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Page 1: O natal nas ruas

José Vinícius

ESTAGIÁRIO

Você já pensou emcomo seria passar oNatal sozinho? Ima-gine que, somenteeste ano, você nãoteve os seus ami-gos ao seu lado,que somente destavez você não partici-pou daquela mesafarta, a ceia que juntatoda a família. Imagineque você passou a noitedo dia 24 para o dia 25 dedezembro debaixo de umamarquise, de uma ponte, queterá de dormir em uma calçada.Pode não ser a sua realidade, e você podenunca ter pensado nisto, mas para 42 pessoasque vivem em situação de rua, de acordo coma Secretaria de Assistência Social da Prefeiturade Ipatinga, isto é real em quase todo natal.Vera Lúcia dos Santos viveu esta angústia nonatal do ano passado. Ela tem 43 anos e não selembra ao certo, mas acredita que já vive narua há três anos. A história dela começa emDores de Guanhães, onde nasceu. Depois foimorar em Itabira, onde perdeu sua mãe.Casou-se, teve quatro filhos, mas dois delesmorreram. Os outros dois vivem em Ipatinga.A filha com 25 anos e o filho com 23, mas elanão mora com eles. "Eu morava com o meufilho, a minha filha mora com ele também.Mas meu santo não bate com o da minha nora,aí a gente brigava muito. Então eu decidi sairde casa", contou Vera Lúcia.Desde então, para evitar os transtornos no larde seu filho, Vera Lúcia vive no centro de Ipa-tinga. Já fez muita coisa para sobreviver, alémdos problemas com o álcool. Ela conta com aajuda de pessoas e instituições voltadas para otrato com cidadãos em situação de rua. "Eusobrevivo pedindo comida aqui no centro, equando dá, quando consigo dinheiro pedindo,eu almoço no restaurante Popular. A genteantes tomava banho e lavava roupa em umatorneira ali na praça 1º de Maio. Hoje temos oprojeto Videiras, que nos dá almoço e ondepodemos tomar banho também", contou. Durante este tempo, Vera conviveu com ainsegurança. A vida na rua já é perigosa,ainda mais sendo mulher e sozinha. Um diaVera Lúcia conheceu Itamar Teodoro. Ele,um jovem de 22 anos, vivia pelas praças docentro de Ipatinga há mais tempo que ela. "Eusempre o via bebendo. Eu fazia programa parasobreviver, e ele sempre bebendo com oscaras. Aí teve um dia que estávamos na praçaCaratinga, e eu 'cheguei nele'. Perguntei ondeele dormia, e perguntei se podia dormir pertodele, assim ele me ajudaria a carregar a minhamochila". Vera diz que a partir daí, começa-ram a se ajudar, a sobreviver juntos e a dormi-rem no mesmo lugar. Desde então, namoram.

BRIGAS COM O IRMÃOItamar foi morar na rua após brigar com seuirmão. Ele nasceu em Belo Horizonte, masmorou lá pouco tempo. Sua mãe teve dezfilhos, mas ele não chegou a conhecer direitoo seu pai. Depois de um trágico acidente cau-sado por problemas com excesso de álcool, amãe de Itamar deixou o pai dele em BH e veiopara o interior de Minas. "Lembro só do meupai ter chegado em casa bêbado. Não sei o queele fez, mas caiu por cima do meu irmãozinhode três meses. O bebê morreu na hora, minhamãe ficou desesperada. Ai um amigo da famí-lia buscou a mim, a minha mãe e meus oitoirmãos. Trouxe a gente para trabalhar em umafazenda em Imbé de Minas", diz Itamar.Depois eles foram morar em São Sebastião doAnta, sua mãe se casou novamente, teve maistrês filhos, e estavam vivendo até bem, traba-lhando na fazenda. Até que sua mãe, desgosto-

sa com avida, resol-veu se matar."Em 2004minha mãetomou venenode rato, chumbi-nho. Se matou pordesgosto" afirmaItamar.Um brigoucom oirmão, aoutracom anora.Deacordocom aSecreta-ria deAssistênciaSocial da Pre-feitura, 45% daspessoas que passam a morar na rua é porcausa de brigas com familiares.Alguns acabam por encontrar na rua umafamília, como é o caso de Vera e Itamar. Jun-tos, eles tentam sobreviver no centro da cida-de. Segundo Itamar, dentre os vários proble-mas, o que mais pesa é o medo na hora dedormir. "A gente dorme perto da rodoviáriaporque tem mais gente, e tem polícia lá sem-pre. Sempre falo que a minha vida é um contode fadas, por eu não tenho nenhuma certezado dia de amanhã. A gente não sabe se vaiconseguir acordar, se alguém vai colocar fogona gente, jogar uma pedra na minha cabeça,ou fazer alguma outra covardia", afirma.Itamar e Vera já trabalharam, há uns meses, eaté tinham um barracão para morar. SegundoItamar, eles trabalhavam catando papel na rua."Eu trabalhei com reciclagem, e eu gostava, agente até alugou um barraco pra morar. Só queeu bebia demais, gastei o dinheiro, chegava gri-tando, incomodando os outros, caçando confu-são. Aí tomaram o barraco da gente", confessou.

O ÚLTIMO NATALNo natal do passado, eles já moravam na rua,e também namoravam, mas não passaram onatal juntos. Segundo Vera, eles brigaram,mas não contaram o motivo. Cada um serecorda bem de onde estava, de como foi anoite do dia 24 de dezembro de 2008. ParaItamar, a situação vivida na noite de natal

pode até ser considerada engraçada, mas paraVera, o natal passado pode ser descrito comuma só palavra: Solidão. Itamar estava participando do Natal com o pes-soal do projeto Cordeiro de Deus, que cuida depessoas carentes. O projeto fica na praça Caratin-ga, no Contingente. No natal do ano passado,eles proporcionaram banho, roupa nova e alimen-tos para alguns moradores de rua. Só que a noitede Itamar não saiu como planejada. Tudo pareciaque iria correr bem, até que ele sentiu uma fortedor nos rins. "O pessoal do Cordeiro de Deuslevou a gente para a rodoviária, deu banho nagente, deu roupa, presentes, tava sendo tudomuito bom. Só que eu senti uma dor tão forte nosrins que eu quase desmaiei. Passei a noite de nataltomando injeção no Hospital Municipal. Perdi aceia. Fiquei lá de um dia para o outro, passei umdia inteiro tomando remédio para a dor", conta.Já o natal de Vera Lúcia foi mais angustiante.Ela não quis passar com os filhos por causa danora, e não tinha outra opção. Acabou sozinhana rua. Viu a movimentação do comércio nocentro nas vésperas, as pessoas comprando,preparando a ceia, e viu pessoas comemoran-do o natal com suas famílias. Porém, ela pas-sou a noite inteira sozinha, deitada perto daprefeitura, escondida dos outros. "Eu me senti

angustiada, com uma tristeza tremenda, nãoqueria passar o natal sozinha, mas eu não tinhapara onde ir", diz Vera.

NATAL DE 2009Sobre este ano, os dois têm planos de passar oNatal juntos. "A gente deve ir para a casa dairmã do Itamar, ela convidou a gente para pas-sar o natal com eles", comenta Vera, que tam-bém não descarta a possibilidade de passagem onatal na rua com o pessoal do projeto Videiras.Mas a principal mudança do natal de 2008 parao de 2009 é a mudança de postura dos dois. Ita-mar e Vera estão tentando parar de beber. Osonho do casal para o próximo ano, que podeser chamado também de "sonho de natal", é teruma casa para morar. "A gente queria ter umlar sabe, para enfeitar, ter as nossas coisas. Nãoquero continuar morando na rua", afirma Vera.Itamar sonha também com a aquisição de umcarrinho, deste de catadores de papel, parapoder trabalhar, e assim, recuperar a sua digni-dade. "Eu já trabalhei com reciclagem, e aVera também, junto comigo. Eu quero ter omeu carrinho de catar papelão, para poderlevantar cedo e ir trabalhar. Eu quero trabalhar,ter o meu dinheiro, conseguir o meu sustentocom o meu trabalho", finalizou Itamar.

1-AC U L T U R A & V A R I E D A D E S

VITR INEVA L E D O A Ç O S E X T A - F E I R A , 2 5 / D E Z E M B R O / 2 0 0 9 E - m a i l : vviittrriinnee@@jjoorrnnaallvvaalleeddooaaccoo..ccoomm..bbrr Te l e f o n e : ( 3 1 ) 2 1 0 9 . 3 5 5 0

1-A

OOss ssoonnhhooss ee aass hhiissttóórriiaass ddeedduuaass ppeessssooaass eemm ssiittuuaaççããoo

ddee rruuaa eemm IIppaattiinnggaa.. AAss ttrriisstteess lleemmbbrraannççaass ddoo nnaattaallppaassssaaddoo ee aa eessppeerraannççaa ppoorr

ddiiaass mmeellhhoorreess

VIVENDO HÁ três anos na rua, Vera e Itamar serecordam das situações difíceis pelas quais já passaram

O NATAL DAS

RUAS...O NATAL DAS

RUAS...

FOTOS: JOSÉ VINÍCIUS

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