Edição 13 – Junho de 2017
OS CONTOS DE FADAS COMO CONTRIBUIÇÃO PARA A CONSTRUÇÃO DA
IDENTIDADE INFANTIL
LOPES, Letícia Henkel1
MARTINS, Viviane Lima (orientação)2
RESUMO
A presente pesquisa busca enfatizar a importância da presença dos contos de fadas na vida da
criança. Apresentando as suas formas de agir no imaginário, no consciente e inconsciente da
criança, auxiliando-a no processo de construção da sua própria identidade. Através de suas histórias
aparentemente inocentes e despretensiosas consegue-se trabalhar diferentes aspectos que favorecem
o desenvolvimento infantil. Os contos de fadas são muito cativantes pelo fato de serem simples e
objetivos. Ao mesmo tempo em que se passa em um lugar distante, nos parece muito próximo, pois
ilustram conflitos existenciais, que soam muito familiar para qualquer leitor ou ouvinte, sugerindo
implicitamente uma solução a ser tomada diante da problemática. Para a elaboração desta pesquisa
foi utilizado como principal referência o autor Bruno Bettelheim, com a obra A psicanálise dos
Contos de Fadas, e busca refletir sobre quais influências tais textos podem ter no processo de
construção da identidade das crianças.
Palavras-chave: Criança, Contos de Fadas, Identidade.
INTRODUÇÃO
A presente pesquisa tem como intuito demonstrar de que forma os contos de fadas
influenciam na construção da identidade da criança, discutindo o porquê de essas histórias serem
tão envolventes e como que elas trabalham no consciente e inconsciente da criança sentimentos,
situações conflitantes, resoluções de problemas etc. E, partindo deste ponto incentivar a volta desses
momentos de histórias do maravilhoso mundo dos contos de fadas, tanto nas salas de aula, para os
professores, quanto naquele momento único e especial com os pais, avós e familiares. O trabalho
pretende demonstrar, também, a importância dos contos de fadas no desenvolvimento da criança,
buscando apresentar de que forma contribui para a resolução de problemas, ilustrar o real
significado do “era uma vez” e o “e viveram felizes para sempre”, além da relação entre a realidade
e a fantasia, e de que forma que a criança vai diferir uma da outra.
O tema se torna relevante tendo por base que os contos de fadas, por meio de suas histórias
“inocentes e despretensiosas”, conseguem apresentar para criança diferentes tipos de situações
problemas, e, ao mesmo tempo em que lhe parece fantasiosa, ocorrendo em um lugar e época tão
1 Pedagoga, especialista em Psicopedagogia Institucional e Clínica.
2 Professora Universitária e Doutora em Comunicação. E-mail: [email protected]
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distante, lhes parece muito próximo e muito íntimo, pois, ilustram situações corriqueiras,
sentimentos, pensamentos e problemáticas muito similares aos de seus conflitos internos. E
consequentemente a história se desenrola com sugestões implícitas de como lidar com tudo isso,
evidenciando sempre a melhor solução, uma vez que, enquanto ouve a história, a criança faz a
leitura da mesma de acordo com a sua vivência e adapta para sua realidade. Dessa forma, ela
consegue visualizar a problemática de um outro parâmetro e assim encontrar as soluções ideais ao
seus problemas.
Assim, esses contos, passam a ser um enorme aliado para os pais e professores ao ajudar a
criança a conhecer suas emoções e compreender seu papel na sociedade, além de perceber valores
morais e éticos, a importância das escolhas corretas, diferir o certo do errado, enfim, construir a sua
própria identidade.
A pesquisa também aborda a psicologia que envolve os contos de fadas nos momentos da
história que apresentam valores morais e éticos, pois, a criança se inspira/espelha em atitudes ou
comportamentos de personagens ou situações que elas se identificam no conto. Apresentar somente
coisas boas nos contos é privá-las de que se preparem para o mundo real. Muitos pais,
erroneamente, e acreditando que estão fazendo o melhor, criam seus filhos poupando-os de
qualquer tipo de frustração, resolvendo tudo por eles, e apresentando-os somente coisas agradáveis.
Certamente, quando for necessário que os mesmos tenham que resolver algo sozinhos, irão se sentir
perdidos, sem maturidade suficiente para realizar essa tarefa.
O trabalho inicia abordando as questões teóricas como: a trajetória histórica da literatura
infantil e dos contos de fadas, os principais autores responsáveis pelos contos de fadas nesse
formato que vive até hoje, e a construção do real e do imaginário da criança. Em seguida, a pesquisa
apresenta a psicologia sob os contos de fadas, partindo da visão de Bruno Betthelheim, onde foi
ilustrada a importância dos contos de fadas trabalharem conceitos e valores morais em suas
histórias, como por exemplo, o bem e o mal; o motivo de suas personagens serem sempre bem
características, a simbologia por traz das mesmas, a interpretação de alguns contos de fadas e, o
mais importante, a ilustração da necessidade de magia na vida da criança.
1 A LITERATURA E A CRIANÇA
1.1 A Literatura para Crianças
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A literatura infantil é, antes de tudo, literatura; ou melhor, é arte: fenômeno de criatividade
que representa o mundo, o homem, a vida, através da palavra. Funde os sonhos e a vida
prática, o imaginário e o real, os ideais e sua possível/impossível realização. (COELHO,
2000, p. 27).
Este é um dos conceitos de literatura infantil para Nelly Novaes Coelho (2000), entretanto, é
uma visão mais esclarecida e atual sobre o assunto, antes, era um pouco diferente. A literatura
infantil passou por uma longa trajetória até chegar neste conceito e conhecer seus principais
momentos nos permite compreender como eram os valores, os desvalores e os ideais que a
sociedade se fundamentou em cada época para ensinar e educar suas crianças.
A partir do momento em que a criança deixou de ser vista como um mini adulto e passou a
ser reconhecida como um ser com suas próprias características e necessidades, iniciou-se uma
educação destinada à elas, junto dela veio a literatura infantil, por volta do início do século XVIII.
Na França, na segunda metade do século XVII também surgiram algumas histórias que
posteriormente passaram a ser também considerado como literatura para crianças, que foram as
obras de La Fontaine (As Fábulas 1668), Charles Perrault (Os Contos da Mãe Gansa 1691/1697),
Mme. D’Aulnoy (Os Contos de Fadas – 8 vols. 1696/1699) e Fénelon (Telêmaco 1699).
Anteriormente aproveitava-se para as crianças a mesma literatura que era produzida aos adultos. Era
transmitida por via oral, qualquer criança desse tempo ou de até mesmo algumas décadas depois
tem lembranças de ouvir as histórias: João e Maria, Branca de Neve, a Gata Borralheira,
Chapeuzinho Vermelho ou até mesmo fábulas: da Raposa e as Uvas ou a Raposa e Cegonha, que
eram contadas geralmente pelos pais, avós, tios etc.
Até mesmo nesta época havia discrepância no público, cada classe apreciava um tipo de
literatura: os nobres tinham acesso a grandes clássicos, os desprivilegiados às histórias de aventuras
e cavalaria e a classe popular se interessava muito na literatura de cordel, que eram as lendas e os
contos folclóricos.
Segundo Cunha (1991), durante o caminho percorrido a busca de uma literatura destinada
para a criança, duas tendências já se aproximava: os clássicos que foram feitos adaptações e do
folclore que houve a apropriação dos contos de fadas, que mesmo assim quase nunca eram
específicos para a criança. Os primeiros nomes a serem reconhecidos como fundamentais neste
gênero foram Perrault e posteriormente os Irmãos Grimm, que foram os criadores de histórias
folclóricas tão importantes que até hoje seus contos são republicados e modificados inúmeras vezes.
Além destes que se tornaram uma referência universal, em cada país surgiram-se diferentes
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propostas de obras literárias. Neste caso podemos citar: Andersen, Carlo Collodi, Amicis, Lewis
Carroll, J. M. Barrie, Mark Twain, Charles Dickens, ForencMolnar.
Perrault não é responsável apenas pelo primeiro surto de literatura infantil, cujo impulso
inicial determina, retroativamente, a incorporação dos textos citados de La Fontaine e
Fénelon. Seu livro provoca também uma preferência inaudita pelo conto de fadas,
literarizando uma produção até aquele momento de natureza popular e circulação oral,
adotada doravante como principal leitura infantil. (LAJOLO e ZILBERMAN, 2007, p. 15).
Segundo Zilberman e Lajolo (1986), o fato do surgimento da literatura infantil brasileira, o
advento da República e a abolição da escravatura terem sido igualmente por volta do final do século
XIX, não aparenta uma simples coincidência. Com diversos interesses, principalmente políticos,
nesta época o Brasil transformou-se em diversos aspectos, a fim de transmitir a imagem de um país
em processo de modernização.
Assim, se o projeto de modernização sociocultural já constitui um dos elementos que
viabilizam, na transição do século XIX para o XX, o surgimento de nossa literatura infantil,
a permanência de estruturas sociais anacrônicas e a superficialidade das alterações
promovidas em nome do progresso explicam, por sua vez, o caráter conservador que o
gênero adota. Este conservadorismo também pode, ao menos parcialmente, ser atribuído ao
modelo cívico-pedagógico no qual, mesmo que à revelia, ela se insere; ou, por outro lado,
ao ranço dos padrões europeus nos quais ela se inspirava: eram os clássicos infantis
europeus que forneciam o material para as adaptações e traduções que precederam a
propriamente dita produção brasileira de literatura infantil. (ZILBERMAN e LAJOLO,
1986, P. 17).
Iniciando juntamente com as obras pedagógicas e adaptadas de produções portuguesas, a
literatura infantil no Brasil vem representada principalmente por Carlos Jansen (Contos seletos das
mil e uma noites, Robinson Crusoé, As viagens de Gulliver a terras desconhecidas), Figueiredo
Pimentel (Contos da carochinha), Coelho Neto e Olavo Bilac (Contos Pátrios) e Tales de Andrade
(Saudade). Também começou a circular versões abrasileiradas de textos de Andersen, Perrault e
Grimm, objetivando nacionalizar o acervo europeu.
Conforme Zilberman e Lajolo (1986), os livros e textos desta época abordavam
principalmente a exaltação do civismo e patriotismo, e também o aconselhamento explícito de
caridade, obediência, aplicação nos estudos, perseverança no trabalho e dedicação à família. A
escola foi a grande mediadora entre os livros e as crianças, entretanto os mesmos eram cedidos para
os alunos como forma de um prêmio, apenas para os alunos em que se destacavam, tornando
privilegiado o acesso a essas leituras, gerando assim os rótulos do bom e do mau aluno.
Segundo Cardoso (1991), o livro tinha o objetivo exclusivamente de educar e moldar a
criança de acordo com o desejo de quem às educava, era difícil de encontrar uma obra que
despertava apenas o gosto pela leitura, que retratava a aventura, a viagem pelo universo da
imaginação infantil.
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Desde as origens, a literatura aparece ligada a essa função essencial: atuar sobre as mentes,
nas quais se decidem as vontades ou as ações; e sobre os espíritos, nos quais se expandem
as emoções, paixões, desejos, sentimentos de toda ordem... No encontro com a literatura
(ou com a arte em geral), os homens têm a oportunidade de ampliar, transformar ou
enriquecer sua própria experiência de vida, em um grau de intensidade não igualada por
nenhuma outra atividade. (COELHO, 2000, p. 29).
Um autor importante nesta trajetória foi Olavo Bilac (Rio de Janeiro, 1865-1918), que
escreveu livros direcionados à criança com uma abordagem mais didática. Em 1899 publicou um
livro escolar (Livro de composição e Livro de leitura) que tinha como objetivo orientar a produção
de textos, como descrever um objeto e de como elaborar uma narração. É reconhecido também por
outras obras famosas como: Teatro infantil e Contos pátrios.
O que se nota, porém, é uma preocupação quase didática: a poesia como meio de
transmissão de valores familiares, morais, religiosos, patrióticos, sem sequer uma
brechazinha ao enlevo, ao ludismo. A poesia como elemento paralelo ao brinquedo, de que
a criança tanto precisa, não tem vez em sua produção infantil. (CARDOSO, 1991, p. 38).
Cardoso (1991) também destaca a poeta Francisca Júlia (São Paulo, 1871-1920), que assim
como Bilac, preocupou-se com a formação do texto, e em matéria de poesia infantil é uma das
pioneiras do país. Escreveu textos descritivos do naturalismo e paisagismo. Dois de seus livros são
especificamente destinados à criança: Alma infantil e Livro da Infância.
De acordo com Cunha (1991, p. 24), foi Monteiro Lobato (Taubaté-SP, 1882-1948), que deu
início à verdadeira literatura infantil brasileira, com sua obra diversificada e original:
Com Monteiro Lobato é que tem início a verdadeira literatura infantil brasileira. Com uma
obra diversificada quanto a gêneros e orientação, cria esse autor uma literatura centralizada
em algumas personagens, que percorrem e unificam seu universo ficcional. No Sítio do
Picapau Amarelo vivem Dona Benta e Tia Nastácia, as personagens adultas que "orientam"
as crianças (Pedrinho e Narizinho), "outras criaturas" (Emília e Visconde de Sabugosa) e
animais como Quindim e Rabicó. Ao lado de obras marcadamente didáticas, escreve
Lobato outras de exploração do folclore ou de pura imaginação, com ou sem o
reaproveitamento de elementos e personagens da literatura infantil tradicional. Em todas as
obras, porém observa-se o mesmo questionamento e inquietação intelectual, a preocupação
com as questões nacionais ou os grandes problemas mundiais, expressa essa temática numa
língua marcada pelo aproveitamento do dialeto brasileiro. Foi ainda um grande adaptador
dos contos de fadas e das obras Peter Pan e Pinóquio.
Monteiro Lobato foi também responsável por quebrar a visão do bem e do mal, visto de
forma separadamente que era como o sistema apresentava. Ele criou a personagem de uma boneca
de pano chamada Emília, que não seguia rótulos, ela simplesmente era ela mesma: irreverente,
mordaz, curiosa, que estava sempre querendo descobrir o mundo, assim como toda criança. Suas
obras infantis são marcadas principalmente pelo lúdico, por levar a criança ao mundo de fantasias,
divertimento e aventuras, além de serem muito didáticas e sempre proporcionar um aprendizado.
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O importante em Lobato é a consciência de mundo (universo), pois é através do
conhecimento do que se escreveu para a criança, desde os primórdios, com Esopo e Fedro,
passando pela mitologia grega, com seus heróis, até chegar ao minimundo de um sítio, que
cresce, se agiganta, através do inter-relacionamento com o vasto mundo que o precedeu. O
Sítio só é sítio em sua estrutura, que retoma a casa grande, pondo em sua direção a figura de
uma avó, que governa sem impor, e cria uma realidade em que a criança, o negro
(tradicional trabalhador do engenho e morador da senzala), o animal, lendas e mitos, tudo
se interliga e se amplia, através de seu braço forte e humano, que faz da vida um
permanente e verdadeiro conto maravilhoso. Até o presente, ninguém na Literatura
Brasileira, adulta ou infantil, conseguiu, com tal largueza, amplitude, universalidade, beirar
a obra do Mágico de Taubaté. (CARDOSO, 1991, P. 45 e 46).
Depois de Monteiro Lobato, num período intermediário, 1940/1970, diversos autores se
destacaram com suas obras e alguns inclusive continuaram produzindo após a década de 70. Eles
são: Érico Veríssimo, Lúcia Machado de Almeida, Odette de Barros Mott, Francisco Marins, Isa
Silveira Leal. A partir deles, amplia-se o movimento editorial trazendo centenas de novos autores.
Começou a surgir concursos literários, foram criados também prêmios literários de nível nacional.
Edificou-se a Academia Brasileira de Literatura Infantil, em São Paulo. Neste período a literatura
Infantil tem um crescimento de produção de forma tão acelerada que esteve mais reconhecida e
privilegiada que a considerada adulta. O gênero que em algumas décadas atrás era considerado
apenas uma disciplina auxiliar, estava conquistando um status de Literatura Arte. A Constituição
5692/71 veio valorizando o autor nacional, estimulando a leitura dentro e fora da escola como parte
fundamental para o enriquecimento do universo da criança.
A literatura infantil se resume basicamente em três tendências: Romantismo, Realismo e
Simbolismo. O romantismo é marcado por abordar temas com aventuras, a luta pela justiça, a
fantasia amorosa, o mistério, o mundo das lendas e dos mitos, enfim, esta foi a tendência mais
utilizada pelos autores que escreviam para crianças. Foi com preocupação com o meio social, com a
realidade brasileira, que surgiu o realismo, abordando assuntos que se relacionavam com o trabalho,
o indígena, o negro, o retirante, o menor abandonado, as desigualdades e injustiças etc. Já o
simbolismo é a tendência mais antiga, é uma forma de expressão que utiliza-se das coisas e do
mundo dos animais para transferir os próprios defeitos dos homens, as fábulas partiram deste
conceito, focalizam os problemas, sem acusar diretamente um responsável por isto.
Atualmente, a literatura infantil vem abordando um pouco e talvez o melhor de cada uma
destas tendências. De acordo com Cardoso (1991, p. 79): “Há uma volta ao mundo da fantasia, e as
fábulas ressurgem, com novas roupagens, trazendo a realidade para a ficção de uma forma menos
dura que o realismo, porém, mais contundente em sua profundidade”.
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Hoje, quando se trata de literatura infantil, a visão é muito mais ampla. Já é reconhecido que
através da mesma consegue-se trabalhar o desenvolvimento emocional, cognitivo e social da
criança de uma maneira lúdica. Remete-se facilmente também à imagem de livros ilustrados,
próprios para as crianças explorá-los, lê-los, folheá-los, ou até mesmo ouvir as histórias contadas
por alguém. O livro é considerado como um meio de comunicação entre o autor-adulto e o leitor-
criança, onde o autor pode transmitir “mensagens” para as crianças, mensagens essas que se tornam
aprendizagens. O autor pode até não querer ensinar, mas a literatura infantil abrange um público
que naturalmente tem sede de aprender, portanto toda mensagem que se destina à criança gera uma
aprendizagem.
É através duma história que se podem descobrir outros lugares, outros tempos, outros jeitos
de agir e de ser, outra ética, outra ótica... É ficar sabendo História, Geografia, Filosofia,
Política, Sociologia, sem precisar saber o nome disso tudo e muito menos achar que tem
cara de aula... (ABRAMOVICH, 1997, p.17).
1.2 Os Contos de Fadas
É sempre reconfortante ver que os contos de fadas ou seus elementos característicos ainda
não perderam a capacidade de se eternizar. Atravessam oceanos, vivem nas mais exóticas
regiões, andam nas bocas de povos de todas as cores e todos os credos, numa teimosia de
fazer gosto. (SOUZA, 1998, p.17)
Os contos de fadas é um gênero da literatura infantil, que tem uma estrutura fixa em seus
textos: uma problemática inicial que desestabiliza os personagens da história e o decorrer da mesma
é a busca das suas resoluções, com a contribuição de elementos fantásticos, que mexem com o
imaginário de qualquer leitor ou ouvinte, como duendes, fadas, bruxas, gigantes etc. A estabilização
da história acontece sempre no final, quando encontra-se as respostas e as soluções necessárias para
seu desfecho. Define-se basicamente em uma narrativa em prosa curta, mas carregada de muita
magia e emoção. Os contos de fadas são poderosos quando se trata de lidar com o imaginário
infantil e trabalhar os conflitos internos da criança. Uma vez que, após o tradicional “era uma vez”
consegue-se explorar um mundo que ao mesmo tempo em que é fantasioso lida com problemáticas
reais do crescimento infantil, questões como complexo de inferioridade, inveja, luxúria, vaidade,
rejeição, avareza, hipocrisia etc.
Por quê? Porque os contos de fadas estão envolvidos no maravilhoso, um universo que
detona a fantasia, partindo sempre duma situação real, concreta, lidando com emoções que
qualquer criança já viveu... Porque se passam num lugar que é apenas esboçado, fora dos
limites do tempo e do espaço, mas onde qualquer um pode caminhar... Porque as
personagens são simples e colocadas em inúmeras situações diferentes, onde têm que
buscar e encontrar uma resposta de importância fundamental, chamando a criança a
percorrer e achar junto uma resposta para seu conflito... Porque todo esse processo é vivido
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através da fantasia, do imaginário, com intervenção de entidades fantásticas (bruxas, fadas,
duendes, animais falantes, plantas sábias...). (ABRAMOVICH, 2008, p. 120).
Os contos de fadas ou maravilhosos foi e continua sendo um dos elementos mais
importantes para a literatura infantil, pois, são histórias que ao mesmo tempo em que divertem, elas
agem no inconsciente da criança ajudando-a a resolver seus conflitos interiores, uma vez que, ela
vive uma fase onde está descobrindo suas preferências e vontades, buscando sua autonomia,
independência etc. Os contos de fadas diferenciam bem as personagens boas/más, belas/feias,
fracas/poderosas e isso facilita bastante para a compreensão da criança em relação a certos valores
de conduta e comportamento que a sociedade exige, todos esses fatores contribuem na construção
da identidade da criança.
Segundo Coelho (1987), assim como a literatura, os contos de fadas quando surgiram não
eram destinados às crianças e sim aos adultos. Por serem transmitidas principalmente por via oral,
mesmo com inúmeros estudos e pesquisas buscando uma resposta de quando exatamente iniciaram-
se essas narrativas, não foi encontrado um registro oficial desta informação. Porém o que se pode
afirmar é que tem origens Orientais e Celtas, e foi por volta da Idade Média. Os registros mais
antigos são Calila e Dimna (originados da Índia, no século VI), Sendebar ou O livro dos enganos
das mulheres (também Indiano e transmitido em diversas versões entre os séculos IX e XIII), As mil
e uma noites (de origem oriental, por volta do fim do século XV). Aproximadamente do século II
a.C até o século I os celtas incluíram as fadas em suas literaturas, que eram figuras femininas
carregadas de “poderes”, características e qualidades, que não eram vistos como verdadeiras
comparadas com as das mulheres “reais” da época e da região. A imaginação popular com o
decorrer do tempo também foi acrescentando algumas outras características a elas como: estatura
baixa, varas de condão, asas, e sempre uma aparência “bela”, encantadora, transmitindo a
mensagem de bondade.
Fazem parte do folclore europeu ocidental (e dele emigraram para as Américas) e tornaram-
se conhecidas como seres fantásticos ou imaginários, de grande beleza, que se
apresentavam sob forma de mulher. Dotadas de virtudes e poderes sobrenaturais, interferem
na vida dos homens, para auxiliá-los em situações-limite, quando já nenhuma solução
natural seria possível.
Podem ainda encarar o Mal e apresentarem-se como o avesso da imagem anterior, isto é,
como bruxas. Vulgarmente se diz que fada e bruxa são formas simbólicas da eterna
dualidade da mulher ou da condição feminina.
Se há personagem que, apesar do correr dos tempos e da mudança de costumes, continua
mantendo seu poder de atração sobre adultos e crianças, essa é a fada. (COELHO, 1987, p.
31 e 32).
De acordo com Telles et al. (1993), os contos de fadas estiveram muito presentes na
literatura popular oral europeia durante toda a Idade Média e Moderna. A partir do século XVII
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alguns escritores reuniram essas narrativas e as recontaram com versões mais graciosas e elegantes.
Dentre eles, os mais importantes foram: Charles Perrault, Os irmãos Grimm e Hans Christian
Andersen.
“Quem conta um conto acrescenta um ponto”, afirma um provérbio popular. No caso desses
autores, o “ponto” foi fundamental. Em suas origens, muitas das histórias de fadas eram
extremamente violentas. A punição da bruxa, por exemplo, era ser queimada na fogueira ou
estraçalhada por cavalos bravos. Violência até compreensível, se entendermos as condições
de vida durante a Idade Média, com guerras constantes e brutais. [...] Quando transpostas
para o papel por Perrault, a violência ainda foi mantida nessas histórias. Já os irmãos
Grimm e mais ainda Andersen procuraram valorizar outros sentimentos. Mais importante
que a punição violenta era destacar, por exemplo, o bom caráter da princesa, ou a esperteza
do fraco sendo mais eficiente que a força bruta do vilão. Foi desse modo ameno e
“romantizado” que os contos de fadas chegaram até nossos dias. (TELLES et al., 1993, p.9
e 10).
2 A CONSTRUÇÃO DO REAL E DO IMAGINÁRIO PARA A CRIANÇA
É sabido que a criança é um ser histórico, em construção, e que de acordo com suas
vivências vai edificando sua leitura de mundo e seu imaginário. É na infância que se encontra uma
intensa produção da construção do imaginário da criança, portanto o mesmo é devidamente
considerado com algo histórico, ideológico e cultural. O imaginário infantil é muito bem comparado
com um rio, pois, quando joga-se uma pedra, vão se formando ondas circulares em volta, que se
movimentam e vão atingindo correntes de águas cada vez mais distantes. A pedra ao afundar,
assusta os peixes, atrai os curiosos e muda toda a rotina do ambiente.
Após muitos estudos e pesquisas sobre o ato de pensar, Vygotsky (1991) afirma que a
dedução, a interpretação, a compreensão, a evolução das noções de mundo, o domínio das formas
lógicas e abstratas do pensamento, vão além da interação social e do aprendizado escolar, ele parte
da maturação biológica.
Portanto faz-se primordial que o educador conheça as fases do desenvolvimento infantil para
que assim consiga ser um mediador estimulador nesse processo, atuando de forma intencional tanto
nas questões da aprendizagem formal quanto nas questões de valores, ética e cidadania, contando é
claro com o exercício da imaginação que é tão natural e presente na infância. Em cada faixa etária, a
criança trará consigo uma vivência, uma maturação biológica e consequentemente se enquadrará em
uma fase do desenvolvimento infantil. Para trabalhar a construção do imaginário com essa a criança
deve-se respeitar estes fatores e partir deste princípio.
Na fase onde a criança já vivencia de forma mais significativa a fantasia e o imaginário, é
partir dos dois anos de idade e geralmente até o seis, onde ela já esta mais ativa, está ampliando
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suas relação consigo mesma e com o mundo a sua volta. Conforme Cória-Sabini (1993, p. 53): “O
mundo da criança desta fase é um mundo mágico. O jogo do “faz-de-conta” domina todas as suas
atividades. Com a imaginação e fantasia ela salta as fronteiras do tempo e do espaço e aumenta os
limites de sua força real”. O raciocínio da criança nessa etapa divide-se em três fundamentais
características: animismo, irreversibilidade e egocentrismo.
É na fase do animismo que a criança vai fazendo combinações do real com o imaginário,
uma vez que ela observa tudo ao seu redor, por exemplo: a interação e o comportamento social de
um adulto, ela observa e posteriormente reproduz em suas brincadeiras da maneira como ela vê ou
como gostaria que fosse. É uma fase onde a criança dá vida aos objetos, ela fantasia e eles passam a
ter nomes, sentimentos, vontades etc.
É preciso reconhecer que a pessoa de outrem constitui, para a criança dessa fase, um centro
de ações mais vivo do que qualquer outro objeto. Basta observar a mímica da criança para
darmo-nos conta dessa diferença. Por uma parte a criança parece esperar com mais certeza
os acontecimentos, diante de uma pessoa, em vez de pretender comandá-los, como ocorre
na presença de coisas; quando uma pessoa aparece, a criança mantém-se sempre numa
atitude de reserva, por alguns instantes, pronta a seguir na direção que a pessoa indicar e
atribuindo-lhe, assim, certa espontaneidade. (PIAGET, 1975a, P. 235).
Na irreversibilidade, a criança analisa as coisas de maneira imediata, devido a grande
velocidade de percepção e fixação do conhecimento. Ela tira conclusões rápidas dos acontecimentos
ao seu redor e dificilmente é capaz de mudar este pensamento. Cória-Sabini (1993, p.61)
exemplifica a irreversibilidade ao afirmar que “uma menina pode nos dizer que tem uma irmã, mas
negará categoricamente que sua irmã também tem uma irmã. Ela não é capaz de avaliar a
reciprocidade de uma relação de parentesco, porque seu egocentrismo a impede de ver-se como
irmã”. Tanto o animismo quanto a irreversibilidade são consequências do egocentrismo. O
egocentrismo é muito presente na criança dessa fase, pois ela está muito voltada para si e em seu
pensamento todas as suas vontades devem ser feitas, tem que ser tudo a seu favor.
As crianças desta fase têm uma tendência a pensar que cada um dos seus sentimentos,
motivos ou explicações é também o das outras pessoas. Acreditam, portanto, que tais
sentimentos e motivos podem ser perfeitamente compreendidos por todos. Por exemplo, se
uma delas estiver brincando com um adulto e, depois de um certo tempo, este mostrar
sinais de cansaço, ela permitirá apenas alguns segundos de descanso e imediatamente
recomeçará a brincadeira. Se para ela alguns segundos são suficientes para recuperar suas
forças, para a outra também serão. O egocentrismo não decorre da tentativa de fazer com
que a realidade externa se submeta simplesmente aos desejos da criança. Ao contrário, essa
forma de organização do mundo apoia-se em um estado de confusão entre o “eu” e o
mundo externo. Assim, as explicações e crenças são uma mistura de impressões reais e
imaginárias, resultantes de um entendimento distorcido da realidade e da existência de um
conhecimento próprio, pessoal, que se caracteriza pela ausência de lógica. (CÓRIA-
SABINI, 1993, p. 59).
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O professor, juntamente com a escola, deve saber aproveitar o máximo da criança nessa
fase, pois é uma época em que para ela tudo é fantasia, ela praticamente sonha acordada, está
explorando, descobrindo, inventando e reinventando o mundo. No momento em que a criança
brinca, ela se empenha ao máximo nas suas ações, para ela aquilo é algo muito importante, pode-se
perceber essa dedicação quando se tenta chamar a criança nos momentos da brincadeira, na maioria
das vezes ela não vai nem escutar de tão dedicada que está. Essas e muitas outras atitudes nos leva a
confirmação de que o brincar é fundamental na vida da criança, independente de raça, cultura,
classe social ou época. No faz de conta, ela comanda seu comportamento pelo mundo imaginário, o
pensamento está emancipado dos objetos e a ação surge das ideias.
No início da idade pré-escolar, quando surgem os desejos que não podem ser
imediatamente satisfeitos ou esquecidos, e permanece ainda a característica do estágio
precedente de uma tendência para a satisfação imediata desses desejos, o comportamento da
criança muda. Para resolver essa tensão, a criança em idade pré-escolar envolve-se num
mundo ilusório e imaginário onde os desejos não realizáveis podem ser realizados, e esse
mundo é o que chamamos de brinquedo. (VYGOTSKY, 1991, p. 62)
Os contos de fadas é uma ótima estratégia para entrar e construir esse mundo junto com ela.
Eles contribuem para o desenvolvimento psicológico da criança, trabalham diretamente com a sua
imaginação. Sabendo como explorar ele, consegue-se contribuir para o raciocínio lógico, levando-as
a argumentar, elaborar hipóteses, criticar, construir valores, aguçar a curiosidade, aprimorar os
conhecimentos, ampliar o vocabulário e também estimular a imaginação que é tão rica e prazerosa
pra criança.
É ouvindo histórias que se pode sentir (também) emoções importantes, como a tristeza, a
raiva, a irritação, o bem-estar, o medo, a alegria, o pavor, a insegurança, a tranquilidade, e
tantas outras mais, e viver profundamente tudo o que as narrativas provocam em quem as
ouve - com toda a amplitude, significância e verdade que cada uma delas fez (ou não)
brotar ... Pois é ouvir, sentir e enxergar com os olhos do imaginário! (ABRAMOVICH,
2008, p. 17).
Essa forma lúdica de vivenciar contribui para autoafirmação da criança e na construção da
sua identidade, pois, ela representa diversos personagens na sua imaginação, ela consegue
experimentar várias funções, profissões, enfim, reproduzir tudo que ela internaliza partindo do que
ela vê. Quanto mais a criança brinca, reproduzindo suas recordações das atividades que exerce no
dia-a-dia, como tomar banho, se alimentar, passear, dormir, enfim, mais ela entenderá o significado
dessas ações, ampliando assim os progressos do seu pensamento e a compreensão das próprias
experiências. A imaginação é fruto de tudo que a criança vivencia: as atitudes dos adultos ou de
outras crianças ao seu redor, o que vê na televisão, nas histórias, nos filmes etc. “A criança, ao
querer, realiza seus desejos. Ao pensar, ela age. As ações internas e externas são inseparáveis: a
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imaginação, a interpretação e a vontade são processos internos conduzidos pela ação externa”.
(VYGOTSKY, 1991, p. 67).
Em suas brincadeiras, na maioria das vezes, há uma problemática e consequentemente uma
resolução para a mesma, que procede da maneira que a criança faria em uma idade avançada, ela
provavelmente vai querer representar a postura de algum dos adultos que lhes remete algum
significado ou afetividade: sua mãe, seu pai, sua avó, sua professora etc. É importante ressaltar
também que essas atitudes da criança contribuem muito para a evolução da socialização e dos
afetos, a criança se sente mais próxima dessas pessoas tanto quanto essas certamente se sentem.
Por que a criança pequena consagra quase todo o seu tempo a jogar simbolicamente ou a
imitar, em vez de entregar-se à procura adaptada. A resposta é simples: é que a adaptação a
realidades novas, antes de atingir as relações essenciais entre o sujeito e o objeto, começa
sempre por permanecer à superfície do eu (egocentrismo) e das coisas (imitação).
(PIAGET, 1975b, P. 359).
Através da observação, imitação e imaginação a criança consegue compreender situações de
conflito de uma outra visão além da sua, ela também conhece e explora alguns papéis sociais
cultural: como é ser mãe, pai, a função do médico, do professor, do bombeiro, do policial etc. Além
de também desenvolver alguma noções de regras, normas, valores e padrões sociais. Pois para a
criança, o brincar, o faz-de-conta, é a forma mais fácil e natural de expressar seus pensamentos,
seus desejos, preferências, medos e angustias.
Já a construção do real é desenvolvida principalmente pelo processo de assimilação e
acomodação e pela interação social. É difícil separar o real do imaginário, pois são dois fatores que
estão interligados um ao outro, uma vez que, ao imitar os adultos, aos poucos, a criança vai
internalizando essas atitudes e formando seus conceitos.
A assimilação e a acomodação são, portanto, os dois polos de uma interação que se
desenvolve entre o organismo e o meio, a qual constitui a condição indispensável de todo
funcionamento biológico e intelectual; e essa interação supõe desde o início, um equilíbrio
entre as duas tendências dos polos opostos. (PIAGET, 1975a, P. 328).
Para facilitar no processo de aprendizagem dessa criança, o professor deve ser observador,
deve saber avaliar e respeitar as brincadeiras que ela traz de casa ou da rua, pois este é também um
meio de sondar a realidade e a vivência da mesma, tanto do imaginário, quanto ao real, das
interações sociais. E assim criar condições para a criança construir suas experiências e
conhecimentos.
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3 OS CONTOS DE FADAS REFLETINDO NO IMAGINÁRIO INFANTIL
3.1 O Bem e o Mal
Ao contrário do que acontece em muitas histórias infantis modernas, nos contos de fadas o
mal é tão onipresente quanto a virtude. Em praticamente todo conto de fadas, o bem e o mal
são corporificados sob a forma de algumas personagens e de suas ações, uma vez que o
bem e o mal são onipresentes na vida e as propensões para ambos estão presentes em todo
homem. É essa dualidade que coloca o problema moral e requer a luta para resolvê-lo.
(BETTELHEIM, 2012, p. 16).
Os contos de fadas abordam a questão do bem e do mal, como fatores cruciais para a
construção da identidade da criança. Muitos pais criam seus filhos poupando-os de todas as
frustrações possíveis e apresentando-os apenas coisas agradáveis e bonitas. Contudo, sabe-se que
nem tudo são flores, o mundo não é formado apenas de coisas bonitas e nem todas as pessoas são
boas. Omitindo essas realidades da criança, podem-se causar conflitos muito grandes em sua vida,
uma vez que a criança sabe que ela não é sempre boa, mesmo que não tenha a intenção de ser má.
Em suas vivências foram apresentadas somente coisas boas, seus pais não lhe ensinaram a lidar com
essas atitudes “não muito corretas”, fazendo muitas crianças chegarem numa conclusão de que são
más, por se sentirem fora dos padrões exigidos.
Segundo Bettelheim (2012, p.14) “há uma recusa generalizada a permitir que as crianças
saibam que a fonte de tantos insucessos na vida está na nossa própria natureza”. Os contos de
fadas, em sua maioria, conseguem passar para criança a mensagem que todos os sentimentos e
atitudes, sejam bons ou ruins, fazem parte da vida, e que se deve ser persistente e não se intimidar
com os obstáculos para no fim ser um vitorioso. Eles mostram como entender e dominar
sentimentos ainda desconhecidos, como: raiva, egoísmo, antissocialismo, complexos, enfim, suas
angústias. Bettelheim (2012, p.15) afirma que “a criança necessita muito particularmente que lhe
sejam dadas sugestões em forma simbólica sobre o modo como ela pode lidar com essas questões e
amadurecer com segurança”.
Através dos contos de fadas é possível trabalhar com a criança diversos conceitos
importantes para sua personalidade. Não é o fato de no final da história o vilão ser punido, que
remeterá a mensagem de que o bem sempre vence. A moral desses contos vai muito além disso. Ao
longo da história a criança vai fazendo suas identificações por conta própria. O “vilão” tem grandes
momentos de atração, dominado por suas ambições, consegue tomar o lugar do herói durante boa
parte da história. As lutas do herói para conseguir resolver suas situações conflitantes envolvem a
criança e traz todas as moralidades da história. Bettelheim (2012, p.16) confirma que:
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Nos contos de fadas, como na vida, a punição ou o medo dela é apenas um fator limitado de
inibição do crime. A convicção de que o crime não compensa é um meio de inibição muito
mais efetivo, e essa é a razão pela qual, nas histórias de fadas, a pessoa má sempre perde.
Não é o fato de a virtude vencer no final que promove a moralidade, mas sim o fato de o
herói ser extremamente atraente para a criança, que se identifica com ele em todas as suas
lutas. Devido essa identificação, ela imagina que sofre com o herói suas provas e
tribulações, e triunfa com ele quando a virtude sai vitoriosa.
Bettelheim (2012, p.17) afirma que “as ambiguidades devem esperar até que tenha sido
estabelecida uma personalidade relativamente firme com base nas identificações positivas”. E por
essa razão as personagens dos contos de fadas não tem meio termo, ou são boas ou más,
diferentemente das pessoas na realidade que são ambivalentes. A intenção de as personagens se
apresentarem nas histórias dessa forma, é que possibilite a criança a identificar e diferenciar com
facilidade essas polarizações de caráter, podendo assim decidir quem ela quer ser. Entretanto, a
criança não está exatamente preocupada em se espelhar na personagem que possui as atitudes certas
ou incertas, e sim naquela que despertar sua simpatia.
Quanto mais simples e direta é uma personagem boa, tanto mais fácil para a criança
identificar-se com ela e rejeitar a outra má. Ela se identifica com o herói bom não por causa
de sua bondade, mas porque a condição deste tem para ela um profundo apelo positivo. A
questão para a criança não é: “Será que quero ser bom?”, mas: “Com quem quero me
parecer?”. Ela decide isso com base em sua projeção entusiástica numa personagem. Se
essa personagem de contos de fada é uma pessoa muito boa, então a criança decide que
quer ser boa também. (BETTELHEIM, 2012, p.17).
Bruno Bettelheim (2012) faz uma crítica à literatura infantil moderna, afirmando que todos
os conflitos da criança, em sua maioria, são negados na mesma, não ajudando-a a lidar com eles.
Pois faz parte do ser humano esses tipos de sentimentos, e a criança na maioria das vezes não sabe
interpretar, nem muito menos explicar o que está sentindo. Essas crises existenciais e angústias são
desencadeadas com muita seriedade nos contos de fadas, as histórias compreendem as dificuldades
de ser criança e apresenta uma solução de fácil entendimento para ela.
O herói do conto de fadas avança isolado por algum tempo, assim como a criança moderna
com frequência se sente isolada. Ajuda-o o fato de estar em contato com coisas primitivas –
uma árvore, um animal, a natureza -, da mesma forma como a criança se sente mais em
contato com essas coisas do que com a maioria dos adultos. O destino desses heróis a
convence de que, como eles, ela pode se sentir rejeitada e abandonada no mundo, tateando
no escuro, mas, como eles, no decorrer da sua vida ela será guiada passo a passo e receberá
ajuda quando necessário. (BETTELHEIM, 2012, p.19).
Os contos de fadas tem o objetivo de conduzir a criança para as descobertas de sua
identidade e aptidões, além de proporcionar experiências fundamentais para a formação do seu
caráter. O diferencial deste gênero tão importante na literatura infantil é permitir que a própria
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criança faça suas relações e descubra as soluções para seus problemas. Ele não impõe o que a
criança deve fazer ou agir, ele apenas sugere.
A questão é descobrir quem somos, perceber o quanto podemos, saber com quem contamos
e o quanto desejamos (seja o que for) nos colocar em campo e lutar contra o adversário (e
sempre por uma justa causa... conforme nossos valores, nossa percepção, noção de justiça
ou injustiça etc.). (ABRAMOVICH, 2008, p. 135).
3.2 O Simulacro como Escape do Mundo Real
Segundo Bettelheim (2012, p.10) “a tarefa mais importante e também mais difícil na
criação de uma criança é ajudá-la a encontrar significado na vida”. Muitos pais não compreendem
a importância da necessidade da criança em atuar em seu mundo imaginário, e, erroneamente
acabam podando essas atitudes ao invés de alimentá-las. Bettelheim afirma também que se as
crianças fossem educadas de forma que a vida tivesse significado para elas, elas não iriam precisar
de ajudas especiais. Todos os elementos que cercam e cuidam da criança de alguma forma tem total
influência na educação da mesma, portanto não é somente a escola, educação formal, que auxiliará
a criança nesse processo, seus pais, familiares e até mesmo o ambiente e a sociedade possuem suas
responsabilidades.
Deve-se ter a consciência de que a criança, muito mais do que o adulto, vive o presente
intensamente. Ela chega a ter uma preocupação com o futuro, porém as questões existenciais de
como ser, como resolver situações conflitantes, foca-se muito mais no presente.
A literatura infantil é uma forte aliada para se trabalhar as questões internas da criança, suas
angústias, seus problemas íntimos etc. Mais especificamente, os contos de fadas conseguem de
forma enriquecedora envolver a criança na história e através do mundo imaginário sugerir soluções
para a resolução de muitos dos seus conflitos.
Para que uma história realmente prenda a atenção da criança, deve entretê-la e despertar a
sua curiosidade. Contudo, para enriquecer a sua vida, deve estimular-lhe a imaginação:
ajudá-la a desenvolver seu intelecto e a tornar claras suas emoções; estar em harmonia com
suas ansiedades e aspirações; reconhecer plenamente suas dificuldades e, ao mesmo tempo,
sugerir soluções para os problemas que a perturbam. Resumindo, deve relacionar-se
simultaneamente com todos os aspectos de sua personalidade – e isso sem nunca
menosprezar a seriedade de suas dificuldades mas, ao contrário, dando-lhe total crédito e, a
um só tempo, promovendo a confiança da criança em si mesma e em seu futuro.
(BETTELHEIM, 2012, p.11).
Os contos de fadas ajudam a criança a encontrar significado em sua vida. Conforme
Bettelheim (2012, p.12), “justamente porque a vida é com frequência desconcertante para a
criança, ela necessita mais ainda que lhe seja dada a oportunidade de entender a si própria nesse
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mundo complexo com o qual deve aprender a lidar”. Partindo de um conceito óbvio, é preciso
colocar em ordem os conflitos interiores para depois colocar ordem na vida. Os contos de fadas
transmitem mensagens à mente consciente, à pré-consciente e à inconsciente, durante suas
fantásticas histórias que abordam problemas reais e universais que preocupam qualquer criança.
Eles trabalham diretamente com o id, o ego e o superego. “À medida que as histórias se
desenrolam, dão crédito consciente e corpo às pressões do id, mostrando caminhos para satisfazê-
las que estão de acordo com as exigências do ego e do superego”. Esse tipo de literatura alimenta a
imaginação e estimula a fantasia. A criança vai entrelaçando suas fantasias durante a história e vai
se familiarizando com as personagens, os seus desafios e frustrações. Ela pode mergulhar no mundo
da imaginação sem medo, pois ela sabe que a história vai ter um final feliz, portanto não há receios
em vivenciar as experiências das personagens. Dependendo da idade da criança, muitas vezes ela já
tem maturidade para selecionar as informações que está recebendo, identificando quais são ações
convenientes com a realidade e quais não são.
O conto de fadas nunca nos confronta de modo tão direto ou nos diz inequivocamente como
devemos escolher. Em vez disso, ajuda as crianças a desenvolverem o desejo de uma
consciência mais elevada por intermédio daquilo que está implícito na história. O conto de
fadas convence pelo apelo que exerce sobre nossa imaginação e pela consumação atraente
dos acontecimentos, que nos seduz. (BETTELHEIM, 2012, p.49).
Nos contos de fadas as respostas e as soluções nunca são impostas, muito pelo contrário, são
implícitas e sugestivas. De acordo com Bettelheim (2012, p.79): “Como toda grande arte, os contos
de fadas tanto encantam como instruem; seu talento especial é que fazem isso em termos que falam
diretamente às crianças”. A criança pode vivenciar e pensar no mundo. Eles permitem que ela
através de sua própria imaginação encontre as respostas para suas questões existenciais, como:
“como posso ser eu mesmo?”, “como é realmente o mundo?”, “como posso atuar nele?”. Seu
pensamento é animista e por isso os contos de fadas a convencem, por ter uma abordagem que se
identifica com sua visão, diferente da dos adultos.
Como demonstrou Piaget, o pensamento da criança permanece animista até o período da
puberdade. Seus pais e professores lhe dizem que as coisas não podem sentir e agir; e, por
mais que ela finja acreditar nisso para agradar a esses adultos ou para não ser ridicularizada,
no fundo, no fundo, não acredita. Sujeita aos ensinamentos racionais dos outros, a criança
apenas enterra seu “conhecimento verdadeiro” no fundo da alma, e lá ele permanece
intocado pela racionalidade; no entanto, pode ser formado e informado por aquilo que os
contos de fadas têm a dizer.
Para a criança de oito anos (citando os exemplos de Piaget), o sol está vivo porque dá luz
(e, podemos acrescentar, ele faz isso porque quer). Para a mente animista da criança, a
pedra está viva porque pode se mover, como quando rola por um morro. Até uma criança
de doze anos e meio está convencida de que um riacho está vivo e é dotado de vontade,
porque sua água está correndo. O sol, a pedra e a água são considerados habitados por
espíritos muito semelhantes às pessoas e, sendo assim, sentem e pensam como pessoas.
(BETTELHEIM, 2012, p.68).
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Juntamente ao animismo, muitas crianças vivenciam também o egocentrismo, onde ela
acredita que tudo deve estar ao seu favor, tudo deve ser pra ela e por ela. Portanto ela presume que
os animais, reais ou de brinquedos, ou até mesmo os outros objetos ou elementos da natureza, como
árvores etc., devam falar coisas que sejam convenientes pra ela, uma vez que ela acredita de fato
que essas “personagens” são dotadas de vida e sentimentos, assim como nos contos de fadas.
Contudo para alguns pais, as soluções dos contos de fadas, em sua maioria são fantasiosas. Porém
quando se é explicado algo realista para uma criança, acaba sendo tudo muito confuso, pois, ela
ainda não possui a maturidade para ter um pensamento abstrato para assim conseguir ver sentido
naquela explanação. Isso poderá ser prejudicial para a criança, pois ela só consegue obter segurança
se tiver certeza que entende agora o que antes a confundia.
A criança desde quando inicia seus primeiros passos, ela busca sua identidade, ela se olha no
espelho, tenta entender o que é aquilo, se de fato é a imagem dela mesmo ali na sua frente, faz
diversas outras atividades em busca de comprovar isso e de se autoconhecer. A partir dos dois anos,
quando entra na fase do animismo, egocentrismo e iniciando também sua linguagem, essa
necessidade aumenta de forma considerável. É onde começa os questionamentos: “Quem sou eu?”
“De onde eu vim?” “Qual é o sentido da vida?” “Como devo agir?” “Por que agi de forma errada?”
enfim, questões existenciais onde as soluções podem ser encontradas nas histórias de um conto
fadas. A criança tem necessidade de se sentir segura.
Dizer-lhe que a Terra flutua no espaço, girando em volta do Sol atraída pela gravidade, mas
que ela não tomba rumo ao Sol como a criança tomba rumo ao chão, parece-lhe bastante
confuso. A criança sabe, por experiência própria, que tudo tem que repousar sobre alguma
coisa, ou estar seguro por algo. Só uma explicação baseada nesse conhecimento pode fazê-
la sentir que está melhor informada a respeito da Terra no espaço. Mais importante ainda,
para se sentir segura na Terra, a criança necessita acreditar que este mundo é mantido
firmemente no lugar. Por conseguinte, ela encontra uma melhor explicação num mito que
lhe diz que a Terra repousa sobre uma tartaruga ou é sustentada por um gigante.
(BETTELHEIM, 202, p. 70 e 71).
A criança só deve ter respostas cientificamente corretas quando tiver maturidade para isso,
caso contrário, essas explicações abstratas serão muito confusas para ela. Em concordância com
Bettelheim (2012, p. 72), “as pesquisas sobre os processos mentais infantis, especialmente as de
Piaget, demonstram convincentemente que a criança pequena não está apta a compreender os dois
conceitos abstratos vitais de permanência da quantidade e de reversibilidade”. Podemos perceber
isso quando se é apresentado para uma criança dois recipientes, um de espessura fina e alto e o
outro mais largo, porém baixo, e colocar a mesma quantidade de líquido nos dois, certamente ela
vai afirmar que o recipiente em que possui mais líquido é o maior (mais alto). Essas atitudes são
características de uma criança que ainda não está num estágio de desenvolvimento que possui a
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reversibilidade, fazendo com que a mesma não perceba que nos dois recipientes possuem a mesma
quantidade de líquido e que estão apenas distribuídos em recipientes de diferentes formatos.
A necessidade de magia é tão importante na vida da criança, que Bettelheim (2012, p. 74)
chega a afirmar que muitos adolescentes, que foram privados desse contato na infância, buscam
esse “escape” da realidade em astrologia, crenças em gurus, “magia negra” ou até mesmo nas
drogas. Por não terem tido essas experiências mágicas quando crianças e não saberem agora como
lidar com seus problemas e a realidade do mundo.
Segundo Bettelheim (2012, p. 85), para que a criança consiga absorver, se identificar e
acreditar na história, a mesma deve ser contada diversas vezes:
A criança sente qual dos vários contos de fadas corresponde à sua situação interior no
momento (com a qual é incapaz de lidar por conta própria) e também sente onde a história
lhe fornece um ponto de apoio para poder enfrentar um problema difícil. Mas isso
raramente é um reconhecimento imediato, adquirido ao ouvir um conto de fadas pela
primeira vez. Para tanto alguns elementos do conto são bastante estranhos – como é preciso
que sejam para falar as emoções profundamente recônditas.
Só ouvindo repetidamente um conto de fadas e tendo-lhe sido amplamente dados tempo e
oportunidade para se demorar nele é que uma criança é capaz de aproveitar na íntegra o que
a história tem a lhe oferecer no que diz respeito à compreensão de si própria e de sua
experiência de mundo. Só então as livres associações da criança com relação à história lhe
fornecerão o significado mais pessoal do conto, e, assim, a ajudarão a lidar com problemas
que a oprimem.
Após a criança ouvir uma história, contar que gostou muito e que quer ouvir novamente,
muitos pais e professores por não entenderem essa necessidade acaba desconsiderando o pedido e
partindo para uma outra história ou para alguma atividade (no caso das escolas) crendo que dessa
forma irá contribuir muito mais para o desenvolvimento da criança, do que recontar uma história,
acreditando que a mesma já extraiu todo o significado que o conto tem a lhe oferecer.
É de suma importância enfatizar que o animismo, esse mundo de fantasia da criança, é
fundamental para o seu desenvolvimento e a construção da sua identidade. “Não é prejudicial
permitir que a fantasia nos domine temporariamente, desde que não permaneçamos
permanentemente presos a ela” (BETTELHEIM, 2012, p. 92). No momento em que ela está
brincando, ela vivencia todo aquele faz de conta. Porém ela sabe que está brincando, quando, por
exemplo, uma pessoa a chama para fazer algo, ela interrompe sua brincadeira e volta à realidade:
Depois da idade de aproximadamente cinco anos – a idade em que os contos de fadas se
tornam verdadeiramente significativos -, nenhuma criança normal toma essas histórias
como fiéis à realidade exterior. A menina pequena deseja imaginar que é uma princesa
vivendo num castelo e tece fantasias elaboradas a esse respeito, mas quando a mãe a chama
para jantar, ela sabe que não é. Ao mesmo tempo que um bosque num parque pode ser às
vezes vivenciado como uma profunda e escura floresta cheia de segredos ocultos, a criança
sabe o que ele realmente é, assim como uma menina pequena sabe que sua boneca não é
realmente seu bebê, por mais que a chame assim e a trate como tal. (BETTELHEIM, 2012,
p.93).
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Há também o mito de que o tradicional final dos contos de fadas “e eles viveram felizes para
sempre” ilude a criança, fazendo-a a acreditar que a vida é bela e eterna, entretanto, isso não engana
a criança nem um pouco. Pois a verdadeira intenção nesses finais é ilustrar para a criança que ela
não deve se omitir, ela deve ser corajosa e ir à luta, a fim de aprender a resolver seus conflitos
pessoais. Depois que ela vencer a batalha e enfrentar seus problemas existenciais sozinha, longe da
superproteção dos pais, ela terá maturidade suficiente e estará emocionalmente segura para lidar
com seus problemas na vida adulta. A partir dai a vida será tranquila e sem frustações (felizes para
sempre), não porque não terá problemas e será tudo perfeito, mas porque ela saberá como agir e não
se intimidará em resolvê-los.
Só partindo para o mundo é que o herói dos contos de fadas (a criança) pode se encontrar
nele; e, fazendo-o, encontrará também o outro com quem será capaz de viver feliz para
sempre, isto é, sem nunca mais ter de experimentar a angústia da separação. O conto de
fadas é orientado para o futuro e conduz a criança – em termos que ela pode entender tanto
na sua mente consciente quanto na inconsciente – a abandonar seus desejos de dependência
infantil e a alcançar uma existência independente mais satisfatória. (BETTELHEIM, 2012,
p.19).
3.3 A Representativa dos Contos no Imaginário Infantil
Os contos de fadas podem parecer superficiais, fantasiosos demais, assustadores ou sem
sentido para adultos que não tiveram contato com essas histórias na infância ou se recusam a se
entregar as façanhas de um belo conto de fadas até hoje. “À criança – e ao adulto que, como
Sócrates, sabe que ainda existe uma criança dentro dos mais sábios de nós -, os contos de fadas
revelam verdades a respeito da humanidade e de si própria” (BETTELHEIM, 2012, p.97). Aqueles
que possuem a sensibilidade de perceber o quanto essas histórias são ricas de significados e
símbolos, tem o privilégio de poder contemplar essa arte.
As personagens das histórias não são criadas aleatoriamente. Existe um propósito e uma
simbologia em cada personagem escolhida. Personagens estas que ao mesmo tempo em que
parecem fantasiosas, parecem também muito comuns, com problemas, necessidades e sentimentos
semelhantes aos de todas as pessoas. Fazendo assim com que a história desperte o interesse do
leitor, que mergulhe na aventura, explorando todos os sentidos da sua mente, seja consciente ou
não.
Há uma concordância geral em que mitos e contos de fadas nos falam na linguagem de
símbolos representando conteúdos inconscientes. Seu apelo é feito ao mesmo tempo à
nossa mente consciente e inconsciente, a todos os seus três aspectos – id, ego e superego –
e também à nossa necessidade de ideais do ego. Isso o torna muito eficaz; e, no conteúdo
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dos contos, os fenômenos psicológicos íntimos são corporificados em forma simbólica.
(BETTELHEIM, 2012, p. 53).
Em sua grande maioria possui uma estrutura fixa quanto às personagens, e cada uma delas
traz um símbolo importante para o desenvolvimento da história. As principais são: o herói (príncipe,
princesa), o vilão (bruxa, madrasta) e o elemento mágico (sapo ou algum outro animal ou objeto
dotado de magia). As histórias geralmente têm essas três personagens “padrão”, contudo, pode ter
alterações, tendo mais ou menos personagens na história.
É característico dos contos de fadas colocar um dilema existencial de maneira breve e
incisiva. Isso permite à criança apreender o problema em sua forma mais essencial,
enquanto que uma trama mais complexa confundiria as coisas para ela. O conto de fadas
simplifica todas as situações. Suas personagens são esboçadas claramente; e detalhes,
exceto quando muito importantes, são eliminados. Todas as personagens são típicas em
lugar de únicas. (BETTELHEIM, 2012, p.16).
O herói inicia a história em uma situação confortável, e sua tranquilidade é surpreendida por
uma situação-problema que terá que enfrentar. De uma forma generalizada, na maioria das vezes ele
é humilhado e/ou maltratado pelo vilão, e muitas vezes têm até sua vida ameaçada por ele. E a
história segue na busca do herói vencer a batalha, é nesse momento que acontece todas as aventuras
da história, onde aparecem os animais e toda a magia do conto de fadas. A história termina quando
o herói consegue vencer aquele quem o ameaçava e amedrontava. Com isso ele conquista sua
independência e pode voltar à tranquilidade inicial da história, mas, ainda mais seguro que antes.
Essa personagem se torna fundamental para história, uma vez que o herói é um exemplo de conduta,
sempre honesto, generoso, de bom coração, não se deixando abalar pelos impulsos ou pelo medo,
encara seus conflitos existenciais e na resolução destes aprende mais sobre si mesmo e sobre o
mundo. Objetivando que a criança irá se identificar e desejar ser esta personagem, a história deve
ser simples, atraente, divertida, além de garantir um final feliz para o mocinho. “A história de fadas
lhe assegura que algum dia esse reino poderá ser seu, mas não sem luta” (BETTELHEIM, 2012, p.
182).
O conto de fadas começa com o herói à mercê dos que o desprezam e às suas habilidades,
que o maltratam e até mesmo ameaçam sua vida, como faz a rainha má em “Branca de
Neve”. À medida que a história se desenrola, o herói é frequentemente forçado a depender
de amigos que o ajudam: criaturas do mundo subterrâneo, como os anões em “Branca de
Neve”, ou animais mágicos, como os pássaros em “Cinderela”. Quando o conto termina, o
herói venceu todas as provações e, apesar delas, permaneceu fiel a si próprio ou, ao passar
por elas com sucesso, alcançou sua verdadeira identidade. Tornou-se um autocrata no
melhor sentido da palavra – alguém que se autogoverna, uma pessoa verdadeiramente
autônoma, não uma pessoa que governa os outros. (BETTELHEIM, 2012, p. 181 e 182).
O vilão é outra personagem indispensável nas histórias de fadas, de caráter duvidoso, é
dotado de sentimentos ruins, como inveja, luxúria, ambição entre outros. Na maioria dos contos a
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madrasta é quem representa este papel. Uma vez que na época em que a maioria deles foram
escritos, na Idade Média, era muito comum as mulheres morrerem no parto, pois a medicina ainda
não era muito desenvolvida e também não se tinha tanta higiene, consequentemente, os homens
normalmente casavam-se novamente, tornando assim a madrasta uma figura muito presente nas
famílias daquele tempo. “Certamente muitas delas maltratavam seus enteados e eram vistas como
verdadeiras bruxas” (GAGLIARDI E AMARAL, 2001, p. 18).
Há também uma psicologia muito importante em volta da personagem da madrasta, pois, em
diversas atitudes da mesma, durante a história, a criança identifica com atitudes semelhantes às de
sua mãe, e assim ela cria uma fantasia, onde durante os momentos em que sua mãe tem atitudes
contrárias ao que ela aprova, ela interpreta que ali não é a sua mãe, que na realidade é a madrasta
quem está em ação. “Ao mesmo tempo que a fantasia da madrasta má preserva a imagem da mãe
boa, o conto de fadas também ajuda a criança a não se sentir arrasada ao perceber a mãe como
má”. (BETTELHEIM, 202, p. 100 e 101).
Assim, a divisão característica dos contos de fadas, da mãe entre uma mãe boa
(normalmente morta) e uma madrasta má é bastante apropriada para a criança. Não só é um
meio de preservar uma mãe interior toda bondade quando a mãe verdadeira não o é, como
também permite que se sinta raiva dessa “madrasta” má sem comprometer a boa vontade da
mãe verdadeira, que é vista como uma pessoa diferente. Assim, o conto de fadas sugere
como a criança pode lidar com os sentimentos contraditórios que, de outro modo, a
esmagariam nesse estágio em que a habilidade para integrar emoções contraditórias está
apenas começando. A fantasia da madrasta má não só conserva intacta a mãe boa, como
também impede os sentimentos de culpa em relação aos pensamentos e desejos coléricos a
seu respeito – uma culpa que interferiria seriamente na boa relação com a mãe
(BETTELHEIM, 2012, p.100).
O elemento mágico está presente na grande maioria dos contos de fadas. Geralmente vem
representado através de um animal ou objeto e traz um simbolismo e uma mensagem muito
importante para a criança: a esperança. Em muitos momentos da sua vida, a criança se sente
pequena e incapaz de resolver seus problemas, essa situação é desestimuladora para ela e muitas
vezes acabam fazendo-a a desistir de buscar resoluções. O conto de fadas trata com carinho esse
sentimento frágil da criança, trazendo magia e esperança para sua vida.
Um bom número de contos de fadas relatam como a descoberta de um objeto mágico
modifica a vida do herói; com a sua ajuda, o bobo fica mais esperto do que seus irmãos que
anteriormente tinham a preferência sobre ele. A criança que se sente condenada a ser um
“patinho feio” não deve se desesperar; crescerá para se tornar um lindo cisne.
Uma criança pequena pouco pode fazer por conta própria, e isso é desapontador para ela –
tanto assim que pode se desesperar e desistir. O conto de fadas impede que isso aconteça ao
dar a extraordinária dignidade à menor das aquisições e ao sugerir que as consequências
mais maravilhosas podem advir daí. Encontrar um jarro ou garrafa (como na história “O
Gênio da Garrafa”, dos Irmãos Grimm), ajudar um animal ou receber sua ajuda (“O Gato de
Botas”), compartilhar um pedaço de pão com um estranho (“O Ganso de Ouro”, outra das
histórias dos Irmãos Grimm) – esses pequenos acontecimentos cotidianos levam a grandes
coisas. Assim, o conto de fadas encoraja a criança a acreditar que suas pequenas aquisições
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efetivas são importantes, embora ela possa não percebê-lo no momento. (BETTELHEIM,
2012, p. 105).
Muitos adultos também recorrem a amuletos, simpatias e crenças, objetivando proteção e
ajuda daqueles em quem acreditam. Segundo Abramovich (2008), é mais que necessário que a
criança acredite em todos esses elementos marcantes e mágicos que a envolvem e que são muito
comuns e saudáveis para a infância.
Como é necessário acreditar na vinda do Papai Noel e nos presentes trazidos por ele, nos
três desejos que podem ser concretizados pela lâmpada de Aladim ou nos superpoderes do
Super-Homem, que podem brecar qualquer catástrofe que esteja ameaçando a Terra... A
criança sabe que é pequena, fraca, frágil, e que, para enfrentar os desígnios adultos, só
imaginando que outras forças estarão ao seu lado, protegendo-a e facilitando o confronto
(em geral, com cartas marcadas...). Aliás, pelo sim, pelo não, adultos bem crescidos andam
com seus amuletos, com suas fitas de pedidos e desejos, invocam proteção daqueles nos
quais creem, realizam seus pequenos ritos para que nada de mal aconteça à sua casa etc.
(ABRAMOVICH, 2008, p.129 e 130).
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A presente pesquisa buscou ilustrar de que maneira os contos de fadas auxiliam a criança no
processo de construção da sua identidade, enfatizando a simbologia por trás dessas histórias. Foi
constatado que o conto de fadas é um gênero muito rico da literatura infantil, que tem muito a
contribuir para o desenvolvimento psicológico da criança, estimulando o seu raciocínio lógico a
elaborar hipóteses, a argumentar etc. São histórias basicamente de estrutura simples, mas, carregada
de muita magia e emoção. Ilustram a dificuldade de ser criança, situações conflitantes e resolução
de problemas. Abordam problemáticas reais e universais que preocupam qualquer criança, questões
como: complexo de inferioridade, inveja, luxúria, vaidade, rejeição, avareza, hipocrisia etc. Elas
possuem o poder de atuar no consciente e inconsciente da criança, conseguindo assim trabalhar os
sentimentos mais profundos, muitas vezes até desconhecidos pela própria, como medo, amor,
carência, perda, raiva, egoísmo, proporcionando-lhe assim a oportunidade de compreendê-los e
aprender a lidar com eles.
A criança vive uma fase onde ela tem sede de aprender, tudo que é observado gera uma
aprendizagem. É uma época em que para ela tudo é fantasia, está se conhecendo, explorando,
descobrindo, inventando e reinventando o mundo a sua volta. Após o tradicional “era uma vez”, os
contos de fadas convidam a criança a viajar num mundo de fantasias, onde ali trabalham os maiores
conflitos da infância. Eles acolhem a criança e dão crédito às suas inquietações, por menor ou mais
simples que seja, os contos de fadas proporcionam a criança a oportunidade de visualizar a
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problemática de um outro parâmetro, facilitando a mesma a encontrar as soluções ideais para os
problemas que lhe aflige. A maioria dos contos de fadas consegue passar para criança a mensagem
que todos os sentimentos e atitudes, sejam bons ou ruins, fazem parte da vida, e que se deve ser
persistente e não se intimidar com os obstáculos. Pois, apresentar somente coisas boas às crianças é
privá-las de que se preparem para o mundo real e os contos de fadas são muito criticados por
possuírem essa abordagem, mas assim como afirma Bettelheim (2012, p.15) “a criança necessita
muito particularmente que lhe sejam dadas sugestões em forma simbólica sobre o modo como ela
pode lidar com essas questões e amadurecer com segurança”. Um dos diferenciais nos contos de
fadas é permitir que a própria criança faça suas relações e descubra as soluções para seus
problemas. Eles não impõem o que a criança deve fazer, o caminho a seguir é apenas sugerido.
Deve-se ter a consciência de que a criança, muito mais do que o adulto, vive o presente
intensamente. Ela chega a ter uma preocupação com o futuro, porém as questões existenciais de
como ser, como resolver situações conflitantes, foca-se muito mais no presente. Desde quando
inicia seus primeiros passos, ela busca sua identidade. É inata a necessidade de se conhecer, de se
descobrir e se sentir segura.
As polaridades do caráter são tratadas com muita seriedade nos contos de fadas. É sabido
que não há uma pessoa boa ou ruim no mundo real, elas na verdade são ambivalentes. Já nas
histórias de fadas as personagens ou são boas ou más. A intenção de as personagens se
apresentarem nas histórias dessa forma, é que possibilite a criança a identificar e diferenciar com
facilidade essas polarizações de caráter, podendo assim decidir quem ela quer ser. Entretanto, vale
ressaltar que a criança não está exatamente preocupada em se espelhar na personagem que possui as
atitudes certas ou incertas, e sim naquela que despertar sua simpatia. A medida em que a história vai
desenrolando, o ouvinte vai se identificando com as personagens que para ele tem mais significado,
suas atitudes e seu comportamento serão inspirações para essa criança. Quanto mais simples e direta
é uma personagem boa, mais fácil para a criança identificar-se com ela e rejeitar a outra má. As
lutas do herói para conseguir resolver suas situações conflitantes envolvem a criança e traz todas as
moralidades da história.
Há também uma crítica muito grande em cima do tradicional final dos contos de fadas “e
eles viveram felizes para sempre”, onde alega-se que é algo fantasioso demais e acaba iludindo a
criança. A pesquisa chegou a constatar que a verdadeira intenção nesses finais é ilustrar para a
criança que ela não deve se omitir, ela deve ser corajosa e ir à luta, a fim de aprender a resolver seus
conflitos pessoais. Depois de alcançar essa conquista, ela terá maturidade suficiente e estará
emocionalmente segura para lidar com seus problemas na vida adulta. A partir dai a vida será
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tranquila e sem frustações (felizes para sempre), não porque não terá problemas e será tudo perfeito,
mas porque ela saberá como agir e não se intimidará em resolvê-los. É importante enfatizar que a
interpretação dos contos de fadas depende da leitura que o ouvinte vai fazer dos mesmos, assim,
para cada criança eles terão um significado especial e peculiar.
Essa pesquisa permitiu conhecer um pouco mais sobre o tema, esclarecer muitos mitos,
através de pesquisas com autores renomados no assunto como Bruno Bettelheim, que aborda os
contos de fadas em sua obra (A Psicanálise dos Contos de Fadas) de maneira encantadora. É válido
ressaltar que as contribuições dos autores e das professoras na pesquisa de campo, foram muito
enriquecedoras de caráter essencial tanto para o crescimento profissional quanto ao pessoal, pois,
são aprendizados que transformam a prática pedagógica, que muda a maneira de pensar e olhar para
o aluno. E isso é fundamental para o pedagogo, pois, muitas vezes diante das cobranças formais das
instituições escolares, esquece-se de que essa profissão lida diretamente com o ser humano, e, o
afeto, o olhar e a relação professor-aluno é a essência que move e mantém viva a profissão.
Cada conto de fadas é um espelho mágico que reflete alguns aspectos de nosso mundo
interior e dos passos exigidos por nossa evolução da imaturidade à maturidade. Para os que
mergulham naquilo que o conto de fadas tem a comunicar, ele se torna um lago profundo e
calmo que, de início, parece refletir nossa própria imagem; mas, por trás dele, logo
descobrimos os turbilhões interiores de nossa alma – sua profundidade, assim como meios
de obtermos paz conosco e com o mundo, que é a recompensa para nossas lutas. [...] Essa é
uma das múltiplas verdades reveladas pelos contos de fadas que podem orientar nossas
vidas; é uma verdade tão válida hoje em dia quanto quando era uma vez... (BETTELHEIM,
2012, p. 413 e 414).
REFERÊNCIAS
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