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8/12/2019 Machado, M - Pelo cheiro do tio
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Monica Machado Aggio
escrito em setembro de 2013 para a seleo de Doutorado doPrograma de Ps-graduao em Cincia da Literatura. (2014/1 sem.)
Memorial
Pelo cheiro do tio sabe-se a madeira que queimou
provrbio.
Tornei-me mestre em Cincia da Literatura em maro deste ano e
posso dizer que a estudante que sou na Academia e na relao que
mantenho com minhas curiosidades, coragens e desconfianas tem no
dito popular o papel do tio. No mestrado, iniciado em 2011,
minha proposta de trabalho sobre o trabalho de Alberto Mussa
estava j fatalmente interessada nos modos de escrever; por minhas
inclinaes profissionais, pela prtica diria e pela graduao em
Literaturas, resolvi me dedicar ao estudo daquela narrativa e vi,
durante o curso das disciplinas, que outras sugestes,
pensamentos, ideias, sentidos e alegorias aconteciam e me
intrigavam; s no tinha nesse tempo compreendido exatamente os
motivos. E na escrita da dissertao, Alberto Mussa e a devorao
da ordem, nunca trabalhei sozinha; tinha sempre a orientao
precisa, exigente e determinada de Ronaldo Lima Lins; e foi com a
generosidade dos professores e a comparsaria de meus colegas que
contei, quando precisei me sustentar em desequilbrio, refazer e
reajustar pensamentos,.
Lembro que na questo inicial havia um grande impacto com a
morte e a implicao para a vida (no exlio) de Miriam Makeba, a
Mama frica. E que sua histria junto com as de Afonso Ribeiro e
dos Aimor me ampararam como conscincias humanas, artsticas e
polticas para a criao conceitual da devorao da ordem como
cerne de minha crtica. Queria entender como essas pessoas
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devorao da ordem foi uma suposio minha do que parecia ser uma
das maneiras possveis de vivermos sem sucumbir a tantas ameaas.
A devorao que supus, como prtica, est baseada em uma narrativa
que considero instigante e sedutora, uma fico que est erguida
sobre fragmentos de mitos, formas de conceituar, pensar e narrar
que resultante do enfrentamento de um verdadeiro desafio; a
desfazer certezas e entrelaar o sobrenatural, o fictcio e o real
destacando a importncia de saberes, pensamentos e artes no
hegemnicas. Ouvi de Luis Antonio Simas que a grande vingana dos
povos oprimidos pela colonizao foi ter prevalecido
culturalmente;2 a grande vingana do povo negro foi fazer do
imaginrio cultural das terras africanas coisa mais forte que a
realidade da opresso. As fantasias de carnaval, o Bafo da Ona, o
Cacique de Ramos, as mscaras, a dana do mestre-sala, o samba e a
festa canibal so algumas dessas prevalncias.
E meu grande problema era saber se de fato e de que modo o
exlio que fundamentava aquelas narrativas possibilitava sua
integrao a uma lista de muitos antecedentes, de homens
desnecessarizados, no destrutivos, no oprimidos nem subjugados
pela natureza ou pela cultura. No foram fceis as insubmisses
deste ensaio, precisei me mover com o esquema curricular terico e
pretendi a tenso de dizer o que no sabia plenamente, da a
ousadia de meu mestrado. Precisei reencontrar conceitos de nao,
de identidade, entender a diferena, o perspectivismo amerndio,
as noes de cultura e natureza, modernidade, arte e pensamento. E
esclareo que quando houve certa atuao de resistncia e proposta
de transformao humana, preciso dizer que se fez presente mesmo
s em minha crtica: a literatura de Mussa no de modo nenhum
panfletria. Esse tipo de trabalho foi o que pretendi realizar: e
os mtodos da crtica da cultura frankfurtiana e da errncia
oswaldiana me ampararam teoricamente: na demarcao de uma prtica
crtica cujas apostas e desafios deviam ser entendidos em
conjunto, pela contingncia. Adotei a crtica cultural da Escola
2 Durante o Fim de Semana do Livro no Porto apenas FIM , no Morro daConceio, sbado, dia 20 de outubro de 2012. Na apresentao dessa mesa-redonda,diz o site: Caravana de Escritores, Fundao Biblioteca Nacional, 16:30h Semeu o morro no canta:O samba que d literatura, mesa de Nei Lopes (escritor),
Luiz Antonio Simas (historiador) e Paulo Lins (escritor). Mais informaesdisponveis em http://blog.fimdolivro.com.br/p/conversas-201012.html, acessado em9 de abril de 2013.
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de Frankfurt, adotei a sensibilidade como categoria central e
tentei trabalhar nela com a experincia potencial e emancipatria
na esttica e na experimentao. Acredito hoje que a alegoria de
Benjamin que traz o passado ao presente e cumpre as profecias no
Manifesto antropfago de Oswald de Andrade. Consegui uma
abertura metodolgica s contribuies da antropologia, primeiro
com Lvi-Strauss, entre os conceitos de cultura e natureza; e,
depois, claro, com o perspectivismo amerndio de Eduardo Viveiros
de Castro.
E porque eu estava lidando com literatura cannica e com um
pensamento no ocidental, trabalhei quase sempre em lacunas, em
reas onde no havia certezas. Adotei, por isso, o ensinamento de
Richard Feynman,3 de que cientfico o pensamento que no se
prope a apenas provar esta ou aquela teoria, mas que est
disposto a criar suposies, experiment-las e lidar com os
resultados at que possa dizer se sua suposio inicial era mais
ou menos provvel. Para entender bem, posso logo dizer que na
literatura, assim como na suposio terico-cientfica, nunca
haver prova, s probabilidade. No falar de Feynman, o
questionamento fundador, o trabalho dominante, o principal e
obviamente o mais importante. quem pe em jogo os princpios,
fundamentos e sentidos do que est sendo o primeiro passo
cientfico: o pensamento terico. E no importante que esteja
certo ou errado, mas que seja possvel, ainda que provvel ou
improvvel. O importante que os grupos sociais prenhes das
foras motrizes efetivas do transcurso histrico aceitem encarar o
outro concreto, no universal nem absoluto da dvida; aceitem
abrir-se a outras racionalidades no hegemnicas; pressuponham uma
tica substantiva e apliquem normas reconhecidamente contextuais,
dependentes e relacionadas entre si, contingentes. Quando elegi
Walter Benjamin como terico que embasasse meu trabalho, tentei
evidenciar que entendo a escrita de Mussa como literatura. E lidei
com o perigo de encar-la com uma concepo meramente
instrumental, de ser elaborada metafico ou de servir ao
3Feynman, R. El mtodo cientfico. Universidade de Cornel, 1964. Diponvel emhttp://www.youtube.com/watch?v=3m-j1xs2mS0, acessado em 21-jan., 2013. Richard
Feynman era um dos fsicos norte-americanos responsveis pelo projeto Manhattan,em Los Alamos, Estados Unidos; e quando esteve no Brasil aprendeu a tocar bongo ea gostar de samba, alm de criticar a pedagogia universitria aqui praticada.
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ensinamento poltico, ter atuao pedaggica, de atribuir-se a
funo de ensinar a verdade s massas, de ser propagandstica ou
de tentar produzir o sentimento original e identitrio das classes
autnticas e corretas.
No reafirmar o cnone ocidental nem relativiz-lo era um de
meus desafios. Escrever sem deixar de enxergar a relao entre o
pensamento, a fico e a teoria literria era outro. A grande
tarefa da teoria literria seria introduzir uma fuga na interseo
dos conceitos do cnone, de valor e de esttica. A minha era
manter o ponto de vista relacional, no relativo. Eu no desejaria
definir, por exemplo, se Meu destino ser ona ou no
literatura. Como trabalhar desse modo sem me arvorar a fundamentar
um conceito trans-histrico do valor esttico? O valor da
literatura, de certo modo, dentro do que defende Idelber Avelar
(2009),4 est em perceber o valor da experincia humana, mas
preciso considerar que a impossibilidade de esclarecer, ampliar e
valorizar nossa experincia no mundo convive com o embaamento do
que seja o prprio mundo e nele o desvelamento da misria. Segundo
o professor Idelber, o valor esttico de um texto literrio muda
sempre e ser, necessariamente, um valor contingente;5precisa ser
independente da subjetividade do gosto (porque no pode ser
particular, pessoal); pode ser absoluto dentro de uma comunidade
valorativa, mas no pode ser relativizvel dentro dessa
comunidade e, por ltimo, pode ser motivado porque no
resultante de uma eleio arbitrria de traos ou caractersticas
ditos perfeitos. Sua expresso chave dentro de uma
comunidade: porque a inteligibilidade de uma narrativa, um texto
literrio, coincide com os elementos constitutivos da comunidade
mesma; ou dos fundamentos que presidem sua emergncia. O pacto
valorativo tem a ver com a poca, muda em tempo-espao. A relao
4 Avelar, Idelber. Cnone literrio e valor esttico: notas sobre um debateliterrio de nosso tempo. In: Revista Brasileira de Literatura Comparada, p.113-150, 2009. Disponvel em www.abralic.org.br/ revista/2009/15/83/ download,acessado em 9-abr., 2013.5 Na msica, para a sncope, por exemplo, o que era considerado umairregularidade era de fato uma incapacidade de a partitura descreverapropriadamente o objeto musical, desde Bach ao batuque africano. E naliteratura, a expresso de uma conscincia liberada do elitismo falsamenteprivilegiador da identidade nacional dispe do testemunho de Rigoberta Mench
(editado por Elisabeth Burgos, 1983) e antes dela, com a criao do prmioespecial para testemunhos e relatos, a nova categoria do Casa de Las Americas, em1967.
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vai depender sempre do lugar discursivo, mas o sujeito nela
implicado no ocupa um lugar s e indefinidamente. Saber se as
proposies so ou no coerentes sempre depender da capacidade de
o cientista perceber a variedade de pontos de vista e atuar em
cada um deles no rendido, no submetido intelectualmente.
A narrativa de Mussa deixa que cada um percebesse seu lugar; e
no neutralizar as questes de Afonso Ribeiro e dos Aimor na
teoria da ona era uma estratgia. O que devia interessar era
coloc-los em questo, em motor de pensamento, em confronto com o
destino de ser ona. E foi escrevendo que os coloquei em questo,
na dissertao.
A madeira vem de quando nasci, em 1970, no dia em que o Brasil se
vingou do Uruguai pela derrota no Maracan e garantiu lugar na
final da copa mundial; dias depois, ganhamos. Mudei-me com famlia
e sem, no Rio de Janeiro e pelo Brasil, mais de 40 vezes; no Rio,
1984, participei da campanha das Diretas; em Natal, 1986, tive meu
filho; em Aracaju, 1989, usei estrelas pensando em meu primeiro
voto. J em Fortaleza, de 1991 a 1999, cursei Letras na
Universidade Federal do Cear, quando fiz encenaes dramticas
durante o Fora Collor, em 1992; e fui professora de redao em
dois lugares: um colgio de padres (de 1994 a 1999) e em onze
cidades do serto Nova Russas, Amontada, Cascavel, Maranguape,
Messejana, Guaramiranga, Mombaa, Quixad, Caucaia, Maracana e
Tau integrando um programa eventual e generoso da Universidade
Estadual do Vale do Acara. Desde que voltei ao Rio, em 2000, aos
30 anos, sou revisora. Casei-me em 2005. Encantei-me com as
ancestralidades em 2007, soube das ligaes do tempo e soube meu
signo em If, o primeiro, que traz a luz alaranjada do amanhecer
e, evito, por isso, a escurido e a noite.
Agora possvel falar da brasa, do fogo, do cheiro da fumaa
e da poeira das cinzas, no doutorado; porque me proponho a
investigar criticamente algumas narrativas sobre o mundo com que
no pude lidar na dissertao de mestrado. Se antes me dediquei a
pensar em como os Aimor (as alegorias da ona) e Afonso Ribeiro
(o melanclico degredado) puderam, pela devorao da ordem,
garantir seu lugar na vida e no mundo, praticando a alegria e a
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errncia oswaldianas, aquela violncia da caada, o perspectivismo
amerndio e tambm a fuga da sociedade estruturada em domnios e
preconceitos. Agora me dirijo exatamente para entender como so
criados esses discursos sobre a vida comum, os mesmos que criam os
preconceitos, os saberes e as estruturas sociais, polticas e
religiosas rgidas, opressivas, fantsticas e irreais. O que era
insuportvel vida desses dois personagens de Mussa era o
convvio falsamente comunal e a comunho. Pois com o Manifesto
comum, quero investigar o modo como so construdos o comum e
seus derivados, quem os constri e que discurso esse que no
mnimo provoca o embaamento do que queria dizer. No toa me
repito, porque se antes lidei com o perigo de encarar o corpus com
uma concepo meramente instrumental, de ser elaborada metafico
ou de servir ao ensinamento poltico, ter atuao pedaggica, de
atribuir-se a funo de ensinar a verdade s massas, de ser
propagandstica ou de tentar produzir o sentimento original e
identitrio das classes autnticas e corretas porque, agora, o
que proponho exatamente adotar esses perigos como parte da
investigao sobre o comum.