mxico dos aztecas, depois
da vitria de Cortez.
A obsesso pela morte tem razes nesse quadro histrico
e na tradio da sua classe social, na qual o seppuku, o suicdio
ritual harakiri, sempre foi distino e privilgio de casta: tamanha
a rigidez das relaes sociais no Japo tradicional que os conflitos
no permitiam negociaes nem compromissos, exigindo a puraauto-eliminao dos envolvidos. Nisso, o Japo nico: no h
paralelos em nenhuma civilizao humana de uma
institucionalizao to radical do suicdio. Nisso, a soluo final de
Mishima se distingue, essencialmente, do suicdio de um
Maiakovski ou de um Iessinin. De Drieu La Rochelle (parecido
com ele, em tantos traos). De Stephan Zweig. De Virgnia Wolf.
De Van Gogh. Hart Crane. De Walter Benjamin. De Ganga Zumba.
A auto-imolao, para ele, era uma obra de arte, algo a
ser preparado, saboreado por antecipao, a chave de ouro de
uma vida, um clmax.
Ou, para falar em jargo freudiano, um orgasmo de
Tnatos.
Para a morte, Mishima se preparou, treinando halteres,
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desenvolvendo os msculos, treinando artes marciais,
desenvolvendo ao mximo suas potencialidades, enquanto
matria.
Quando a lmina, fazendo um L, entrou em sua barriga,naquela tarde de 1970, no Quartel General de Tquio, a morte,
longamente namorada, recebia um presente rgio: um corpo
atleticamente perfeito, pleno, no auge de sua forma e de sua fora,
como ele queria. E uma mente lcida, cultivada, perfeitamente
sabedora do que fazia.
Em Sol e Ao, acompanhamos a luta minuciosa de
Mishima para ultrapassar as contradies entre corpo e esprito.
E, com ele, aprendemos que s a morte supera, para
sempre, essa contradio.
4
Literatura um conceito (ou preconceito) ocidental
moderno, uma categoria europia, baseada na produo textualda Frana, principalmente com a concorrncia, meio discrepante,
da tradio anglo-sax, milionria de valores e performances
textuais. Outras literaturas da Europa, a espanhola, a alem, a
italiana, a russa, apesar de cumes insuperveis, sempre ficaram
como coisa ligeiramente perifrica e subsidiria. Quantos gnios e
obras-primas no ficaram desconhecidos e obscuros apenas
porque tiveram a desgraa de acontecer em hngaro, em sueco,
em galico, em albans, em idisch, em polons, em galego, em
finlands, em holands, em tcheco, em portugus...
Como avaliar, valorar, com critrios ocidentais,
francocntricos, obra de uma literatura to remota e autnoma
quanto a japonesa, devedora, em muita coisa, da literatura
chinesa, mas autctone na criao de formas como o N e o haiku,
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exclusivamente nipnicas?
Classicismo. Barroco. Neo-classicismo. Romantismo.
Realismo. Parnasianismo. Naturalismo. Simbolismo. Vanguardas e
modernidade. Esse quadro histrico nos to cmodo quanto umchinelo velho. E baseia-se na evoluo da literatura francesa.
Quando abordamos a literatura japonesa, porm, esse
esqueminha mental que mediterrnea e subterraneamente, dirige
nossa lgica, simplesmente no funciona.
Depois de 1867, abertura dos portos com a Era Meiji, o
Japo sofreu o impacto literrio de algumas novidades ocidentais.
Mas s o realismo-naturalismo representou novidade mesmo. A
literatura japonesa em geral de carter meio lrico, meio
fantstico, do teatro fico, da poesia ao dirio (gnero maior, no
Japo).
Com seu credo de literatura colada vida cotidiana
imediata, o realismo-naturalismo trazia a pobreza essencial do
projeto de vida burgus para dentro da literatura: o realismo-naturalismo o triunfo da razo burguesa, contbil, pragmtica,
imediatista, imanente.
Os textos de Mishima respiram um outro tempo
cultural.
Sol e Ao no sabemos dizer se poesia ou prosa, livro
de memrias ou ensaio filosfico, confisses de uma mscara que
traz por trs de si outra mscara, outra mscara, outra, mscaras
sobre mscaras.
Seu andamento lembra Sendas de Oku, e outros dirios
do grande haikaisista Bash (sc. XVII). A diferena que, em
Bash, h tristeza e melancolia por trs da beleza.
Em Mishima, h desespero.
O desespero pessoal. O desespero coletivo da derrota na
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guerra.
Um desespero que quer chegar perto da vida, to perto
quanto chegou do corao do samurai aquela lmina, naquele dia
de novembro de 1970.
5
Sol e Ao , basicamente, a reflexo de um poeta e atleta
sobre as relaes entre o corpo e a mente. Entre o fundo e a
superfcie. O dentro e o fora. A vida mental e a existncia
corprea.
Para ns, ocidentais do sculo XX, esse tipo de reflexo
no pode deixar de lembrar as conquistas da Fenomenologia, as
catedrais conceptuais de Husserl, Valry, Sartre ou Merleau-
Ponty, horas e horas de cerrado raciocnio metdico tentando
flagrar, com exatido, os misteriosos matrimnios e divrcios entre
o exterior e o interior, as fraquezas onipotentes do Eu que pensa e
a selvagem liberdade do mundo que pensado.Mas que diferena entre as teias puramente lgicas dos
mestres ocidentais e o percurso de Sensei Mishima!
O esprito dos ocidentaispensa a matria, o Fora.
Num gesto muito mais genial, porque mais global,
essencialmente radical, Mishima resolve o problema
transformando seu esprito em matria, matria pensante,
inteligente, quando se entrega de corpo e alma prtica do kend,
do karat e do halterofilismo.
Para fazer isso, Mishima nem precisou sair de casa.
Essa sabedoria o Japo j tinha, sob a forma de Bushi-d, o
caminho do guerreiro, aquele cdigo global de postura e
comportamento que caracterizava a casta samurai (e que, de um
jeito ou de outro, acabou por impregnar a mentalidade de todos os
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japoneses em geral). Um dia, no Japo, o maior dos mestres de
haikai sentenciou:
NO SIGAM AS PEGADAS DOS ANTIGOS.
PROCUREM OS QUE ELES PROCURARAM
No melhor estilo oriental, Mishima apenas descobriu
sozinho o tesouro que estava enterrado debaixo dos seus ps.
6
Vrgulas. Dois pontos. Ponto de interrogao. De excla-
mao. Travesso. Aspas. Essas coisas gutenberguianas no
existem no japons clssico, onde as frases no comeam com
maiscula nem terminam com ponto final. Saem do nada e s
terminam diante do vazio zen da pgina, como se todas as frases
terminassem num precipcio de reticncias.
A mente nipnica se move num universo material regido
por leis distintas das que regem nosso mundo textual econceptual.
Mal conseguimos conceber um universo textual onde as
marcaes grficas consagradas pela imprensa no tm vigncia:
no texto japons nem h espao separando cada palavra,
continuum ininterrupto como na fala, slaba aps slaba forando
jogos de palavras, ressonncias, ecos colidindo, palavras e
sentidos se acavalando em polinmios vaporosos.
Com a ocidentalizao depois da Era Meiji (1867), o
Japo adotou as convenes da imprensa gutenberguiana, na
medida do possvel. Mishima um japons do sculo XX, at
muito influenciado por leituras de escritores do Ocidente (Novalis,
Amiel, Yeats, caro!). Mas o estilo dos movimentos do seu
pensamento acusa um acentuado sabor nipnico.
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As categorias da lgica de Aristteles, hoje sabemos,
eram apenas as categorias da lngua grega. Outra a lgicade
quem pensa em japons.
A lngua japonesa, por sua prpria natureza, favorece oslongos perodos, com muitos gerndios, ligados, em subordinao,
por uma mquina de conjunes que no correspondem
exatamente aos nossos mas, porque, se, logo, embora,
por isso. E nessa mquina que se monta qualquer lgica, esse
sinnimo de sintaxe.
Penso nisso ao tentar, desconcertado, acompanhar em
Sol e Ao, a lgica peculiar com que Mishima sai de um
pensamento para o outro, de um fato para uma concluso, de
uma premissa para sua conseqncia. At que ponto esse meu
desconcerto vem das singularidades da lngua e da lgica
japonesas, at que ponto vem do prprio Mishima, no sei ao
certo.
De qualquer forma, quem quer que j tenha estudadouma lngua muito antiga ou muito remota sabe que no existe
uma lgica universal sobre a qual as lnguas se conformariam
mais ou menos: cada idioma (ou famlia de lnguas) postula uma
lgica particular, exclusiva, intransfervel, um mini-universo
fechado de significados.
Palavras como problema, ironia, lgica, natureza,
hiptese, culpa, honra, forma, contradio, essncia,
conceito, abstrato, causa, efeito, ordem, para ns to
bvias e indispensveis para pensar o mundo e a vida, so apenas
conceitos greco-latinos, ocidentais, mediterrneos, e podem no
ter equivalentes em outros sistemas lingsticos-culturais2.
2 Conceitos so artefatos, coisas (coisas no esto sujeitas a traduo):Pscoa, filosofia, alienao, ying, yang, zen, jazz, totem (do
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8/13/2019 Paulo Leminski - Anseios Crpticos 2 (rev)
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ojibua, lngua pele-vermelha), tabu (do polinsio), jihad, mitzvah,faslnefas, milagre, ax, domingo, panema, esprit de corps,romntico, jri, guilate, missa, dengo, xod, harakiri.
Qual nossa possibilidade, por exemplo, de traduo do
conceito snscrito-hindu de karma?
Em hebraico antigo, havia uma forma verbal que
representava, ao mesmo tempo, o pretrito e o futuro. Ainda em
hebraico, a mesma palavra dabar designa palavra e coisa:
como vivenciar um mundo em que palavra e coisa se dizem com a
mesma palavra (ou a mesma coisa?)
E que dizer das lnguas, como o chins, ou o tupi, onde
no existe o verbo ser?
O nico esperanto, senhores, a tecnologia industrial.
Toda traduo, de certa forma, uma impossibilidade,
sempre uma agresso, um ato de violncia, uma brutalidade: toda
a mensagem deveria ser deixada em paz no idioma em que foi
concebida.
7
No volume El Informe de Brodia, Jorge Luis Borges tem
um conto, La Seora Mayor, que me lembra muito o destino que
contemplou Yukio Mishima. Ou foi o destino de Mishima que me
lembrou La Seora Mayor? Borgeanamente, prefiro no saber.
La Seora Mayor a fbula de Maria Justina Rubio de
Juregui, filha de um coronel que lutou nas guerras da
Independncia argentina.
No dia 14 de janeiro de 1941, ela completaria cem anos,
la nica hija de guerreros de la Independencia que no haba muerto
an, no dizer do mais inventivo ficcionista que a Amrica Latina j
produziu.
Nesse centenariamente festivo dia, autoridades, amigos
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e patriotas resolvem dar uma festa para celebrar, com grande
concurso da imprensa, muitos brindes e discursos fervendo de
civismo e histria ptria. Passados alguns dias, arrasada de tanta
emoo, La Seora Mayor veio a falecer, la ltima vctima, dizBorges, de uma batalha que aconteceu no Peru, h quase cem
anos atrs.
Mishima, suicidando-se em 1970, a ltima baixa do
Exrcito Imperial Japons da Segunda Guerra Mundial, a guerra
que ele, samurai, quis lutar, mas, infelizmente, era jovem demais
na poca. Quando Mishima pratica harakiri, o mundo que ele
defende j , h muito tempo, um universo de fantasmas: o Japo
um dos pases capitalistas mais avanados, altamente
industrializado, norte-americanizado e desmilitarizado,
dependendo dos Estados Unidos at para sua defesa externa.
Para essa morte-protesto, morte de mrtir, morte de
monge budista se queimando vivo no Vietn, Mishima se preparou
durante muitos anos. Anos de vergonha e humilhao. Dedegradao nacional e raiva impotente. De dio surdo e dentes
cerrados. Anos de estupro, invaso e ocupao.
Anos de muito texto, romances, contos, peas de teatro.
Mas, sobretudo, anos de sol e de ao: anos de halteres,
de milhares de quilmetros corridos, de flexes, de apoio de frente
sobre o solo, de suor saindo com a fora com que sai o sangue de
uma veia cortada.
De morte, no. Sol e Ao uma afirmao da vida. De
uma vida to tensa e to forte que s o Fim poderia ser o
Significado.
Nem venham com esquemas Freud-psicanalticos sobre
a obsesso de Mishima pelo suicdio. De que valem esses
esquemas no interior de um grupo social onde o suicdio no um
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fenmeno patolgico, uma carncia, mas o sinal de uma plenitude,
como entre os antigos filsofos esticos gregos e romanos, que
viam na auto-imolao uma afirmao dos poderes da conscincia
sobre os acasos do destino? Narcisimo. Sadismo. Masoquismo.Reacionarismo. As palavrinhas terminadas em ismo com que
tentamos dar algum sentido nossa pobre vida feita de alguns
lucros e vagas esperanas no fazem nenhum efeito quando
batem nos msculos poderosos de Sensei Mishima.
Guevaras, Mishimas: mortos, somos invencveis.
8
Em Mishima, o percurso de busca, tateando no escuro
entre a noite do pensamento e os reflexos do sol no ao das
espadas e halteres, entre o doentio da razo pura e os esplendores
da pele bronzeada e dos msculos conduzidos a seu mximo
desenvolvimento, em Mishima, esse percurso de procura casa, s
mil maravilhas, com as sinuosidades da lngua japonesa que, aocontrrio da chinesa, dura, seca e simtrica, parece se comprazer
em caprichosos meandros de vaporosas sinuosidades de incenso,
donde extrai sua beleza especfica, uma formosura, digamos
assim, olfativa, atmosfrica, ambiental, em fluida luta contra a
morte que o conceito puro representa.
O texto de Mishima todo perfumado de parece-me, tive
a impresso de que poderia sentir, nada mais me restava a no ser
entregar-me necessidade de vir a pensar que, formulaes
extremamente mediatizadas, cautelosas, especulares, refraes
como que gasosas, muito mais complexas do que a brusquido
totalitria de um o homem uma paixo intil, a religio o pio do
povo, o Estado sou eu, de Sartre, Marx ou Lus XIV, o estilo
ocidental de emitir o conceito, lapidar conciso herdada da dura
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lex sed lex do latim, idioma de legisladores e administradores,
nossa me e superego.
O que Mishima apresenta no uma generalidade.
uma experincia pessoal, intransfervel como uma dor de dente,como parar de fumar, como querer ser maior que si mesmo.
Sol e Ao: a luta com as palavras. A luta com as armas.
A luta consigo mesmo. A luta contra o destino. O Amor pelo sol.
O texto/testamento do samurai est altura do gesto.
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lennon rindo
business man
make as many business
as you can
you will never know
who i am
your mother
says no
your father
says never
youl never know
how the strawberry fields
il will be forever
(Caprichos e Relaxos)
1
que pode
um pobre rapaz pobre fazer
a no ser
cantar numa banda de rock?
(Mick Jagger, dos Rolling Stones, Street Fighting Man)
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Este livro so dois, Lennon On His Own Write, de 1964 e
A Spaniard In The Works, publicado em 1965, estranhas
miscelneas de textos de natureza vria, flash-contos, esboos de
peas, poemas nonsense, acompanhados de desenhos, todosmarcados por extrema criatividade de linguagem, conduzida ao
absurdo por um humor sarcstico e cnico.
Quando os escreveu, John estava frente de uma
banda inglesa de rock, os Quarrymen, agora The Beatles,
trocadilho que ele inventou, montando beetles, besouros, em
ingls, com beat, batida de percusso, e, certamente, beat
generation, beatniks.
Nesse momento, Lennon recebia, direta e pessoalmente,
o impacto da criatividade de Bob Dylan, msico, escritor e
desenhista como ele.
Com Dylan, um judeu novayorquino muito mais
sofisticado intelectualmente que ele, John aprendeu isso e as
coisas, ouvindo Dylan, descobri que letra de msica no precisaser papo furado, confessou o beatle que, no princpio, assinava
letras que diziam apenas I Want To Hold Your Hand ou She
Loves You.
Estava a caminho, e no bom caminho, o poeta que ia
fazer, a seguir, a maior parte das letras e versos dos LPs Rubber
Soul, Revolver, Abbey Road, e, sobretudo de Sergeant Peppers
Lonely Hearts Club Band. E, da, partiria para o vo solitrio de
Imagine, Mind Games, at o maravilhoso e fatdico Double Fantasy.
Lennon foi figura de proa numa gerao que produziu,
entre os msicos populares, algumas de suas melhores cabeas
(Dylan, Zappa, Jim Morrison, Bob Marley; no Brasil, Caetano
Veloso, Gilberto Gil; e no mundo?), msicos e ao mesmo tempo,
pensadores da coisa da cultura, ligados ao sentido das
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transformaes, artistas abertos a outras artes, agitadores
culturais, bons de som, de poesia e de conceito.
Os dois livros do beatle ocupam lugar especial no
quadro da criao textual da segunda metade do sculo XX. Pelalinguagem, seus textos remetem a James Joyce, o mais radical
dos prosadores do sculo, o Joyce das inovaes de Ulysses e das
montagens de palavras do Finnegans Wake. Assim que saram, os
livros de Lennon foram traduzidos para vrias lnguas. E consta
at que, na Finlndia, traduziu-os o prprio tradutor finlndes de
Ulysses.
O walrus, porm, declarou que, quando os escreveu,
no conhecia Joyce. Sua fonte maior de influncia era o Lewis
Carrol, da Alice no Pas das Maravilhas e Atravs do Espelho,
influncia fundamental sobre Joyce.
A ser verdade essa declarao, Lennon saiu da mesma
fonte do pai do Wake.
Daquele bizarro professor de matemtica que gostava defotografar menininhas, tinha o estranho hbito de acasalar
palavras em hbridos que chamou de portmanteau words,
palavras-valise, palavras-montagem. E escrevia como se fosse o
senhor de todas as lgicas.
2
o humor a vitria do ego
sobre o princpio da realidade
(Freud)
quem no tem senso de humor
nunca vai entender a dialtica
(Brecht)
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O humor da linguagem, trao muito ingls de Lennon e
o grande obstculo para o tradutor, depende de alguns recursos-
chave. Principalmente, o estranhamento do lugar-comum atravsda alterao da expresso idiomtica. Mas tambm atravs do
bizarro e do inesperado na lgica ficcional.
Alm disso, John muito chegado numa de alterar, a
seu babel prazer, a grafia das palavras, criana que estivesse
brincando de grudar uma letra, ou tirar, ou trocar as letras das
palavras. Este efeito, no humor televisivo brasileiro, a
especialidade de Renato Arago, o maior palhao brasileiro vivo,
exmio em arrancar as gargalhadas que se d diante da
informao nova, com uma alterao arbitrria do modo de dizer
as palavras, graa fontica do Didi dos Trapalhes.
Como amostra de estranhamento do lugar-comum,
valha o prprio ttulo dos dois livros de Lennon. No primeiro,
Lennon On His Own Write, acontece a superposio de duasexpresses: in his own right, no seu direito, e in his own
writting, com seu prprio punho, montagem que procurei traduzir
para Lennon Com Sua Prpria Letra. No segundo, o jogo ainda
mais complexo: A Spaniard In The Works, Um Espanhol Nas
Obras, , na realidade, uma corruptela da expresso idiomtica
a spanner in the works, ao p da letra, uma chave-de-fenda nos
mecanismos, mas que designa uma dificuldade sbita, um
obstculo que no estava nos planos. Alguma coisa que tem que
ver com as origens da palavra francesa sabotage. Em francs,
sabot tamanco. E sabotar, na origem, jogar um tamanco
para danificar o mecanismo de uma mquina. Tanto a expresso
inglesa a spanner in the works, quanto a sabotagem francesa
pertencem ao mundo da Revoluo Industrial, e trazem
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conotaes de luta de classes, ludditas, entre operrios, os
patres e suas mquinas1.
1A partir do nome John Ludd, que teria destrudo mquinas txteis por voltade 1780, a expresso ludditas designou os membros de um movimentooperrio ingls (1811) que se organizou para destruir as mquinas dasfbricas onde trabalhavam, j que elas provocaram o desemprego e adiminuio da qualidade dos produtos.
A spanner in the works: (botar) Formiga no Pudim (de
algum), uma mosca na sopa, por essa voc no esperava, uma
pedra no caminho?
Alice Ruiz, por fim, me tirou do impasse, propondo o
imbatvel (unbeatable!) Um Atrapalho no Trabalho.
3
O especfico do discurso de Lennon parece ser uma
subverso sistemtica dos cdigos de registro da escritura, bem
dentro do juvenil esprito de quebra-quebra que caracterizou osanos 60.
John no escreve errado: ele, moleque, escreve erros.
E subverte a grafia dos vocbulos, introduzindo neles rudos
arbitrrios, grafitti, deformando a gestalt ortogrfica das palavras
deixando subsentidos se infiltrarem pelos interstcios das frases.
Uma escrita fria, nos termos de MacLuhan, uma escrita porosa,
como a TV, que convida participao.
Em Um Atrapalho no Trabalho, prosa-pop, prosa da era
da TV, do VT clips, VTVTTVTVTVVTTT &tc, arte de arte, o beatle
faz gato e sapato das receitas de todos os gneros, excomunga os
lugares-comuns. E, trapalho, atrapalha todo o andamento do
trabalho: uma gota da baba de Dad, no comportamento textual
do Working Class Hero.Nenhuma frmula verbal escapa da verve cnica e
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sarcstica daquele que escandalizou o mundo ao dizer, somos
mais populares que Jesus Cristo.
O conto. A anedota. O poema. A estria da carochinha.
De detetive. A pea de teatro. A carta do leitor. A entrevista. Oanncio. A frase de TV. A notcia de jornal. A cano de ninar. Um
Atrapalho caleidoscpio de todas as formas verbais imaginveis,
erodidas e erotizadas como pardia.
Mas o humor do Nowhere Manno um bom humor.
a graa que nasce do azedume (no h sexo na prosa
de Lennon).
Em suas fulminantes anedotas, sempre tendentes a
estados cagenos, crepusculares, na fronteira entre o inteligvel e
o ininteligvel (Dividido Davi, Os Famosos Cinco Atravs das
Runas de Eagora, Linda Linda Cremilda, Mr. Boris Norris,
Elerico e Eurique), o desfecho sempre trgico ou melanclico,
com toques s vezes sdicos e mrbidos, teratolgicos.
O beatle mximo era, hoje sabemos, um maiorabandonado, aquela pessoa profundamente insegura, poo de
angstias, atingida no corao e na cabea pela sbita idolatria
mundial em escala nunca vista.
4
For the benefit of Mr. Kite
there will be a show tonight on trampoline.
The Hendersons will all be there
late of Pablo Fanques Fairwhat a scene
(Being for the benefit of Mr. Kite, LP SgtPeppers)
O universo ficcional do fool on the Hill est super-
povoado de nomes prprios, onoma-personagens que s existem
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porque tm um apelido, como se o beatle quisesse encher seu
mundo de gente, dando uma festa textual, criaes da fantasia de
Lennon, nomes burlescos, portando segundos sentidos,
trocadilhos onomsticos, rabelaisianos.Sua traduo oferece problemas particulares.
Diante de mim, duas opes extremas: traduzi-los todos
ou mant-los na ntegra, em ingls.
Nada impede que se verta Judro Bathingpor Germano
Amano ou Large John Saliverpor Z Grando Gouveia.
O problema que, traduzindo todos os nomes, o texto ia
ficar brasileiro demais,jaguno, perdendo um sabor britnico que
essencial em Lennon.
Sa da dificuldade optando pela soluo mdia: ora
traduzir, ora no traduzir os nomes prprios, o que s acrescenta
estranheza a estes textos nvios.
Tenho certeza que Lennon aprovaria minha deciso.
Afinal, para ele que estou tendo esse trabalho todo.
5
Mal e mal possumos os rudimentos de uma teoria
da traduo, de um modelo de como funciona a mente quando
passa de uma lngua a outra. A o falar da tentativa de traduo ao
ingls de um conceito filosfico chins, o lingista I. A. Richards fez
a seguinte observao: possvel que aqui estejamos em presena
do tipo mais complexo de evento at agora ocorrido na histria do
universo.
(Georg Steiner, Extraterritorial)
Casos-limite como o da prosa de Lennon foram o
emprego de uma modalidade particular de traduo. A co-criao.
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A trans-criao, diria Haroldo de Campos. Nesses casos, uma
traduo apenas pelo sentido a pior das traies. Para fazer
justia ao teor de surpresa do texto original, precisa descriar e
reproduzir os efeitos materiais, gerando anlogos, universossgnicos instavelmente paralelos, ora secantes, ora tangentes,
figura original.
O que as lnguas tm de mais prprio intraduzvel,
como a poesia, a poesia dos povos, suas expresses idiomticas,
aquelas que ou voc entende no original, ou adeus.
Poesia, afinal, no tem sinnimo.
Tradues criativas, re-criaes, so as mais idneas (e
enriquecedoras) quando devidamente acompanhadas de cotejos
entre o texto de origem e o texto de chegada.
O ideal sempre, como aqui, uma edio bilinge, uma
pedra da Rosetta.
Em Um Atrapalho, reduzi a um mnimo as notas ao p
da pgina para no tirar a fluncia da leitura nem o leve espritojuvenil que anima a criatividade primitivado beatle.
Quem acompanhar, porm, o original com este anlogo,
vai ver que no pulei por cima de nenhuma dificuldade, achando
jeito de passar para o brasileiro todo e qualquer efeito do texto de
Lennon.
6
... its like a portmanteau... there are two meanings
packed up in one word. Assim definiu Lewis Humpty Dumpty
Carroll (1832-1898), seu inventor, a portmanteau word, a
superpalavra com dois sentidos vivendo dentro dela.
Portmanteau, em ingls, designa uma valise de couro,
com dois compartimentos.
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E a traduo para o portugus da expresso
lewiscarrolliana exigiria coisas como palavra-valise, palavra-
double-face, palavra-porta-palavra. Com portmanteau words,
Carrol comps o Jabberwocky2, poema onde um verdadeiroesprito ldico infantil se manifesta atravs da mais elevada
inventividade de linguagem (Through the Looking Glass, caps. 1 e
6).
2Jabberwocky (ou jabberwock) montagem cunhada por Carroll, a partir de jabber, tagarelar, falar uma lngua misturando-lhe palavras de outra, e umderivado da antiga palavra anglo-sax wocon, fruto, rebento. O poema queAlice leu no Livro-Espelho, sereia, vem desafiando a percia de tradutores devrias lnguas, a comear pelo nome, o nome-nume-totem do portmanteau. Naverso alem de Robert Scott (1872), Jabberwocky Der Jammerwoch. Naverso francesa de Warrin (1931), Le Jaseroque. Nem faltou uma translaopara o latim por um erudito de Oxford, onde o prodigioso monstro se chamaGaberboccbus.
Em portugus, temos a sorte de dispor da perfeita transcriao deAugusto de Campos, quando o Jabberwocky vestiu as cores da lngua deCames sob o nome de Jaguadarte(agora, musicado por Arrigo Barnab). Deminha parte, proponho: murmurilho (murmurar + andarilho, de walk,andar), balbulonge, urrofruto, tragarelva. Com oJabberwocky, AntoninArtaud teve uma relao freudiana de amorrepulsa. Artaud chegou a comear
a traduo de LArve et LAume, como ele verteu Jabberwocky:Il tait roparant, e les vliqueux tarands
Allainet en gibroyant et en brimbulkdriquant...No passou da primeira estrofe. Artaud perdeu. E declarou: Nunca
gostei desse poema, que sempre me pareceu de um infantilismo afetado...,(...) o Jabberwocky no tem alma.
Natural esse desentendimento. Afinal, Artaud era um esquizo-paranide. Carroll, apenas, um neurtico.
Alice enfrenta Jabberwocky, ou Jammerwoch, ou Jaseroque,Jaguadarte, ou Gaberbocchus, ou Urrofruto, o monstro da linguagem quefaltou no Manual de Zoologia Fantstica de Jorge Lus Borges (gravura de John
Teniel para o texto original de Through the Looking Glass, traduo deSebastio Uchoa Leite, ed. Fontana/Summus, 1977).
A primeira estrofe, na trans-criao de Augusto de
Campos,
Era briluz. As lesmolisas touvas
Roldavam e relviam nos gramulvos.
Estavam mimsicais as pintalouvas,E os momirratos davam grilvos,
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d bem uma idia do que uma palavraportmanteau em ao. No
primeiro verso, em ingls, deslesmolisa, a palavra slithy,
montagem de lithe, gil e simy, viscoso (Carrol pega, alhures,
as palavras snake, cobra, e shark, tubaro, e monta a palavrasnazrk, onde as duas imagens ocupam o mesmo lugar no espao-
tempo).
No tenho notcia de antecedentes para isso em
qualquer literatura. Como recurso, a palavra-montagem parece ser
uma inveno de Lewis Carroll.
O princpio de sntese e velocidade que ela representa
tem muito a ver com a velocidade das mquinas da Revoluo
Industrial, que explode na Inglaterra no sculo XIX.
Convm acrescentar que a lngua inglesa sempre teve
uma tendncia natural para a produo desses hbridos. A
filologia desconfia, inclusive, que o verbo bash, por exemplo,
amassar, resulta do cruzamento dos verbos bang, percutir e
smash, esmagar. O verbo clash seria o encontro dos verbos clange crash. Flurry, agitao, um misto de fluster, excitao, e
hurry, apressado.
A imprensa londrina do incio do sculo cunhou a
palavra-montagem smog, mistura de smoke, fumaa, e fog,
neblina, para designar a espessa nebulosidade que envolveu a
capital da Inglaterra na poca. E a palavra pegou e ficou.
O verbo chortle, rir alto, uma palavra-montagem de
Carrol (chuckle sobre snort), que o uso e os dicionrios adotaram e
legitimaram.
Portmanteau motel, onde o motel e o hotel se
encontram como duas paralelas, infinito mistrio do amor entre
sons e sentidos.
Entre ns, palavras como salafrrio, barafunda,
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estapafrdio, geringona, espalhafato, escalafobtico,
lambisgia, sorumbticoparecem apontar para essa direo.
Se, no Brasil, espcie relativamente nova como recurso
literrio, a palavra-montagem no rara na linguagem popular,oral, no linguajar despoliciado, na fala, na gria, lugares onde ela
uma das maneiras que a lngua utiliza para enriquecer seu
vocabulrio.
Estramblico, na fala brasileira, designa alguma coisa
fora das normas, estranho, esquisito, singular, bizarro,
extravagante, irreal.
Vem do italiano strambotico, de strambotto, o terceto a
mais que se acrescentava a um soneto completo para continuar-
lhe o sentido. E a quebra da mtrica.
No Brasil, aclimatado, o vocbulo italiano sofreu a
interferncia de uma srie bola, e virou o portmanteau natural
estramblico.
O fenmeno da etimologia popular responsvel porum bom nmero de palavras-valise naturais. Na palavra
sumitrio, comum na zona rural, percebe-se que o falante
vinculou cemitrio, palavra grega estranha ao seu universo
verbal, ao verbo sumir, que lhe familiar e cotidiano.
As parlendas infantis e a liberdade carnavalesca da
linguagem jocosa criam outros. Para causar riso, gente do povo
deforma observarem urubu-servar.
Presunto, a palavra da gria policial carioca para
designar o prisioneiro executado por Esquadres da Morte, um
sinistroportmanteau de presoe defunto.
Boflia mulher feia, misto de bofecom Oflia.
E a montagem de palavras cada vez mais corriqueira
na onomstica popular brasileira, onde Florisvaldo filho de
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Florisbela e Oswaldo, Claudionor, filho de Cludio e Leonor,
Divonei, filho de Diva e Nei.
Hoje, por fim, seria infinito enumerar todas as palavras-
montagem que do nome a produtos industriais, empresas,estabelecimentos comerciais, servios especiais, reparties
pblicas, programas de rdio e TV, LPs, shows, as coisas do
mundo urbano-industrial.
Ver as montagens que a publicidade cria todo dia:
tranqilometragem, primavero, sexacional.
A palavra-montagem mais natural do que uma
mente conservadora poderia imaginar.
Montagens por justaposio (lado a lado) so recurso
comum nas lnguas indo-europias. Em snscrito, possvel
montar superpalavras de at 20 componentes. O grego clssico, se
no chega a tanto, permite a montagem de palavras com at cinco
componentes. Em latim, o comedigrafo Plauto pode cunhar
superpalavras como thesaurocrypsonichocrysides, e outras tovastas. quase proverbial a capacidade da lngua alem de
permitir a montagem de compostos complexos como
weitanschauungenwahlverwandtschaften para dizer afinidades
eletivas entre as vises do mundo.
As lnguas neolatinas no herdaram essa riqueza (que j
no era muito forte em latim). O italiano, o francs, o espanhol, o
portugus so lnguas analticas, onde essas macrocombinaes
de palavras soam estranhas e artificiais.
Mas, em todos esses casos, trata-se de montagens por
justaposio.
Ora, um portmanteau uma montagem por
superposio (sobre-impresso).
Duas palavras so projetadas uma dentro da outra,
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produzindo uma terceira, nova totalidade, uma unidade
poemtica.
Entra muito de acaso e de sorte na confeco de um
portmanteau feliz.Tudo depende das possibilidades sonoras e semnticas
da lngua com que se lida.
Nesse sentido, o portmanteau compartilha o destino da
rima e do tracadilho, dois efeitos rigidamente determinados,
idiomaticamente falando.
Quando monto insensatisfeito, dependo da existncia
em portugus das palavras insensato e satisfeito, e das
coincidncias sonoras que apresentam. Ou quando fao
universrio, plnico, opstolo, fecundrio, guerrilhotina,
arquvoco, pornomenores, manusgrito, estratejitria,
redondavia, hospitlculo, rodopiria, empenhasco,
demoqutrico, ativitudes, gritantesco, ostranauta,
literatorturas, cometalinguagem, obgestos.Para encontrar algo parecido, tem que procurar na
literatura japonesa, onde um efeito chamado kakekotoba, palavra
pendurada, desempenha papel nobre na poesia lrica e na
linguagem do teatro N.
O kakotoba no , exatamente, um trocadilho. mais a
passagem de uma palavra por dentro de outra palavra, nela
deixando seu perfume. Sua lembrana. Sua saudade.(Bash A
Lgrima do Peixe, Paulo Leminski, p. 39).
Na expresso shiranmi por exemplo, brancas ondas,
em japons, uma mente nipnica pode captar uma aluso a
shirnu, desconhecido, ou a namida, lgrimas, num s gesto de
leitura.
No kakekotoba, o processo de dupla (ou tripla) leitura
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natural, produzido pelo prprio modo de ser da lngua japonesa.
J o portmanteau um artefato, um produto do fazer
humano, como um poema, como o mnimo poema que .
Neste sculo, Joyce viria a empregar a inveno deCarroll como o principal recurso de linguagem do Finnegans
Wake, a Work in Progress, sua monsterpiece, onde pontificam
camibalistics, aeropagods, brasilikerks, allbegeneses, joyicity e
outros portentos de linguagem, produzidos aos milhares pela
inesgotvel criatividade verbal do gnio irlands.
A spaniard in the works in progress, saindo diretamente
de Carroll e do Jabberwocky,John Lennon trouxe oportmanteau
das culminncias mximas de alta literatura rara para as
plancies da culturapop. Umportmanteau beat. Ou beatle.
Na prtica textual brasileira, a histria do portmanteau
pode muito bem comear com o sex appeal-genrio Oswald de
Andrade, das nada tris-tris-tristes Memrias Sentimentais de
Joo Miramar. Ganha status de jaguno poliglota com ohipostrlico Guimares Rosa das engenhingonas,
persquitos, malandrajos, descrevivendo. Resqucios de ouro
no auritabirano Drummond da Lio de Coisas ou do poema Os
Materiais da Vida. A histria atinge o clmax com os
equivocbulosda poesia concreta paulista (que influenciou Lio
de Coisas). As trans-criaes de trechos do Finnegans Wake, feitas
pelos Irmos Campos. O Livro das Galxias, de Haroldo de
Campos (servissalrio, cabaleulstico, sobrescravo). E
desgua na msica popular em letras do acrilrico Caetano
Veloso (Outras Palavras, homenina nelparas de felicidadania) e
de Gilberto Gil, tantas vezes zanzibrbaro, duas vezes Gil,
anfbio Loguned.
Em 1975, publiquei o Catatau, monlogo cartesiano,
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que me tomou oito anos, onde o portmanteau desempenha papel
principal.
Nem preciso ser profeta para sentir que a palavra-
porta-palavra veio pra ficar, um recurso afim era dacompresso da informao, das micro-clulas portadoras de
macro-informao, das distncias mnimas em velocidades
mximas. Zune algo de informtico-eletrnico nesse recurso, que
a retrica e a estilstica antigas no conheceram, espcie de
retrato verbal (hologrfico) da nossa poca.
Quanto a Caroll, sua prtica do portmanteau no pode
ser distinguida de outras singularidades deste padre-matemtico-
fotgrafo. Deste reverendo que desenhava figuras que, de ponta-
cabea, davam outro desenho. Escrevia cartas no espelho, ao
contrrio. Ou as comeavam pela ltima palavra, a penltima, a
antepenltima, e assim por diante, s avessas, na direo
contrria.
Enxadrista, Carroll (ou Dodgson) era muito hbil emprestidigitao. Colecionava caixinhas de msica que adorava
tocar de trs para diante. E espelhos com defeito, que
deformassem a imagem.
Como matemtico, gostava de tratar classes nulas(um
conjunto sem membros) como coisas existentes: ningum, para
Carroll, podia ser um personagem.
Uma mente de vanguarda, modernssima, perdida (ou
achada?) na Inglaterra vitoriana.
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Muita coisa do esprito infantil e jocoso de Carroll, de
Joyce e de Lennon est ligada a duas formas da literatura oral
inglesa: as nursery rhymes e o limerick.
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Nursery rhymes so poemas ou histrias metrificadas
para crianas.
Hickory,dickory,dock,
The mouse ran up the clock.
The clock struck one,
Themouse ran down,
Hickory, dickory, dock.
Ou:
Pat-a-cake, pat-a-cake, bakers man,
Bake me a cake as fast as you can.
O limerick um pequeno poema humorstico, de cinco
linhas, esquema de rimas normalmente AABBA, com uma
semntica em grau de nonsense.
There was a young lady of Riga,Who rode with the smile of a tiger.
They returned from the ride
With the lady inside,
And the smile on the face of the tiger.
Neste limerick, o duplo sentido (double-entendre) o
prprio tema:
There was an old man at Boulogne
Who sang a most topical song,
It wasnt the words
Which frightened the birds,
But the horrible double-entendre.
Limerick, nome de uma regio da Irlanda, foi dado a essa
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forma a partir de um espcime que comea dizendo
Will you come up to Limerick?,
dito ou cantado em ocasies festivas, comilanas ou bebedeiras.
Desse esprito de saudvel nonsense, saem os poemas,que emergem, aqui e ali, ao longo de Um Atrapalho.
Ora, s o sentido pode ser traduzido. O sem-sentido
opaco como uma escultura abstrata, um passo de dana ou um
happening, coisas que s significam a si mesmas.
Felizmente, poetry is to inspire, disse Bob Dylan.
Do nonsense de Lennon, s vezes em puro grau zero de
sentido, extra apenas a espessa noite semntica que presidiu
minhas transcriaes, braadas desesperadas do nadador que
afunda nas confusas guas do in-significaldo.
s vezes uma sombra de mtodo atravessa a loucura de
Lennon.
Em The Faulty Bagnose, A Falsa Amordaa,
vislumbra-se um clima de crtica hipocrisia eclesistica, pelasaluses religiosas que cercam o Mungle (pilgriffs, religeorge,
bless, bless the loaf, give us thisbe our daily tit).
A estratgia do tradutor, nesses casos, pegar o esprito
geral da coisa e se atirar de cabea na aventura, pedindo socorro,
aqui e ali, a uma palavra, um conceito, um jogo de palavras do
original.
Foi o que fiz, fiel, infiel, irregular mtrica regular dos
contra-sensos poticos do beatle, onde a lgica substituda
altura por valores puramente rtmicos e musicais.
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Do primeiro para o segundo livro, Lennon parece
radicalizar seus processos (palavras-montagem, deformaes