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Relatório do Encontro de Saberes Neepes 2019
O Campo na Cidade: resistências, (re)existências e interculturalidades
no cuidado e na alimentação
De 10 a 12 de dezembro de 2019 – Espaço Raízes do Brasil e Auditório da Escola
Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz)
Núcleo Ecologias, Epistemologias e Promoção Emancipatória da Saúde (Neepes)
http://neepes.ensp.fiocruz.br
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Fundação Oswaldo Cruz
Presidente: Dra. Nísia Trindade Lima
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca
Diretor: Hermano Albuquerque de Castro
Núcleo Ecologias, Epistemologias e Promoção Emancipatória da Saúde
Coordenador Geral: Dr. Marcelo Firpo de Souza Porto
Este relatório foi organizado por:
Juliano Luís Palm, Marcelo Firpo de Souza Porto, Marina Tarnowski Fasanello, Diogo
Ferreira da Rocha, Ana Paula Bezerra Cavalcanti e Júlia Sarraf.
Informações fornecidas e contribuições dos relatores que participaram do evento:
Relatoria escrita: Diogo Ferreira da Rocha, Juliana Souza e Juliano Luís Palm.
Relatoria poético-musical: Jéssica Marcele Gonçalves Alves, Maicon Miguel Vieira da
Silva e Sibelli Carvalho.
Relatoria gráfico-imagética: Denilson Baniwa, Lorena Portela e Miguel Afa.
Produção audiovisual: Couro de Rato.
Fotos: Couro de Rato, Marina Tarnowski Fasanello e Juliano Luís Palm.
Rio de Janeiro, 2020
_______________________________________________________________________________________________
Núcleo Ecologias, Epistemologias e Promoção Emancipatória da Saúde – Neepes Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca - Fundação Oswaldo Cruz Rua Leopoldo Bulhões, 1480. CEP: 21041-210. Rio de Janeiro – RJ
http://neepes.ensp.fiocruz.br/
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Sumário Lista de siglas e abreviações ................................................................................................... 4
Introdução: reflexões em tempos de agravamento das crises ......................................... 7
Os Encontros de Saberes do Neepes e a realização do 1º em 2018 ................................. 8
O Encontro de Saberes do Neepes 2019 .............................................................................. 12
Os Três Eixos/Grupos de Trabalho: Território, Cuidado e Alimentação ....................... 17
GT Território ........................................................................................................................ 19
GT Cuidado ............................................................................................................................ 27
GT Alimentação .................................................................................................................... 34
Terceiro dia do Encontro de Saberes: colheitas e perspectivas ..................................... 42
Considerações finais ............................................................................................................... 47
Participantes do Encontro de Saberes Neepes 2019 ........................................................ 50
ANEXO 1 – Complemento relatos gráfico-imagéticos e poético-musicais .................... 52
ANEXO 2 - Programação ......................................................................................................... 58
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Lista de siglas e abreviações:
AARJ - Articulação de Agroecologia do Rio de Janeiro
ABA - Associação Brasileira de Agroecologia
ASA - Articulação Semiárido Brasileiro
ANP - Articulação Nacional das Pescadoras
ANA - Articulação Nacional de Agroecologia
AS-PTA – Agricultura Familiar e Agroecologia
CBA - Congresso Brasileiro de Agroecologia
CEM - Centro de Integração na Serra da Misericórdia
CES - Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra
CFMA - Campos Fiocruz Mata Atlântica
CPDA - Programa de Pós-graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento,
Agricultura e Sociedade
CPT - Comissão Pastoral da Terra
Capina - Cooperação e Apoio a Projetos de Inspiração Alternativa
ENSP - Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca
FCT - Fórum de Comunidades Tradicionais de Angra dos Reis, Paraty e Ubatuba
Fiocruz - Fundação Oswaldo Cruz
FONSANPOTMA - Fórum Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional de Povos
Tradicionais de Matriz Africana
IHAC - Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos
Mapa de Conflitos - Mapa de Conflitos Envolvendo Injustiça Ambiental e Saúde no
Brasil
MPA - Movimento dos Pequenos Agricultores
MPP - Movimento de Pescadores e Pescadoras Artesanais do Brasil
MSTB - Movimento dos Sem Teto da Bahia
Neepes - Núcleo Ecologias, Epistemologias e Promoção Emancipatória da Saúde
Nides - Núcleo Interdisciplinar de Desenvolvimento Social / UFRJ
Nuer - Núcleo de Estudos de Religião
OMS - Organização Mundial da Saúde
OTSS - Observatório de Territórios Sustentáveis e Saudáveis da Bocaina
TI - Terra Indígena
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Rede CAU - Rede Carioca de Agricultura Urbana
SUS – Sistema Único de Saúde
UERJ - Universidade do Estado do Rio de Janeiro
UFBA - Universidade Federal da Bahia
UFAM - Universidade Federal do Amazonas
UFPI - Universidade Federal do Piauí
UFRR - Universidade Federal de Roraima
UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro
UFRRJ – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
Unicafes - União Nacional das Cooperativas da Agricultura Familiar e Economia
Solidária
UTT - Unidades Territoriais Tradicionais
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Brasil,
chegou tua vez.
De ouvir as Marias, Mahins, Marielles, Malês,
procurando um lugar para falar de interculturalidade.
No cuidado, na alimentação e o campo na cidade,
as resistências, as existências e sua diversidade.
Um lugar de céu aberto, de fundo cor de anil,
que pudéssemos nos olhar, relatando o que sentiu.
Encontramos este lugar nas Raízes do Brasil (...)
São tamanhos os relatos, que nos fazem refletir.
Em cada gesto uma ação, nos fazendo até sentir,
reforçando a necessidade da gente (re)existir.
(Re)existir na arte, (re)existir na cultura, (re)existir no alimento que vem da
agricultura, (re)existir através das ervas que nos trazem tanta cura.
O que é ciência? O que é revolução? Nós já temos as respostas para esta reflexão?
Pois as respostas nos ensinam a andar com os pés no chão.
No chão dos saberes, no chão da diversidade, no chão das resistências, no chão da
igualdade, no chão dos territórios que garantem a liberdade.
Um ponto de equilíbrio,
precisamos encontrar,
entre os saberes acadêmicos e também o popular.
Pois a inexistência deste encontro é desafio que aponto,
nos impedem de avançar (...)
Precisamos nos unir, caminhando lado a lado, academia e território, são na luta
aliados, defendem o direito à vida e ao alimento, que é sagrado.
Nossas escritas e saberes, precisam dialogar.
(Extrato do relato poético-musical de Maicon Miguel Vieira da Silva)
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Introdução: reflexões em tempos de agravamento das crises
Este relatório do Encontro de Saberes Neepes 2019 tem por objetivo
apresentar as principais atividades, discussões e apresentações em torno do tema
‘O Campo na Cidade: resistências, (re)existências e interculturalidades no cuidado e
na alimentação’.
O relatório foi concluído num momento especial da humanidade, em que uma
pandemia de magnitude, capacidade de proliferação e letalidade inédita nos últimos
cem anos assola os quatro cantos do planeta. A gravidade da atual pandemia do
Covid-19 reforça a necessidade de refletirmos sobre como iremos enfrentar o
conjunto de crises que há décadas expõem os limites da dita modernidade que se
expandiu da Europa para o resto do mundo há pelo menos quinhentos anos.
Atualmente essa modernidade se expressa hegemonicamente pelo sistema
capitalista globalizado, financeiro, consumista e neoextrativista que afeta o conjunto
do planeta, embora de forma desigual os grupos e territórios mais vulneráveis e
invisibilizados do Sul Global.
As respostas à atual crise sanitária e econômica com a qual nos deparamos
hoje podem ser encaradas como ensaios sobre como iremos enfrentar os efeitos da
crise social e ecológica que se intensifica há pelo menos um século. Este contexto,
como era de se esperar, reascende dilemas clássicos no tocante a forma como
socialmente nos organizamos, sobre o papel do Estado e da ciência, demonstrando
a importância de sistemas públicos, universais e democráticos de saúde e as falácias
promovidas pelo ideário desenvolvimentista e neoliberal. Por outro lado, a defesa
dessas bandeiras não deveria bloquear os avanços na construção de alternativas
epistemológicas, institucionais e políticas frente às formas de dominação colonial,
capitalista e patriarcal que se mantêm e se articulam na atualidade.
As saídas para o conjunto de crises com as quais nos deparamos e as
estratégias de ação para intervirmos nas mesmas, demandam contribuições
envolvendo conhecimentos e experiências de múltiplos agentes e epistemologias
em uma ecologia de saberes. Este é um dos objetivos dos Encontros de Saberes
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organizados pelo Neepes, que busca fomentar interações horizontais entre grupos
acadêmicos e povos e comunidades tradicionais, além de outros movimentos e
grupos sociais que atuam nas cidades e estão à frente de experiências exitosas de
resistência e transformação em diferentes territórios. A importância destes diálogos
interculturais frente a crise civilizatória em que nos encontramos fica explícita no
relato que será apresentado mais à frente.
Os Encontros de Saberes do Neepes e a realização do 1º em 2018
Os Encontros do Neepes têm sido construídos com múltiplos propósitos. Eles
representam uma estratégia prática para a construção compartilhada de agendas e
questões de pesquisa, de trocas/compartilhamentos de experiências e referenciais
conceituais que apoiem as lutas sociais e processos emancipatórios por saúde,
dignidade e direitos territoriais. Eles buscam potencializar as interações
interculturais e interdisciplinares entre agentes que atuam na academia, em
movimentos sociais e nos diferentes territórios com saberes e experiências
concretas, sejam eles lideranças, militantes, pesquisadores, assessores técnicos,
entre outros, conforme observaremos na sequência do relatório.
Os Encontros de Saberes também buscam avançar na construção e difusão de
metodologias sensíveis, co-labor-ativas e não extrativistas que apoiem diálogos
interculturais necessários para a articulação entre a academia e diferentes
movimentos sociais, incluindo tanto povos e comunidades tradicionais (indígenas,
de matriz africana, camponeses), como grupos urbanos que atuam por cidades
inclusivas e democráticas, movimentos feministas, antirracistas, agroecológicos, ou
ainda que atuam em práticas comunitárias, holísticas e tradicionais de cuidado.
O Neepes já promoveu dois Encontro de Saberes. O primeiro pavimentou as
fundações das perspectivas teórico-metodológicas do núcleo; a partir do segundo,
prevemos que os demais passarão a ser realizados bianualmente. Os Encontros
almejam concretizar a máxima metodológica de que o caminho se faz ao caminhar,
numa perspectiva interdisciplinar, intercultural, sensível, co-labor-ativa e dialógica
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envolvendo intelectuais, grupos de pesquisa, movimentos sociais e organizações
comunitárias. A ideia é estabelecer pontos de conexão entre o conjunto de ações que
realizamos ao longo do período anterior e a agenda de trabalho futura, pensada
coletivamente a partir das demandas, discussões, perguntas e prioridades que
emergem destes eventos. Dessa forma, os Encontros de Saberes representam uma
proposta de construção de conhecimentos e práticas numa espiral cíclica. São
momentos de síntese que servem simultaneamente como momentos de
compartilhamento de aprendizados, reorientação de agendas e questões de
pesquisa, mas também de avanços na articulação entre linguagens científicas,
artísticas e populares nos processos de interação e diálogo, além de fortalecer o
trabalho em redes de cooperação.
Contando com a participação de integrantes de grupos e movimentos sociais
de diferentes territórios envolvidos em experiências diversas e pesquisadores
acadêmicos, os encontros também se constituem em espaço de debate e
experimentação de metodologias desenvolvidas e referenciais de ação do Neepes.
Merecem destaque, neste sentido, os esforços envidados para promover diálogos
interculturais a partir da expressão em diferentes linguagens, escrita-acadêmica,
gráfico-imagéticas, poético-musicais e audiovisuais. Para isso, os Encontros têm se
apoiado no trabalho de artistas militantes que atuam junto aos grupos de discussão
na produção de relatos gráfico-imagéticos e poético-musicais, incluindo linguagens
como o rap, repente, cordel, poetry slam, artistas plásticos indígenas e provenientes
do grafite, dentre outros.
O primeiro Encontro de Saberes foi realizado no final de 2018 e buscou
refletir acerca da questão: o que é o Neepes? Conforme reforçado ao longo do evento,
o Neepes institucionaliza o compromisso com uma agenda de pesquisa e produção
de conhecimentos que articulam linguagens acadêmicas, artísticas e populares em
torno das lutas sociais por saúde, dignidade e direitos territoriais, tanto nos campos,
florestas e águas quanto nas cidades. Ao conectar produção de conhecimentos com
estas múltiplas frentes de atuação, o núcleo visa fortalecer o reconhecimento das
inúmeras possibilidades de ser, conhecer e se expressar no mundo, presentes nas
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culturas, cosmovisões e práticas de indígenas, camponeses, quilombolas,
trabalhadores e moradores de favelas, ocupações e periferias urbanas. Além dos
espaços urbanos e aqueles onde vivem os povos dos campos, florestas e águas, o
Encontro revelou a importância dos territórios onde o rural e o urbano se
entrelaçam, gerando espaços profícuos tanto para os diálogos quanto para os
conflitos sociais e ambientais.
A metodologia para o Encontro de Saberes 2018 partiu da construção de
metodologias sensíveis co-labor-ativas proposta pelo Neepes, e envolveu uma
equipe de pesquisadores do Núcleo, do LTM (Laboratório Territorial de
Manguinhos, LTM) e diversos colaboradores de organizações parceiras com
experiências na articulação de saberes, incluindo movimentos sociais como o MST e
MPA, a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) e a ONG Raízes em Movimento,
atuante no movimento de favelas e no Complexo do Alemão. Também participaram
da construção da metodologia relatores gráfico-imagéticos e poético-musicais
Foi proposto um conjunto de questões para serem debatidas que orientaram
tanto as mesas redondas quanto a oficina realizada no segundo dia, que contou com
quatro grupos de trabalho. A questão geral orientadora para todos os grupos foi: o
que une as lutas sociais por saúde, dignidade e direitos territoriais nos campos e nas
cidades? À esta questão geral foram acrescidas outras quatro, denominadas de
questões semeadoras, cada uma trabalhada por um grupo específico e apresentadas
a seguir:
(i) Como compreender e enfrentar as violências e racismos que atingem
territórios e populações?
(ii) Como avançar no encontro e ecologia de saberes entre academia,
comunidades e movimentos sociais?
(iii) Como incorporar a relação com natureza e soberania alimentar em ações
de promoção da saúde nos territórios?
(iv) De que forma geramos vida em nossos territórios e como
compartilhamos tais conquistas para quem vive dentro e fora deles?
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Cada um dos quatro grupos teve uma dupla de dinamizadores, uma pessoa
da academia e outra inserida em movimentos sociais, responsáveis por propor as
questões, organizar dinâmicas de interação e organizar a ordem de inscrição e o
tempo de falas. Cada grupo teve também três relatores, um acadêmico, outro
imagético e outro poético musical.
Como resultados, o Encontro 2018 produziu tanto um relato audiovisual
(vídeo), uma reportagem e um programa no Canal Saúde com Boaventura de Sousa
Santos e Marcelo Firpo, além de um relatório escrito (resultante dos vários relatos
acadêmicos), acrescido de relatos gráfico-imagéticos e poético-musicais, todos
disponibilizados no portal do Neepes.
O evento de 2018, junto com diversas atividades acadêmicas desenvolvidas
no período que se seguiu, refletiu-se na agenda de atuação do Neepes para o ano de
2019, com destaque para a produção de artigos, livros e três disciplinas
acadêmicas1. Refletiu-se também na pesquisa e dois trabalhos de campo com o povo
Munduruku do Médio Tapajós, e na finalização do documentário Fio da Meada
dirigido pelo cineasta Silvio Tendler, o qual que teve como roteiristas os
pesquisadores do Neepes Marcelo Firpo e Marina Fasanello, além do próprio
diretor, e desde então vem concorrendo em vários festivais.
Este caminhar culminou na construção do segundo Encontro de Saberes, que
visou refletir temas que surgiram no primeiro Encontro e nas atividades acadêmicas
mencionadas, além de incorporar articulações e demandas que surgiram ao longo
de 2019, a exemplo das interações com o Fórum Nacional de Segurança Alimentar e
Nutricional dos Povos Tradicionais de Matriz Africana (FONSANPOTMA).
1 Entre o final de 2018 e a realização do Encontro em dezembro de 2019 foram realizados três cursos de pós-graduação, sendo dois de âmbito internacional junto com professores do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra (Curso de Verão Saúde Coletiva em Diálogo com as Epistemologias do Sul; e o Curso de Inverno Ecologias Feministas de Saberes), além do curso regular do Neepes denominado Ecologias, Epistemologias, Promoção Emancipatória da Saúde e Justiça Ambiental.
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O Encontro de Saberes do Neepes 2019
O Encontro de Saberes Neepes 2019 buscou avançar os debates iniciados no
1º Encontro de 2018 seguindo as bases metodológicas desenvolvidas, e teve por
foco duas questões específicas.
A primeira foi de ordem metodológica: como fortalecer a co-presença de
sujeitos sociais advindos de lutas sociais frequentemente invisibilizadas, com seus
conhecimentos, práticas e linguagens, visando processos dialógicos mais efetivos?
Como explicitou o coordenador do núcleo Marcelo Firpo em sua fala introdutória, “o
Neepes busca construir uma ecologia de saberes, com base nos referenciais pós-
coloniais e na proposta das epistemologias do Sul, através de metodologias que
chamamos de sensíveis e co-labor-ativas”. Em uma perspectiva de co-presença, o
núcleo trabalha no fortalecimento conceitual e metodológico de processos
emancipatórios com a efetiva participação dos sujeitos que trazem suas vidas,
valores, saberes e lutas e, respeitosamente, dialogam com outras lutas e saberes na
construção deste processo de tornar comum, nos termos de Paulo Freire.
A segunda questão assumiu a aposta do Neepes de avançar em um objeto de
trabalho mais definido: a relação campo-cidade a partir das interações de
conhecimentos, experiências, resistências e transformações envolvendo povos e
comunidades tradicionais, sejam os indígenas e de matriz africana, mas também as
populações de camponeses, pescadores, dentre outras. Houve preocupação em
incorporar movimentos e saberes articulados às lutas antirracistas e feministas, daí
o convite que levasse a uma diversidade de participações étnicas, raciais e de gênero.
As duas questões estão interligadas, na medida em que processos na direção
da ecologia de saberes e do diálogo intercultural precisam ser construídos através
da co-labor-ação dos co-presentes, enquanto sujeitos ativos e não subalternizados
neste processo. Ao buscar construir metodologias sensíveis e co-labor-ativas, o
Neepes visa se distanciar dos cânones e práticas acadêmicas predominantes, em que
especialistas extraem e validam saberes para produzirem outros considerados ‘mais
elevados’ e, em nome de uma pretensa objetividade e neutralidade, acabam por
afastarem dimensões éticas e políticas do espaço acadêmico. Para tornar possível
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este diálogo intercultural, como salientou Marcelo Firpo, “o trabalho do Neepes
destaca a importância das linguagens da vida, artísticas, populares e a articulação
com diferentes formas de expressão, gráfico-imagéticas, poético-musicais, orais e
escritas”.
Em seguida à fala introdutória, foram estruturadas duas mesas de debates no
primeiro dia do encontro, com o objetivo de apresentar e discutir referenciais para
o debate coletivo. Sob o título O campo na cidade: contribuições e resistências dos
povos e comunidades tradicionais e camponeses, a primeira mesa foi coordenada por
Natália Almeida Souza (ABA/ANA) e contou com a participação de Tonico Benites
(Guarani-Kaiowá e Museu Nacional/UFRJ); Luciana Lago (NIDES/UFRJ) e Felipe
Milanez (IHAC/UFBA), que apresentaram suas experiências vinculadas à
movimentos sociais e academia. Destacaram como a urbanização afeta os territórios
e como povos e comunidades tradicionais têm se organizado tanto para resistir às
pressões por transformação quanto para construir articulações com movimentos
urbanos que lutam por moradia, o direito à cidade e espaços mais inclusivos,
saudáveis e democráticos.
Tonico Benites destacou a importância das articulações com agentes dos
centros urbanos nos processos de resistência dos povos indígenas, sendo espaço
estratégico para que suas lutas ganhem maior visibilidade pública e força política.
Como exemplo, lembrou o apoio recebido no processo de resistência dos Guarani-
Kaiwoá do Mato Grosso do Sul em 2012. As denúncias sobre o genocídio de
indígenas motivaram milhares de pessoas acrescentarem a referência aos Guarani-
Kaiwoá em suas redes sociais. Neste processo também se aproximaram de
jornalistas, que auxiliaram a dar visibilidade as suas lutas para as populações
urbanas, como lembrou em relação a Felipe Milanez. Este processo motivou
manifestações em dezenas de cidades de diferentes Estados do país. Como pontuou
o expositor: “esse movimento em rede com pessoas das cidades tem sua importância,
por dar visibilidade e apoio as lutas”. A partir da experiência no Mato Grosso do Sul,
Tonico salientou, ainda, que os processos de expansão urbana se dão, muitas vezes,
sobre territórios indígenas, forçando sua urbanização. Entretanto, na história oficial
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destas cidades, como do Estado brasileiro, os povos indígenas, que participam
ativamente da vida pública nesses municípios, são recorrentemente excluídos e
invisibilizados, o que se desdobra em uma exclusão social, econômica e política.
A partir de sua experiência em pesquisa, ensino e extensão com movimentos
de luta por moradia e processos de democratização das cidades, Luciana Lago
refletiu acerca das possibilidades de interações campo-cidade em uma perspectiva
de superação desta segmentação sem dominação. A expositora lembrou, neste
sentido, que a dominação urbano-rural emerge com o capitalismo, com a imposição
de uma lógica mercantil de desenvolvimento. Em um movimento contra tendente,
torna-se de crucial importância dar visibilidade às tecnologias que são
desenvolvidas a partir de outras epistemologias, que embasam experiências
exitosas de articulação campo-cidade, mas que são sistematicamente invisibilizadas.
Com base nestas experiências torna-se possível construir um projeto de cidade
alternativa, capaz de abrigar o campo e fomentar um desenvolvimento
agroecológico nos espaços urbanos, como apontou a pesquisadora. Sistematizar as
milhares de iniciativas que existem nesta direção constitui-se, assim, em papel
central para a universidade, fazendo com que as mesmas amplifiquem sua
visibilidade e espaço no debate público.
Felipe Milanez resgatou sua trajetória junto às lutas indígenas e aproximação
com as ecologias políticas. Nos anos de 2011 e 2012, em um período de acirramento
dos ataques a povos indígenas, passou a interagir com as discussões no âmbito das
ecologias políticas, rapidamente se afinando com autores e debates emergentes no
contexto latino americano. Essa aproximação, como salientou o expositor, foi
motivada pelo entendimento de que as ecologias políticas são a base para o diálogo
intercultural entre diferentes epistemologias, em um movimento de insurgência
decolonial estratégico nos processos de emancipação, que perpassam a dimensão
política, mas também tensionam as múltiplas expressões de preconceitos, a exemplo
do racismo e machismo. Milanez frisou, neste sentido, a importância de
pesquisadores acadêmicos contribuírem para aumentar a visibilidade das lutas de
povos e comunidades tradicionais e a importância das epistemologias de que são
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portadores. Por fim, enfatizou a necessidade enfrentarmos o medo, afeto que insiste
em se tornar predominante em nossa sociedade, nos inspirando nos processos de
resistência, com ousadia, olhando para um horizonte emancipatório enquanto
utopia possível.
Na mesa intitulada Cuidado e alimentação: Desafios no encontro do campo
com a cidade, coordenada por Paulo Basta (ENSP/Fiocruz), os expositores Kota
Mulanji (Regina Nogueira) (FONSANPOTMA), Generosa Oliveira (ANA/UNICAFES)
e Clarinda Maria Ramos (indígena do povo Sateré-Mawé e mestranda na UFAM)
apresentaram suas experiências de cuidado enraizadas nos conhecimentos
presentes nos territórios dos povos e comunidades tradicionais e camponeses. As
falas refletiram, neste sentido, sobre como o saber médico e o saber daqueles que
curam nos territórios podem interagir de forma a promover saúde e bem-estar.
Kota Mulanji abordou as interseções entre cuidado e alimentação com base
na cosmovisão dos povos tradicionais de matriz africana. A partir desta perspectiva,
observou a importância de se acrescentar ao conceito afirmado pela Organização
Mundial da Saúde (OMS) a compreensão de que saúde é equilibro biológico, social,
psicológico, mas também mítico e ancestral. A expositora destacou, neste sentido, a
relevância da noção de corpo biomítico dos povos tradicionais de matriz africana,
reconhecendo que “nós somos biológicos e míticos” e que saúde se encontra
justamente neste “equilíbrio biomítico”. Por isso, nas Unidades Territoriais
Tradicionais (UTT)2 não se tratam apenas doenças, mas sim o corpo biomítico,
buscando-se seu equilíbrio, em que um aspecto central é a alimentação. A partir da
ideia de “mandala alimentar”, vai sendo pensada a construção deste corpo biomítico
e seu equilíbrio, com especificidades para os diferentes momentos da vida e de cada
ser, com alimentos que devem ou não ser ingeridos por cada qual a cada momento.
Para garantir este equilíbrio é fundamental que os alimentos não resultem de
2 Como destacou Kota Mulangi, a noção de UTT visa promover unidade conceitual a conceitos diversos,
como terreiro e ilê, muito vinculados aos contextos regionais em que se inserem. Ao mesmo tempo, esta
terminologia busca reforçar o entendimento de que a classificação destes espaços apenas como religioso
faz parte do processo colonial, que, assim, busca negar e aniquilar toda cultura e tradição de um povo.
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processos que gerem sofrimento, como o FONSANPOTMA afirma em sua campanha:
Tradição alimenta, não violenta! Nas palavras de Kota: “nenhum alimento nosso deve
ser consumido se teve algum ser vivo que sofreu para aquele alimento ser constituído,
por isso nós estamos na luta contra os agrotóxicos, por isso a gente está na luta por
um alimento orgânico”.
Generosa Oliveira iniciou destacando a necessidade de se garantir que
alimentos saudáveis sejam acessíveis à classe trabalhadora, da cidade e do campo,
não se tornando um “nicho de mercado” viável apenas para parcelas historicamente
já privilegiadas, tanto social quanto sanitária e economicamente. Como salientou a
expositora, esta questão também envolve o respeito e valorização a diversidade de
saberes e sabores, tendo em vista a multiplicidade de sentidos e formas de se
relacionar com os alimentos. Neste sentido, frisou a importância de se reunir as
experiências exitosas que emergem dos territórios, para compartilharem seus
aprendizados, estratégia que tem se constituído em um dos pilares do movimento
agroecológico. Generosa destacou, ainda, a importância de se criar estratégias de
comunicação que nos permitam “sair da bolha, comunicar para fora”. Nesta direção,
pontuou a compreensão de que “a gente tem que falar de agroecologia, falar de
alimentação saudável, de forma lúdica (...), que permita as pessoas compreenderem”.
Clarinda Maria Ramos destacou os vínculos entre cuidado e alimentação a
partir da cosmovisão dos povos originários Sateré-Mawé. Como observou a
expositora, a articulação entre estas duas noções já se explicita no período
gestacional: “para nós, Sateré-Mawé, cuidado começa a partir da gravidez (...), dentro
do ventre. Esse cuidado requer a utilização de alimentos que não prejudiquem o
crescimento da criança”. Ao explanar sobre os cuidados ao longo da gestação e pós-
parto, segundo as tradições de seu povo, Clarinda exemplificou a importância de
uma abordagem que não dissocie saúde e alimentação, concebendo-as como
dimensões umbilicalmente vinculadas.
As duas mesas apontaram instigantes questões que foram aprofundadas no
debate coletivo realizado nos grupos de trabalho no segundo dia do encontro.
Conforme fica explicito no relato que segue, os grupos de trabalho são o ponto de
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culminância dos esforços envidados no sentido de mobilizar a ecologia de saberes e
o diálogo intercultural enquanto estratégia para refletir acerca das possibilidades
de superação da crise civilizatória (social, ecológica, política, sanitária e epistêmica)
com a qual nos deparamos na contemporaneidade.
Os Três Eixos/Grupos de Trabalho: Território, Cuidado e Alimentação
Os grupos de trabalho tiveram por objetivo promover a socialização de
experiências e o debate coletivo em torno das temáticas propostas para o Encontro,
a partir de um diálogo intercultural e de saberes. Para isso, a metodologia do
Encontro propôs que cada grupo debatesse, refletisse e compartilhasse experiências
em torno de um eixo temático específico, porém suficientemente amplo e de
interesse comum, permitindo a participação de todas as pessoas. Para propiciar uma
ecologia de saberes, houve uma distribuição diversificada em todos os grupos dos
vários movimentos sociais e comunitários presentes, além de grupos acadêmicos.
Cada grupo recebeu uma questão inicial, denominada de semeadora, que teve
por objetivo iniciar os debates com o tema geral do Encontro (relação campo-cidade
a partir da interação dos povos e comunidades tradicionais) a partir de experiências
relacionadas ao eixo específico do grupo (território, cuidado e alimentação).
Além disso, todos os grupos receberam quatro questões iguais, denominadas
de polinizadoras, elaboradas em torno dos desafios conceituais, metodológicos e
políticos considerados mais estratégicos para serem aprofundados neste Encontro.
A ideia era que todas as questões fossem lidas para, a partir de seu entendimento,
fossem escolhidas aquelas que pudessem inspirar as reflexões, compartilhamentos
e diálogos no trabalho de grupo.
As questões polinizadoras foram:
1) Sobre a ecologia de saberes: como se realizam, avançam ou são travados processos
emancipatórios de construção de conhecimentos e práticas, bem como uma ecologia
de saberes na articulação entre movimentos, culturas, grupos acadêmicos e
instituições como o SUS?
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2) Sobre o encantamento, a espiritualidade e a relação com a natureza: como as
experiências resgatam e permitem o florescimento de visões e práticas voltadas ao
sentido de encantamento, espiritualidade e sagrado em sua relação com a vida, a
natureza e a dignidade, tendo em vista valores civilizatórios que estabeleçam pontes
entre o passado (tradição/ancestralidade), o presente e o futuro?
3) Sobre o desafio democrático, a convivência e a tolerância: que desafios e
alternativas têm sido construídos para resistir e ampliar a convivência democrática,
o respeito e a solidariedade no convívio entre diferentes lutas sociais envolvendo
povos e comunidades tradicionais na interação do campo com as cidades?
4) Sobre o desafio da identidade na interação campo-cidade: que significa ser povos
e comunidades tradicionais, seja como indígena, quilombola, povos tradicionais de
matriz africana, camponês/a, pescador/a, entre outros, na aproximação entre o
campo e a cidade? Esta questão implica em como lidar com o consumo, o trabalho, o
tempo e as tecnologias modernas/urbanas, bem como com as políticas e instituições
da saúde e de educação frente às principais ameaças, desafios e alternativas em
temas como identidade, continuidade, sucessão e relação intergeracional.
Os debates coletivos que emergiram nos grupos de trabalho, a partir destas
questões semeadora e polinizadoras, foram relatados em diferentes linguagens
(poético-musical, gráfico-imagético e escrita). O presente relatório, embora
centrado na escrita, incorpora as várias linguagens, e é complementado pelo
documentário audiovisual produzido pelo Neepes e pela produtora Couro de Rato,
parceira afinada intelectual e politicamente com a proposta do Neepes. O
audiovisual, pela riqueza das possibilidades imagéticas e poder de síntese, é uma
das expressões mais valorizadas pelo Neepes como estratégia de coracionar a
produção e divulgação de saberes e experiências.
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GT Território
Um debate dinamizado por questões polinizadoras, refletindo o território e suas ações transgressoras. A cobiça do capital, essa força tão opressora (...) São 519 anos de lutas e resistência, já são mais de cinco séculos sem querer nossa presença no território que é nosso. É essa a nossa sentença? (...)
Defendemos o território para garantir o bem-viver (...) Território é vida, território é natureza. Do território vem a nossa força, disso eu tenho toda certeza, dos índios, dos quilombolas e da classe camponesa (...) Precisamos perceber, o valor que o território tem. Enquanto a esperança não vencer, ninguém solta a mão de ninguém!
(Extrato do relato poético-musical de Maicon Miguel Vieira da Silva)
(Relato gráfico-imagético de Denilson Baniwa)
20
O debate do grupo teve como foco a questão semeadora: como as lutas por
direitos territoriais são travadas por povos, comunidades e movimentos
tradicionalmente vinculados ao campo, florestas e águas em sua relação com as
cidades?
Como salientaram os dinamizadores Marcelo Firpo e Eliete Paraguassu no
início da atividade, através da ideia de direitos territoriais visou-se abarcar
múltiplos aspectos no tocante à noção de território, desde a demarcação de terras,
compreendida para além de sua dimensão jurídica, até o direito e construção dos
bens comuns e espaços públicos democráticos relacionados à produção e acesso à
alimentos saudáveis, à moradia, à mobilidade, aos espaços sagrados e de realização
de ritos importantes para grupos tradicionais.
Nas intervenções, os participantes apresentaram, a partir de experiências em
distintos contextos territoriais, diversas acepções acerca da noção de território,
destacando sua complexidade e multidimensionalidade. Importante observar, neste
sentido, que a discussão foi permeada pelo entendimento de território não apenas
enquanto espaço físico, mas relacionalmente aos povos e comunidades tradicionais
que os conformam e preservam, em processos históricos de territorialização (e
consequentes ameaças de desterritorialização), envolvendo, assim, tanto dimensões
materiais quanto simbólicas. Como salientou Denis Monteiro, da Articulação
Nacional de Agroecologia (ANA): “sem os povos, os territórios não existem”.
Os participantes salientaram a importância dos territórios em relação a
sustentabilidade, tendo em vista seu potencial enquanto fonte de produção e
preservação de bens comuns essenciais para a vida, cruciais tanto para povos e
comunidades tradicionais como para a sociedade englobante. Na mesma direção, foi
destacada a importância dos territórios no resgate e valorização de tradições e
conhecimentos ancestrais, fundamentais enquanto referenciais de ação frente as
crises vivenciadas na contemporaneidade.
As interconexões entre território, segurança alimentar, cuidado,
ancestralidade e cultura foram ressaltadas por diversos integrantes do grupo de
21
trabalho. Eliete Paraguassu, do Movimento de Pescadores e Pescadoras Artesanais
do Brasil (MPP) e da Articulação Nacional das Pescadoras (ANP), destacou, neste
sentido, vínculos entre a luta por direitos territoriais, bens comuns e segurança
alimentar: “a luta da gente é por terra e água, por um alimento saudável”. Leila de
Souza Netto, integrante de experiência quilombola articulada à Rede Carioca de
Agricultura Urbana (Rede CAU), destacou as relações entre arte, cuidado e
território: “neste nosso quilombo temos liberdade de exprimir a arte de cada uma de
nós, arte que cura, eleva, potencializa”.
A partir destes vínculos com diferentes dimensões, participantes também
destacaram o território enquanto elemento central na garantia da reprodução social
de povos e comunidades tradicionais. Como pontuou Celso da Cruz Fonseca,
liderança quilombola da Região Serrana do Rio de Janeiro, no território as
comunidades tradicionais viabilizam sua segurança alimentar: “temos lavouras,
plantas, criamos animais, tomate, rapadura...”, se constituindo em espaço de
sobrevivência em uma perspectiva intergeracional: “nossa reivindicação é área de
terra para futuras gerações”. Na mesma direção, Eliete Paraguassu destacou que: “o
território não fala só do seu povo, ele fala do coletivo, não são só para os nossos, mas
também pelos que vão nascer”.
Por outro lado, foram salientadas denúncias em relação aos processos de
desterritorialização que tensionam, de diversas formas, estas populações e seus
modos de vida. Os processos de desterritorialização se constituem em fator central
na desagregação de múltiplas dimensões que encontram possibilidade de sinergias
exitosas no território. Como salientou Mãe Nalva (Virgínia Lunalva M. de Souza
Almeida), do FONSANPOTMA, a retirada do direito à terra compromete a segurança
e soberania alimentar de um povo, assim também ameaçando sua cultura, seu saber.
Na mesma direção, representante do movimento agroecológico destacou os vínculos
entre mudanças na cultura alimentar e processos de desterritorialização,
observando que: “quando crianças passam a ter como base de sua alimentação
refrigerante e salgadinho, também estamos perdendo território”.
22
A partir da noção de memória biomítica, Iyá Vera Soares (Vera Beatriz
Soares), representante do FONSANPOTMA, destacou os vínculos entre aspectos
materiais e simbólicos nos processos de desterritorialização. O aniquilamento da
língua de um povo e de suas tradições, como observou, está diretamente relacionado
aos processos históricos de expropriação de suas terras, a exemplo das diásporas
originadas com a escravidão.
Lideranças de povos originários destacaram as lutas por demarcação de suas
terras enquanto estratégia de resgate e valorização de sua tradição e ancestralidade,
em uma dinâmica de resistência e contraposição aos processos de acumulação por
espoliação impulsionados pelo agronegócio e políticas de desenvolvimento
agroextrativistas. Também foi salientado, neste sentido, que não se tratam apenas
de lutas para os povos originários, mas sim para o conjunto da sociedade, tendo em
vista que a garantia de seus territórios viabiliza a conservação de diversos bens
comuns e o resgate e valorização de um importante arcabouço de conhecimentos
acerca de como podemos preservá-los.
A partir da experiência do povo Anacé, no Ceará, Francisco Gleiciano de
Morais Costa ressaltou diferentes fatores que têm promovido processos de
desterritorialização. Por um lado, novas dinâmicas têm fragilizado suas tradições,
com destaque para a expansão de igrejas neopentecostais, oprimindo, por exemplo,
pintura corporal e cantos ancestrais, por serem consideradas expressão de que
“estamos com o diabo”. Como destacou este representante dos povos originários:
“muitos estão deixando se levar por isso. O que nos protege até hoje, eles acreditam
que não nos serve mais”. Ao mesmo tempo, salientou as tensões para garantirem a
demarcação de suas terras, principalmente em um contexto marcado pela expansão
do agronegócio. Posseiros têm se apropriado de significativas áreas e estas ações
são, muitas vezes, referendadas por agentes do Estado: “quando fizemos a nossa
retomada vimos o helicóptero em cima das nossas terras (...). A polícia cortou as nossas
barracas (...). Isso é muito constrangedor!” Essas pressões fundiárias comprometem,
além disso, os sistemas tradicionais de agricultura e, assim, a segurança alimentar
de seu povo. Em uma área de cerca de 70 hectares para 3 mil indígenas, conseguem
23
viabilizar a produção no período de inverno, mas no verão, sem irrigação, torna-se
difícil a sobrevivência, levando muitos a saírem “das aldeias para morar e trabalhar
fora e isso dá brecha para entrada de posseiros”. Frente esta situação, ressaltou as
dificuldades, mas também a necessidade de perseverar: “a luta do território indígena
é pesada. Tenho receio, mas não tenho medo”.
Na mesma direção, representante dos povos originários Guarani, do Estado
de São Paulo, salientou a importância da demarcação de terras e os tensionamentos
que enfrentam neste sentido. No contexto de sua experiência, 180 famílias, cerca de
2 mil indígenas, vivem no espaço restrito de 1,7 hectares, realizando ações para
retomada de seu território e reflorestamento das áreas, lutando pela ampliação e
demarcação de 532 hectares. Entretanto, as ameaças são cotidianas, só em 2019 três
jovens indígenas foram assassinados. Apesar desta triste realidade, como salientou:
“A gente vai continuar resistindo”. Os exemplos históricos de seus ancestrais são
destacados enquanto fonte de inspiração para prosseguirem em suas lutas: “andarás
por terra onde passei e lutarás por tê-la como lutei... (...). Olha onde nós chegamos,
desde o início da matança”.
Os contextos urbanos foram destacados tanto pelas ameaças aos territórios
e modos de vida de povos e comunidades tradicionais, como pela possibilidade de
sinergias entre movimentos que podem fortalecer suas lutas. As cidades foram
consideradas pelos participantes, neste sentido, enquanto espaço em que diferentes
dinâmicas e controvérsias se expressam. Por um lado, foram lembrados processos
excludentes e os perigos colocados pela expansão urbana, constituindo-se em
espaço abissal, em que povos e comunidades tradicionais são marginalizados e
invisibilizados. Por outro, participantes salientaram as possíveis interações com
sujeitos de outros movimentos nos contextos urbanos, viabilizando coalizões que
fortalecem as lutas e estratégias de resistência.
Ainda em relação às ameaças enfrentadas nos territórios de “produção da
vida”, foi destacada a complexidade de se lidar com os processos de poluição
ambiental, que muitas vezes atingem povos e comunidades tradicionais sem que
seus autores sejam identificados. Como lembrou liderança quilombola, pescadora e
24
marisqueira da Bahia: “povos estão morrendo pela poluição química. O racismo
ambiental mata sem digitais”. Assim, como salientou, permanece latente a questão:
“como criminalizar a poluição química?”, o que aponta para o processo de crescente
flexibilização e fragilização da gestão ambiental no Brasil.
Também foi denunciado o papel desterritorializante dos processos de
formação escolar sob hegemonia do ideário urbano industrial. Historicamente,
como lembrou Maicon Miguel Vieira da Silva, acadêmico e militante do movimento
agroecológico no contexto do semiárido brasileiro, a formação escolar “foi tendo um
importante papel no apagar da memória e da ancestralidade”. Esta formação
descontextualizada compromete a construção de experiências simbióticas com os
ecossistemas, fragilizando povos e comunidades em um contexto de transformações
climáticas aceleradas. Os povos e comunidades tradicionais têm muito a nos ensinar
neste sentido, como apontou o participante a partir de sua experiência no semiárido
brasileiro, em que a construção de uma perspectiva de desenvolvimento alicerçada
na perspectiva de convivência com este bioma é de fundamental importância para
garantir a permanência e qualidade de vida de seus habitantes. O fechamento de
escolas do campo, que chegam à cifra de mais de 30 mil nos últimos anos3, foi
lembrado por Maicon como elemento que dinamiza os processos de
desterritorialização, através da condução de jovens para os centros urbanos e sua
desidentificação com os territórios e modos de vida de seus ancestrais. Em
resistência a este processo, no Cariri pernambucano, conseguiram garantir a
manutenção de três escolas do campo ameaçadas de serem fechadas. Nesta luta,
como lembrou, os recursos judiciais foram de suma importância4.
3 Os números mencionados se referem a estudos baseados no censo escolar realizados em 2003 e 2013. Segundo estudo feito pela UERJ, cerca de 80 mil escolas no campo brasileiro foram fechadas entre 1997 e 2018. 4 Como destacou o participante, o fechamento/nucleação das escolas do campo no município de Sumé
tem sido marcado por retrocessos e avanços. Esse processo teve início em 2017. Em 2018 as comunidades garantiram que as escolas ficassem abertas. No ano seguinte a prefeitura conseguiu fechar 03 das 06 escolas do campo do município. Em abril de 2020 a justiça estadual emitiu sentença em favor da comunidade, ordenando a reabertura das 03 escolas que se encontravam fechadas, sob pena de multa diária para o prefeito e o secretário municipal de educação, em caso de descumprimento. Dentre as ações desenvolvidas em ato de resistência por parte das comunidades merecem destaque: abaixo assinado; mobilização de país e responsáveis no sentido de não submeter as crianças ao deslocamento para outras escolas; atos públicos; audiências públicas na Câmara de
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Entretanto, como apontou Philippe de Souza Porto, pesquisador acadêmico
do campo do direito, o judiciário não absorve as múltiplas compreensões de
território, sendo extremamente difícil operar na jurisprudência com outras
acepções, que permitam abarcar as especificidades de povos e comunidades
tradicionais. O território é incorporado no âmbito jurídico apenas em casos
específicos, com destaque para a demarcação de terras indígenas, mas, mesmo
assim, isto é feito a partir de uma perspectiva bastante restrita e colonizadora.
Os participantes destacaram, ainda, a dificuldade de se estabelecer
interações horizontais entre conhecimento tradicional e acadêmico. Mas
observaram a existência de estratégias promissoras neste sentido e sua importância
no contexto atual. As especificidades do território acadêmico, como apontou
Marcelo Firpo, pesquisador da Fiocruz e coordenador do Neepes, tensionam o
estabelecimento de diálogos interculturais mais horizontais com sujeitos de outros
territórios normalmente desconsiderados como sujeitos importantes na produção
de conhecimentos. No entanto, em sua compreensão, não devemos nos paralisar
diante desta dificuldade, mas buscar transcendê-la e construir novos arranjos
capazes de viabilizar este diálogo, em que frisou a importância de se mobilizar
diferentes formas de linguagem, em um diálogo intercultural, de fundamental
importância para enfrentarmos a crise civilizatória contemporânea.
Dário Jurema, representante da Aldeia Maracanã, movimento de povos
originários organizado no contexto da cidade do Rio de Janeiro, também salientou
seus esforços na construção de uma universidade indígena. Esta luta, como
destacou, é de fundamental importância para a valorização e resgate dos
conhecimentos de povos e comunidades tradicionais, podendo se constituir em uma
bandeira unificada: “a luta por uma universidade indígena é também a do quilombola,
Vereadores; protesto na Secretária Municipal de Educação e Prefeitura Municipal; mobilização dos Comitês Estadual e Municipal de Educação para emitir pareceres contrários ao fechamento; mobilização da comunidade universitária da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) contra o fechamento, o que possibilitou a construção de um Trabalho de Conclusão de Curso discutindo a problemática; Ação Civil pública no MP Estadual e no MP Federal, a partir de esforços da comunidade; Ação Civil Pública; denúncias em rádios e outros veículos de comunicação locais e regionais.
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povos de terreiro, ribeirinhos, caiçara. Todo quilombo é uma universidade. Ali tem todo
o saber que a gente precisa”. Essa luta visa uma “universidade” da “pluriversidade”,
como frisou.
Os participantes também consideraram ser importante aprofundar
coletivamente a reflexão em relação a continuidade das interações entre Neepes e
as experiências e movimentos de povos e comunidades tradicionais em diferentes
contextos territoriais. Nas formulações de Eliete Paraguassu: quais serão os
próximos passos para contribuir com estes territórios? Como fazer juntos e juntas
para melhorar e garantir o direito das populações permanecerem nestes territórios?
Foi salientada, neste sentido, a importância de se dar visibilidade aos conflitos
enfrentados e processos exitosos dinamizados por povos e comunidades
tradicionais em seus territórios.
Cabe observar que, ao longo do trabalho de grupo, foram desenvolvidas de
forma mais ou menos espontânea, algumas dinâmicas de trabalho e consciência
corporal, com respiração consciente, movimentos, danças e cantos em roda. Isso foi
importante nos momentos de excesso de conversas, de início de tensões com
polarizações, e também na parte da tarde, após o almoço, para ajudar a “despertar”
as pessoas.
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GT Cuidado
Tua busca é pela saúde Ou pela cura da doença que lhe surgiu? Sistema de conhecimento indígena é uma ciência viril. Respira... Cuidado. Resguardo. Te guardo (...) Reza. Riso. Luta e fogo na Trincheira! (...) Afeto Há feto
Afetividade na quebrada A fé que eu tô, Ativa Andar com ela eu vô: Farmácia Viva! A Luz que Conduz É conhecer os remédios no fundo de nossas casas Para que o SUS Crie asas E não nos impeça de voar...
(Extrato do relato poético-musical de Jessica Marcele)
(Relato gráfico-imagético de Miguel Afa)
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Os dinamizadores Marina Fasanello e Tata Edson iniciaram as atividades do
grupo com uma mística, em que cada participante se purificou com água e ervas
preparadas por representantes do FONSANPOTMA no primeiro dia do encontro.
Marina deu continuidade pedindo que todos fechassem os olhos entrando em
contato com a própria respiração, se aproximando no círculo formado pelo grupo e
sentindo uma respiração única. Contou uma história da tradição oral malinês
(África), mas que poderia ser contada pelos Munduruku na região do Tapajós.
Chamava-se de A Canção das Pessoas. Em seguida, Tata Edson convidou as pessoas
a substituírem seus aparelhos eletrônicos por um ovo, no qual deveriam depositar
suas energias e cuidado ao longo do dia.
Após a dinâmica foi apresentada a pergunta semeadora para o grupo: que
experiências de cuidado os povos e comunidades tradicionais trazem, resistem e
reinventam na proximidade com as cidades? Visou-se instigar, assim, um debate
coletivo em relação aos saberes e práticas de proteção, atenção e promoção à saúde,
incluindo cuidados a populações específicas e vulneráveis como crianças, gestantes,
idosos, pessoas em sofrimento mental, vítimas de violência e racismo.
Ao longo do dia os participantes salientaram um conjunto de experiências de
cuidado exitosas dinamizadas em diferentes contextos territoriais por povos e
comunidades tradicionais. Foram observadas, neste sentido, diferentes acepções em
relação a noção de cuidado, que reforçam sua multidimensionalidade, extrapolando
a ideia hegemônica de tratamento de doenças, das incapacitações ou do sofrimento
mental. As falas frisaram, ainda, os vínculos entre cuidado, território e alimentação,
concebidos enquanto aspectos inseparáveis. Por outro lado, foram denunciados
tensões e conflitos que fragilizam povos e comunidades tradicionais e suas práticas
e conhecimentos de cuidado.
A partir de experiência em ocupação popular organizada em torno do
Movimento dos Sem Teto da Bahia (MSTB), Rita de Cassia Ferreira dos Santos
demonstrou a importância de ações com plantas e ervas medicinais no resgate de
tradições de cuidado e sua eficácia no atendimento à problemas de saúde. Ao
estruturarem horta coletiva, em parceria com o Movimento dos Pequenos
29
Agricultores (MPA), passaram a produzir ervas medicinais, juntamente com gêneros
alimentícios, instigados por profissional da saúde que via na fitoterapia uma
alternativa para prevenir e tratar doenças. Esta iniciativa deu origem a uma
farmácia viva, através da qual tratam diversas condições com fitoterápicos: dores de
cabeça, miomas, depressão, entre outras. Além de evitar efeitos colaterais de
remédios alopáticos, a estratégia visa resgatar e disseminar conhecimentos
ancestrais. Exemplo do feito que têm conseguido nesta direção, é o de crianças da
ocupação estarem se interessando e já saberem cuidar de seus machucados e outras
doenças com folhas de bananeira.
Outra experiência emblemática acerca do potencial dos conhecimentos de
povos e comunidades tradicionais em relação aos cuidados com saúde foi relatada
por Clarinda Maria Ramos, representante do povo Sateré-Mawé. O Centro de
Medicina Indígena de Manaus, criado há dois anos, por curadores da etnia Tukano
(conhecidos como cumã), atende tanto a população indígena quanto não-indígena.
A experiência é viabilizada por doações de parceiros e as consultas são realizadas a
preços populares, garantindo acessibilidade a segmentos da população com
menores recursos financeiros. O centro trabalha apenas com técnicas indígenas de
cura, especialmente oriundas do povo Tukano, se afirmando como alternativa que
ajuda amenizar a severidade das intervenções propostas pela perspectiva
biomédica predominante entre profissionais de saúde. Como exemplo foi citado o
caso de jovem atacada por cobra peçonhenta, cujo prognóstico médico era a
amputação da perna, mas, “graças à intervenção de curador cumã Tukano”, evitou-
se que isso acontecesse.
A partir dos povos originários também foi ressaltada a
multidimensionalidade que envolve práticas e saberes de cuidado. Tonico Benites,
antropólogo e liderança Guarani-Kaiowá e atualmente professor da Universidade
Federal de Roraima (UFRR), salientou, neste sentido, que proteger a si e a cada um
dos que fazem parte das coletividades demanda que se vá além do cuidado com
corpo e mente, incorporando todos elementos que configuram o território,
passando pela espiritualidade e conexão com o que está no mundo e não pode ser
30
alcançado ordinariamente, ou seja, com os espíritos dos antepassados e dos seres
não-humanos.
As falas do grupo também reforçaram a importância das práticas coletivas de
cuidado, em contraposição à lógica individualista predominante na sociedade
contemporânea. Foram destacados, neste sentido, os laços comunitários, os
cuidados com os mais necessitados, a exemplo de jovens, idosos e mulheres, que em
muitos lugares são os/as mais vulnerabilizados/as. Esta questão, como frisou Rita
de Cassia Ferreira dos Santos, é central para a construção de “comunidades do bem
viver”.
Outro exemplo, nesta direção, foi dado por Maria Aparecida da Silva Lessa,
integrante do FONSANPOTMA, a partir da noção de maternidade nos territórios
tradicionais de matriz africana, em que cada um pode ter diversas mães e todas
cuidam das crianças. A maternidade deixa, assim, de ser uma mera relação de
consanguinidade, transformando-se em uma relação que envolve toda coletividade,
em que a responsabilidade de cuidar não se restringe ao núcleo familiar.
Outras pessoas relataram que relações assim permanecem vivas em outras
comunidades populares, como nas favelas do Rio de Janeiro, onde as crianças têm
muitas “tias” (que podem ser tanto as irmãs de seus pais, quanto uma vizinha, amiga,
comadre, liderança espiritual, professora, agente comunitária de saúde, etc.),
sempre atentas ao que fazem enquanto os pais e parentes estão trabalhando. É um
cuidado comunitário que é ameaçado quando o individualismo e a violência se
tornam mais comuns nessas comunidades.
Os participantes também observaram a importância de serem construídas
estratégias de cuidado intercomunitárias. Como apontou Lohan Santos, a partir da
experiência do Fórum de Comunidades Tradicionais de Angra dos Reis, Paraty e
Ubatuba (FCT), as articulações são fundamentais para que os cuidados com
familiares e vizinhos se estendam a outras comunidades, que podem estar
espacialmente distantes, mas vivenciam problemas semelhantes. Esta atuação em
rede tem a capacidade de fortalecer as frentes de luta em diferentes comunidades,
tanto através de intercâmbios acerca de problemáticas enfrentadas de formas
31
distintas quanto pela possibilidade de articulações mais amplas em lutas frente a
dilemas vivenciados.
Podemos observar que as falas expressaram, ao longo do dia, múltiplas
acepções em relação a noção de cuidado, a partir de experiências territorializadas
em diferentes contextos. Como exemplos emblemáticos, neste sentido, podem ser
citadas as definições: “Cuidado é não deixar ninguém passar fome, é se colocar no
lugar do outro”. “Cuidar é sentir junto, é estreitar relações, cada guerreiro que tomba,
todos os parentes choram”. “Cuidar é compartilhar, acolher e construir um mundo de
respeito, em oposição ao clima dominante de competição”.
O debate coletivo parece ter reforçado, desta forma, uma compreensão de
cuidado multidimensional, que extrapola a ideia hegemônica de tratamento de
doenças. Como destacado em diferentes falas, cuidado remete a ancestralidade e
espiritualidade, com relações afetivas intergeracionais e de gênero, comunitárias e
intercomunitárias, envolvendo resistência e luta por direitos, a exemplo de terra e
moradia. Ao mesmo tempo, cuidado foi salientado enquanto afeto coletivo, em
contraposição a lógica individualista que impera nas formações sociais capitalistas.
Por outro lado, foram denunciadas dinâmicas que tensionam saberes e
práticas de cuidado de povos e comunidades tradicionais. Foram observadas, por
exemplo, tensões entre a lógica predominante nas ciências médicas e as formas de
cuidado de povos e comunidades tradicionais. Como destacou Lilia Gomes,
pesquisadora vinculada à Fiocruz, historicamente os conhecimentos populares
sobre cuidado e saúde foram relegados a uma posição subalterna no campo das
ciências médicas, levando, inclusive, parcelas de povos e comunidades tradicionais
a perderem a confiança em suas tradições. A participante salientou, neste sentido, o
processo de colonização de tradições de cuidado ancestrais pelo conhecimento
biomédico. Como ação contra tendente, foi destacada a importância do
reconhecimento pelo SUS do conhecimento popular sobre plantas medicinais
enquanto estratégia de reconexão com tradições ancestrais de cuidado.
Além destes tensionamentos, participantes também denunciaram ameaças a
própria manutenção de povos e comunidades tradicionais em seus territórios e,
32
assim, suas práticas e conhecimentos de cuidado. Foram destacadas, neste sentido,
as ações opressivas de agentes vinculados a igrejas neopentecostais. A partir de
enfrentamentos em diferentes territórios, os participantes relataram processos de
opressão e silenciamento de formas de cuidado ancestrais em espaços em que estas
igrejas têm se disseminado. Como expôs representante do povo Sateré-Mawé, em
muitas aldeias do Baixo Amazonas o avanço do neopentecostalismo tem
enfraquecido as tradições ancestrais, a partir da demonização da cultura indígena
por parte de pastores dessas igrejas. Algumas práticas, como colocou a participante,
permanecem na memória coletiva, mas têm deixado de serem praticadas no
cotidiano, a exemplo da diminuição do uso de rezas indígenas e cantos de cura.
Maria Bernardete de Castro Montesano, da Rede Carioca de Agricultura
Urbana (Rede CAU), também salientou que a expansão de igrejas neopentecostais
tem intensificado conflitos nas áreas periféricas da cidade do Rio de Janeiro. Com
base em uma “teologia da prosperidade excludente”, como destacou a participante,
inviabilizam a possibilidade de articulações entre as pessoas e famílias,
transformando em pecado todas as demais formas de religiosidade, afetos e
cuidados.
Participantes também apontaram como, através de diferentes estratégias,
povos e comunidades tradicionais têm enfrentado estas ameaças. A partir de sua
experiência quilombola na Região Sul do Rio de Janeiro, Lohan Santos pontuou que
os efeitos negativos do fundamentalismo neopentecostal têm sido amenizados pelas
relações familiares, impedindo que diferenças religiosas se transformem em
disputas radicais. Da mesma forma, Flávia Ara'í da Silva, da Associação Comunitária
Indígena Guarani, de Paraty, destacou que a força da tradição e das relações
familiares têm sido cruciais para evitar que denominações evangélicas se expandam
nas aldeias, constituindo-se em estratégia para a preservação de formas tradicionais
de espiritualidade e cuidado.
Outra questão levantada no grupo foi o papel contraditório do Estado em
relação à saúde e ao cuidado. Como pontuou uma das participantes, se na
Constituição o Estado é considerado responsável pela promoção da saúde, no
33
cotidiano das periferias ele também promove violência, reforçando processos de
exclusão radical. Para enfrentar esta “dura realidade”, como observou a integrante
do grupo, há uma luta cotidiana contra o extermínio e a fome, em que a comunidade
tenta “cuidar dos seus”.
Participantes salientaram, ainda, outros agentes e arenas de violência, a
exemplo da violência doméstica e em relação a juventude, que exigem estratégias
distintas de cuidado. Maria Bernardete de Castro Montesano, da Rede CAU,
salientou, neste sentido, as ações que vêm desenvolvendo na Zona Oeste da cidade
do Rio de Janeiro, em que passaram a realizar “Rodas de Mulheres” na tentativa de
romper com o silenciamento, a partir da compreensão de que “é preciso debater para
cuidar”. Na região também passaram a desenvolver o programa “Juventude
Cabocla”, com oficinas de escuta de sentimentos e produção de podcasts, para
discutirem a situação em seu território e lutar contra a estigmatização. Em relação
a estes processos também foi destacado o preconceito enquanto dimensão
importante do “não cuidado” socialmente construído.
Como podemos observar, ao longo dia foram denunciados tensionamentos e
ameaças que povos e comunidades tradicionais enfrentam. Por outro lado, o debate
coletivo explicitou múltiplas práticas e conhecimentos de cuidado promovidas por
estes agentes, que apresentam instigantes pistas no tocante as estratégias de
promoção emancipatória da saúde que podem nos auxiliar frente a crise civilizatória
que enfrentamos na contemporaneidade.
34
GT Alimentação
Alimento é Reza Terra nutre e devolvemos Alimento é reza da mãe sagrada (...) Eu também planto semente crioula e colho resistência Nutrindo o meu corpo, minha mente e minha essência (...) Mercado privatizado agrotóxico TÓXICO Qualidade de vida comprometida, o fim tá próximo
Mas a planta nasce no buraco do asfalto Agricultura urbana bate de frente ocupando espaço (...) A cura vem do alimento, comer é um ritual Revolução silenciosa é compartilhar semente Levando a memória do povo que está presente
(Extrato do relato poético-musical de Sibelli Carvalho)
(Relato gráfico-imagético de Lorena Portela)
35
Após rodada de apresentações, em que cada participante resgatou sua
trajetória em relação à temática alimentação, os dinamizadores Natália Almeida
Souza e Caio de Meneses Cabral colocaram a questão semeadora para o grupo: como
a produção, circulação e distribuição de alimentos, sua qualidade e/ou carência,
contribuem (positiva ou negativamente) para a soberania e segurança alimentar dos
povos e comunidades tradicionais e das populações das cidades? A proposta visou
refletir sobre alimentação a partir das experiências dos participantes, enquanto
integrantes de instituições e movimentos relacionados com povos e comunidades
tradicionais, agricultura familiar camponesa e agroecologia, observando como têm
se dado processos de resistência e criação de alternativas na relação com as cidades.
Além disso, buscou motivar discussões em relação a alimentação em uma
perspectiva intercultural, relativa à troca de saberes e sabores, ao cuidado e à
espiritualidade.
No debate coletivo resgatou-se a noção de sociologia das ausências e
emergências, a partir do pensamento do sociólogo português Boaventura de Souza
Santos5. Conforme observado, a sociologia das ausências e emergências explicitam
a necessidade de se dar visibilidade e apontar a processos virtuosos que emergem
de diferentes territórios6. A esta proposta os participantes adicionaram, ainda, a
ideia de se pensar em uma sociologia das urgências, no tocante às denúncias de
ataques sofridos e as demandas prementes nos diferentes territórios e movimentos
sociais.
Essas reflexões instigaram o grupo a profundar três questões relacionadas a
temática alimentação: quais as experiências e processos exitosos que emergem dos
territórios em que estão inseridos? Quais as urgências dos movimentos e
experiências de que fazem parte? E, por fim, como seria possível avançar nas
interações entre pesquisas acadêmicas e experiências territoriais, tendo o Neepes
como exemplo?
5 Para aprofundar esse debate indicamos o artigo Para além do pensamento abissal. 6 Nesta direção, a sociologia das emergências busca apontar caminhos para sociedades pós-capitalistas e pós-abissais.
36
Diversos participantes salientaram a potencialidade das iniciativas que
integram em impulsionar soberania e segurança alimentar com alimentos
ecologicamente sustentáveis e socialmente justos. A experiência vinculada a Rede
CAU, promovida pelo Centro de Integração na Serra da Misericórdia (CEM), em
parceria com instituições como a AS-PTA Agricultura Familiar e Agroecologia (AS-
PTA), é emblemática neste sentido. Esta experiência emerge em um território
marcado por múltiplos conflitos e ameaças, vinculados ao tráfico, milícia e ações
estatais violentas, juntamente com a expansão urbana desordenada e avanço de
igrejas neopentecostais. Apesar disto, como pontuou Ana Santos, do CEM, a
experiência tem conseguido avançar no fornecimento de alimentos saudáveis e com
preços acessíveis para moradores da região. Uma das estratégias que tem lançado
mão é a comercialização de produtos agroecológicos sem o uso do selo de
certificação orgânica, que acaba encarecendo a produção. Desta forma, na feira que
realizam no bairro de Olaria, conseguem fornecer produtos agroecológicos viáveis
para a classe trabalhadora. Além disso, a “xepa”, isto é, o que sobra no fim da feira, é
doada para pessoas que não têm condições econômicas para adquirir os alimentos.
A experiência tem estimulado, assim, o resgate de hábitos alimentares saudáveis
entre os moradores da periferia.
Em relação aos processos exitosos territorializados em diferentes contextos,
os participantes também destacaram o potencial dos intercâmbios e trocas de
experiência entre iniciativas de produção e abastecimento de alimentos
ecologicamente sustentáveis e socialmente justos. Como pontuaram Ana Santos, do
CEM, e Robson Patrocínio, assessor técnico dos quintais produtivos, dinamizados na
Colônia Juliano Moreira em parceria com o Campus Fiocruz Mata Atlântica (CFMA),
os intercâmbios entre mulheres das duas regiões demonstram o potencial da
metodologia, impulsionando processos interessantes de um território em outro. A
partir de experiência realizada no Congresso Brasileiro de Agroecologia (CBA), as
cozinhas coletivas também foram destacadas como importante espaço de
intercâmbio e troca de conhecimentos. Neste sentido, participantes salientaram a
ideia de que: “intercâmbio é potência!”
37
A importância das sementes crioulas também foi ressaltada em relação as
trocas e intercâmbios entre ações de promoção de segurança e soberania alimentar
exitosas nos diferentes territórios. Tendo por base as experiências no âmbito da
Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), Caio de Meneses Cabral, professor da
Universidade Federal do Piauí (UFPI) ressaltou ser de suma importância motivar
agricultores a levarem estas sementes para todos os espaços que visitam, pois “na
semente tem toda a memória de um povo, que pode dialogar com a memória de outro
povo”.
Ao mesmo tempo, foram observadas diversas acepções acerca da noção de
alimentação, explicitando sua multidimensionalidade. Vanderleia Rocha, dos povos
originários Guarani Kaiowá, por exemplo, salientou que para seu povo os alimentos
são entendidos em conexão com natureza e espiritualidade, sendo impossível
dissociá-los em sua cosmovisão.
Em suas falas, participantes do grupo também denunciaram ameaças à
segurança e soberania alimentar que têm enfrentado, o que motivou um debate
acerca de questões urgentes nos diferentes movimentos e experiências.
Representante do povo Guarani Kaiowá destacou, neste sentido, suas preocupações
em relação às mudanças nos hábitos alimentares de indígenas, especialmente com
a expansão de redes de supermercados, que crescentemente se tornam o principal
canal de aquisição de gêneros alimentícios para grande parte de seu povo,
impulsionando a introdução de alimentos industrializados e, com eles, o surgimento
de diversas doenças nas aldeias.
Kota Mulanji (Regina Nogueira), do FONSANPOTMA, salientou os
tensionamentos à segurança e soberania alimentar de seu povo na atual
configuração agroalimentar, com predomínio de grandes corporações e redes
varejistas e sua capacidade de influenciar um amplo conjunto de questões, a
exemplo das regulamentações sanitárias. Como exemplo, apontou a dificuldade para
viabilizarem os animais necessários nas Unidades Territoriais Tradicionais (UTT).
Assim, frisou a importância em se “realizar estudos para demonstrar como o branco
38
está fazendo para inviabilizar os povos tradicionais, em que a alimentação é central.
Alimentação é poder!”
A problemática dos agrotóxicos também foi discutida em relação às ameaças
e tensionamentos enfrentados para se garantir segurança e soberania alimentar nos
diferentes territórios. Priscila Viana, da Comissão Pastoral da Terra (CPT) do Rio de
Janeiro, salientou as preocupações de sua entidade neste sentido: como registrar
conflitos e violências que envolvem agrotóxicos? Como pensar agrotóxicos como
expressão de processos de violência?
O direito aos bens comuns e sua importância para garantir segurança e
soberania alimentar foi outra questão frisada como urgente por diversos
participantes, com destaque para terra e água. Como pontuou representante do
Campus Fiocruz Mata Atlântica (CFMA), na Colônia Juliano Moreira o acesso à água,
tanto para abastecimento familiar quanto para irrigação, e terra, “para produzir e
para morar”, são fundamentais. Em um território em disputa, tendo em vista a
especulação imobiliária em Jacarepaguá, e marcado pela violência, que atualmente
vem aumentando com a ação de milícias, a garantia do direito aos bens comuns é
prioridade.
Além dos conflitos enfrentados, também foram ressaltadas outras demandas
urgentes, a exemplo do resgate e preservação de conhecimentos tradicionais em
relação a alimentação. Como destacou Vanderleia Rocha, dos povos originários
Guarani Kaiowá, é necessário dar visibilidade a eles, que estão registrados no saber
dos ancestrais e são conservados através da oralidade. Estes conhecimentos são de
fundamental importância para se pensar alimentação enquanto ferramenta e
estratégia de promoção da saúde, como salientou a participante.
Estratégias de comunicação, capazes de envolver outros segmentos da
sociedade em debates sobre alimentação ecologicamente sustentável e socialmente
justa, foi outro ponto destacado. Como pontuou Márcio Mattos de Mendonça da AS-
PTA: “somos maioria, mas não conseguimos falar para a maioria”. Neste sentido,
salientou a potencialidade da alimentação enquanto temática que possa ampliar o
diálogo com outros segmentos sociais e a partir da qual podem ser estabelecidas
39
pontes importantes entre diferentes movimentos, a exemplo das articulações entre
agroecologia, saúde e economia solidária.
Como podemos observar, o debate motivado pela ideia de sociologia das
ausências e emergências, ao qual os participantes salientaram a necessidade de se
adicionar uma sociologia das urgências, foi de suma importância para que se
explicitasse a riqueza das experiências dinamizadas em diferentes territórios, sua
capacidade de apontar saídas para vários dilemas com os quais a sociedade
contemporânea se depara, além de impulsionar uma discussão em relação a
questões prementes nestes territórios. Esta questão, ao que tudo indica, aponta
para a importância da perspectiva do Neepes em debater conceitos com os sujeitos
das experiências territoriais, pensando-os enquanto elemento de potência, que só
fazem sentido quando instigam reflexões com e a partir dos territórios.
Neste sentido, os participantes também debateram estratégias para se
aprofundar as interações entre Neepes e experiências e movimentos nos diferentes
territórios. Conforme questionou Caio de Meneses Cabral, da UFPI: como seria
possível darmos um passo à frente nesta perspectiva, de uma sociologia das
ausências, emergências e urgências, na relação Neepes e movimentos? Kota Mulanji
(Regina Nogueira), do FONSANPOTMA, considerou que este debate deveria partir
do entendimento de que, “na verdade, já estamos dentro do Neepes” e, assim,
“devemos apoiar o Neepes para ele poder apoiar dentro da Fiocruz e do próprio
governo nossas ações”. Neste sentido, destacou a necessidade de se pensar “qual a
nossa contribuição ao Neepes? Qual a nossa proposta de ação conjunta?” Em sua
compreensão, é importante observar que dentro da academia o Neepes busca
interagir com ecologias, epistemologias e promoção emancipatória da saúde, se
configurando em um espaço aberto para processos de construção coletiva. Por fim,
considerou que refletir acerca de uma sociologia das urgências, adicional as
ausências e emergências, seja uma importante ferramenta para se avançar nesta
direção.
Uma estratégia aventada pelos participantes para dar prosseguimento nas
interações entre Neepes e movimentos foi a possibilidade de se realizar ações nos
40
territórios. Como pontuou Márcio Mattos de Mendonça da AS-PTA, realizar o
encontro no espaço Raízes do Brasil já é subverter, “um próximo passo poderia ser a
realização de um encontro no Complexo do Alemão e em outros territórios”. Na mesma
direção, Natália Almeida Souza, da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA) e da
Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), colocou como questão ao grupo: “será
que o Neepes toparia construir um processo de oficinas nos territórios para pensar
juntos estes conceitos, permitindo que avancemos nesta caminhada coletiva?” A
participante salientou, ainda, a importância de se desconstruir a subdivisão
cristalizada entre ensino, pesquisa e extensão, fazendo com que “a pesquisa seja
educadora e a educação ensinante, e que tudo que fazemos também seja extensão”.
Participantes também destacaram críticas à postura predominante entre
pesquisadores acadêmicos em relação aos movimentos e experiências territoriais.
Vanderleia Rocha, dos povos originários Guarani Kaiowá, salientou a importância de
se denunciar a lógica de ação que predomina nas pesquisas acadêmicas, em que
indígenas são convidados a fazerem trabalho de campo, mas não para a produção de
textos, apenas dando subsídios para professores realizarem pós-doutorado. Na
mesma direção, salientou a importância de se aprofundar o debate acerca das
relações entre pesquisadores e comunidades, instigando o estabelecimento de
interações mais horizontais, éticas e de comprometimento com os sujeitos de
pesquisa.
Caio de Meneses Cabral, professor da UFPI, reforçou, neste sentido, a
necessidade de os agentes territoriais serem considerados “sujeitos nas pesquisas
acadêmicas, de pensar e dizer como serão as ações em minha comunidade, em meu
movimento”. Também salientou a importância de os sujeitos dos territórios
participarem do debate acerca de como podemos fazer as ausências serem vistas e,
a partir delas, construir novos caminhos de maneira conjunta. O Encontro de
Saberes do Neepes, em sua compreensão, é fundamental para se discutir: “como a
gente (pesquisadores e sujeitos dos territórios) pensa nossos caminhos para juntá-
los”.
41
Por fim, Ana Santos, do CEM, observou que um elemento de suma
importância para romper com relações verticais e assimétricas entre academia e
movimentos é repensar os conceitos utilizados, buscando expressões acessíveis à
todas/os e que, assim, possibilitem “um caminhar realmente juntos”. Ao mesmo
tempo, salientou a compreensão de que os agentes dos territórios devam ser
entendidos como coprodutores dos trabalhos acadêmicos desenvolvidos, dando
como exemplo cinco artigos sobre sua experiência e em que consta como autora:
“para falar da gente, a gente tem que estar junto!”
42
Terceiro dia do Encontro de Saberes: colheitas e perspectivas
Na abertura do terceiro dia do Encontro de Saberes Neepes 2019 os
participantes foram recepcionados com uma alimentação produzida por integrantes
do FONSANPOTMA, com base na cosmovisão dos povos tradicionais de matriz
africana. Como salientou Iyá Dolores Lima: “o que a gente tentou colocar ali é um
alimento que a gente quer que ele seja saudável, mas a gente perdeu o espaço deste
território que é o do plantar. Nossos corpos, dos nossos ancestrais, foram
arrancados destes espaços. Então, a gente colocou uma batata doce que a gente sabe
que ela é orgânica, a gente sabe de onde ela saiu. A gente tem um inhame que a gente
sabe de onde ele saiu, sabe que é 100% orgânico. E quando a gente coloca ali a nossa
campanha Tradição alimenta, não violenta!, a gente está falando exatamente isso,
esse alimento não vai violentar nem o meu corpo nem os de meus descendentes,
nem a terra para onde ele vai ser devolvido como produto orgânico, para semear
novas raízes e sementes. É disso que a gente está falando. Da necessidade de
entendermos que somos um corpo só, a gente fala de elementos da natureza. (...) A
gente tem como divindade a terra, como divindade as águas, como divindade o ar,
como divindade todo esse complexo que nos constitui e que está dentro de nós”.
Em seguida os três grupos de trabalho apresentaram os resultados de seu
debate coletivo. As apresentações explicitaram o potencial de metodologias
sensíveis enquanto processos de co-labor-ação no âmbito do Neepes, promovendo
diálogos interculturais entre sujeitos dos territórios e pesquisadores acadêmicos.
Ficou evidente, neste sentido, que para se abrir aos conhecimentos produzidos em
movimentos e comunidades tradicionais e camponesas, o espaço acadêmico precisa
abarcar outras linguagens.
Além dos relatos escrito-acadêmicos, os participantes apresentaram os
resultados de seus debates coletivos a partir de relatos gráfico-imagéticos (desenho
e pintura) e poético-musicais (rap, cordel e slam poetry). Como podemos observar
nos relatos audiovisuais, artistas militantes e pesquisadores se uniram-se em um
coracionar, demonstrando que sentir-pensar são estratégicos para o diálogo
43
intercultural e interdisciplinar capaz de apontar caminhos frente a crise civilizatória
que enfrentamos.
As temáticas e questões semeadoras e polinizadoras propostas parecem,
neste sentido, ter explicitado sua capacidade de portarem e espalharem sementes
de outros futuros possíveis. Em um exercício da ecologia de saberes, os participantes
versaram sobre a construção de conhecimentos e práticas emancipatórias; a
espiritualidade e o sagrado em sua relação com a vida, a natureza e a dignidade;
convivência democrática, tolerância, respeito e solidariedade nas interações campo-
cidade. Ao mesmo tempo, foi evidenciado o significado de ser tradicional, originário
e camponês diante das ameaças, transformações e alternativas em temas como
identidade, continuidade, sucessão e relação intergeracional na
contemporaneidade.
As apresentações foram marcadas, da mesma forma, por denúncias e
depoimentos sobre racismo, preconceito e o agravamento da intolerância, violência
e desrespeito contra os direitos territoriais, à vida, à moradia, à saúde e à cultura
dos povos e comunidades tradicionais e camponeses, bem como da classe
trabalhadora e moradores pobres e sem teto das cidades. Inúmeros casos de
assassinatos e ameaças aos direitos constitucionais foram relatados por
representantes de organizações indígenas, quilombolas e povos tradicionais de
matriz africana, como também de organizações que lutam por terra e moradia.
Ficaram evidentes aspectos que perpassam as disputas em vários territórios,
afetados pelas transformações no capitalismo neoliberal. Agravam-se conflitos por
terra, em um processo de resistência contra o neoextrativismo do agronegócio, da
mineração e produção de energia, bem como por espaços de moradia e práticas
espirituais, atacados pela especulação imobiliária e fundamentalismos intolerantes
e violentos, com instituições e políticas dominadas e cada vez mais frágeis. As
apresentações apontaram, neste sentido, que o momento atual exige resistência e
articulações entre movimentos, organizações, instituições acadêmicas e públicas,
em âmbito municipal, estadual e internacional.
44
Em um contexto de crise social, ecológica, democrática e institucional, os
participantes mostraram que território, cuidado e alimento se intercruzam no plano
material, político e espiritual. Estas sinergias apontam para a importância
estratégica da continuidade de experiências exitosas que celebram e alimentam com
esperança a convivência democrática e a construção de utopias.
Após as apresentações dos três grupos de trabalho foi estruturada a mesa
final de debate, intitulada: Reinventar o campo e humanizar a cidade a partir dos
movimentos sociais do campo e das cidades. Coordenada por Diogo Rocha (Neepes),
a mesa contou com a participação de lideranças de diferentes movimentos e
experiências territoriais: Valdemir Martins (Associação Indígena Guarani Jekupe
Ambá - TI Jaraguá); Ana Paula Santos (CEM e Rede CAU); Iyá Dolores Lima e Iyá Vera
Soares (FONSANPOTMA) e Rita de Cássia Ferreira dos Santos (MSTB). Instigados
pelo exercício com diferentes linguagens, as falas dos palestrantes foram marcadas
por diversas expressões poético-musicais, através das quais socializaram
impressões sobre o encontro e debateram demandas urgentes.
Valdemir Martins ressaltou a preocupação em relação a como fazer para que
as questões debatidas no encontro possam ressoar entre um público mais amplo.
Neste sentido, destacou que, apesar do debate nestes espaços de interação entre
diferentes movimentos serem de conhecimento dos que participam dos mesmos, é
necessário dar visibilidade a estas questões entre outros públicos, fazendo com que
as mesmas entrem na agenda pública. Valdemir também salientou a importância do
exercício de diálogo intercultural em diferentes linguagens, que o instigaram a se
reaproximar da poesia em sua trajetória de luta. Como pontuou: “as palavras, os
poemas, eles são uma forma de resistência, uma forma de transmitir a sabedoria, de
transmitir o conhecimento, mas que estão sendo pouco valorizados hoje em dia,
infelizmente. Dificilmente um jovem consegue ler uma poesia. (...) Até eu mesmo,
gostava muito de poesia, escrevi alguns quando tinha uns 15 anos, depois parei (...).
Quando os meus companheiros poetas estavam falando (durante o encontro), eu vi
que eu perdi essa essência, ter esse interesse pela arte. Eu agradeço novamente a todos.
Espero que a gente possa estar fazendo uma só luta”.
45
Ana Santos refletiu acerca da dificuldade e urgência em se promover a
agricultura urbana em uma perspectiva agroecológica no contexto de uma
metrópole como a cidade do Rio de Janeiro. Como pontuou a expositora: “falar da
Rede Carioca de Agricultura Urbana é falar desta cidade, que é excludente, machista,
capitalista, onde o negro não tem vez”. A Rede CAU busca “afirmar que nesta cidade
existe agricultura”, produzindo nas favelas, dizendo “não a todas estas formas de
racismo”. Neste sentido, Ana reforçou a importância da articulação entre frentes de
luta para a promoção da agricultura urbana em uma perspectiva agroecológica:
“pois não tem como você falar de agricultura urbana se você não estiver falando da
luta por moradia, da luta antirracista, da luta por direitos das maiorias”. É preciso
lembrar, como salientou a expositora, que as favelas são formadas, principalmente,
por pessoas com origens camponesas, que atualmente “não conseguem mais plantar,
pela falta de espaço”. Esse processo reforça a necessidade e urgência de se
reinventar o campo e humanizar a cidade, com estratégias que permitam “acolher,
para garantir a produção de alimentos com autonomia, uma produção agroecológica,
justa social e economicamente”.
Iyá Dolores Lima destacou a importância de alianças e estratégias coletivas
na construção de um outro mundo possível, a partir do fortalecimento de saberes e
práticas dos povos e comunidades tradicionais, em contraposição a “sociedade
machista, eurocêntrica e com esta visão capitalista antropofágica”. Como salientou a
expositora, na trajetória do FONSAPOTMA perceberam a necessidade de reforçar
sua identidade enquanto povos tradicionais de matriz africana, pois a negação das
peculiaridades desta identidade, como também de quilombolas e povos originários,
faz parte de “um processo do neocolonialismo, querendo que a gente não acredite que
a gente é o que realmente a gente é”. O Fórum tem buscado, neste sentido, fortalecer
essa identidade coletiva dos povos tradicionais, por entender que estes “têm saberes
e têm práticas que tornam possível se pensar que um outro mundo é possível”. A
cosmovisão destes povos em relação a alimentação é emblemática no tocante a sua
potência, como pontuou Iyá Dolores a partir da campanha Tradição alimenta, não
violenta! Para fazer emergir este outro mundo possível, “mudar os nós da tessitura
46
deste fazer”, como apontou, “a gente precisa construir essas alianças, essas estratégias
conjuntas, seja na academia, seja no parlamento, seja na rua, seja no campo, seja na
cidade”.
Rita de Cássia Ferreira dos Santos abriu sua fala com a potência da poesia:
A minha casa, eu conquisto pela força, conquisto caminhando e insistindo em
ocupar. Vou caminhando, seguindo em movimento, a minha bandeira ao
vento, sobe e desce sem parar. E de mãos dadas, com o meu vizinho ao lado, eu
me sinto encorajada, bem mais forte para lutar. E do confronto, tomo da mão
do sistema, meu direito à moradia, meu direito de morar. Bandeiras ao vento,
o povo em movimento, fazendo revolução. Vem companheiro, seguindo em
movimento, este é o momento, não é hora de parar. Organizar, ocupar e
resistir, este é o nosso lema e não vamos desistir. Se cai uma lágrima, fica no
peito a esperança. Pois só haverá mudança se houver revolução. O povo unido,
exigindo seus direitos, que estão no artigo 6º da Constituição.
Como salientou a expositora, nas ocupações do MSTB todos os projetos são
discutidos coletivamente. Atualmente estão debatendo a agroecologia, como
estratégia de garantir formas de sobrevivência saudáveis. Nas palavras de Rita: “por
que pensamos na agroecologia? Porque os nossos estão morrendo”. Neste sentido,
vêm articulando alimentação saudável com outras ações de cuidado tradicionais, a
exemplo da construção de uma farmácia viva, em que “existe toda uma essência, que
a gente trabalha com essas flores ou folhas, passada pelos nossos mais velhos”. Através
destas ações têm buscado construir comunidades do bem viver com autonomia,
criando “formas de sobrevivência saudável (...). Porque nós sabemos o que queremos,
não é o Estado que deve criar uma forma de vida para o nosso povo dentro da periferia.
Nós é que entendemos e sabemos falar o que nós sentimos”, como frisou Rita. Por fim,
considerou que o encontro instiga a reflexão acerca de “como o Neepes e a Fiocruz
podem contribuir conosco na construção destas comunidades do bem viver, onde de
fato nossos grilhões sejam tirados?”
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Considerações finais:
O conjunto de questões que emergiram do Encontro de Saberes Neepes 2019
estão embasando a construção da agenda de ações do Núcleo, com a definição de
temáticas e demandas a serem trabalhadas, assim como questões de pesquisa e
parcerias a serem aprofundadas. A partir de articulações com movimentos sociais e
pesquisadores de diferentes instituições, no Neepes estamos buscando viabilizar, de
forma mais pragmática, o atendimento de parte das demandas que surgiram. Em
outros casos, o foco de atuação está sendo dar maior visibilidade aos processos e
dilemas enfrentados nos territórios, não sendo possível viabilizar o atendimento das
demandas de maneira mais objetiva no curto ou médio prazo, o que não significa
que as percamos de vista. Essas questões acabam retornando de outras formas nas
produções que fazemos (como livros, artigos e audiovisuais), nas pesquisas que
conduzimos e podem ser retomadas em oportunidades futuras.
Consideramos ser importante observar, neste sentido, que as contribuições
do Neepes são limitadas não apenas pela novidade e número de profissionais
envolvidos, mas também, e em grande medida, por um contexto institucional que
impõe sérias restrições orçamentárias e de pessoal, tendo em vista os recorrentes
ataques e contingenciamentos que a ciência e os centros de pesquisa acadêmica têm
sofrido no período mais recente. Ao mesmo tempo, compreendemos que não se deva
restringir uma avaliação do Encontro em relação a resultados objetivos que o
mesmo possa gerar a cada uma das experiências territoriais de maneira isolada, o
que acabaria por reforçar um olhar extrativista em relação ao próprio encontro.
Neste sentido, entendemos ser de suma importância aprofundar as reflexões
em relação às diversas contribuições que os Encontros de Saberes do Neepes
acabam gerando, para além do atendimento de demandas específicas. Merecem
destaque, em nossa compreensão, a produção de registros audiovisuais, inclusive o
documentário em produção conjunta com cineastas da Couro de Rato. Pretendemos
que esses audiovisuais de qualidade tanto cinematográfica quanto em termos de
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conteúdos acadêmicos e políticos candentes, possam ser utilizados em diferentes
espaços e mobilizados como elemento de apoio para debates coletivos que apoiem
processos emancipatórios de transformação. Da mesma forma, a produção de
pesquisas e trabalhos acadêmicos podem propiciar com mais qualidade e
visibilidade diversas lutas territoriais, apontando temas e questões de pesquisa,
assim como posturas metodológicas relevantes para os sujeitos dos territórios e
pesquisadores.
Além disso, entendemos que os Encontros de Saberes têm o potencial de
promover instigantes trocas entre sujeitos vinculados a diferentes experiências
territoriais, o que é potencializado através do exercício com diferentes linguagens.
Os eventos fortalecem, ainda, uma perspectiva progressista em relação às
abordagens sobre saúde no contexto da ENSP/Fiocruz e nos campos das ciências
biomédicas e das ciências sociais em saúde de forma mais ampla, reforçando uma
perspectiva emancipatória da saúde e a importância de uma ecologia de saberes nas
reflexões sobre estratégias de enfrentamento da crise civilizatória com que nos
deparamos.
A partir das reflexões que surgiram do Encontro de Saberes Neepes 2019
estão sendo aventados diferentes projetos e eixos de pesquisa para os próximos
anos no âmbito do núcleo: (i) aprofundar as interações entre experiências em curso
nos territórios e o trabalho desenvolvido no âmbito do Mapa de Conflitos
Envolvendo Injustiças Ambientais e Saúde; (ii) aprofundar os trabalhos em relação
a temática agroecologia e povos e comunidades tradicionais, especialmente em
relação a povos indígenas; (iii) avançar nas discussões teórico-metodológicas acerca
das relações entre pesquisadores e agentes territoriais, sendo os encontros
reconhecidos como territórios de pesquisa; iv) aprofundar os debates acerca das
interações campo-cidade, especialmente no tocante a povos e comunidades
tradicionais nesta interseção com movimentos sociais e sujeitos coletivos
envolvidos em lutas por cidades democráticas, sustentáveis e saudáveis.
As ações desenvolvidas a partir dos Encontros de Saberes também motivam
o processo preparatório para o terceiro encontro, inicialmente previsto para o ano
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de 2021 em que visamos aprofundar a discussão em relação ao efeito do Neepes na
academia e comunidades e povos tradicionais, indígenas, camponeses, moradores
de favelas e periferias, dentre outros agentes envolvidos em lutas por justiça social,
territorial, ambiental e cognitiva. Nesse sentido, nossa perspectiva para o terceiro
Encontro de Saberes visará refletir acerca das potencialidades de atuação,
articulação e construção de redes envolvendo a academia, e o Neepes em particular,
em sua relação com movimentos e experiências de produção de conhecimentos e
experiências desenvolvidas em diferentes territórios.
Porém em 2020 surgiu a crise da pandemia-sindemia do novo coronavírus, e
diversos trabalhos foram redirecionados. Deixamos de ter encontros presenciais,
valorizamos encontros virtuais, e priorizamos artigos e reflexões voltados aos
desafios da pandemia. São exemplos os artigos: No meio da crise civilizatória tem
uma pandemia: desvelando vulnerabilidades e potencialidades emancipatórias; e o
ensaio A vulnerabilização dos povos indígenas frente ao Covid-19: autoritarismo
político e a economia predatória do garimpo e da mineração como expressão de um
colonialismo persistente. Também realizamos o vídeo-manifesto em homenagem a
Amâncio Ikon Munduruku, morto pelo novo coronavírus.
Não sabemos se no final de 2021 ou em 2022, pretendemos ter forças para
organizar o 3º Encontro de Saberes do Neepes. Esperamos estar juntos com muitas
pessoas e movimentos parceiros de lutas para continuarmos nossa missão de apoiar
processos emancipatórios por saúde, dignidade e direitos territoriais nos campos e
cidades.
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Participantes do Encontro de Saberes Neepes 2019:
Participante Instituição - Movimento Ana Paula Cavalcanti Neepes/ENSP/Fiocruz Ana Paula Santos CEM e Rede CAU Caio de Meneses Cabral Professor da UFPI e poeta Carlos Miguel da Conceição Júnior MSTB Carolina Burle de Niemeyer ENSP/Fiocruz Celso da Cruz Fonseca Quilombo Boa Esperança Clarinda Maria Ramos Indígena Sateré-Mawé e UFAM Claudia Job Schmitt CPDA/UFRRJ Daniela Calvo NUER/UERJ Dário Jurema Aldeia Maracanã Denis Monteiro Secretaria Executiva da ANA Diogo Rocha Neepes/ENSP/Fiocruz
Dominick Cristiano Miranda Salles Verdejar Socioambiental e Juventude Agroecológica AARJ
Eliete Paraguassu MPP e ANP Eulália dos Santos Oliveira MPA
Denilson Baniwa Artista indígena e relator gráfico-imagético
Felipe Addor NIDES/UFRJ Felipe Milanez IHAC/UFBA Félix Rosenberg Diretor do Fórum de Itaboraí/Fiocruz
Flávia Ara'í da Silva Associação Comunitária Indígena Guarani (Acigua, TI Paraty Mirim)
Flávio Chedid NIDES/UFRJ
Francisco Gleiciano de Morais Costa Indígena do povo Anacé tradicional de Japoara
Gabriella Araujo Figueiredo Neepes/ENSP/Fiocruz Generosa de Oliveira ANA e UNICAFES Iyá Dolores Lima FONSANPOTMA Iyá Vera Soares (Vera Beatriz Soares) FONSANPOTMA Jéssica Marcele (Jéssica Marcele Gonçalves Alves)
Atriz, performer, poetisa e escritora, relatora poético-musical
João Bento Ramos Aldeia Maracanã Ogan Marcelino (José Marcelino Vicente Ferreira) FONSANPOTMA Júlia Sarraf Neepes/ENSP/Fiocruz Juliana Moser Luiz CAPINA Juliana Sousa Mapa de Conflitos Juliano Luís Palm Neepes/ENSP/Fiocruz Katiane da Silva Tote CEM e Rede CAU
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Kelly Regina Santos da Silva Neepes/ENSP/Fiocruz Kota Mulanji (Regina Nogueira) FONSANPOTMA Leila de Souza Netto Rede CAU Lilia Gomes Fórum de Itaboraí/Fiocruz Lohan Santos OTSS
Lorena Portela Soares Militante do movimento agroecológico e relatora gráfico-imagético
Luana Carvalho OTSS Luciana Correa Lago NIDES/UFRJ Luís Carlos de Alencar Produtora Couro de Rato Luisa Albuquerque Ferrer Pinheiro Rede CAU Mãe Nalva (Virginia Lunalva M. de Souza Almeida) FONSANPOTMA
Maicon Miguel Vieira da Silva
Poeta, militante do movimento agroecológico e relator poético-musical
Marcelle Felippe Verdejar Socioambiental e Rede CAU Marcelo Firpo de Souza Porto Coordenador do Neepes/ENSP/Fiocruz Maria Aparecida da Silva Lessa FONSANPOTMA Maria Bernardete de Castro Montesano Rede CAU Marina Tarnowski Fasanello Neepes/ENSP/Fiocruz Miguel Afa (Alexandre Miguel Ferreira de Almeida)
Artista plástico grafite e relator gráfico-imagético
Natália Almeida Souza ABA e ANA Paulo Basta ENSP/Fiocruz Phillipe Porto CPDA/UFRRJ Priscila Viana CPT Renan de Oliveira Rodrigues Rede CAU
Richard Vera Poty Gabriel Associação Indígena Guarani Jekupe Ambá (TI Jaraguá)
Rita de Cassia Ferreira dos Santos MSTB Robson Patrocínio CFMA/Colônia Juliano Moreira Siba Carvalho (Sibelli de Carvalho Alves)
Compositora indígena Puri e relatora poético-musical
Tata Edson (Edson Augusto Nogueira) FONSANPOTMA Tania Pacheco Mapa de Conflitos
Tonico Benites Guarani-Kaiowá, Museu Nacional/UFRJ e UFRR
Valdemir Martins Associação Indígena Guarani Jekupe Ambá (TI Jaraguá)
Vanderleia Rocha Kañangue Aty Guasu e Juventude dos povos Guarani-Kaiowá
Vladimir Seixas Produtora Couro de Rato
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ANEXO 1 – Complemento relatos gráfico-imagéticos e poético-musicais
Complemento relato gráfico-imagético de Denilson Baniwa - GT Território
Integra relato poético-musical de Maicon Miguel Vieira da Silva - GT
Território Brasil, meu nego, deixa eu te contar, a história que a história não conta o avesso do mesmo lugar. É na luta que a gente se encontra Brasil, Meu dengo, o Neepes chegou, tem um ano,
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Com versos que o livro apagou e, desde 1500, tem mais invasão do que descobrimento, Brasil, Teu nome é Dandara E a tua cara é de cariri Não veio do céu nem das mãos da princesa Isabel A liberdade é um dragão num mar de Aracati Salve, salve os caboclos de julho Quem foi de aço nos anos de chumbo Brasil, Chegou tua vez. De ouvir as Marias, Mahins, Marielles, Malês, Procurando um lugar para falar de interculturalidade, No cuidado, na alimentação e o campo na cidade, as resistências, as existências e sua diversidade Um lugar de céu aberto, de fundo cor de anil, Que pudéssemos nos olhar, relatando o que sentiu, Encontramos este lugar nas Raízes do Brasil. Um debate dinamizado por questões polinizadoras, Refletindo o território e suas ações transgressoras, A cobiça do capital, essa força tão opressora. São tamanhos os relatos, que nos fazem refletir, Em cada gesto uma ação, nos fazendo até sentir, Reforçando a necessidade da gente (re)existir. (Re)existir na arte, (re)existir na cultura, (re)existir no alimento que vem da agricultura, (re)existir através das ervas que nos trazem tanta cura. O que é ciência? O que é revolução? Nós já temos as respostas para esta reflexão? Pois as respostas nos ensinam a andar com os pés no chão. No chão dos saberes, no chão da diversidade, no chão das resistências, no chão da igualdade, no chão dos territórios que garantem a liberdade. Um ponto de equilíbrio, Precisamos encontrar, Entre os saberes acadêmicos e também o popular. Pois a inexistência deste encontro é desafio que aponto, nos impedem de avançar. São 519 anos de lutas e resistência, já são mais de cinco séculos sem querer nossa presença no território que é nosso. É essa a nossa sentença? Quando pensamos que está bom, eles matam um de nós. Tentam nos silenciar, calando as nossas voz, e começa tudo de novo... Juntamos e organizamos o povo pra lutar contra os algoz. O Estado deu a ordem. Tá dada a ordem. A polícia pode matar. Se for preto, se for pobre, nem precisa perguntar. São 500 anos de genocídio sem previsão de acabar. Mata preto, mata índio, mata a cultura a tradição, com uma mídia partidária não há comunicação. Essa mídia que se cala, derruba os nossos no chão.
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Precisamos por um fim. O racismo ambiental que segue matando vidas sem deixar as digital, feito por estados e empresas, nenhuma delas camponesas, todas multinacional. O racismo religioso, precisamos debater. Defendemos o território para garantir o bem-viver. Precisamos nos unir, caminhando lado a lado, a academia e território, são na luta aliados, defendem o direito à vida e o alimento, que é sagrado. Nossas escritas e saberes, precisam dialogar. Ori significa cabeça na língua Yorubá. O conhecimento emancipatório faz as nossas ori pensar. Os povos e territórios, munidos de sentimento, buscam as alternativas para um projeto cem por cento. Pertencer ao território é o nosso pertencimento. Pertencer a um território com turismo alimentar, com a geração de renda sem o alimento nos matar, de base comunitária, fortalece nosso lugar. Rompamos com a lógica da ciência colonizadora, funcionária de carteira das forças opressoras. A ecologia de saberes é a questão norteadora. Usemos a internet como instrumento de ação. Comunicar o território, difundir a informação. Lembramos da importância e do direito a comunicação. Lutar de forma coletiva por uma educação contextualizada. Somente nos últimos anos foram 30 mil escolas no campo fechadas, trocando a educação do e no campo pela urbanizada. Urbanizar a educação é uma forma de desterritorializar, de perca de valores presentes no nosso lugar. Nosso povo aprendeu a deixar sempre pra lá. A violência urbana, para a gente é um grande mau. Pois é ela que determinada a nossa saúde mental, nos levando a depressão, que é do século o grande mau. Não podemos abrir mão, jamais, de denunciar, o genocídio do povo negro, sem o Estado se culpar. Em um período de três anos foram 16 pais de santos assassinados no Pará. Os povos tradicionais vivem um grande preceito, pois precisam sobreviver a um Brasil de preconceitos e lutar para garantir o acesso aos seus direitos. Território é vida, território é natureza. Do território vem a nossa força, disso eu tenho toda certeza, Dos índios, dos quilombolas e da classe camponesa. Não podemos abrir mão da nossa autonomia. A presença nos territórios que nossos ancestrais vivia. Pois se não existe território, não há agroecologia. Precisamos perceber o valor que o território tem, Enquanto a esperança não vencer, ninguém solta a mão de ninguém! Precisamos perceber o valor que o território tem, Enquanto a esperança não vencer, ninguém solta a mão de ninguém!
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Relato poético-musical de Jessica Marcele - GT Cuidado
Ovo.
Óvulo.
Útero.
Vida.
Leite.
Alimento.
Ali:
Momento.
Desenvolvimento Sustentável...
Que a alimentação saudável
Não seja objeto do mercado,
E o não-cuidado venha de quem deveria cuidar...
Que se una a academia com o conhecimento popular...
Pois se a gente é aquilo que come
Quantas vezes ce já teve fome?
Sede do que não soma mas some?!?
E consome...
Lógica mercantil:
Preta pura que pariu
Tua busca é pela saúde
Ou pela cura da doença que lhe surgiu?
Sistema de conhecimento indígena é uma ciência viril.
Respira...
Cuidado.
Resguardo.
Te guardo
Mas não aguardo,
Porque
Estamos cansados
de plantar pra classe média enquanto os nossos morrem envenenados.
Por que pobre tem que comer com agrotóxico?
É o plano:
Pra ganhar dinheiro contaminam nossos corpos.
E a propósito,
No pensamento guarani,
Estamos ligados à milhares de pessoas
Não somos seres sozinhos.
E o auto cuidado
É o primordial caminho.
Pois como integrante de um p(ovo)
Qualquer ato
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Pode influenciar a comunidade inteira..
Reza. Riso. Luta e fogo na Trincheira!
Lava leve a lavra,
Silêncio é a melhor palavra!
Ter cuidado como porta-voz
Pra não ficar na mira do algoz!
Cuidado nas relações
Buscar uma psicologia que seja capaz de ouvir,
E não somente impor padrões!
Afeto
Há feto
Afetividade na quebrada
A fé que eu tô,
Ativa
Andar com ela eu vô:
Farmácia Viva!
A Luz que Conduz
É conhecer os remédios
no fundo de nossas casas
Para que o sus
Crie asas
E não nos impeça de voar...
Criar redes,
Não permitir que hospital seja um espaço autoritário como muitas vezes,
pois Moradia não é somente entre quatro paredes.
Parece bonito mas é drama
Se o campo não planta
A cidade não janta
Essa é a trama!
O extermínio não é só no final da bala
Quantos tomaram café nessa sala?
E quantos estão jogados na vala?
Alimentação intelectual
Amamentação nunca foi individual
A guerra territorial dialoga com a guerra digital...
Entre protestos
A igreja protestante
Oprime de forma alienada
É bancada da bíblia, do boi e da bala..
Uma guerra santa anunciada!
Mas Cuidado cão bravo,
É hora da retomada...
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Sua manada a gente acerta na flechada!
Cuidado não é tutela,
Mas a união permanece
Entre o campo e a favela.
Relato poético-musical de Sibelli Carvalho - GT Alimentação
Alimento é Reza Somos o que comemos Nutrição é a palavra dita, profetizada Terra nutre e devolvemos Alimento é reza da mãe sagrada Planto quiabo, banana, coco verde e feijão Batata doce, coentro tomate e fruta pão Eu também planto semente crioula e colho resistência Nutrindo o meu corpo, minha mente e minha essência O capitalismo quer nos escravizar Equilíbrio biomítico é pra descolonizar Produção venenosa gera doença e muita dor E eles vendem remédio caro pro trabalhador Mercado privatizado agrotóxico TÓXICO Qualidade de vida comprometida , o fim tá próximo Mas a planta nasce no buraco do asfalto Agricultura urbana bate de frente ocupando espaço Somos o que comemos Nutrição é a palavra dita, profetizada Terra nutre e devolvemos Alimento é reza da mãe sagrada Lugar que é dela, plantar é seu direito E pro seu filho ela quer dar somente leito do seu peito Xarope natural, receita do seu quintal A cura vem do alimento, comer é um ritual Revolução silenciosa é compartilhar semente Levando a memória do povo que esta presente Agronegócio vem crescendo e investindo forte Agro é pop, agro é chique...não! Agro é morte Agroecologia forma horizontal Levar pro jovem periférico consciência ambiental E o povo originário empoderar Tá faltando mais um Verso pra poder rimar
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ANEXO 2 - Programação
Dia 10/12 - Raízes do Brasil (rua Áurea 80, Santa Teresa)
9h - Mística de acolhimento
9h30 - Abertura com Direção da ENSP e Presidência da Fiocruz
9h50 - Apresentação do Encontro 2019 por Marcelo Firpo (Neepes/ENSP/Fiocruz)
10h15 - Mesa: O Campo na cidade: contribuições e resistências dos povos e comunidades tradicionais e camponeses Expositores: Tonico Benites (Guarani-Kaiowá e Museu Nacional/UFRJ); Luciana Lago (NIDES/UFRJ) e Felipe Milanez (IHAC/UFBA) Coordenadora - Natália Almeida (ABA/ANA)
12h30 - Almoço
14h - Mesa: Cuidado e alimentação: Desafios no encontro do campo com a cidade Expositores: Kota Mulanji (Regina Nogueira) (FONSANPOTMA), Generosa Oliveira (ANA/UNICAFES) e Clarinda Maria Ramos (indígena do povo Sateré-Mawé e mestranda na UFAM) Coordenador - Paulo Basta (ENSP/Fiocruz)
17h - 11ª Feira Estadual da Reforma Agrária Cícero Guedes
(Largo da Carioca - Centro, RJ)
Dia 11/12 - Raízes do Brasil
Grupos de Trabalho- O Campo na Cidade: lutas por direitos territoriais, saberes e
práticas de cuidados e alimentação em sua relação com a vida, justiça e
espiritualidade
9h - 1ª Sessão de Oficinas de trabalho sobre Território, Cuidado e Alimento (para convidados)
12h15 - Almoço
13h30 - 2ª Sessão de Oficinas de trabalho sobre Território, Cuidado e Alimento (para convidados)
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Dinâmica 12/12 - Auditório Térreo da ENSP/Fiocruz
9h - Plenária com apresentação dos relatos oral, gráfico-imagético e poético musical dos grupos sobre território, cuidado e alimentação com debate final.
12h - Almoço
13h30 - Mesa: Reinventar o campo e humanizar a cidade a partir dos movimentos sociais do campo e das cidades
Expositores: Valdemir Martins (Associação Indígena Guarani Jekupe Ambá - TI Jaraguá); Ana Paula Santos (CEM e Rede CAU); Iyá Vera Soares e Iyá Dolores Lima (Fonsanpotma) e Rita de Cássia Ferreira dos Santos (MSTB).
Coordenador: Diogo Rocha (Neepes)
15h30 - Encerramento: Coordenação do Neepes, Direção da ENSP e Presidência da Fiocruz
16h - Lançamento de livros com Saberes e Sabores