O AUTOMÓVEL, A MODERNIDADE E A BUSCA DA TOTALIDADE
SERBENA, C. A. . O automóvel, a modernidade e a busca da totalidade. In: III Congresso Internacional dePsicologia e IX Semana de psicologia Coletividade e Subjetividade na Sociedade Contemporânea, 2007,Maringá. Anais do III Congresso Internacional de Psicologia e IX Semana de psicologia Coletividade eSubjetividade na Sociedade Contemporânea. Maringá: UEM, 2007. v. cd-rom.
Carlos Augusto Serbena (UFPR)
Resumo
Nesse artigo é realizada uma reflexão sobre o significado e a carga simbólica do automóvel nasociedade atual. Isso é feito considerando a cultura de massa como uma nova mitologia econfigurando um novo imaginário, conforme E. Morin, mas constituído a partir dosarquétipos e do inconsciente coletivo de C. G. Jung e G. Durand. Desse modo, o automóvelmoderno recebe mesma carga simbólica presente nas imagens míticas dos carros de deuses ede heróis sendo um sendo um símbolo do arquétipo do Si-Mesmo ou Self, do mundo, datotalidade e de sua busca. O motorista remete ao antigo herói-condutor e ao ego; a mobilidadee o transito apontam para a jornada do herói, uma viagem em busca de si mesmo que implicaem sair do mundo comum, entrar no fantástico, ultrapassar provas e desafio e, desse modo,transformar-se. Nesse sentido, apoiado em M. Maffesoli, interpreta-se que a temática doautomóvel e da sua pretensa mobilidade ele representam simbolicamente também uma formade escape da lógica econômica e utilitarista da modernidade e propicia um espaço lúdico, deliberação e de “êxtase” para o sujeito onde ele pode assumir outra identidade oupersonalidade, diferente da opressora persona social. Isso está na base das manifestações demassa da contemporaneidade Entretanto, esse “êxtase” de celebração da vida na conjunturaatual com a degradação ecológica, a poluição, a violência no trânsito torna-se uma celebraçãoda destruição e da força dissoluta das pulsões humanas.Palavras-chave: simbolismo do automóvel, imaginário, modernidade.
A motivação e a idéia dessa reflexão sobre o automóvel vieram inicialmente da leitura
de uma reportagem em uma revista semanal de Luiz Monteiro C. da Costa sobre o automóvel
com título e chamada bastante sugestivos, a saber: “O totem do capital – o automóvel é um
dos propulsores do desenvolvimento contemporâneo, mas a paixão desvairada por ele ameaça
a natureza e a civilização”. Eles resumem e exprimem o plano onde se insere o automóvel, na
a questão da modernidade, das condições sociais, da ecologia, das relações econômicas e da
própria cultura e mobilidade atual.
O artigo inicia com alguns dados e reflexões interessantes sobre o trânsito e seu
principal motor – o automóvel. O jornalista escreve:
No mundo, os acidentes matam 1,2 milhão de pessoas por ano e ferem ouincapacitam outros 50 milhões. O custo material dessas tragédias é 518 bilhões dedólares por ano – 65 bilhões só nos países periféricos, mais do que recebem emajuda externa. Segundo a Organização Mundial da Saúde, são a segunda maior
causa de mortalidade global dos 5 aos 29 anos (depois das infecções respiratóriaspara as crianças e da Aids para os jovens) e a terceira dos 30 aos 44 (depois da Aidse da tuberculose). Nos países ricos, são a primeira causa até os 44 anos.Do espaço disponível nas cidades dos EUA, 43% destina-se a ser usado não porseres humanos, mas por seus ídolos e algozes mecânicos: 33% para ruas e avenidas,10% para estacionamentos. Considerando que há nesse país 770 automóveis pormil pessoas, pode-se dizer que cada carro dispõe de mais espaço para semovimentar do que cada pessoa dispõe para descansar, divertir-se, trabalhar eguardar o restante de suas posses. Como se chegou a isso? (Costa, 2007).
Esse artigo é uma tentativa de abordar alguns aspectos dessa questão e inicia-se
concordando como o título, o automóvel é um totem do capital. Nessa última frase imbricam-
se dois campos: o religioso, pelo totem, e o ideológico-social, pelo capital. O automóvel há
muito já se tornou um elemento fundamental da cultura de massa da modernidade, inclusive o
seu design e fabricação já atingiram, segundo alguns estudiosos, o estatuto social de uma
criação artística, pois alguns automóveis são considerados como uma obra de arte sendo
expostos em museus e galerias.
Para compreender o alcance da cultura de massa ou indústria cultural, observa-se que na
década de 1960 completou-se um processo de expansão da civilização industrial e urbana nos
padrões ocidentais modernos por todo o globo (Hobsbwam, 1995) e o pensador da
complexidade E. Morin (1977) denomina esta colonização de horizontal, uma primeira
industrialização da sociedade por todo o globo. Ao mesmo tempo, inicia-se uma segunda
industrialização, uma colonização vertical, cujo alvo é o domínio interior do homem. O
terreno é a cultura, as mercadorias não são mais materiais, mas culturais.
Esta colonização vertical se realiza dentro de uma nova cultura – a cultura de massas
(CM). Seu embrião está no surgimento de uma imprensa de rádio e papel, que se procura
dirigir ao maior público possível. Isto ocorre a partir da década de 30, inicialmente nos
Estados Unidos e depois nas demais sociedades ocidentais. Ela se constitui de forma diferente
das culturas tradicionais – as culturas nacionais e religiosas. Nas culturas tradicionais, o
folclore, contos e ritos desempenhavam um importante papel social. A expansão da sociedade
industrial modificou a sociedade de modo que o espaço ocupado pelo folclore, ritos e contos
foi substituído progressivamente pela CM. Este não é um processo único e homogêneo. Nas
sociedades complexas modernas essa cultura possui caráter integrador, ocorrendo um
sincretismo das diferenças culturais realizando uma homogeneização.
Assim, pode-se definir CM como a cultura que é manufaturada conforme “as normas
maciças da fabricação industrial, destinando-se a uma massa social [...] constituindo um corpo
de símbolos, mitos e imagens concernentes a vida prática e à vida imaginária[...]
acrescentando-se à cultura nacional, à cultura religiosa, à cultura humanista” (Morin: 1977,
p.16) e que compete com essas culturas.
Ela apóia sua tendência de universalização no imaginário comum da humanidade, pois
“um homem pode mais facilmente participar das lendas de outra civilização do que se adaptar
à vida desta civilização” (Morin, 1977, p. 45). A CM absorve certos temas do folclore e
universaliza-os, com ou sem modificação, construindo um novo folclore com fragmentos dos
folclores regionais, étnicos e nacionais.
Desse modo, o imaginário que aparecia através das mitologias tradicionais não
desapareceu, mas modificou a sua forma. Estas mitologias foram substituídas pela idolatria
dos cultos de personalidade, pelas mitologias políticas ou filosóficas e pela iconografia
publicitária (Durand, 1984). O totem, um objeto que representa um deus ou uma potencia
divina que possui um parentesco estreito com o homem, ao qual os crentes e sacerdotes
sacrificavam animais, colheitas e tempo, aparece agora na iconografia publicitária de novas
maneiras em alguns produtos da era industrial moderna, no nosso caso, o automóvel.
Tal como o totem, ele torna-se depositário de uma atenção, representações e
significações que ultrapassam o caráter simplesmente utilitário e material do mesmo. O objeto
“automóvel” passa a aludir e algo além dele e, para entender a sua significação torna-se
necessário interpreta-lo ou realizar uma hermenêutica. O resgate da validade da interpretação
e da significação pode ser atribuído a S. Freud (Durand, 1988).
Ele constituiu uma teoria da psique humana e um sistema de interpretação do
significado dos atos e objetos a partir da prática clínica, da interpretação dos sonhos e das
falhas de linguagem e do humor popular, entretanto restringe o campo do simbolizado
principalmente à sexualidade. Esta, entendida como busca de satisfação da pulsão sexual e das
formas e estruturas de relacionamento decorrentes disso. Neste contexto, o totem, conforme
explica Freud em “Totem e Tabu” (1913/1996) aparece como a primeira forma de
representação simbólica do Pai e, consequentemente, da potencia masculina (falo) e
relacionada ao complexo de Édipo, isto é, da proibição do incesto e as vicissitudes da pulsão
sexual ao abandonar a satisfação infantil ligada à mãe e constituir um laço social mais amplo.
Assim, segundo Chemema (1995), os símbolos em psicanálise, diversamente do
contexto clínico onde apresentam uma interpretação individual e particular, possuem certa
homogeneidade que tornam fecunda a análise de sua presença na cultura. Inclusive, isto
permitiu estabelecer nos contos e nos mitos uma simbologia análoga a existente nos sonhos.
Considerando o destacado papel do falo e da sexualidade na abordagem freudiana, o objeto
alongado tende a representar o membro masculino. Nesse sentido, culto ao automóvel poderia
ser uma sublimação da pulsão sexual em direção a um objeto socialmente aceitável, pois
automóvel, como símbolo fálico1, possui os atributos de forma e função que se relacionam ao
mesmo.
Entretanto, apesar de esclarecedora, essa interpretação é controversa, pois reduz a
multiplicidade de significados possíveis a um gama estreita relacionada com a sexualidade e a
relação paterna, vistos como a origem, fonte e determinantes da consciência humana. Frente a
isso, coloca-se uma interpretação alternativa e complementar que considera a finalidade ou
objetivo do ato, comportamento ou fantasia para a consciência.
Assim, a partir da origem ou da finalidade da consciência, instauram-se duas formas de
compreender a experiência simbólica, duas hermenêuticas e ocorre um “conflito de
interpretações". Uma “desmitificadora” ou “redutora”, considerando os símbolos e imagens,
no caso o totem e o automóvel, como uma falsa realidade que deve ser desmascarada e outra,
“desmitologizadora”, abordando os símbolos e as imagens como aberturas para uma
experiência original e plena, para a epifania de um mistério (Ricoeur, 1969/1978; Palmer,
1969/1996). Essa última hermenêutica é que considera a imaginação e símbolo em todos os
seus aspectos criativos e autônomos, correspondentes à progressão da libido e ao movimento
criativo da psique e pode ser vista também como “instauradora” ou “amplificadora”. Nesse
sentido o símbolo – nesse caso o automóvel - é considerado como algo que remete a um
indizível, oculto e possuindo múltiplas significações, ou, em termos psicológicos, a uma
imagem arquetípica que ultrapassa ao ego. Essa caracterização ou definição do símbolo
mostra a dificuldade de compreensão e de abordagem do símbolo, pois ele inclui uma
dinâmica relacional entre a consciência e o inconsciente e uma função de mensageiro entre
essas duas instâncias psíquicas.
Para compreender isto é importante distinguir as diferentes funções da imaginação.
Existe uma imaginação reprodutora, que é determinada pelos processos perceptivos e
1 O psicanalista português Ricardo Pina em seu blog (2007) apresenta algumas idéias interessantes que merecemcitação: “Pretendo aqui lançar uma hipótese que postula a existência de uma atribuição simbólica do automóvel,enquanto símbolo fálico. Esta hipótese tem como fundamento o facto de que o automóvel é um conceitocarregado de atributos de potência, afirmação, volume e vigor. Para isto penso que muito contribuem as medidasempregues para mensurar a qualidade do motor do automóvel: a cilindrada, medida em cm3, e que portantoapela às noções de tamanho e de volume; e os cavalos, animais carregados de simbolismo viril. Uma das razõesque me chamou à atenção para este facto foi a conhecida estima que o sexo masculino nutre pelos automóveis.Genericamente, através dos media, os homens devoram as últimas novidades de engenharia automóvel, dosmodelos mais recentes e competitivos, dos motores de última geração. É também do conhecimento popular arelação íntima que o homem tem com o seu próprio automóvel. Note-se que, evidentemente, isto aplica-se deuma forma generalista, pois nem todos os homens têm especial afeição por automóveis. Penso que (e volto aressalvar, de uma forma geral) o automóvel é, para os homens, um atributo fálico, uma representação devirilidade que assume especial importância no momento da condução, na qual, aliás, encontro vários pontos deexpressão do acto sexual.”
funciona como uma memória ou reprodução do real, e uma imaginação criadora designando a
imagem imaginada, vinculada a uma função do irreal, ao domínio e atividade dos arquétipos,
com uma função prospectiva e operando pela sublimação (Bachelard, 1948/2001). Essa
sublimação não é a mesma de Freud, mas uma sublimação pura que não se liga aos impulsos
ou desejos, que está ligada a uma transcendência e de uma novidade especialmente visível na
linguagem poética (Bachelard, 1957/1974: 349). A imaginação é dinâmica e criadora, a
psique funciona através da imaginação e ela possibilita unificar as antinomias, especialmente
as próprias do homem como entre espírito e matéria, entre o animal e os deuses, pois
“permite-nos compreender que algo em nós se eleva quando alguma ação se aprofunda – e
que, inversamente, algo se aprofunda quando alguma coisa se eleva” (Bachelard, 1943/2001:
109). Assim, há uma função criativa da imaginação no relacionamento do indivíduo com a
realidade, pois ela é um elemento relativamente autônomo, com uma dinâmica própria e
criativa. O sujeito não controla a imaginação e as imagens acontecem ao indivíduo. Neste
enfoque, a imaginação não é resultado ou resíduo da percepção ou de alguma outra função
psicológica, mas possui a propriedade de integrar, através da função transcendente e do
processo de simbolização, os diversos campos da existência tais como pensamento, ação e
emoção em uma experiência significativa (função transcendente e de simbolização) – o que o
indivíduo faz, é sentido e entendido de forma plena. A mediação entre estas esferas é
realizada através do símbolo. Nesta concepção, ele é vivencial, polissêmico, liga-se às
imagens, remete a um significado intangível e que não é passível de ser traduzido em
palavras, sendo definido como a melhor expressão possível de algo relativamente
desconhecido (Jung, 1949/1991).
Desse modo, as diversas teorias do pensamento tais como a Psicologia Analítica de C.
G. Jung, a antropologia do imaginário de G. Durand, o estudo da imaginação de G. Bachelard
(1985) e o estudo comparado das religiões enfatizam o papel da imaginação no
relacionamento com a realidade. A imaginação é considerada como um elemento criativo e
relativamente autônomo em relação ao sujeito, pois as imagens aparecem ao indivíduo e ele
não as controla e o seu conjunto forma o campo do imaginário. Assim, a abordagem da
atuação do símbolo e da imaginação formam o campo do imaginário. Ele é similar ao
conceito de inconsciente coletivo de C. G. Jung e constitui o
“o conjunto das imagens não gratuitas e das relações de imagens que constituem ocapital inconsciente e pensado do ser humano. Este capital é formado pelo domíniodo arquetipal – ou das invariâncias e universais do comportamento do gênerohumano – e pelo domínio do idiográfico, ou das variações e modulações do
comportamento do homem localizado em contextos específicos e no interior deunidades grupais” (Teixeira Coelho, 1997, p. 212).
Neste sentido, ele antecede aos conceitos, às idéias, às ideologias e a todas as
representações e produções humanas simbólicas, sendo o substrato do qual elas emergem, “é
o conjunto das imagens e de relações de imagens que constituem o capital pensado do homo
sapiens – aparece-nos como o grande denominador fundamental onde vêm se encontrar todas
as criações do pensamento humano” (Durand, 1997: 18).
No imaginário, a imaginação é criativa, autônoma e opera com símbolos, isto é, uma
imaginação simbólica que possui um sentido no funcionamento da psique como um todo. Ela
possui uma função “biológica”, auxiliando ao homem pensar e suportar a morte e a finitude
por meio da imaginação da morte como um repouso, um sono ou um descanso, ela eufemiza a
morte; uma função de equilibração psicossocial que ocorre através da resolução de antítese e
das oposições da realidade por meio da função transcendente dos símbolos; uma função
ecumênica ou de união dos homens por meio do contato com as imagens e símbolos
universais da espécie humana e da comunhão que isso provoca; e por último, uma função
teofânica, na qual os símbolos e as imagens se tornam uma abertura no mundo temporal para
o mistério, o sagrado e a eternidade (Durand, 1988).
Sendo o homem um animal simbólico, “todo o cosmos é um símbolo em potencial. Com
sua propensão para criar símbolos, o homem transforma inconscientemente objetos ou formas
em símbolos (conferindo-lhes assim enorme importância psicológica)” (Jaffé, 1964/1986,
p.232). Assim, qualquer objeto, fato ou acontecimento pode assumir uma significação
simbólica, sejam objetos naturais como pedras, vales e lagos; formas geométricas ou
abstratas, ou mesmo objetos fabricados pelo homem tais como navios, fábricas e o automóvel.
Portanto, o automóvel ou carro possui também uma função simbólica. Isso já ocorria
anteriormente, pois “antes de proporcionar um meio de transporte, o carro foi veículo das
procissões rituais: passeava o símbolo do Sol ou a imagem do deus solar”. (Eliade,
1956/1983, p. 16).
Segundo Chevalier & Gheerbrant (1989) o carro, na forma de uma carruagem puxada
por animais ou seres míticos é uma imagem que aparece em quase todas as culturas, mas
devem-se distinguir o condutor ou modo de condução do veículo, o veículo propriamente dito
e os seres atrelados ao mesmo. Na China, representa o mundo, sendo também associado ao
Sol, principalmente na Índia com o culto de Mitra. Outro significado é o de consciência ou
ego, pois, tal como a consciência, ele apenas existe em um conjunto de peças. O carro
também pode ser conduzido por um herói, como na epopéia irlandesa e alguns heróis gregos.
Diferenciando-se o carro do seu condutor, ele se relaciona a um “segundo personagem [...]
que representa o conjunto de forças cósmicas e psíquicas a conduzir; o condutor é o espírito
que as dirige” (Chevalier & Gheerbrant, 1989, p. 193). A imagem do carro solar
representando o deslocamento do Sol também é muito freqüente. A trajetória do Sol une as
duas linhas opostas do horizonte e, desse modo, é o veículo das divindades identificadas com
o astro-rei,, tasi como Apolo, Mitre e Átis. O carro celeste também pode ser a da divindade
soberana, como Zeus, e, nesse caso, o carro representa o capricho divino que distribui do céu
tanto as bênçãos como as infelicidades.
O tema do carro como representando o mundo, a totalidade e um veículo para a
transformação aparece também na descrição feita por C. G. Jung (1954/1985) do simbolismo
em um tratado alquímico. Nesse tratado, a serpente, ou o inconsciente, deve ser presa no
carro, representando a ligação da psique com o mundo. Com o carro permanecendo parado,
indicando o estabelecimento de uma relação entre a vida material e a imagem por meio da
introversão; até que saiam vapores ou ocorra uma transformação da consciência ou
sublimação. Após isto, carro não se movimenta até secar, indicando o final da transformação
do ego com a sua conscientização dos conteúdos transformados e integrados no mesmo, e
possa rodar novamente, ou seja, a consciência volte a atuar no mundo. Assim, o carro da
serpente é “um símbolo da substância do arcano e da quintessência, do éter que contém os
quatro elementos, e simultaneamente uma imagem de Deus ou talvez mais precisamente uma
imagem da anima mundi” (Jung, 1954/1985, p.199).
O carro também aparece na carta número 07 do tarô de Marselha, como um jovem rei
dentre de um coche sendo puxado por dois cavalos fogosos, mas que não se encontram sob
controle do jovem rei, encontrando-se entre a carta 06- Enamorado e a carta 08-A Justiça. Na
carta anterior, o jovem rei, representando o ego encontra-se em conflito, no meio de duas
mulheres; enquanto a carta posterior apresenta-o sentado em um trono e, segundo Nichols
(1991) remetendo a um sentimento de equilíbrio, como o próprio nome da carta indica.
Assim, o carro encontra-se relacionado a uma situação de conflito e a uma busca de equilíbrio
e completude.
Essas imagens de carros são oriundas de mitos, entretanto também se relacionam com os
automóveis modernos, pois “tudo pode assumir uma significação simbólica” (Jaffé,
1964/1986, p. 232). Os objetos manufaturados podem ser colocados em uma dimensão
simbólica ou mítica desde que se tornem modelos e sejam depositários de uma forte carga
emocional ou de projeções inconscientes e, desse modo, o automóvel encontra-se relacionado
com a transformação e a busca de equilíbrio e totalidade.
A busca pelo sujeito de equilíbrio, de completude e em direção a totalidade implica na
constituição de um significado existencial que está dentro do processo global de
desenvolvimento da psique e da personalidade que é denominado pela Psicologia Analítica de
C. G. Jung como individuação, sendo conceituado como:
o processo de formação e particularização do ser individual e, em especial, é odesenvolvimento do indivíduo psicológico como ser distinto do conjunto, dapsicologia coletiva [...] um processo de diferenciação que objetiva odesenvolvimento da personalidade individual (Jung, 1986, §426)
Este processo de diferenciação é representado pela jornada do herói, o condutor do
carro, e pressupõe um relacionamento entre o coletivo e o indivíduo. Este coletivo é tanto
externo, na forma da cultura, da sociedade com seus papéis e normas, como interno, composto
pelos processos instintivos e os padrões culturais internalizados.
Aparentemente o indivíduo neste processo de diferenciação está em oposição ao
coletivo e à norma social. Esta oposição entre indivíduo e sociedade é aparente, pois a
individuação pressupõe a vivência do indivíduo em sociedade, mas não a sua identificação
com a mesma. O indivíduo parte dos papéis, normas e regulamentos sociais, e elabora uma
síntese própria, adequada à sua vivência social e psicológica, “o caminho [desenvolvimento]
individual jamais é uma norma. A norma surge da totalidade dos caminhos individuais”
(Jung, 1986, §427).
O indivíduo deve adaptar-se pelo menos o mínimo necessário para viver em sociedade,
adquirir sua cultura, regras de convivência e ser socializado, isto é, elaborar uma identidade
social ou persona. Após esta etapa de “adaptação social”, pode ocorrer a diferenciação
psicológica do indivíduo. Neste processo ele não está contra as normas sociais e significações
coletivas, mas orientado nelas de outro modo. Passa inicialmente da identidade com as
normas sociais para identificação com elas e toma consciência das mesmas ao final do
processo. Neste ponto o indivíduo pode realizar uma confrontação consciente entre as normas
sociais e seus próprios desejos e reflexões adquirindo liberdade e autonomia pessoal, se
diferenciando ou não do coletivo. A individuação não leva o indivíduo ao isolamento social,
mas a um relacionamento mais abrangente e construtivo.
Este processo não ocorre de forma linear, em apenas uma trajetória. A imagem de uma
espiral é mais adequada, pois existem vários graus de consciência das normas, de autonomia e
imersão no coletivo (identidade com as normas sociais e significados coletivos). O indivíduo
se moveria entre dois pólos: a determinação ou identidade com o coletivo e a autonomia
individual. Ele implica em tomar consciência da realidade interna da psique, com as figuras
internas ou estruturas arquetípicas da realidade. Assim, inicialmente o ego entra em contato
com a sombra, composta por afetos, desejos, valores e habilidades não desenvolvidos,
rejeitados e reprimidos; após este confronto a consciência contata a figura do animus, se for
mulher, e anima, se for homem. Estas figuras são imagens psíquicas do sexo oposto do
indivíduo e que existem no seu inconsciente e operam influindo nos relacionamentos com o
sexo oposto, para onde são projetados, e sobre a consciência diretamente. Possuem muitas
faces e são representadas por muitas figuras coletivas: Afrodite, Helena, Maria, Atena entre
outras para a anima e Alexandre, Hércules, Zeus, Barba Azul entre outros para o animus. A
anima e o animus, por serem o oposto da consciência e enquanto princípios masculino e
feminino podem operar como “guia da alma”, isto é, como mediadores entre a consciência
egóica e o inconsciente, sendo intermediários na sua relação com o Self, Sim-Mesmo ou
totalidade psíquica. De forma oposta, podem influenciar de forma negativa o ego, por meio de
estados de humor e pensamentos percebidos como absolutos. Por último, após a consciência
estabelecer uma relação produtiva com a anima ou animus, ela entra em contato com o Self ou
Si-mesmo, o arquétipo da totalidade, fonte de energia da psique e princípio de ordenação da
psique como um todo. Neste momento, a consciência percebe claramente algo maior que si e
que opera de forma independente, muitas vezes direcionando a sua existência (Jung, [1930-
1945]/1986 & Samuels et all, 1988).
Este processo pode ser representado simbolicamente pela jornada ou aventura do herói
em suas conquistas e crescimento, com o herói representando o ego e as suas lutas e batalhas
figurando os desafios que o ego deve enfrentar e superar. Neste sentido, o herói é uma das
figuras fundamentais do imaginário humano e do inconsciente coletivo e o seu veículo, a
carro conduzido por ele, um objeto que pode mobilizar intensamente as emoções e os afetos.
Assim, além do sentido possante, viril e fálico atribuído pela Psicanálise ao automóvel,
pode-se compreender também o seu oposto manifesto pelo cuidado e a importância atribuídos
aos automóveis por seus donos, como sendo uma espécie de companheira ou amante, isto é, o
carro simbolicamente como uma figura “feminina”. Desta maneira, “o automóvel é, também,
outra espécie de propriedade habitualmente feminizada - isto é, que se pode tornar o foco de
projeção da anima de muitos homens. São acariciados e mimados como a mais querida das
amantes (Von Franz, 1964/1986, p.183).
Sendo depositário da projeção da anima, o automóvel representa um elemento que
confere sentido, significado e motivação para o indivíduo, uma maneira dele se “sentir mais
vivo” e “mais inteiro e completo”, também é atribuído a ele uma parcela importante da
identidade do sujeito e ocorre uma ligação libidinal intensa e inconsciente entre o objeto
automóvel e o próprio sujeito.
A imagem do veículo e do seu condutor completa um quadro com a temática da viagem,
aventura ou jornada do próprio sujeito, o “herói” ou condutor do veículo. Deve-se salientar
que a jornada do herói quase sempre se caracteriza por uma saída da normalidade ou do
mundo comum e conhecido, uma marcha em direção ao desconhecido, maravilhoso e
fantástico, isto é, uma aventura (Campbell, 1990; Jung, 1924/1986). Desse modo, a temática
da aventura está intimamente ligada ao mito do herói.
A aventura, a saída do mundo cotidiano e comum em uma viagem rumo ao
desconhecido e ao fantástico é justamente o início do caminho para alguém se transformar em
um ser especial, um herói e realizar sua jornada. O simbolismo da viagem é abundante, mas
pode ser resumido na "busca da verdade, da paz, da imortalidade, da procura e da descoberta
de um centro espiritual" (Chevalier & Gheerbrant, 1999, p. 951). Na China, as viagens
organizam-se em direção às Ilhas dos Imortais que correspondem ao centro do mundo; na
Idade Média, a busca da taça que recebeu o sangue de Cristo e simbolizava a perfeição e a
plenitude originou as aventuras do Graal; e na mitologia grega temos as viagens de Ulisses,
de Enéias e dos Argonautas entre tantas outras em busca de conhecimento ou de tesouros. Ela
também assume a forma de elevação espiritual como no budismo por meio da sucessão de
vidas, na viagem de Dante e nas diversas peregrinações existentes no mundo. Assim, a
viagem manifesta uma insatisfação que gera a procura de novas perspectivas, de novas 193
experiências e de mudança interior, possuindo também um caráter iniciático. Entretanto, ela
também pode significar uma fuga do indivíduo e, neste caso, ele procura aquilo de que foge:
si mesmo. Desse modo, a jornada torna-se o símbolo da recusa em aceitar a si próprio
(Chevalier & Gheerbrant, 1999; Jung, 1924/1986). Portanto, o sentido último da viagem é ao
interior de si mesmo.
Isso pode ser um componente fundamental para compreender a presença marcante da
imagem e do desejo do automóvel, de possuí-lo e de dirigi-lo, pois A primeira etapa da
aventura é desligar-se das amarras e dos papéis exercidos no cotidiano, é poder sair do mundo
comum e conhecido e poder tornar-se outra pessoa ou personagem.
Talvez no ato de possuir um automóvel, de dirigi-lo e de “pegar a estrada”, exprima-se o
desejo de errância ou de aventura. Eles são necessários a todo indivíduo e a toda ordem social
para retomar a dialética e o movimento entre o estático e o dinâmico, pois a burguesia, o
Iluminismo e a Revolução Industrial afirmaram o pólo estático subjetivamente, no indivíduo
racional por meio da identidade individual, que é limitada e fechada sobre si mesma. Por
outro lado, o pólo dinâmico e da circulação materializou-se externamente no ideal jurídico e
na organização econômica e social (Maffesoli, 2001).
Com o esgotamento dessa dialética entre o indivíduo estático e o meio social dinâmico,
o indivíduo "se torna uma prisão moral, uma espécie de pequena instituição de segurança na
qual, pelo viés da educação, da carreira profissional, de uma identidade tipificada, a pessoa se
fecha longamente" (Maffesoli, 2001: 81). Nesse sentido, o território individual torna-se uma
prisão em vez de ser um fundamento para a exploração de novas potencialidades e vivências
da pessoa, ativando a imagem arquetípica do nômade e o desejo ou pulsão da errância ou
aventura.
Esse impulso manifesta-se principalmente quando a dialética entre os pólos estático e
dinâmico não funciona mais. Considerando que atualmente a noção do indivíduo fechado em
si, auto-suficiente e racional está esgotada, há necessidade de negar este pólo, transgredir a
situação atual e romper as amarras do individualismo. Isso ocorre pela imersão no impulso
inconsciente da errância e recuperando o conflito inicial entre o estático e o dinâmico, entre o
instituído e o instituinte, entre o desejo de fixar raízes e de partir em busca de aventuras. Esse
conflito é uma marca trágica da existência, na qual o conflito e a tensão são permanentes e
incompletos e assim a imagem do herói transforma-se naquele que sai pelo mundo, no
aventureiro sem destino e livre para usufruir o mundo.
Desse modo, de forma paradoxal, para descobrir a si mesmo o nômade ou aventureiro
rompe com uma identidade para perder-se no mundo, "uma realidade remetendo à iniciação
ou à aprendizagem constante" (Maffesoli, 2001: 93). O indivíduo não consta mais de uma
identidade única e fechada, definida a partir de um princípio transcendente e universal, mas
volta-se para a materialidade dos seus impulsos e desejos com a sua devida expressão. Isso
levou alguns autores a interpretar esse fenômeno como acentuação do narcisismo, mas, nesse
caso, não se concebe que isso é próprio do nômade: explorar novos territórios, novas formas
de ser e de sentir e que o mimetismo e a teatralização são partes essenciais disso. Há uma
busca na pluralidade do eu e nas identificações múltiplas que possibilitam ao sujeito
experienciar suas múltiplas faces. Assim, "a vida errante é uma vida de identidades múltiplas
e às vezes contraditórias. Identidades plurais podendo conviver seja ao mesmo tempo seja, ao
contrário, sucessivamente. Alguma coisa entre a mesmice de si e a alteridade de si"
(Maffesoli, 2001: 118)
Nesse sentido, a temática do automóvel e da sua pretensa mobilidade ele representam
simbolicamente também uma forma de escape da lógica econômica e utilitarista da
modernidade e propicia um espaço lúdico para o sujeito onde ele pode assumir outra
identidade ou personalidade, diferente da opressora persona social.
Dissolver sua identidade, sair de si e liberar de suas interdições são temas associados ao
deus Dioniso que também é o deus das festas e um deus errante, das idas e vindas e viajante,
fugindo de Hera ou resgatando a sua mãe do Hades (Chevalier & Gheerbrant, 1999). A
atitude hedonista de aproveitar a vida no momento, de aceitar o que acontece e de romper,
mesmo por instantes, com a lógica social social podem indicar a impossibilidade de enquadrar
a totalidade da vida e da existência em uma lógica única e monovalente, havendo necessidade
de espaços de liberação, de liberdade e de errância e nos quais manifestam-se a incompletude,
a impossibilidade de uma síntese permanente e a tensão da própria vida. Ela possibilita é uma
forma de "êxtase", algo "que permite simultaneamente escapar ao fechamento de um tempo
individual, ao princípio de identidade e à obrigação de uma residência social e profissional"
(Maffesoli, 2001: 113).
Este "êxtase" está na base das manifestações de massa da contemporaneidade e que o
olhar científico tradicional não consegue captar, pois procura comportamentos racionais,
unificados e não contraditórios. Entretanto, de forma paradoxal e contraditória, esse “êxtase”
de celebração da vida na conjuntura atual com a degradação ecológica, a poluição, a violência
no trânsito torna-se uma celebração da destruição e da força dissoluta das pulsões humanas.
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