Oh Meu Deus Ultra Trail Serra da Estrela
K100+
Frase-Chave: "Com o destino a conduzir a carroça de tudo, pela estrada de nada"
Prólogo desta Aventura
O Oh Meu Deus é uma prova de montanha, a primeira prova de 100 quilómetros em
Portugal Continental, que percorre os recantos e encantos da Serra da Estrela (a
cadeia montanhosa mais alta de Portugal). Foi idealizada pelo Paulo Alexandre Garcia
e faz parte do conjunto de provas de Trail Running que a Empresa Horizontes
organiza anualmente.
Este ano festejava-se a 5ª edição da pioneira. Como tal, a organização decidiu
reestruturar o percurso, aumentar o grau de dificuldade, e ainda, marcar esta edição
com umas "inovações". Saliento a criação de um pódio com cinco lugares, a criação
de medalhas com três cores diferentes (do 1º ao 10º atleta a medalha era na cor ouro,
do 11º ao 20º a medalha era na cor prata e do 21º em diante a medalha era na cor
bronze), a criação de um Buff alusivo a esta edição e T-shirts de cores diferentes para
cada uma das provas.
É conhecida por ser uma prova dura e técnica, sujeita às diferenças climáticas que a
Serra da Estrela propícia à prática deste tipo de desportos.
OMD: o que significou para mim
A primeira prova de fogo deste ano...um objetivo com uma magnitude inexplicável...um
querer mais que tudo...uma dedicação absoluta...um "não há não terminar"...a
promessa de concluir esta prova e dedicá-la a duas pessoas muito importantes.
Considero que esta é uma daquelas experiências que devemos fazer, pelo menos,
uma vez na vida. Sensações únicas, inimagináveis, com um poder de transformação
brutal, que nos despertam para outras realidades, que nos tocam de uma forma
especial e que só atravessando por elas é que conseguimos dar valor a outras tantas.
O meu Oh Meu Deus começou no dia 1 de maio de 2014. Vi o folheto desta prova e
prometi que em 2015 seria "a prova". Era na Serra da Estrela, local onde habitam os
meus avós maternos e como tal, disse que a sua conclusão seria uma homenagem a
eles.
No dia 14 de setembro de 2014, estava eu a regressar do I Douro Réccua Trail,
quando recebi o e-mail de pré-inscrição na prova. Inscrevi-me de imediato e efetivei o
pagamento. O dorsal 635 ficou-me destinado pouco tempo depois.
Agora tinha 9 meses para preparar "o grande dia"! Ohhhh Meu Deussss!!!!
Hehehehe!!!! 9 meses?? Tantooooo tempo.... Pois é, parece que é muito tempo mas
digo-vos que passou a voar! O meu target era terminar! Concluir a prova sem lesões e
sem tempos definidos. Mas sentia o peso da responsabilidade…
A primeira prova de 100 quilómetros, a primeira vez que ia iniciar uma prova à noite, a
primeira vez que ia estar em prova na Serra que amo, a primeira vez que teria os
meus avós à minha espera na meta, a primeira vez que era exequível estar em prova
24h e que teria de gerir a minha alimentação o melhor possível...tantas primeiras
vezes... Engraçado como, quase um ano após me ter iniciado no Trail Running, ainda
havia lugar a estreias.
05.06.2015: “O Grande Dia”
Sete da manhã do dia mais aguardado do ano...o sol espreita tímido por entre as
frestas do estore...o despertador nem chega a tocar porque acordo um minuto antes
da hora estipulada…chegou o grande dia!!!
Desperto serena e confiante. Sei que estou bem preparada. Levanto-me e equipo-me
para o último dia de marcações. O Paulo e o Borges não queriam que eu fosse mas a
minha teimosia prevaleceu. Era necessário terminar de marcar a garganta de Loriga e
o Borges não podia ir sozinho. Além disso, sabia que tinha capacidade para o fazer e
para umas horas depois iniciar a minha prova. Ambos temiam pela minha resistência.
Estava desde terça-feira a efetuar marcações com o Borges, das 9 da manhã às 9 da
noite, com uma alimentação precária e hidratação duvidosa. Mas viam-me satisfeita,
motivada e sempre com o meu habitual sorriso nos lábios. Tinha tudo planeado!
Marcar a garganta de manhã e cochilar a meio da tarde.
Um pequeno parêntesis para explicar o porquê de ter ajudado nas marcações do
OMD. O Paulo Garcia sofreu uma lesão na perna esquerda, em abril, quando efetuava
a limpeza do terreno e reconhecimento dos percursos. Desde então não conseguia
correr, tinha dificuldade em andar e deixou de "estar no terreno". Na semana antes da
prova falei com ele e soube que estava com dificuldades em arranjar uma equipa para
efetuar a marcação do K160. Disponibilizei-me de imediato a ajudar. Selecionariam as
partes que quisessem que eu marcasse, imiscuindo-se os problemas éticos
associados. Fiz equipa com o Paulo Borges e juntos percorremos 150 quilómetros em
6 dias, dos quais quatro dias de marcações e dois dias a retirar fitas.
Ganhei vantagem sobre os restantes
atletas? Não. A única vantagem que tive
“no terreno” foi efetuar as marcações no
Km Vertical e na Garganta de Loriga, o
que me permitiu conhecer a dureza
daquela parte do percurso e ter
consciência que precisava de estar bem
hidratada e nutrida para efetuar aqueles
empenantes 20K. As restantes marcações
que fiz foram no percurso do K160,
nomeadamente de Póvoa Nova a Vale
Rossim passando por Aldeias, Folgosinho
e Rota dos Galhardos. Mas deter
conhecimento não fez com que não passasse lá, e com a agravante de já ter 90 Km
nas pernas quando iniciei a minha prova. Por isso, ao invés de fazer apenas um Km
Vertical e uma garganta de Loriga, eu fiz dois Km Verticais e três gargantas de Loriga.
Top! E acredito piamente que foi “esta preparação” que também me ajudou a
manter o corpo ativo e os músculos conscientes do percurso que iam trilhar.
Retomando…às 14h dirigi-
me ao Secretariado da prova
para ver os atletas do K160,
para levantar o meu Kit de
Atleta e para desejar um
"Boa Sorte" ao Pedro
Cordas, um dos atletas do
Clube Millennium bcp a
efetuar esta distância.
Almocei e fui descansar. Ou melhor...tentei. O corpo estava elétrico das marcações da
manhã, a cabeça a mil pois os neurónios reviam todo o material obrigatório e
aconselhado que iriam colocar na mochila, os músculos recordavam a cada segundo
os alimentos que eu tinha de levar para se poderem nutrir, as hormonas
bombardeavam o corpo estimulando-o para as próximas 24h, uma corrente de energia
fluía da raiz dos cabelos à ponta dos pés fazendo-me sofrer de "bicho
carpinteiro". Acho que cochilei...não foi o sono profundo que almejava, mas foi o elixir
que o corpo precisava. Às 18h30 despertei naturalmente e comecei a "montar a
mochila". Depois dispus toda a roupa que iria utilizar em cima da colcha e escolhi o
material que pretendia colocar no saco de Unhais (no final explico quais os locais de
apoio aos atletas e o porquê de existirem dois locais para o K100+).
Jantei num restaurante típico, bastante
acolhedor, e esperei que o Fernando Mota
Sousa chegasse a Seia com o meu
tesouro. Fernando, uma vez mais, o meu
profundo agradecimento por teres trazido a
pessoa mais importante da minha vida
para um dos dias mais importantes do meu
currículo atlético.
Equipada, dirigi-me para o local da partida. Por momentos pensei "será que me
enganei no sítio??...o NOS Alive será hoje? Vou ver os Muse ao vivo?? Hehehe!!!
O local da partida estava montado em frente à Câmara Municipal de Seia, tínhamos
luzes psicadélicas, um DJ e uma passadeira vermelha. A disposição de todos estes
elementos estava muito bem conseguida. Muitos atletas foram unânimes em afirmar
que a partida do K100 foi a mais bonita e a mais original das quatro provas.
Encontrei os atletas do Clube que também iam efetuar a prova, de seus nomes,
Fernando Alcides, Hélder Baptista, Virgílio Costa, Fernando Mota e Sousa, Miguel
Cruz e José Farinha, a equiparem-se.
Dirigimo-nos para a linha de partida, fizemos o controlo zero, tirámos as fotos da
praxe, contámos até dez, com o retroprojetor a assinalar a hora, e ao som da
trombeta, partimos.
57 atletas, guiados por um carro da polícia, partiram da Câmara Municipal de Seia às
00h do dia 6 de junho de 2015, com o objetivo comum de percorrer 102 quilómetros e
regressar ao ponto de partida dentro do tempo limite.
1º Abastecimento: 10.325 metros até ao Sabugueiro com um D+689 e D-177
As luzes da cidade iluminaram-nos nos quilómetros iniciais até à entrada no trilho e,
daqui em diante, os frontais foram os nossos guias. A maioria dos atletas levava
bastões e como se começava logo a subir, o "toc toc" ecoou na noite.
Percorremos um trilho florestal até entrar na vila de Póvoa Nova. Aqui fomos
brindados pela hospitalidade dos locais. 4 Km após iniciar a prova tínhamos uma mesa
recheada com pedaços de melancia, cerejas, bolinhos, tostas, queijo, água, chá e
café. Um mimo!!! São gestos como os destes aldeões que nos marcam e que
recordamos com elevada estima.
Continuámos para o Sabugueiro num percurso por trilhos de montanha de baixa
dificuldade técnica mas com alguma oscilação nos desníveis acumulados e
irregularidades naturais do terreno. A lua esteve sempre à minha direita e foi uma
companhia constante nos noturnos quilómetros que percorri. À medida que subia em
altitude, o vento fazia-se sentir cada vez mais gélido.
À saída da Póvoa Velha, desembocámos numa estrada e passados uns metros
voltámos a entrar num trilho, sob indicação de um carro de bombeiros. Seguimos na
direção do Sabugueiro.
O Sabugueiro é um dos melhores pontos de partida para se conhecer a magnífica
Serra da Estrela pois é uma das mais extensas freguesias de todo o Parque Natural,
situa-se a 1.100 metros de altitude e é a meio caminho do ponto mais alto do Planalto
Central. O abastecimento era de líquidos e sólidos, bastante farto.
Bebi água, comi uma banana e sem grandes demoras, segui.
2º Abastecimento: 7.650 metros até Vale Rossim com D+445 e D-224
Do Sabugueiro seguíamos para o Vale Rossim. Descemos a vila e começamos a subir
por um trilho arbustivamente fechado, com uma linha de água bem conservada e
pincelada com pedras de vários tamanhos e feitios. A terra estava húmida e em alguns
locais, o pé enterrava-se. Era uma subida ligeira e exequível de fazer num trote
moderado mas optei por seguir a andar para ver onde punha os pés. Escalámos umas
rochas, saltitámos entre cedros, zimbros, carvalhos e alguns pinheiros bravos e
desembocámos num trilho com uma vegetação baixa, maioritariamente giestas.
Parecia uma autoestrada. Largo, piso de terra seca e "sempre a direito". Ora, bastante
corrível. Dei corda às sapatilhas e mantive o pace. A lua passou a acompanhar-me
pela esquerda minutos antes de chegar ao Vale Rossim.
Sito nas Penhas Douradas, junto ao maior vale glaciar da Europa, é um local único em
termos científicos, ambientais e paisagísticos e possui algumas infraestruturas de
apoio, numa das quais estava o segundo abastecimento de sólidos. Muitos atletas não
se aperceberam mas este seria o último abastecimento de sólidos antes da chegada a
Unhais da Serra. Voltei a beber água, comi outra banana e levei uma na mochila. Por
ser um local "descampado", sentia-se uma aragem fria e por momentos ponderei tirar
o softshell.
3º Abastecimento: 15.860 metros até Vale Glaciar com D+470 e D-820
Segui as indicações dos voluntários e fui conduzida pelas marcações florescentes
colocadas à volta do vale. Nem dois minutos depois de sair do abastecimento...terra
húmida...água gelada!!! Brrrrr!!! Segui com os pés gelados uns quilómetros porque o
percurso contornava o vale glaciar até entrar novamente num trilho florestal.
O abastecimento seguinte situar-se-ia no Vale Glaciar mas antes de lá chegar
deparar-nos-íamos com a mítica travessia pela Nave da Mestra (1.650 metros).
Quando me aproximei da dita até me assustei! Umas luzes verdes intermitentes
assinalavam algo...naquele momento nem me ocorreu o que era. Constato que os
atletas estão abrandar e quando me aproximo vejo a mítica fenda. Segui
cautelosamente atrás deles. Por ser menina oiço sempre "precisa de ajuda?", já com a
mão suspensa na minha direção. Sorri e agradeci a amabilidade mas já estava quase
no fim.
Aqui tínhamos "uma surpresa". Um posto de controlo para confirmar que os atletas
seguiam o percurso e não "aldrabavam" a organização. Esta foi outra das inovações
que a quinta edição do OMD teve. Colocar três postos de controle em locais
estratégicos para assegurar que o percurso era seguido na íntegra, garantir que as
classificações eram justas e confirmar a idoneidade dos atletas.
Seguimos quase em plano. Entre o Vale Rossim e o Vale Glaciar, o trilho era bastante
corrível. O que poderia apelar a que o atleta se entusiasmasse e gastasse muita
energia e pernas neste trajeto. Eu, como tinha absorvido as informações do Paulo,
sabia que nesta parte do percurso tinha de "refrear" o ímpeto. Corri, mas numa
velocidade confortável. Um registo que conseguisse manter durante muito tempo para
não me cansar antes da verdadeira prova se iniciar. O meu objetivo era chegar a
Unhais "fresca" e quase sem acusar 52K nas pernas. Só assim conseguiria ter força
para terminar a prova.
Depois de atravessar a Nave da Mestra tive um percalço. O meu frontal, que
supostamente estava cheio de carga, começou a fraquejar. Vi a minha luz reduzir a
um terço do que estava e logo naquele troço!! Iria começar a descida técnica do Vale
do Zêzere...
Bom...só havia uma solução...descer com muita prudência, ainda mais do que já é
costume, e tentar aproveitar a luz de outros atletas para ver as irregularidades do
percurso. Sei que fui ultrapassada por vários atletas nesta parte e psicologicamente
não foi benéfico mas sabia que não podia abusar da sorte. Desci com muita calma
porque era noite cerrada, e, no meio da farta vegetação, num trilho estreito e em
ziguezague, salpicado por troncos pequenos e duvidosos, quase imperceptíveis,
pedras soltas e mal posicionadas, e terra seca com troços escorregadios, todo o
cuidado era pouco. Felizmente não aconteceu nada. Descíamos todos em fila indiana,
alertando para os perigos que se interpunham no nosso caminho. Os bastões serviam
para eu calcar a terra, testar a existência de troncos e/ou raízes, apoiar-me e progredir
no trilho. Dois atletas estrangeiros rasparam o traseiro no chão mas sem lesões a
salientar. No final deste trilho esperava-nos um estradão larguíssimo, quase sempre a
descer, pelo meio da floresta. Abri a passada. O frontal desligou-se mas como estava
num estradão calculei que existiriam poucos perigos. Fiei-me nas sapatilhas e na
capacidade do corpo reagir caso lhe fosse exigido. E soube muito bem! Ultrapassei
todos, um por um, mas sem forçar os músculos. Aquele "ram ram" tinha criado uma
tensão excessiva no corpo. E esta era a melhor forma de descomprimir e libertar
novamente os músculos.
O terceiro abastecimento situava-se na língua glaciar de maior dimensão da Serra da
Estrela, precisamente no meio do "U". Tínhamos feito a descida de um lado do Vale
Glaciar e iniciaríamos a subida do lado oposto até Alforfa. Ao chegar ao
abastecimento, contemplo o Sol nascer sobre a Vila de Manteigas. Um cenário
apaixonante e que ficará gravado para sempre na minha memória fotográfica.
Tons rosa forte e laranja pálido no horizonte, uma ténue luz que percorre toda a
extensão do vale e nos conduz por verdejantes prados, por linhas de água e
laguachos com uma vegetação arbustiva baixa, alguns elementos rochosos e casas
típicas da Serra.
4º Abastecimento: 8.625 até Vale de Alforfa com D+504 e D-111
Percorri um caminho de singular beleza, junto ao Rio Zêzere com as suas águas frias
e cristalinas, num quadro emoldurado pelo azul do céu e o verde do Vale. Enquanto
corria, contemplei os afloramentos graníticos - Cântaro Magro e Cântaro Gordo e os
covões, especialmente o Covão d'Ametade. Este situava-se na minha linha de
horizonte e sorria de forma marota. Mas não, não íamos por lá.
Atravessámos umas quintas e hortas bem cultivadas, uma linha de água fresquinha,
pusemos os pés na lama, subimos uma ladeira que desembocava num trilho fabuloso
e que me fazia recordar a floresta laurissilva da Madeira, rastejei por baixo de dois
troncos, saltitei nuns degraus em madeira, rompi por entre as giestas, afastei as
coloridas flores que fechavam o trilho (parecia que ninguém lá tinha passado antes) e
brinquei ao equilibrismo em umas pedras redondas e lisas.
No final da subida, um poderoso contraste entre um modelado granítico e xistento e
entre uma farta vegetação e um deserto arbustivo impõem-se no horizonte. Era o trilho
do Major que me conduziria para o vale de Alforfa.
Impus ritmo, forte, e lá fui
eu! Tinha de completar os
40K em menos de 8H e
tinha em mente chegar a
Unhais dentro das 9H.
Trilhos técnicos, caminhos
florestais, trilhos da grande
rota, estradões e alguns
metros de estrada foi o
percurso que palmilhámos
até chegar ao quarto abastecimento. Na projeção oposta ao vale de Manteigas (Vale
do Zêzere) encontrámos o Vale Glaciar de Alforfa com as suas acumulações
desordenadas de rochas e blocos erráticos de grandes dimensões. Era uma visão
"quase desértica" comparada com outros troços pelos quais tínhamos passado umas
horas antes.
5º Abastecimento: 9.5 metros até Unhais da Serra com D+125 e D-822
Descemos o aglomerado de calhaus do
tubo da central hidroelétrica, corremos ao
lado da linha de água, atravessamos
terrenos adubados com "bosta de vaca",
saltitámos entre as margens da ribeira,
ladeámos a central de Alforfa, afundámo-
nos num caudal da ribeira (soube muito
bem para refrescar e para limpar a
porcaria dos pés e das pernas),
descemos num verdejante prado, fui
observada pelas pachorrentas vacas
(deviam pensar "mas o que é que se passa hoje aqui? só vejo pessoas a correr...") e
desemboquei num antigo trilho de pastores, constituído por pedras soltas e algumas
firmes que nos guiava até à vila de Unhais, mais precisamente ao jardim.
Quando estou a contornar o jardim vejo um fotógrafo de amarelo no lado oposto. Olho
para o relógio e penso:
- "9 horas, dentro do tempo que estipulaste...muito bem menina Filipa!!!" Sorrio de
orgulho.
Olho em frente e vejo que afinal o fotógrafo era o Rui! Hahaha! Um amigo meu,
residente na Covilhã, que se predispôs a levar a minha alimentação a alguns
abastecimentos para que não sofresse tanto do estômago. Tínhamos combinado em
Unhais e lá estava ele. Surpreso por me ver tão cedo e tão fresca. Estava tudo a
correr como planeado. E mais importante de tudo, eu estava extremamente feliz!!
Pedi-lhe que avisasse a minha mãe que tinha chegado ao abastecimento de Unhais e
que agora sim, finda a Era Pré-Glaciar, começaria realmente a prova OMD.
Antes de dar início à minha prova, tinha dito à minha mãe:
- “Eu aviso-te assim que chegar a Unhais da Serra, mas não esperes receber notícias
minhas antes das 10h”.
Dou sempre uma margem, no caso de alguma eventualidade.
Unhais da Serra, freguesia do concelho da Covilhã, sita na base da vertente sudeste
da Serra da Estrela, é conhecida como a "Sintra da Covilhã" e por estar no meio de
um vale glaciar oferece um termalismo de qualidade.
O abastecimento era dos mais fartos que vi. Dois tipos de sopa, vários tipos de queijo,
sandes mistas, de presunto, ou simples, broa, batatas fritas, tomate, sal, frutas
variadas, bolos, bebidas frescas e quentes...um verdadeiro banquete! E justificava-se,
afinal ali era o meio da prova e o primeiro posto de apoio aos atletas.
Alimentei-me bem e tomei o meu primeiro redrat para assegurar que restabelecia os
sais que o corpo tinha perdido durante a noite. Atestei a mochila com água e adicionei
outro redrat a um dos soft flasks, a fim de, me preparar para a exposição solar que iria
apanhar na subida para o Alvôco.
6º Abastecimento: 8.850 metros até Alvôco da Serra com D+733 e D-680
Parti a trotar. Trotei mais de dois quilómetros até
que me deparo com “a parede”!
5K de subida num corta-fogo árido, cor de tijolo,
com pouca vegetação, constituído por pedra
xistosa de vários tamanhos e feitios, uma
exposição solar total, com vários patamares de
subida, diferentes graus de inclinação em cada
um dos patamares, um "nunca visualizar o fim"
(porque há trilhos circundantes e não é fácil de
deslindar por onde é que o atleta deverá seguir),
e quando se está quase a ver o fim, numa ligeira
depressão, somos brindados com mais "um empeno".
Ouvi muitas reclamações (durante e depois da subida), observei muitas caras de
desespero e vi muitos atletas "mortos" nesta escalada, alguns dos quais me questionei
como chegariam ao fim…mas, uma coisa é certa, a 5ª edição do OMD será sempre
recordada por esta parede e pela que se seguiu.
Finda a empenante subida, tínhamos uma descida “quebra-joelhos”!! 5K em
ziguezague, igualmente expostos ao sol, constituídos por terra seca e alguns calhaus.
O corpo queria voar e aproveitar o embalo mas os joelhos diziam para não confiar na
descida. Se me “atirasse” ali, ia fustigar as pernas, consumir imensa energia,
desgastar os joelhos e os 40K que ainda remanesciam tornar-se-iam um pesadelo.
Ouvi a voz da razão e desci a trotar “em slow motion” mas sem travar demasiado para
também não criar uma tensão desnecessária.
Cheguei a Alvôco da Serra hiper
mega super desidratada e
esfomeada. Ataquei a broa com
queijo, devorei duas tijelas de
sopa, atestei o reservatório de
água e comi vários pedaços de
melancia.
Em Alvôco situava-se o sexto
abastecimento e era o segundo
posto de apoio aos atletas.
7º Abastecimento: 8.4K até à Torre com D+1044 e D-1
De baterias recarregadas e mentalizada que ia fazer o segundo Km Vertical “dentro de
um braseiro”, parti! Passei na escola para dar o meu número de dorsal para efeitos de
contabilização de tempos e segui. Conhecia aquele percurso, sabia onde estavam as
marcações, os “perigos” e os nomes que o Borges tinha empregue para batizar
aquelas pedras Não ia ser pêra doce! Ainda estava a processar os alimentos e não
tinha consumido carboidratos de alto índice glicémico suficientes.
2H40 foi o tempo que demorei a subir o Km Vertical! A início com alguma dificuldade
mas consegui manter a constância, depois comecei a ganhar ritmo e a ultrapassar
alguns atletas. Ganhei ânimo e propus-me a ultrapassar a terceira atleta do K100
(quando passei na escola a dar o meu número de dorsal disseram-me que a 3ª atleta
do K100+ estava uns “bons minutos” à minha frente).
Quando saiu de Alvôco tinha uma boa diferença de mim, e no início da subida via-a
sempre bastante afastada…mas…lentamente, eu estava a ganhar terreno. Vi-a parar
várias vezes. Entendia perfeitamente o que estava a passar. O calor era excessivo, a
exposição solar demolidora e o esforço físico tremendo. “Escalar” aquela parede
dentro de uma câmara com mais de 30 graus, subir de uma cota de 900 metros para
uma de 1940 em pouco mais de cinco quilómetros, aguentar o corpo a pedir água e ter
de racioná-la o melhor possível, controlar as alterações fisiológicas imediatas da
subida em altitude (das quais, a hiperventilação, o aumento do débito cardíaco e o
consumo máximo de oxigénio) e sentir os músculos das pernas protestar sempre que
a inclinação empinava mais. Sim, que não a subida não é constante! Existem troços
com uma inclinação mais acentuada que outros. E o facto de umas zonas serem de
predominância rochosa e em outras termos uns paus enormes e secos no meio do
percurso também não permite que consigamos manter a velocidade constante e é
nestas transições que a cabeça cede e diz “pára um pouco”. Segundo estudos
efetuados, em vários tipos de desportos, há uma diminuição na performance do atleta,
em mais de dois minutos quando se treina em altitude. Daí, este tipo de treino ser
fundamental quando se pretende completar provas de montanha.
Consegui nunca parar. Mas repetia inúmeras vezes “está quase…parar é pior…já
fizeste esta subida…tu aguentas…imagina-te a chegar à Torre…já vais beber água
mas por agora temos de controlar a sua ingestão…na Torre bebes um duplo…pensa
na mamã…pensa na tua Angel…observa a beleza da paisagem…”.
Seguia de olhos fixos no chão e absorta nos meus pensamentos quando vejo que, a
200-300 metros de mim, estava a terceira atleta. Estava parada a olhar para mim.
Aproximei-me, perguntei como se sentia e disse que estávamos quase, para não
desanimar. Disse-me que estava com dores nos quadríceps. Aconselhei-a a dar essa
indicação no abastecimento da torre e a ingerir sais. Segui no meu ritmo. Ela ficou
parada um pouco mais e depois seguiu-me.
Confesso que “ultrapassar” os atletas que iam à minha frente foi uma injeção de
adrenalina no corpo. E ainda mais, naquela subida!
Quase no topo, olho para trás e vejo-os distantes. O psicológico detonou todas as
dores que sentia e fui inundada por uma onda colossal de energia! Estava quase no
fim! Estava tão próxima da Torre…
No topo da subida vejo um “camisola amarela” deitado debaixo de uma rocha (LOL) e
digo:
- “Nunca me soube tão bem ver-te!!! Estou cheia de sede, tens água?”
Bebi quase 1 litro de água e depois relatei “a minha conquista!”. Tinha ultrapassado
vários atletas, a “minha adversária francesa” e seguia cheia de pica, sem nunca baixar
o ritmo. O Rui teve de acelerar o passo para me conseguir apanhar! Estava elétrica!
A alegria imensa de chegar ao topo, de ver as míticas torres, de olhar para trás e não
ver os outros atletas, o consumo de oxigénio que aos poucos era mais eficiente e os
músculos a dizerem “vamos, vamos…temos que chegar a Seia pelas 20h”
Encontrei o Paulo Garcia no sentido contrário ao meu. Ia levar garrafões de água aos
atletas pois havia muitas queixas de desidratação na chegada à Torre. Ficou
estupefactamente radiante por me ver ali e desejou uma boa continuação.
2K era o que me separava daquelas duas torres…pareciam tão perto mas eu sabia
que ainda estavam longe!
Na Torre optei por comer o que o Rui tinha na geladeira para mim. Começava a sentir
dificuldade em escolher e interpretar as necessidades do corpo…mas ataquei o
iogurte com chia e refastelei-me com um duplo!!! Soube pela vida!!!
8º Abastecimento: 11.85 metros até Loriga com D+103 e D-1331
Despedi-me do Rui e corri que “nem uma desalmada” pela encosta rochosa abaixo! Ia
à conquista da terceira garganta de Loriga!
Confesso-vos que eu voava!! Saltitava de rocha em rocha sem medos e quase não
assentava os pés para me manter sempre no ar e equilibrada. Estava tão tão feliz!!
A garganta de Loriga é um trono onde a natureza é soberana. Onde contemplamos
embevecidos um reino de esplendor. As gigantescas montanhas quase que arranham
os céus. Os socalcos verdejantes ficam guardados na retina. O ar da serra lava os
pulmões. Inúmeros lagos surgem por entre as rochas. O coaxar das rãs perturba o
plácido silêncio de um local que nos faz sentir pequenos face à grandiosidade do que
a nossa vista alcança. Os trilhos dos pastores e dos seus rebanhos conduzem-nos em
altitude. As mariolas e as marcações pedestres orientam o nosso percurso.
Atravessamos “gargantas” que desafiam a nossa estabilidade. E, no meio do trilho,
encontramos escadas que nos transportam ao MIUT por breves instantes.
Este é um dos sete vales glaciares do Parque Natural da Serra da Estrela e é
constituído pelo Covão do Boeiro, do Meio, da Nave e da Areia.
Durante a descida vislumbram-se inúmeros depósitos de sedimentos que se dispõem
sobre a forma de degraus. Parece “arte humana” mas não é. São denominados de
ombiliques.
Superfícies polidas, blocos de granito, cristãs graníticas, blocos alóctones, rochas
xistosas, uma barragem e inúmeras estrias compõem a “técnica e temível descida de
Loriga”. Concordo que é uma descida técnica, que é necessário ter bastante cuidado
onde colocamos os pés e como os colocamos, que recruta todos os nossos sentidos e
que dois quilómetros parecem uma eternidade. Para mim foi um grande treino pois
desde que sofri as duas entorses, sou bastante regrada nas descidas, especialmente
em descidas técnicas. E por ter completado esta descida três vezes recuperei alguma
da confiança perdida.
Muitos atletas nem se aperceberam do
majestático cenário que atravessaram. Uns
porque vinham de noite, outros porque
estavam muito focados no chão, alguns pelo
cansaço que o tecnicismo da descida impõe,
outros pelo cansaço acumulado da prova, ou
ainda, a acusar algum grau de desidratação.
Foram quase 10K de uma descida com
vários graus de tecnicismo. Os restantes 2K
eram “a abrir” num estradão de areia fina e
seca (mas sem derrapar), protegido por
frondosas árvores e arbustos com mais de um metro e meio de altura, até culminar na
vila de Loriga. Quase 2H30 depois de ter saído da Torre “travei a fundo” no oitavo
abastecimento. No meio do vale tinha sofrido enjoos e necessidade de vomitar, mas
aguentei o melhor que pude.
A vila de Loriga é circundada por “montes” que lhe ornam a fronte e situa-se num
abismo de íngremes cerros. Honestamente, “não lhe acho grande piada” mas sei que
é uma vila extremamente conhecida na Serra da Estrela.
Fui muito bem recebida e acolhida no abastecimento. O Rui estava, uma vez mais, à
minha espera de “máquina fotográfica em riste”.
Bebi muita água, tomei dois redrats, comi uma banana com um bocado de arroz tufado
e retomei a prova. Começava a ter “falta de apetite” e já sabia o que aquilo significava.
9º Abastecimento: 12.100 metros até Lapa dos Dinheiros com D+700 e D-702
Descemos, subimos, descemos, subimos…foi este o percurso que nos levou até à
rotunda de Cabeça antes de entrarmos no trilho mais bonito de todo o OMD.
O K160+ passava na primeira vila LED de Portugal – aldeia de Cabeça – e percorria
um trilho de levadas fabuloso, numa das zonas que mais adoro na Serra da Estrela.
Uma coisa fascinante no Parque Natural da Serra da Estrela é que apresenta um
variado mosaico de habitats com elementos representativos de diferentes regiões
biogeográficas. Até aos 900 metros tem uma influência mediterrânea, dos 900 aos
1600 metros domina o carvalho, os soutos, as giestas, o pinheiro bravo, o abeto e o
cedro e no andar superior, o zimbro, os cervunais e as lagoas. Toda esta
biodiversidade esteve patente nas três principais provas do OMD.
Os últimos 20 quilómetros de prova foram escolhidos como “o happy ending”.
Pretendia-se que os atletas “se fundissem” com os elementos da natureza, com a
diversidade que iam encontrar e “esquecessem” que ainda faltava um pouco para
chegar a Seia. Estes quilómetros eram um misto de várias serras de Portugal.
Levadas como na floresta da Madeira, casas de Xisto como na Serra da Lousã, trilhos
tubulares como na Serra da Arrábida, mata florestal como na Serra de Sintra, trilhos
pedrestes pincelados por troncos e/ou perigosas raízes como em Monsanto, uma
biodiversidade vegetacional como na Serra do Bucaço, trilhos constituídos por
arbustos densos e pedras soltas como na Serra de Aire e Candeeiros, subidas em
socalcos como na Serra de Cinfães e zonas fluviais no meio dos trilhos como se
estivéssemos na Serra do Gerês.
Percorri estes 12K, praticamente, a trotar. Na subida antes de chegar à rotunda andei
a um ritmo forte, apoiada pelos bastões, mas, da rotunda em diante, segui sempre a
trotar. Os quilómetros iniciais eram a descer. O verde luminoso das árvores
contrastava com o verde escuro dos arbustos, o arco-íris não estava no céu mas sim
nas flores, o canto dos passarinhos acompanhava-me naquele mundo de magia, os
enormes fios das teias das aranhas colavam-se ao meu corpo, observava intrigada a
seiva das árvores que se acumulava em latas de alumínio, olhava para a esquerda e
contemplava o Mundo…
Montes a perder de vista, trilhos que circundavam os cerros, “mantos de verde”,
algumas vilas no meio dos abismos, corta-fogos alucinantes, “tufos de árvores de
grande porte”, o Sol que brilhava no horizonte…uma obra de arte natural!
A aldeia de Lapa dos Dinheiros surpreendeu-me com a sua ponte românica, com o
buraco da Moura e pelos extensos cursos de água natural. Atravessámos locais de
cultivo e uma zona de socalcos suportados por muros de granito até chegar ao nono e
último abastecimento antes de atravessar a meta.
Quando lá cheguei estava de rastos. O meu estômago parecia uma bola de fogo que
consumia as paredes internas como se fossem lenha. Hidratei-me e comi fruta fresca.
Por descargo de consciência (pois não conseguia tolerar nada) comi iogurte com chia
e canela. Despedi-me do Rui e disse:
- “Até já! Encontramo-nos em Seia.”
Sabia que ia avisar a minha mãe. Sabia também que teria as três pessoas mais
importantes da minha vida, encostadas às grades, ansiosas por me avistar no
horizonte.
10º Abastecimento: 9.900 metros até Seia com D+413 e D-537
Quando sai do abastecimento vi uma subida…bem…sabia que não era sempre a
descer! Tínhamos três grandes subidas, contornávamos a Serra até à Cabeça da
Velha e, a partir daí, é que começávamos a descer.
Foi um suplício pelas lancinantes dores que tinha. Praguejava muito, mas nada de
coisas ofensivas ou menos próprias. Tentava perceber o que tinha falhado para estar
assim…mas, no fundo, eu sabia. “Praguejar” é um dos sinais que o meu corpo dá
quando está em défice calórico e/ou com o limiares de dor/de tolerância muito abaixo
do desejável. Fisicamente estava bem. Os músculos respondiam bem ao trote e, em
alguns troços, corri com um pouco mais de velocidade. Mas nas subidas poupava-me.
Sabia que tinha 4K de descida até Seia e que ainda iria correr ao lado de uma linha de
água mais de um quilómetro e meio.
O percurso da Lapa dos Dinheiros até à Cabeça da Velha é, para mim, dos troços
mais bonitos do OMD. A farta vegetação, as cores do arvoredo, a diversidade da flora,
os recantos que descobrimos, a paisagem que nos acompanha, as ocasionais pedras
que nos desafiam, o intenso amarelo das giestas, as nascentes de água fresca e pura,
a praia fluvial, os montes repletos de zimbreiros, as formações graníticas…
Descemos até ao início de uma levada que
nos conduzia ao misterioso rochedo dos
Cornos do Diabo, atravessámos a praia
fluvial da Caniça e voltámos a subir em cota até encontrar a levada de água do Rio
Alva que nos conduzia no sentido da Senhora do Desterro.
Na Mata do Desterro corri! Eram mais de 2K a contornar a Serra, em plano e sem
qualquer dificuldade técnica. O fim do dia estava próximo…o Sol estava a pôr-se no
horizonte e a luz desapareceria em pouco mais de meia hora. Tinha deixado o meu
frontal no saco de Unhais, segura que chegaria de dia, e para me “obrigar” a ter esse
objetivo em mente. Como tal, “tinha de dar corda às sapatilhas” e esquecer as dores.
Pensava “Filipa, a dor é passageira, a glória é eterna! Por isso, dá o teu melhor nesta
parte! A luz está a escassear, não tens frontal, e estás no meio da mata do Desterro..”.
Cheguei à Senhora do Desterro e cumprimentei uns aldeões que amavelmente me
disseram:
- “Força menina, está quase! Só faltam 6K e os últimos quatro é sempre a descer!”.
Sorri, agradeci as palavras e desejei felicidades.
A última “grande” subida estava ali! A grandiosidade dela não se traduz no D+ mas por
ser a última, por ser em calçada, por ser inclinada, por estar situada no K98 e porque
eu sabia que só terminava na Cabeça da Velha. Maldita velha! LOL!!
Vejam lá se eu não tenho razão!! Estou eu a aproximar-me, e ela a esboçar um sorriso
de gozo Virei-me para ela e disse:
- “A última já conquistei! Já só me faltam 4K até à meta e agora sim, sempre abrir
porque a noite está a chegar, e eu tenho de terminar antes das 21h30 de prova!!”
Fiz por voar! Desci sem medos, sem travões, sem pensar nos joelhos, nas pedras ou
nos paus. Desemboquei na estrada. Já via a cidade, as luzes, o estádio…
No último quilómetro e meio atravessei pelo meio de uma horta, vi cabrinhas a fugir de
medo de mim e aproximei-me dos primeiros prédios. Vi o primeiro lance de escadas,
virei à direita e encontrei o segundo lance de escadas. No final das escadas estava
quase lá! Os bombeiros iam aparecer à minha direita e depois era sempre a direito até
à rotunda. Conheço tão bem Seia! Sabia por onde ia passar na perfeição. A sapataria,
o Hotel Camelo, a casinha de produtos regionais, a papelaria que vende as lotarias, o
estabelecimento que vende os casacos de pele, a placa do Museu do Pão, a praça de
táxis, e enfim, a rotunda! Estou a aproximar-me e reconheço uma carrinha. Era o
Borges! Dá-me força para os últimos metros. Ver uma cara conhecida no fim é sempre
muito bom! Mas melhor que isso foi ver o “meu maridão lindo” estacionado a porta do
balcão do Millennium bcp a olhar para mim Adoro o meu FO! É o meu mais-que-
tudo material. E se ele estava ali, alguém muito muito importante para mim estava lá
também. Estava com um grande sorriso nos lábios! Por dentro nem conto
Vi o insuflável verde, vi a passadeira vermelha e vi ao fundo, junto às grades, as três
pessoas que nunca me podem faltar…mãe, avó e avô. Já estava de noite mas o último
objetivo ia ser cumprido! Chegar antes das 21h30 de prova
Conclui a 5ª edição do Oh Meu Deus Serra da Estrela em 21h28m56seg. Atravessei a
meta em sprint e parei a frente do pódio. Virei-me, automaticamente, para a esquerda
e desabei num pranto no colo da minha mãe! Chorei durante uns minutos. Não era de
dor, mas sim de alegria. Alegria por ter concluído 100 quilómetros, por a ter ali, por
estar bem fisicamente, por ter conseguido atingir quase todos os objetivos a que me
tinha proposto, por prestar esta homenagem aos meus avós maternos e porque a
minha chegada refletia todo o trabalho, dedicação, horas de treino, concessões e
empenho que tinha dispensado.
“Babei” a minha mãe, a minha avó, dei beijinhos ao meu avô e agradeci todo o
trabalho que o Rui teve em acompanhar-me posto a posto.
Ainda estava no colo da minha mãe quando me dizem que sou a segunda classificada
do K100+. Não queria acreditar! Mas eu tinha ultrapassado a terceira…tinha de ser a
terceira…não a segunda…
Foram confirmar de novo. Era oficial. Eu era a segunda atleta do K100+ da 5ª edição
do OMD.
Foi “um baque”!! Wowwww…eu ia mesmo ao pódio?? Um pódio na minha Serra?? O
meu corpo tremia de emoção, pulsava de liberdade, sentia-se um conquistador, sentia
que afinal não era assim tão pequeno…que tinha sido um guerreiro nos últimos
tempos e em particular, nos últimos dias.
Terminei esta prova com as endorfinas no auge, e as reacções químicas intensas e
stressantes a que o corpo foi sujeito no decorrer daquelas vinte e uma horas,
resultaram numa onda de sentimentos grandiosos e avassaladores. Sentia-me
fisicamente forte mas hídrica e mineralmente debilitada. O primeiro sintoma tinha sido
o ataque estomacal e o segundo, as náuseas, enjoos e falta de apetite. Estava num
pico de forma, sentia-o.
O Paulo Garcia aproximou-se e parabenizou-me pelo feito.
Despedi-me de toda a organização e encaminhei-me para o “meu maridão” com a
minha família.
Vi a terceira atleta do K100 a chegar e dei-lhe a mão em sinal de parabenização pelo
feito. Sorrimos muito felizes uma para a outra.
Vi quase todos os atletas que tinha ultrapassado chegarem à meta. Bati palmas e
gritei força. Estava feliz por eles! Éramos todos vencedores!
57 atletas chegaram ao Sabugueiro mas só 37 terminaram a prova em Seia.
As Classificações Oficiais da Equipa do Millennium bcp no K100+:
Nome do Atleta Tempo Oficial Posição na Classificação
Filipa Alexandra Vilar 21:28:56 17 da Geral
Miguel António Cruz 23:48:51 30 da Geral
Fernando Alcides Rodrigues 23:49:02 31 da Geral
José Farinha 23:49:12 32 da Geral
Hélder Manuel Baptista 23:49:17 33 da Geral
Virgílio Costa 25:07:09 34 da Geral
No Domingo dirigi-me, novamente, a Seia para “ir ao pódio”.
Recebi a medalha cor de prata por ter concluído na 17ª posição da geral, o cajado
(símbolo dos Pastores da Serra da Estrela), um prémio criado em exclusivo para os
atletas por uma casa de beneficência e uma garrafa de vinho da Quinta do Escudial
(premiado com duas medalhas de prata no Wine Masters Challenge 2014).
O primeiro classificado do K100+ do OMD terminou a prova em 17:01:35 e a primeira
classificada em 20:41:43.
Para mim, o Parque Natural da Serra da Estrela é o maior monumento natural, a
minha paz de espírito, o meu lar, as minhas raízes, o local onde encontro um
bocadinho de todas as Serras de Portugal, o local onde vivi verdadeiramente a minha
meninice e a Serra que me deu um pódio que muito me orgulho.
Espero que, no futuro, mais atletas do Clube possam conhecer esta maravilhosa Serra
e confirmar “a minha tendenciosa visão”.
A Minha Dedicatória
Dedico esta superação a 5 pessoas:
Ao meu bisavô, porque nasceu no dia 6 de junho e acredito piamente que me
orientou e acompanhou nesta demanda na Serra onde nasceu, cresceu, viveu e
faleceu;
Ao meu avô e avó maternos, pois são o meu porto de abrigo, os únicos avós que
conheci verdadeiramente e que reconheço como tal;
À única pessoa com a qual tenho e sei que terei uma ligação eterna: a minha mãe.
Eu sei que te "dou cabo da cabeça" com tudo o que faço, com as opções que tomo,
com as insanidades atléticas a que me proponho, mas tu foste, és e serás toda a
minha vida, a pessoa mais importante para mim. Foi a pensar na tua colossal força
que superei os últimos 21K à mercê de insuportáveis dores estomacais, o teu sorriso e
salva de palmas que me fez "sprintar" nos últimos metros e foi no teu colo que chorei
de alegria na meta.
A alguém que eu não conheci mas que acredito que existe. A uma santidade que
me acompanha, que me encaminha no meu destino, que me protege de tudo (porque
como muitos dizem "eu abuso da sorte") e que me ajuda a crescer como pessoa,
atleta, mulher. Eu acredito nos sinais, acredito que são a expressão do caminho que
devemos trilhar e muitas pessoas me ouviram dizer "é a quinta edição, é o meu
destino, é a minha sorte, é a minha conquista"... O resultado alcançado espelha que a
minha interpretação estava correta. Eu concluí esta prova sem lesões, feliz por ter as
pessoas mais importantes para mim à minha espera na meta, e ainda fui abençoada
com um pódio. Não ligo a este tipo de condecorações mas confesso que este pódio no
OMD foi a chegada ao Olimpo.
Locais de Apoio
A organização tinha seleccionado dois locais distintos para que os atletas pudessem
trocar de roupa e/ou sapatilhas. O primeiro situava-se em Unhais da Serra e o
segundo, em Alvôco da Serra.
Unhais da Serra foi escolhido como primeiro local de mudança de roupa porque:
Era, precisamente, o abastecimento do meio da prova do K100+ (Km 51);
Era a primeira barreira horária que os atletas do K100+ tinham (os atletas tinha de
partir de Unhais até as 12:00);
Era o segundo abastecimento com sólidos após o início da prova (o primeiro
situava-se no Vale do Rossim ao K18);
Nos últimos doze quilómetros, atravessávamos uma zona de pastorícia, fortemente
adubada com "bosta de vaca" onde era impossível manter o calçado limpo;
A descida do Vale de Alforfa brindava-nos com inúmeros riachos e/ou cursos de
água, atravessando entre as margens da ribeira, pelo menos, três vezes;
Era a partir deste abastecimento que se iniciava verdadeiramente a prova OMD
K100+.
Alvôco da Serra foi definido como segundo local de mudança de roupa porque:
Unhais e Alvôco da Serra estão "separadas" por uma colossal parede ou como nós
dizemos, por um corta-fogo sem fim. E de Alvôco à Torre é necessário retemperar
energias para enfrentar a segunda parede. Ora, este posto foi estrategicamente
definido para permitir aos atletas recuperarem do que tinham efetuado e para
"ganharem" força para chegar a Loriga. Citando as palavras do Paulo Garcia "se fosse
eu...hidratava-me e alimentava-me bem e depois trocava de roupa e de sapatilhas
sem pressa, a fim de, retemperar forças para a monumental subida do Km Vertical";
Subir de Unhais a Alvôco no pino do dia fez com que muitos atletas desidratassem
e perdessem uma quantidade assustadora de sais. Por este motivo, muitos optaram
por fazerem a mudança de roupa neste posto;
Em Alvôco, o abastecimento e o posto de mudança de roupa encontravam-se em
locais distintos. O posto de mudança de roupa situava-se numa escola, a 500 metros
do abastecimento. Dispunha de duches quentes e diversas salas para que o atleta
pudesse ter privacidade e ainda, cochilar, caso assim entendesse;
Segundo cálculos matemáticos efetuados pelos engenheiros e organização da
prova, a maioria dos atletas chegaria a Alvôco da Serra com metade do tempo limite
de prova definido. Justificando-se assim a inclusão deste posto.