Nmero XXI Volume I julho de 2018
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O DEUS CRISTO DE HEGEL; A ESTRUTURA DAS PRELEES SOBRE FILOSOFIA DA RELIGIO E A
REAO A ELAS
Humberto Schubert Coelho1
Se diz, assim, que Deus um ser vivo, eterno, sumamente bom, de maneira que a vida e a durao contnuas e eternas pertencem a Deus; pois isto Deus. Aristteles, Metafisica. (XII, 7, 1072b 29-31).
RESUMO: No h dvidas de que o conceito hegeliano de Deus peculiar e nico, justificando interpretaes contraditrias a respeito da relao do filsofo com o cristianismo. Para melhor compreend-lo, preciso situar o papel do conceito de Deus em relao aos conceitos de religio e ao conceito de cristianismo, que juntos formam o quadro metafsico e historicista de imanncia e revelao do Esprito. A negao da ideia de imortalidade da conscincia individual, contudo, fez com que a defesa hegeliana de conceitos fortes de Deus e de cristianismo no fosse vista como suficiente para isent-lo de acusaes de atesmo e pantesmo. Ao final deste trabalho, portanto, apresentaremos uma dessas crticas a respeito da recepo do pensamento hegeliano pela filosofia e teologia crists. Palavras-chave: Deus, Esprito, Cristianismo, Pantesmo, Imortalidade. Abstract: There is no doubt that the Hegelian concept of God is a unique one, justifying contradictory interpretations about the philosophers relation to Christianity. In order to understand it, one must situate the role of this concept of God in relation with the concepts of religion and Christianity, which together form the metaphysical and historicist structure of immanence and revelation of Spirit. The rejection of the idea of immortality of individual consciousness, however, made him target of charges of atheism and pantheism, despite the fierce Hegelian defense of God and Christianity. Therefore, in the end of this paper I will present one of these criticisms on the reception of Hegelian thought by Christian philosophy and theology. Keywords: God, Spirit, Christianity, Pantheism, Immortality.
11 Professor do programa de ps-graduao em filosofia, departamento de filosofia, UFJF.
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O lugar conceitual de Deus:
Neste trabalho tomei a deciso de deliberadamente afastar parte da obscuridade
da terminologia hegeliana e apresentar com a mxima clareza a ideia de Deus contida nas
Prelees sobre Filosofia da Religio (PFR). O problema de Deus, que se patenteia como
basilar no sistema hegeliano, encontra nas PFR um alto grau de transparncia, permitindo
traduzir em linguagem filosfica a essncia do conjunto simblico da doutrina crist, o
que, ao mesmo tempo, atesta sua excelncia e a capacidade superior da filosofia em
subsumir a seu modo todos os demais elementos do pensamento.
At os dias de hoje, as razes para a defesa filosfica da crena em Deus se
relacionam fundamentalmente com dois problemas: no possvel justificar a relao,
muito menos a causao de propriedades mentais a partir de propriedades materiais, e no
possvel justificar a epistemologia a partir de um ponto de partida externo mente
humana e ao ato de filosofar (PLANTINGA; TOOLEY, 2014).2
O papel da mente e dos atributos aparentemente mentais da realidade concorre
para a concluso j insinuada na filosofia clssica grega de que a realidade ltima deve
ter natureza mental.3 Mas, como j sabido desde o nascimento da filosofia, a busca por
2 Esses argumentos so expostos por Alvin Plantinga segundo uma formatao consentnea com discusses presentes, mas podemos converter a segunda proposio no antigo problema gerado pelo determinismo, que o de no podermos saber se nossas crenas sobre o mundo possuem alguma validade judicativa ou so inteiramente condicionadas, escapando de nosso controle, caso em que no faria mais sentido dizer que estamos engajados em uma investigao verdadeira, ou que nossas divergncias sobre ela possam ter relao com argumentos. Embora ambas as proposies sejam objetveis, nenhuma delas foi invalidada at o momento. A primeira no foi invalidada porque no apenas conceitualmente invivel explicar propriedades mentais usando exclusivamente as propriedades fsico-qumicas e as medies estatsticas usuais na descrio do mundo fsico, mas tambm porque as tentativas correntes e muito sofisticadas de explicao de funes mentais bsicas a partir das neurocincias contm sempre gaps constrangedores. A segunda, talvez mais bem contra-atacada atualmente, resta de p porque mais fcil justificar a correspondncia entre nossas mentes e a realidade fsica se ambas forem propositalmente feitas para essa correspondncia, j que, pela assumida disparidade mente-corpo anterior, necessrio (e difcil) justific-la. Podemos, ento, optar por um realismo garantido por Deus ou um transcendentalismo garantido por Deus, no conseguindo de outro modo justificar nossas crenas sobre o mundo a partir da ideia de que o mundo que determina essas crenas. Por fim, Plantinga tambm levanta um terceiro argumento com respeito noo de funo apropriada. Segundo o naturalismo, jamais poderamos julgar como apropriada/inapropriada qualquer funo. Viver ou morrer, funcionar ou no, seriam juzos da folk psychology estreitamente ligados ao desgnio, no aplicveis ao mundo natural, pois, para este, o que acontece o que deve acontecer, sendo irracional atribuir valorao funcional a qualquer processo (PLANTINGA; TOOLEY, 2014, p. 32). Embora esse terceiro argumento tambm tenha muito a ver com o desenvolvimento do conceito de Deus no idealismo, ele passa mais ao largo do recorte aqui apresentado. 3 claro, o voluntarista se agita pela reflexo de que condicionar Deus lgica ou moralidade significa limit-lo a algo externo a ele, furtando-lhe, assim, a absoluta onipotncia. A nica resposta a esta objeo
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um fundamento absoluto qualificvel como arkh definitiva exige necessariamente que
sua soluo seja incondicionada, livre de pressupostos (). Assim, a histria
da filosofia a histria do descobrimento do pensamento sobre o absoluto, o qual seu
objeto. por isso que se pode dizer que Scrates, por exemplo, descobriu a definio4 de
propsito, elemento que seria elaborado e mais bem conhecido por Plato e,
especialmente, Aristteles. (HEGEL, 1970, VIII, 22). Destarte, Hegel concebe o papel
da filosofia como intimamente ligado a uma viso cientfica de Deus.5
Hegel no tem problemas em admitir, por exemplo, a aleatoriedade no mundo,
desde que essa aleatoriedade no significa ausncia de contingncia e sentido intrnsecos,
mas to somente uma dificuldade em acomodar certos fatos empricos ao esquema de
mundo que uma pessoa ou comunidade montam para si. Se um acidente natural atinge
uma cidade, no se deve cogitar de haver um plano de Deus imbudo de motivao moral
e existencial exata para cada vtima e cada sobrevivente, mas, ao invs disso, a populao
deve antes aceitar racionalmente que acidentes fazem parte da vida e da ordem natural,
direcionando seu esforo moral para a reconstruo da cidade, que a parte que lhe cabe.
Nas palavras de Henrich, belo e admirvel tentar enquadrar cada mnima ao particular
em uma ordem e propsito, mas essa tentativa no encontra sentido alm de nossa
concepo finita do que deveria ser o plano, de modo que mais saudvel investirmos
nosso potencial intelectivo na compreenso da naturalidade dos acidentes e na reao a
a de que verdades lgicas, lei moral, e talvez todas as eide e as leis que regem o ser no so antecedente a Deus, mas so elas mesmas Deus. Isso parece, no entanto, transformar Deus em um conjunto de verdades absolutas. No possvel enxergar como ele possa ser ainda algo como uma pessoa. Como vimos antes, na tradio platnica o ser verdadeiro era concebido segundo um padro de ideias. [...] Eu concedi que Plato fosse incapaz de capturar as formas especficas do ser de infinita subjetividade, e no deveria ser surpresa que ele tinha dificuldade em atribuir uma subjetividade de amplo espectro a Deus, mesmo que ele tenha se dedicado questo no Sofista. Mas qualquer um que reconhea que a mentalidade uma forma irredutvel do ser, e que ela axiologicamente superior ao ser no-mental, no pode evitar interpretar Deus como mente. (HSLE, 2013, 9) 4 Aqui, Bestimmung poderia ter traduo mais literal como determinao, mas a sentena soaria menos clara em portugus. 5 Sobre isso, Peter Hodgson observa em Hegel and Christian Theology: Quando se remove os parnteses da Fenomenologia, fica claro, diz OReagan, que o sujeito ultimo do devir no o ser humano individual ou a sociedade, mas sim Deus, o transcendental significado ou, nos termos de Hegel, nem esprito subjetivo nem esprito subjetivo, e sim esprito absoluto. (HODGSON, 2005, 17)
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eles, pois tais ocorrncias so inessenciais vida do homem, enquanto suas obras
espirituais no (HENRICH, 1967, 173).
Admitindo as ideias de propsito, liberdade e razo como imanentes e
generalizadas, Hegel no chega, contudo, a humanizar o mundo a ponto de ignorar o papel
da contingncia, do determinismo e do acidente, e a conjuno desses princpios em
uma forma orgnica e complexa de acomodao de suas distintas vigncias que torna to
inamistoso o seu pensamento.
Para compreender a ideia de Deus, portanto, temos de retornar s muitas
referncias conceituais espalhadas pela obra hegeliana em suas diferentes tentativas
sistematizadoras, trazendo conscincia a relevncia do conceito, da ideia, da razo, da
unidade, da vida, do absoluto, para citar alguns elementos imprescindveis ao processo
total vislumbrado e construdo pelo autor. Em termos, o que Hegel quer significar com
seu uso peculiar das palavras Deus e Absoluto que devemos nos perguntar em que
sentido podemos seriamente dizer que em Deus somos, nos movemos e temos nosso
ser; ou que Deus tudo, est aqui (HEGEL, 1970, VIII, 13); ou que o pensamento se
descobre como pensamento do pensamento na figura de Deus. A necessidade de comear
pelo inverdico (ser), para chegar verdade (Deus), patente na forma do
desenvolvimento do esprito absoluto. Esse processo s por ns conhecido, se
reconhecemos o mundo criado, a natureza e o esprito finito como inverdicos em
comparao com Deus (HEGEL, 1970, VIII, 83). Logo, o jogo entre ser, essncia e
absoluto mais complexo do que o monismo hegeliano costuma soar nas exposies
reducionistas de seus adversrios. A essncia s se reifica como idntica a si mesmo
porque se v refletida em um outro. Por isso, ao contrrio do ser, a essncia determinada
em contraposio (pela diferena) (HEGEL, 1970, VIII, 142). Substancialidade a
propriedade de subsistir em si mesmo, o que em parte uma iluso, visto que todo
particular em funo de um geral, mas tem validade na medida em que se pode
perseverar no seu ser prprio dentro do movimento da totalidade. Essa subsistncia,
contudo, tem de ser autorreferencial em face do diferente. Da reciprocidade entre duas
substncias decorre a causalidade, que mutua efetividade. Ora, a propriedade de ser
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necessariamente que pode ser vislumbrada como causalidade desdobrada da
autossubsistncia das substncias, e ento, da liberdade.
Esta forma extica de soluo da adequatio rei intelectus traz traos distintivos
do neoplatonismo.6 Por isso toda substncia extrai sua fora do conceito, que a pura
autodeterminao livre (HEGEL, 1970, VIII). Na raiz, como no manifestar de cada
indivduo, est o esprito, no enquanto abstrao ou pura intelectualidade, como ele foi
concebido na Grcia, e sim como esprito vivo e criador, fomentando a especificao de
cada particular no quadro da totalidade (HEGEL, 1970, X, 384).
As Prelees sobre Filosofia da Religio colocam nfase sobre a organicidade
entre ser e saber, Porque a determinao do puro pensar pertence ao determinar da
essncia... (HEGEL, 1970, XVII, 17), tendo em vista que o que dito de Deus dito
sobre a essncia do ser e no sobre conceitos abstratos. J para os neopitagricos e os
neoplatnicos, os quais ainda permaneciam no mundo pago, os deuses do povo no eram
deuses de fantasia, tendo se tornado deuses do pensamento. (HEGEL, 1970, XVI, 40)
Contudo, a filosofia trata o supremo como absoluto e como ideia, a religio trata-o no
apenas como pensado, mas como manifesto. Por isso, a filosofia da religio tem de
assumir que a religio enxerga Deus como manifesto, enxerga o ser de Deus, sem que,
por outro lado, a ela possa ser entendida como superior filosofia, j que esta leva total
conscincia o que aquela to somente representa (EBERT, 1996, 95-96).
Hoje ponto comum que o sistema de Hegel implica em panentesmo.7 A ideia
que ele fazia do pantesmo no admitia um reducionismo das coisas a Deus, ou, como
comumente se diz, uma pantesmo em que o indivduo fosse reduzido a nada, absorvido
no Esprito de forma desumanizante, e isso por duas razes: porque Deus no
simplesmente tudo o que existe, mas aquilo que, em tudo o que existe, faz com que as
6 Lembrando, primeiramente, que o neoplatonismo inclui uma sria absoro da contribuio de Aristteles definio estrutural do ser. Conforme Jens Halfwassen, pensadores como Eusbio de Cesaria, Plotino, Proclo, Jmblico e Flon de Alexandria tm grande importncia nesse comenos, transmitindo a Hegel a convico de que os seres pensantes, finitos ou infinito, possuem em si unidade e inteireza por fora mesmo de sua natureza pensante, enquanto pessoas, e isso torna pensvel a comunho ntima entre dois seres pensantes, e de todos com aquele que infinito. (HALFWASSEN, 2005, 71-82) 7 A ttulo de exemplo: (HODGSON, 2005, 106), (COOPER, 2006, 91; 107-109)
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coisas sejam o que so,8 e porque ele fez da substncia sujeito, no havendo mais sentido
em ver na totalidade espiritual uma desumanizao semelhante que se pode ver em um
pantesmo ou um monismo onde a totalidade no se identifique com o humano ou tome
por ilusria uma parte essencial do humano. O Deus de Hegel no o todo alheio, mas
o todo dos todos, o universal que englobe toda a alteridade e toda a diferena.
(HODGSON, 2005, 264)
Similarmente ao que se observa desde a Fenomenologia do Esprito, a totalidade
hegeliana a unidade imanente dos particulares. A natureza engloba tanto a vida quanto
a morte, e no a vida apesar da morte, mas uma e outra intensificando-se mutuamente em
mesmo grau. O viver marcado pela morte, ao passo que os seres inanimados
desconhecem a morte, so imortais, mas tambm no vivos. Assim, a morte no aparece
na natureza como maldio, e sim como determinante da vida. A natureza tanto d quanto
tira a vida, e o seu aspecto trgico visto com serenidade pelo filsofo, pois ele no espera
a superao do diferente, do negativo, do finito e, portanto, da morte. Parte do ataque a
Schelling tem sua razo de ser na impresso de Hegel de que a filosofia da identidade
daquele no considerava com suficiente gravidade a fora da negatividade (HENRICH,
2003). O Esprito infinito justamente em seu finitizar (HEGEL, 1970, X, 386), na
forma como a multido dos particulares esto intimamente tramados numa tessitura
comum. Por isso, o tom schellinguiano de uma hipostasiao do particular e da diferena
a partir de uma identidade s ela verdadeira soa como fracasso do projeto sistemtico aos
olhos de Hegel. Os resultados desse distanciamento da filosofia de Schelling deixam
entender, para alguns, que o papel de Deus na filosofia de Hegel seria menor, quando, de
fato, todo o projeto hegeliano parece querer elevar a funo de Deus de substncia
concreta, oposta viso que ele entendia como abstrata, de Schelling.
Conceito hegeliano de religio:
8 Com isso, Hegel se afasta do que entende por cristianismo ortodoxo, o qual teria permanecido preservado da crtica de Kant, e abraa uma reestruturao agressiva dos conceitos de Deus, sua relao com o mundo e com o homem (MEIST, 1997, 64-66), mas, ao mesmo tempo, no permite que essa guinada o converta em uma espcie de contestador das verdades seminais contidas no cristianismo.
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A reconstruo da prova ontolgica moderna remonta a Descartes, passando por
Leibniz, at Baumgarten e Bering, terminando no argumento deste ltimo de que 99
tleres reais valem mais do que 100 tleres fictcios, de modo que a concepo de 99
tleres reais incomparavelmente mais valiosa que a de 100 tleres imaginrios
(HENRICH, 1960). Do ponto de vista do velho argumento do grau de realidade, os tleres
reais seriam apenas um pouco mais reais do que os possveis. Mas ao retirarmos um tler
ficamos com um grupo de 100 possveis, de um lado, e 99 reais, de outro, sendo que a
sua realidade lhe d uma pequena vantagem, e a diminuio de um tler retiraria esta
vantagem. Na conscincia de nenhuma pessoa real, contudo, os 100 tleres possveis tero
um valor comparvel ao dos 99 reais (ou 50, 10, um nico tler real), pois a diferena de
realidade entre os tleres possveis e os reais no progressiva ou gradual, mas binria:
existente ou no existente (HENRICH, 1960, 120).
Na crtica de Kant ao argumento ontolgico, contudo, observa-se que no h como
distinguir absolutamente nenhuma diferena de valor entre cem tleres reais e cem tleres
pensados. Isto porque existir ou ser no constitui ato predicativo (HENRICH, 1960, 139)
Adicionalmente, Kant mostra a irreligiosidade dessa tentativa de salvaguardar a
existncia de Deus, j que a prova no eleva, e sim reduz Deus categoria dos existentes,
do mundo. Kant quer ressaltar, sobretudo, que a noo de existente, validada pela
experincia, no cabe a Deus, que puro esprito, e deve ser contemplado pela razo
como ideia.
Hegel considerava os argumentos de Kant uma falha fatal na compreenso da
essncia da religio, uma vez que Kant entendia por religio um conjunto de afirmaes
metafsicas desvinculadas da experincia e, por isso, com mero valor hipottico-
regulativo na orientao da vida moral. Para Hegel, a incapacidade de Kant em perceber
o contedo da religio levou este a uma admisso senso-comum de sua invalidade
objetiva. Hegel, ao contrrio, afirmava que a religio no apenas concreta, envolvendo
todo um leque de experincias da conscincia em relao a Deus, mas a prpria relao
entre Deus e o homem seria totalmente vazia se Deus fosse apenas uma ideia humana,
uma expresso subjetiva (WILLIAMS, 2017, 56-58). Ao invs disso, a fenomenologia da
vida religiosa testifica que o relacionamento do homem com Deus sempre foi um
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relacionamento de mo dupla, onde o homem se sente muitas vezes receptor passivo de
uma manifestao do divino, ao invs de apenas produtor de ideias e intenes religiosas.
Em outras palavras, a estrutura lgica da conscincia no permite que a
subjetividade finita produza uma subjetividade infinita, resultando em que a religio seja
por si s um fato, e um fato imprescindvel na dinmica do esprito, pois atesta de modo
radical a incluso da subjetividade finita na economia de uma subjetividade infinita, ou
seja, que tudo est em Deus.
Trata-se, certamente, de um fato sobre a constituio do esprito, da
impossibilidade de elevao do esprito fragmentado completa reconstituio orgnica
do Todo. Uma vez que a subjetividade evoca em sua constituio, por sua prpria
definio, a finitude e a particularizao na qualidade de uma perspectiva de primeira
pessoa e tambm por seu lastreamento emprico, o horizonte de sentido do ser, infinito,
adquire um carter transcendente, necessariamente e por razo dessa mesma constituio
(DIERKEN, 2005). Ora, a busca da razo por um sentido geral do mundo acaba por se
identificar como reencontro do saber universal que permite ao saber finito a pergunta
sobre sua origem gentica. Ser racional, assim, conter em si implicitamente a
inteligncia absoluta.
Com isso, a potncia da razo em elevar-se ao Todo ela mesma o fato religioso,
de modo que o fato religioso visto na religio, mas produzido pela razo mesma. E
isso o leva a afirmar: Mas, de fato, no existe ser humano to corrompido, to perdido e
to mau, e no devemos nem mesmo considerar algum to desgraado a ponto de nele
no haver absolutamente nada da religio (HEGEL, 1970, XVI, 15).
Hegel no discorda de Kant quanto a haver uma substancial diferena entre
conceito e realidade, mas ele observa que Kant nivela o conceito de Deus como outro
qualquer, ao passo que, para ele, o conceito de Deus de outra natureza modal, pois o
conceito do absoluto, no de um ente representado. Portanto, o conceito de Deus o nico
que tem de envolver necessariamente sua veracidade (WILLIAMS, 2017, 117). De certa
forma, como se o conceito de Deus no pudesse ser submetido s regras que regem
pensamentos contingentes, pois ele o pensamento de que o pensamento encontra
justificao no ser, tendo mais a ver com o problema platnico da pensabilidade do real.
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A filosofia e a religio tm, pois, em comum o contedo, que a verdade do
esprito. A religio como que uma descoberta do esprito acerca de sua origem, uma
descoberta que tambm fala sobre esta origem, o Absoluto. Sendo tomada de conscincia
acerca de si mesmo, a religio racional, e no pode deixar de s-lo em seu feitio mais
puro, mas certamente no racional por ser calculada, derivada de certos princpios a
priori, seno por ser ela mesma uma razo reveladora da verdade. Nas palavras de Hegel:
A religio um produto do esprito de Deus, no uma inveno do homem, mas obra da
ao e anunciao divina nele. A expresso de que Deus rege o mundo como sua razo
no teria sentido se no assumssemos que ele tambm se relaciona com a religio, e que
o esprito divino atua sobre a sua forma e definio (HEGEL, 1970, XVI, 40).
Por esta natureza, a religio conserva os princpios mais elevados da humanidade,
operando na desprestidigitao que o esprito exerce sobre a iluso do mundo, quando
desta consciente. A filosofia apoia-se sobre as mesmas bases, na medida em que seu
fundamento o Lgos universal em si e para si. Seguindo o trabalho dos espinosanos
alemes, Hegel solapa a distncia transcendental entre sujeito e natureza e recupera o
sentido do Lgos, a razo universal da qual o homem herdeiro direto. Por conseguinte,
ver na religio apenas uma superstio, ou segui-la fanaticamente como ordenamento
heternomo patenteiam ambos o desconhecimento de si. s porque o esprito est
alienado, no est de posse de si mesmo na realizao de sua prpria vocao, que ele
pode crer numa religio sem o distanciamento do mundo, ou crer num mundo sem a
conciliao da religio. Por isso, a religio no deve permanecer desacompanhada de sua
conscincia fiscalizadora, a filosofia. O objeto da religio, como da filosofia, a eterna verdade em sua objetividade; Deus, e nada alm de Deus e da explicao de Deus. A filosofia no sabedoria
mundana, e sim conhecimento do no mundano, no o conhecimento da massa
exterior, do ser emprico e da vida, mas o conhecimento daquilo que eterno, do
que Deus e do que flui de Sua natureza. Essa natureza tem de se revelar e se
desenvolver. A filosofia, ento, s se explicita quando explicita junto consigo a
religio, e ao explicitar-se explicita, de todo modo, a religio (HEGEL, 1970,
XVI, 28).
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No entanto, no se deve inferir, por isso, que a viso de Hegel sobre a religio
fosse to ortodoxa quanto algumas passagens possam sugerir ao leitor incauto. O conjunto
da obra evidencia muito claramente uma viso secularizada em bastante conformidade
com a tradio de crtica teolgica de Espinosa, Lessing e Kant, sendo seguramente mais
radical que os dois ltimos. Como observou Karl Barth, h boas razes para um pensador
to grande e que tratou a religio to ostensivamente no tenha se tornado um smbolo,
uma espcie de Toms de Aquino luterano (DE NYS, 2009, 1).
Na Enciclopdia das Cincias Filosficas, por exemplo, ele compara os
entusiastas do vidente de Prevost com incautos que do curso obra do diabo e renegam
a sobriedade da moral de Cristo (HEGEL, 1970, XVII, 34), e todo o texto das PFR
apresenta duras crticas s noes de milagres e supernaturalismos, incluindo-se entre os
elementos criticados a imortalidade da alma e a ressurreio.
Assim, o tom apologtico em favor da religio precisa ser compreendido como
tambm uma defesa da concepo hegeliana de religio, a qual, com razo, quase
indissocivel da filosofia. A preferncia de Hegel por autores cristos controversos, como
Eckhart e Bhme (KOLB, 1992), sugere que ele realmente no se enquadra em definies
tradicionais. No obstante, esses mesmos autores muito comumente sejam apontados
como cristos exemplares, apesar de doutrinariamente controversos, o que tambm sugere
que Hegel no tende para uma forma extremamente heterodoxa de cristianismo.
Religio aquela regio de nossa conscincia onde todos os enigmas so
resolvidos, todas as contradies dos mais profundos pensamentos so
devassadas, todas as dores do sentimento so silenciadas, a regio da eterna
verdade, da eterna serenidade, da eterna paz. Atravs dela o ser humano se faz
humano, ela o pensamento em absoluto, o pensamento concreto... Tudo aquilo
que possui valor e merece o respeito dos homens, aquilo em que buscam sua
felicidade, sua glria e seu orgulho, encontra seu centro de equilbrio na religio,
no pensamento, na conscincia e no sentimento de Deus. Deus , assim, o
princpio e o fim de tudo; da mesma forma como tudo provm deste ponto, tudo
retorna a ele; e por isso que ele o meio que a tudo vivifica, apraz, e espiritualiza
todas as formas, sustentando-as em sua existncia. Na religio, o homem coloca-
se em relao com esse meio no qual todas as suas demais relaes se arranjam,
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e, com isso, ele se eleva ao mais alto grau de conscincia e regio em que, livre
de relaes com o alheio, encontra o puro contentamento, o incondicionado, a
liberdade e o propsito final para si mesmo. (HEGEL, 1970, XVI, 11)
Como resultado, temos um conceito de religio que a purifica do aspecto idlatra
da figura de Jesus e das supersties e traos mitolgicos que a acompanham desde os
sculos quarto e quinto aproximadamente.
Para Hegel, a tarefa de evitar os elementos escatolgicos da imortalidade e da
ressurreio factual de Jesus, a qual no tem outro papel que o de comprovar a
imortalidade, e a consequncia metafsica de um aumento incomensurvel da
individualidade estendida a um plano ontolgico marcado pela eternidade, passava por
uma forte valorizao dos monismos msticos cristos, ao estilo de Eckhart e Angelus
Silesius (OREAGAN, 1992, 118). Eles seriam sua ponte para a conciliao entre o
espinozismo que lhe enchia os olhos do esprito rigorosamente totalizante e o cristianismo
que ele no podia negar como anunciao de seu prprio projeto metafsico.
De qualquer maneira, a grande contribuio de Hegel para a filosofia da religio
inclui, no mnimo, uma profunda extrao e destruio tanto dos traos antropocntricos
quanto das verses abstratas do conceito de Deus, liberando-o para a reflexo filosfica
mais direta e mais franca. Foi, portanto, parte culminante do processo de resgate do
conceito de Deus da exclusividade doutrinal ou dogmtica da teologia crist para o campo
da crtica franca. E isso sem recair numa crtica de tal modo obsessiva que eliminasse
inteiramente a dimenso religiosa substancial e legtima que caracteriza o conceito de
Deus, como ele bem reconheceu, como algo natural e universal na experincia humana.
Basicamente nisso em que consiste ser um filho de Deus: conservar sua
individualidade enquanto filho, e herdar o Universo como sendo originado do Absoluto.
Essa herana, enquanto herana do Esprito, o conhecimento adequado do Universo.
Visto por esse ponto de vista, o carter sui generis de Jesus Cristo pode ser racionalmente
compreendido em sua funo verdadeira no processo universal.
Deus, na primeira expresso menos filosfica dos povos primitivos, tem de ser
puramente um sujeito. Como sujeito individual ele identificado como pessoa, mas uma
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pessoa abstrata, dotada de saber, poder, grandeza e virtudes, mas afastado de nosso ser
como um estrangeiro com o qual jamais tivemos contato. Ele nos estranho enquanto
deus. Para que fosse nosso Deus, e o Deus de todos, de tudo, a conscincia teve de superar
o conceito de estranhamento, bem como as noes menos espirituais de imanncia, em
favor da familiaridade. Por isso Jesus nos revela um Deus Pai, em oposio ao monarca,
supremo juiz ou divindade olmpica sem laos diretos com cada ser individual.
Essa preocupao se estende, entre outros elementos, ao conceito de trindade, o
qual Hegel reconhece no apenas desenvolvimento por etapas da manifestao do mundo
como tambm enquanto etapas da apario do esprito conscincia. Para o entendimento
da teoria da religio de Hegel, como qualquer outro elemento de seu pensamento,
fundamental compreender que o termo Geist tem, j na Fenomenologia do Esprito, duas
conotaes complementares. Por um lado, Geist a mente, e expressa todo o patrimnio
de uma subjetividade ativa, mundificada e engajada no jogo intersubjetivo da estrutura
social. Por outro lado, Geist tambm esprito, em um sentido explicitamente cristo e
correspondente ao terceiro momento da estrutura trinitria de Deus. (SCHLSSER,
2015, 110) De acordo com o conceito filosfico Deus esprito, concreto; e se indagarmos
mais de perto o que seria o esprito, ento o conceito fundamental de esprito seria
aquele desenvolvido em toda a doutrina religiosa. Brevemente poderamos dizer
que esprito o seguinte: se manifestar, ser para o esprito. O esprito para o
esprito, e isso no exteriormente e de modo acidental, mas ele s esprito na
medida em que para o esprito; nisso em que consiste o conceito de esprito.
Ou, para express-lo teologicamente, Deus esprito essencialmente na medida
em que ele em sua comunidade. Foi dito que o mundo, o universo sensvel, tinha
de ter expectadores e tinha de ser para o esprito, - assim Deus com muito mais
fora tem de ser para o esprito (HEGEL, 1970, XVI, 52).
Isolado, o elemento em si de Deus equivale a seu estado antes da criao do
universo (HEGEL, 1970, XVII, 218), e, como no pode ter havido percepo ou intuio
de nada outro antes da criao, seu pensamento uma pura intuio imediata de si, pura
atividade pensante. A atividade que se ope a esta total concretude da verdade infinita
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a da abstrao de finitude. Da ciso entre o abstrato finito e o concreto infinito surge a
esperana de uma reconciliao, reconhecida como o amor. O amor a minha
autoconscincia em um outro ((HEGEL, 1970, XVII, 222), pois os diferentes so unidos
sinteticamente no mtuo reconhecimento de que a completude no pode ser individual.
Deus enquanto puro Pai no ainda verdadeiro (HEGEL, 1970, XVII, 223), pelo que cria
o Filho desde toda a eternidade para a comunho com um outro de si. Aqui, enfim, se
entende a completude da ideia hegeliana como conciliadora entre finito e infinito, e como
expresso maior de uma ipseidade lastreada na diferena. Por isso a verdadeira eticidade,
calcada no amor, a desistncia da personalidade e o alargamento na generalidade,
isto , famlia, amizade [...] Ao agir bem em relao ao outro, passo a observ-lo como
idntico comigo. Na amizade, desisto de minha personalidade abstrata e a recupero em
forma concreta, atravs do amor. (HEGEL, 1970, XVII, 233) Tal o atestado de
superioridade do conceito cristo de Deus: ser capaz de subsumir em si processos
concretos e fundamentais do grande processo da conscincia.
Nem testa-dualista nem pantesta-monista crasso, Hegel ressalta, inclusive, a
impossibilidade de estabelecermos valores seguros e permanentes para as definies
capitais de subjetividade, esprito ou Deus. Deus infinito, eu finito, essas so formas
e expresses falsas, ruins, que no so apropriadas ideia e natureza da questo. O finito
no o existente; de igual maneira, o infinito no fixo: essas determinaes so apenas
momentos do processo. (HEGEL, 1970, XVI, 192)
Apesar dos cuidados de Hegel, contudo, seu conceito de Deus foi logo associado
ao pantesmo crasso, a um tipo de monismo que ignora e apaga as individualidades. Hegel
reage nas PFR negando, no que ele fosse um pantesta dessa lavra, mas que houvesse
qualquer religio capaz de defender sinceramente a destruio da individualidade. Quando Brahma diz: Eu sou o brilho, o luzir nos metais, o Ganges entre os rios,
a vida dos viventes, e assim por diante, o particular suspendido com isso.
Brahma no diz: Eu sou o metal, os rios, as coisas particulares de cada tipo
enquanto tais, como existem imediatamente. O brilho no o prprio metal, mas
a generalidade, a substancialidade que perpassa os particulares, no se trata mais
de um [...] Com isso j no se est expressando aquilo que originalmente
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significa pantesmo, se est falando da essncia destas coisas particulares
(HEGEL, 1970, XVI, 98).
Com isso Hegel faz a defesa de Espinosa junto com a de sua prpria viso da
religio, denunciando a perseguio de Jacobi e outros pensadores luteranos ortodoxos
como m compreenso do pantesmo espinosano. Ao contrrio do materialismo por eles
vislumbrado, e conforme Schelling j havia observado nas Cartas sobre o dogmatismo e
o criticismo, Hegel afirma nas PFR que nada mais divino do que uma filosofia que
permeia tudo com a essncia divina, onde o mal e o erro no existem, e tudo digno de
amor e admirao. Esse elogio parecer ser sincero, apesar de ele prprio no nos
apresentar um quadro filosfico to otimista e luminoso, e apesar do fato de que o prprio
pensamento espinosano fosse mais estoico do que otimista.
Prova cabal de que esse reducionismo monista no corresponde ao intento de
Hegel a insero das noes de reconciliao e reconhecimento, j muito complexas
desde a juventude de Hegel e a fase da Fenomenologia do Esprito. E tambm as anlises
que Hegel faz do animismo e das religies asiticas deixam claro que o pantesmo crasso
um estgio intermedirio da conscincia.
Em sua fase primitiva, como religio natural, a ideia de Deus to somente
projeo ampliada da mente humana, uma exteriorizao das caractersticas mais
elevadas que o homem encontra dentro de si mesmo. Ele intui que essas caractersticas
devem ter correspondncia com o Todo, mas no executa a transio na forma profunda
e completa do pensamento, limitando-se a esboar um simulacro (HEGEL, 1970, XVI,
267-276).
A consequncia desta precariedade reflexiva que o homem vive sua
religiosidade em face do externo, buscando a salvao ou a libertao em algo fora dele,
o que Hegel caracteriza como fase mgica da religio. Nela o homem projeta para objetos,
danas, comidas e rituais bastante sensuais a sua demanda pelo espiritual, a qual
certamente no pode ser assim saciada (HEGEL, 1970, XVI, 301). Em um segundo
momento, que seria o momento metafsico, a conscincia humana percebe a
insuficincia da dimenso material e reconhece que a substncia do mundo deve ser
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independente dela, mas, ento, a abstrai como fantasia ou mundo transcendente
inteiramente desvinculado da realidade vivida.
Com isso, se v surgir uma espcie de pantesmo puramente espiritualista, mas de
um espiritualismo abstrato, esttico, com a consequente negao do mundo fsico ora
entendido como iluso. Tal a religio no apenas dos hindus, mas tambm de muitos
antigos, como alguns pr-socrticos e neoplatnicos. Para essa fase abstrata do esprito
Deus o inteiramente espiritual oposto nossa natureza finita e diversa, sendo, portanto,
oposto ao homem. A bem da verdade, o homem e os demais seres so negaes de Deus,
que precisam ser canceladas em favor dele (HEGEL, 1970, XVI, 340-348). Os indianos
inclusive j esboavam a ideia da encarnao de Deus, na figura de Krishna. Entretanto,
Krishna uma encarnao apenas nominal de Deus, pois no se efetiva como sntese
eficiente entre o homem e o esprito, soando-nos apenas como promessa dessa sntese.9
E o que para a religio hindu significa a comunho com Deus ou o absoluto impessoal ,
para ns, uma submerso e esfumaamento da conscincia no altssimo, e quem se
sustenta nessa abstrao e cancelamento do mundo se chama yogue. (HEGEL, 1970,
XVI, 361)
Parte do esforo despendido na ltima verso das PFR objetiva elucidar a
positividade da religio e a superioridade do cristianismo naquilo que essencialmente
constitui o processo da conscincia ligado ao pensamento religioso. Por isso, para
entender o conceito hegeliano de religio, o que tambm significa entender o conceito
hegeliano de Deus, preciso entender o cristianismo.
9 por afirmaes como esta que Hegel considerado como um pensador eurocntrico ou colonialista, mas, ao menos nesse caso, ele se restringe ao fato de que o conceito por ele criticado (da encarnao de Deus em Krishna) realmente no cumpre o que promete. Podemos, com razo, denunciar essas posies como historicamente condicionadas e enviesadas, mas filosoficamente consequente no nos determos nessa explicao extrnseca e levarmos a srio o contedo do argumento a fim de pensarmos at que ponto ele vlido independentemente do fato de Hegel ser cristo, eurocntrico ou o algo alm disso. No nvel conceitual podemos, por exemplo, perguntar se a metafsica hegeliana est certa e se temos realmente de admitir uma organicidade to total e uma divindade to imanente quanto quer Hegel, ou se o platonismo, ou as religies, no poderiam ter acertado mais ao contrapor mais fortemente o esprito matria. Criticas com esse vis, portanto, comeam por confundir o mtodo e/ou viso histrica com a proposta conceitual que Hegel apresenta para a leitura da religio, a qual, como de costume, extremamente prpria e no pode ser facilmente lida segundo as referncias do senso comum (JAESCHKE, 1997).
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Alguns elementos do processo religioso em sua expresso crist:
A riqueza metafrica da religio deixa claro, para Hegel, que a inteno subjacente
ao discurso religioso intensificar a reconciliao metafsico-teolgica atravs de uma
dialtica forte; para ele: uma dialtica do reconhecimento (SCHLSSER, 2015, 125-
126). A crer em Ulrich Schlsser, inmeros elementos doutrinais e rituais podem
facilmente ser acomodados na compreenso hegeliana segundo a dialtica do
reconhecimento. A apresentao de Jesus como identificado com o Pai, e a expanso de
uma possvel identidade entre Deus e o homem em geral nas asseres de tipo vs sois
deuses, vs sois o sal da Terra, e toda a simbologia sacramental da comunho. A favor
dessa perspectiva contam dois argumentos muito fortes: se o homem realmente no
pudesse incluir o infinito numa dialtica do reconhecimento essas metforas religiosas
no haveriam de ter significado algum, e, em segundo lugar, se a dialtica do
reconhecimento no tivesse fundo metafsico mais amplo a interao entre duas pessoas
poderia ser rebaixada como funo secundria e ainda abstrata da autoconscincia, mas
isso definitivamente no parece ser o caso, pois a Fenomenologia do Esprito tem nesse
momento um de seus processos centrais, e as obras posteriores s intensificam sua
importncia e generalidade.
Quanto reconciliao, que nas obras de juventude equaciona a separao atravs
do amor, o ltimo Hegel sustenta tanto quanto no comeo a excelncia da revelao crist
no processo reconciliador e a atestao de que a reconciliao o encontro entre filosofia
e religio propriamente dito. Na religio crist a necessidade dessa conciliao teve de
se evidenciar mais do que nas outras religies (HEGEL, 1970, XVI, 24). As PFR
apresentam uma evoluo lgico-conceitual da religio do animismo primitivo, passando
pelo pantesmo mstico, o legalismo de um Deus monrquico, a beleza pag que
espiritualiza a matria e a eticidade do paganismo tardio, at sua culminncia no conceito
reconciliatrio do amor cristo e da imagem da unidade das diferenas na divindade de
Jesus e na trindade.
No por ser a nossa religio, como pressupem ataques de vis descolonialista,
mas por razes puramente lgicas e processuais, o cristianismo assumido por Hegel
como sendo a expresso mais plena daquilo em que consiste todo o mrito do esforo
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religioso, assim como o seu prprio sistema expressa em estado superior aquilo que a
filosofia deve ser essencialmente, o que no diminui a grandeza de outros autores que
tangenciaram a verdade, pois que ela sempre a mesma.
a religio por excelncia porque apresenta maior nmero de formas e processos
representativos do todo. Sem contrariar a acomodao das ocorrncias acidentais no
mundo citada acima na observao sobre o acaso Hegel leva a srio a preocupao
religiosa em diagnosticar a presena de Deus nos acontecimentos, bem como nas aes
humanas. Aqui tambm ele destaca a espiritualidade e superioridade filosfica do
cristianismo no que tange s observaes de Jesus de que o verdadeiro culto prtico-
existencial, encontrando suas mximas expresses na ao moral, na adorao em esprito
e verdade de Deus, na f e no amor.
O culto cristo parte de um estado de total diviso, tragicamente constatada como
dolorosa, visto como mau desde seu prprio lar, o ser humano em seu ntimo a negativa
de si mesmo, e o esprito, retrado sobre si mesmo, encontra-se apartado do infinito, do
ser absoluto (HEGEL, 1970, XVI, 25). Mas, ao lado da chaga, a conscincia acaba por
encontrar o blsamo da reconciliao, justamente porque o esprito no se sente to
sinceramente apartado do infinito, vislumbrando sua presena tcita na falta, na
incompletude e na carncia que o homem sente to naturalmente. A razo humana, a
conscincia de seu ser, a razo em absoluto, o divino no homem; e o esprito, na medida
em que esprito de Deus, no um esprito para alm das estrelas, para alm do mundo,
pois que Deus presente, onipresente e como um esprito em todos os espritos. Deus
um deus vivente, atuante e operoso (HEGEL, 1970, XVI, 40).
Ao contrrio de uma viso transcendente que faa de Deus um fantasma infinito,
no relacionado com a totalidade do real, o homem deve se integrar ao fluxo do mundo e
fazer-se perfeito, como perfeito o vosso Pai que est nos Cus (HEGEL, 1970, XVI,
43). A religio completa (o cristianismo) completa porque seu culto o mais imanente
no contesto da religio. O carter representativo fica, assim, reduzido ao mnimo, e a
prxis cltica se mostra como algo espiritual (obra de Deus tambm em sentido
subjetivo) (VINCO, 2015, 246).
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Ao final das contas, cabe perguntar se a teologia da razo no varreu da religio
aquilo que de fato seria essencial para sua dinmica especfica, e se o Deus que to bem
se adequa ao projeto hegeliano no fatalmente distinto ou contraposto ao Deus vivido
pelo homo religiosus.
As reaes de pensadores cristos definio hegeliana de cristianismo:
As acusaes de atesmo e pantesmo que pairavam sobre Hegel j desde a
Fenomenologia do Esprito no amainaram com a publicao pstuma das PFR, e embora
ele talvez no desejasse divulgar o livro possvel supor que com as repetidas
apresentaes da filosofia da religio em suas aulas ele pretendia em parte desfazer o mal
estar causado pelas acusaes de atesmo. Apesar de todo o seu esforo e da posio de
destaque do Cristianismo em um sistema histrico da religio, no entanto, muitos
opositores e insatisfeitos insistiam que esta no se tratava de nada mais que outra
exposio de seu atesmo ou pantesmo crasso (JAESCHKE, 2016, 432; 467), gerando
uma situao ambgua, j que outros grupos tambm viriam a consider-lo um pensador
conservador e religioso ortodoxo (JAESCHKE, 2016, 433).
Nisso os problemas geminados da imortalidade da alma e da ressurreio de Cristo
escoram a crtica contra Hegel. Teria ele sido mais consequente com o sistema do que
com a doutrina crist?10 Se a resposta positiva, ao menos se torna muito menos sria a
acusao de eleger de modo parcial e enviesado o cristianismo como modelo inconteste
da dialtica religiosa.
A questo da imortalidade central para a compreenso hegeliana de Deus, pois
o Deus revelado e manifestado no pode se re-revelar numa outra vida no alm. Ele j
est revelado, e propriamente, como o infinito, geral e concreto que se expressa na
diferena e no contraste entre finitos.
10 Essa exatamente a alegao de Imannuel Hermann Fichte e Christian Weisse, os quais publicaram textos imediatamente aps a morte de Hegel quase como uma declarao de alforria da filosofia e apontando para o retorno ao conceito de um Deus pessoal e suas consequncias (JAESCHKE, 2016, 465). Tambm houve, no entanto, tentativas de defesa ou reformulao do sistema de Hegel para acomodar a ideia de imortalidade. A vasta bibliografia produzida nas dcadas de 1830 a 1860 sobre o assunto mostra a forte repercusso da posio de Hegel contra a ideia de imortalidade da personalidade humana.
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Assim, no se deve imaginar a imortalidade da alma como algo que ingressa
tardiamente na realidade; ela qualidade presente. O Esprito eterno, e, por isso,
j presente; o Esprito em sua liberdade no est no crculo das limitaes. Para
ele, enquanto pensante, puro sapiente, o que se d a generalidade; esta a
eternidade, a qual no consiste em mera durao, como duram as montanhas, mas
sim no saber. (HEGEL, 1970, XVII, 261)
Ora, cada indivduo j desde sempre to divino e to imortal quanto se possa
ser, na medida em que sua essncia a expresso particular do todo. A revelao da
divindade e da imortalidade do homem no , portanto, a sua continuidade enquanto
particular, mas a sua conscientizao de seu ser desde sempre universal e infinito. Para
Hegel, portanto, prolongar a vida finita e particular num mundo dos espritos equivaleria
a retrogradar para o estgio inconsciente do Esprito, negando a manifestao positiva de
Jesus Cristo e a manifestao onipresente e eterna alcanada pela filosofia.
J Imannuel Fichte criticara o Deus de Hegel como uma abstrao incapaz de
prover sentido vida ou fortalecer o homem nos desafios morais e existenciais,
defendendo um retorno e maior valorizao da filosofia de seu pai (FICHTE, 1869, Bd.
I, p. 17-18, 37) e, mais ainda, a filosofia positiva do ltimo Schelling. Deus mesmo
quem nos garante no se tratar de uma mera razo geral abstrata, mero Esprito
Absoluto, e sim de um ser pessoal, sumo bem, amor abundante de graa auxiliadora,
pois ele se revela na vida tico-religiosa do homem (isto , de toda a humanidade e sua
histria) (FICHTE, 1869, Bd. I, p. 281). S na possibilidade de interpretar toda a histria
mundial, natural e humana, como desdobramento da vontade de Deus que enxergamos
a coerncia moral-existencial da ordem do mundo, que de outra maneira continua a poder
ser confundido com um mecanismo de relgio. Este dedo de Deus (FICHTE, 1869, Bd.
II, p. 107) impulsionando o mundo precisa ser perceptvel tanto moral quanto
intelectualmente, na finalidade dos acontecimentos como na perfeio de seus processos.
A isso Fichte acrescenta a absoluta necessidade da imortalidade da alma, sem a
qual o cristianismo da pura abstrao hegeliano abdica, na prtica, da extenso real das
promessas da religio e as expectativas do senso moral humano. No entender do Fichte
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filho, Hegel ignorou com excessiva soberba a naturalidade da religio, sequiosa de vida,
amor, consolo para o sofrimento pessoal, e outros traos que fazem dela um atestado
emprico de demandas individuais, para privilegiar, ao invs disso, somente a parte dela
que falasse do geral e do infinito. Ora, a ligao entre a ideia da imortalidade e a vida
moral pode ao menos Hegel deveria ter includo a possibilidade no ser uma projeo
defeituosa da razo sobre a verdadeira essncia do homem, mas fruto de um senso
divinitatis, o que faria da generalidade dessa crena um indcio emprico da constituio
psquica humana ao invs de uma ideia especulativa. Tal a posio de Lessing na
Educao do gnero humano (LESSING, 1987, 42-44, 58, 60, 72), e Imannuel
Fichte parece resgat-la de preferncia a aceitar as de Kant ou Hegel.
Mas Immanuel Fichte permanece dividido entre Hegel e os dois outros grandes
idealistas, e tambm v o cristianismo como expresso histrica positiva de um Deus que
esprito. Sua divergncia com Hegel em grande parte teolgica, isto , aponta para a
exegese do que o cristianismo quer enfatizar mais do que para algum erro filosfico
fundamental de Hegel.
Foi o cristianismo que pela primeira vez elevou a ideia de imortalidade sua mais
alta dignidade e pureza de contedo; de um lado, porque ele concebe na forma
mais profunda o conceito de esprito pessoal enquanto imagem e semelhana de
Deus e templo do Esprito Santo, fundando, com isso, uma nova era na
histria, a partir da qual o homem no seria mais totalmente suplantado por algo
mais alto, j que este princpio da personalidade evoluiria sempre em formas
culturais futuras, enriquecendo-se; de outro lado, porque o cristianismo traz a
crena na imortalidade para uma conexo inquebrvel com as ideias ticas
supremas. Por isso, esse seria o carter diferenciado da nova etapa histrica
universal e das novas religies (FICHTE, 1869, Bd. II, p. 244).
Concluso:
Como vimos, o projeto das Prelees sobre Filosofia da Religio no apenas
introduz mais seriamente o conceito de religio e seu lugar na dinmica do Absoluto, algo
que foi antecipado de diversas maneiras ao longo da obra pretrita de Hegel; ele tambm
d religio um papel central, um status de quintessncia da cultura em suas tentativas
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de expressar o Esprito. Contudo, ao passo que Hegel compatibiliza de modo mpar
elementos da teologia trinitria e das noes de pessoa divina com a forma processual de
sua filosofia, ele deixa, estranhamente, de fora da equao elementos igualmente capitais
da f e da filosofia crist, como a ideia de imortalidade da alma e o que at certo ponto
uma consequncia e confirmao daquela a ressurreio de Cristo. Tal excluso vem
a sugerir que Hegel deve ter desenvolvido um apreo muito especial por sua prpria
cosmoviso em detrimento do que aprendera no seminrio de Tbingen, ou que ele
interpretou parte do movimento modernizador como uma demanda por abandono dessas
ideias.
Independentemente de quais fossem as motivaes ltimas de Hegel, no entanto,
era de se esperar que seu esforo em preservar o cristianismo e a ideia geral de religio
fosse recebido com desdm justamente pelos grupos que se entendiam como mais ligados
a estas concepes de mundo e de vida. E diversos pensadores (a exemplo de Imannuel
H. Fichte) se sentiram no dever de confrontar as influncias negativas das Prelees sobre
Filosofia da Religio sobre a religiosidade crist.
Essa controvrsia nos ajuda a visualizar que a concepo crist de Deus se associa
sobremaneira noo de um criador de individualidades mais bem plantadas no solo do
ser, e que isso acarreta numa defesa ostensiva da imortalidade do esprito, o que deixa no
ar a pergunta sobre o quo cristo realmente o Deus de Hegel. Por outro lado, como
apenas o status do esprito individual diminudo, cabe tambm concluir que, cristo ou
no, o Esprito Absoluto Deus.
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