FRENTE À COVID I9 - ARTE, CIÊNCIA, RESISTÊNCIA
O flagelo do novo corona vírus continua a assolar o planeta. Estamos perante uma situação dramática, de muito gravese em grande parte ainda imprevisíveis consequências, a todos os níveis. Aqui no JL já lhe dedicamos a capa e o tema da
última edição, o que volta a acontecer nesta. Em ambas não num registo informativo, claro, mas com distintos ângulos de
abordagem, em textos quer de nossos colunistas e colaboradores regulares, quer de outras personalidades - como, hoje,reconhecidos cientistas e académicos. Além disso, com este Tema têm a ver, de uma forma ou outra, numerosos textos da
edição, como o de Viriato Soromenho-Marques, nas Ideias, os de Rogério Miguel Puga e Duarte Azinheira, nas Letras, as
crónicas de Tiago Rodrigues, nas Artes, e as de Eugênio Lisboa, Valter Hugo Mãe e Gonçalo M. Tavares no Debate-Papo- além da reportagem de abertura, do comentário de JCV e de Alberto Manguei se lhe referir
O mal, a cultura e a esperançaMIGUEL REAL
A Peste de Atenas, pintura de Michiel Sweerts, séc. XVII
Independentemente das diver-sas teorias que o fundamentam, oEstado nasceu para dar proteção à
comunidade, o que não significa queas entidades que o compõem não o
cativem como modo de manipula-ção ou exploração da população. É o
elemento perverso do Estado e delenascem as tiranias, as oligarquias,as ditaduras. Mas, na essência e naorigem, os habitantes de uma comu-nidade delegam a sua representaçãonum conjunto singular de elemen-tos, os dirigentes, cujas palavras e
ação se destinam a prestar segurança
a todos. Do ponto de vista da evolu-
ção histórica de uma comunidade, ovalor da segurança é superior ao da
liberdade, este, como ideal de umasociedade, só emerge a partir dos
séculos XVI e XVII.Por seu lado, a cultura, de um
modo geral e num sentido longo,desenha -se como o manto de visõesdo mundo, de perspetivas de inter-pretação da realidade, de compor-tamentos padrão que, acumuladosde geração em geração, constituemo panorama mental e social por queuma comunidade decifra e enfrenta
a realidade, transformando -a se-gundo os seus interesses e desejos e a
sua previsível construção do futuro.Ora, de um modo radical, a pre-
sente pandemia do coronavírus vemquebrar estes dois pressupostos quemodelam a tradicional existência docidadão comum, devido à emer-gência de algo não só não previsível,sobretudo na Europa e nos paísestecnologicamente desenvolvidos,como fragilizando o Estado ao nívelda proteção do cidadão. O atualsentimento individual e coletivo de
medo, mesmo pavor, nasce destafratura radical entre a antiga norma-lidade e o vazio mental e existencial
que o presente oferece e o futuroanuncia, como que antecipandouma ou duas décadas os efeitossobre as sociedade do resultado das
alterações climáticas produzidaspelo Antropoceno anunciadas peloscientistas já este século.
É A SITUAÇÃO EM QUEPORTUGAL, a Europa e o mundo se
encontram: o tempo está suspensoe nada nessa cultura e nos padrõesda nossa educação nos prepararampara o embate com uma situação de
quase total insegurança, contra ummal invisível. Em menos de um mês,sentimo-nos ceifados de todas asraízes históricas, sociais e culturais
que tinham feito a nossa existência
e, desorientados, não sabemos comoretomá-las. É o mais profundo sen-timento de angústia, um desenraiza-mento total, como se víssemos gorara nossos pés todos os projetos indivi-duais e todos os sonhos coletivos e ofuturo se apresentasse vazio.
Reacção? Do Estado, continuara sua função principal, dando-nosa proteção possível, o que, comdeficiências, está a ser feito emPortugal (estado de emergência,confinamento, Serviço Nacionalde Saúde, planos do Governo paraaliviar a questão económica efinanceira das empresas e do cida-dão) , uma proteção no entanto tão
fragilizadaque, individualmente,nos sentimos mais inseguros do
que nunca. Culturalmente, re-gressar ao passado e encontrar nasnossas âncoras históricas, o refúgioquebrado pelo presente, suavi-zando o sentimento de angústia e
atenuando o de medo.E o que é que a cultura (estética,
histórica, social) nos ensina, de ummodo provado, dando-nos algumaesperança, já que o medo só se vencecom a esperança de um bem futuro?
Que o homem, historicamentefalando, tem sempre vencido o mal,dominando-o ou aligeirando-o,transformando o mal passado numelemento secundário. Em síntese, obem é um arranjo ético-social queperdura, um equilíbrio que proviso-riamente se mantém, normalizando
comportamentos e instituições,
definindo limites sociais e culturais
que não devem ser ultrapassados.O mal reside em quatro ele-
mentos: a morte ou a perda de bens
possuídos, a dor física, o sofrimento
psíquico e a escassez de recursos
(a fome, a sede, a miséria). Neste
sentido, o mal é invencível, ou milvezes vencido, logo retorna majes-taticamente, é um absoluto, a que ohomem se sujeita, evitando-o, mini-mizando-o, sempre provisoriamenteo vencendo. O vírus, hoje, é a novaface do mal: a morte possível, a perdade bens ou rendimentos, o sofrimen-to psicológico, num cruzamento de
angústia e de medo, e a eminênciafutura de escassez de recursos.
Porém, se o mal faz parte on-tológica da natureza humana (e o
Antropoceno prova -o de modo claroe evidente, igualmente provadopela contínua extinção de inúme-ras espécies provocada pela açãohumana), a esperança também o faz.Como Ernst Bloch provou nos trêsvolumes do Princípio da Esperança(1954-1959) e como as contínuas
utopias bondosas criadas pelohomem igualmente provam. A espe-rança reside na crença de que o futu-ro, em geral ou simplesmente a vidade um homem, será melhor do queo passado, ou, pelo menos, igual ao
presente. O ceticismo e o pessimis-mo residem na perda da capacidadetotal ou parcial de esperança. Emcada um de nós, neste momento, aluta contra o ceticismo e o pessi-mismo deve ser o grande combatede todos os dias e a reafirmação daesperança o antídoto contra o vírus,uma esperança estilhaçada pelosefeitos visíveis, fragilizada, mas quedeve voluntariamente ser mantida.
OS PERÍODOS PASSADOS EM QUEO HOMEM europeu se sentiu comonós nos sentimos de há um mês paracá, tornaram-se em sementes detransformações culturais radiosas,de criação de obras de arte lumi-nosas, de invenções técnicas e des-cobertas científicas que alterarampara melhor os nossos modelos de
comportamento e até a nossa visãodo mundo. Como exemplo, recor-demos a Europa desde a peste negra(meados do século XIV) até ao finaldo Renascimento (século XVI-XVII).A Europa viu ser morta cerca de um
terço da sua população pela peste,viu ser destruída a normalidade doabastecimento dos campos para as
cidades, viu estas crescerem desor-denadamente, foi social e econo-micamente dizimada no seu centropela Guerra dos Cem Anos e, no sul,pela guerra entre Portugal e Castela,o catolicismo perdeu o domínio daconsciência social europeia e divi-diu-se, emergindo as igrejas lutera-nas. A escrita tipográfica nascera, omundo fechado herdado de Roma dáorigem a um mundo pela primeiravez global, o comércio internacionalsurge, a medievalmente desprezadacultura grega e latina renasce, os
Descobrimentos mudam a visão queo homem tinha de si próprio.
Imaginemos o terror que cada
europeu deve ter sentido nestes
tempos de descontinuidade quando,à sua frente, desaparecia tudo o
que desde há mil anos se habituaraa viver. Mas, no final, emerge, vaiemergindo, uma nova criatividade,resplandece a arquitetura neo-clás-sica italiana, uma nova literaturaeuropeia, dando menor valor a Deus,uma nova criação pictórica, novasfilosofias e teologias e, sobretudo,nasce a visão científica do mundoque ainda hoje nos domina e que seencontra na linha da frente do com-bate contra o coronavírus.
Outro exemplo histórico: a Gréciaclássica entre o mundo homérico(séculos XI e X a.C.) e a emergênciada democracia e da filosofia (séculosV e IV a.C), no qual, em não poucomomentos, o heleno deve ter experi-mentado o pavor que hoje senti-mos: o aparecimento da cidade e atotal destruição dos vínculos rurais(Hesíodo), a demolição dos laçostribais e o nascimento do cidadão,a vitória de Esparta sobre Atenas,arrasando as muralhas da cidade, porduas ou três vezes os bárbaros persasà porta da Hélade... Em cada umadestas situações, o grego não deve tersentido menor medo que aquele quehoje nos invade, mas dele e da con-sequente angústia, da desorientaçãosocial e individual, do vazio de futurocoletivo, nasceram, criativamente, astrês maiores contribuições da Grécia
para a humanidade: as sementes dademocracia, o teatro (sobretudo atragédia, espelhando culturalmenteo ambiente social trágico) e a filosofiaa substituir a antiga mitologia.
O CORONAVÍRUS, E O MEDO DELE,que hoje esvazia as ruas, criando oterror à nossa volta, não é superiorà esperança que sempre acalentou ohomem. E se cada um em sua casa,hoje, cria uma nova rotina forçada,os escritores, os pintores, os músicos,os artistas em geral, homens como
os outros, animados por emoçõesinsólitas ligadas ao mal e ao medo,encontrar-se-ão já imbuídos dessehúmus caótico do qual nascerãodoravante grandes obras de arte.Como dizia Hegel, "a ave de Minervalevanta-se ao entardecer", querdizer, é possível que após a passagemdesta pandemia se vejam os resulta-dos culturais e, quem sabe, uma nova
visão do homem que há muito estáa ser preparada, um homem maisamigo da natureza e do Outro.
Eduardo Lourenço, quandojovem, na sua estada em Paris,escreveu um texto (que não consigoidentificar agora) em que falava da
personagem de um romance, salvoerro de Somerset Maugham, que nosúltimos dias de vida se levanta da
cama, vai ao quintal e planta umabolota de carvalho. É a realizaçãoconcreta do princípio da esperança:ele nunca verá o carvalho elevar-sena paisagem, mas foi o seu contri-buto para que a vida continuasse.
Que cada um de nós, hoje, neste
tempo suspenso, perante um futurovazio, plante a sua bolota - unsescrevendo, outros pintando, outros
compondo, outros fazendo teatro,cinema, animação, jornalismo,trabalhando nas suas profissões.Aqui à minha frente, vejo da janela asenhora da câmara, solitária, fardadade verde, a recolher o pouco lixo dasruas de Colares e na casa ao lado, doExército de Salvação, um rapaz ouuma rapariga ensaia tocando tuba(pelo som que ouço à distância pare-ce uma tuba). É a bolota deles. .11.