UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU Programa de pós-graduação em Filosofia
NARRATIVA E SENTIDO DA VIDA:
UMA APROXIMAÇÃO ENTRE VIKTOR FRANKL E
PAUL RICOEUR
Jefferson da Silva
São Paulo
2011
JEFFERSON DA SILVA
NARRATIVA E SENTIDO DA VIDA:
UMA APROXIMAÇÃO ENTRE VIKTOR FRANKL E
PAUL RICOEUR
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Filosofia da Universidade São Judas
Tadeu, como exigência parcial para a obtenção do
título de mestre em filosofia.
Orientador: Prof. Dr. Hélio Salles Gentil
São Paulo
2011
Ficha catalográfica: Elizangela L. de Almeida Ribeiro - CRB 8/6878
Silva, Jefferson da
Narrativa e sentido da vida : uma aproximação entre Viktor Frankl e Paul
Ricoeur / Jefferson da Silva. - São Paulo, 2011.
123 f. ; 30 cm.
Orientador: Hélio Salles Gentil
Dissertação (mestrado) – Universidade São Judas Tadeu, São Paulo, 2011.
1. Frankl, Viktor Emil 2. Ricoeur, Paul 3. Narrativa 4. Filosofia da vida I.
Gentil, Hélio Salles II. Universidade São Judas Tadeu, Programa de Pós-
Graduação Stricto Sensu em Filosofia. III. Título
CDD – 113.8
DEDICATÓRIA
Às pessoas que lutam por um sentido em suas vidas,
principalmente àquelas que são vitimadas pelas próprias
circunstâncias, como desestrutura familiar e falta de recursos.
AGRADECIMENTOS
A meu orientador, Prof. Dr. Hélio Salles Gentil, que
acompanhou cuidadosamente e acreditou ser possível a
realização deste trabalho. Aos amigos que contribuíram para
o seu desenvolvimento.
RESUMO
O trabalho busca desenvolver uma reflexão sobre a questão do sentido da vida a partir
da perspectiva de Viktor Frankl, fazendo uma aproximação à noção de narrativa desenvolvida
por Paul Ricoeur. Para Frankl a busca de um sentido para vida é a maior de todas as
necessidades humanas, mesmo que, em nossos dias, muitas pessoas vivam com um profundo
sentimento de vazio. É o que o autor chama de vazio existencial; as pessoas encontram-se
desorientadas, sem rumo, falta-lhes um sentido para suas vidas e elas precisam buscá-lo.
Acompanhando o surgimento e desenvolvimento agudo dessa problemática que, como
apontam vários autores, é uma característica da modernidade ocidental, levantamos as
questões que seguem: O que é este sentido da vida? Como podemos encontrar um sentido
para vida em nossos dias? Para Frankl, o sentido para a vida identifica-se com as motivações
que encontramos na existência, motivações que vamos encontrando no dia-a-dia conforme
nos relacionamos com as diversas circunstâncias do cotidiano. Porém, as circunstâncias do
cotidiano são instáveis, “ligeiras”, mudam constantemente. Como então poderíamos encontrar
um sentido para a vida, vivendo em meio ao turbilhão de constantes mudanças?
Encontramos na noção de narrativa elaborada pelo filósofo francês Paul Ricoeur, em
particular na idéia da composição narrativa, a possibilidade de articulação de um sentido para
essa vida desdobrada em situações que mudam constantemente. Para o autor, a composição
narrativa, através da estruturação que realiza, consegue articular as ações dos homens e
sustentar-lhes uma identidade dentro da mudança. Ações e circunstâncias heterogêneas, uma
vez postas em composição narrativa, ganham inteligibilidade e sentido. Segundo Ricoeur,
tanto o sujeito que narra sua história quanto o leitor que se apropria da composição narrativa,
têm a oportunidade de compreender sua própria ação no mundo, dando-lhe um certo sentido
em seu desdobramento temporal e refigurando seu mundo.
Fizemos, assim, uma releitura da noção de sentido da vida em Viktor Frankl,
apontando as dificuldades e os limites de sua elaboração. E, ao mesmo tempo, tomando como
ponto de partida a problemática colocada por Frankl, mostramos como a noção de narrativa
elaborada por Paul Ricoeur leva a uma noção mais delimitada de sentido e mostra ser a
narrativa um caminho para articulações de sentido na vida humana.
Palavras-chave: Ricoeur, Frankl, sentido da vida, narrativa.
ABSTRACT
This work intends to develop a reflection about the question of the meaning of life
from the perspective of Viktor Frankl, approaching with the notion of narrative developed by
Paul Ricoeur. According to Frankl, the search of the meaning of life is the greatest need of all
human necessities even that today many people live in a deep empty feeling. The author calls,
it existential vacuum: people are disoriented, without direction in their lives they lack a
meaning of life and need to search for it.
Following the onset and acute development of this problem which, as indicated by
several authors, is a characteristic of western modernity, we raise the following questions:
What is this meaning of life? How can we find the meaning for life nowadays? To Frankl, the
meaning of life identifies itself with the motivation that we find in our existence, with the
motivation that we find in everyday life, as we relate to the various daily circumstances.
However, the circumstances of daily life are unstable, fast and are, constantly changing. How
can we, then, find the meaning of life in a whirlwind of a constant change?
We find notion of narrative developed by the French philosopher Paul Ricoeur, in
particular the idea of narrative composition, the possibility of articulating a meaning to this
deployed life in situations that are constantly changing. For him, the narrative composition, by
structuring it holds, can articulate the actions of men and sustain him in an identity inside the
change. Heterogeneous actions and circumstances that once, put in narrative composition,
become intelligible and make meaning. According to Ricoeur, as the subject who narrates as
the reader that appropriates the narrative composition, has the opportunity to understand their
own action in the world, giving it a meaning as it unfolds in time and refiguring its world.
Thus, we do a new approach to the notion of meaning in life in Viktor Frankl, pointing
out the difficulties and limitations in its design. At the same time, taking as its starting point
the issues raised by Frankl, we show how the notion of narrative elaborated by Paul Ricoeur
leads to a more circumscribed notion of meaning and narrative turns out to be a way to
articulations of meaning in human life.
Keywords: Ricoeur, Frankl, meaning of life, narrative.
SUMÁRIO
DEDICATÓRIA.................................................................................................................02
AGRADECIMENTOS.....................................................................................................03
RESUMO..............................................................................................................................04
ABSTRACT.........................................................................................................................05
SUMÁRIO............................................................................................................................06
INTRODUÇÃO..................................................................................................................08
I CAPITULO – A questão do sentido da vida em Viktor Frankl............................................10
1.1 O vazio existencial............................................................................................................10
1.2 O conceito de pessoa.........................................................................................................30
1.1 O homem como unidade múltipla...............................................................................32
1.2 O homem como ser espiritual......................................................................................35
1.3 O homem livre e responsável......................................................................................38
1.3 A vontade de sentido..........................................................................................................44
II CAPITULO - A noção de narrativa em Paul Ricoeur ........................................................51
2.1 Do discurso oral ao texto...................................................................................................52
2.2 O mundo do texto...............................................................................................................56
2.3 Da discordância à concordância ........................................................................................62
III CAPÍTULO - O desdobramento de mimesis .....................................................................80
3.1 Mimesis I – prefiguração....................................................................................................81
3.2 Mimesis II – configuração..................................................................................................85
3.3 Mimesis III – refiguração...................................................................................................90
IV CAPÍTULO – A relação da noção de narrativa com a questão do sentido da vida...........95
4.1 Aproximando a noção de narrativa à questão do sentido da vida.......................................99
4.2 A busca do sentido da vida e o livro Em busca de sentido – um psicólogo no campo de
concentração.........................................................................................................................102
4.3 A narrativa de Viktor Frankl no campo de concentração.................................................103
CONCLUSÃO...................................................................................................................111
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.....................................................................119
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INTRODUÇÃO
O homem é um ser envolto em questionamentos que o levam a uma constante busca
de resposta. Dentre os diversos questionamentos e possíveis temas para reflexão na
contemporaneidade, o sentido da vida pode ocupar um lugar privilegiado. Qual é o sentido da
vida do ser humano? Como se manifesta? O que é sentido da vida? É em meio a essas e outras
perguntas que se pode inserir o trabalho do filósofo e psiquiatra Viktor Frankl que, a partir da
própria vida, de investigações intelectuais e atendimentos a pacientes, desenvolve a questão
do sentido da vida.
O outro filósofo sobre o qual refletiremos em nosso trabalho é Paul Ricoeur, que
desenvolve com propriedade a questão da narrativa. É através da narrativa de Ricoeur que
buscaremos “...decifrar o sentido oculto no sentido aparente, (...) desdobrar os níveis de
significação implicados na significação literal...”(RICOEUR, 1978, p. 15). Tentaremos,
através da hermenêutica de Paul Ricoeur, encontrar caminhos de desvelamento do sentido da
vida. Vamos nos aventurar no mundo da narração e, unindo-o à questão do sentido da vida de
Viktor Frankl, poderemos encontrar fundamentações para pensar a questão do sentido da
existência, vislumbrando luzes a partir do cotidiano, a partir das pequenas situações do dia-a-
dia. Essa é, portanto, a nossa hipótese de trabalho. E a partir daí elaboramos a proposta de
nosso trabalho: a aproximação da noção de narrativa de Paul Ricoeur à questão do sentido da
vida em Viktor Frankl.
No desenvolvimento desta pesquisa, primeiramente procuramos pontuar o período em
que estamos vivendo e, a partir daí, apresentamos a opinião de Viktor Frankl e de alguns
outros autores. Em seguida procuramos definir o significado da palavra “sentido” a partir da
perspectiva de Viktor Frankl.
O trabalho está dividido em quatro capítulos. No primeiro capítulo, buscamos
apresentar o conceito de sentido da vida a partir da perspectiva de Viktor Frankl.
Consideramos primeiramente o conceito de vazio existencial, que, segundo Frankl, é a própria
falta de perspectiva em que muitas pessoas se encontram hoje, em seguida definimos o que é
o sentido da vida para Frankl e o seu conceito de pessoa. Nesse capítulo abordamos outros
autores que nos ajudaram a compreender melhor o pensamento de Viktor Frankl como: Izar
Aparecida de Moraes Xausa, Ricardo Peter e uma grande colaborada de Viktor Frankl,
Elisabeth Lukas, que através de várias obras publicadas nos ajuda a penetrar no pensamento
do autor.
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No segundo capítulo examinamos parte da teoria de Paul Ricoeur e o acompanhamos
na passagem do discurso oral para o discurso do texto. Partindo do discurso como texto,
aprofundamo-nos para chegar à noção de “mundo do texto”. Conhecemos como se dá sua
formação e em seguida refletimos sobre suas implicações na questão do sentido da vida que
buscamos aprofundar neste trabalho. Nesse capítulo examinamos também o trabalho que Paul
Ricoeur realizou, confrontando Confissões de Agostinho, de um modo especial o livro XI, que
fala sobre o tempo, e o conceito de mythos retirado da Poética de Aristóteles. Com isso
pretendemos discutir a teoria da temporalidade narrativa de Paul Ricoeur, que relaciona a
natureza do tempo em Agostinho ao conceito de mythos de Aristóteles. Analisamos a forma
como uma composição narrativa estabelece a preponderância da concordância sobre a
discordância e como o autor relaciona a composição narrativa com as ações dos homens. É
nesse ponto que vemos como a narrativa se articula com o tempo e como o tempo se torna
tempo humano à medida que se articula com a narrativa. Todo esse processo pode ser
relacionado com a busca de um sentido para vida do homem; essa busca é o que discutimos
em nosso trabalho.
No terceiro capítulo continuamos nossas reflexões sobre a composição narrativa
proposta por Ricoeur, buscando ligar ainda mais a noção de narrativa ao mundo dos homens.
É nessa busca que examinamos como acontece o desdobramento mimético, passando pela
mimesis I, mundo da ação onde nasce o texto, mimesis II, onde se configura o mundo do texto
e mimesis III, onde se retorna ao mundo da ação através do leitor que recebe a composição
narrativa. É na relação entre o leitor e a composição que acontece a refiguração, a partir da
qual o leitor refigura sua própria ação no mundo. É em todo esse processo do desdobramento
mimético que buscamos possibilidades para que o sujeito da narração bem como o leitor
encontrem respostas para a questão do sentido da vida.
No quarto capítulo, já tendo discutido a questão do sentido da vida de Viktor Frankl e
a noção de narrativa de Ricoeur, aproximamos esses dois autores, tendo em vista analisar a
possibilidade de encontrar um sentido para a vida através da narração de uma história.
Conhecemos, também nesse capítulo, um pouco da narrativa de Viktor Frankl sobre o campo
de concentração e tentamos mostrar como sua obra pode nos ajudar a encontrar um sentido
para nossas vidas.
Por fim, é preciso pensar até que ponto Viktor Frankl e Paul Ricoeur conseguiram dar-
nos respostas para a pergunta sobre o sentido da vida. Discutimos, assim, na conclusão o
alcance da pergunta sobre o sentido da vida no mundo moderno e contemporâneo, a resposta
explícita de Frankl e a contribuição indireta de Ricoeur.
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I CAPÍTULO – A questão do sentido da vida em Viktor Frankl.
1.1 O vazio existencial.
Vivemos em constantes mudanças, tudo é muito corrido e rápido, são tecnologias
avançadas, metas a atingir no trabalho, informações rápidas que nos chegam a todo instante.
Vivemos em meio aos avançados meios de comunicação que rompem a distância entre as
culturas e as pessoas. O filósofo americano Berman, em seu livro Tudo que é sólido
desmancha no ar (1986), observa que vivemos em meio a um turbilhão de mudanças
caracterizado por:
“...grandes descobertas das ciências físicas, com a mudança da nossa imagem do
universo e do lugar que ocupamos nele; a industrialização da produção, que
transforma conhecimento científico em tecnologia, cria novos ambientes humanos e
destrói os antigos, acelera o próprio ritmo de vida, gera nova explosão demográfica,
que penaliza milhões de pessoas arrancadas de seu habitat ancestral, empurrando-as
pelos caminhos do mundo em direção a novas vidas; rápido e muitas vezes
catastrófico crescimento urbano, sistemas de comunicação de massa, dinâmicos em
seu desenvolvimento, que embrulham e amarram, no mesmo pacote, os mais
variados indivíduos e sociedades; Estados nacionais cada vez mais poderosos,
burocraticamente estruturados e geridos, que lutam com obstinação para expandir
seu poder; movimentos sociais de massa e de nações, desafiando seus governantes
políticos ou econômicos, lutando por obter algum controle sobre suas vidas; enfim,
dirigindo e manipulando todas as pessoas e instituições, um mercado capitalista
mundial, drasticamente flutuante, em permanente expansão...” (p. 16).
Segundo Berman, essa maneira de viver em meio a constantes mudanças é
característica de nossa era, da chamada modernidade. É um tipo de maneira de viver, em que
experiência de tempo e espaço de si mesmo e dos outros, das possibilidades e perigos da vida,
são compartilhadas por todos os homens e mulheres. “Ser moderno é encontrar-se em um
ambiente que promete aventura, poder, alegria, crescimento, autotransformação e
transformação das coisas em redor – mas ao mesmo tempo ameaça destruir tudo o que temos,
tudo o que sabemos, tudo o que somos.”(BERMAN, 1986, p. 15). Vivemos em tempos onde
tudo se transforma, tudo muda a todo instante, em tempos em que conhecemos outras
culturas, outros povos; são tempos em que podemos nos comunicar em poucos instantes com
pessoas de outros países, de outras raças, línguas e religiões. Como diz Berman, “...a
modernidade anula todas as fronteiras geográficas e raciais, de classe e nacionalidade, de
religião e ideologia: nesse sentido, pode-se dizer que a modernidade une a espécie
humana.”(BERMAN, 1986, p. 15). Podemos dizer, portanto, que viver em nossa era é poder
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expandir nossa mentalidade e maneira de ver o mundo, é abrir-se para a diversidade de outras
culturas, pensamentos e idéias, é descobrir e enriquecer a nossa maneira de ser no mundo, a
nossa ação no mundo.
Porém, ao mesmo tempo em que nos abrimos a outras culturas e que as fronteiras
geográficas são anuladas, graças aos avançados meios de comunicação, vemos que esse
enriquecimento, essas constantes mudanças que unem a espécie humana, também
desencadeiam um conjunto de transformações, que temos dúvidas se o homem moderno anda
conseguindo acompanhar. Está havendo, sem dúvida, enormes transformações na ciência, na
tecnologia, no mundo em si e em nossa maneira de ver o mundo. O rápido crescimento
urbano e o capitalismo selvagem acabam exigindo do homem moderno uma produção cada
vez maior para que a economia cresça. Como afirma Berman, ao mesmo tempo em que a
modernidade unifica a espécie humana, ela também desconstrói, trata-se, portanto, de uma
unidade paradoxal, pois é uma unidade de desunidade: “...ela nos despeja a todos num
turbilhão de permanente desintegração e mudança, de luta e contradição, de ambigüidade e
angústia.”(BERMAN, 1986, p. 15). Vivemos em meio a esse devir, que, ao mesmo tempo em
que transforma e enriquece nossa própria identidade, também pode destruir o que temos, o
que sabemos e o que somos. Berman, citando Marx, diz: “... „Tudo que é sólido desmancha no
ar‟...”(BERMAN, 1986, p. 15). Tudo é muito flutuante e em permanente expansão, temos
sido alimentados por grandes descobertas e grandes mudanças. O que, em séculos anteriores
era mantido pelas tradições e pelos conjuntos de regras estabelecidas pelas religiões e pelos
feudos, principalmente no período medieval, com a modernidade transforma-se em uma nova
mentalidade. No livro Itinerário de uma crise da modernidade João Francisco Duarte Junior
(1997) afirma:
“...a modernidade refere-se a um período histórico: aquele que se inicia por volta do
século XV e se estende até os nossos dias. Nesse período, um conjunto de mudanças
na maneira de pensar a realidade e se relacionar com ela passa a distinguir o humano
de seus antepassados de séculos anteriores, séculos esses agrupados genericamente
sob denominação de Idade Média. A modernidade, desse modo, significa não
arbitrária, notadamente, um certo tipo de mentalidade, que século após século, veio
se instalando e se desenvolvendo entre os homens...”(p. 9).
Segundo Duarte o homem da Idade Média olhava para trás e para cima, olhava um
mundo já pronto e acabado, fruto da criação divina, mas para o homem moderno, com o
rompimento do mundo medieval, nasce a idéia de progresso, nasce a esperança de novos
tempos, nasce a idéia de expansões e mudanças.
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Ao pontuarmos nossos dias com os séculos anteriores, não estamos querendo fazer
apologia do que passou, não estamos querendo um retorno ao período medieval, queremos
apenas mostrar que há quase quinhentos anos estamos vivendo em meio a esse turbilhão de
constantes mudanças que têm como riqueza a abertura às diversas culturas, às grandes
descobertas, aos avanços tecnológicos e às variedades de tradições que conhecemos dia após
dia. Apesar enaltecermos a modernidade pela sua diversidade e abertura ao novo, existem
autores como Lima Vaz, Duarte Junior, Rouanet e outros que afirmam que a modernidade
vive em uma crise de sentido.
Segundo Lima Vaz, a modernidade vive em crise porque rompeu o seu vínculo com o
ser e vive sob a primazia da aparência do ser. Diz ele que para compreendermos a crise da
modernidade temos que descobrir sua lógica inelutável “...que transforma a produção humana
do sentido em fábrica da aparência e do não-sentido, no momento em que, tendo rompido seu
vínculo essencial com o ser, passa a constituir-se paradoxalmente em matriz do não-
ser...”(VAZ, 1994, p.10). Vê-se assim a primazia da aparência do ser em relação ao ser. É a
partir dessas coordenadas que o homem moderno refaz sua morada simbólica, situando-se
dentro das coordenadas das perspectivas do espaço da representação, invocando a si o intento
demiúrgico de edificar um mundo submetido a um sistema de medidas imanentes a si próprio
(cf. p.6). Afirma Lima Vaz (1997) que a teoria moderna da representação é o resultado da
“...supressão, pelo menos virtual, da distinção aristotélica entre três grandes formas
de conhecimento, o teorético, o prático, e o poético. As formas do conhecimento
teorético e prático têm como objeto, respectivamente, o ser (ousia) das coisas
investigado e contemplado na sua verdade, e o agir virtuoso (héxis, aréte) segundo o
costume (ethos), descrito e compreendido na sua bondade. Já o conhecimento
poético dirige o fazer (poíesis) de objetos segundo a sua utilidade. Ora, a primazia
da representação na concepção do conhecimento como sendo o objeto imediato da
intenção cognoscitiva abre para o sujeito um campo ilimitado da possibilidades de
referir-se ao objeto – na sua verdade, bondade ou utilidade – como sendo ergon, um
produto da atividade poética do sujeito...” (p.163).
Segundo Lima Vaz, a modernidade encontra-se mergulhada no modelo poético do
conhecimento, um conhecimento que se dirige para o fazer e, dentro desse fazer, existe a
preocupação com o que é útil. Na dinâmica do fazer, o grande protagonista é o sujeito, que
passa a organizar tudo a partir do fazer e do que é útil. Logo, o que se torna importante é a
utilidade e o funcionalismo das coisas, enquanto que as coisas investigadas e contempladas na
sua verdade, no seu ser (ousia), ou ainda no agir virtuoso são deixadas de lado e dão lugar ao
que é apenas útil, caindo na valorização da aparência ou da representação.
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Segundo Vaz, para que possa existir produção de sentido na vida do homem, é necessário
ter como objeto de conhecimento o ser das coisas, as coisas contempladas na sua verdade e
não naquilo que representam ou aparentam ser a partir do critério decodificador do próprio
sujeito. Afirma o filósofo que a modernidade vive uma crise, pois o homem está parado na
representação, naquilo que as coisas aparentam ser, na sua superficialidade. É a partir daí que
o filósofo afirma que a modernidade vive a crise do sentido. Para ele a modernidade está em
crise, pois o homem em nossos dias dá primazia à representação em detrimento do ser,
invocando a si próprio a organização do mundo, e tudo passa a ser organizado a partir do seu
próprio ego. O importante não é mais o ser das coisas, mas o que elas aparentam ser ao
sujeito. O sujeito é o protagonista, a medida de todas as coisas.
Assim, como Lima Vaz faz críticas à modernidade, Duarte Junior, que já citamos neste
trabalho, também fazendo suas críticas, afirma que o homem moderno, que colocou toda sua
esperança no progresso, acabou frustrado. Afirma ele que com a crença no progresso
acreditava-se no “...utopismo tecnocientífico, dada a enorme esperança depositada, mesmo
pelo cidadão comum, num ilimitado progresso, impulsionado pelas descobertas e criações no
âmbito científico e tecnológico.”(DUARTE JUNIOR, 1997, p. 26). Colocando-se toda
esperança no progresso, acreditava-se que a humanidade iria viver sua plena felicidade, pois o
homem com o uso de sua razão não viveria mais na ignorância com idéias de aldeias ou
medievais, pelo contrário viveria o tempo das luzes.
“Acredita-se, que, o progresso técnico conduzirá a humanidade para um futuro em
que os homens não precisarão mais despender sua energia e saúde na execução de
atividades brutas e pesadas, a serem realizadas por máquinas constantemente
aperfeiçoadas, as quais um dia virão a libertá-los também das pequenas, porém
maçantes, tarefas práticas do di-a-dia.”(DUARTE JUNIOR, 1997, p. 27).
Com o sonho de crescer dia após dia, a mentalidade moderna desde o século XIX não
parou de avançar, não parou de crescer. “A ciência avança em suas descobertas. As máquinas
seduzem, encurtam distâncias, promovem o aumento da velocidade.”(DUARTE JUNIOR,
1997, p. 27). Mas a mentalidade moderna, acreditando estar chegando à plena maturidade, à
idade da razão com todo seu potencial de progresso, começou a desmoronar no século XX
com a eclosão da Primeira Guerra Mundial (1914).
“O imenso acervo técnico e científico que se veio acumulando, num instante passa a
ser usado não para emancipação do ser humano, e sim para sua destruição. Começa
a instalar um mal-estar e a descrença na tão propalada racionalidade progressiva da
humanidade, que assiste ao surgimento de novas máquinas, agora, porém,
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mortíferas, ou adaptadas para o extermínio, como o avião, que desde há pouco vinha
deslumbrando multidões.”(DUARTE JUNIOR, 1997, p. 28).
Esperava-se a maturidade humana, porém surgem irracionalidades e começa o uso
indevido do progresso e da tecnologia. O “...irracionalismo parece tomar conta de nações,
líderes e populações inteiras.”(DUARTE JUNIOR, 1997, p. 28).
As guerras mundiais, com seus grandes arsenais bélicos e tecnológicos, utilizam o
desenvolvimento para dominar o outro pela força, fazendo dele um objeto, um meio para o
crescimento, para expansão. Por isso podemos dizer que, após as grandes guerras, tomou-se
consciência do fracasso dos grandes ideais humanitários calcados no progresso, derrubando a
previsão do positivismo que esperava do conhecimento científico a “maturidade humana”.
No livro As razões do iluminismo, Sergio Paulo Rouanet (1987) afirma:
“...depois da experiência de duas guerras mundiais, depois de Auschwitz, depois de
Hiroshima, vivendo num mundo ameaçado pela aniquilação atômica, pela
ressurreição dos velhos fanatismos políticos e religiosos e pela degradação dos
ecossistemas, o homem contemporâneo está cansado da modernidade...”(p. 268).
A busca do crescimento na modernidade, principalmente do XIX para o século XX,
foi em uma velocidade tão grande que o progresso e a maturidade humana esperada pela
mentalidade moderna, fizeram com que com nações inteiras discriminassem outros povos e
ainda cometessem atrocidades a outras raças e grupos de pessoas, como ocorreu nos campos
de concentração nazistas e ainda no Japão com as bombas atômicas lançadas pelos Estados
Unidos sobre Hiroshima e Nagasaki, que mataram milhões de pessoas. Esses exemplos
demonstram que a maturidade humana não chegou como se esperava. Muitas nações
acreditavam-se “raça superior” e desejavam crescer, desenvolver-se, mas através da desgraça
de outras pessoas, de outros povos. No período das luzes esperava-se afastar os
“obscurantismos” do período medieval, esperava-se dar ao homem a plena felicidade através
do triunfo da razão, no entanto, após as guerras mundiais, o que restou foram nações
destruídas, fome, miséria, desconfiança da razão, do progresso e medo da fabricação de novas
bombas atômicas.
Afirma Duarte Junior:
“...dia a dia aumenta a decepção, por verificarmos à nossa volta praticamente o
inverso daquilo em que chegamos a acreditar, num processo de crescente
infelicidade e incerteza quanto ao amanhã que vem sendo forjado. E nem é preciso
listar aqui todos os medos e ameaças que nos circundam: acidentes nucleares, guerra
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atômica, venenos empestando o ambiente, efeito estufa, hordas de famintos e
desabrigados, fanatismos, assaltos, seqüestros, violência gratuita, novas doenças
letais e incuráveis, etc (DUARTE JUNIOR, 1997, p. 8).
Vê-se assim que o progresso, o avanço da ciência e da tecnologia trouxeram várias
possibilidades, mas, ao mesmo tempo, o homem mergulhado nesse universo acabou se
perdendo em meio às transformações.
Aqui mais uma vez afirmamos que não estamos querendo fazer apologia de épocas
anteriores, porém não podemos deixar de perceber e pontuar que, mesmo a modernidade
avançando, mesmo havendo enormes mudanças para o bem do homem, parece que não
conseguimos dar conta desse turbilhão de constantes mudanças. Vemos assim que existem
autores que criticam a modernidade, como Lima Vaz, que afirma que modernidade perdeu o
sentido porque deixou de contemplar o ser das coisas, “o ser na sua verdade”, dando primazia
à representação, à aparência do ser, tendo como conseqüência a posição do homem como o
organizador de tudo a partir do seu próprio ego. A crítica aparece também em Duarte Junior,
que coloca a modernidade como uma decepção, como uma mentalidade que fracassou por
acreditar desproporcionadamente na razão e no progresso da ciência, chegando a causar até
mesmo destruição; esperava-se a emancipação, porém veio a destruição. E Rouanet afirma
mesmo que, após as guerras mundiais, o homem contemporâneo está cansado da
modernidade.
Os autores citados, cada qual a seu modo, fazem críticas à modernidade. Lima Vaz
reivindica o retorno ao ser à semelhança do ser platônico, dizendo que fora do ser na sua
verdade só existe aparência; Duarte Junior é cético em relação ao progresso, afirmando que
esse foi uma decepção; e Rouanet afirma que estamos entrando em um outro período
histórico.
Sem desconsiderar as críticas levantadas, podemos perceber que algo vem
acontecendo em nossos dias, em nossa modernidade. Vemos que as grandes guerras mundiais
foram catastróficas, verdadeiras atrocidades, porém afirmar que modernidade vive uma crise
porque deixou de considerar o ser das coisas, o ser na sua verdade, como afirma Lima Vaz, ou
criticar o progresso por não ter dado ao homem sua plena felicidade, seria desconsiderar todos
os grandes avanços que vemos em nossos dias. Não podemos deixar de constatar os grandes
benefícios existentes hoje em relação aos séculos anteriores, como o avanço da tecnologia
evidente nos computadores, nos aparelhos de áudio, na TV, na telefonia. São avanços que nos
trouxeram vários benefícios, pois se hoje muitas pessoas conhecem outras culturas, seu modo
de vida, sua maneira de pensar, é graças ao avanço tecnológico, que nos permite atingir o
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outro lado do mundo sem mesmo estar lá, através dos sistemas áudio-visuais. Não podemos
esquecer que, com o avanço da ciência, foram criados medicamentos, tratamentos para muitas
doenças que antes não tinham cura. É exatamente por todos os avanços que vemos em nossos
dias, pela ampla liberdade de escolha que temos hoje, diante das várias formas de situações
que conhecemos e que se apresentam a nós, pelas mudanças científicas, tecnológicas,
mudanças urbanas, mudanças familiares e outras, que podemos dizer que vivemos em um
período marcado sobretudo por grandes mudanças. Porém, esse período não precisa
necessariamente ser chamado de crise nem o progresso deve ser uma decepção.
Como disse Berman, parafraseando Marx, vivemos em um período onde tudo que é
muito sólido se desmancha no ar. Podemos dizer que, em nossos dias, tudo é muito instável,
tudo muda, a todo instante conhecemos novas coisas, redescobrimos coisas antigas,
reavaliamos nossas posições. “Ser moderno, (...) é experimentar a existência pessoal e social
como um torvelinho, ver o mundo e a si próprio em perpétua desintegração e renovação,
agitação e angústia, ambigüidade e contradição: é ser parte de um universo em que tudo o que
é sólido desmancha no ar”(BERMAN, 1986, p. 328). Fazemos parte desse contexto que muda
a todo instante, desse redemoinho de construção e desconstrução, de abertura a novas formas
de realidade e abandono de formas antigas. O que Lima Vaz chama de crise da modernidade
preferimos assumir como transformações constantes, a que precisamos aprender a nos adaptar
todos os dias ou, pelo menos, situar-nos em meio ao torvelinho. É dentro desse contexto,
dentro desse torvelinho que levantamos o questionamento que norteia nosso trabalho: É
possível encontrar um sentido nossa vida em meio a essas constantes mudanças? O que é
sentido da vida? Como se manifesta o sentido da vida?
É em meio a essas perguntas que se encontra o filósofo e psiquiatra Viktor Frankl que,
a partir da própria vida, de investigações intelectuais e do atendimento aos seus pacientes,
desenvolve uma reflexão sobre o sentido da vida. Frankl afirma que o sentido da vida
constitui “... a mais humana de todas as necessidades humanas...” (FRANKL, 1992, p. 78).
Qual é esse sentido afirmado por Frankl? Qual o significado da palavra “sentido” na
expressão “sentido da vida” no pensamento do autor? Antes de respondermos a tais questões,
apresentaremos um pouco a visão do autor sobre os nossos dias, pois, assim como os outros
autores citados, Viktor Frankl também faz suas críticas aos nossos dias afirmando que
vivemos em meio ao vazio existencial. Cabe aqui uma observação: é a partir do pós-guerra
que situamos as críticas do autor, pois foi após sua libertação do campo de concentração que
suas obras e teorias desenvolveram e, juntamente com elas, as críticas aos nossos dias, críticas
que ele sintetiza com a expressão vazio existencial.
17
Para Frankl, a frustração existencial ou vazio existencial é “...um profundo sentimento
de que a vida não tem sentido.” (XAUSA, 1986, p. 149). Vivemos um período onde as
pessoas estão desorientadas, sem sentido para suas vidas. Afirma o autor: “...mais e mais
pacientes nos procuram por sofrerem um vazio interior que tenho descrito sob a designação de
vazio existencial. Padecem eles com a sensação de abissal ausência de sentido em sua
existência.”(FRANKL, 1991, p. 14). Diz Frankl: “Vivemos numa época em que predomina
um sentimento difuso de que a vida carece de sentido.”(FRANKL, 1978, p. 20).
Elisabeth Lukas (1992), colaboradora e discípula de Frankl, ao escrever sobre os
nossos dias em seu livro Assistência Logoterapêutica, afirma que vivemos em uma “geração
sem futuro” onde a “...juventude se revoltou contra o tradicional, buscando impetuosamente
novas direções; porém, nunca esteve a juventude tão impregnada de pressentimentos sombrios
como no presente...”(p. 15). Reflete a autora, seguindo os passos de Frankl, que muitas
pessoas de nossa geração, não sabendo como lidar com seu dia-a-dia, com as situações que se
apresentam a elas, sem rumo a seguir, vivem sem orientação, sem motivação, vivem sem
sentido. Afirma ela: “...o que realmente caracteriza a „geração sem futuro‟ é uma sensação de
falta de sentido no seu grau máximo, uma perda continuada de sentido, ocorrendo aqui e
agora, e solapando as forças para encarar o dia de amanhã.”(LUKAS, 1992, p. 15).
No livro A psicologia do sentido da vida, Xausa, abordando a questão da manifestação
do vazio existencial, afirma:
“alguns homens levados pelo horror vacui (...), refugiam-se num estado de
embriaguez qualquer, seja sob a forma de divertimento ou de trabalho, causador de
um sentimento de tedium vitae. É o vazio espiritual que conduz à neurose dominical
em permanência, e podemos encontrá-la atrás de uma laboriosidade profissional
excessiva, no refúgio de atividade desportiva, na fuga neurótica para o mundo dos
romances ou televisão, nos fenômenos psicológicos de massa, no decaimento
psicofísico dos aposentados, na necessidade de nunca se deixar descansar ou na
febre de novas ações e novas experiências, especialmente na agressividade, na
adicção e no alcoolismo...”(XAUSA, 1986, p. 149).
Frankl observa que muitas pessoas, em nossos dias, vivem em um profundo vazio
existencial, desorientadas, sem sentido em suas vidas, vivem mergulhadas no tédio, não
conseguindo captar o sentido de uma determinada situação. “O homem de hoje pode adoecer
(...) em razão do sentimento de carência de sentido, em razão da frustração de sua necessidade
de sentido diante da existência...”(FRANKL, 1995, p. 118).
Diz Frankl:
18
“...devesse denunciar as causas determinantes do vazio existencial, diria que elas são
redutíveis a uma dupla realidade: a perda da capacidade instintiva e a perda da
tradição. Contrariamente ao que sucede com relação ao animal, nenhum instinto
revela ao homem o que precisa (muss) fazer. E ao homem de hoje nenhuma
tradição diz o que deve (soll) fazer. E não raro parece desconhecer o que
efetivamente quer (will)...”(FRANKL, 1991, p. 15)
Segundo Frankl os sistemas totalmente liberais e os sistemas totalitários tendem a
causar no homem o vazio existencial. O homem, tendo rompido com as tradições que
orientavam sua vida, parece não saber o que tem que fazer, ou seja, o homem de antigamente
pautava sua vida pelos valores oriundos das comunidades de aldeias e das tradições religiosas,
porém, em nossos dias, a modernidade, tendo abolido a tradição, não sabe mais o que dizer ao
homem, e o homem não sabe mais o que tem que fazer. Diz Frankl, “...atribuímos, em boa
parte, o vazio existencial à perda da tradição.”(FRANKL, 1978, p. 19). A conseqüência de
não saber mais o que fazer, de não saber que rumo seguir é o conformismo e o totalitarismo.
Afirma Frankl:
“Em virtude disso nele se manifesta com redobrado vigor a tendência de querer
apenas aquilo que os outros fazem ou de fazer apenas aquilo que os outros querem.
No primeiro caso nos deparamos com o conformismo. No segundo com a
totalitarismo. O primeiro predomina no hemisfério ocidental: o segundo no
hemisfério oriental.”(FRANKL, 1991, p. 15).
Em ambos os casos o ser humano acaba caindo na impessoalidade. Pois no primeiro
caso, predominante do hemisfério ocidental, o homem buscando sua realização através do
consumismo desenfreado, buscando satisfazer suas próprias necessidades, passou a ser
dominado pelo mercado de consumo, pelo mercado da compra que a cada momento cria
novos produtos para serem consumidos, cria novas necessidades para o homem. Daí vem os
conformistas desejam que apenas os que os outros fazem. No segundo caso, que predomina
do hemisfério oriental, o homem passa a realizar suas ações a partir daquilo que os outros
(ditadores) desejam que faça, perdendo totalmente a liberdade.
Nos dois casos o homem tende a cair no vazio existencial, pois já não se sabe como
viver a vida e muito menos como encontrar motivações para existência. O homem, diferente
dos animais, não possui instintos que lhe ditem o que tem que fazer, ao contrário, ele precisa a
cada momento fazer escolhas, precisa aprender a lidar com as situações que se apresentam
para que possa encontrar sentido em sua vida e escapar do vazio existencial. Assim, numa
“...época em que os Dez Mandamentos parecem ter perdido o valor para muita gente, o
homem deve estar apto a aprender os Dez Mil Mandamentos que estão inscritos em código
19
nas dez mil situações que ele enfrenta...”(FRANKL, 1978, p. 20). Em outras palavras, o
homem de hoje deve aprender a ficar atento às situações que se apresentam a ele, aprender a
cumprir tarefas que tenham significado para sua vida, tarefas que tenham sentido naquele
momento de sua vida.
Para Frankl, não se esgotam no conformismo e no totalitarismo as conseqüências do
vazio existencial. Temos ainda, no plano das idéias, os reducionismos como o fisiologismo, o
psicologismo e o sociologismo, que acabam reduzindo o homem a apenas uma dimensão,
deixando de lado a pluralidade do ser humano. O reducionismo é “...um processo pseudo-
científico mediante o qual os fenômenos especificamente humanos são reduzidos a fenômenos
sub-humanos ou destes se deduzem...”(FRANKL, 2003, p. 37). Em outras palavras, é capturar
uma parte específica do ser humano e aplicá-la a toda a sua pessoa. Por exemplo, especializo-
me na parte fisiológica do ser humano e, após a especialização, passo a explicar o ser humano
sempre a partir desse ponto de vista, como se pudesse explicar todo o homem, e
conseqüentemente o homem será sempre representado no plano biológico. O erro do
reducionismo está na afirmação “nada mais é....” Exemplo de Frankl:
“...Em The Modes and Morals of Psychotherapy nos é proposta esta definição (...):
O homem nada mais é do que um mecanismo bioquímico, governado por um
sistema de combustão, que aciona e dinamiza computadores. Ora, como neurologista
daria meu aval à legitimidade de se considerar o computador como um modelo, por
mim assim dizer, do sistema nervoso central. O erro se localiza nesse “nothing but”.
Consiste na assertiva de que o homem nada mais é do que um computador. De fato o
homem é um computador. Porém, ao mesmo tempo, é infinitamente mais do que um
computador.”(FRANKL, 1991, p. 17).
Outro exemplo muito criticado por Frankl é o de Freud e Adler. Ele nos afirma que:
“Freud ensinou a todos nós a ver no homem um ser basicamente interessado na
busca do prazer. Em última instância, foi ele quem introduziu o „principio de
prazer‟, (...) e, como ele mesmo afirmou repetidas vezes, o princípio de realidade
não é outra coisa que uma extensão do princípio do prazer, e sempre a serviço do
princípio do prazer, cujo objetivo continua sendo: prazer „e nada mais que prazer‟.”
(FRANKL, 1995, p. 264).
A crítica do autor ao pensamento freudiano é a redução do homem à mera busca de
prazer, o ser humano visto em seu princípio e suas ações como ser dirigido pelo prazer. Já
Adler vê no homem a vontade de poder, ou seja, a busca do homem não é pelo prazer, mas
pelo poder. Ele “... vê o homem sobretudo como um ser que luta para superar uma certa
20
condição inferior, qual seja, seu sentimento de inferioridade, do qual ele tenta se desvencilhar
encetando a busca competitiva de superioridade...”(cf. FRANKL, 1995, p. 264).
Para Frankl o homem não é movido ou impulsionado pelo prazer nem pelo poder, mas
“...está sempre se movendo em busca de um sentido de seu viver; em outras palavras (...)
chamo a „vontade de sentido‟ como um „interesse primário do homem‟...” (FRANKL, 1989,
p. 23).
A vontade de sentido pode ser frustrada quando se reduz o homem a um único aspecto,
universalizando uma única dimensão humana, esquecendo-se de que o ser humano vai além
do biológico, psicológico e sociológico. “... O homem não é apenas um ser que reage e ab-
reage mas também que auto-transcende ...”(FRANKL, 1990, p. 29). A auto-transcendência
significa que o ser humano pode ir além, pode ultrapassar seus limites. “Ser homem
necessariamente implica uma ultrapassagem. Transcender a si próprio é a essência mesma do
existir humano.”(FRANKL, 1991, p. 1991). Para Frankl, o que constitui o ser humano, o que
dá possibilidade de o ser humano encontrar um sentido em cada situação, ultrapassando seus
próprios limites é que este é “... constituído e ordenado para algo que não é simplesmente ele
próprio, direciona-se para um sentido a ser realizado, ou para outro ser humano, que
encontra.”(FRANKL, 1991, p. 11). O homem se encontra quando busca um sentido, à medida
que se lança para “fora”, para o mundo em que vive, não se deixando delimitar pelos
determinismos, mas sendo aberto ao mundo. Para Frankl, é nessa abertura ao outro e ao
mundo que o ser humano pode encontrar possibilidades de sentido para vida. Para sabermos
como se dá essa abertura do ser humano, vamos definir o sentido da vida que Frankl
menciona, porém antes faremos algumas ressalvas em relação ao vazio existencial afirmado
pelo o autor.
Como refletimos no início deste trabalho, existem vários autores, entre eles Viktor
Frankl, que criticam os nossos dias e mais especificamente a modernidade, afirmando que a
modernidade vive em uma crise de sentido. Observa Frankl que as pessoas em nossos dias
encontram-se desorientadas, sem rumo a seguir, padecem de um sentimento profundo de que
a vida não tem sentido, de que a vida é vazia.
Refletimos sobre a questão do sentido sobretudo a partir da proposta de Frankl e
concordamos com seu ponto de vista em muitos aspectos, principalmente quando afirma que
uma pessoa pode encontrar um sentido para sua vida e que temos que olhar a pessoa sob todos
os seus aspectos. Porém, ao desenvolvermos a questão sobre o vazio existencial, queremos
dizer que, embora hoje muitas pessoas não valorizem os “dez mandamentos” que orientavam
a vida de seus antepassados, temos hoje em dia muitas situações e circunstâncias que podem
21
ser exploradas e descobertas por qualquer pessoa na busca de um sentido para sua vida.
Temos conhecimento de uma diversidade de situações, culturas e tradições a que antes não
tínhamos acesso, temos maiores informações e conhecimento sobre o mundo e sobre as coisas
do mundo que nossos pais e todas as gerações passadas tiveram.
Graças ao novo, próprio dos nossos tempos, cada pessoa pode encontrar um sentido
para vida que realmente tenha sido despertado de um livre relacionamento seu com o mundo
em que vive. As pessoas em nossos dias, sem tantas pressões familiares, religiosas e culturais,
são mais livres para dar sinceras respostas para situações que se apresentam a elas, podendo
encontrar aí verdadeiramente um sentido para vida. Nos dias de hoje temos várias
informações, reflexões e situações que ampliam nosso horizonte e nossa maneira de ver o
mundo, proporcionando-nos maiores possibilidades de encontrar um sentido para vida,
maiores possibilidades de encontrar o que motiva nossas vidas. Por isso, podemos dizer que,
muito mais que supervalorizar e tentar diagnosticar algo macro-cósmico tentando achar um
“vilão” para nossas constantes mudanças e para nossas correrias, deveríamos ao contrário
observar as milhares de situações que a vida proporciona para encontrar algo que realmente
motive nossas vidas. Não resta dúvida de que passamos por grandes mudanças, mas elas não
precisam necessariamente ser chamadas de crise ou de um vazio existencial. Embora existam
pessoas que padeçam de falta de sentido para sua vida e existam pessoas desorientadas,
universalizar o particular seria um exagero. Em meio a tantas mudanças, transformações,
acelerações, informações e conhecimentos, corremos sim o risco de desestruturar tudo aquilo
que aprendemos e somos, mas ao mesmo tempo temos maiores possibilidades de descobrir
aquilo que verdadeiramente somos e que amamos fazer, algo que realmente oriente nossas
vidas, e não só o que dizem a nosso respeito ou aquilo que aprendemos como verdade.
As perguntas que deveríamos fazer e que estamos tentando responder neste trabalho é:
Como podemos encontrar um sentido para nossas vidas em meio a essas constantes
mudanças? É possível encontrar um sentido que dê rumo para nossas vidas? Colocamos essas
perguntas que deveríamos fazer, não como uma norma moral, que deve ser obrigatoriamente
seguida por todos, mas como uma possibilidade de encontrar algo que motive as nossas vidas
sem precisarmos “demonizar” os nossos dias, ou as várias mudanças que vivemos.
Embora Frankl faça severas críticas aos dias em que vivemos, críticas essas que
consideramos de uma certa forma exageradas, ele não deixa de ser otimista, pois afirma que
uma pessoa sob qualquer circunstância pode encontrar um sentido para sua vida.
Viktor Frankl, que vivenciou o limite da existência humana no campo de concentração,
afirma que o homem é capaz de autotranscender ou superar a si próprio em função de um
22
sentido. O homem é “...incondicionado na medida em que „não se deixa absorver‟ na sua
condicionalidade.”(FRANKL, 1978, p. 69). Assim o homem, mesmo em condições
subumanas, permanece homem em si mesmo e ainda consegue transcender seus próprios
sofrimentos; e mesmo tendo sofrido as torturas do nazismo em Auschwitz, a “... existência
humana sempre vai além de si mesmo, já está sempre indicando um sentido ...”(FRANKL,
1992, p. 61). A constatação do filósofo e psiquiatra é atestada pela experiência pessoal e
também pelo desenvolvimento de sua teoria ao longo de sua vida, é uma teoria que nasce da
sua experiência, da existência humana, do cotidiano da vida. Porém continuam as perguntas:
Que sentido é este ao qual o autor se refere? Como encontrá-lo em nossos dias?
Para compreender a palavra “sentido” em Viktor Frankl, apresentamos a seguinte
afirmação do mesmo: a “...logoterapia acaba por estabelecer um confronto entre a existência e
o logos. Em teoria, não faz mais do que tomar o logos por motivação da
existência.”(FRANKL, 2003, p. 97). Para Frankl “o termo logos é uma palavra grega e
significa sentido!”(FRANKL, 2008, p. 124). Logo, o sentido é o que motiva a existência
humana, é o que dá razão de ser à existência. Diz Frankl, “...o homem realmente quer, em
derradeira instância, não a felicidade em si mesma, mas antes um motivo para ser
feliz.”(FRANKL, 1991, p. 11). Assim, o sentido nas obras de Frankl identifica-se com
encontrar motivos na existência, na vida.
Elisabeth Lukas, colaboradora de Viktor Frankl, em seu livro Assistência logoterapêutica
(1992), explicando as motivações mencionadas pelo autor afirma: “...Por esse „motivo para
ser feliz‟, Frankl entende qualquer conteúdo de sentido „autotranscendente‟.”(p. 54). A
palavra autotranscendência para Frankl é capacidade do homem de transcender a si mesmo, é
a capacidade de ir para além de si mesmo. (cf. FRANKL, 1991, p. 11). Destarte, o sentido
para vida mencionado por Frankl é o que dá razão de ser para o homem, é o que motiva a vida
de uma pessoa. Segundo o autor, para uma pessoa encontrar motivações para sua vida, é
necessário que esta transcenda a si próprio em favor de algo ou alguém. “Significa estar
direcionado para algo que não é o próprio sujeito, ou, dito com mais precisão, para alguma
coisa ou alguém fora do sujeito, pelo menos de forma prioritária.”(FRANKL, 1990, p. 15).
Daí podemos entender que temos a possibilidade de encontrar motivações para vida conforme
nos relacionamos com as várias situações que se apresentam a nós no dia-a-dia, pois podemos
encontrar um sentido para nossas vidas quando saímos de nós mesmos, quando nos
relacionamos com o mundo que nos circunda.
Dessa forma é possível compreender as palavras de Frankl quando diz que é a própria
vida que faz perguntas ao homem. (cf. FRANKL, 2008, p. 133). O homem sendo no mundo,
23
com a vida, dá respostas, „suas‟ respostas. O homem sendo no mundo é questionado pelas
situações e também questiona as situações e desse acontecimento surge a necessidade da
busca de motivações, de significados e de metas. Por isso podemos vislumbrar, em relação ao
sentido proposto por Frankl, não uma resposta precisa como desejaríamos, como se fosse uma
„coisa‟, ou „algo‟ mas, pelo contrário, o sentido está sempre „aí‟, interpelando o homem com
sua história para despertar nele o que é mais original e único em sua existência, e o homem
por sua vez também interpela sua própria história e situações.
Aqui surge uma nova questão a respeito do sentido da vida: O sentido é despertado,
construído ou é encontrado?
Frankl afirma:
“...ser humano é antes de mais nada um ser essencialmente histórico, está inserto
num espaço histórico concreto, a cujo sistema de coordenadas não logra arrancar-se.
E este sistema de relações está determinado, em cada caso, por um sentido, se não
inconfessado, talvez em geral inexprimível.”(FRANKL, 2003, p. 57).
Para Frankl o homem é um ser histórico, um ser que possui raízes, que nasce e se
desenvolve ligado a um espaço histórico, concreto e, devido a isso, suas ações são situadas
dentro desse espaço histórico que é determinado por um sentido. O espaço histórico, no qual
uma pessoa nasce, possui sua constituição, seu sentido, e é dentro das coordenadas desse
espaço que a pessoa deve encontrar o sentido de sua vida. É procurando o sentido dentro
desse espaço que a pessoa vai despertando para “aquilo” que mais motiva sua vida. É nesse
sentido que o autor afirma que cada pessoa tem sua missão específica na vida, pois somente a
pessoa, que é única e que nasceu em espaço determinado, poderá despertar para o que é mais
original e único em sua existência. Diz Frankl, cada pessoa “...tem sua própria vocação ou
missão específica na vida; cada um precisa executar uma tarefa concreta, que está a exigir
realização...”(FRANKL, 2008, p. 133). Cabe a cada pessoa relacionar-se com seu espaço
concreto, procurando em cada situação o sentido para sua vida. Diz Frankl: “o que chamo de
procura de sentido equivale à apreensão de determinadas características do real (...) caráter
objetivo das exigências inerentes a cada situação que se apresentam na vida...”(FRANKL,
1978, p. 19). Assim, para que uma pessoa possa encontrar sentido em sua vida, é necessário
relacionar-se com sua história, com sua vida, com seu espaço concreto, é nesse
relacionamento que o homem tem a possibilidade de despertar para aquilo que motiva sua
vida, para aquilo que dá razão de ser à sua existência.
24
Frankl, seguindo os passos de Max Scheler, afirma que o homem é um ser aberto ao
mundo (cf. FRANKL, 2003, p. 45). A abertura do homem para o mundo é um conceito
importante para Frankl, que o retira da antropologia de Scheler, e que nos ajuda a
compreender melhor a questão do sentido e seu conceito de pessoa. Segundo Max Scheler
(2003), a essência do homem, isto é, sua posição peculiar, o que o torna pessoa, está muito
além das funções psíquicas e aptidões, como, por exemplo, a inteligência. A característica
decisiva da essência do homem é o espírito. (cf. SCHELER, 2003, p. 35). Pessoa é “...o centro
ativo no qual o espírito aparece no interior das esferas finitas do ser...”(SCHELER, 2003, p.
36). Entre as funções biológicas e psíquicas, que o autor chama de esferas finitas, temos no
interior o espírito; para Scheler o espiritual do homem não está vinculado a pulsões e ao meio
ambiente. “Ao contrário, ele está muito mais „livre do meio ambiente‟, e, como gostaríamos
de denominá-lo, „aberto para o mundo‟...”(SCHELER, 2003, p. 36). Segundo Scheler é graças
à força do espírito do homem, que este pode abrir-se para o mundo, o homem pode ir além de
si mesmo e transformar seu próprio mundo. Podemos dizer que a abertura do homem ao
mundo é a sua característica peculiar que lhe dá a possibilidade de relacionar-se com as
diversas circunstâncias e com seus diversos espaços, a possibilidade de ir além de si mesmo,
descobrindo o novo de cada momento. É neste sentido que o homem a cada momento pode
despertar para o sentido da vida. E esse sentido encontrado a cada momento não precisa ser
um sentido para uma vida toda, mas pode ser único daquele instante. Diz o autor que o que
“....importa, por conseguinte, não é o sentido da vida de um modo geral, mas antes o sentido
específico da vida de uma pessoa em dado momento...”(FRANKL, 2008, p. 133) e afirma
mesmo que não se deveria procurar um sentido abstrato da vida. O autor observa que o
homem deve descobrir o sentido conforme as situações se apresentarem. Diz, “...cada situação
na vida constitui um desafio para a pessoa e lhe apresenta um problema para resolver (...),
cada pessoa é questionada pela vida; e ela somente pode responder à vida respondendo por
sua própria vida...”(FRANKL, 2008, p. 133).
O homem, que vive no mundo, é questionado pelas situações e também questiona as
situações e dessa relação, segundo Frankl, nasce o amor pela vida, a paixão pela existência. O
homem, como ser aberto, está sempre aí para se relacionar com os diversos momentos,
encontrando em cada hora e em cada situação um desafio, uma questão a que deve responder.
“Realmente, qualquer situação faz uma exigência (...) a nós, coloca-nos uma pergunta, à qual
damos uma resposta através de algo que fazemos, como se fosse um desafio...”(FRANKL,
1992, p. 80). O homem é um ser no mundo, é parte desse mundo e, conforme se “relaciona”
ou vai sendo no mundo, encontra diante si, no cotidiano da vida, desafios e questões a serem
25
respondidas, é neste relacionamento do homem com o mundo e do mundo com o homem que
é possível encontrar o sentido da vida. Portanto, o sentido da vida pode ser encontrado em
cada situação da vida e a cada instante em que estamos nos relacionando com as situações da
vida. Em outras palavras, a cada momento temos a possibilidade de encontrar algo que possa
dar sentido a nossas vidas, pois estamos no mundo e fazemos parte dele e por causa disso
sempre teremos que responder a alguma situação. Assim, como afirma o autor, o sentido
“...não significa algo abstrato; ao contrário, é um sentido totalmente concreto, o sentido
concreto de uma situação com a qual uma pessoa também concreta se vê
confrontada...”(FRANKL, 1992, p. 79). Cada pessoa que é única, concreta, encontra em cada
situação algo único que não se repete, pois a situação também é única e concreta. Diz Frankl:
“...a possibilidade de sentido é respectivamente única e original. Da sua
singularidade segue-se, porém, que a possibilidade de satisfação do sentido é
transitória, que ela é fugidia. Ela tem „kairós‟ – caráter! Quando nós não realizamos
uma tal possibilidade, então ela nos escapa para sempre. Se porém, nós a realizamos
uma vez, então nós a realizamos de uma vez por todas.”( FRANKL, 1990, p. 46).
Cada situação se apresenta de forma única, irrepetível de forma que, se a pessoa
„aproveita‟ o que se apresenta, a oportunidade daquele momento único, ela estará realizando
algo único e de forma original, devido à sua marca de irrepetibilidade. Em outras palavras,
cada pessoa tem a possibilidade de encontrar a cada momento, um sentido, que é próprio
àquele momento, mas, ao mesmo tempo, quando procura realizar o sentido único daquele
momento, estará realizando “o” sentido da sua vida, estará experimentando a unicidade
daquele instante, estará experimentando o sentido que encontrou naquele momento ao se
relacionar com “aquela” situação concreta.
Afirma Frankl que, quando encontramos aquele momento único, “...nós salvamos no
passado a realidade da qual fizemos uma possibilidade. Pois ela é guardada no passado. Lá ela
é preservada contra a transitoriedade.”(FRANKL, 1990, p. 46). Assim, se aproveitamos
aquele momento único para encontrar o sentido e o conseguimos, então a experiência daquele
momento é selada em nossa própria vida de modo que o sentido encontrado naquele instante
não pode ser perdido, é como um eco que ressoa ao longo da vida. Daí podemos dizer que, ao
encontrarmos um sentido, nós o encontramos de uma vez por todas, pois o sentido vivido
naquele momento é selado na pessoa que o experimentou, fazendo com que aquele sentido
encontrado seja não “um” sentido qualquer, mas “o” sentido, uma experiência única e
irrepetível.
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A cada instante temos a oportunidade de encontrar sentido para nossas vidas, pois “...cada
hora proporciona um novo sentido, e um sentido especial espera cada pessoa.”(FRANKL,
1990, p. 46). Porém, como afirma Frankl, cada pessoa deve fazer sua própria caminhada, deve
aprender a buscar o sentido para sua vida, pois o sentido é algo que não pode ser dado por
outra pessoa. (cf. FRANKL, 1995, p.267). Cada qual deve aprender a “aproveitar” o momento
único de cada situação para encontrar o sentido. “Pois não há pessoa para qual a vida não
prepararia uma tarefa, e não há situação na qual a vida pararia de nos oferecer uma
possibilidade de sentido.”(FRANKL, 1990, p. 46). Embora não possamos dizer qual o sentido
para a outra pessoa, podemos mostrar que em cada momento e em cada situação pode-se
encontrar um sentido.
Podemos perguntar: Sendo a pessoa que encontra o sentido, em cada situação, onde está o
sentido, no sujeito ou na situação? O sentido é objetivo ou subjetivo? Para responder a tais
questões, diríamos que é na vida que a pessoa vai descobrindo as diversas situações a serem
realizadas, e na relação da pessoa com o mundo que se descobrem as motivações da
existência. Frankl afirma que:
“... objetividade não exclui a subjetividade. Explico-me: o sentido é subjetivo na
medida em que não há um sentido para todos, mas sim um sentido para cada um dos
outros; entretanto, no caso concreto de que se trata, o sentido não pode ser
puramente subjetivo: não pode ser mera expressão, o puro reflexo do meu ser, nos
termos em que o subjetivismo e o relativismo o entendem e no-lo pretendem fazer
crer. Assim quando dizemos que o sentido é não só subjetivo, mas também relativo,
apenas queremos salientar que está numa determinada relação com a pessoa, - e com
a situação em que precisamente essa pessoa se realiza e se insere. Sob este prisma, é
claro que o sentido de uma situação é realmente relativo; é-o, assim, em relação a
uma situação tomada, no caso concreto, como irrepetível e única. A pessoa tem que
atingir e captar o sentido, tem que apreendê-lo e efetivá-lo isto é, realizá-lo. O
sentido, portanto, em virtude da sua relação com a situação, é também por seu termo
irrepetível e único...” (FRANKL, 2003, p. 76).
O sentido é subjetivo à medida em que é a pessoa que deve encontrar, mas isso não
significa „dar‟ um sentido qualquer arbitrariamente à vida, pois o sentido se encontra também
relacionado com as diversas situações que a vida nos apresenta. A pessoa inserida em uma
situação concreta, é chamada a responder a cada circunstância, tentando responder de maneira
significativa a essa determinada situação. O importante é encontrar “o” sentido de cada
situação concreta, que é particular daquele momento, mesmo que as situações mudem
constantemente. O sentido é despertado na situação em que a pessoa se encontra, por isso a
pessoa deve captar o sentido de cada situação. O sentido não é, portanto, só subjetivo, mas é
também objetivo, uma vez que é definido a partir das diversas situações que se apresentam na
27
vida. Portanto, o sentido se encontra na relação entre a pessoa e as diversas circunstâncias,
entre a pessoa e o mundo e o mundo e a pessoa. E como observa Lukas, “A realização do
„sentido do momento‟ constitui, assim, a fusão completa entre subjetividade e objetividade do
sentido...”(LUKAS, 1992, p. 28).
Desejamos ressaltar aqui que não existe a pessoa e o mundo, como a separação entre
sujeito e objeto, mas existe a pessoa no mundo, a pessoa constitui o mundo, faz parte do
mundo e o mundo constitui a pessoa, faz parte da pessoa. Logo, quando uma pessoa busca o
sentido para sua vida, é necessário, a partir de sua abertura, deixar que o mundo também lhe
indique o caminho, também lhe revele o sentido para vida. É por isso que o sentido “...deve
ser encontrado e não produzido. Aquilo que pode ser produzido (...) é sentido
subjetivo...”(FRANKL, 1991, p. 18). A pessoa vai sendo no mundo e o mundo vai sendo nela;
é uma relação. O sentido não pode ser definido, é isto ou aquilo, como despertado ou
construído, mas o sentido “é” algo existencial que envolve relacionamento e vivência com o
mundo; é “relacionamento” que envolve o movimento do homem para o mundo e do mundo
para o homem. Observa Frankl sobre o relacionamento do homem com o mundo ou o homem
sendo no mundo:
“Só na medida em que nos entregamos, nos sacrificamos e nos abandonamos ao
mundo e aos conteúdos e exigências que a partir dele se introduzem em nossa vida,
só na medida em que nos importa o mundo de aí fora e os objetos, mas não nós
mesmos ou nossas próprias necessidades, só na medida que cumprimos com
obrigações e exigências e realizamos sentido e valores, nessa medida nos realizamos
a nós mesmos...”(FRANKL, 1995, p. 105).
É da relação do homem com o mundo que o homem desperta para o sentido e vai
descobrindo as diversas circunstâncias a serem realizadas. Dessa forma, o sentido não é só
subjetivo nem só objetivo, pois envolve relação do homem para com o mundo e do mundo
para com o homem. O homem vai sendo no mundo e mundo vai sendo no homem, é nesse
envolvimento que surgem as motivações para vida. O homem não está pronto no mundo, mas
vai construindo-se, descobrindo-se e encontrando-se no mundo.
“...O homem jamais „é‟, „sempre chegará a ser‟. Nunca alguém poderá dizer de si
mesmo „sou aquele que sou‟ „apenas aquele que chegarei a ser‟ ou „serei o que sou‟
- serei actu, segundo a realidade, o que sou potentia, segundo a possibilidade.
Somente Deus pode afirmar de si mesmo „sou o que sou‟. Pode fazê-lo porque é
actus purus, potência atuada, possibilidade realizada. Deus é congruência de ser e
ser-assim, de existentia e essentia. No homem, porém, há sempre uma discrepância
entre, de uma parte, o ser e , de outra, o poder e o dever. Esta discrepância, esta
28
distância entre existência e essência são inerentes à vida humana como
tal.”(FRANKL, 1978, p. 232).
O sentido da existência humana está na tentativa de diminuir a distância entre o ser e
o dever-ser, entre a existência e a essência. Aqui cabe salientar que o poder e o dever-ser
mencionados pelo autor não significam normas comportamentais ou prescrições, mas
movimentos, “...o homem realize sua essência na existência...”(FRANKL, 1978, p.232). Para
o autor, cada pessoa com sua unicidade e particularidade vai encontrando-se e tornando-se ela
mesma à medida que sabe responder às situações concretas que se apresentam a ela. Diz
Frankl: „Chega a ser o que és‟ não significa somente „chega a ser o que podes e deves ser‟,
mas também „chega a ser o que só tu podes e deves ser‟.”(FRANKL, 1978, p. 232). É nesse
sentido que a pessoa realiza sua essência, pois a cada resposta que dá à “vida”, tem a
possibilidade de se descobrir, se perceber e se conhecer, mas, para que a pessoa possa se
descobrir, é necessário estar envolvida com a existência, com as situações concretas da vida.
O “...homem como ser inserido no mundo, tornando-se humano somente à medida em
que entra em contato com esse mundo.”(LUKAS, 1992, p. 28). Assim o homem realiza sua
essência, aquilo que ele é na existência. Por isso afirmamos mais uma vez que é no
relacionamento da pessoa com o mundo e do mundo com a pessoa que se encontra o sentido
para vida. Diz Frankl, “...nunca se trata de considerar „a‟ essência, mas a essência „do‟
homem, que cabe ao homem realizar e representar, a „sua‟ essência.”(FRANKL, 1978, p.
232). Trata-se aqui da pessoa em particular que busca se encontrar, que busca a realização de
sentido conforme as situações se apresentam a ela. Afirma o autor: “...o interesse
preponderante do homem não é por quaisquer condições internas dele próprio, sejam elas
prazer ou equilíbrio interior, mas ele é para o mundo lá fora, e neste mundo procura um
sentido que pudesse realizar...”(FRANKL, 1992, p. 78).
O homem envolvido com o mundo faz sempre o movimento de realizar sua essência
na existência, por isso vive na tensão entre o ser e o dever-ser, visando o sentido da vida (cf.
FRANKL, 2003, p. 98). Por isso poder e dever-ser estão ligados às possibilidades que o ser
humano tem para realizar em relação às diversas situações que se apresentam. Frankl afirma:
“A busca por sentido certamente pode causar tensão em vez de equilíbrio interior. Entretanto,
justamente essa tensão é um pré-requisito indispensável para saúde mental...” (FRANKL,
2008, p.129).
O ser humano traz consigo o desejo de encontrar motivações em sua vida e vive uma
tensão entre o “já” e o “ainda não”; o “já” por estar vivendo a cada momento tendo a
29
possibilidade de despertar o sentido e o “ainda não” por não saber se “o momento” é este ou
aquele outro. O ser humano vive dentro dessa tensão, afirma o autor: “...O que o ser humano
realmente precisa não é um estado livre de tensões, mas antes a busca e a luta por um objetivo
que valha a pena, uma tarefa escolhida livremente...”(FRANKL, 2008, p. 130). Segundo o
autor, o ser humano não precisa de um estado “equilibrado” ou de um ambiente interno
estável ou ainda de uma homeostase para encontrar sentido em sua vida; o que realmente um
ser humano precisa é de um objetivo pelo qual valha a pena viver. Podemos dizer que estamos
na vida e somos envolvidos por ela e nesse envolvimento temos várias circunstâncias,
possibilidades, vidas, podendo encontrar nesses relacionamentos sentido para vida, ao
estabelecer para nós um objetivo, uma meta a alcançar, uma finalidade. Podemos encontrar,
em cada possibilidade da vida, aquilo que é único e original, algo que valha a pena.
Aqui surgem algumas perguntas: Como é possível encontrar o sentido de cada
situação? Se o sentido não pode ser dado, alguém pode nos ajudar a encontrar? Como
podemos pontuar o sentido da vida, vivendo com a discrepância entre o ser e o dever-ser?
Como encontrarmos as motivações para vida dentro do movimento da própria vida?
Na busca de respostas a essas questões seguimos a nossa pesquisa. Frankl diz que a
busca pelo sentido “...é a consciência que orienta a pessoa. Em síntese, a consciência é um
órgão de sentido. Ela poderia ser definida como a capacidade de procurar e descobrir o
sentido único e exclusivo oculto em cada situação.” (FRANKL, 1992, p. 68). Uma pessoa
envolvida em uma situação determinada vai descobrindo através de sua consciência, por
reflexão e relacionamento, o sentido de cada situação. Mas, e se a pessoa for condicionada por
fatores internos como, por exemplo, problemas psíquicos ou externos como, por exemplo,
fatores sociais, como pobreza, fome? Se o sentido não pode ser dado e é a própria pessoa que
deve descobrir, como a pessoa envolvida na vida, nas diversas situações concretas, diante dos
diversos conflitos que a própria vida nos coloca, conseguirá orientar sua consciência para a
descoberta do sentido?
Frankl é categórico em dizer os “...sentidos, do mesmo modo como são únicos, são
também mutáveis. Mas não faltam nunca. A vida não deixa jamais de ter sentido...”
(FRANKL, 1989, p.33). Cabe a cada pessoa, como já afirmamos ao longo deste trabalho,
procurar, a cada instante e em cada situação, estar aberta ao mundo, procurando ir além a cada
instante e a cada momento. Para Frankl, a consciência pode levar ao engano, como veremos
adiante, mas se a pessoa se lançar para “fora”, para o mundo em que vive, pode encontrar um
sentido para sua vida. O homem, sendo aberto ao mundo, terá várias possibilidades de
encontrar sentido.
30
O homem não tem uma natureza determinada, pois é um ser aberto a várias
possibilidades. Afirma Figueiredo (1992) em seu artigo intitulado a Desnatureza humana:
“O homem, como pura negatividade e possibilidade de escolha, que nasce sem
natureza certa e habita um mundo infinitamente aberto ao seu engenho e arte, deve
se preocupar, desde o momento em que nasce, sobretudo com isso: sua liberdade e
sua destinação; deve depender mais de sua „consciência do que do juízo dos outros‟,
mas deve ser capaz de estabelecer contato com os outros para neste confronto
construir sua própria identidade.” (p. 24)
O ser humano não tem uma natureza definida que possa lhe dizer que é isto ou aquilo,
mas é um ser de relação que, fazendo uso de liberdade, pode responder às várias situações que
se apresentam a ele. Tanto para Frankl quanto para Figueiredo, o homem é um ser aberto e
habita em um mundo com infinitas possibilidades, podendo a partir dessas possibilidades
encontrar-se como homem. Diz Frankl que o ser humano é „unitas multiplex‟ (cf. FRANKL,
2003, p. 42). É unidade na multiplicidade e não pode ser reduzido a um único aspecto. O que
é esta unidade na multiplicidade do homem? Qual a visão antropológica de Frankl?
Apresentaremos a seguir a visão do homem de Viktor Frankl.
1.2 O conceito de pessoa.
Viktor Frankl, que vivenciou os limites da existência humana no campo de
concentração, que sofreu torturas em Auschwitz, afirma-nos que apesar de todo sofrimento a
“...existência humana sempre vai além de si mesma...”(FRANKL, 1992, p. 61). Com essa
afirmação, o autor oferece ao ser humano a possibilidade de encontrar sentido para a vida,
mesmo em face do absurdo, percebe que há uma dimensão no ser humano que, embora
ignorada, pode ajudar a curá-lo. Essa dimensão é o espírito. Há algo no ser humano que
transcende seus aspectos psico-físicos, é justamente a dimensão espiritual; é aí que residem os
fenômenos especificamente humanos.
Poderíamos perguntar: De onde vem a fundamentação de Frankl? Quais suas raízes
filosóficas? Que “espírito” é esse mencionado?
Como afirmamos no início deste trabalho, muitas correntes filosóficas já discutiram
mas não conseguiram resolver questões existenciais do homem; o homem não chegou à
maturidade tão esperada pelo positivismo. Dentre os filósofos que discutiam a existência, a
31
vida humana, Viktor Frankl, partindo da teoria antropológica de Max Scheler e da ontologia
de Nicolai Hartmann, escreve sua visão de homem.
Segundo Max Scheler, o homem possui uma essência que o torna peculiar, diferente
de todos os animais, uma essência que está muito além da inteligência e da capacidade de
escolha. É algo que abrange toda a razão, as idéias e a intuição, é algo profundo que ele
denomina “espírito”. (cf. SCHELER, 2003, p. 35). Para ele, o homem por ser espiritual é
pessoa. Afirma: “... designamos „pessoa‟ o centro ativo no qual o espírito aparece no interior
das esferas finitas do ser...” (SCHELER, 2003, p. 36). A pessoa é o centro do cosmos, é o
centro do qual nascem os atos espirituais; ela é constituída pela dimensão corpórea, psíquica
pela a dimensão espiritual.
É a partir daí que entendemos a afirmação de Frankl a respeito da pessoa: “... a pessoa,
aquela da qual se originam os atos espirituais, ela também constitui o centro espiritual em
torno do qual se agrupa o psicofísico...” (FRANKL, 1992, p. 20).
Assim como Scheler, Nicolai Hartmann concebe o ser humano com três dimensões
corpórea, psíquica e espiritual. Segundo Peter, “... Hartmann concebia o homem como
estrutura à maneira de escalas ou gradações constituídas pelas dimensões corporal, psíquica e
espiritual...”(PETER, 1999, p. 34). Peter, ao explicar a concepção de homem de Hartmann,
deixa claro que tanto este quanto Scheler admitiam a multiplicidade de dimensões do ser
humano, porém não explicavam suficientemente como se dá a unidade do ser humano, caindo
no dualismo corpo e alma. (cf. PETER, 1999, p. 35). É a partir dessas teorias que Frankl
afirma:
“Para salvar o humano, em vista das aspirações reducionistas a uma ciência
pluralista, não pouparam esforços, entre outros, Nicolai Hartmann, com a sua
ontologia, e Max Scheler, com a sua antropologia. Distinguiram estes autores
diversos graus ou camadas como corporal, o anímico e o espiritual. Correspondente
a cada qual uma ciência: o corporal, a biologia; ao anímico, a psicologia, etc. Assim,
à diversidade dos graus ou camadas corresponde precisamente o pluralismo das
ciências. Mas é de perguntar: onde fica a unidade do homem? (...) Pois eu gostaria
de definir agora o homem como unidade apesar da pluralidade...” (FRANKL, 2003,
p. 42)
Frankl elabora sua antropologia usando as palavras de Tomás de Aquino, o homem é
“... unitas multiplex...” (FRANKL, 2003, p. 42)
32
1.1 O homem como unidade múltipla.
Segundo Frankl, o ser humano possui várias dimensões: a corpórea, a psíquica e a
espiritual que, embora diversas, são inseparáveis. Há unidade no homem apesar da
diversidade. “... Existe uma unidade antropológica apesar das diferenças ontológicas, apesar
das diferenças entre as várias maneiras de ser...” (FRANKL, 1978, p. 138). O autor enfatiza a
unidade do ser humano para não o reduzirmos apenas a uma de suas dimensões como a
somática, a psíquica ou a espiritual. Daí vem o termo cunhado por ele, “ontologia
dimensional”, que significa que o ser humano possui uma unidade antropológica, embora
existam diferenças ontológicas. Afirma que a “... característica da existência humana é a
coexistência entre a unidade antropológica e as diferenças ontológicas, entre o modo de ser
unitário da realidade e as modalidades diversas em que ela se divide...” (FRANKL, 1978, p.
139). Partindo da ontologia dimensional, podemos dizer que o homem traz em si mesmo uma
unidade que coexiste com diversas modalidades de ser.
Elizabeth Lukas (1989), no seu livro Logoterapia „A força desafiadora do espírito‟,
referindo-se à ontologia dimensional afirma: “... em cada parte do ser humano tocam-se uma
na outra todas as três dimensões...” (p.28). Considera assim que existe unidade no ser
humano apesar das diversas dimensões. “O homem é um ser tridimensional...” (LUKAS,
1989, 28). Como já afirmamos acima, as dimensões somática, psíquica e espiritual, embora
distintas, relacionam-se entre si num único e mesmo homem. Frankl, para explicar a unidade
do homem, relacionada às três dimensões utiliza-se de figuras geométricas, formulando duas
leis e aplicando-as ao homem. Na primeira lei afirma:
“Se tomamos uma e a mesma coisa numa dada dimensão e a projetamos em várias
dimensões inferiores àquela que lhe é própria, a coisa em questão representa-se de
tal modo que as figuras obtidas se opõem umas às outras. Tomemos por exemplo,
um copo, representado geometricamente sob a forma de cilindro, em um espaço
tridimensional. Projetamo-lo em seguida nos planos horizontal e longitudinal; e
teremos: num caso, um círculo; no outro, um retângulo. Observa-se, entretanto, que
as figuras obtidas só se opõem enquanto se trata de um quadro fechado, ao passo que
o copo é recinto aberto.” (FRANKL, 2003, p. 43).
Na segunda lei diz:
“... tomamos agora várias coisas, em lugar de uma só. Projetamo-las, não em várias,
mas numa mesma e única dimensão, (...) aquela que lhes é própria. O resultado
obtido apresenta-se de tal modo que as figuras respectivas, em vez de se oporem
claramente, são suscetíveis de vários sentidos. No exemplo acima, tomamos um
33
cilindro, um cone e uma esfera, num espaço tridimensional, e projetamo-los no
plano horizontal, resultando, como se vê, em qualquer dos três casos, um círculo.
Convenhamos em que se trata das sombras que o cilindro, o cone e a esfera
projetam; e, realmente, as sombras são suscetíveis de vários sentidos (equívocas),
pois eu não posso concluir, partindo das três sombras certamente iguais, se o que as
projeta é um cilindro, um cone ou um esfera.” (FRANKL, 2003, p. 44).
Na primeira lei verificamos que um mesmo objeto aberto, projetado ou visto por
diferentes pontos, reproduz diferentes figuras fechadas que não representam o objeto na sua
totalidade. Aplicando essa primeira lei ao ser humano, observamos que o homem, ser aberto
ao mundo (cf. SCHELER, 2003, p. 36), traz em si mesmo uma infinidade de possibilidades
que não podem ser reduzidas a uma única dimensão. Assim, se o homem é visto apenas por
uma das dimensões, acaba chegando-se a sistemas fechados, reducionistas, ou seja, a redução
a dimensões específicas projeta figuras que se contradizem como no exemplo, figuras que são
retangulares e circulares, e que não projetam o que o ser humano de fato é.
Da mesma forma, na segunda lei, se pegarmos figuras distintas e projetarmos em uma
única e mesma dimensão, teremos sombras idênticas, embora as figuras sejam distintas. Ou
seja, se olharmos figuras distintas sob uma única e mesma ótica, veremos sombras idênticas
que não dizem o que de fato são as figuras, podendo-se cair novamente no reducionismo.
Aplicando esta segunda lei ao ser humano, podemos dizer que, se olharmos o ser humano por
um único prisma, estaremos reduzindo-o a um único aspecto ou uma única dimensão,
descartando todas as outras possibilidades de ser. Diz Frankl:
“A projeção no plano biológico produz fenômenos somáticos, enquanto a projeção
no plano psicológico, fenômenos psíquicos. À luz da ontologia dimensional, a
contradição não diz respeito à unidade do homem. Tanto quanto a contradição entre
o círculo e o retângulo abrange o fato de que se trata da projeção de um mesmo
cilindro. Não percamos, porém, de vista que a unidade do ser-assim do homem lança
uma ponte sobre a diversidade das modalidades de ser em que se divide; assim, a
superação de opostos como soma e psique (...) não deve ser buscada no plano em
que o homem é projetado. Pelo contrário, é exclusivamente numa dimensão superior
que pode ser encontrada, na dimensão do especificamente humano.”(FRANKL,
1978, p. 141).
Segundo Frankl, o fato de o ser humano poder ser projetado ou visto por várias
dimensões, como a somática e a psíquica, não contradiz a unidade do homem, pois as
projeções dessas dimensões dizem respeito a um mesmo e único ser humano, que possui
vários modos de ser. A unidade do homem, segundo o autor, não pode ser buscada em
dimensões que se projetam ou em dimensões específicas, pois podemos cair no reducionismo,
34
mas deve ser buscada na dimensão especificamente humana. E a dimensão especificamente
humana, como já afirmamos acima, é que o homem é um ser aberto ao mundo. O “...ser
humano é profundamente caracterizado como ser aberto à realidade externa, como foi
demonstrado por Max Scheler (...). Ou ainda, como disse Martin Heidegger, o ser humano é
„um ser-no-mundo‟.”(FRANKL, 1989, p. 41). A unidade antropológica do ser humano não se
encontra em uma dimensão limitada, fechada; ao contrário, o ser humano é mais humano
quanto mais aberto for ao mundo em que vive, por isso, se desejamos “apreender” o ser
humano na sua “totalidade”, não podemos olhar para dimensões específicas, mas para sua
abertura ao mundo. Diz Frankl: “...o fato fundamental que ser homem significa estar em
relação com alguma coisa ou com alguém diferente de si, seja isto um significado a ser
realizado ou outros seres humanos a encontrar.”(FRAN KL, 1989, p. 41). O ser humano,
quanto mais aberto for, mais humano será, mais unidade terá, sem desconsiderar as
diversidades do ser. O ser humano é “... unitax multiplex, como foi definido por Tomás de
Aquino...”(FRANKL, 1989, p. 41). É unidade apesar da diversidade.
Segundo Frankl, para que o ser humano possa ser realmente aberto ao mundo, ser ele
mesmo, é necessário considerar todas as diversidades de ser do homem, para que, a partir daí,
possamos de fato reconhecer a unidade do homem apesar da diversidade no modo de ser. E,
para abordamos todas as diversidades de ser do homem, não podemos descartar a dimensão
espiritual. Diz Elisabeth Lukas citando Frankl:
“Em nosso esquema dimensional resulta da tridimensionalidade do homem que o
que é propriamente humano só pode manifestar-se quando ousamos entrar na
dimensão do espiritual. O homem só é visível como tal, na medida em que
incluirmos esta terceira dimensão na meditação sobre o mesmo: só então deparamos
com o homem como tal...”(FRANKL apud LUKAS, 1989, p.30).
Segundo Frankl, o ser humano somente pode ser reconhecido como de fato é, se
também considerarmos a dimensão espiritual, que é uma característica específica, própria do
homem. Se não considerarmos a dimensão espiritual do homem, não podemos compreendê-lo
em sua totalidade. Diz Frankl: “...ao homem total, pertence o espiritual, e lhe pertence como a
sua característica mais específica...”(FRANKL, 1992, p. 21). Explica Lukas:
“De acordo com a concepção de Frankl, o homem realmente possui corpo,
comparável ao dos outros organismos, e uma dimensão psíquica, que abrange as
emoções humanas diferentes, com base nos instintos. Porém, acima destas
dimensões, possui ainda uma dimensão espiritual, que constitui a dimensão
verdadeiramente humana, a dimensão que realmente eleva o homem acima do
animal, não apenas quantitativa, qualitativamente...”(LUKAS, 1992, p. 20).
35
Frankl não desconsidera a dimensão somática e a dimensão psíquica do ser humano,
porém para ele o que dá especificidade ao homem é a dimensão espiritual. Daí, a importância
de adentrarmos com mais precisão na dimensão espiritual.
Ricardo Peter (1999), autor do livro Viktor Frankl - a antropologia como terapia
reproduzindo Frankl afirma que o “...homem aparece „centrado‟, integrado em torno de uma
realidade pessoal, fonte de todas as atividades especificamente humanas...”(p. 39). Frankl
considera que o homem possui um núcleo pessoal, do qual nascem todas as atividades
humanas e esse núcleo pessoal, no qual estão agrupadas as dimensões somática e psíquica, é a
dimensão espiritual, como veremos adiante.
1. 2 O homem como ser espiritual.
Quando observamos o homem somente a partir da dimensão somática, psíquica ou
social, podemos cair no reducionismo, que restringe o homem a apenas um aspecto, deixando
de lado as outras dimensões, inclusive a espiritual.
Segundo Frankl não podemos reduzir o ser humano somente à dimensão física,
psíquica ou social, mas devemos olhar o ser humano de modo integral, com sua dimensão
espiritual. Diz ele que o ser humano “...está sempre centrado, centrado em torno de um meio,
em torno de seu próprio centro...”(FRANKL, 1992, p.20). O homem aparece centrado,
integrado em torno de uma realidade pessoal, que podemos chamar de núcleo ou dimensão
espiritual. (cf. PETER, 1999, p.39). Afirma Frankl:
“Pelo fato de o ser humano estar centrado como indivíduo em pessoa determinada
(como centro espiritual existencial), e somente por isso, o ser humano é também um
ser integrado: somente a pessoa espiritual estabelece a unidade e totalidade do ente
humano. Ela forma esta totalidade como sendo bio-psico-espiritual. Não será demais
enfatizar que somente esta totalidade tripla torna o homem completo.”(FRANKL,
1992, p. 21).
Para Frankl a dimensão espiritual é a dimensão específica do ser humano, que nos dá
possibilidade de compreender o mesmo, na sua totalidade ou integralidade. Se afirmamos que
a totalidade do homem é somente dotada de corpo-mente, estaremos desconsiderando a
dimensão espiritual, pois a totalidade não é somente psicofísica, mas também espiritual.
36
Frankl, explicando como acontece a relação entre as três dimensões do ser humano ou
sua tridimensionalidade, afirma:“... o núcleo pessoal, aquele centro espiritual-existencial, ao
redor do qual estão agrupados o psíquico e o físico em estratos periféricos, seja dotado de um
prolongamento.”(FRANKL, 1992, p. 21). O núcleo pessoal do ser humano para Frankl é
também a dimensão espiritual, o seu centro espiritual, em torno do qual estão agrupados os
estratos psicofísicos, que atravessam o consciente, o pré-consciente e o inconsciente. (cf.
FRANKL, 1992, p. 21). Para ele, o núcleo central e os estratos psicofísicos estão
extremamente ligados de modo que qualquer atitude, física, psíquica ou espiritual, é uma
atitude do homem inteiro, na sua totalidade, ou seja, quando alguém realiza uma ação, quem
realiza é a pessoa com toda a sua dimensão bio-psico-espiritual.
O centro espiritual-existencial é de onde nascem todas as atividades especificamente
humanas, é a realidade pessoal do homem, que para Frankl é a dimensão profunda chamada
espiritual-existencial; é existencial porque é dessa dimensão que parte a existência do homem,
é espiritual porque é dessa dimensão que surgem os atos espirituais, que se prolongam para o
psíquico e para o somático. Para ele o espiritual-existencial é o núcleo mais profundo do
homem, é onde se encontra o que é mais específico do homem. O psíquico e o somático
agrupam-se em torno dessa realidade pessoal.
“A relação entre a pessoa espiritual e o organismo somático é instrumental. O
espírito instrumenta o psicofísico – a pessoa organiza o organismo psicofísico – sim,
ela o forma „para si‟, na medida em que o faz utensílio, órgão, instrumentum. A
pessoa espiritual comporta-se, em relação ao seu organismo, de modo análogo ao
músico em relação ao seu instrumento.”(FRANKL, 1978, p. 117).
Para o autor o que constitui o homem pessoa é o espiritual, e é a partir dessa dimensão
que se organizam o psíquico e o físico.
Frankl, ao se referir à pessoa, na sua dimensão mais profunda, diz que o termo „pessoa
profunda‟ refere-se “...a esta pessoa espiritual-existencial, à sua profundeza
inconsciente...”(FRANKL, 1992, p. 22). Para ele a pessoa profunda na sua existência
profunda é inconsciente, ou seja, a pessoa espiritual na sua realidade mais profunda não é
passível de esclarecimento.
“Resumindo, podemos dizer que a pessoa profunda, a saber, a pessoa profunda
espiritual, aquela que merece ser chamada assim, no verdadeiro sentido da palavra, é
irreflexível por não ser passível de reflexão e, neste sentido, pode ser chamada
também de inconsciente. (...) Em outras palavras, na sua profundeza, „no fundo‟, o
37
espiritual é necessário, por ser essencialmente inconsciente.”(FRANKL, 1992, p.
24).
O espiritual não é passível de ser observado, ou melhor, o espiritual encontra-se no
nível ontológico da pessoa e não pode ser reduzido ao nível ôntico. Daí a afirmação de Frankl
que a pessoa profunda espiritual é uma realidade irrefletida, é uma realidade inconsciente.
“Da mesma forma que no local de origem da retina, ou seja, no ponto de entrada do nervo
ótico, a retina tem seu „ponto cego‟, assim também o espírito, precisamente na sua origem, é
cego a toda auto-observação e auto-reflexão...”(FRANKL, 1992, p. 24). Em outras palavras, a
realidade espiritual da pessoa é uma realidade ontológica, é uma realidade essencialmente
invisível.
Aqui podemos levantar as perguntas: Como podemos apreender o que não pode ser
apreendido? Como podemos falar da pessoa espiritual, sendo que esta permanece no nível
ontológico? Diz Frankl: “...a existência espiritual, ou seja, o próprio eu, o eu „em si mesmo‟ é
irreflexível e, assim somente executável, „existe‟ somente em suas execuções, somente como
„realidade de execuções‟. (FRANKL, 1992, p. 23). Assim, embora não possamos apreender a
dimensão espiritual na sua essência, na especificidade da pessoa, podemos captar sua
existência na execução. Sendo a pessoa aberta ao mundo e relacionando-se com as diversas
situações que se apresentam ela, tentando encontrar respostas que dêem sentido à vida, há
possibilidades de captar a dimensão espiritual. O que captamos ou percebemos é o ser-assim,
como se apresenta diante dos olhos, e não a coisa-em-si, no mais profundo, na sua raiz, pois
esta só se dá a conhecer na execução, na realidade de execuções. (cf. FRANKL, 1978, p. 90).
Segundo Frankl, como já afirmamos acima, é na realidade das execuções que temos a
oportunidade de captar o eu espiritual-existencial, e isso só pode acontecer quando a pessoa,
abrindo-se para realidade em que se encontra, depara-se com ser conhecido, „explorado‟ e
experimentado. É nessa relação que temos a oportunidade de nomear e experimentar a pessoa
espiritual. Dizemos “experimentar”, porque é algo que se dá na relação do homem com o
mundo, na sua abertura para o mundo, e isso não pode ser calculado, medido, colocado em
um espaço ou até mesmo visto, mas simplesmente realiza-se na abertura do homem para o
mundo.
Frankl falando do eu espiritual na sua dimensão profunda, do ponto de vista
ontológico, diz: “...o ente espiritual „é‟ o outro „ente‟; este ente, por sua vez, não é
evidentemente nem „fora‟ nem „dentro‟ do ente espiritual.(...)Este ente é simplesmente „aí‟.”(
FRANKL, 1978, p. 95). No sentido ontológico, sujeito e objeto se entrelaçam existindo entre
38
eles uma reciprocidade. Não é somente o sujeito que está no objeto, mas o objeto também está
no sujeito. Em outras palavras, como já afirmamos, o homem constitui o mundo e o mundo
constitui o homem. A essência do ser espiritual é estar em relação ou estar aberto a algo ou
alguém, ao outro; é na relação do homem com o mundo, que encontramos a possibilidade de
experimentar a essência do ser espiritual. Pois é quando o sujeito e o objeto se entrelaçam que
podemos conhecer um e outro; o ente espiritual é “de qualquer modo” em outro ente. O “estar
em” não é algo estático, mas dinâmico, um movimento em que um se direciona para o outro
para poder conhecê-lo, apreendê-lo. (cf. FRANKL, 1978, p. 97). O autor, a partir da
ontologia diz: o “... „ser (estar) em‟ outro ente nunca está fora, mas simplesmente
„aí‟...”(FRANKL, 1978, p. 97). Em outras palavras podemos dizer que o ser espiritual só toma
“consciência” de si, está “em si” na medida em que se relaciona como o outro, na medida em
que é aberto. Afirma Frankl: “...o ente espiritual é ente espiritual, é ser-consciente, é “em si”,
na medida em que “é” (está) em outro ente, na medida em que “tem” consciência de outro
ente.(FRANKL, 1978, p. 97).
Frankl explica que o “ser-aí”, o ente em outro ente, quando passa para “...posição
reflexiva que se presta à psicologia é que se rompe este simples „ser aí‟ e se divide em sujeito
e objeto...”( FRANKL, 1978, p. 93). O “ser-aí” passando do campo ontológico para o ôntico,
passa a ser analisado, compreendido e interpretado, tornando-se relação entre coisas, com a
separação entre sujeito e objeto. (cf. FRANKL, 1978, p. 95)
O ente espiritual é ou se dá na medida em que é em outro ente, é “...ser-consciente é
„em-si‟ na medida em que „é‟ (está) em outro ente, na medida em que „tem‟ consciência de
outro ente...”( FRANKL, 1978, p. 97). Assim, o ser espiritual é inconsciente e manifestado na
execução. A manifestação não pode ser calculada, mas experimentada na vivência do dia-a-
dia, na descoberta do sentido de cada situação. E essa descoberta do sentido só pode começar
a se dar a conhecer à medida que o homem tiver abertura às circunstâncias que o rodeiam;
pois o homem, mesmo sendo um ser espiritual, pode se fechar para a relação com outro e
dessa forma estaria inibindo a sua própria essência. O mesmo acontece com a questão da
liberdade, que é um atributo da existência humana.
1.3 O homem livre e responsável
Frankl, além de nos esclarecer que o homem é ser espiritual, também afirma que
liberdade e a responsabilidade constituem parte da existência humana. Para ele, o homem é
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ser livre, porém a “...liberdade humana é liberdade limitada. O homem não é livre de certas
condições. Mas é livre para tomar posições diante delas. As condições não o condicionam
inteiramente. (...) Ele pode até superar as condições e, assim fazendo, abrir-se um caminho a
penetrar na dimensão humana...”(FRANKL, 1989, p. 42). O homem pode se autodeterminar
nas situações que a existência apresenta, respondendo a seu modo a cada uma delas. No livro
Em busca de sentido - um psicólogo no campo de concentração, Frankl fazendo uma
promessa a si mesmo demonstra, através do testemunho pessoal, como foi conquistando a
liberdade dia após dia, perante os sofrimentos por que passava na prisão.
“...na primeira noite em Auschwitz, pouco antes de adormecer, fiz a mim mesmo a
promessa, uma mão apertando a outra, de não „ir para o fio‟. Esta expressão,
corrente no campo, designava o método usual de suicídio: tocar no arame farpado,
eletrificado em alta tensão...”(FRANKL, 2008, p. 33).
Embora as condições no campo de concentração pudessem levá-lo ao suicídio, ao
desespero, Frankl, fazendo uma promessa a si mesmo, decidiu conservar a própria vida
resistindo às piores humilhações e sofrimentos. Foi fazendo uso da sua liberdade “limitada”,
pois estava preso, que ele percebeu que tinha autonomia para decidir se iria ou não se matar. É
exatamente nesse sentido, na autonomia sobre si mesmo, que o homem se torna livre perante
os condicionamentos, como no caso do exemplo acima, livre perante a prisão.
“A experiência da vida no campo de concentração mostrou-nos que a pessoa pode
muito bem agir „fora do esquema‟. Há suficientes exemplos, muitos deles heróicos,
que demonstraram ser possível superar a apatia e reprimir a irritação; e que continua
existindo, portanto, resquício de liberdade do espírito humano, de atitude livre do eu
frente ao meio ambiente, mesmo nessa situação de coação aparentemente absoluta
prisão, tanto exterior como interior...” (FRANKL, 2008, p.88).
Frankl, a partir de sua promessa, testemunha que, embora estivesse condicionado
como prisioneiro no campo de concentração e estivesse passando pelos piores tormentos,
decidiu a partir do seu íntimo agir “fora do esquema” na prisão, lutando contra apatia, a
irritação e todas as outras formas de desânimo. Frankl afirma que o homem pode se colocar
acima das circunstâncias, pode decidir se transcende ou não perante as situações internas
(pessoais) ou externas (sociais) que se apresentam a ele. Transcender aqui, como já afirmamos
durante o trabalho, é a capacidade do homem de ir além de si mesmo, de poder ter autonomia,
mesmo que as circunstâncias sejam adversas.
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“Em princípio, portanto, toda pessoa, mesmo sob aquelas circunstâncias, pode
decidir de alguma maneira no que ela acabará sendo, em sentido espiritual: um
típico prisioneiro de campo de concentração, ou então uma pessoa humana, que
também ali permanece sendo ser humano e conserva a sua dignidade...”(FRANKL,
2008, p. 89).
O homem pode ser livre perante os condicionamentos biológicos, psíquicos e sociais.
Com isso não queremos dizer que o homem possa não ter esses condicionamentos biológicos,
psíquicos ou sociais; para Frankl, é o homem que possui os instintos, as heranças e os
condicionamentos e não estes que possuem o homem, ou seja, o homem é senhor de seu
“destino”. Podemos viver os piores condicionamentos, como no caso de Frankl, como
prisioneiro no campo de concentração, mas ainda assim, a “...liberdade espiritual do ser
humano, a qual não lhe pode tirar, permite-lhe, até o último suspiro, configurar a sua vida de
modo que tenha sentido.”(FRANKL, 2008, p. 90). É o homem, até o último momento, que
tem a possibilidade de configurar o sentido da sua existência, mudando de atitude perante a
restrição forçada que atua de fora sobre o seu ser. Em outras palavras, o homem, mesmo
caminhando para morte, como muitos caminharam do campo de concentração para câmara de
gás, pode ainda aí ser livre para morrer com hombridade ou não, mesmo não desejando
morrer, mesmo sofrendo. A liberdade não nasce das circunstâncias externas, mas da dimensão
espiritual, do interior. Diz Frankl:
“...o homem, como ser espiritual, não sé se encontra confrontado com o mundo –
tanto com o meio ambiente como com seu mundo interior – como também toma
posição diante dele, sempre pode „dispor-se‟ e „comportar-se‟ de alguma forma
diante dele, e esse comportamento é precisamente um comportamento livre. Em
qualquer momento de sua existência, o homem toma posição tanto em relação ao
meio ambiente natural e social, o entorno externo, como diante do mundo interior
psicofísico vital, o entorno interno.”(FRANKL, 1995, p. 95).
Segundo Frankl, é a partir do seu núcleo mais íntimo que o homem, como ser
espiritual, pode agir livremente. É como pessoa que pode se comportar livremente, sejam
quais forem as circunstâncias...”(FRANKL, 1995, p. 96). É aprendendo a responder às mais
variadas circunstâncias que podemos cada vez ser mais pessoa e cada vez mais ser livres.
Cada pessoa tem sempre a última palavra, e ninguém pode entrar em sua intimidade, no seu
ser mais profundo, para dizer como tem que responder perante as circunstâncias. A pessoa,
mesmo sofrendo diversos condicionamentos, pode agir livremente a esses.
Segundo Frankl, quando nascemos, nascemos com nosso “destino”, ou seja, nascemos
com nossas circunstâncias, com nossos limites, nascemos dentro de um espaço histórico
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determinado, com hereditariedade determinada, mas nascemos também com capacidade para
superar o que pode nos determinar, pois podemos superar nossas próprias limitações. Diz
Frankl:
“...o homem é livre; mas isto não significa que esteja flutuando, por assim dizer,
num espaço sem ar, pois, ao contrário, acha-se envolvido por uma série de vínculos.
Estes vínculos, contudo, são os pontos de arranque para a sua liberdade. A liberdade
pressupõe vínculos, refere-se a vínculos. Mas tal referência não significa submissão
nenhuma...”(FRANKL, 2003, p. 120).
Embora o homem nasça e cresça com uma série de circunstâncias que dizem quem ele
é, que dizem da pessoa dele, é a partir dessas mesmas circunstâncias que ele também pode
decidir o que ele quer ser, pois, a cada passo de sua vida, pode ir se libertando daquilo que o
determina. O homem tem a liberdade “...para transformar-se em algo diferente...”(FRANKL,
1995, p. 96). O homem, fazendo uso de sua liberdade, pode configurar sua própria existência,
pode decidir-se a cada instante. Porém podemos levantar uma questão: Se somos livres,
podemos fazer o que queremos? Segundo o autor, “...o homem não pode fazer tudo o que quer
fazer: a liberdade humana, por conseguinte, não se identifica com a onipotência.”(FRANKL,
1995, p. 99). Para Frankl, a liberdade humana é limitada, mesmo não havendo
condicionamentos, pois só somos livres para sermos nós mesmos, ou melhor, o homem é livre
para ser ele mesmo.
E o que significa ser si mesmo? Para Frankl, significa ser um homem em busca de
sentido. E para se buscar o sentido da vida, como já afirmamos anteriormente, é necessário
abertura da parte do homem às várias circunstâncias, é necessário aprender a se relacionar e
saber responder às várias situações que se apresentam a ele no dia-a-dia. É nessa busca e
abertura por parte do homem que este tem a oportunidade de ir se encontrando e se
percebendo como de fato é. Por isso a liberdade humana não pode ser absoluta, no sentido de
querer fazer o que se quer e como se quer, pensando somente em si próprio, no próprio ego e
nas próprias satisfações; para que o homem seja livre é necessário ser aberto ao mundo e, ao
mesmo tempo, saber responder a esse mundo que também se abre a ele. É nessa abertura que
o homem pode ser ele mesmo. “Se o homem quer chegar a seu eu, a seu si-mesmo, o caminho
passa pelo mundo.”(FRANKL, 1995, p. 105). Assim, vemos que a liberdade, para o autor, é
uma liberdade conquistada, pois é necessário que se esteja envolvido com o mundo e
responder a este mundo. Daí vem a afirmação de Frankl, “...a liberdade não é tudo: na
liberdade está pressuposta a responsabilidade. A liberdade, em outras palavras, não é
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realmente tal se prescinde da responsabilidade.” (PETER, 1999, p.77). Para o homem ser
livre é necessário saber responder à vida. E para Frankl “...somente pode responder sendo
responsável.”(FRANKL, 2008, p. 133).
O que significa ser responsável, para Frankl? Escreve o autor, “ser responsável é ser
seletivo, possuir capacidade para escolher.”(FRANKL, 1991, p. 19). Como já afirmamos
muitas vezes neste trabalho, a pessoa questiona a vida e a vida questiona a pessoa, e é
somente neste entrelaçamento que a pessoa pode responder à vida, respondendo por sua
própria vida ou fazendo escolhas para sua própria vida. Para Frankl responsabilidade ou o ser
responsável remete à capacidade que o homem tem de poder responder às várias
circunstâncias que se apresentam a ele de maneira significativa. Logo, podemos dizer que ser
responsável é saber responder às situações da vida, tendo sempre em vista que o homem é
sempre orientado para um sentido e para os valores.
“Ser livre é apenas o aspecto negativo do fenômeno completo, no qual o aspecto
positivo é ser responsável. A liberdade pode degenerar em mera arbitrariedade, a
menos que seja vivida em termos de responsabilidade.”(FRANKL, 1989, p. 54).
Portanto, a pessoa para ser livre precisa aprender a responder à vida, às diversas
situações, precisa ser responsável, pois sem responsabilidade a pessoa poderia fazer o que
quisesse sem medir seus atos e suas conseqüências, e dessa forma estaria se desviando do que
lhe é mais próprio, de si próprio, que significa ser um homem que busca o sentido, a partir de
sua abertura ao mundo. A resposta que a pessoa vai dando, ao longo da vida, deve estar
sempre ligada à busca de sentido que tenta encontrar para sua própria vida, pois, como afirma
Frankl, “...a busca do indivíduo por um sentido é a motivação em sua vida.”(FRANKL, 2008,
p. 124).
Porém, quem julgaria a responsabilidade ou as respostas que vamos dando às
situações? Podemos dizer que a “...primeira instância com relação à qual o homem se sente
responsável é a própria consciência...”(PETER, 1999, p. 80). Para Frankl, a consciência “...é
um órgão de sentido. Ela poderia ser definida como a capacidade de procurar e descobrir o
sentido único e exclusivo oculto em cada situação.”(FRANKL, 1992, 68). Logo, é a
consciência que orienta a pessoa nas diversas respostas que deve dar diante da vida. Assim
levanta-se outra pergunta: A consciência ou o órgão de sentido não pode cair em uma ilusão
na busca do sentido, ou em um sentido errado?
Frankl afirma que:
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“A consciência também pode enganar a pessoa. Mais ainda: até o último instante,
até o último suspiro a pessoa não sabe se ela realmente cumpriu o sentido de sua
vida ou se ela apenas se enganou: Ignoramus et ignorabimus, não sabemos nem
agora, nem mais tarde. O fato de que nem em nosso leito de morte saberemos se o
órgão de sentido, nossa consciência, em última análise não foi vítima de uma ilusão
de sentido, também implica que uma pessoa não sabe se não é a consciência do
outro que tinha razão. Isso não quer dizer que não exista verdade. Somente pode
haver uma verdade; mas ninguém pode saber se é ele e não o outro que
possui.”(FRANKL, 1992, 68).
Segundo Frankl, uma pessoa seguindo sua consciência pode passar uma vida inteira
realizando ações, como se tivessem o sentido buscado e, ao chegar ao final de sua vida, pode
perceber que as ações realizadas, que o sentido que estava seguindo não era o que realmente
motivava sua vida. Neste caso a consciência da pessoa levou-a ao erro.
Porém, embora exista a possibilidade de respondermos de maneira errada à própria
consciência, Frankl nos dá algo objetivo para não cairmos no erro ou no subjetivismo,
orientando-nos que o sentido é algo para “fora”, para além do próprio sujeito. As respostas
que vamos dando ao longo da vida devem estar relacionadas com algo além de nós mesmos.
Segundo o autor, o homem é abertura para o outro e por isso afirma:
“... o interesse preponderante do homem não é por quaisquer condições internas dele
próprio, sejam elas prazer ou equilíbrio interior, mas ele é orientado para o mundo lá
fora, e neste mundo procura um sentido que pudesse realizar ou uma pessoa que
pudesse amar.”(FRANKL, 1992, p. 78).
Portanto, para Frankl, o homem se realiza à medida em que se esquece de si próprio,
dedicando-se a uma causa, a um sentido objetivo ou a uma pessoa que ama. Esse movimento
para fora, para os outros, buscando sempre metas a realizar, é um movimento que leva o
homem a se tornar mais humano, mais ele mesmo, pois está sendo aberto ao mundo, está
sendo aberto aos outros.
Para Frankl, como já vimos, uma pessoa pode transcender (ultrapassar, ir além de si
mesmo), superar seus próprios limites conforme ela se abre ao mundo. Porém, o movimento
de abertura do homem não pode ser calculado e medido; nem a própria pessoa pode dizer a si
própria o quanto deve abrir-se e nem ninguém pode dizer para ela até que ponto ela deve ser
aberta ao mundo, às coisas e ao outros; o importante é ir sendo no mundo; é envolvendo-se
com o mundo que o sentido “se deixa” descobrir. É no “despojamento do próprio eu” em
direção ao mundo que se realiza e se encontra o sentido para sua vida.
A existência torna-se autêntica, ou seja, o homem realiza sua existência como é,
quando tende para o logos, na medida em que se torna ser-para-os-outros. É sendo com os
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outros, ou relacionando-se com os outros que o homem vai se tornando livre e responsável,
pois aprende a decidir e responder conforme as situações se apresentam a ele, em vista de
encontrar um sentido para sua vida.
Em nossos dias observamos que muitas pessoas aprenderam a se decidir, a se
autodeterminar, tornando-se “livres” perante as imposições culturais, sociais e religiosas.
Porém, regozijando-se da “liberdade”, fazendo o que querem e como querem, acabam
esquecendo-se da responsabilidade pelos outros e exatamente aí as pessoas não conseguem
iniciar sua transcendência, pois sua existência carece de sentido, já que a existência autêntica
não é somente para si, mas especialmente ser-para-outros, ser em relação com os outros.
Logo, a transcendência tem início quando a pessoa começa a abrir-se ao outro.
1.3. A vontade de sentido.
Como já afirmamos, para Frankl a experiência do sujeito humano está orientada
essencialmente para além de si mesmo, para os outros, e é desse modo que o homem torna-se
transcendente (que pode ir além de si-mesmo). Podemos perguntar então de onde vem a força
propulsora que leva o homem para além de si mesmo.
Com o desenvolvimento do conceito de pessoa, percebe-se que para Frankl o homem
possui em si mesmo a dimensão espiritual, como uma estrutura concêntrica que congrega em
torno de si o psíquico e o somático, e também que é livre e responsável, sendo capaz de
superar as limitações e os condicionamentos. Assim, o homem possui um corpo, uma psiquê e
juntamente com eles um espírito, que constitui a dimensão verdadeiramente humana.
“O Espírito não busca o prazer; busca o sentido. O Espírito não procura satisfação
de suas necessidades; procura no mundo tarefas e objetivos que tenham
sentido...”(LUKAS, 1992, p. 21).
Por isso podemos afirmar que o homem, como ser essencialmente espiritual, é um ser
que tem como motivação primária, o sentido. É um ser orientado para o sentido da vida, e
mesmo não tenha consciência disso, está sempre buscando esse sentido.
“Para a logoterapia, a busca de sentido na vida da pessoa é a principal força
motivadora no ser humano. Por esta razão costumo falar de uma vontade de sentido,
a constratar com o princípio do prazer (ou, como também poderíamos chamá-lo, a
vontade de prazer) no qual repousa a psicanálise freudiana, e contrastando ainda
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com a vontade de poder, enfatizada pela psicologia adleriana através do uso do
termo „busca de superioridade ”(FRANKL, 2008, p. 124).
A vontade de sentido é, nessa perspectiva, o motor da vida humana, é a inquietação da
existência, é a força de superação perante as dificuldades e os desencontros. O que
“...realmente impulsiona o homem não é a vontade de poder, nem a vontade de prazer, mas
sim a vontade de sentido, que é a razão para ser feliz. O homem não é impelido pelo impulso,
mas puxado pelos valores.”(XAUSA, 1986, p. 145).
O que move a vida do homem, para Frankl, não é o prazer ou os instintos à
semelhança dos animais ou ainda o poder, mas sim a vontade de encontrar um sentido em sua
vida. O homem encontra em si mesmo a vontade de buscar e realizar um sentido, e à medida
que procura realizar essa vontade, vai realizando sua própria existência.
É da dimensão espiritual que partem todos os movimentos especificamente humanos, é
de onde nasce a vontade de sentido. “...Portanto, as autênticas decisões existenciais (...)
provêm daquilo que constitui a parte mais humana do homem, o Eu-espiritual.”(PETER,
1999, p. 90). É dessa dimensão que nascem as realizações éticas, amorosas e religiosas.
Podemos dizer que é da dimensão espiritual ou do inconsciente espiritual que surge a
necessidade que o homem sente de se ligar ao outro, a alguma comunidade e a Deus. E assim
o homem torna-se capaz de sair de si e de orientar-se para algo diverso de si, como afirmamos
anteriormente. O movimento de sair de si em direção a algo ou a alguém é o que Frankl
chama de transcendência.
O movimento de abertura do homem levado até as últimas possibilidades, segundo
Frankl, desemboca no sentido último que é, para a pessoa religiosa, Deus. O movimento de
abertura para o sentido último é também chamado de transcendência vertical. Aqui “...está se
referindo à transcendência completa que se verifica na relação do homem com o „Ultimate
Meaning‟...”, o sobre-significado.”(PETER, 1999, p. 25). O sobre-significado ao qual Peter se
refere é o supra-sentido mencionado na obra de Viktor Frankl, que discutiremos nos próximos
parágrafos.
Segundo Frankl, como temos acompanhado ao longo deste trabalho, a existência
humana torna-se autêntica à medida em que está orientada para além de si mesmo, para algo
ou alguém e também para um sentido último. Desse modo a existência humana estará vivendo
a autotranscendência, ultrapassando-se pois sai de si mesma e vai em direção ao outro.
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Frankl criou o conceito de supra-sentido que é o sentido último que excede e
ultrapassa a capacidade de conhecimento finita do ser humano. (cf. FRANKL, 2008, p. 142).
A suposição de um “supra-sentido” abre-nos a possibilidade de compreender aspectos do
mundo que nossa razão considera sem sentido, como por exemplo, a existência do mal, o
sofrimento das pessoas inocentes, a morte, mas que podem ter sentido em uma dimensão
superior (cf. LUKAS, 1992, p. 25). É lógico que para o homem que se direciona para o supra-
sentido, é necessária a fé. Segundo Frankl,
“...o que é in-compreensível (...), não precisa ser in-acreditável (...). De fato, é
impossível descobrir apenas pelo intelecto se, em última análise, tudo é desprovido
de sentido, ou se existe um sentido encoberto por detrás de tudo. Embora não haja
resposta intelectual a esta pergunta, é possível assumir diante dela uma decisão
existencial. Diante do fato de que é igualmente concebível que tudo tenha um
sentido, e que tudo seja desprovido de sentido, ou seja, que os argumentos pró ou
contra um último sentido se mantenham equilibrados nos pratos da balança,
podemos jogar o peso de nosso próprio ser no prato a favor do sentido, decidindo-
nos por uma das possibilidades de pensamento, o homem que crê num sentido diz o
seu fiat ou „amém‟: „Assim seja, faço a opção por agir „como se‟ a vida tivesse um
sentido infinito, além de nossa capacidade finita de compreensão, enfim, um „supra-
sentido‟.‟ E com isto acaba se cristalizando uma verdadeira definição: „A fé não é
uma maneira de pensar da qual se subtraiu a realidade, mas uma maneira de pensar à
qual se acrescentou a existencialidade do pensador.” (FRANKL, 1992, p. 84).
Segundo Frankl, até nas últimas possibilidades, nas circunstâncias mais
incompreensíveis, podemos optar por viver como se existisse um sentido para além da
compreensão, podemos fazer a opção de acreditar que exista um sentido maior. É nessas
situações incompreensíveis para a razão, que é possível assumir ou decidir perante a
existência, que possa existir, “aí onde não compreendemos”, um sentido, podemos até mesmo
assumir a crença num supra-sentido. As situações podem não mudar, mas podemos mudar-
nos perante as situações, procurando encontrar um sentido até mesmo para o que não
conseguimos compreender através da razão.
É diante das situações difíceis e incompreensíveis que muitas pessoas, não sabendo o
que fazer, criam símbolos, com a finalidade de projetar para algo ou alguém o nada em que se
encontram. (cf. FRANKL, 1992, p. 84). É nessa projeção que o homem cria a possibilidade
do supra-sentido, cria a possibilidade de haver um sentido último para toda existência.
Podemos dizer que é daí que nascem muitas religiosidades, pois a pessoa, ao projetar um
sentido último para sua vida, criará também conjunto simbólico que diz para si da sua crença,
mas pode não dizer nada para uma outra pessoa, também crente, que por sua vez, terá um
outro e seu próprio conjunto simbólico e assim vai sucessivamente de uma pessoa para outra,
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dessa forma nascem muitas religiosidades e religiões. Diz Frankl, “...a religião poderia muito
bem ser definida como um sistema de símbolos; seriam símbolos para algo que não pode mais
ser apreendido mediante conceitos e depois em palavras.” (FRANKL, 1992, p. 86).
Frankl afirma que, quando falamos em profundidade com nós mesmos em verdadeiros
diálogos, fazemos verdadeiras preces que brotam de nosso íntimo. “...Deus é o parceiro dos
nossos mais íntimos diálogos conosco mesmos...”(FRANKL, 1992, p. 87).
Viktor Frankl deixa claro que a logoterapia é uma psicoterapia orientada para o
sentido da vida e não uma teologia, embora a admita em sua teoria. Frankl vê na “...religião a
realização de uma „vontade de sentido último‟.”(FRANKL, 1992, p. 89). Temos a
possibilidade de encontrar sentido em um supra-sentido, principalmente quando passamos por
situações que não conseguimos suportar, como a morte, a doença repentina e outras limitações
do homem. É importante salientar que Frankl não entra na questão da objetividade da
presença de Deus. Diz ele, se “...Deus realmente existe, estou convicto de que Ele não levaria
a mal se alguém o confundisse com o próprio eu e o chamasse por nome errado”(FRANKL,
1992, p. 88). A verdadeira religiosidade, para ele, brota do centro do homem, tem sua origem
na pessoa espiritual que, diante das situações existenciais, busca dar respostas e sentido até
mesmo para situações ilógicas.
Enfim, com Viktor Frankl podemos refletir sobre o sentido da vida. Vimos que, para
ele, o ser humano pode ir além de si mesmo, pode transcender e também vimos que do seu ser
mais profundo brota a força motivadora de perspectiva para vida. Essa força motivadora
“cresce” ou se desenvolve à medida em que o homem, ser situado no mundo e aberto a ele,
torna-se ser-para-os-outros. Vimos que o sentido nasce do interior (como vontade de sentido)
e ao mesmo tempo de um movimento de abertura ao mundo e de um modo especial ao outro.
Podemos entender que, para Frankl, trata-se de um devir do homem existente, o homem do
cotidiano que vive em eterno movimento de abertura à vida e à construção de possibilidades.
Por isso podemos compreender que, para ele, o sentido não “...significa algo abstrato, ao
contrário, é um sentido totalmente concreto de uma situação com a qual uma pessoa também
concreta se vê confrontada...”( FRANKL, 1992, p. 79)
Segundo Frankl, o homem pode encontrar o sentido através de três caminhos.
Primeiramente através de:
“...uma ação que pratica ou uma obra que cria, em segundo lugar, vivenciando algo
ou encontrando alguém, em outras palavras, pode encontrar um sentido não apenas
no trabalho, mas também no amor. Além disso, parece saber que há um terceiro
caminho para o sentido: sempre que estivermos diante de uma situação que não
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podemos modificar, existe ainda a possibilidade de mudar nossa atitude diante de
uma situação que não podemos modificar...”(FRANKL, 1992, p. 80).
Para Frankl, podemos encontrar sentido para nossas vidas até mesmo no sofrimento
inevitável, mas para isso é necessário mudar nossa atitude diante da situação, mudar a nós
mesmos, crescendo para além de nós. Diante de uma situação que não se pode modificar,
como, por exemplo, uma doença física, a pessoa pode modificar-se a si mesma, modificar sua
atitude frente ao não modificável.
Frankl, em seu livro A questão do sentido em psicoterapia, apresenta três exemplos
para explicar melhor os três caminhos para se encontrar o sentido da vida. Primeiro exemplo:
“Primeiro pode minha vida tornar-se plena de sentido porque eu realizo uma ação,
crio uma obra. Não precisa de forma alguma, sabe lá Deus, tratar-se de „uma obra‟.
Georg Moser falou certa vez de um „lixeiro que recebeu há alguns anos a cruz do
mérito federal. Ele procurava nos tonéis e depósitos de lixo os brinquedos jogados
fora, consertava-os à noite e presenteava crianças necessitadas. Dotado de
habilidade, ele conquistou para sua metódica profissão já plena de sentido, um
segundo e ainda mais brilhante sentido‟...”(FRANKL, 1990, p. 47)
Segundo exemplo:
“Sentido também pode-se encontrar através do que eu vivencio – vivencio algo ou
alguém, e vivenciar alguém em sua total originalidade e singularidade significa amá-
lo. De novo vale, sabe Deus, que não é para ser entendido de forma grandiloqüente,
mas inteiramente „down to earth‟ [aqui na terra]. À minha frente está uma carta da
qual gostaria de citar algumas passagens: „Em 14 dias estarei com 87 anos. Para
mim cada dia é um presente. Eu posso olhar para o céu, para o agradável parque,
posso falar com as árvores, receber amigos à tarde. Eu sou surdo, mas meu íntimo
fala, eu quase não posso andar, mas posso pensar – meu agradecimento em relação a
isto é verdadeiramente sem limites‟...”(FRANKL, 1990, p. 47).
No exemplo acima, a pessoa idosa à qual se refere a carta, poderia se sentir
desanimada com a vida, por causa do peso da idade ou poderia estar reclamando das
limitações de sua vida, como a surdez e o não poder andar, porém o que estamos lendo na
carta é uma pessoa acolhendo a vida, experimentando o mundo, a beleza das árvores, do céu e
acolhendo os amigos. O idoso do exemplo encontra sentido para sua vida vivenciando cada
instante do presente e, nessa vivência, deixa-se penetrar pelo belo do mundo, podendo
agradecer de forma ilimitada a vivência do momento ou a experiência que estava vivendo
naquele instante.
Diz Frankl: “A segunda maneira de encontrar um sentido na vida é experimentando
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algo – como a bondade, a verdade e a beleza – experimentando a natureza e a cultura ou,
ainda, experimentando outro ser humano em sua originalidade única – amando-o.”(FRANKL,
2008, p. 100).
Terceiro exemplo:
“Por fim mostra-se que lá onde somos confrontados com um destino que não se
deixa mudar, especialmente não se deixa mudar por enquanto – digamos uma
doença incurável, com um câncer inoperável –, que, portanto, também lá onde
somos vítimas sem ajuda, lá a vida pode ainda sempre se transformar numa vida
plena de sentido; pois então nós podemos realizar até o mais humano no homem e
simultaneamente dar testemunho das mais humanas capacidades humanas:
transformar uma tragédia em triunfo, um sofrimento em uma realização humana:
Georg Moser reproduz uma história contada por um médico: poucos anos após a
Segunda Guerra Mundial. Um médico encontra uma mulher judia que usava uma
pulseira com os dentes de leite de seus filhos moldados em ouro. „Uma bela
pulseira‟, notou o médico. „Sim‟, respondeu a mulher; „este dentinho é de Mirian,
este de Esther e este de Samuel...‟Ela falou de seus filhos por ordem de idade. „Nove
filhos‟, completou, „ e todos foram arrastados para a câmara de gás‟. Consternado, o
médico perguntou: „Como a senhora pode viver com tal pulseira?‟ Com domínio de
si a mulher respondeu: „Em Israel assumi a direção de uma casa de
órfãos‟...”(FRANKL, 1990, p. 48).
No exemplo acima, temos uma mãe que perdeu todos os seus filhos inocentes em
virtude da tirania dos nazistas. Para essa mãe não existe mais esperança de trazer os filhos de
volta, pois morreram na câmara de gás, o que existe para ela é o sofrimento da perda dos
filhos e o sofrimento de tamanha injustiça. Porém a mãe transformou sua tragédia pessoal em
triunfo, converteu seu sofrimento em ajuda a outras crianças. Embora não pudesse mudar a
situação que estava vivendo, que é morte dos filhos, ela mudou a si própria, não parando no
sofrimento, mas indo em direção a outras pessoas que precisavam de ajuda. É isso que
consiste o terceiro caminho proposto por Frankl para se encontrar o sentido da vida “...a
possibilidade de transfigurar o sofrimento pessoal em uma realização humana, a vida é
potencialmente plena de sentido até o fim...”(FRANKL, 1990, p. 48). Até nos momentos mais
difíceis ou irreversíveis podemos ampliar nosso raio de possibilidades, encontrando até
mesmo nesses momentos sentido para vida.
Frankl insiste que o homem deve ampliar sua visão para além do seu ego, para
encontrar o sentido, dedicando-se a um trabalho que possa ajudar a outras pessoas,
vivenciando algo ou amando alguém. Pode encontrar o sentido mesmo nas situações de
sofrimento, como as doenças irreversíveis, não deixando essas situações limites controlarem
sua vida, mas encontrando possibilidades de vida mesmo aí onde existe o sofrimento
inevitável.
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O homem é um ser que tem a possibilidade de ir além de si mesmo, ultrapassando-se a
cada passo, é um ser que tem a possibilidade de ir libertando-se daquilo que o determina, pode
ultrapassar sua condicionalidade na medida em que se torna ser-para-os-outros. O homem,
sendo aberto para o mundo e aproveitando cada situação que se apresenta a ele, tem a
possibilidade de encontrar o sentido para sua vida. Cada situação se mostra de forma única,
irrepetível, de forma que, se a pessoa “aproveita” o que se apresenta a ela, vai estar realizando
algo único e de forma original, o sentido para sua vida. Por isso o sentido é também algo que
não pode ser dado, é a própria pessoa que deve descobrir o sentido da vida, que deve aprender
a responder à vida, conforme esta lhe faça perguntas.
Enfim, ao terminar este capítulo, percebemos que o sentido identifica-se com as
motivações que encontramos na vida, e essas motivações podem ser encontradas nas diversas
situações a que nos vemos confrontados. É a partir daí que percebemos que o sentido da vida
é encontrado na maneira como nos relacionamos com o mundo. Podemos relembrar as
palavras usadas no início deste capítulo: “o homem que vive no mundo é questionado pelas
situações e também questiona as situações; é dessa relação que temos possibilidade de
encontrar o sentido para vida.”
O próprio Frankl, ao apresentar sua visão antropológica e os três caminhos de
descoberta de sentido da vida, deixa entrever que o sentido só pode ser encontrado quando
nos abrimos ao outro e ao mundo. Daí, como já vimos no início deste capítulo, o sentido para
vida não é algo ou uma coisa, mas envolve o movimento do homem para o mundo e do
mundo para o homem, e é dessa relação que se descobrem as diversas circunstâncias a se
cumprirem na vida. Porém retornam as questões levantadas no início deste capítulo. Em
nossos dias somos envolvidos por um turbilhão de informações e novidades, pela correria do
dia-a-dia. Como uma pessoa envolvida com o mundo e respondendo às diversas
circunstâncias pode saber o sentido de sua vida? Como podemos apreender o sentido da vida
vivendo dentro do movimento da própria vida? Como podemos saber qual é o sentido para
nossa vida, envolvidos com as situações que mudam constantemente?
É na tentativa de encontrar respostas para essas questões que examinaremos, no
próximo capítulo, as noções de mimesis e narrativa, segundo Paul Ricoeur. Desenvolvendo
essas questões tentaremos encontrar caminhos para refletir sobre a questão do sentido da vida
em nossos dias.
51
II Capítulo – A noção de narrativa em Paul Ricoeur.
Tendo percorrido a questão do sentido da vida em Viktor Frankl, descobrimos três vias
que oferecem possibilidades de encontrar o sentido da vida, mencionadas no capítulo anterior.
Esse sentido pode ser encontrado dedicando-se a uma obra, amando alguém ou mudando de
atitude perante algum sofrimento inevitável. Porém, mesmo Viktor Frankl definindo esses
caminhos, a descoberta do sentido da vida ainda fica aberta. É a partir daí que levantamos
mais uma vez as questões: Como uma pessoa envolvida com o mundo pode saber qual é o
sentido de sua vida? Como podemos saber qual o sentido para nossa vida, envolvidos com as
diversas situações do cotidiano, que mudam constantemente?
Frankl é categórico em dizer que não podemos receitar o sentido que uma situação
deveria ter para uma outra pessoa; não é possível obter esse sentido através de uma
prescrição. É a própria pessoa que deve descobrir o sentido da sua vida a cada instante. Aqui
levantamos outras perguntas a partir da leitura de Ricoeur: O ser humano não poderia
construir um sentido narrando a própria vida, sua história? Como a narrativa ajudaria o
homem a construir um sentido para a vida?A narrativa poderia nos ajudar a apreender o
sentido para nossas vidas?
Paul Ricoeur nos introduz numa noção de mimesis que nos permitirá responder às
nossas perguntas, esclarecendo o lugar que as narrativas têm na vida humana. Segundo
Ricoeur, a narrativa é importante para nós porque faz a mediação entre uma experiência
anterior à sua configuração e uma experiência posterior a que se dirige, onde ela se completa e
se realiza. (cf. GENTIL, 2004, p.109). No percurso da discussão da noção de narrativa de
Ricoeur, refletiremos sobre a composição narrativa que tem o papel de mediação entre uma
experiência anterior à sua configuração e uma experiência posterior a quem se dirige.
Examinaremos que experiências são essas mencionadas no parágrafo acima e ainda
tentaremos aproximar a questão do sentido da vida a partir de Frankl com a noção de narrativa
de Ricoeur.
Ricoeur escreveu muitas obras importantes, dentre as quais três nos ajudarão de modo
especial no desenvolvimento deste capítulo: a coletânea de ensaios hermenêuticos sob o título
Do texto à ação: ensaios de hermenêutica II (1986), a Teoria da interpretação e Tempo e
Narrativa I. A partir dessas obras tentaremos compreender a noção de texto, a de composição
narrativa e a sua relação com o tempo e com isso tentaremos fazer a ligação da narrativa com
52
a vida humana e com o sentido da vida. É relacionando a narrativa com a vida humana que
tentaremos encontrar possibilidades para descobrir um sentido para a vida.
Pode-se perguntar por que entrar na questão do texto para tentar aí encontrar
possibilidades para o sentido da vida. Segundo Ricoeur não há dúvida de que as histórias são
contadas e de que a vida é vivida, mas através do processo de composição narrativa é possível
refigurar a vida. (cf. RICOEUR, 1991, p. 26). Se podemos refigurar a vida pela narrativa,
temos a possibilidade de articular o sentido da vida pela narração, essa é nossa hipótese.
Mas, antes de compreendermos como se dá uma refiguração e uma composição
narrativa, é necessário conhecermos a noção de texto e, dentro dessa noção, a passagem do
discurso oral para o discurso como obra. Essa passagem torna-se importante para
compreendermos o que é um texto e como acontece uma composição narrativa e, o mais
importante, como podemos encontrar possibilidades de sentido para vida.
É com a coletânea de ensaios hermenêuticos Do texto à ação que daremos os nossos
primeiros passos na elaboração das noções de texto, mundo do texto e narrativa. Um texto nos
dá a possibilidade de encontrar histórias já vividas, histórias passadas e histórias que podem
ser atualizadas no ato de leitura; é a partir dessas histórias que tentaremos encontrar
possibilidades de sentido para vida. É importante conhecermos os critérios de textualidade,
pois esses nos ajudam a entender o que é um texto e aí, podemos encontrar pistas para o
sentido da vida.
Segundo Ricoeur são cinco os pontos para a compreensão de um texto: a realização da
linguagem como discurso, o discurso como obra, a relação da fala com a escrita no discurso e
nas obras de discurso, a obra como projeção de um mundo (o mundo do texto) e mediação
para compreensão de si. (cf. RICOEUR, 1989, p. 110). Com o desenvolvimento desses
pontos, faremos a passagem do discurso oral para o discurso como texto, lembrando que é no
texto como composição narrativa que pretendemos encontrar possibilidades de elaboração de
sentido para vida.
2.1 Do discurso oral ao texto.
Antes de conhecermos o discurso escrito como texto, cabe pensar o discurso que é
realizado oralmente. Para conhecermos bem o discurso escrito devemos conhecer a passagem
da língua para o discurso.
Segundo Ricoeur significado ou “...o logos da linguagem requer, pelo menos, um
53
nome e um verbo e é o entrelaçamento destas duas palavras que constitui a primeira unidade
da linguagem e do pensamento...”(RICOEUR, 2000, p.13). Para esclarecer melhor este
primeiro enunciado podemos fazer uma proposição, o cachorro é.... A partir deste exemplo
temos um discurso sem mesmo precisar terminar a frase, pois temos o nome (cachorro) e um
verbo ( é ). Dessa união abre-se um mundo de possibilidades, ou seja, o cachorro pode ser
tudo, feio, gordo, amarelo, preto, não importa a predicação que possa ter, o importante é que
no discurso temos o nome, que tem um significado e um verbo, que tem uma indicação do
tempo. É com a união do nome com o verbo que acontece o discurso. Pois, segundo Ricoeur,
o discurso “...exige dois signos básicos – um nome e um verbo que se conectam numa síntese
que vai além das palavras...”(RICOEUR, 2000, p.13). O nome e o verbo não são apenas
estrutura de uma língua, pois tanto no nome como no verbo encontramos significações e
indicação do tempo, que permitem a um discurso de ir para além das próprias palavras, além
da estrutura da língua, da langue. Mas, para compreendermos melhor como se realiza o
discurso, vamos continuar aprofundando nosso percurso.
O discurso, afirma Ricoeur, “...oferece-se como acontecimento: alguma coisa acontece
quando alguém fala.”(RICOEUR, 1989, p.111). Quando alguém está enunciando algo,
algo acontece e este acontecimento, segundo o autor, primeiramente “...se realiza
temporalmente e no presente...”(RICOEUR, 1989, p. 111). Para explicar essa afirmação
podemos novamente fazer uso do exemplo anterior O cachorro é.... Uma vez feito este
enunciado ou uma vez expresso este discurso – o cachorro é... – é necessário que haja alguém
que tenha enunciado esse discurso. Por isso podemos dizer que uma vez feito o enunciado,
que indica que alguém está falando ou expressando esse discurso, esse alguém está situado
em algum lugar, está situado no tempo, por isso o discurso se realiza no tempo e se utiliza de
verbos. O “...acontecimento consiste em que alguém fala, alguém se exprime ao
falar...”(RICOEUR, 1989, p. 112). Assim, tomar essa dimensão de linguagem como
acontecimento indica que o discurso se realiza temporalmente, no presente e que existe
alguém que está falando, existe uma pessoa que fala.
O discurso também é um acontecimento porque, quando o falante se expressa, seu
discurso está ligado a alguma coisa, é sempre sobre alguma coisa, refere-se a alguma coisa.
Diz Ricoeur: “...o discurso é sempre sobre alguma coisa: ele refere-se a um mundo que
pretende descrever, exprimir ou representar (...) é a chegada à linguagem de um mundo por
intermédio do discurso...”(RICOEUR, 1989, p. 112). Aqui o discurso é acontecimento, é a
chegada à linguagem de um mundo que pretende descrever, expressar. Nesse sentido o
discurso não é só uma condição prévia de comunicação à qual fornece os seus códigos, é no
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discurso que também se trocam as mensagens. No discurso exprime-se um mundo, que se
pretende descrever ao outro, a outra pessoa. O discurso “...não tem apenas um mundo, mas
tem um outro, uma pessoa, um interlocutor ao qual ele se dirige; o acontecimento, (...) é o
fenômeno temporal da troca, o estabelecimento do diálogo...”(RICOEUR, 1989, p. 112).
Enfim, sintetizando os traços que transformam o discurso em acontecimento, podemos
dizer que o discurso é acontecimento porque acontece no tempo, no presente, ele indica que
existe alguém ao falar e, quando esse alguém se exprime, expressa um mundo que pretende
descrever, dirigindo-se a uma outra pessoa. Segundo Ricoeur, quando o falante expressa o
mundo que pretende descrever, estará expressando aquilo que ele entende do mundo, seus
significados; podemos dizer que uma vez que alguém esteja dizendo algo, transmite um
conjunto de significações. Assim o discurso, além de ser efetuado como acontecimento,
também “...é compreendido como significação...”(RICOEUR, 1989, p. 112). Significação
aqui é “...o que o falante quer dizer, isto é, o que intenta dizer e o que a frase
denota...”(RICOEUR, 2000, p. 24).
Portanto, na realização da linguagem como discurso, a partir de Ricoeur, vemos que
existe alguém que se expressa ao falar, e esse alguém está situado no tempo e num lugar
determinado. Se esse alguém está situado no tempo e em um lugar determinado, ele tem uma
história, tem sua maneira de compreender e ver o mundo. Uma vez que esse alguém fala, seu
discurso se refere a alguma coisa, a um mundo que pretende descrever, e é na descrição desse
mundo que o falante transmite a outra pessoa ou outras pessoas um conjunto de significações
que quer transmitir.
Podemos dizer que no discurso encontramos uma estrutura gramatical, fonemas,
tempos verbais, mas também por trás dessa estrutura, existe alguém que se exprime ao falar.
Esse alguém (locutor) ao falar descreve um mundo, transmite um mundo, é nessa descrição
que o locutor emite o seu entendimento daquilo sobre o que se expressou, emite o que quer
dizer, seus significados. Como já afirmamos acima, os significados que o locutor transmite
são dirigidos para um ouvinte. O discurso “...é dirigido a alguém. Há outro falante que é o
endereçado do discurso. A presença do par, locutor e ouvinte, constitui a linguagem como
comunicação...”(RICOEUR, 2000, p. 26). Nesse acontecimento entre o locutor e o ouvinte,
em que o significado da experiência pessoal do locutor pode ser transmitido, comunicado, ele
pode tornar público o sentido ou a significação de sua experiência pessoal. “...A experiência
experienciada, como vivida, permanece privada, mas o seu sentido, a sua significação torna-se
pública...”(RICOEUR, 2000, p. 28). Uma vez que a significação da minha experiência
ultrapassa o domínio privado, tornando-se pública, a significação tem a possibilidade de ir
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além do diálogo intersubjetivo, pois pode se dirigir a uma infinidade de ouvintes. Porém, o
significado da experiência pessoal do locutor, ao ser transmitido oralmente a uma infinidades
de ouvintes, tende a desvanecer. Segundo Ricoeur, o discurso se dá como „evento‟,
acontecimento singular, imediato, relativo a uma situação presente entre o locutor e o ouvinte,
porém as significações transmitidas oralmente tendem a desaparecer, e somente através da
escrita é possível tornar duráveis as significações do discurso.
Ricoeur afirma: o “...discurso (...) pode desvanecer enquanto fala ou fixar-se como
escrita...”(RICOEUR, 2000, p. 38). Neste sentido, “...a escrita pode salvar a instância do
discurso porque o que ela efectivamente fixa não é o evento da fala, mas o „dito‟ da fala, isto
é, a exteriorização intencional constitutiva do par „evento-significação‟...”(RIOCEUR, 2000,
p. 39). Assim, a permanência de significações para além do imediato (entre locutor e ouvinte)
torna-se possível através da escrita. Mas, com a escrita, a situação dialógica entre locutor e
ouvinte desaparece, e são as significações ou o “dito da fala” do autor que fica fixado. É
exatamente aí que vemos possibilidades de articulação de um sentido da vida e são essas
possibilidades que pretendemos desenvolver ao longo deste trabalho.
Quando se passa da fala para a escrita, ocorre o distanciamento do significado do texto
em relação à intenção do autor, pois já não existe um diálogo imediato entre interlocutores
que compartilham uma mesma situação. Afirma Ricoeur que a “...escrita torna o texto
autônomo em relação à intenção do autor. O que o texto significa já não coincide com aquilo
que o autor quis dizer...”(RICOEUR, 1989, p. 118). Em outras palavras, o texto agora possui
um significado próprio, desligado da significação do seu autor.
“...com o discurso escrito, a intenção do autor e o significado do texto deixam de
coincidir. A dissociação da significação verbal do texto e da intenção mental do
autor dá ao conceito da inscrição o seu significado decisivo, para além da mera
fixação do discurso oral prévio. A inscrição torna-se sinônimo de autonomia
semântica do texto, que resulta da desconexão da intenção mental do autor
relativamente ao significado verbal do texto. Em relação ao que o autor quis dizer e
ao que o texto significa. A carreira do texto subtrai-se ao horizonte finito vivido pelo
seu autor. O que o texto significa interessa agora mais do que o autor quis dizer,
quando o escreveu.”(RICOEUR, 2000, p.41)
O discurso escrito, distanciando-se de seu autor, ganha autonomia tendo agora várias
significações fixadas, que podem ser apropriadas por um ou vários leitores. É apropriando-nos
de um texto que temos a possibilidade de encontramos um „mundo‟ próprio, o mundo texto. É
o mundo do texto que pretendemos examinar no próximo ponto.
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2.2 O mundo do texto
Como já afirmamos acima, o discurso, ao se fixar como escrita, começa a separar-se
da intenção do seu autor. Podemos dizer que, em um discurso oral, o sentido de referência
pode ser resolvido dentro do diálogo, através da função de referência ostensiva do discurso,
assim denominado pelo autor; A“...referência resolve-se no poder de mostrar uma realidade
comum aos interlocutores (...) Pode-se situá-la em relação à única rede espácio-temporal à
qual pertencem os interlocutores...”(RICOEUR, 1989, p. 121). Assim, no discurso oral, é
possível mostrar a coisa referida, é possível esclarecer a que se refere o locutor através de
algum gesto, de alguma informação a mais, através de descrições bem definidas e ainda
através de identificações singulares que ocorrem dentro do aqui e agora situacional. (cf.
RICOEUR, 2000, p. 46). As referências do discurso oral estão na situação que é comum ao
locutor e ao ouvinte.
No discurso escrito, não temos a situação comum como a que existe entre o locutor e o
ouvinte. Afirma Ricoeur:
“A ausência de uma situação comum gerada pela distância espacial e temporal entre
o escritor e o leitor; o cancelamento do aqui e agora absoluto pela substituição das
marcas externas materiais para a voz, a face e o corpo do locutor como a origem
absoluta de todos os lugares no espaço e no tempo; e a autonomia semântica do
texto que o separa do presente do escritor e o abre a um âmbito indefinido de leitores
potenciais num tempo indeterminado – todas estas alterações da constituição
temporal se reflectem em alterações paralelas do carácter ostensivo da referência.”
(RICOEUR, 2000, p. 47)
Segundo Ricoeur o discurso passa por dois níveis; o primeiro nível é quando existe
uma situação comum entre os interlocutores, quando o caráter ostensivo é possível numa
“...rede única do espaço e do tempo...”(RICOEUR, 2000, p. 48). Neste nível encontram-se o
discurso oral e os textos descritivos. Falar de textos descritivos é como entrar em uma linha
tênue entre o discurso descritivo e o discurso como obra, pois ambos são textos, são
delimitados, possuem uma totalidade, porém o discurso descritivo são textos que
“...reestruturam simplesmente para seus leitores as condições da referência
ostensiva. Cartas, relatos de viagens, descrições geográficas, diários, monografias
históricas e, em geral, todas o equivalente da referência ostensiva no modo de „como
se‟ („como se lá estivesses‟), graças aos procedimentos ordinários da identificação
singular...”(RICOEUR, 2000, p. 47).
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Através da escrita descritiva é possível manter não uma referência ostensiva à
situação, mas demonstrar as referências através de relatos descritos da realidade. É nesse
sentido que é possível identificar várias referências de fatos históricos em relatos históricos.
O segundo nível é quando a referência situacional ou não-situacional não é mais
possível; é quando a função ostensiva do discurso é abolida, pois já não é possível o locutor
explicar suas intenções, não existe mais uma “...situação comum ao escritor e ao leitor; ao
mesmo tempo, as condições concretas do acto de mostrar já não existem...”(RICOEUR, 1989,
p. 121). O autor desaparece e o discurso escrito ganha autonomia, passa a fazer referência a
um mundo próprio. É esse mundo do discurso escrito que pretendemos conhecer e procurar aí
possibilidades de um sentido para vida.
O texto ganha autonomia em relação ao seu autor, tem significações próprias e, ao
receber uma codificação própria, uma composição original, torna-se obra.
“...obra é uma seqüencia mais longa que a frase, e que suscita um problema novo de
compreensão relativo à totalidade finita e fechada, que a obra como tal constitui. (...)
a obra é submetida a uma forma de codificação que se aplica à própria composição e
que faz do discurso ou uma narração, ou um poema, ou um ensaio, etc.; é esta
codificação que é conhecida pelo nome de gênero literário por outras palavras,
pertence a uma obra filiar-se num gênero literário. Finalmente, uma obra recebe uma
configuração única, que a liga a um indivíduo e a que se chama o
estilo.”(RICOEUR, 1989, p. 115).
Na obra a linguagem foi moldada, trabalhada como que por um escultor, tornando-se
única, com significações próprias. É pelo seu estilo próprio que a obra individua seu autor
dentre diversos autores e também demonstra sua individualidade enquanto obra que foi
produzida por seu autor, ou seja, a “...configuração singular da obra e a configuração singular
do autor são estritamente correlativas. A assinatura é a marca desta relação.”(RICOEUR,
1989, p. 117). Desta maneira a obra está ligada ao seu autor, porém a obra molda, organiza a
linguagem, dando a esta uma totalidade finita, onde é abolido o caráter ostensivo da referência
do discurso; a obra com sua originalidade abole a referência ao autor, tornando possível o que
Ricoeur chama de literatura (cf. RICOEUR, 1989, p. 121). Trata-se da linguagem que foi
moldada, trabalhada como que por um escultor, tornando-se gênero literário, com
significações próprias.
“Mas, é essencialmente com o aparecimento de certos gêneros literários, geralmente
ligados à escrita, mas não necessariamente tributários da escrita, que esta abolição
da referência ao mundo dado é levada às suas condições mais externas. O papel da
maior parte da nossa literatura, parece, é destruir o mundo. Isso é verdade para a
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literatura de ficção – conto, novela, romance, teatro, mas também para toda literatura
que podemos dizer poética, em que a linguagem parece glorificada para si mesma, à
custa da função referencial do discurso vulgar.”(RICOEUR, 1989, p. 121).
A obra, uma vez libertada da tutela da referência ostensiva do discurso, traz consigo
significações próprias originais, nascendo assim as literaturas. Segundo Ricoeur, é com a
abolição do caráter ostensivo do discurso que torna possível o fenômeno chamado literatura.
É aqui que a abolição da referência ostensiva do discurso é levada ao extremo, nascendo as
literaturas de ficção como: os contos, as novelas, os romances, as peças teatrais, enfim toda a
literatura poética.
Segundo Ricoeur, o fato de o texto abolir completamente a referência ostensiva do
discurso, tornando-se literatura, não significa que este não venha a cair na realidade ou não
leve à realidade, pelo contrário, o texto atinge aí um nível mais fundamental, mais profundo.
Afirma ele:
“Aqui, a minha tese é a de que a abolição de uma referência de primeira categoria,
abolição operada pela ficção e pela poesia, é a condição de possibilidade para que
seja libertada uma referência de segunda categoria que atinge o mundo, não apenas
ao nível dos objectos manipuláveis, mas ao nível que Husserl designava pela
expressão Lebenswelt e Heidegger pela de ser-no-mundo.” (RICOEUR, 1989, p.
121).
Os textos literários, poéticos falam de um mundo próprio, que não é manipulável,
como acorre com os textos descritivos, trata-se um mundo que escapa da referência imediata,
atingindo outro nível da realidade, que se lança para fora do próprio texto com a apropriação
do leitor.
É um mundo “...tal que eu possa habitar e nele projectar um de meus possíveis mais
próprios...”(RICOEUR, 1989, p. 122). O mundo que o autor afirma que podemos habitar, é a
proposta de mundo que nasce a partir da apropriação do texto por meio da leitura, onde
podemos encontrar várias possibilidades para nossas próprias vidas. Esse mundo é chamado
de mundo do texto; o mundo do texto se distancia da linguagem cotidiana, introduz através da
ficção novas possibilidades de ser-no-mundo, projeta novo modo de estar-no-mundo. (cf.
RICOEUR, 2000, p. 122).
Podemos perguntar: Não seria no mundo do texto que encontraríamos um sentido para
vida que estamos à procura? Podemos ter a ousadia de dizer que sim, pois a obra traz um
mundo próprio em que podemos entrar ao nos debruçar sobre ela, a obra traz uma realidade
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própria com a qual podemos nos relacionar e encontrar possibilidades que podem motivar
nossas vidas, ou pelo menos situar-nos na busca de um sentido para nossas vidas. Recordando
o primeiro capítulo, quando vimos que Frankl diz que o sentido da vida é encontrado no
confronto com as diversas situações, aqui a obra é uma situação que serve de experimento
para encontrarmos possibilidades de sentido para a vida, nesta situação temos um universo de
significações a serem encontradas.
Para habitar a obra e encontrar aquilo que nos é próprio, é necessária a leitura. Sem um
“...leitor que a acompanhe, não há ato configurante em ação no texto; e sem leitor que se
aproprie dele, não há mundo diante do texto...”(RICOEUR, 1997, p. 283). É através da
apropriação do texto, que lhe apresenta um mundo próprio, que o leitor torna-se capaz de
conhecer a si mesmo, “...nós apenas nos compreendemos pela grande digressão dos signos de
humanidade depositados nas obras de cultura...”(RICOEUR, 1989, p. 123). Pela apropriação
do texto temos a oportunidade de encontrar significações para nossas próprias vidas.
Lembramos que o mundo do texto, como já afirmamos acima, é uma totalidade delimitada,
dotada de significação que não se refere mais ao seu autor; apresenta um mundo próprio, é
algo objetivo, passível de ser apropriado por qualquer leitor, em qualquer lugar e, por isso,
quando nos aproximamos de uma obra por meio da leitura, apropriamo-nos de uma proposta
de mundo, como afirma Ricoeur:
“Aquilo de que eu, finalmente, me aproprio, é uma proposta do mundo; esta não está
atrás do texto, como estaria uma intenção encoberta, mas diante dele como aquilo
que a obra desenvolve, descobre, revela. A partir daí, compreender é compreender-
se diante do texto. Não impor ao texto a sua própria capacidade finita de
compreender, mas expor-se ao texto e receber dele um si mais vasto que seria a
proposta de existência, respondendo da maneira mais apropriada à proposta do
mundo...”(RICOEUR, 1989, p.124).
Temos a possibilidade de compreender-nos, não através de um ego inflado ou fixado,
pronto e acabado, mas mediante uma abertura que Ricoeur nos propõe, a abertura ao texto. É
na relação do leitor com o texto que nasce o mundo do texto, e é nesse mundo que podemos
encontrar possibilidades de um sentido para vida. É importante ressaltar que o leitor, ao se
relacionar com o texto, deve estar aberto para receber do texto novas propostas de mundo e
não querer impor a “...sua própria capacidade finita de compreender (...). Leitor, eu só me
encontro quando me perco...”(RICOEUR, 1989, p. 124).
A cada leitura e releitura, tanto do próprio autor quanto de uma pessoa qualquer que
saiba ler, nasce do texto um mundo como um reino de possibilidades. Assim podemos
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novamente recordar que Viktor Frankl afirma que o sentido “...não significa algo abstrato; ao
contrário, é um sentido totalmente concreto, o sentido concreto de uma situação com a qual
uma pessoa também concreta se vê confrontada...”(FRANKL, 1992, p. 79). É da relação da
pessoa com a situação concreta que se desperta o sentido; a pessoa com sua história, com seu
cotidiano relaciona-se com as diversas situações que são objetivas, e assim constrõem-se
possibilidades. Da mesma forma, o leitor, com seu mundo próprio e sua abertura ao novo,
relacionando-se com o texto, tem a possibilidade de encontrar várias significações, e até
podemos dizer que os mundos se abrem criando novos mundos possíveis pela “fusão de
horizontes”.
Ricoeur nos afirma que o mundo que o leitor conhecerá por meio da leitura é a
proposta de um mundo que nasce a partir da apropriação do texto. O mundo do texto não é o
do discurso vulgar da linguagem cotidiana, é um mundo nascido a partir das obras de
literárias. Como já afirmamos acima, o caráter ostensivo da referência do discurso é abolido,
moldando a linguagem e dando a esta, originalidade e significações próprias, elevando-a à
literatura que “...podemos dizer poética, em que a linguagem parece glorificada para si
mesma, à custa da função referencial do discurso vulgar.”(RICOEUR, 1989, p. 121). É na
literatura de ficção que temos a possibilidade de apreender o real por meio da imaginação, ou
melhor, por meio de variações imaginativas (cf. RICOEUR, 1995, p. 41).
É através da imaginação encontrada nas literaturas de ficção que o leitor torna-se
capaz de refigurar seu mundo, poderíamos até mesmo dizer, torna-se capaz de encontrar um
sentido para a sua vida; pois pela imaginação acontece um “...jogo livre com possibilidades,
num estado de não-compromisso em relação ao mundo da percepção. É neste estado de não
compromisso que ensaiamos idéias novas, valores novos, novos modos de estar no
mundo...”(RICOEUR, 1989, p. 220). Podemos dizer que o leitor, ao fazer a leitura de uma
obra de ficção, mergulhando no mundo proposto da composição, fazendo uso de sua
imaginação pessoal e das variações imaginativas encontradas na obra de ficção, encontra a si
próprio, podendo encontrar um sentido para sua vida, pois a cada ato de leitura, refaz sua
própria vida, relacionando a si mesmo com a proposta de mundo que nasce das obras de
ficção. Daí podemos afirmar que o leitor, ao “mergulhar” em uma obra de ficção, pode
encontrar um sentido para sua própria vida a partir da relação com a obra. Assim, seguindo as
palavras de Ricoeur, afirmamos: “...o trabalho de configuração que a ficção persegue no plano
imaginário não deixa de contribuir para a refiguração do mundo do leitor...”(RICOEUR,
1995, p. 41).
Por fim, vemos que, no processo de leitura e releitura, temos a possibilidade de ir além
61
do imediato graças à distanciação feita pela literatura de ficção, representada pelos contos,
novelas, romances, peças teatrais e todas as narrativas que podemos chamar de poéticas. (cf.
RICOEUR, 1989, p. 121). O próprio Ricoeur afirma:
“...a ficção é o caminho privilegiado de redescrição da realidade e que a linguagem
poética é aquela que, por excelência, opera aquilo a que Aristóteles, ao reflectir
sobre a tragédia, chamava de a mimesis da realidade; a tragédia, na verdade, apenas
imita a realidade porque a recria por meio de um muthos, de uma „fábula‟, que
atinge sua essência mais profunda.” (RICOEUR, 1989, p. 122).
A partir desta afirmação podemos dizer que as obras de ficção, como as narrativas de
ficção, os contos, as novelas, os poemas, através de construções imaginárias, através da
linguagem poética, têm a capacidade de apresentar-nos uma nova proposta de mundo,
podendo redescrever a realidade, pois a literatura imita a realidade. Afirma Ricoeur, “...a
primeira forma pela qual o homem tenta compreender e dominar o “diverso” do campo
prático é oferecer-se uma representação fictícia desse campo prático...”(RICOEUR, 1989, p.
222).
Por meio de representações fictícias temos a possibilidade de dominar e compreender
o diverso que são as ações humanas. Assim, através das obras de ficção, que têm a capacidade
de imitar a realidade, como mimesis, por meio das construções imaginárias, podemos imitar o
real e criar novas possibilidades, podemos encontrar caminhos para vida e, dentro desses
caminhos, podemos encontrar um sentido para vida. A ficção nos dá possibilidades, através de
variações imaginativas, de encontrarmos um mundo significativo.
Através da leitura das obras de ficção, podemos refigurar nossa própria vida. Porém,
para as obras de ficção poderem redescrever as ações humanas, precisam ser organizadas,
articuladas com começo, meio e fim; a estrutura narrativa fornece à ficção as técnicas de
abreviação, de articulação e de condensação pelas quais se obtém o efeito icônico das ações
humanas (cf. RICOEUR, 1989, p. 222). Uma obra de ficção consegue imitar uma ação
humana porque recria as ações, através de uma composição lingüística bem organizada e
articulada, a estrutura narrativa.
É da narração que procede a capacidade de abrir e desenvolver novas dimensões da
realidade, pois uma narração, além de apresentar uma estrutura bem organizada, está ligada ao
tempo, à história dos homens e à vida, como mostraremos a seguir.
62
2.3 Da discordância à concordância.
Segundo Ricoeur a narrativa está ligada ao tempo, como já nos referimos no início
deste capítulo, o “...mundo exibido por qualquer obra narrativa é sempre um mundo
temporal...”(RICOEUR, 1994, p. 15). De que maneira a narrativa está ligada ao tempo? Qual
a sua implicação dessa ligação para a vida? É na resposta a essas perguntas que encontramos
possibilidades de articular um sentido da vida através das narrativas.
Não podemos nos esquecer de que estamos no tempo e somos parte dele. Assim,
quando contamos ou acompanhamos uma história, o contar e o acompanhar acontecem no
tempo, acontecem em nossas vidas. Como diz Ricoeur, falamos de uma “história de vida”
para caracterizar o intervalo entre o nascimento e a morte (cf. RICOEUR, 1991, p. 20). Nesse
intervalo temos uma história que pode ser narrada, contada. Um sujeito pode se sentir
pertencente a uma história, como personagem ou herói de sua própria história (cf. GENTIL,
2008, p. 159). O sujeito, contando sua história de vida, lança-se para além de sua existência
meramente biológica, meramente corporal ganhando uma história. Por isso, quando falamos
de narração, podemos também falar de vida, vida contada por meio da narrativa. (cf.
GENTIL, 2008, p. 159).
Para entendermos melhor a relação da narrativa com a vida, acompanharemos
primeiramente como Ricoeur aborda a questão do tempo nas Confissões de Agostinho e como
ele relaciona esta obra com a narrativa, tomando como referência a Poética de Aristóteles, em
seguida mostraremos qual a implicação com a vida.
Agostinho desenvolve a questão sobre a natureza do tempo sem se preocupar com a
questão narrativa, e Aristóteles por sua vez desenvolve a questão da narrativa sem se
preocupar com a questão do tempo. É a partir dessas duas teorias independentes que Ricoeur
fará uma ponte, estabelecendo uma ligação entre narrativa e tempo (cf. RICOEUR, 1994,
p.16). É explorando a ligação entre a narrativa e o tempo que desenvolveremos a ligação da
narrativa com a vida. Lembramos que, no decorrer deste capítulo, assinalamos que os diversos
gêneros literários como a narrativa já trazem significações e possibilidades de sentido para
vida. As composições lingüísticas encontradas nas estruturas narrativas dão possibilidade de
refigurar o mundo do leitor no ato de leitura, relacionando suas idéias com as idéias das obras,
e podem dessa forma levar o leitor a rever sua própria vida. Porém, para mostrarmos como as
narrativas são capazes de refigurar o mundo do leitor, possibilitando um sentido para vida, é
necessário conhecer como Ricoeur faz a leitura do tempo em Agostinho e como a relaciona
63
com a Poética de Aristóteles.
Segundo Ricoeur, em Agostinho encontramos confrontados dois movimentos da alma
chamados de intentio e de distentio. São esses movimentos da alma que o filósofo aproximará
do mythos e da peripeteia de Aristóteles. (cf. RICOEUR, 1994, p. 19). Agostinho, convertido
ao Cristianismo, relata sua experiência com Deus e ao mesmo tempo mostra uma alma
angustiada que busca saciar sua sede de verdade em Deus. Afirma: “...esse homem,
particulazinha da criação, deseja louvar-vos. Vós o incitais a que se deleite nos vossos
louvores, porque nos criastes para Vós e o nosso coração vive inquieto, enquanto não repousa
em Vós.”(AGOSTINHO, 1999, p. 37). Este trecho é parte da longa narração biográfica de
Agostinho que, além de abordar questões filosóficas, expressa uma busca pessoal, mostra-se
como uma pessoa que também busca suas significações, busca motivos para sua vida. É a
partir dessa busca que Agostinho começa a levantar suas questões sobre o tempo.
“SENDO VOSSA a eternidade, ignorais porventura, Senhor, o que eu Vos digo, ou
não vedes no tempo o que se passa no tempo? Por que razão Vos narro, pois, tantos
acontecimentos? Não é, certamente, para que os conheçais por mim, mas para
excitar o meu afeto para convosco e o daqueles que lêem estas páginas, a fim de
todos exclamarmos: „Deus é grande e digno de todo louvor‟. Já disse e torno a
repetir: Narro estas coisas pelo desejo de Vos amar...”(AGOSTINHO, 1999, p. 310)
Com o trecho acima Agostinho inicia o Livro XI, questionando se Deus conhece o que
se passa no tempo e, ao mesmo tempo, expressa o desejo de amá-lo mais e fazer com que
outros o amem. Agostinho mostra que a questão levantada em sua autobiografia, assim como
a questão do tempo, é uma questão que passa pela sua vida, pela sua busca pessoal. Pensar o
tempo a partir da reflexão de Agostinho é pensar a própria existência, o próprio tempo, a
própria vida. Podemos dizer que o tempo em Agostinho é algo que passa pela narração e por
sua autobiografia, pois o autor, ao mesmo tempo em que procura responder a questão do
tempo, narra sua experiência com Deus, sua busca de compreender a Deus.
Agostinho, ao questionar o tempo, o faz a partir de sua própria vida, a partir de sua
própria história, mostrando um homem em busca de respostas para sua existência e um
homem que usa de argumentos para responder a questões levantadas em seu tempo.
Agostinho levanta a questão:
“Que é, pois, o tempo? Quem poderá explicá-lo clara e brevemente? Quem o poderá
apreender, mesmo só com o pensamento, para depois nos traduzir por palavras o seu
conceito? E que assunto mais familiar e mais batido nas nossas conversas de que o
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tempo? Quando dele falamos, compreendemos o que dizemos. Compreendemos
também o que nos dizem quando dele nos falam. O que é, por conseguinte, o tempo?
Se ninguém mo perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já
não sei...”(AGOSTINHO, 1999, p. 322).
Em nosso dia-a-dia falamos do tempo, porém, se formos explicar o tempo, nada
conseguimos dizer. Nossa experiência do tempo é frágil, pois, ao mesmo tempo em que
vivemos no tempo e somos envolvidos por ele, quando tentamos expressá-lo, não
conseguimos. Como falar de um passado que não existe mais, de um futuro que está por vir e
de um presente que não é sempre, que passa?(cf. AGOSTINHO, 1999, p. 322).
Diante dessa questão Ricoeur afirma:
“...o estilo inquisitivo de Agostinho impõe-se: de um lado, a argumentação cética
pende para o não-ser, enquanto uma confiança comedida no uso cotidiano da
linguagem força a dizer, de um modo que não sabemos ainda explicar, que o tempo
é. O argumento cético é bem conhecido: o tempo não tem ser, posto que o futuro
ainda não é, que o passado não é mais e que o presente não permanece.”(RICOEUR,
1994, p. 22).
Agostinho, com seu estilo questionador, não deixa de lado as questões dos céticos que
afirmam o não-ser do tempo, afirmam que o tempo não é. Porém, Agostinho, na busca de
respostas para a argumentação cética, afirma que o tempo é, afirma o ser do tempo fazendo
uso da linguagem. Escreve Agostinho: “Quando dele falamos, compreendemos o que
dizemos. Compreendemos também o que nos dizem quando dele nos falam.”(AGOSTINHO,
1999, p. 322). É declarando-se a favor do ser do tempo, afirmando que o tempo é, que
Agostinho faz uso da linguagem para sustentar a realidade do tempo, pois, se o tempo não
existisse, não poderíamos dizer e nem ouvir sobre ele. Diz Agostinho: “...atrevo-me a
declarar, sem receio de contestação, que, se nada sobreviesse, não haveria tempo futuro, e se
agora nada houvesse, não existiria o tempo presente.”(AGOSTINHO, 1999, p. 322).
Paul Ricoeur, observando a argumentação de Agostinho, afirma: “...É notável que seja
o uso da linguagem que sustente, por provisão, a resistência à tese do não ser...”(RICOEUR,
1994, p. 22). Ricoeur admira que o uso da linguagem sustente a existência do tempo ainda
que provisoriamente, pois quando falamos que o tempo será, foi, e é, entendemos.
Agostinho, não deixando de lado a argumentação cética, que tende para o não-ser,
questiona:
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“De que modo existem aqueles dois tempos - o passado e o futuro -, se o passado já
não existe e o futuro ainda não veio? Quanto ao presente, se fosse sempre presente, e
não passasse para o pretérito, já não seria tempo, mas eternidade. Mas se o presente,
para ser tempo, tem necessariamente de passar para o pretérito, como podemos
afirmar que ele existe, se a causa da sua existência é a mesma pela qual deixará de
existir?...” (AGOSTINHO, 1999, p. 322).
A partir da citação acima, vemos que Agostinho, questionando a natureza do passado,
do futuro e do presente, conclui que o passado já não existe, pois já aconteceu, o futuro não é,
pois ainda não aconteceu, e quanto ao presente, a única coisa que se poderia dizer sobre ele é
que, se se pudesse dividi-lo em pequeninas partes, só a estas poderíamos chamar de presente,
mas estas pequeninas partes passariam tão rapidamente do futuro para o passado que não
poderíamos apreendê-las. Logo, o tempo presente tende também ao não-ser.
Diante da dificuldade em resolver o ser do tempo, é interessante notar a posição de
Agostinho. Embora observe que a argumentação cética tende para não-ser, continua a afirmar
o ser do tempo, fazendo o uso da linguagem, pois, embora perceba que a existência do tempo
tende para o não-ser, percebe também que no nosso cotidiano falamos do tempo, falamos do
passado, do futuro e do presente e ainda falamos de tempo longo e tempo breve. Assim,
embora a argumentação cética possa levar para o não-ser, no dia-a-dia sabemos e falamos do
tempo. Diz Agostinho a respeito do tempo: “Se ninguém mo perguntar, eu sei; se o quiser
explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei.”(AGOSTINHO, 1999, p. 322).
No livro Sete aulas sobre linguagem, memória e história, Gagnebin (2005) escreve a
respeito do uso da linguagem na argumentação do filósofo cristão sobre a existência do
tempo:
“...Agostinho diferencia entre a tentativa aporética de explicar a natureza do tempo
e, em contraposição, a nossa fala comum que utiliza sempre essa noção do tempo,
como se soubéssemos, de maneira intuitiva, inconsciente, mas prática, (...) distingue,
portanto, uma prática explicativa, analítica e uma prática comum, cotidiana, mais
fundamental que a primeira, que permite resistir aos sofismas do pensamento
entregue a si mesmo. Com efeito, é essa prática comum que refuta a demonstração
da inexistência do tempo pelos céticos.”(p. 72).
É exatamente por isso que, seguindo a reflexão de Ricoeur sobre a questão do tempo,
afirmamos que Agostinho faz uso da linguagem para sustentar o ser do tempo. Afirma
Agostinho, fazendo uso da linguagem, que dizemos que o tempo pode ser longo ou breve.
Porém, como afirmar que o passado ou o futuro pode ser longo ou breve, sendo que ele não é?
(cf. AGOSTINHO, 1999, p. 325). Diante deste questionamento, que tende para o não-ser do
66
tempo como afirmam os céticos, o filósofo levanta a questão: Quem se atreveria a dizer que
não existe o passado, o presente e o futuro como aprendeu desde criança?
É insistindo no ser do tempo que Agostinho afirma que existem fatos futuros e
passados, pois, do contrário, os profetas não poderiam ver o que não existe ainda e os que
narram não poderiam contar veridicamente os fatos passados se não os vissem com a alma.
(cf. AGOSTINHO, 1999, p. 325).
Paul Ricoeur, acompanhando a discussão sobre a natureza do tempo em Agostinho
para que mais adiante possa relacioná-la com a narrativa, percebe que é sempre pelo uso da
linguagem que o filósofo não cai nas malhas do ceticismo. E é através do uso da linguagem
que Agostinho pretende ir mais longe em suas investigações. “Permiti, Senhor, minha
Esperança, que eu leve mais além as minhas investigações...”(AGOSTINHO, 1999, p. 326).
Ricoeur chama a atenção para a pausa que o filósofo faz em reflexões dizendo: “...Isso não é
uma simples habilidade retórica, nem uma invocação piedosa. A essa pausa, com efeito,
segue-se um passo audacioso, que conduzirá (...) à tese tríplice presente...”(RICOEUR, 1994,
p. 26).
Agostinho busca ir mais longe a respeito da natureza do tempo levantando a questão:
Se existem coisas futuras e passadas, como afirmou acima, onde elas se encontram?
Respondendo a esta questão, o filósofo afirma que, apesar de acreditar na existência de coisas
futuras e passadas, ainda não as compreende, mas tentará saber do local onde se encontram,
onde estão. Diz ele,“...Pois, se também aí são futuras, ainda lá estão; e se, nesse lugar são
pretéritas, já lá não estão. Por conseguinte, em qualquer parte onde estiverem, quaisquer que
elas sejam, não podem existir senão no presente...”(AGOSTINHO, 1999, p. 326).
Argumentando a favor do futuro, que ainda lá está, e a favor do passado, que já não está aqui,
deseja saber onde eles (futuro e passado) estão sendo, já que o futuro não é e o passado já foi.
Diante da dificuldade em esclarecer a natureza do futuro e do passado, ele afirma que ambos
os tempos não podem existir a não ser no presente. As coisas futuras e passadas, aí não são
futuras nem passadas, mas presentes. É no presente que coisas passadas e futuras existem,
mas como existem elas no presente?
Afirma Agostinho a “...memória relata (...) as palavras concebidas pelas imagens
daqueles fatos, os quais, ao passarem pelos sentidos, gravaram no espírito uma espécie de
vestígio...”(AGOSTINHO, 1999, p. 326). É pela memória do presente que narramos as coisas
passadas, ou seja, pela memória presente voltamos ao passado, porque a memória grava na
alma os acontecimentos que já passaram. Já o futuro “...equivale ao fenômeno de se
apresentarem ao espírito as imagens já existentes das coisas que ainda não
67
existem...”(AGOSTINHO, 1999, p. 326). Se esperamos algo, esperamos no presente, mas se
esperamos, ainda não aconteceu ou não existe, porque é futuro. É pela espera do presente que
prevemos as coisas futuras. Quando afirmamos que vemos os acontecimentos futuros, não
vemos propriamente os acontecimentos, pois o futuro ainda não é, senão seria presente, o que
vemos são as “...causas, ou talvez os seus prognósticos já dotados de existência. Portanto,
com relação aos que os vêem, esses acontecimentos não são futuros, mas sim presentes.”
(AGOSTINHO, 1999, p. 326). Se podemos esperar coisas do futuro, é porque já temos
impressões deixadas das coisas na alma, vestígios gravados na alma, imagens do passado
deixadas na alma, que nos ajudam a ter uma pré-percepção das coisas que possam vir a
acontecer. Segundo Ricoeur temos das coisas futuras “...uma pré-percepção que nos permite
„anunciá-las antecipadamente‟...”(RICOEUR, 1994, p. 27). A pré-percepção é o que nos
permite anunciar por antecipação as coisas futuras, o que ainda não é, mas que é antecipado
no presente. Podemos afirmar que é no presente que prevemos ou esperamos o futuro.
Após todo o percurso sobre o passado e o futuro que estão no presente, vemos que
através da memória, recordamos as impressões passadas, que estão na alma e prevemos as
coisas futuras antecipadamente. Segundo Ricoeur, Agostinho nos dá uma solução elegante
para a natureza do tempo, pois, “...confiando na memória o destino das coisas passadas e à
espera o das coisas futuras, pode-se incluir memória e espera num presente ampliado e
dialetizado...(RICOEUR, 1994, p. 28).
É com a memória e a espera, ampliadas e dialetizadas no presente, que Agostinho
afirma a fórmula do tríplice presente:
“...talvez fosse próprio dizer que os tempos são três: presente das coisas passadas,
presente das presentes, presente das futuras. Existem, pois, estes três tempos na
minha mente que não vejo em outra parte: lembrança presente das coisas passadas,
visão presente das coisas presentes e esperança presente das coisas futuras. Se me é
lícito empregar tais expressões, vejo então três tempos e confesso que são
três.”(AGOSTINHO, 1999, p. 328).
Assim vemos que o tempo, na teoria agostiniana, é algo que se passa na alma, como o
próprio filósofo afirma na citação acima. Resta uma questão a ser resolvida a respeito da
natureza do tempo. Se o tempo nasce daquilo que já não existe, atravessa aquilo que carece de
dimensão, para ir para aquilo que ainda não existe, como afirma Agostinho, como se mede o
tempo?
Segundo o próprio filósofo, o tempo não é cosmológico, mas psíquico, pois acontece
no interior do próprio homem. E é no interior do homem que se mede o tempo: “Em ti, ó meu
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espírito, meço os tempos! Não queiras atormentar-me, pois assim é. Não te perturbes com os tumultos
das tuas emoções. Em ti, repito, meço os tempos. (AGOSTINHO, 1999, p. 336). É a partir do
presente que falamos do passado e do futuro. Na alma medimos as impressões que ficam na
memória, as impressões que permanecem no presente após a passagem, e também falamos do
futuro que está por vir pela expectativa no presente.
“É, pois, na alma, a título de impressão, que a espera e a memória têm extensão. Mas a
impressão só está na alma enquanto o espírito age, isto é, espera, está atento e recorda-
se...”(RICOEUR, 1994, p. 39). A alma estende-se entre expectação, atenção e memória. Está
na alma a memória das coisas passadas, as impressões presentes, a atenção e as expectativas
estendidas a partir da memória e da atenção. (cf. AGOSTINHO, 1999, p. 337).
Agostinho nomeia a extensão da alma que passa entre expectação, atenção e memória
como distentio animi, distensão da alma.
“A distentio não é senão a falha, a não coincidência entre as três modalidades da
ação: „e as forças vivas de minha atividade são distendidas em direção à memória,
por causa do que eu disse, e em direção à expectativa, que causa do que vou
dizer‟.”(RICOEUR, 1994, p. 40).
Na alma ocorre o presente do passado, o presente do presente e o presente das coisas
futuras. Porém, estes três momentos não coincidem, havendo a distensão da alma. O tempo é
essa distensão da alma. Agostinho, para esclarecer essa distensão da alma, apresenta o
exemplo do que se dá quando uma pessoa recita um poema.
“Vou recitar um hino que aprendi de cor. Antes de principiar, a minha expectação
estende-se a todo ele. Porém, logo que o começar a minha memória dilata-se,
colhendo tudo o que passa de expectação para o pretérito. A vida deste meu ato
divide-se em memória, por causa do que já recitei, e em expectação, por causa do
que hei de recitar. A minha atenção está presente e por ela passa o que era futuro
para se tornar pretérito. Quando mais o hino se aproxima de fim tanto mais a
memória se alonga e a expectação se abrevia, até que esta fica totalmente
consumida, quando a ação já toda acabada, passar inteiramente para o domínio da
memória.”(AGOSTINHO, 1999, p. 337)
Agostinho mostra assim como ocorre a distensão da alma. No exemplo acima, a
pessoa, ao recitar um poema, antes mesmo de o recitar, tem atenção que se estende sobre ele,
e ao começar recitar, essa atenção se distende projetando-se para o futuro (expectativas) e
para o passado (memória). É interessante notar que, à medida que se recita o poema, o que se
espera ou antecipa, passando pelo presente, diminui mais e mais, aumentando as impressões
gravadas na alma (memória). Afirma Ricoeur:
69
“...é preciso dizer que os três desígnios temporais dissociam-se na medida em que a
atividade intencional tem como contrapartida a passividade engendrada por essa
própria atividade e que, na falta de termo melhor, designa-se como imagem-
impressão ou imagem signo. Não somente três atos que não se recobrem, mas é a
atividade e a passividade que se contrariam, para não dizer nada da discordância
entre as duas passividades, vinculadas uma à expectativa, a outra à memória. Mais o
espírito se faz intentio, mais ele sofre distentio.” (RICOEUR, 1994, p. 40).
A alma atenta (intentio) se dilata ou se dissocia da expectativa, passando para a
memória. É a atividade e a passividade que se contrariam, ou seja, na alma (atenta) a
passagem do tempo é dinâmica, distendendo-se entre a espera, a memória e a expectativa. Na
alma existe uma intentio, uma tensão, uma intensidade e ao mesmo uma distentio, que se
dilatam constantemente das expectativas do futuro para as lembranças do passado.
É interessante observar que, para Agostinho, não experimentamos o tempo nem
podemos saber de sua extensão a partir de uma objetividade, algo espacial, fora do homem,
pois o tempo, como afirmamos acima, não é cosmológico, mas experimentado na alma. A
alma experimenta a dialética entre a distentio e intentio. Diz Ricoeur:
“...é no interior da alma que se desenvolve a famosa dialética entre distentio e
intentio: distensão entre as três orientações do mesmo presente, presente do passado
na memória, presente do futuro na antecipação, presente do presente na intuição (ou,
como prefiro dizer, na iniciativa); mas intenção que atravessa as fases da recitação
do futuro para o passado através do presente.”(RICOEUR, 2006, p. 132).
A experiência temporal em Agostinho é caracterizada pelo dilaceramento da alma que
passa das expectativas do futuro para a memória através da intenção presente. A experiência
temporal, para ele, é dinâmica, é uma dialética entre “...distentio – a tensão como o
dilaceramento doloroso – e intentio ou attentio - a tensão como intensidade, força,
concentração.”(GAGNEBIN, 2005, p. 76).
Assim, os três atos do tempo: presente do passado, presente do futuro e presente do
presente, são atividades da alma que se contrariam, que não coincidem. (cf. RICOUER, 1994,
p. 40). A tensão entre as três atividades alma, a não coincidência entre a expectativa, a
lembrança e a espera, que é dinâmica, faz nascer a discordância a partir da concordância. Daí
a “...discordância nascer e renascer da própria concordância entre os desígnios da expectativa,
da atenção e da memória...”(RICOEUR, 1994, p. 41). A concordância, a intenção presente,
sofre uma não-coincidência consigo mesma que, passando do futuro para o passado, sofre a
discordância.
70
Para Agostinho, na alma ocorre essa distensão, como já afirmamos, o dilaceramento do
ser humano no tempo, e só em Deus se encontra a unidade do ser. Em Deus se encontram a
eternidade e a unidade, já o homem é dividido; o homem experimenta em si mesmo a
distentio. Diz Gagnebin, uma “...não incessante e dolorosa não-coincidência
consigo...”(GAGNEBIN, 2005, p. 76).
O homem vê nascer e renascer em si a discordância da própria concordância, ou seja,
alma que tem intentio sofre constantemente a distentio, a discordância se impõe sobre a
concordância.
Paul Ricoeur sabe que Agostinho não tem intenção de esgotar a reflexão sobre a
natureza do tempo, “...para ele, a questão em relação à qual todas as preocupações se devem
direccionar é a relação entre o tempo da alma e o eterno presente de Deus...”(RICOEUR,
1995, p. 118). Ricoeur não deixa de elogiar a resolução de Agostinho como preciosa ao
reduzir a extensão do tempo à distensão da alma, é um tempo não se deixa apreender, pois é,
em última instância, o dilaceramento da alma, é um enigma da dialética entre distentio e
intentio. Diz Ricoeur, é “...a esse enigma da especulação sobre o tempo que responde o ato
poético da tessitura da intriga (...) produzindo uma representação invertida da discordância e
da concordância.”(RICOEUR, 1994, p. 41).
É exatamente neste ponto que Ricoeur faz a articulação entre a experiência aporética do
tempo de Agostinho com a inteligibilidade da narração segundo a Poética de Aristóteles.
Ricoeur vai aproximar a discordância que prevalece sobre a concordância a um modelo de
concordância-discordante “...onde a concordância estabelecida pelo mythos prevalece sobre
discordância da peripeteia da ação trágica.”(RICOEUR, 1995, p. 117).
Afirma Ricoeur:
“Aristóteles discerne no ato poético por excelência – a composição do poema trágico
– o triunfo da concordância sobre a discordância. É evidente que sou eu, leitor de
Agostinho e de Aristóteles, quem estabeleço essa relação entre uma experiência
viva, em que a discordância dilacera a concordância, e uma atividade eminentemente
verbal, em que a concordância repara a discordância.” (RICOEUR, 1994, p.55).
Ricoeur estabelecerá a ligação entre a experiência viva do tempo encontrada nas
Confissões de Agostinho e a expressão lingüística do mythos na Poética de Aristóteles,
reconhecendo que a reflexão de Aristóteles sobre a composição da tragédia não está
diretamente ligada à questão do tempo, é ele quem unirá a discordância-concordância da alma
em Agostinho com a concordância discordante de Aristóteles. Qual é a importância dessa
71
articulação? O próprio Ricoeur nos dá a resposta dizendo:
“Tive (...) uma espécie de lampejo a saber, a intuição de uma relação de paralelismo
invertido entre a teoria agostiniana do tempo e a noção de mythos em Aristóteles, na
Poética. Foi essa súbita cumplicidade entre a distentio animi do Livro XI das
Confissões e o mythos aristotélico que foi, mais tarde, não só determinante mas
seminal; a idéia, para parafrasear quem há pouco referíamos, de que o tempo é
estruturado como uma narrativa...”(RICOEUR, 1995, p. 115).
Ricoeur percebe que, fazendo a relação entre a experiência do tempo de Agostinho
com o mythos encontrado na Poética de Aristóteles, é possível pensar uma estrutura do
tempo. É por meio da narrativa que Ricoeur verá que se estrutura o tempo, que há uma
ordenação do tempo, pois, se em Agostinho o tempo é distensão da alma, as narrativas
“...ajudam-nos a configurar a nossa experiência temporal...”(RICOEUR, 1989, p. 29). Pela
narrativa articulam-se passado, presente e futuro.
Segundo Gagnebin, retomando Ricoeur, é na relação entre a experiência temporal e a
disposição ou ordenação narrativa (mythos) que nos é permitido pensar a temporalidade e as
ações humanas (cf. GAGNEBIN, 2006, p. 172). É nessa articulação das ações humanas que
mais adiante tentaremos encontrar possibilidades de articular o sentido da vida com a
narrativa.
Como a narrativa articula o tempo e as ações humanas? Para responder a tal pergunta,
devemos conhecer como Ricoeur fez a leitura da Poética de Aristóteles. Diz ele:
“...eu retive da Poética de Aristóteles, o conceito emplotment (construção da trama),
que em grego é o mythos, que significa tanto fábula ( no sentido de uma história
imaginária) e intriga (no sentido de uma história bem construída). É este segundo
aspecto de Aristóteles do mythos que estou tomando como meu guia; é deste
conceito que eu quero extrair todos os elementos capazes de ajudar-me depois a
reformular a relação entre vida e a narrativa...”(RICOEUR, 1991, p.21).1
Ricoeur centrará seus estudos em torno de dois conceitos, o mythos e a mimesis. “Os
dois juntos constituem os focos da leitura que Ricoeur empreende da Poética de Aristóteles
no contexto dessa investigação sobre o tempo e narrativa.”(GENTIL, 2004, p.87). Embora
esses conceitos não estejam ligados à questão do tempo, é a partir deles que Ricoeur buscará o
1 “…For my part, I have retained from Aristotle's Poetics the central concept of emplotment, which in Greek
is muthos and which signifies both fable (in the sense of an imaginary story) and plot (in the sense of a well
constructed story). It is this second aspect of Aristotle's muthos that I am taking as my guide; and it is out of
this concept of plot that I hope to draw all of the elements capable of helping me later to reformulate the
relation between life and narrative.”
72
elemento configurador da experiência temporal.
O termo mythos pode ter várias traduções, porém Ricoeur opta por traduzi-lo como
“intriga” no sentido de uma história bem construída, ou o tecer da intriga, que significa a arte
de compor um poema, sua operação, a disposição dos fatos ou das ações. (cf. GENTIL, 2004,
p. 89). Diz Ricoeur, mythos “...é „a disposição dos fatos em sistema‟ (...) a disposição (se se
quiser, em sistema) dos fatos, com a finalidade de marcar o caráter operatório de todos os
conceitos da Poética...”(RICOEUR, 1994, p. 53). O mythos realiza o agenciamento dos fatos,
organiza os fatos dentro da composição, não apenas de forma seqüencial ou cronológica, mas
de uma forma lógica.
“Lógica no sentido de que a organização da sucessão dos elementos que compõem a
narrativa obedece mais às necessidades internas da narrativa, às leis de necessidade e
verossimilhança que regem a poesia, às exigências postas por esta: no mythos não há
acaso, há encadeamento necessário. Não se trata apenas de um evento depois do
outro, mas de um evento articulado ao outro, com sentido, através do sentido, ou
estabelecendo um sentido nessa articulação.”(GENTIL, 2004, p. 93).
Assim, o mythos faz a articulação da composição, dos atos dos personagens, seu
caráter, suas qualidades, faz a tessitura da intriga que, segundo Ricoeur, “...não é uma
estrutura estática, mas uma operação, um processo de integração...”(RICOEUR, 1991, p. 21)2
. O mythos opera de forma dinâmica a concordância entre os discordantes pela arte de
“...compor as intrigas...”(RICOEUR, 1994, p. 58). É um processo de composição lingüística
que vai tecendo a estruturação da intriga.
O termo mimesis vem do grego e significa imitação ou representação. Segundo
Ricoeur, ao se traduzir o termo mimesis “...quer se diga imitação, quer representação (...), o
que é preciso entender é a atividade mimética, o processo de imitar ou de
representar.”(RICOEUR, 1994, p. 58). Segundo o filósofo, é preciso entender que a mimesis
imita ou representa, no sentido dinâmico de produzir, ou seja, a mimesis imita criativamente
transpondo-se em obras representativas. Podemos perguntar: O que se mimetiza numa
narrativa? Afirma Ricoeur: “...com Aristóteles, a atividade mimética tem agora como campo
de exercício a práxis humana, o que a aproxima, (...) da ética. Como aqueles que imitam
representam homens em ação...”(RICOEUR, 1996, p. 331). Ricoeur, de acordo com a leitura
que faz da Poética de Aristóteles, traduz a mimesis não apenas como imitação, mas também
como uma representação da ação dos homens, algo que imita as ações dos homens ou os
2 “…plot is not a static structure but an operation, an integrating process…”
73
homens em ação. Mimetizando criativamente as ações dos homens, marca-se a “...ruptura
com a concepção metafísica de mimesis(...). Ruptura com a mimesis de Platão...”(RICOEUR,
1996, p. 330). A mimesis não é uma imitação como uma cópia direta da realidade ou um
decalque de um real preexistente, a exemplo da mimesis encontrada em Platão, mas é uma
imitação criadora através da intriga. Diz Ricoeur:
“...deve-se entender totalmente o contrário do decalque de um real preexistente e
falar de imitação criadora. E, se traduzirmos mimese por representação, não se deve
entender, por esta palavra, alguma duplicação de presença, como se poderia ainda
entendê-lo na mimese platônica, mas o corte que abre o espaço de ficção. O artesão
de palavras não produz coisas, mas somente quase-coisas, inventa o como-
se...”(RICOEUR, 1994, p. 76)
Podemos dizer que a mimesis é a imitação criativa das ações dos homens, criação que
ocorre através da tessitura da intriga, um processo criativo que imita as ações dos homens
através da composição lingüística. A mimesis é produzida pela disposição lingüística dos fatos
(principalmente das ações dos homens nas narrativas) pela tessitura da intriga. (cf. GENTIL,
2004, p. 90). É como o artesão que não copia as coisas, mas constrói um objeto com seu estilo
próprio, introduzindo algo novo no mundo.
Ricoeur encontra em Aristóteles uma equivalência entre mimesis e mythos, pois é o
tecer da intriga que, ao organizar os fatos ou as ações humanas numa certa ordem, “mimetiza”
a realidade dando-lhe coerência, lógica. Diz Ricoeur: “...A imitação ou representação é uma
atividade mimética enquanto produz algo, a saber, precisamente a disposição dos fatos pela
tessitura da intriga...”(RICOEUR, 1994, p. 60). A tessitura da intriga é a imitação das ações
dos homens, ações que são imitadas criativamente e são ordenadas de uma determinada forma
lógica, uma lógica narrativa, ganhando assim inteligibilidade. É a partir daí que podemos
dizer que a narrativa nos permite pensar significativamente as ações dos homens, pois agencia
os fatos em forma de sistema, articulando de modo inteligível essas ações. Diz Ricoeur:
“...a trama (intriga, enredo) tem a virtude de obter uma história a partir dos eventos
diversos ou se preferir de transformar os múltiplos eventos em uma história. Neste
sentido um acontecimento é muito mais que uma ocorrência, algo que simplesmente
acontece, o acontecimento é o que contribui para o desenvolvimento da narrativa,
bem como para seu início e até ao seu fim...”(RICOEUR, 1991, p. 21)3
3 “…the plot serves to make one story out of the multiple incidents or, if you prefer, transforms the many
incidents into one story. In this respect, an event is more than an occurrence, I mean more than something that
just happens; it is what contributes to the progress of the narrative as well as to its beginning and to its end…”
74
A narrativa é mais que uma enumeração de fatos que apenas coloca os vários
acontecimentos um após o outro, ela agencia os fatos dando a estes uma certa articulação,
organiza de modo articulado vários acontecimentos, estabelecendo uma “síntese do
heterogêneo”.
A síntese do heterogêneo é aqui a reunião organizada da variedade de acontecimentos
e episódios da vida dos personagens (ou das pessoas) em uma única história, de modo que os
vários acontecimentos se estruturam numa única configuração narrativa, ganhando com isso
um certo sentido, uma inteligibilidade. Segundo Ricoeur, a tessitura da intriga realiza a
síntese do heterogêneo. A “...síntese entre os acontecimentos ou incidentes, os múltiplos
eventos da história completa e singular.” (RICOEUR, 1991, p. 21)4. Assim, a narrativa ordena
incidentes variados da vida colocando-os em histórias, colocando-os em narrativas.
É importante salientar que, uma vez que esses elementos heterogêneos são postos em
histórias, eles se tornam relevantes, dotados de significação por estarem concatenados de uma
forma lógica, ainda que seja, como já dissemos, a lógica da narrativa. Assim, fragmentos de
vida, muitas vezes sem “importância” ou significação, tais como pequenas ações ou gestos,
sofrimentos, alegrias, agradecimentos, realizações pouco destacadas, a que pouco se prestou
atenção, podem ser dotados de significação por seu encadeamento, quando esses fragmentos
são organizados em uma composição narrativa.
É a partir deste ponto que podemos entender a grande importância da tessitura da
intriga em relação à distentio animi de Agostinho, pois com a narrativa podemos unificar essa
distensão ou ao menos articulá-la, manter uma certa unidade no fio da narrativa. Vimos em
Agostinho que a alma sofre constantemente a contradição entre intentio e distentio, ela se
concentra e se distende ou se dilacera entre os três tempos, experimenta essa distensão ou o
dilaceramento do ser humano no tempo. Daí vem a instabilidade da vida humana, sua
dissociação contínua. O que é instável em Agostinho, com a narrativa, tem a oportunidade de
ganhar alguma estabilidade, através da experiência da ordenação do tempo realizada pela
narrativa. A composição narrativa articula os três tempos, o passado, o presente e o futuro.
Segundo Ricoeur, em uma história narrada existem duas classes de tempo. Na primeira
classe, o tempo acontece com uma sucessão discreta, aberta e teoricamente indefinida de uma
série de incidentes. É com esta primeira classe de tempo que nos é possível perguntar a todo o
momento o que vai acontecer com a história narrada, por exemplo: e depois? e então?
Na segunda classe de tempo, a história narrada apresenta um outro aspecto temporal
4 “…synthesis between the events or incidents which are multiple and the story which is unified and complete.”
75
que é caracterizado pela integração, culminância e encerramento devido ao qual a história
recebe uma configuração específica. É neste sentido que compor uma história é, do ponto de
vista temporal, obter uma configuração específica fora da sucessão. (cf. RICOEUR, 1991, p.
22).
Assim, em uma história narrada, temos o tempo que acontece discretamente, um
tempo que vai acontecendo em uma sucessão discreta e indefinida ao longo da história e
temos o tempo que articula, ordena e integra em uma unidade temporal os vários
acontecimentos da história, dando-lhe uma configuração específica. É a configuração
narrativa que transforma uma série de acontecimentos em uma totalidade temporal articulando
passado, presente e futuro; é graças à articulação temporal que os vários acontecimentos são
ordenados e passíveis de serem acompanhados na narrativa. Diz Ricoeur, “se podemos falar
da identidade temporal de uma história, ela deve ser caracterizada como algo que resiste e
permanece através do que passa e escapa.”(RICOEUR, 1991, p. 22)5. É neste sentido que
a narrativa é considerada como “guardiã do tempo”, pois articula e ordena as diferentes
dimensões do tempo em uma única história; por isso, a narrativa opera a concordância entre
as discordâncias.
Ricoeur, relacionando o tempo e a narrativa, consegue por meio da reflexão sobre a
composição narrativa reconhecer a preponderância da concordância em relação à
discordância; por meio da narrativa articulamos os vários acontecimentos que acontecem no
tempo. Diz Ricoeur: “...por concordância entendo o princípio da ordem que preside ao que
Aristóteles chama „agenciamento dos fatos‟. Por discordância entendo as reviradas de fortuna
que fazem da intriga uma transformação regulada desde uma situação inicial até o
fim...”(RICOEUR, 1991, p. 169). A concordância ordena de forma lógica os vários
acontecimentos fazendo da intriga uma composição com começo, meio e fim, o que nos
permite compreender a narrativa em sua totalidade. Dessa forma, as ações dos homens ou os
elementos heterogêneos postos na narrativa de forma lógica operam a concordância sobre a
discordância, dando-nos a inteligibilidade da obra e uma certa inteligibilidade às ações.
“Este é exatamente um dos elementos que tornam a obra um tipo de saber, um dos
meios através dos quais ela produz conhecimento, recortando da realidade ampla
seus elementos mais significativos e encadeando-os numa seqüência significativa,
oferecendo deles uma certa inteligibilidade, estabelecendo uma certa relação
específica entre eles...”(GENTIL, 2004, p. 94).
5 “If we may speak of the temporal identity of a story, it must be characterized as something that endures and
remains across that which passes and flows away.”
76
Assim, vemos que a narrativa torna-se um tipo de saber porque consegue combinar,
pela tessitura da intriga, elementos heterogêneos, dando a estes uma ordenação lógica, dando
uma certa inteligibilidade de obra. Daí, como afirma Ricoeur: “...compor uma intriga já é
fazer surgir o inteligível do acidental, o universal do singular, o necessário ou verossímil do
episódico...”(RICOEUR, 1994, p. 70). A composição narrativa consegue fazer ir juntos
elementos discordantes dando a estes, significações e inteligibilidade; por meio de uma
composição narrativa, temos a possibilidade de estabelecer uma concordância a partir da
discordância.
É com a relação entre “discordância concordante” e “concordância discordante” que
Ricoeur entende a relação entre a narrativa e o tempo, pois na composição narrativa acontece
a preponderância da concordância em relação à discordância. Com a narrativa podemos
articular os vários acontecimentos em uma ordem temporal, articulando as dimensões do
passado, do presente e do futuro. Podemos perguntar: Qual a importância da articulação
temporal que a narrativa nos proporciona? A narrativa nos ajuda a resolver o contraste da
alma entre intentio e distentio, o dilaceramento constante do tempo, em que o homem como
ser temporal vive em permanente transformação. É aí que se encontra a importância da
narrativa, pois, com sua capacidade de compor juntos os vários acontecimentos das ações dos
homens, articulando-os em um ordem temporal, proporciona-nos uma “Identidade Narrativa”.
Por meio da narrativa articulamos nossa experiência temporal, nossa experiência do passado,
do presente e do futuro, articulamos nossa história com uma certa inteligibilidade, é aí que
podemos encontrar várias significações que podem nos proporcionar um sentido para a vida.
Assim, a narrativa mimetiza as ações dos homens, ações que se desdobram no tempo,
e, quando falamos de tempo, estamos pensando no tempo humano, a exemplo do tempo
encontrado nas Confissões de Agostinho. Podemos dizer que a narrativa, por conseguir
articular o tempo logicamente, também articula a vida dos homens.
“Não é sem razão que as pessoas narram histórias o tempo todo, das mais banais e
curtas às mais importantes e longas: são elas que sustentam o fio de sua
permanência, para além das transformações. Constituem, assim, os seus projetos de
vida, articulando as experiências passadas e lançando-as em prospecção para o
futuro.”(GENTIL, 2008, p. 162).
Através da narrativa, graças à articulação temporal, podemos nos conhecer e
reconhecer, pois a narrativa, que ordena o tempo, sustenta nossa identidade em meio aos
77
vários acontecimentos que se transformam a todo instante. “...Ricoeur cunhou a noção de
identidade narrativa para dar conta dessa permanência no tempo de um sujeito que age no
mundo, transforma-se, mas se reconhece – e é reconhecido – sendo ele mesmo, ainda que
diferente.”(GENTIL, 2008, p. 158). É esta identidade do sujeito que permanece ao longo da
articulação temporal na história narrada, que é chamada por Ricoeur de identidade narrativa.
Afirma Ricoeur: “...Dizer a identidade de um indivíduo ou de uma comunidade é responder à
questão: Quem fez tal ação? Quem é o seu agente, seu autor?...”(RICOEUR, 1997, p. 424).
Ricoeur, tomando como referência Hannah Arendt, afirma que responder à questão:
quem fez tal ação, “...é contar a história de uma vida. A história narrada diz o quem da ação.
A identidade do quem é (...), portanto, uma identidade narrativa...”(RICOEUR, 1997, p. 424).
Através da narrativa temos a oportunidade de conhecer as ações humanas, de reconhecer uma
identidade pessoal. A narrativa tem um papel de mediação em relação às ações do homem e
também o papel de mediação para conhecimento que o homem tem de si próprio. Como
sujeitos, podemos nos conhecer e reconhecer por meio da composição narrativa.
“...O sujeito se lança para além de sua existência puramente biológica, meramente
corporal, e ganha „representação‟, inserindo-se numa história, ganhando uma
história. Constitui-se sujeito propriamente dito, um „si mesmo‟, justamente por seu
pertencimento a uma história, por sua inserção em uma história, por reconhecer-se
„personagem‟, para não dizer „herói‟, de uma história, a „sua‟ própria história. Uma
história que não é meramente vivida, mas é também narrada...”(GENTIL, 2008, p.
159).
Com a narrativa a pessoa se lança para além de sua existência biológica e corporal
articulando seu passado, presente e futuro na história narrada. É aí que ela pode se conhecer e
reconhecer, pois as ações mimetizadas, quando narradas, ganham a possibilidade de
inteligibilidade pela ordenação dos fatos, ganhando várias significações tanto para aquele que
narra sua história, quanto para aquele que se apropria da história como leitor. Podemos dizer
que só damos conta de nosso existir a partir das mediações da linguagem, e, no caso de nosso
trabalho, através das mediações da linguagem em forma de composição narrativa. O contrário
disso é a cegueira de um egocentrismo desligado da vida, pois somos pertencentes à história
que nos contam e que narramos. O sujeito pertence à história e não consegue se retirar desse
devir histórico. (cf. GENTIL, 2004, p. 43). Podemos nos conhecer à medida que nos
relacionamos com as obras, com a vida. O “...„eu não pode apropriar-se senão nas expressões
da vida que o objetivam...”(RICOEUR, 1978, p. 19). O eu não pode se reconhecer de modo
imediato, é necessário as mediações das obras, é saindo de si mesmo que a pessoa se conhece
78
e reconhece.
“Conhecemos a nós mesmos – e nos constituímos – através da mediação dos textos
da cultura que lemos e amamos, afirma Ricoeur. Apropriamo-nos deles, eles se
apropriam de nós. Reconhecemo-nos neles, somos formados por eles. Quem sou eu?
ou Quem é você?; essa pergunta fundamental em sua teoria do sujeito é respondida
na prática e na consciência de si com a linguagem que recebemos de nossos
antecessores, de nossa tradição, da tradição lingüística a que pertencemos, com as
palavras que aprendemos não só nos diálogos com nossos interlocutores diretos,
imediatos, mas também nas obras de literatura que lemos, às quais nos entregamos,
pelas quais nos deixamos levar.”(GENTIL, 2009, p. 36).
Podemos dizer que todas as nossas relações passam pela linguagem, linguagem que
recebemos e que aprendemos, e é também por meio da linguagem que podemos nos conhecer
e reconhecer; e essa linguagem pode ser realizada não somente no diálogo como também
enquanto obra. É pela linguagem enquanto obra ou como composição narrativa que se
estabelece o agenciamento dos fatos, que se encadeiam segundo uma lógica da própria
composição, conseguindo-se fazer a articulação temporal e ordenar os incidentes variados da
vida, colocando-os em histórias. A narrativa ordena de forma lógica elementos heterogêneos
que, uma vez postos em histórias, tornam-se relevantes e cheios de significação, podendo ser
apropriados pelo leitor.
Podemos perguntar: Qual é a relação da composição narrativa, que estabelece a
preponderância da concordância sobre a discordância, abordada neste segundo capítulo, com a
questão do sentido da vida, abordado no primeiro capítulo? Para responder a tal pergunta,
devemos recordar que, ao desenvolver a questão do sentido da vida em Viktor Frankl, no
primeiro capítulo, refletimos que o sentido da vida não é uma coisa ou algo que se possa
apreender. É no movimento do homem para o mundo e do mundo para o homem que se pode
conhecer o sentido da vida. O homem vivendo no mundo deixa-se questionar pelas situações e
também questiona as situações e, dessa relação, podem nascer várias possibilidades de se
descobrir o sentido da vida. Cada situação da vida se apresenta de forma única, irrepetível, de
forma que, se a pessoa „aproveita‟ o que se apresenta, „o‟ tempo oportuno, ela poderá realizar
algo único e de forma original, poderá encontrar “aí”, nesse momento, um sentido para sua
vida.
O sentido, segundo Frankl, é encontrado conforme nos relacionamos com as diversas
situações do dia-a-dia. Porém vemos que as situações mudam a cada instante, ainda mais em
nossos dias, onde tudo é muito rápido e instantâneo. É exatamente aqui que procuramos
aproximar a questão do sentido da vida com noção de narrativa de Paul Ricoeur, pois, no
79
percurso do segundo capítulo, refletimos com Ricoeur que a composição narrativa consegue
considerar juntos vários fatores heterogêneos, colocando-os ou ordenando-os segundo uma
lógica própria que faça sentido. É nesse ponto, que a narrativa consegue fazer a articulação da
experiência temporal e ordenar incidentes variados da vida, colocando-os em histórias. A
narrativa consegue ordenar elementos heterogêneos de forma lógica e esses elementos, uma
vez postos em histórias, tornam-se relevantes e cheios de significação, podendo ser
apropriados por um leitor, como já falamos acima.
Aproximando a noção narrativa de Ricoeur à questão do sentido, primeiramente
podemos dizer que, se em Viktor Frankl não podemos apreender qual possa ser o sentido para
nossas vidas, pois as situações mudam constantemente e não conseguimos saber qual é “o
momento o oportuno” para atingir o sentido, já em Ricoeur, através da sua noção de narrativa,
temos a possibilidade ordenar as várias situações da vida. A composição narrativa consegue
ordenar vários acontecimentos em uma única história, mimetizando as ações dos homens ao
colocá-los em uma história. A composição narrativa, como já mencionamos, estabelece a
preponderância da concordância sobre a discordância.
Em segundo lugar, podemos aproximar a questão do sentido da vida à noção de
narrativa de Ricoeur, porque, através da composição narrativa, podemos encontrar várias
significações que podem despertar um sentido para nossas vidas; porém é necessário haver
um leitor que se aproprie dessas várias possibilidades que podem ser encontradas na
composição narrativa. Podemos perguntar: Como encontrar, em uma composição narrativa,
sentido para nossas vidas? Para responder a tal pergunta devemos continuar aprofundando a
compreensão da relação entre a composição narrativa e a vida.
O próprio Ricoeur nos indica o caminho ao dizer que “...minha tese aqui é que o
processo de composição, de configuração, não se acaba no texto, mas no leitor e, sob essa
condição, torna possível a refiguração da vida pela narrativa...”(RICOEUR, 1991, p. 26)6. A
composição narrativa não se esgota com a configuração, é necessário um leitor que
acompanhe a composição e dê a ela seu pleno sentido; para que uma obra tenha plena
inteligibilidade é necessário um leitor que a acompanhe. Para compreender como o processo
de composição narrativa desemboca no leitor, é necessário conhecer o desdobramento
mimético proposto por Ricoeur. Em nosso próximo capítulo vamos examinar o
desdobramento da mimesis e em seguida discutiremos como uma narrativa pode ajudar-nos a
articular o sentido da vida proposto por Viktor Frankl.
6 “…My thesis is here that the process of composition, of configuration, is not completed in the text but in the
reader and, under this condition, makes possible the reconfiguration of life by narrative…”
80
III CAPÍTULO – O desdobramento de mimesis.
Em nosso primeiro capítulo investigamos a questão do sentido da vida a partir da
perspectiva de Viktor Frankl. Vimos que o homem busca constantemente um sentido para sua
vida. Segundo Frankl, o sentido da vida só pode ser descoberto mediante a abertura do
homem para mundo. É nessa abertura que, deixando-se questionar pelo o mundo e
questionando o mundo, o homem tem possibilidade de encontrar um sentido para sua vida. O
homem, que vive no mundo, é questionado pelas situações e também questiona as situações e
dessa relação surge a busca de motivações, de significados e de metas. É por meio dessa
busca que o homem pode encontrar um sentido para sua vida.
Frankl destacou caminhos para “descoberta” do sentido, como: o ser humano deve
sempre estar sempre voltado para o outro, deve sempre apontar para algo ou alguém diverso
dele próprio, ou seja, para um objetivo a realizar ou para outro ser humano, mas também pode
encontrar sentido para sua vida não se deixando abater perante um sofrimento inevitável. (cf.
FRANKL, 1989, p. 29). Porém o autor afirma que não se pode receitar o sentido que uma
situação concreta deva ter para uma pessoa. Esse sentido não pode ser obtido através de uma
prescrição; é a própria pessoa que deve descobrir o sentido de sua vida.
Aqui surge a questão que estamos discutindo neste trabalho: Se é a pessoa que deve
descobrir o sentido para sua vida envolvida nas várias situações do dia-a-dia, e se essas
situações mudam constantemente, como uma pessoa, envolvida nesse devir do mundo, pode
saber qual é o sentido de sua vida?
Na noção de narrativa de Paul Ricoeur, encontramos possibilidades de refletir sobre a
ordenação das situações que mudam constantemente e a partir daí constituir um sentido para
vida. Vimos, no segundo capítulo, que as composições narrativas conseguem imitar as ações
dos homens sintetizando elementos heterogêneos por meio de histórias. A composição
narrativa de uma história de vida consegue estabelecer ordem para aspectos discordantes
encontrados no mundo da ação. A nossa hipótese é que, na ordenação e articulação do mundo
da ação através da narrativa, o sujeito humano tem a possibilidade de encontrar o sentido da
vida, pois uma pessoa, ao contar sua história, ao organizar os elementos heterogêneos e
variados do mundo da ação, tem a possibilidade de dar um certo sentido às suas ações e aos
acontecimentos de sua vida.
A composição narrativa, como estabelecemos no segundo capítulo, consegue dar
significação a vários fragmentos de uma vida, até então sem nenhuma significação,
81
colocando-os em histórias. Consegue articular de forma narrativa as várias situações da vida,
dando a essas situações uma certa inteligibilidade, podendo situar aí ou pontuar um sentido
para sua vida. Vimos que uma composição narrativa como tessitura da intriga é mimesis das
ações dos homens. Veremos, neste capítulo, que, para que uma composição narrativa, que
imita as ações dos homens, seja completa e se realize com toda sua significação, é necessário
um leitor que a acompanhe. É na relação do leitor com a composição que pretendemos
mostrar como acontece a refiguração, pois é com o ato refigurante que pretendemos saber se é
possível uma pessoa encontrar um sentido para sua vida. Já vimos que, através da arte de
compor, temos a possibilidade de dar um certo sentido às ações e ordenar os vários
acontecimentos que mudam constantemente. Resta-nos saber se, pela refiguração, uma pessoa
conseguirá também articular o sentido da própria vida; mas, para sabermos isso, é necessário
abordar a refiguração, o terceiro momento da mimesis. Examinemos como acontece o
processo todo da mimesis.
3.1 Mimesis I – prefiguração
Segundo Paul Ricoeur, a narrativa articula as ações dos homens como atividade
mimética dividida em três momentos, denominadas de mimesis I, prefiguração, mimesis II,
configuração e mimesis III, refiguração. Com essa atividade da narrativa o homem tem a
oportunidade de articular sua própria vida, articular sua própria história, como já
apresentamos.
O ponto de partida ou a mimesis I é uma “....pré-composição do mundo e da ação: de
suas estruturas inteligíveis, de suas fontes simbólicas e seu caráter temporal...”(RICOEUR,
1994, p. 88). Antes que uma obra de discurso nasça, ela parte de histórias anteriores, de
mediações simbólicas do mundo da ação, pois, “...antes mesmo dessa elaboração reflexiva
sistematicamente organizada, há uma outra reflexividade em ação, no caso, no ato de narrar
histórias, prática comum, ordinária e cotidianamente compartilhada pelos homens, prática por
meio da qual tomam consciência de suas vidas, de suas circunstâncias...”(GENTIL, 2004, p.
115). É partindo da pré-figuração do mundo que o autor construirá uma imitação do mundo da
ação, não como cópia ao modo da mimese platônica, como se fosse um real preexistente, mas
como uma imitação criadora.
Segundo Ricoeur, para compreendermos como acontece a imitação criadora, é
importante compreendermos os três traços da mimesis I que são: os estruturais, os simbólicos
82
e os temporais. O primeiro traço de uma composição narrativa é que a parte do mundo da
ação e tem como objeto principal o agir humano. Neste ponto a narrativa, segundo Ricoeur,
parte de uma rede conceitual que distingue o campo de ação do movimento físico. (cf.
RICOEUR, 1994, p. 88). A palavra ação não parte do movimento físico, mas da ação
“...tomado no sentido estrito daquilo que alguém faz...”(RICOEUR, 1994, p. 88). O narrador
parte de uma rede conceitual ligada ao mundo da ação que implica fins, motivos, agentes,
interações e possibilidades. (cf. RICOEUR, 1994, p. 89). Partindo de um mundo já figurado,
onde existe alguém agindo e sofrendo ações de outros, ao identificarmos esse alguém, temos a
oportunidade de descobrir suas motivações e as circunstâncias em que agiu e sofreu as ações.
(cf. RICOEUR, 1994, 89). É dessas circunstâncias de agir e receber ações do mundo, da
história, da vida que o autor faz uma síntese, também chamada síntese do heterogêneo. (cf.
RICOUER, 1991, p. 28). É nessa síntese que o autor articula e organiza os elementos tão
diversos de uma vida, colocando-os numa única composição narrativa, numa história narrada.
Assim, para compreendemos bem uma composição narrativa, não podemos nos
esquecer de que esta nasce de uma rede conceitual do mundo da ação, relacionada com as
normas ou regras de uma composição, ou melhor, ela procede de uma tradição cultural. Além
de saber que uma composição narrativa parte de estruturas previamente estabelecidas, é
preciso saber também que a ação humana é simbolicamente mediatizada por um conjunto de
signos, normas e regras, isto é, se uma “...ação pode ser narrada, é porque ela já está
articulada em signos, regras, normas: é desde sempre, simbolicamente
mediatizada...”(RICOEUR, 1994, p. 91). A ação é mediatizada por uma rede de referência
simbolicamente dada pela cultura, pela história, pela localidade ou pelo grupo em que se vive.
“Antes de ser texto, a mediação simbólica tem uma textura. Compreender um rito é situá-lo
num ritual, este num culto e pouco a pouco, no conjunto das convenções, das crenças e das
instituições que formam a trama da cultura.”(RICOEUR, 1994, p. 92). A mediação simbólica,
antes de se tornar texto tem uma textura, tem um contexto de descrição das ações particulares.
É em função de tal convenção simbólica que podemos interpretar tal ação como significando
isto ou aquilo. (cf. RICOEUR, 1994, p. 93). É em referência a esta rede simbólica que é
possível compreender que cada composição narrativa possui o simbolismo implícito das
ações, pelo qual podemos interpretar um gesto particular como significando isto ou aquilo,
dentro do contexto em que nasceu a composição narrativa. Daí podemos dizer que uma
composição narrativa, além de ter traços estruturais, também traz consigo uma rede de
significações, de símbolos, de regras, de normas retiradas do mundo da ação. É interessante
notar que a composição narrativa articula em si uma rede de significação, que não nasceu do
83
nada, pelo contrário, nasceu de uma rede simbólica previamente orquestrada, articulada, de
uma rede que tem seu sentido próprio, que tem seu contexto e isso nos permite decodificar, na
composição, significações que podem fazer sentido para nossas vidas. Podemos dizer que a
composição traz um conjunto de regras e normas simbolicamente mediatizado, que tem
possibilidades de trazer significados para aquele que a aborda.
O terceiro traço da pré-compreensão da ação, que vai inserir ou dar dinamicidade à
configuração, é o traço temporal. Afirma Ricoeur que
“...a compreensão da ação não se limita, com efeito, a uma familiaridade com a
trama conceitual da ação, e com suas mediações simbólicas; chega a reconhecer, na
ação, estruturas temporais que exigem a narração...”(RICOEUR, 1994, p. 95).
A pré-compreensão da ação vai além dos traços estruturais e do conjunto de
mediações simbólicas, pois a ação também possui traços temporais que articulam a ação na
composição narrativa. Segundo o filósofo, esses traços temporais podem ser considerados
como indutores da narrativa, pois são eles que ordenam as diferentes dimensões do tempo da
ação. Diz Ricoeur: “limito-me aqui ao exame dos traços temporais que permanecem
implícitos às mediações simbólicas da ação e que se pode considerar indutores de
narrativa.”(RICOEUR, 1994, p. 95). Segundo Ricoeur, na compreensão do mundo da ação,
podemos até reconhecer que existem os traços temporais que exigem a narração, porém neste
nível a equação entre narrativa e tempo permanece implícita. O mais importante aqui é que
ação efetiva articula as diferentes dimensões do tempo.
Ricoeur faz referência à noção clássica de Agostinho marcando que, ao dizer:
“...não há um tempo futuro, um tempo passado e um tempo presente, mas um
tríplice presente, um presente das coisas futuras, um presente das coisas passadas e
um presente das coisas presentes, Agostinho pô-nos no caminho de uma
investigação sobre a estrutura temporal mais primitiva da ação...”(RICOEUR, 1994,
p. 96)
No momento da pré-compreensão da ação, não importam as estruturas temporais da
ação em termos de tríplice presente, onde Agostinho vê o tempo como distensão da alma. O
importante, nos traços temporais da pré-compreensão da ação, é “...o intercâmbio que a ação
efetiva faz aparecer entre as dimensões temporais...”(RICOEUR, 1994, p. 96). O mais
importante aqui para o filósofo francês é a articulação das dimensões temporais no momento
em que a ação se realiza. Os traços temporais são importantes porque toda ação se desdobra
84
no tempo, é no tempo que as histórias acontecem, que as histórias de uma vida crescem, é no
tempo que nos envolvemos com as histórias. E é no tempo que articulamos nossas ações em
passado, presente e futuro.
Paul Ricoeur, através de um exemplo, mostra que uma série de fragmentos dispersos
de uma vida, uma vez ordenados de modo inteligível, podem tornar-se histórias, narrativas
com significações, porque conseguimos trazer à linguagem o que experimentamos e
articulamos no mundo da ação. Diz Ricoeur:
“...O paciente que aborda o psicanalista traz os fragmentos dispersos de histórias
vividas, sonhos, "cenas primordiais", episódios conflituais. Pode-se legitimamente
dizer com relação às sessões de análise, que o seu objetivo e o seu efeito é permitir
que o analisando para extrair desses fragmentos de uma história-narrativa, que seria
ao mesmo tempo mais suportável e mais inteligível...” (RICOEUR, 1991, p. 30)7
Fragmentos de uma vida, de que muitas das vezes nem nos damos conta, e que às
vezes não têm nenhuma significação alguma em um primeiro momento, uma vez trazidos à
linguagem como por exemplo em sessões de análise, podem tornar-se histórias articuladas
com significação, pois a partir do presente da ação, temos a possibilidade de ordenar e
organizar o que experimentamos e vivenciamos do mundo, articulando passado, presente e
futuro. É no cotidiano da vida (presente) que os traços temporais se articulam, um em relação
ao outro, o presente do futuro, o presente do passado, o presente do presente. Essa forma de
articulação prática, segundo Ricoeur, é o que constitui o indutor mais elementar da narrativa.
(cf. RICOEUR, 1994, p. 96). Portanto, é na própria ação que se articulam passado, presente e
futuro, e é nessa articulação mais elementar que se baseia a narrativa; da articulação dos
traços temporais em uma narrativa nasce a configuração.
Assim, vemos que, para que nasça uma composição narrativa, é necessário que esta
parta de uma pré-figuração do mundo da ação, chamada aqui de mimesis I, que recupera as
ações dos homens no mundo. Afirma Ricoeur, esclarecendo essa pré-condição:
“...imitar ou representar a ação, é primeiro, pré-compreender o que ocorre com o
agir humano: com a semântica, com sua ação simbólica, com sua temporalidade. É
sobre essa pré-compreensão, comum ao poeta e a seu leitor, que se ergue a tessitura
da intriga e, com ela, a mimética textual e literária.”(RICOEUR, 1994, p. 101).
7“…The patient who addresses the psychoanalyst brings him the scattered fragments of lived stories, dreams,
'primal scenes', conflitual episodes. One can legitimately say with respect to analytical sessions that their aim and
their effect is to allow the analysand to draw out of these story-fragments a narrative which would be at once
more bearable and more intelligible…”
85
É a partir dessa pré-compreensão do mundo da ação que as ações dos homens serão
articuladas de modo narrativo, como configuração da ação na composição narrativa, chamada
mimesis II.
3.2 Mimesis II – configuração
Segundo Ricoeur com a mimesis II abre-se o reino do como-se ou o reino da ficção; é
onde o narrador, à semelhança de um artesão, imita o real como se fosse o próprio real, porém
com peculiaridade própria, com estilo próprio. Imita criativamente o real. O narrador fará a
imitação do mundo da ação, em forma de composição narrativa; e uma série de experiências e
vivências, pela maestria do narrador, tornam-se uma composição narrativa. É nesse momento
que acontece a passagem da prefiguração da ação, do vivido, para a configuração ou mimesis
II.
Com o objetivo de identificar melhor esse momento mimético, Ricoeur opta por
trabalhar com o conceito do mythos aristotélico, retirado da Poética, que significa, como já
vimos no segundo capítulo, o tecer da intriga ou tessitura da intriga. “...Tecer uma intriga é
configurar a ação humana e dar-lhe uma certa inteligibilidade, na medida em que o ato
configurante coloca juntos, de modo organizado, elementos díspares (...) formando uma
totalidade significante.”(GENTIL, 2004, p. 118). A mimesis II consegue dar inteligibilidade a
uma série de elementos díspares, tendo como função fazer a mediação entre o mundo da ação
e o mundo do leitor. É uma “...operação de configuração...”(RICOEUR, 1994, p. 102). A
operação aqui denota que mimesis II não é algo estático, mas é algo dinâmico que tem a
função de mediação entre a prefiguração e a refiguração do mundo do leitor. A respeito desse
caráter dinâmico diz Ricoeur:
“...Esse dinamismo consiste em que a intriga já exerce, no seu próprio campo
textual, uma função de integração e, nesse sentido, de mediação, que lhe permite
operar, fora desse próprio campo, uma mediação de maior amplitude entre a pré-
compreensão e, se ouso dizer, a pós-compreensão da ordem da ação e de seus traços
temporais...”(RICOEUR, 1994, p. 103).
Como vemos na citação acima, a mimesis II tem esse caráter dinâmico por dois
motivos: primeiramente, porque ela tem a função de integração, ou seja, ela consegue integrar
ou operar juntos elementos variados em uma única história. A intriga opera dinamicamente
no seu próprio campo textual, exerce a função intermediária entre a pré-compreensão e pós-
86
compreensão do mundo da ação, faz a mediação entre o momento anterior à sua configuração
e uma experiência posterior a que se dirige.
Segundo Ricoeur a tessitura da intriga é mediadora por três motivos: primeiro, porque
ela faz mediação entre os acontecimentos ou incidentes individuais e uma história considerada
como um todo; segundo, porque ela compõe juntos fatores heterogêneos; e terceiro, porque
estabelece uma mediação por causa do seu caráter temporal, o que nos permite articular uma
série de acontecimentos em uma totalidade temporal. Vamos desenvolver cada um desses
motivos.
Primeiro, a mimesis II promove a mediação entre os acontecimentos individuais e a
história como um todo. Ela faz a mediação pois “...extrai uma história sensata de – uma
pluralidade de acontecimentos ou de incidentes (...); ou que transforma os acontecimentos ou
incidentes em – uma história.”(RICOEUR, 1994, p. 103). Transforma uma série de incidentes
da vida em uma única história e essa transformação não é uma mera enumeração de eventos
ou de episódios sucessivos, mas é uma operação articuladora, em que os eventos são
organizados de modo que a composição narrativa torna-se uma totalidade inteligível, de modo
que possamos acompanhar o desenrolar da história. A mimesis II dá sentido aos vários
acontecimentos; uma série de eventos da vida tornam-se agora uma história bem articulada,
produzem significação para aquele que faz a leitura. É importante observar aqui que a mimesis
II articula, em forma de narrativa, as ações dos homens, ou seja, a mimesis II articula
fragmentos da vida, gestos, sofrimentos, alegrias, agradecimentos “copiados” das ações dos
homens e esses fragmentos, uma vez articulados, ganham significação dentro da configuração
narrativa. Assim, a configuração é caracterizada como mediação entre uma história anterior, a
prefiguração, e uma história posterior, a refiguração, porque a composição narrativa
transforma uma série de acontecimentos em uma única história. Articula de forma lógica os
vários acontecimentos, de modo que podemos sempre indagar qual o tema da história.
A mimesis II é mediadora por uma segunda razão, ela “...compõe juntos fatores tão
heterogêneos quanto agentes, fins, meios, interações, circunstâncias, resultados inesperados
etc...”(RICOEUR, 1994, p. 103). De uma série de elementos diversos nasce uma única
história, ocorrendo o que Ricoeur chama de síntese do heterogêneo.
“A narrativa reúne e organiza, articulando-os numa totalidade dotada de
significação, elementos tão diversos quanto sujeitos que agem e que sofrem a ação
de outros, circunstâncias, motivos, intenções, interações, ações, meios, resultados
esperados e inesperados. Transforma-se assim uma multiplicidade de eventos ou
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incidentes dispersos em uma história, uma única história, extraindo da mera
sucessão temporal uma configuração, dando ao acontecimentos e feitos uma certa
inteligibilidade...”(GENTIL, 2008, p. 161).
A tessitura da intriga configura vários elementos retirados das ações dos homens,
fazendo a síntese de elementos heterogêneos. Transforma uma multiplicidade de eventos
diversos em uma história obtendo uma certa inteligibilidade das ações dos homens. Diz
Ricoeur: “...a narrativa faz aparecer numa ordem sintagmática todos os componentes
suscetíveis de figurar no quadro paradigmático estabelecido pela semântica da
ação...”(RICOEUR, 1994, p. 103). No momento em que a tessitura da intriga dá sentido aos
diversos acontecimentos, ocorre a passagem da mimesis I para mimesis II; através da
composição lingüística ocorre a passagem da ordem sintagmática para a ordem paradigmática.
Segundo Ricoeur, na organização dos elementos heterogêneos em uma composição
única, uma história, estão presentes duas dimensões do tempo, uma cronológica e outra não
cronológica.
“A primeira constitui a dimensão episódica da narrativa: caracteriza a história
enquanto constituída por acontecimentos. A segunda é a dimensão configurante
propriamente dita, graças à qual a intriga transforma os acontecimentos em história.
Esse ato configurante consiste em “considerar junto” as ações de detalhe ou o que
chamamos de os incidentes da história; dessa diversidade de acontecimentos, extrai
a unidade de uma totalidade temporal...”(RICOEUR, 1994, p. 104).
A terceira razão pela qual a tessitura da intriga possui a função de mediação é pelos
caracteres temporais que lhe são próprios, e que se articulam em uma ordem temporal,
considerando em conjunto os vários elementos heterogêneos. Diz Ricoeur, como vemos na
citação acima, que existem duas classes de tempo, a dimensão episódica (cronológica) e a
dimensão configurante (não cronológica). A primeira dimensão caracteriza que uma narração
é realizada em episódios, ou seja, uma série de episódios, postos em história de forma
sucessiva, ganhando linearidade no tempo narrativo. É com essa linearidade do tempo
narrativo que podemos perceber como os episódios se sucedem um após o outro. É com esta
primeira classe de tempo que nos é possível perguntar, a todo o momento, o que vai acontecer
com a história narrada, “e depois?” “e então?”. Os episódios acontecem em uma série de
sucessões abertas, acontecimentos que nos permitem acrescentar “então-e-então”, um assim
por diante. (cf. RICOEUR, 1994, p. 105). A dimensão configurante (não cronológica)
apresenta os traços temporais de maneira inversa da dimensão episódica, pois a dimensão
configurante “...tranforma a sucessão de acontecimentos numa totalidade
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significante...”(RICOEUR, 1994, p. 105). A partir de vários acontecimentos, a dimensão
configurante forma uma única história, diferente da dimensão episódica, que considera os
vários acontecimentos dentro da história. Com a dimensão configurante, a história narrada
apresenta um aspecto temporal, que é caracterizado pela integração, culminância e
encerramento, recebendo então uma configuração específica. É nesse sentido que compor uma
história é, do ponto de vista temporal, obter uma configuração específica fora da sucessão. (cf.
RICOEUR, 1991, p. 22). Assim em uma história narrada temos o tempo que acontece
discretamente, o tempo que vai acontecendo em uma série de sucessões lineares e temos o
tempo que articula, em uma unidade temporal, os vários acontecimentos da história, dando-
lhe uma configuração específica.
A dimensão configurante do tempo extrai de uma diversidade de acontecimentos uma
única história dotada de significação. É graças a esse ato configurante que podemos
acompanhar uma história, seguir a narrativa com seu assunto e seu tema. (cf. RICOUER,
1994, p. 105). De uma série de incidentes podemos retirar um pensamento, um sentido através
da articulação do tempo na narrativa. Assim, a dimensão configurante transforma uma série
de acontecimentos em uma totalidade temporal. “...A narrativa articula (...), de modo
inteligível, a passagem do tempo, reunindo passado, presente e futuro numa única e mesma
história...”(GENTIL, 2008, p. 161). Com a configuração temos uma totalidade temporal, ou
seja, a configuração narrativa consegue articular a passagem do tempo, dando uma
concordância às dimensões do passado, presente e futuro.
É nessa totalidade temporal que os acontecimentos diversos tornam-se uma totalidade
significante, que pode ser seguida ou acompanhada por aquele que faz a leitura da narrativa.
Podemos ver que os vários eventos e circunstâncias são agora ordenados, através de uma série
sucessiva, ganhando uma conclusão ou um ponto final. A totalidade temporal “...dá à história
um “ponto final”, o qual, por sua vez, fornece o ponto de vista do qual a história pode ser
percebida como formando um todo...”(RICOEUR, 1994, p. 105). É graças à articulação
temporal que os vários acontecimentos são ordenados e passíveis de serem acompanhados na
totalidade da narrativa.
Assim, com a configuração, os acontecimentos são ordenados, articulando passado,
presente e futuro e, nessa articulação, pode-se jogar com o tempo. Lendo o fim no começo e o
começo no fim, aprendemos também a ler o próprio tempo às avessas, recapitulando as
condições iniciais, o mundo da ação e ao mesmo tempo suas conseqüências. (cf. RICOEUR,
1994, p. 106). É neste ponto que a narrativa resolve o paradoxo distentio – intentio de
Agostinho, pois nesse paradoxo não conseguimos apreender o tempo. Em Agostinho, como
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vimos no segundo capítulo, acontece o contraste da alma entre intentio e distentio, o
dilaceramento constante do tempo, onde o homem como ser temporal vive em permanente
transformação. Com a narrativa, através da articulação do tempo, apreendemos o tempo e
lidamos com ele ao seguirmos uma história; de uma série de acontecimentos é possível extrair
uma unidade temporal. A narrativa passa a ser considerada como a guardiã do tempo, que
articula passado, presente e futuro em uma única história. A narrativa, como já vimos,
estabelece a preponderância da concordância sobre a discordância; agencia os vários
acontecimentos através da articulação do temporal, conseguindo uma unidade temporal ou
uma articulação entre presente do passado, presente do presente e presente do futuro. Assim,
vemos que a configuração narrativa extrai de uma série de acontecimentos uma história
coerente, fazendo uma síntese do heterogêneo; em essa síntese, a composição narrativa nos dá
uma totalidade significante, articulando o tempo ao dar ponto final à configuração.
Poderíamos terminar aqui a configuração narrativa, porém Ricoeur acrescenta à
análise do ato configurante dois traços complementares, que asseguram a continuidade do
processo que une mimesis III a mimesis II. Esses dois traços são a esquematização e o
tradicionalismo; são traços característicos do ato configurante e têm relação específica com o
tempo. (cf. RICOEUR, 1994, p. 106).
A esquematização tem função sintética, sintetiza e organiza, através da imaginação
produtora, as diversas circunstâncias. O “esquematismo (...) constitui-se numa história que
tem todas as características de uma tradição...”(RICOEUR, 1994, p. 107). Para entendermos
como acontece o esquematismo em uma história, podemos perguntar qual é a característica de
uma tradição. Afirma Ricoeur, a respeito da tradição, “...entendemos por isso não a
transmissão inerte de um depósito já morto, mas a transmissão viva de uma inovação sempre
suscetível de ser reativada por um retorno aos momentos mais criadores de fazer
poético...”(RICOEUR, 1994, p. 107). A tradição não é um depósito morto, parado no tempo e
fruto de um passado remoto, mas é um processo com inovações constantes, transmitidas
através de uma tradição viva, que temos a oportunidade de reativar sempre que retomamos
uma composição narrativa. É nesse sentido que a tradição enriquece a relação da intriga com
o tempo através de processos sempre novos; em outras palavras, a tradição, através de seu
processo sempre vivo, é capaz de atualizar uma composição narrativa com traços sempre
novos. No instante em que se retorna a uma composição, esta pode ser reativada.
É interessante notar que a tradição nos ajuda a encontrar várias significações na
composição narrativa, cada vez que a retomamos. Isso é importante para nosso trabalho
porque, em uma composição narrativa, podemos encontrar várias significações para as ações
90
dos homens, que podem significar algo para aqueles que fazem ou retomam a leitura de uma
narrativa. É aqui que entra o leitor que, através do ato de leitura, colherá várias significações
da composição narrativa; é com o leitor que a composição narrativa ganha pleno sentido.
Afirma o filósofo, “...a narrativa tem seu sentido pleno quando é restituída ao tempo do
agir...”(RICOEUR, 1994, p. 110). A narrativa nasce da pré-figuração do mundo da ação e
retorna ao mundo da ação com novas significações, através do ato de leitura, graças à função
de mediação que ocupa a mimesis II. Esta opera entre o mundo da ação e o mundo do leitor.
Assim, depois de todo o percurso pela mimesis II, vemos que esta, através da tessitura
da intriga configura a ação humana dando certa inteligibilidade ao que era ininteligível. A
inteligibilidade, como vimos, vem de considerarmos juntos, de forma ordenada, vários
elementos díspares, extraindo desses uma única história dotada de sentido com começo, meio
e fim. É como configuração que a composição narrativa ganha sentido e vida própria, constrói
um mundo, um mundo próprio passível de ser habitado, um mundo que vai ao encontro do
leitor. É neste ponto que a mimesis III se une à mimesis II. A composição narrativa se dirige a
um público, a um leitor que se apropria da narrativa. O leitor ou o ouvinte, ao ler ou ouvir a
narrativa, apropria-se desta, fazendo a refiguração de sua própria realidade pela „fusão de
horizontes‟, na expressão de Gadamer, que Ricoeur explica como a fusão do horizonte do
mundo do leitor com o horizonte do mundo do texto. (cf. GENTIL, 2008, p. 161). O leitor,
pelo ato de ler, passa pela composição narrativa e refigura sua própria realidade através da
fusão de horizontes, nascendo para ele um novo horizonte.
Podemos perguntar: Não é com a refiguração que poderemos encontrar “o” sentido da
vida que estamos à procura ao longo deste trabalho? Para responder a tal pergunta, temos que
continuar o desdobramento da mimesis, que faz a ligação entre o leitor e a composição
narrativa, chamada mimesis III.
3.3 Mimesis III – refiguração.
A composição narrativa passa por diversos processos. Como vimos, ela nasce do
mundo da ação (o tempo prefigurado da ação), passa pelo mundo configurado da composição
(o tempo configurado) dirigindo-se a um leitor ou a vários leitores, que se apropriam da
composição narrativa, acontecendo aí a refiguração do mundo leitor. É a relação entre a
composição narrativa e o mundo do leitor que marca a mimesis III. O leitor, apropriando-se da
composição narrativa através do ato de leitura, refigura seu próprio mundo.
91
“Eis a totalidade do círculo hermenêutico articulado com uma clareza em termos de
prefiguração, configuração e refiguração: de uma certa pré-compreensão do que seja
o mundo da ação, vai-se ao encontro do mundo do texto, passa-se por ele e dele
retorna-se ao mundo da ação com uma nova compreensão...”(GENTIL, 2008, p. 24).
O desdobramento da mimesis constitui um círculo hermenêutico, que parte do mundo
da ação e retorna ao mundo da ação, porém, para se retornar ao mundo da ação, agora
refigurado, é necessário um leitor que leia a composição. É pelo ato de leitura que a
composição ganha vida. O ato de ler atualiza a composição narrativa e sua capacidade de ser
seguida. “...Seguir uma história é atualizá-la na leitura.”(RICOEUR, 1994, p. 118). No
encontro entre a obra configurada e o leitor, a composição narrativa se atualiza ganhando
pleno sentido pelo ato de leitura. Diz Ricoeur: “Se a tessitura da intriga pode ser descrita
como um ato do juízo e da imaginação produtora, é na medida em que esse ato é a obra
conjunta do texto e de seu leitor...”(RICOEUR, 1994, p. 118). Na configuração, a composição
narrativa ganha autonomia e põe diante do leitor um mundo que pode ser habitado, um mundo
de possibilidades. À medida que o leitor se apropria da obra configurada através do ato de
leitura, a narrativa ganha seu pleno sentido, proporcionando a refiguração do mundo da ação.
“O que é comunicado (...) é, para além do sentido de uma obra, o mundo que ela projeta e que
constitui seu horizonte.”(RICOEUR, 1994, p. 119).
A obra configurada comunica ao leitor não só seu sentido, mas também um mundo de
possibilidades passível de ser apreendido pela leitura. Que mundo é este que a composição
narrativa projeta? Devemos recordar que a mimesis II sintetiza de forma inteligível vários
elementos heterogêneos do mundo da ação, configurando-os “...através de um trabalho de
linguagem, de composição de linguagem, determinadas formas de „figuras‟ desse estar no
mundo.”(GENTIL, 2009, p. 248). A composição narrativa projeta um mundo construído pela
imaginação produtora e esse mundo apresenta figuras do estar no mundo. “...Figuras que são,
antes de tudo, construções imaginárias fixadas em linguagem, materializadas pela linguagem,
inscritas no mundo pelo trabalho sobre a linguagem realizado pelo autor, trabalho que tem
como produto uma obra...” (GENTIL, 2009, p. 248). Assim, a composição narrativa em forma
de ficção refaz o mundo da ação através de uma configuração; esta, por sua vez, traz um
mundo para ser habitado, um mundo de possibilidades. O leitor, por sua vez, acolhe através
do ato de leitura o horizonte mundo da composição narrativa. A relação entre estes dois
mundos, do leitor e do texto, faz com que a inteligibilidade construída pela configuração
ganhe vida, isto é, seja “reativada”e ao mesmo tempo, o leitor, através da leitura, pode
92
refigurar a própria vida. “Conhecemos a nós mesmos – e nos constituímos – através da
mediação dos textos da cultura que lemos e amamos, afirma Ricoeur. Apropriamo-nos deles,
eles se apropriam de nós.”(GENTIL, 2009, p. 36). É justamente apropriando-nos das
composições narrativas e deixando-nos ser “tomados” ou levados por ela, através do ato de
leitura, que podemos refigurar nossa própria vida. O leitor, entregando-se ao mundo do texto
através do ato de leitura, tem possibilidade de redesenhar sua própria ação no mundo.
“É aí que ganha palavras e formas para nomear sua experiência do mundo, é aí que
ele é formado, é aí que sua subjetividade é também forjada, pela mediação do texto.
Esse sujeito não apenas encontra palavras e modos de dizer sua experiência do
mundo, mas tem sua sensibilidade, sua própria maneira de experimentar o mundo,
desenhada por essa passagem pelo texto.”(GENTIL, 2009, p. 37).
A composição narrativa configurada, articulada de modo inteligível, projeta um
mundo de possibilidades com várias significações, que uma vez apropriadas pelo leitor,
redesenham sua própria ação no mundo. É pelo ato de leitura que o leitor penetra no texto,
podendo encontrar aí várias significações para sua vida. É nessa relação que acontece a
refiguração, acontece a re-significação através da narrativa do que foi pré-significado na ação
humana (cf. RICOEUR, 1994, p. 124). Uma obra nasce da pré-figuração do mundo, passa
pela composição narrativa e retorna ao mundo da ação como uma nova compreensão do
mundo, através do ato de leitura. Assim, fazendo a leitura de alguma obra narrativa, temos a
oportunidade de habitar nela e encontrar novas significações para o mundo da ação.
A composição narrativa, com seu mundo configurado pelo texto, uma vez apropriada
pelo leitor, que também possui um mundo próprio, participa de uma “fusão de horizontes”. É
no encontro desses dois horizontes que o mundo do leitor é refigurado.
“O horizonte do mundo do leitor fundiu-se com o horizonte do mundo do texto, e
um novo horizonte se apresenta agora a ele, não necessariamente de forma temática,
pensando explicitamente ou elaborado reflexivamente, mas em suas práticas,
dotadas de novas significações a partir da sua “travessia” pelas estruturas daquele
outro mundo. O seu esquema original de figuração do mundo, de seu mundo
significativo, saiu transforamado, provavelmente enriquecido, do seu
atravessamento pelo esquema de figuração da narrativa.”(GENTIL, 2008, p. 161).
O leitor, ao atravessar o mundo do texto pelo ato de leitura, transforma suas
significações porque encontra novas significações no mundo do texto. No ato de leitura o
leitor pode rever seus próprios significados, seus valores, sua maneira de ver e de se
posicionar no mundo. O “...sujeito mostra-se, então, constituído ao mesmo tempo como leitor
93
e como escritor da própria vida...”(RICOEUR, 1997, p. 425). Ele interpreta, no mundo do
texto, a proposta de um mundo em que possa habitar e no qual possa projetar seus possíveis.
(cf. RICOEUR, 1994, p. 123). É neste ponto que o leitor, através do ato de leitura, consegue
refigurar o mundo da ação. É “...todo o „mundo da ação‟ do leitor que é refigurado, tem seu
horizonte redesenhado...”(GENTIL, 2009, p. 37). O que foi configuração do mundo ação,
agora através do leitor será refigurado pela leitura. O leitor, aprofundando-se na leitura, vai se
tornando capaz de compreender o texto e de compreender-se diante do texto. (cf. RICOEUR,
1989, p. 124). É neste momento que o leitor, suspenso de sua compreensão finita, vinculada
ao próprio ego, cria possibilidades de compreender a si mesmo de um modo diferente do que
fazia.
Enfim, ao longo deste capítulo, vimos que a composição narrativa configura
criativamente o mundo da ação, mundo que antes de ser configurado apresentava elementos
heterogêneos, diversos e discordantes, mas que, uma vez configurados, ganham
inteligibilidade, ganham um certo sentido lógico. Podemos dizer que o que era discordante no
mundo ação, na composição narrativa ganha concordância. Porém, para que uma composição
narrativa seja viva ou se complete, é necessário um leitor que acompanhe a narração e dê a ela
significação. É exatamente aqui, como leitor, que uma pessoa, através do ato de leitura,
refigura sua própria ação no mundo, podendo retirar da composição narrativa infinidades de
significações para sua própria vida. São significações que podem mudar sua maneira de se
colocar no mundo e sua maneira de agir no mundo.
Lembramos que as significações de que o leitor se apropria na composição narrativa,
são significações que nascem do mundo da ação e, após serem configuradas em forma de
composição narrativa, retornam ao mundo da ação, depois de apropriadas pelo leitor. Por
isso, podemos dizer que as composições narrativas, ao transmitir seu horizonte mundo ao
leitor, não estão transmitindo “algo” desconectado das ações dos homens, “algo” retirado do
nada, mas transmitem o mundo da ação que foi configurado em forma de narrativa. As ações
dos homens, que foram mimetizadas em forma de composição narrativa, uma vez
estruturadas, organizadas de uma certa maneira, transmitem ao leitor ou a vários leitores
várias significações do seu horizonte mundo, que uma vez apropriadas pelo ato de leitura,
redesenham o horizonte mundo do leitor, “...é todo o “mundo da ação” do leitor que é
refigurado...”(GENTIL, 2009, p. 37). Assim, com o ato de leitura, o leitor redesenha sua
própria maneira de agir no mundo, encontrando na narrativa várias possibilidades de sentido
para suas ações.
Podemos dizer que mimesis III marca o ponto de chegada e também um ponto de
94
partida, pois o leitor, no ato de leitura, refigura seu mundo da ação iniciando uma nova
compreensão do mundo e um novo sentido para suas ações. A cada ato de leitura, acontecem
novas refigurações e novas possibilidades de re-significações do mundo da ação. É
exatamente aqui, na refiguração do mundo do leitor, que encontramos possibilidades de
encontrar um sentido para vida, como mostraremos no próximo capítulo.
95
IV CAPÍTULO – A relação da noção de narrativa com a questão do sentido da vida.
No quarto capítulo vamos retomar a questão da narrativa e da temporalidade, tentando
mostrar com mais clareza como a narrativa se vincula à vida e em seguida vamos aproximar a
noção de narrativa à questão do sentido da vida apresentada por Viktor Frankl, como vimos
no primeiro capítulo.
Durante o percurso sobre a noção de narrativa de Paul Ricoeur, percebemos que o
grande desafio do filósofo é relacionar a questão do tempo com a narrativa e mostrar que o
tempo se torna humano à medida em que é narrado. Ricoeur diz, como já citamos no segundo
capítulo:
“Tive – não saberia dizer quando – uma espécie de lampejo, a saber, a intuição de
uma relação de paralelismo invertido entre a teoria agostiniana do tempo e a noção
de mythos em Aristóteles, na poética. Foi essa espécie de súbita cumplicidade entre
a distentio animi do Livro XI das Confissões e o mythos aristotélico que foi, mais
tarde, não só determinante mas seminal; a idéia, para parafrasear quem há pouco
referíamos, de que o tempo é estruturado como narrativa. Tal foi a carta que joguei
nesse livro: até onde podemos ir na pressuposição de que o tempo só se torna
humano quando é narrado?...”(RICOEUR, 1995, p. 115).
É a partir dessas duas teorias independentes que Ricoeur fará uma ponte,
estabelecendo uma ligação entre a narrativa e o tempo (cf. RICOEUR, 1994, p.16). Diz o
filósofo, o “...mundo exibido por qualquer obra narrativa é sempre um mundo temporal (...) o
tempo torna-se tempo humano na medida em que está articulado de modo
narrativo...”(RICOEUR, 1994, p. 15).
Ricoeur, a fim de mostrar que o tempo se torna humano à medida que narramos,
procura primeiramente, como vimos, aprofundar-se na questão do tempo em Agostinho.
Depois de percorrer toda a questão do tempo situada no livro XI das Confissões, Ricoeur
conclui que para Agostinho o tempo é distensão da alma, pois só pode ser medido no interior
do homem que sofre constantemente distentio e intentio. A alma sofre constantemente
discordância, dilaceramento. É exatamente aqui que Ricoeur procurou ir mais a fundo na
questão do tempo, relacionando-o com o conceito de mythos retirado da poética de
Aristóteles. O filósofo traduz o mythos como intriga, que significa a arte de compor uma
história bem construída. O mythos organiza os fatos em uma composição, não de forma
apenas cronológica, mas de forma lógica, construindo uma inteligibilidade narrativa. A
96
composição narrativa, organizando os vários acontecimentos, dando a estes uma certa
inteligibilidade, também articula a passagem do tempo, os três tempos: passado, presente e
futuro.
Quando afirmamos que a narrativa articula o tempo, podemos dizer que a narrativa
articula o tempo humano, a distensão da alma, articula as ações dos homens que agem no
mundo, articula-as em forma de composição narrativa e, se articula o tempo humano, ela
articula a vida dos homens. Diz Ricoeur, “...devemos ressaltar que a mistura entre agir e
sofrer, entre ação e sofrimento, que constitui a própria trama de uma vida. É essa mistura que
a narrativa tenta imitar de maneira criativa.”(RICOEUR, 1991, p. 28).8 A narrativa, além de
mimetizar as ações do homens, também mimetiza e organiza a vida dos homens, homens que,
além de agir no mundo, também sofrem, alegram-se, trabalham e relacionam-se, é este
conjunto de ações e vivências dos homens que são consideradas juntas e articuladas na
composição narrativa.
Segundo Ricoeur, para conhecer a identidade de um sujeito ou de uma comunidade é
necessário saber quem fez tal ação. Quem é o agente da ação, o seu autor? E segundo ele,
essa questão primeiramente é respondida nomeando alguém, designando-o por um nome
próprio. Porém, qual é o suporte de permanência do nome próprio? O que justifica e se
considera o sujeito da ação, assim como seu nome próprio ao longo de toda uma vida? Para
responder à essa questão colocada por ele mesmo, Ricoeur afirma que é por meio da narrativa,
da história narrada que podemos descobrir a identidade de um sujeito. Citando Hannah
Arendt, Ricoeur diz que responder à questão quem? é contar a história de uma vida. (cf.
RICOEUR, 1997, p. 424). A história narrada descreve o quem da ação. Pelas histórias
narradas podemos conhecer a identidade de um sujeito e, ao mesmo tempo, podemos nos
conhecer pelas histórias que narramos e lemos. Um sujeito, quando narra sua própria história,
está mimetizando sua própria ação no mundo e ao mesmo tempo está mimetizando o que
contaram a seu respeito. E é nessa mimetização que o sujeito ordena e articula vários
acontecimentos da vida, de sua própria vida, em uma única história, dando a esses vários
acontecimentos uma certa inteligibilidade e sentido lógico. É exatamente por isso que uma
narrativa consegue proporcionar ao sujeito a identidade narrativa. Contando e recontando sua
própria história, o sujeito articula o passado, o presente e o futuro de sua história de vida e
com isso consegue dar algum sentido às suas ações.
O sujeito, constituído ao mesmo tempo como leitor e escritor de sua própria vida, ao
8 “…we must underscore the mixture of acting and suffering which constitutes the very fabric of a life. It is this
mixture which the narrative attempts to imitate in a creative way.”
97
se apropriar do mundo de possibilidades da composição narrativa, encontra nessas ações que
foram articuladas e ordenadas significativamente a possibilidade de transmitir um horizonte
de significações, que podem proporcionar ao sujeito ou a outro leitor possibilidades de
encontrar um sentido para sua vida. “O sujeito se lança para além de sua existência
puramente biológica, meramente corporal, e ganha „representação‟, inserindo-se numa
história, ganhando uma história.”(GENTIL, 2008, p. 159). A vida humana ganha significação,
torna-se propriamente humana, quando o sujeito narra sua própria história e quando se
apropria da narrativa pelo ato de leitura, pois a narrativa retorna ao mundo da vida de onde
partiu através do leitor.
Embora a vida e a narrativa sejam coisas distintas, há uma imbricação entre o viver e o
narrar; contamos nossas histórias e aprendemos com as histórias do outros. São nas histórias
narradas, articuladas de um certo modo inteligível que podemos encontrar vida e, se podemos
encontrar vida na narrativa, podemos, pela apropriação das narrativas, encontrar “algo” que
possa motivar nossas vidas. Podemos então perguntar: Como podemos encontrar um sentido
para vida na composição narrativa?
Primeiramente podemos responder esta pergunta dizendo que um sujeito, ao narrar sua
própria história e percebendo-se como personagem de sua história de vida, descobre sua
identidade a partir dessa história narrada, que foi articulada e ordenada por ele. Narrando sua
história, o sujeito consegue perceber, ao longo de toda a narração, o fio que lhe dá
permanência ao longo do tempo em sua história de vida. E é exatamente aí, na descoberta
dessa permanência, dessa identidade, que um sujeito, conhecendo-se e reconhecendo-se ao
longo da narração, consegue perceber o que motiva sua vida, o que dá razão de ser à sua
existência. Porém, como o próprio Ricoeur afirma, uma narração não se encerra na
configuração narrativa, pelo contrário, ela nasce no mundo da vida e se encerra no mundo da
vida através do leitor, que pode ser o próprio escritor ou qualquer outro leitor, que através do
ato de leitura se apropria da configuração narrativa, transformando sua maneira de ver o
mundo e de se posicionar nele.
É nesse segundo ponto que acreditamos encontrar maiores possibilidades de uma
pessoa encontrar um sentido para vida, pois, ouvindo e lendo a história de outros e ao mesmo
tempo articulando-se e equiparando-a com sua própria história, ela pode encontrar um sentido
para sua vida. Podemos, ao longo das histórias que nossos pais nos contaram, das histórias
que contaram a nosso respeito, das histórias que ouvimos dos outros, das histórias que lemos
e amamos, ir descobrindo um sentido para nossas vidas, algo que dê motivação à nossa vida.
Lembramos que Viktor Frankl, ao falar sobre a pessoa que busca encontrar
98
constantemente um sentido para vida, não está se referindo a um sentido para uma vida toda,
mas o sentido daquele instante, daquele momento. Diz ele, “...cada dia, cada hora proporciona
um novo sentido...”(FRANKL, 1990, p. 46). Logo, quando estamos dizendo que uma pessoa,
ao se apropriar de uma composição narrativa, pode encontrar aí um sentido para sua vida, não
estamos querendo dizer que encontrará um sentido para toda a sua vida ou algo que a motive
sua vida ao longo de toda sua história de vida. Mas dizemos que uma pessoa, ao se apropriar
de uma composição narrativa, pode encontrar naquele instante “algo” que dê um sentido para
sua vida naquele momento, e que pode durar uma hora, um dia ou até mesmo uma vida toda,
pois o sentido varia de pessoa para pessoa e de situação para situação, como afirma Frankl.
Sem fugir da resposta à pergunta de como podemos encontrar um sentido para nossas
vidas pelas composições narrativas, vamos continuar detalhando o segundo ponto, em que
acreditamos estarem as maiores possibilidades de encontrar um sentido para nossas vidas, que
é através da composição narrativa.
Segundo Ricoeur, como já afirmamos no terceiro capítulo, é na mimesis III que ocorre
o encontro entre a obra configurada com seu mundo próprio e o mundo do leitor que se
apropria da obra. É na apropriação da obra, através do ato de leitura, que se funde o horizonte
mundo do leitor e horizonte mundo do texto, ocorrendo a “fusão de horizontes” na expressão
de Gadamer ou a refiguração na expressão de Ricoeur. Com a refiguração a obra, que nasceu
no mundo da vida, retorna ao mundo da vida através do leitor que se apropria da obra através
da leitura. É no processo de apropriação da obra pelo leitor que essa ganha novos sentidos,
interpretações e ao mesmo tempo refigura o mundo do leitor, transformando sua maneira de
ver o mundo e a si próprio. É aqui, através da composição narrativa, que vemos a
possibilidade de encontrar um sentido para nossas vidas, pois tanto um sujeito, que narra sua
própria vida, quanto um leitor, ao se abrir totalmente à proposta de mundo projetada pela
composição narrativa, suspendendo sua capacidade finita de compreender e perdendo-se no
ato de leitura, podem não só redesenhar seu modo de agir, mas também encontrar na narrativa
um sentido para sua vida.
Como vimos no primeiro capítulo, o sentido da vida é encontrado conforme nos
abrimos ao mundo e nos relacionamos com as situações do mundo, é nessa abertura que nos
deixamos ser questionados pelas situações do mundo e também questionamos as situações, e é
aí que podemos descobrir o que é único e original para aquele momento, ou seja, um sentido
para a vida. Por isso podemos afirmar que uma pessoa que tem seu mundo próprio, ao se
aproximar como leitor, através do ato de leitura, abrindo-se ao mundo da composição
narrativa, pode encontrar um sentido para sua vida, diante das várias possibilidades de vida
99
que se abrem aí; essa pessoa está se deixando encontrar mediante sua abertura à proposta de
mundo projetada pela composição narrativa.
4.1 Aproximando a noção de narrativa à questão do sentido da vida.
Iremos aproximar a noção de narrativa de Ricoeur à questão do sentido da vida em
Viktor Frankl, como abordamos no primeiro capítulo. Os dois autores abordam questões
distintas, pois no primeiro o que vemos é a proposta de relacionar a natureza do tempo e a
narrativa, e no segundo a atenção está centrada no ser humano que tem sede de sentido para
vida. A nossa hipótese é que é possível relacionar esses dois autores e construir uma
articulação entre a noção de narrativa e a questão do sentido da vida em Frankl.
Para realizarmos essa aproximação vamos recordar brevemente a questão do sentido
da vida em Frankl, visto que a noção de narrativa já se tornou mais clara. No primeiro
capítulo, vimos que o sentido da vida para Viktor Frankl são as motivações que encontramos
na existência. Diz ele, a “...logoterapia acaba por estabelecer um confronto entre a existência e
o logos. Em teoria, não faz mais do que tomar o logos por motivação da
existência.”(FRANKL, 2003, p. 97). Para ele “o termo logos é uma palavra grega e significa
sentido!”(FRANKL, 2008, p. 124). O sentido identifica-se com encontrar motivos para viver,
motivações para existência. “...Diria eu que o homem realmente quer, em derradeira instância,
não a felicidade em si mesma, mas antes um motivo para ser feliz.”(FRANKL, 1991, p. 11).
Segundo Frankl, “o homem (...) precisa ter um objetivo de vida, uma tarefa a cumprir
consentânea com suas aptidões, em suma, uma vida que lhe ofereça desafios
permanentes...”(FRANKL, 1991, p. 65).
O sentido que Frankl desenvolve em suas obras pode ser definido como motivações da
existência, motivações que encontramos em cada situação e ao longo da vida. Porém, para que
uma pessoa possa encontrar um sentido em sua vida, é necessário da sua parte ser aberta ao
mundo, ser aberta às diversas circunstâncias da vida. Sendo aberto e relacionando-se com as
situações concretas do dia-a-dia, como o trabalho, o estudo, a vida familiar e mesmo os
sofrimentos, o homem cria a oportunidade de encontrar o sentido por que tanto anseia. Diz o
autor, “...o sentido não significa algo abstrato; ao contrário, é um sentido totalmente concreto,
o sentido concreto de uma situação com a qual uma pessoa também concreta se vê
confrontada...”(RICOEUR, 1992, p. 79).
Podemos dizer que para Frankl o homem pode realizar um sentido para sua vida
100
conforme vai se relacionando no seu dia-a-dia, conforme vai se abrindo e se deixando
questionar por cada situação. Cada “...situação na vida constitui um desafio para a pessoa e
lhe apresenta um problema para resolver (...), cada pessoa é questionada pela vida; e ela
somente pode responder à vida respondendo por sua própria vida...”(FRANKL, 2008, p. 133).
Assim, como já afirmamos no primeiro capítulo, o homem, que vive no mundo é questionado
pelas situações e também questiona as situações e dessa relação vão nascendo as motivações
que animam sua existência. Portanto, cada situação torna-se para o homem uma oportunidade
única para encontrar os motivos que podem animar sua vida. É interessante observar que o
sentido da vida não é uma “coisa” ou “algo” que possa ser apreendido, pego, mas é
experiência, que dá a razão de ser à existência do homem, é o que motiva sua vida e só pode
ser encontrado conforme ele se abre para as diversas circunstâncias da vida e se relaciona com
elas. O sentido para a vida é realizado a partir do movimento do homem para mundo e do
mundo para o homem. É nesse sentido que se pode afirmar que o homem não está pronto no
mundo, mas vai se construindo dia-a-dia, conforme se relaciona. “...O homem jamais „é‟,
„sempre chegará a ser‟...”(FRANKL, 1978, p. 232). E é sendo cada vez mais aberto ao
mundo, através dos diversos relacionamentos tanto com as coisas como com as pessoas, que o
homem pode encontrar um sentido para sua existência.
Assim, segundo Frankl, o homem só pode realizar sua essência na existência, ou
melhor, o homem só pode encontrar motivações para sua vida conforme se relaciona com a
vida. É buscando e relacionando-se que o homem pode encontrar as motivações de sua
existência ou o sentido para sua vida. Para o autor, o homem vive em uma tensão constante
entre o ser e o dever-ser; ser, pelo que é no momento (uma pessoa que anseia por realizar um
sentido para sua vida) e o dever-ser, pelo que ainda não realizou (por não ter conseguido
encontrar as motivações de sua vida). É exatamente aqui que levantamos vários
questionamentos.
Se as circunstâncias da vida mudam constantemente e se várias circunstâncias
aparecem sem mesmo esperarmos, como podemos encontrar um sentido para nossas vidas?
Como uma pessoa envolvida com as diversas circunstâncias, tantas vezes circunstâncias
difíceis de serem “decifradas”, pode encontrar um sentido para sua vida? Como a pessoa pode
pelo menos pontuar o sentido de sua vida dizendo: “vou por este caminho que talvez seja o
melhor, ou isto me dá rumo à vida”? Seguindo a reflexão de Viktor Frankl é necessário da
parte do homem procurar a cada momento e estar sempre aberto, envolvido com as diversas
situações para encontrar respostas que motivem sua vida. Para o autor não é possível
encontrar uma resposta precisa a respeito de como encontrar o que motiva sua existência. É
101
necessário haver sempre abertura e relacionamento, abertura ao outro e ao mundo.
Foi na tentativa de encontrar uma resposta mais precisa ou pelo menos um ponto para
nos situarmos a respeito do sentido da vida, diante das diversas circunstâncias que mudam
constantemente, que abordamos a noção de narrativa de Paul Ricoeur. Observa Ricoeur que,
por meio da composição lingüística em forma de composição narrativa, o leitor, através do ato
de leitura, pode redesenhar sua ação no mundo. A cada ato de leitura, o leitor pode
resignificar suas ações. O que em Viktor Frankl não conseguimos “apreender” nem pelo
menos pontuar, em Paul Ricoeur, pela noção de narrativa através do processo de tessitura da
intriga e de um modo especial com a refiguração, conseguimos. É como leitor que o homem,
suspendendo sua capacidade finita de compreender, entregando-se ao ato de leitura, abre-se à
proposta de mundo projetada pela composição narrativa. Destarte conseguimos, através do
mundo do texto, encontrar várias significações que podem mudar nossa ação no mundo.
Lembramos que o mundo configurado na composição narrativa é mimesis das ações dos
homens, ações que, segundo Ricoeur, nos remetem a motivos que explicam por que alguém
faz ou fez algo, ações que têm um agente, alguém que faz algo. São essas ações que se
referem sempre a alguém, a seus atos no mundo, que são imitadas criativamente em forma de
composição narrativa e, uma vez configuradas, projetam várias significações para aquele que
faz a leitura. Por isso, como já afirmamos, as significações são projetadas da obra
configurada, não se trata de algo desligado do mundo, pelo contrário, as composições
narrativas projetam para seus leitores o mundo da ação, que nasceu da vida dos homens e que
retorna ao mundo dos homens pelo ato da leitura. Se uma pessoa que busca um sentido para
vida penetrar na composição narrativa através do ato de leitura, podemos dizer que essa
pessoa, mesmo não sabendo qual o assunto ou a história de que trata a composição narrativa,
mesmo assim, ela pode encontrar um sentido para sua vida. Afirmamos isso porque a
narrativa diz do mundo dos homens, mimetiza as ações dos homens que, às vezes, não tinham
nenhuma significação para aquele que escreveu, mas, após a configuração, ganham um certo
sentido. Podem ser assim apropriadas por qualquer leitor, que pode encontrar aí possibilidade
de sentido para vida.
Mesmo vivendo, como já afirmamos no início do trabalho, em dias de constantes
mudanças, no turbilhão de correria do dia-a-dia, em circunstâncias tão variáveis, vemos que,
pela composição narrativa, que mimetiza as ações dos homens em forma de composição,
dirigindo-se a um leitor ou a vários leitores, podemos ter possibilidade de encontrar um
sentido para vida.
A noção de narrativa de Ricoeur torna-se uma resposta para a nossa questão do sentido
102
da vida, a narrativa revela-se como um meio que pode nos ajudar a viver com as mudanças
que ocorrem no nosso dia-a-dia. Embora as situações possam mudar constantemente, um
leitor, ao se apropriar de uma composição narrativa por meio da leitura, encontra aí uma
“situação” articulada com sentido, com lógica; pode assim encontrar, em uma composição
narrativa que lhe agrada, um sentido para sua vida. A narrativa “torna-se” uma situação
concreta para aquele que busca um sentido para sua vida, torna-se um terreno seguro e estável
em meio às situações que mudam constantemente.
Embora Viktor Frankl e Paul Ricoeur partam de reflexões distintas, podemos
aproximar esses dois grandes pensadores, porque ambos buscam ir além do sujeito que se
auto-intitula absoluto, de um sujeito egocêntrico. Em Frankl, para encontrar o que realmente
motive sua existência, o homem não pode ficar pensando em si mesmo, no próprio prazer ou
no poder, ao contrário, deve sair de si em direção a algo ou alguém. Já para Ricoeur, só
podemos nos conhecer e nos compreender à medida que nos relacionamos com as obras
escritas, conhecemos a nós mesmos através da mediação dos textos da cultura que lemos e
amamos. O “...„eu não pode apropriar-se de si senão nas expressões da vida que o
objetivam...”(RICOEUR, 1978, p. 19). O “eu” não pode se reconhecer de modo imediato, é
necessária a mediação das obras, é saindo de si mesmo que a pessoa se conhece e se
reconhece.
Em ambos a abertura do homem é extremamente importante, embora no primeiro a
abertura se direcione às diversas circunstâncias da vida e no segundo a abertura seja para o
texto como obra, pode-se observar que o texto como obra não deixa de ser circunstância da
vida, pois configura o mundo da ação. É somente saindo de si mesmo, sendo aberto aos outros
que o homem pode se encontrar. Tanto para Frankl quanto para Ricoeur, o que caracteriza o
existir de uma pessoa é que esta vive no mundo, está inserida na história e dentro dessa
história existe uma multiplicidade de possibilidades que podem motivar sua vida.
4.2 A busca do sentido da vida e o livro Em busca de sentido – um psicólogo no campo de
concentração.
Em nosso terceiro capítulo apresentamos o desdobramento mimético de Paul Ricoeur
e o processo de refiguração pelo qual tanto o sujeito da narração quanto o leitor conseguem
redesenhar a própria vida através da composição narrativa. Pelo ato de leitura refiguramos
nossa ação no mundo. Observamos que, pelas composições imaginárias, conseguimos retirar
103
várias significações que podem mudar nossa própria realidade e através dessas várias
significações também podemos encontrar sentido para nossas vidas. Quanto mais fazemos
leituras, mais temos oportunidades de resignificar nossa própria vida e encontrar sentido para
ela. Nos pontos anteriores buscamos relacionar a questão do sentido da vida de Viktor Frankl
com a noção de narrativa de Paul Ricoeur e percebemos que para ambos os autores, para que
uma pessoa possa se conhecer, é necessária a abertura de si em direção a algo ou alguém.
Com este ponto pretendemos conhecer um pouco o livro Em busca de sentido de
Viktor Frankl, tentando pensar o quanto uma narrativa pode ajudar o leitor e o próprio autor a
buscar um sentido para vida. A fim de mostrar que a partir do livro de Frankl podemos
encontrar histórias que podem nos ajudar a encontrar um sentido para nossas vidas, citaremos
alguns exemplos de seu livro, que narram sua experiência pessoal e a de seus companheiros
de prisão. Vamos dividir a reflexão deste ponto em duas partes: primeiramente vamos mostrar
qual foi a intenção do autor ao escrever o livro e o que aconteceu após sua publicação. Em
segundo lugar pretendemos citar alguns exemplos relatados por Frankl de que é possível
encontrar um sentido para vida, mesmo em situações de sofrimento.
4.3 A narrativa de Viktor Frankl no campo concentração.
Viktor Frankl vivenciou os limites da existência humana no campo de concentração.
Frankl, sendo judeu, foi preso pelos nazistas no ano de 1942 e libertado no ano de 1945.
Durante a prisão passou fome, frio, sofrimentos e humilhações, mas não se abateu. Narra em
sua autobiografia como uma pessoa pode não se deixar absorver ou se aniquilar em sua
humanidade, mesmo passando pelos piores sofrimentos, como no caso, sendo prisioneiro em
um campo de concentração. Assim, mesmo uma pessoa passando pelos piores sofrimentos,
como por exemplo, sendo prisioneiro “sem nada ter feito”, simplesmente por causa de sua
raça, ainda assim pode ir além de si mesmo. O ser humano pode sempre ir além, superar-se
em função de um sentido para sua vida, como desenvolvemos no primeiro capítulo.
A fim de animar várias pessoas que buscam constantemente um sentido para vida e
várias pessoas que não encontram rumo em suas vidas, pessoas desesperadas e sem sentido, o
autor, no mesmo ano em que saiu da prisão, escreveu sua experiência no campo de
concentração, intitulando seu livro como: Em busca de sentido – um psicólogo no campo de
concentração. Para sua surpresa, após o lançamento do livro, seu nome tornou-se conhecido e
104
sua narrativa sobre o campo de concentração tornou-se um best-seller atingindo vários
leitores de diversos lugares do mundo.
Diz em seu prefácio: “...havia querido simplesmente transmitir ao leitor, através de um
exemplo concreto, que a vida tem um sentido potencial sob quaisquer circunstâncias, mesmo
as mais miseráveis...”(FRANKL, 2008, p. 10). Ao escrever sua experiência no campo de
concentração e de um modo especial sua experiência no campo de Auschwitz, o autor não
pretendia que sua obra ou sua pessoa se tornassem famosas, pretendia simplesmente transmitir
a vários leitores que, mesmo nas situações mais miseráveis, como a situação do campo de
Auschwitz, é possível retirar uma lição para vida, é possível dar respostas positivas mesmo
que as situações sejam negativas. Embora Frankl não tivesse previsto a proporção que iria
alcançar seu livro, tinha a intenção de revelar a vários leitores que é possível buscar um
sentido para vida mesmo diante das situações mais difíceis e desesperadoras do dia-a-dia.
O livro Em busca de sentido – um psicólogo no campo de concentração, não se trata,
como o próprio autor afirma, de fatos externos, mas de suas próprias experiências e as de
milhares de prisioneiros que passaram por fome, humilhações e tortura nos campos de
concentração nazistas. É uma história contada por quem viveu por mais de dois anos os
horrores da ação de um homem sobre outro homem. Frankl, que vivenciou e presenciou
muitos sofrimentos e até mesmo muitas mortes, transmite em sua narrativa a história de
prisioneiros comuns e desconhecidos, que eram desprezados pelos capos (prisioneiros que
dispunham de privilégios – os guardas do campo de concentração). Os prisioneiros comuns
eram os que passavam fome, que lutavam por um pedaço de pão a cada dia, que sofriam
torturas, que morriam de inanição, que adquiriam doenças pelos maus tratos, pela
desumanização, pelo trabalho forçado e por todos os tipos de atrocidades. São as histórias
dessas pessoas e a sua própria história, como prisioneiro comum, que Frankl narra em seu
livro. Afirma Frankl, “...o importante não será mostrar o seu modo de vida pessoal, mas a
maneira como precisamente o prisioneiro comum experimentou a vida no campo de
concentração...”(FRANKL, 2008, p. 18). Com essa afirmação, vemos que as histórias que
narra são as histórias do dia-a-dia do campo de concentração, histórias de milhares de
prisioneiros anônimos e desconhecidos, histórias de pessoas que lutaram por sua dignidade e
de pessoas que se entregaram à morte por não resistirem a tanta pressão e a tantos
sofrimentos. Queremos levantar aqui que não estamos fazendo juízos sobre atos das pessoas
no campo de concentração, pois não podemos calcular o tamanho do sofrimento e
desumanização que tantas pessoas inocentes sofreram.
105
Frankl, como já citamos acima, conta em seu livro os pequenos fatos do dia-a-dia, a
busca pela sobrevivência do prisioneiro comum. Veremos, citando um trecho de seu livro, que
durante a narração de sua história pessoal, o autor mistura suas conclusões pessoais sobre a
vida e a história de outros prisioneiros, o que para nós não é difícil de compreender, pois
como prisioneiro estava sempre envolvido com os outros prisioneiros. O autor narra a história
dos prisioneiros comuns, e ele próprio era também um prisioneiro comum, como diz sobre si
mesmo: “...não é sem orgulho que digo não ter sido mais que um prisioneiro „comum‟, nada
fui senão o simples nº 119.104...”(FRANKL, 2008, p. 18).
Tendo relatado a intenção do autor ao escrever sua autobiografia sobre o campo de
concentração e a repercussão que teve a obra após a publicação, vamos citar um trecho do
livro e tirar nossas conclusões sobre a narrativa do autor. O livro está dividido em três partes.
A primeira parte relata a chegada ao campo de concentração; o autor conta aí o horror que ele
e seus companheiros sentiram quando souberam que estavam no campo de Auschwitz, conta
que lhes retiraram tudo, até mesmo os cabelos, dando-lhes trapos para vestirem e passarem
frio. Passavam fome e sede, pois a única coisa que era oferecida no campo eram pequenos
pedaços de pão e sopa aguada com ervilhas. A segunda parte é chamada A vida no campo de
concentração; nessa parte do livro, que é a mais longa, o autor conta o que sentiam após um
tempo sobrevivendo dentro da prisão. Narra a apatia que muitos começavam sentir, a ausência
de dor, causada por tanto sofrimento, tantas pancadarias que sofriam dos guardas
constantemente. Nessa fase o autor também escreve sobre os sonhos dos prisioneiros, que na
maior parte eram sobre alimentos, pois passavam fome. Escreve ainda sobre o sentimento
religioso que crescia entre os prisioneiros, a luta pela sobrevivência de muitos de seus
companheiros, que procuravam encontrar respostas mesmo aí onde sofriam tanto. Na terceira
fase do livro, chamada Após a libertação, o autor narra o que sentiram e o quanto
desconfiavam da própria libertação, depois de tanto sofrimento. Conta que, tendo visto a
bandeira banca no portão do campo, ele e seus companheiros se arrastaram vagarosamente em
direção ao portão, com medo de serem espancados, olhavam para os lados desconfiados,
porém, desta vez não havia voz de comando, não havia bofetões ou pancadas, ao contrário os
guardas agiam como se nada estivesse acontecido, até ofereciam cigarros.
A obra – Um psicólogo no campo de concentração é um livro apaixonante e
envolvente, que nos ensina que podemos buscar um sentido para vida mesmo vivendo os
piores sofrimentos. Citando um trecho das várias histórias que existem na segunda parte do
livro, pretendemos mostrar através de um exemplo, que é semelhante a todo o resto do livro,
como Frankl escreve sua autobiografia e em seguida vamos tirar nossas próprias conclusões a
106
respeito do trecho que será citado. Este trecho é chamado “Quando nada mais resta”. Assim
escreve Frankl:
“Vez por outra olho para o céu aonde vão empalidecendo as estrelas, ou para aquela
região no horizonte em que assoma a alvorada por detrás de um lúgubre grupo de
nuvens. Mas agora meu espírito está tomado daquela figura à qual ele se agarra com
uma fantasia incrivelmente viva, que eu jamais conhecera antes na vida normal.
Converso com minha esposa. Ouço-a responder, vejo-a sorrindo, vejo seu olhar
como que a exigir e a animar ao mesmo tempo e - tanto faz se é real ou não a sua
presença - seu olhar agora brilha com mais intensidade que o sol que está nascendo.
Um pensamento me sacode. É a primeira vez na vida que experimento a verdade
daquilo que tantos pensadores ressaltaram como a quintessência da sabedoria, por
tantos poetas cantada: a verdade de que o amor é, de certa forma, o bem último e
supremo que pode ser alcançado pela existência humana. Compreendo agora as
coisas últimas e extremas que podem ser expressas em pensamento, poesia – e em fé
humana: a redenção pelo amor e no amor! Passo a compreender que a pessoa,
mesmo que nada mais lhe reste neste mundo, pode tornar-se bem-aventurada - ainda
que somente por alguns momentos – entregando se interiormente à imagem da
pessoa amada. Na pior situação exterior que se possa imaginar, numa situação em
que a pessoa não pode realizar-se através de alguma conquista, numa situação em
que sua conquista pode consistir unicamente num sofrimento reto, num sofrimento
de cabeça erguida, nesta situação a pessoa pode realizar-se na contemplação
amorosa da imagem espiritual que ela porta dentro de si da pessoa amada.”
(FRANKL, 2008, p. 55).
Neste trecho Frankl mostra que ao narrar, além de contar suas experiências e as de
seus companheiros de trabalho no campo de concentração, também conta sua experiência
pessoal daquele momento, e ainda retira dessa experiência conclusões sobre o amor e sobre a
realização pessoal, quando se tem uma pessoa amada. Neste trecho que Frankl começa
narrando o cansaço que sentiam durante o trabalho na neve, onde ele e seus companheiros se
apoiavam mutuamente para não esmorecerem, e naquele instante não diziam nada, apenas se
arrastavam e se erguiam. De repente o autor deixa de relatar o que estava acontecendo no
momento e passa a narrar seu próprio pensamento, sua experiência; conta que vez por outra
voltava seus olhos para o céu onde as estrelas iam quase desaparecendo, olhava para o
horizonte recordando-se de sua esposa, que também estava presa em outro campo, e começa a
narrar o que estava sentindo com a recordação, conta que seu espírito era tomado pela figura
da sua esposa, e ele diz viver uma experiência única que nunca tinha antes vivido. Procurava
experimentar o máximo daquele momento, conversava com a figura de sua esposa, falava a
ela e a ouvia responder, via-a sorrindo, procurava ter um diálogo com ela. E assim vai
narrando a experiência por que estava passando ao recordar-se de sua esposa. É neste mesmo
instante que começa a escrever suas conclusões sobre a vida, começa a narrar que, mesmo
passando por sofrimento, quando nada mais lhe restava como aquele momento da prisão, pode
107
uma pessoa voltar para seu interior e recordar as boas lembranças da vida, como no seu caso,
sua esposa. O autor conclui que isso ajuda a enfrentar o sofrimento com retidão e ainda
encontrar forças para continuar lutando pela vida.
Porém, de repente Frankl muda novamente sua narração e volta a escrever sua
experiência e a de seus companheiros de prisão, e conta que um de seus companheiros caiu
por terra, outros caíram juntos, e chegou o guarda chicoteando todos ao mesmo tempo. Enfim,
podemos ver neste trecho do livro que o autor ao escrever faz um misto entre suas
experiências pessoais, entre as experiências de seus companheiros e ainda vai refletindo e
tirando conclusões sobre a vida. Alguém pode nos perguntar: Qual a importância de analisar
todo este trecho do livro para o trabalho? Podemos responder que é de suma importância,
pois, a partir deste pequeno trecho, podemos compreender um pouco como Frankl escreve seu
livro. Vemos por este trecho, que é semelhante ao restante do livro, que Frankl ao escrever
seu livro – Um psicólogo no campo de concentração, não tem a preocupação de construir uma
narração imparcial, “neutra” sobre o campo de concentração, pelo contrário, o que vemos e
lemos é uma mistura entre suas experiências, suas reflexões e as experiências de seus
companheiros. Frankl não parece construir uma narrativa como uma totalidade, mas ao narrar
vai apresentando o que foi vivendo com seus companheiros e vai tirando conclusões sobre a
vida naquele instante. Frankl conta pequenas histórias e vai retirando conclusões sobre elas.
A narrativa de Frankl não é semelhante à narrativa como tessitura da intriga que
estamos analisando neste trabalho. No capítulo terceiro, vimos que a narração parte de mundo
da ação e se configura em composição narrativa, ganhando um mundo próprio. Com a
configuração da narrativa o autor desaparece e a composição ganha autonomia. É neste
instante que a composição é trabalhada, moldada com linguagem própria, sendo abolida a
referência ao seu autor. A composição narrativa ganha totalidade dotada de sentido, dirigindo-
se a várias pessoas que saibam ler.
Voltando nossos olhos para o livro de Frankl, podemos perceber que, ao narrar a
experiência do campo de concentração, a referência a si próprio continua. Podemos dizer que
o livro – Um psicólogo no campo de concentração – não é uma composição narrativa com as
características assinaladas por Ricoeur, mas sim um relato do campo de concentração, pois
fornece a nós leitores o equivalente da referência ostensiva do discurso no modo „como se‟
(„como se lá estivesse‟). Graças aos procedimentos de identificação singular, a referência ao
autor continua; encontramos um misto de relato de experiência pessoal, de reflexões sobre a
vida e de experiência dos prisioneiros, como mostra a citação acima.
108
Podemos dizer mais uma vez, como afirmamos no segundo capítulo deste trabalho,
que para que um texto possa ganhar autonomia é necessário libertar-se da tutela de seu autor
ganhando configuração própria. É por isso que afirmamos que a história contada por Frankl
sobre o campo de concentração não é como uma narrativa que tem autonomia em relação ao
seu autor, mas sim um discurso descritivo, pois encontramos no livro de Frankl histórias sobre
o campo de concentração misturadas com suas próprias experiências e com suas reflexões a
respeito do sentido da vida, mantendo desta forma a referência ostensiva através relato sobre o
campo de concentração. Porém, embora o livro de Frankl não seja uma composição narrativa,
mas um relato de várias histórias que o autor viveu e presenciou, podemos reconhecer que as
histórias relatadas mostram-nos que várias pessoas no campo de concentração bem como o
próprio autor, mesmo vivendo os horrores como prisioneiros, conseguiram retirar de
experiências negativas respostas positivas. É o que Frankl nos mostra no trecho que citamos,
quando ele se recorda da esposa e diz ser uma experiência única mesmo naquele instante, e
também como mostra na próxima citação que faremos, que ele intitula como a “arte no campo
de concentração”.
“Arte no campo de concentração será possível isso? Claro, depende do que se chama
de arte. Vale dizer que vez por outra havia inclusive teatro improvisado.
Desocupava-se provisoriamente um barracão, improvisavam-se alguns bancos de
tábuas e elaborava-se um "programa". E à noite vêm aqueles que passavam
relativamente bem no campo, como por exemplo os Capos ou os que trabalhavam no
depósito e não precisavam marchar para o trabalho externo; eles vêm para rir ou
chorar um pouco, em todo o caso para esquecer. Apresentam-se algumas canções e
recitam-se poemas, contam-se ou apresentam-se cenas cômicas, ou mesmo sátiras
alusivas à vida no campo de concentração, tudo para ajudar a esquecer. E realmente
ajuda! Ajuda a tal ponto que alguns prisioneiros comuns, não privilegiados, vêm
para esse teatro mesmo exaustos da labuta do dia, e mesmo perdendo por isso a
distribuição da sopa. Quem fosse privilegiado com uma voz realmente boa, era alvo
de inveja, e não pouca. Durante a meia hora de intervalo do meio-dia, nos primeiros
tempos de nosso internamento no campo de concentração, era distribuída uma sopa
no próprio local da obra (a sopa era providenciada pela firma construtora, que não
tinha interesse em investir muito na mesma). Durante esse intervalo podíamos
reunir-nos na sala de máquinas ainda em construção; na entrada cada um recebia
uma concha de sopa rala. Enquanto a sorvíamos sequiosamente, um companheiro
subia num tonel e cantava árias italianas. Enquanto para nós isto representava um
deleite musical, ele tinha garantida uma ração dupla de sopa, "do fundo", ou seja, até
com ervilhas.”(FRANKL, 2008, p. 60).
Vemos que, passando pelos piores sofrimentos, os prisioneiros do campo de
concentração buscavam uma maneira de aliviar esses sofrimentos, buscavam maneiras de
encontrar motivações para sua vida na prisão. Mostra a citação que através do teatro, de
canções, de cenas cômicas, os prisioneiros, mesmo aqueles mais cansados, trocavam sua
109
pouca comida para participarem das apresentações improvisadas, buscando motivos para
continuar lutando pela vida, ainda que esses motivos fossem por alguns instantes. É
interessante observar que Frankl vai descrevendo em seu livro, como ele e alguns de seus
companheiros buscavam meios para sobreviver, através das histórias que contavam, que
escutavam e que partilhavam, e que os ajudava a encontrar um motivo para sobreviver,
mesmo que por alguns instantes.
Assim, lendo o livro de Frankl, podemos encontrar várias histórias que podem mudar
nossa maneira de pensar e nossa atitude perante os sofrimentos, e ainda podem ajudar-nos a
procurar, dentro de nossas circunstâncias, maneiras variadas de encontrar motivações que
dêem rumo a nossas vidas. Os exemplos que citamos do livro mostram-nos que Frankl,
mesmo sofrendo, procurava ser otimista em relação à sua vida, procurava animar seus
companheiros e a si próprio, tendo em vista alcançar um sentido ou motivações para a vida,
naquele lugar que não tinha nenhum sentido. Vimos nos relatos de Frankl, nas histórias que
vivenciou e escreveu, que é possível procurar meios ou ter atitudes criativas para suportar os
sofrimentos, assim como ele fez, ao recordar de sua esposa, ao participar de teatros
improvisados, ao se deixar penetrar por canções e também por meio de outros exemplos que
narra em seu livro.
É interessante percebermos nos trechos do livro que citamos e também em todo o livro
que Frankl e alguns de seus companheiros, para encontrar um sentido para sobreviver naquele
lugar de horror que era o campo de concentração, procuravam maneiras criativas para contar
um pouco de suas histórias, para escutar as histórias dos outros e para partilharem. É aí que
recordamos Ricoeur, como já citamos no início deste capítulo, que afirma que história narrada
diz o quem da ação. Pelas histórias narradas podemos conhecer a identidade de um sujeito e
ao mesmo tempo podemos nos reconhecer como personagens das histórias que narramos, que
ouvimos, que lemos e amamos. Contando e recontando nossas próprias histórias, podemos
articular o tempo e com isso podemos encontrar algum sentido para nossas ações, assim como
ocorre com Frankl e seus companheiros de prisão.
Por fim, para concluir nossas reflexões sobre a obra de Frankl, vemos que o autor, ao
ser preso injustamente não se deixou abater por tantos sofrimentos, mas procurou a cada
instante, a cada situação que se apresentava a ele, encontrar respostas para poder suportar a
fome, a sede, as bofetadas e as humilhações que sofria. Frankl, como mostramos nos
exemplos citados de seu livro, soube encontrar um sentido para vida, para poder sobreviver
aos sofrimentos e ao terror por que passou por mais de dois anos na prisão.
110
Frankl pode comprovar, a partir da própria vida, que o homem que vive no mundo é
questionado pelas situações e também questiona as situações, e dessa relação vão nascendo as
motivações que animam sua existência, ainda que seja uma animação por alguns instantes
para suportar o sofrimento. Podemos dizer ainda que Frankl, ao participar desses “eventos”
extraordinários do campo de concentração e ao relatar sua experiência para vários leitores,
lança sua vida para além de sua existência meramente biológica e meramente corporal,
inserindo-a numa história. Como nos diz Ricoeur, a vida humana ganha significação, certo
sentido lógico quando narramos nossas histórias ou quando ouvimos as histórias de vida de
outros.
Ainda que o livro de Frankl não seja uma composição narrativa na mesma textura do
desdobramento da mimesis, vemos que o autor nos relata várias histórias suas e de seus
companheiros de prisão e, a partir dessas histórias, podemos perceber que narrar nossa própria
história e também participar das histórias dos outros, através de cenas de teatrais, piadas e
outros meios, ajuda-nos a dar algum sentido às nossas ações. Através da mediação dos textos
da cultura que lemos e amamos, podemos encontrar motivos para vivermos. Podemos assim
concluir que, através das várias mediações da linguagem e de um modo especial da mediação
dos textos tanto descritivos como de composições narrativas, é possível encontrar
possibilidades de sentido para vida.
111
CONCLUSÃO
Durante o percurso do nosso trabalho procuramos compreender a questão do sentido
da vida, seus significados e sua abordagem no pensamento de Viktor Frankl. Foi olhando para
os nossos dias que percebemos, no início deste trabalho, que vivemos em um tempo de
constantes mudanças, onde tudo é muito rápido, corrido, com tecnologias avançadas, metas a
serem atingidas, informações rápidas a todo instante. Vivemos em um tempo caracterizado
por Berman como modernidade que, segundo este, é um tempo de grandes descobertas nas
ciências físicas, mas também é o tempo da industrialização, da produção que transforma
conhecimento científico em tecnologia, cria novos ambientes humanos e destrói os antigos,
acelera o próprio ritmo de vida, gera novas formas de poder corporativo e de luta de classes,
enfim a modernidade é caracterizada pelo progresso e pela aceleração do ritmo de vida (cf.
BERMAN, 2007, p. 25). É em meio ao progresso e à aceleração do ritmo de vida que a
modernidade, além trazer benefícios para vida humana com novas descobertas, novas
tecnologias, traz também sérios perigos. Afirma Berman (2007) que, ao mesmo tempo em que
existe crescimento, surgem também caminhos fragmentados, superficialidades, as pessoas
ficam desorientadas em meio a tanta rapidez e com isso a modernidade não consegue mais
organizar e dar sentido à vida das pessoas (cf. p. 26). Outros autores como Francisco Duarte
Junior, Sérgio Paulo Rouanet, que também citamos no primeiro capítulo, afirmam que as
pessoas em nossos dias estão decepcionadas com a modernidade; diz Rouanet que o homem
contemporâneo está cansado da modernidade. Vemos assim que algo está acontecendo em
nossos tempos.
O filósofo brasileiro Lima Vaz é mais contundente que estes autores e afirma que
vivemos em tempos de crise, onde ocorre a transformação da produção humana do sentido em
fábrica da aparência e do não-sentido (cf. VAZ, 1994, p. 10). A modernidade encontra-se
mergulhada no modelo poético do conhecimento, um conhecimento que se dirige para o fazer
e dentro desse fazer existe a preocupação com o que é útil (cf. VAZ, 1997, p. 163). Nessa
dinâmica o protagonista é o sujeito, que passa a organizar tudo a partir do fazer e do que é
útil. Logo, o que se torna importante é a utilidade e o funcionalismo das coisas, ficando de
lado as coisas investigadas e contempladas na sua verdade, no ser (ousia), ou ainda no agir
virtuoso. Há lugar apenas para o que é útil, e muitas vezes caímos na aparência ou na
112
representação. Segundo Vaz, para que possa existir produção de sentido na vida do homem é
necessário ter como objeto de conhecimento o ser das coisas, as coisas contempladas na sua
verdade e não naquilo que representam ou aparentam ser, tendo como critério decodificador o
próprio homem. Afirma o filósofo que a modernidade vive em uma crise de sentido, pois o
homem está parado na representação, naquilo que aparentam ser as coisas, na sua
superficialidade.
Assim, a partir desses autores vimos, no primeiro capítulo, que alguma coisa está
acontecendo em nossos dias, um diz que tudo está fragmentado e em constante mudança, o
outro, que as pessoas estão decepcionadas, o outro, que as pessoas estão cansadas da
modernidade, e o outro ainda afirma que vivemos em tempos de crise; percebemos a partir
desses autores que alguma coisa está acontecendo. Viktor Frankl, como vimos, também
escrevendo sobre os nossos dias afirma: “Vivemos numa época em que predomina um
sentimento difuso de que a vida carece de sentido.”(FRANKL, 1978, p. 20). Para ele, muitas
pessoas vivem o vazio existencial, que é um profundo sentimento de falta de sentido,
manifestado principalmente em nossos dias.
É em meio a esse contexto que levantamos a questão do sentido da vida. Como uma
pessoa pode encontrar um sentido para a vida em meio às circunstâncias que mudam
constantemente? Como uma pessoa pode encontrar sentido em nossos dias?
Segundo Viktor Frankl, o sentido da vida constitui a mais humana de todas as nossas
necessidades. O ser humano tem necessidade de encontrar um sentido, uma razão de ser para
sua existência. É em virtude dessa necessidade que a busca por um sentido, segundo Frankl, é
a motivação primária para o ser humano, é a principal força motivadora para sua existência.
(cf. FRANKL, 2008, p. 124). Porém, para Frankl, para que o ser humano possa realizar um
sentido existencial, é necessário que saia de si mesmo e vá em direção ao outro. Segundo ele
“...quanto mais uma pessoa esquecer se si mesma dedicando-se a servir a uma causa ou amar
outra pessoa, mais humana será e mais se realizará...”(FRANKL, 2008, p. 135). Frankl, ao
afirmar que a pessoa encontra sentido para sua vida, saindo de si mesmo em direção a algo ou
alguém, quer salientar que o sentido deve ser descoberto no mundo e não dentro si ou em sua
psique, como se fosse um sistema fechado. Afirma Frankl, seguindo a visão de homem de
Scheler, o homem é um ser aberto ao mundo, o homem não é como uma ostra, fechado em si
mesmo, é um ser aberto às diversas circunstâncias em que vive; e sendo aberto ao mundo, às
várias possibilidades que se apresentam a ele, tem oportunidade de encontrar o que mais
motiva sua vida.
113
As situações da vida se apresentam diante do homem e o homem diante das situações;
é sendo aberto a estas diversas circunstâncias ou relacionando-se com elas que o homem pode
encontrar um sentido para sua vida. Daí vem a afirmação de que o ser humano só pode se
realizar ou encontrar o sentido para sua vida à medida que for aberto ao outro e às
circunstâncias em que vive. Diz Frankl, “...o sentido não significa algo abstrato; ao contrário,
é um sentido totalmente concreto, o sentido concreto de uma situação com a qual uma pessoa
também concreta se vê confrontada...”(FRANKL, 1992, p. 79). Cada situação que se
apresenta a nós é um desafio a ser resolvido e, conforme nos abrimos a essas situações
procurando encontrar respostas adequadas, podemos realizar um sentido para vida. Frankl,
que sofreu as torturas e as humilhações no campo de concentração como nos narra em seu
livro – Em busca de sentido – um psicólogo no campo de concentração, mostra
concretamente como encontrou um sentido para sua vida, ainda que por alguns instantes,
mesmo vivendo naquela situação insuportável. Frankl narra em seu livro que, embora ele e
seus companheiros de prisão vivessem em sofrimento constante, primeiramente por estarem
presos injustamente e depois por sofrerem humilhações, fome, sede, torturas e outros
sofrimentos, que não podemos calcular, ainda assim não se deixavam sucumbir pela situação,
mas procuravam maneiras de superar o próprio sofrimento, através da religião, do teatro
improvisado, do humor, das piadas e outros exemplos.
Frankl mostra a partir de sua própria vida que, mesmo vivendo os piores sofrimentos
ou as piores situações, é possível encontrar um sentido para viver, ainda que esse sentido seja
só por alguns momentos. É daí que afirmamos que o homem que vive no mundo é
questionado pelas situações e também questiona as situações, é nesse enlace que surgem as
oportunidades para se encontrar um sentido para vida; cada situação pode ser vista como uma
oportunidade única para realizar um sentido na vida. O homem, abrindo-se às diversas
situações, tem a oportunidade de encontrar “algo” que motive sua vida, mesmo nas situações
mais difíceis de serem resolvidas. Ao se abrir às diversas oportunidades e situações que se
apresentam, o homem passa a viver uma tensão saudável entre a sua existência presente e a
tentativa de realizar um sentido a cada instante, tentando aprender com as situações que se
apresentam a ele a cada momento. Assim, o homem se realiza conforme se abre para o mundo
e ao mesmo tempo se deixa questionar pelo mundo, é nessa relação do homem para o mundo
e do mundo para homem que é possível a realização de um sentido em sua vida.
A partir dessas premissas sobre o sentido da vida, percebemos que este não pode ser
“capturado” com um conteúdo preciso. Embora o autor defina seu conceito como motivações
que encontramos na existência, não podemos apreender seu conteúdo como se fosse uma
114
receita que diz “faça isto ou aquilo” ou ainda “é isto ou aquilo”, pois é algo existencial, algo
que acontece conforme a abertura do homem às diversas situações que se apresentam. Porém
em nossos dias, como já afirmamos acima, as situações passam muito rápido, o dia é muito
ligeiro e às vezes, envolvidos com os trabalhos do dia-a-dia, com os problemas a serem
resolvidos, nem sempre nos damos conta do tempo passando, é exatamente por isso que às
vezes não conseguimos nos organizar, prestar a devida atenção à vida e às situações que se
apresentam a nós. Como então conseguiríamos realizar um sentido para vida, sendo que tantas
vezes nem nos damos conta das situações que mudam desenfreadamente? Como podemos
interpretar as situações que se apresentam a nós?
É devido a esses questionamentos que procuramos, ao longo do nosso trabalho,
encontrar uma resposta que possa nos ajudar na busca de um sentido para nossas vidas, uma
resposta que nos ajude a pelo menos nos “ancorar” nesta existência às vezes tão inconstante,
tão variável. Encontramos na noção de narrativa de Paul Ricoeur a oportunidade de ganhar
alguma estabilidade, com a experiência da ordenação do tempo promovida pela narrativa e a
partir daí encontrar um caminho “estável” para a questão do sentido diante das situações que,
em nossos dias, muitas vezes são tão instáveis. Colocamos a palavra “estável” entre aspas ao
nos referirmos à noção de narrativa porque, como já refletimos, não é uma noção estática,
pelo contrário, é um processo dinâmico onde a trama tem a virtude de obter uma história bem
construída a partir dos múltiplos eventos.
Como sujeitos de nossas próprias histórias ou como leitores, temos a oportunidade de
encontrar caminhos para realizar um sentido para nossas vidas através das histórias que
contamos, lemos e amamos. A noção de narrativa consegue, através da estruturação que
propõe, articular as ações dos homens, ações heterogêneas que, uma vez postas em
composição lingüística, ganham inteligibilidade e sentido, ficando disponíveis a um leitor ou
a vários leitores, que poderão apropriar-se da composição, através do ato de leitura,
refigurando sua própria ação no mundo. Para Ricoeur, como vimos ao longo do trabalho, é na
relação entre a experiência temporal e a ordenação narrativa que é possível permitido pensar a
temporalidade e as ações humanas. É exatamente aí que está a solução para nossa hipótese de
trabalho, pois, se é possível para um sujeito ordenar sua experiência temporal pelas narrativas,
este também pode encontrar um sentido para sua própria vida através das narrativas.
Ricoeur, ao fazer a leitura da Poética de Aristóteles, apropria-se para sua reflexão do
conceito de emplotment (construção da trama), que significa fábula e intriga. Toma como seu
guia o conceito de intriga, no sentido de história bem construída, que também pode ser
chamada de composição narrativa. Segundo o autor, a trama tem a virtude de transformar os
115
múltiplos eventos em uma única história, a trama mimetiza as ações dos homens, ações que se
desdobram no tempo. Ao falarmos de tempo, estamos pensando no tempo humano, a exemplo
do tempo encontrado nas Confissões de Agostinho, que é distentio animi. A narrativa,
articulando o tempo logicamente também consegue articular a vida dos homens.
Diz Ricoeur que, para sabermos a identidade de um indivíduo ou de uma comunidade,
devemos responder a pergunta: Quem fez tal ação? O filósofo, fazendo referência a Hannah
Arendt, afirma que responder a questão quem? é contar a história de uma vida. (cf.
RICOEUR, 1997, p. 424). Pelas narrativas temos a oportunidade de conhecer as ações dos
homens, temos a oportunidade de nos conhecer pelas próprias histórias que contamos a nosso
respeito e pelas histórias que ouvimos e lemos dos outros. Por isso as pessoas narram histórias
o tempo todo; e são as histórias narradas, que lemos e amamos, que sustentam nossa
permanência no tempo, que se transforma a todo instante. Somos parte desse devir histórico,
onde as pessoas contam histórias o tempo todo, histórias que aprendemos e também
transmitimos aos outros.
Segundo Ricoeur, quando narramos nossa própria história ou quando um sujeito narra
sua história, este se lança para além de sua existência puramente biológica, meramente
corporal e ganha representação, inserindo-se numa história, ganhando história. (cf. GENTIL,
2008, p. 159). O sujeito, ao narrar sua história, mimetiza suas próprias ações e as de outros
sujeitos, ordenando-as e dando-lhes inteligibilidade, construindo uma história com certo
sentido lógico. É aqui que podemos dizer que fragmentos de uma vida, muitas vezes sem
nenhuma importância, sem nenhum “significado”, uma vez narrados, contados, por exemplo,
em sessões de análise, ganham inteligibilidade e sentido. É nesse ato de contar que o sujeito
articula o tempo, articula passado, presente e futuro, podendo conhecer-se e reconhecer-se
como o próprio personagem da história. O sujeito, reconhecendo-se como personagem de sua
história de vida, identificando-se com ela e ao mesmo tempo contando e recontando sua
própria história, como em sessões de análise, vai incorporando em sua história, em sua
identidade, novos acontecimentos que redesenha a si mesmo em suas narrativas. É nesse
contar e recontar que o sujeito vai construindo e moldando sua identidade, vai moldando a si
próprio, pois, ao contarmos e recontarmos nossas histórias, vamos ordenando e articulando
nossas ações no mundo. É aqui que as narrativas feitas pelos sujeitos dão algum sentido para
suas ações, pois as narrativas sintetizam em uma única história de forma ordenada e
articulada, as experiências que sujeito já viveu, que vive e que deseja viver. Assim o sujeito,
ao narrar sua própria história, reconhece-se pertencente às histórias que disseram a seu
116
respeito, às histórias que diz de si mesmo e ao mesmo tempo vai acrescentando novas
histórias, novos acontecimentos que antes não tinham importância para sua vida.
Como já afirmamos acima, é nesse movimento que o sujeito vai dando algum sentido
às suas ações, vai se reposicionando na vida. Porém cabe lembrar que para Ricoeur não basta
narrar a própria história, não basta configurar a história, é necessário que exista um leitor para
se apropriar da narrativa e este pode ser tanto o próprio narrador, que já se distanciou de sua
história, quanto um outro leitor, e ambos podem redesenhar suas próprias vidas ao se
apropriarem da composição narrativa. Segundo o filósofo, esse processo é chamado de círculo
hermenêutico: “...de uma certa pré-compreensão do que seja o mundo da ação, vai-se ao
encontro do mundo do texto, passa-se por ele e dele retorna-se ao mundo da ação com uma
nova compreensão”(GENTIL, 2008, p. 24). É aqui que entra o desdobramento mimético e
também é aqui, como apresentamos no terceiro capítulo, que Ricoeur mostra com mais
clareza como as narrativas conseguem articular e dar algum sentido às ações dos homens. O
filósofo, para esclarecer melhor o processo de mimetização das ações dos homens, sua
ordenação e articulação, usa como foco estratégico o texto narrativo, que tem significação
própria e autonomia em relação ao seu autor; trata-se do texto como obra.
É abordando uma obra trabalhada, moldada, com codificação própria que
acompanhamos, no terceiro capítulo, o desdobramento mimético. Vimos que a narrativa
consegue, através do seu processo de tessitura, chamado mimesis I, II e III, articular o tempo,
passado, presente e futuro em uma única composição. Lembramos que a reflexão sobre a
temporalidade em Agostinho mostra que o homem sofre constantemente a contradição entre
intentio e distentio, a alma sofre dissociação contínua. Em Agostinho existe uma
preponderância da discordância sobre a concordância, a instabilidade da vida humana. É
exatamente aqui que se pode abordar a noção de narrativa de Ricoeur como um meio para
unificar a distensão ou, ao menos, articular a instabilidade da vida humana. Com a narrativa
ganhamos estabilidade através da articulação temporal; ela articula vários elementos
heterogêneos em uma única história, articula a passagem do tempo na mesma história. Assim
o tempo ganha certa estabilidade, à medida que se articula com a narração, estabelecendo a
preponderância da concordância sobre a discordância, como mostrou Ricoeur no
desdobramento mimético.
É por isso que podemos afirmar que as composições narrativas, através do processo
mimético, configuram as ações dos homens e ajudam-nos a encontrar um sentido para suas
vidas, mesmo quando as situações mudam constantemente, como as situações de nossos dias
que são tão variáveis. E é também nas configurações narrativas que o sujeito que narra sua
117
história, consegue dar algum sentido às suas ações, proporcionando várias significações tanto
para si próprio, quanto para aquele que se apropria da configuração como leitor. Assim,
mesmo que as situações mudem constantemente, mesmo vivendo em meio à instabilidade, as
pessoas, ao narrarem sua própria história, conseguem através do processo mimético articular
fragmentos de suas vidas em uma única história, ordenada e articulada, dando um certo
sentido a esses fragmentos de vida que, antes de serem narrados, não tinham “importância” ou
“relevância”, pois estavam fragmentados.
Assim, as composições narrativas através do desdobramento configuram as ações dos
homens, na medida em que o ato configurante organiza vários elementos “instáveis" da vida
do homem, vários elementos discordantes como eventos, acontecimentos dispersos, sujeitos,
motivos, circunstâncias, diferentes dimensões do tempo, formando assim uma totalidade
significante. O que antes da configuração era discordante, instável, variável, fragmentado,
com a configuração torna-se organizado, articulado com totalidade significante. É por isso
que as composições narrativas tornam-se uma resposta ou meio adequado para lidarmos com
a instabilidade do dia-a-dia e encontrarmos um sentido para nossas vidas. Pois, mesmo que
tudo mude muito rápido, em aceleração constante como em nossos dias, através da mediação
da linguagem e de um modo especial, através das composições narrativas, podemos, como
narradores de nossas próprias histórias, dar algum sentido às nossas ações. E também como
leitores, podemos, pelo ato de leitura, apropriar-nos do “mundo” articulado em forma de
composição, de um “mundo” com ordenação regrada.
Os vários elementos díspares, às vezes sem nenhuma significação, pela composição
narrativa através da configuração, ganham uma totalidade significante tanto para o sujeito que
narra sua própria história quanto para o leitor, a quem se dirige a composição. O leitor, que
pode ser o próprio narrador ou qualquer outro que saiba ler, apropriando-se dessa totalidade
significante pelo ato de leitura pode encontrar nessas significações, que foram articuladas e
organizadas pela configuração narrativa, um sentido para sua vida, algo que dê motivação à
sua vida.
O leitor, abrindo-se à proposta de mundo que se projeta da composição narrativa,
redesenha seu modo de agir no mundo, refigura sua própria vida. É também na apropriação da
composição narrativa que o leitor, tendo agora uma “situação” com uma certa “estabilidade”,
pode encontrar nesta um sentido para sua vida, pode encontrar uma proposta de “obra” que
goste de realizar, um perfil de pessoa que queria amar, ou até mesmo pode encontrar forças ou
coragem para mudar de atitude perante alguma coisa em sua vida. Enfim, a composição
narrativa projeta uma proposta de mundo tão vasto, e com tantas significações que tanto o
118
sujeito, que consegue ordenar suas ações, quanto o leitor podem, através do ato de narrar e do
ato de ler, refigurar sua própria ação no mundo, podem transformar suas vidas.
Como observa Frankl, não podemos dizer a uma pessoa qual é o sentido para sua vida,
não podemos receitar-lhe nenhum sentido, pois é a própria pessoa que deve descobrir um
sentido para sua vida, abrindo-se e relacionando-se às várias circunstâncias do mundo que se
apresentam a ela. No entanto, essa busca do sentido da vida, que é sem dúvida individual e
subjetiva, pode ser direcionada a partir da reflexão sobre a noção de narrativa de Paul
Ricoeur. Ao refletirmos sobre a noção de narrativa de Ricoeur, percebemos que através das
narrativas temos possibilidades de dar algum sentido às nossas ações, podemos nos refigurar
constantemente pelas narrativas, transformando nossa maneira de ver o mundo e a nós
próprios. E, na refiguração de nosso mundo e de nós próprios, podemos encontrar um sentido
para nossas vidas.
Embora Paul Ricoeur, quando afirma que um sujeito ao narrar sua própria história ou
um leitor, ao se apropriar de uma composição narrativa, conseguem refigurar sua própria ação
no mundo, não esteja se referindo ao sentido da vida proposto por Frankl, podemos afirmar
que um sujeito, ordenando sua própria ação no mundo através das narrativas, lançando-se para
além de sua existência meramente biológica, inserindo-se como personagem de sua história e
ao mesmo tempo envolvendo-se nas várias narrativas, vai descobrindo sua permanência no
tempo, seu fio condutor, sua identidade. E podemos dizer que, ao descobrir através da
mediação das narrativas, a nossa própria identidade, aquilo que somos, automaticamente
também temos grandes possibilidades de descobrir aquilo que motiva nossa vida. Ao
descobrirmos nossa identidade no emaranhado de histórias que nossos pais nos contam, que
outras pessoas nos contam, nas histórias que sonhamos, que contamos, que lemos, que
desejamos e que amamos, vamos descobrindo também aquilo que pode motivar nossas vidas.
Um sujeito, narrando sua própria história, identifica-se com ela e se percebe como
personagem de sua história e esse personagem à medida que é narrado, vai ganhando corpo,
textura, sentido em suas ações. Esse sentido, encontrado na ação da narração, é apropriado
pelo próprio narrador ou por um outro leitor, transformando sua maneira de ser no mundo,
formando sua identidade e é aí que o sujeito vai descobrindo o sentido para sua vida. Assim,
se o homem é um ser em constante busca de sentido, como diz Frankl, a narrativa de Ricoeur
torna-se um meio, uma mediação para que o homem encontre um sentido em sua vida.
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