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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11& 13thWomen’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017,ISSN 2179-510X
ESTADO, BIOPOLÍTICA E FEMINICÍDIO: CONSIDERAÇÕES SOBRE O
PODER DE VIDA E MORTE DAS MULHERES
Helma Oliveira1
Resumo: Os assassinatos de mulheres no Brasil estão majoritariamente atrelados à incidência de
violências decorrentes de relações afetivo-conjugais. A conduta fatal seria o ápice de violências que
foram ocorrendo ao longo da convivência entre a vítima e seu agressor. Dados estatísticos
demonstram que entre as mulheres jovens e adultas (vítimas na faixa de 18 a 59 anos), 50% das
agressões registradas foram praticados pelos cônjuges, ex-cônjuges, namorados e ex-namorados; e,
em 71,9% dos casos o crime ocorreu na residência das mulheres (WAISELFISZ, 2015, p. 48/50).
Este problema social tem suscitado relevantes debates e reivindicações de implementações de
políticas estatais para que atuem na prevenção e na punição (ou correção) dos homens agressores.
Mas, e porque tantos assassinatos ocorrem? A quem cabe o poder de vida e morte das mulheres?
Aqui recorro especialmente aos ensinamentos de Michel Foucault sobre biopolítica – o poder de
fazerviver (ação) e deixarmorrer (omissão) – para refletir sobre o movimento de focalização de
políticas públicas visando proteger a vida das mulheres, isto é, o governo dos corpos a fim de fazer
viver. Para tanto, tomo como objeto de estudo a lei de feminicídio (n. 13.104/2015), que lança luzes
às circunstâncias diferenciadas das mortes de mulheres: violências íntimas resultantes da relação
doméstica e familiar e/ou de circunstâncias de menosprezo ou discriminação da condição de ser
mulher – diga-se, de sexo feminino.
Palavras-chave: Estado. Biopolítica. Feminicídio.
Introdução
Os assassinatos de mulheres no Brasil estão majoritariamente atrelados à incidência de
violências decorrentes de relações íntimas, especialmente, as afetivo-conjugais. Comumente, a
conduta fatal é o ápice de violências que foram ocorrendo ao longo da convivência entre a vítima e
seu agressor.
Os dados estatísticos demonstram que entre as mulheres jovens e adultas (vítimas na faixa
de 18 a 59 anos), 50% das agressões registradas foram praticados pelos cônjuges, ex-cônjuges,
namorados e ex-namorados; e, em 71,9% dos casos o crime ocorreu na residência das mulheres
(WAISELFISZ, 2015, p. 48/50). Neste caso, os contextos culturais de domínio do homem sobre a
mulher, como a ideia de posse, os sentimentos de ciúme e desconfiança, a rejeição a atitudes de
autonomia feminina (como o fim dos relacionamentos amorosos por parte da mulher) e a
dificuldade de acolher mudanças culturais que aos poucos estão transformando os papeis sexuais de
1Doutoranda pelo Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), João Pessoa,
Brasil. Bolsista CAPES. Pesquisadora do Grupo de Relações Afetivas e Violência (GRAV), CNPq. E-mail:
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homens e mulheres, são elementos apontados como provocadores das violências contra a mulher e
dos feminicídios (Cf. ZAMBONI & OLIVEIRA, 2016; BANDEIRA, 2014; BLAY, 2007).
Este problema social tem suscitado relevantes debates e reivindicações de implementações
de políticas estatais para que atuem na prevenção e na punição (ou correção) dos homens
agressores. Em meados da década de 1980, as mobilizações sociais realizadas pelos grupos
feministas brasileiros tornaram-se a força motriz da intervenção do Estado nas relações familiares a
fim de evitar as violências domésticas. As políticas públicas iniciais instituíram delegacias
especializadas, e hoje já se reconhece a existência de juízos especializados, de lei que cuidam do
combate e prevenção à violência doméstica e familiar (lei nº 11.340/2006) e que agrava a punição
em casos de assassinatos de mulheres (lei nº 13.104/2015).
A lei A lei 13.104/2015 lança luzes às circunstâncias diferenciadas das mortes de mulheres
ao adotar a terminologia feminicídio a fim de designar as violências íntimas resultantes da relação
doméstica e familiar e/ou de circunstâncias de menosprezo ou discriminação da condição de ser
mulher – diga-se, de sexo feminino. Nesses termos, os casos de assassinatos de mulheres entram
para o rol de homicídios qualificados e de crimes hediondos2, repercutindo em punição mais
agravada em face dos feminicidas.
A composição de mecanismos estatais reguladores dos comportamentos nas relações
familiares e afetivo-conjugais em favor da proteção da vida das mulheres remete ao caráter político
do Estado moderno do fazer viver, de garantir a vida dos indivíduos (seus cidadãos) e, portanto, de
gerir as circunstâncias de mortalidade dos grupos sociais – no caso, as mulheres. Dá-se a
necessidade de intervenção político-estatal num espaço que, a princípio, era/é considerado privado e
íntimo, apartado de regulações externas. Isto é, aqui funciona um aspecto da governabilidade sobre
os corpos no sentido de fazer viver (ação), mais do que deixar viver (omissão) (cf. FOUCAULT,
1988; 2013).
Recorro especialmente aos ensinamentos de Michel Foucault para direcionar este trabalho
sobre a governabilidade do Estado perante os indivíduos ao gerenciar relações familiares, de gênero
e de violência. Assim, esboço uma reflexão sobre o movimento de focalização de políticas públicas
visando proteger a vida e integridade física das mulheres, um dos nossos grupos sociais em
vulnerabilidade de direitos e bem-estar social. Para tanto, num primeiro momento discorro sobre o
2A classificação do feminicídio como crime hediondo impede que os acusados sejam libertados após o pagamento de
fiança. Além disso, conforme a lei, a pena para o feminicídio é equivalente à de homicídio qualificado, que pode variar
de 12 a 30 anos de prisão. A pena será acrescida de um terço à metade no caso de vítimas terem menos de 14 ou mais de
60 anos, e se o assassinato for cometido na frente dos pais ou dos filhos da vítima.
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significado contemporâneo da biopolítica aplicado ao fenômeno do feminicídio e, em seguida,
apresento o encaminhamento legislativo que atribuiu significação jurídica à categoria social do
feminicídio.
1 A governabilidade moderna: domínio legítimo sobre os corpos e manutenção da vida
Na relação entre Estados soberanos e seus súditos, cabia aqueles o poder de vida e de morte
dos últimos. Mais precisamente: ao Estado cabia deixar viver e fazer morrer quando houvesse
alguma afronta à autoridade do governante. A construção de um Estado moderno ressignifica o
exercício deste poder estatal. Numa perspectiva de contrato social, o que se espera é que o ente
político maior exerça o poder-função de proteção, de segurança à vida dos indivíduos (agora
cidadãos – pretensos sujeitos de direitos – e não mais súditos). O Estado moderno e contemporâneo
existe para garantir as condições de vida da coletividade: fazer viver e deixar morrer. Assim
Foucault (2005, p. 295) esclarece:
Ora, agora que o poder é cada vez menos o direito de fazer morrer e cada vez mais o direito
de intervir para fazer viver, e na maneira de viver, e no "como" da vida, a partir do
momento em que, portanto, o poder intervém sobretudo nesse nível para aumentar a vida,
para controlar seus acidentes, suas eventualidades, suas deficiências, daí por diante a morte,
como termo da vida, é evidentemente o termo, o termo limite, a extremidade do poder.
Esta governabilidade é entendida como um modo de poder relacionado com a manutenção e
o controle de corpos e indivíduos, com a produção e regulação de indivíduos e populações mediante
políticas, leis (estratégicas), instituições burocráticas e administrativas legítimas. O governo da vida
para a vida (o biopoder) – quero dizer, o governo da vida dos indivíduos para a vida da coletividade
– não é afetado quando ocorrem mortes eventuais das pessoas e sim quando contextos sociais
provocam a mortalidade de uma coletividade, comprovadas por informações estatísticas. E por que
tantas mortes ocorrem? Numa perspectiva de governabilidade, aponta-se para uma ausência ou
deficiência de política pública direcionada a reverter as circunstâncias das mortes. Nesses termos,
quando o feminicídio passa a ser requerido nas legislações dos países da América Latina como
categoria jurídica além de social, uma das justificativas seria denunciar a omissão dos Estados
diante do acontecimento de crimes contra as mulheres que envolvem circunstâncias diferenciadas
em relação a outros homicídios (cf. SEGATO, 2005).
Deste modo, a omissão do Estado passa a compor o significado da categoria, isto é, o
feminicídio deveria ser entendido como um crime de Estado. Isso porque o fenômeno dos
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assassinatos de mulheres resultaria do silêncio, da omissão, da negligência e da conivência de
autoridades encarregadas de prevenir e erradicar esses crimes. “Há feminicídio quando o Estado
não dá garantias para as mulheres e não cria condições de segurança para suas vidas na
comunidade, em suas casas, nos espaços de trabalho e de lazer” (LAGARDE apud PASINATO,
2011, p. 232).
Para que a biopolítica – a política da vida – persista como a perspectiva central dos atos de
governabilidade do Estado sobre os indivíduos, tecnologias disciplinares e previdenciárias, ou
regulamentadoras de comportamentos, passam a ser instrumentos necessários para o fazer viver.
Tais tecnologias de poder estão relacionadas e, assim, entrelaçam-se às perspectivas
individualizantes e totalizantes do poder estatal. As técnicas disciplinares estão centradas na
produção de efeitos individualizantes da disciplina, na constituição de corpos dóceis, de sujeitos
obedientes às regras sociais, de comportamentos delimitados por normas incutidas por intermédio
de diversas instituições, entre elas, a família e as prisões. As técnicas regulamentadoras seriam as
leis e o viés educativo-preventivo destas, mesmo quando carregam como objetivo principal a
punição, nos casos de práticas criminosas.
Mas, visando a função previdenciária, e quando as circunstâncias das mortes exsurgem
justamente do ambiente familiar? Quero dizer: e quando a instituição da família não auxilia o
Estado a reproduzir regras de vida e bem-estar entre os sujeitos? O confronto violento entre os
papeis sexuais tradicionalmente delimitados para homens e mulheres na constituição da família têm
exigido a intervenção do aparato estatal para dar condições de vida às mulheres vítimas de violência
doméstica (Cf. CÔRREA, 1988; BLAY, 2008). Na predominância das situações, existe uma
conduta de domínio do homem sobre a mulher que chega a resultar na morte desta. O fenômeno da
violência e assassinato de mulheres provocado por seus companheiros – contexto mais frequente na
realidade brasileira (WAISELFISZ, 2015) – exigiu o surgimento de leis apropriadas para evitar e
punir tais práticas violentas. Essas leis representam a atuação do poder regulamentador do Estado,
mas também podem ser consideradas instrumento de disciplinamento dos comportamentos
masculinos na medida em que fomentam o discurso de respeito à vida e à integridade física, moral,
patrimonial, psicológica e sexual da mulher.
Apesar da persistente realidade de vulnerabilidade da mulher em relação aos atos de
violência praticados por homens, em especial, seus parceiros amorosos, é importante lembrar que
não está em questão a existência de um estado de subserviência das mulheres para com os homens.
Se isso ocorresse não seria possível, nos termos de Foucault (2013), falar em relação de poder, de
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domínio situacional, pois, só existe atitude de poder de um indivíduo sobre o outro se existir alguma
perspectiva de liberdade para ambos. Só existe poder se houver possibilidade de resistência. Só se
verifica o poder quando se confere sua oposição. Ainda, o poder só existe em ato, ação, prática, em
caráter relacional.
O jogo de dominação-vitimização entre ambos os parceiros amorosos, portanto, não está
restrita a uma perspectiva patriarcal determinante de dominação do homem sobre a mulher. É
possível que os comportamentos sexuais passem a ser definidos por outros significados elaborados
por uma ressignificação dos contextos históricos ou suscitados por um contexto situacional. Os
significados atribuídos às relações afetivo-conjugais são, portanto, passíveis de alterações, são
mutáveis, funcionam, inclusive, segundo jogos de verdade construídos por saberes especializados,
como o do campo jurídico. Adotando o conceito de poder de Foucault e o conceito de gênero de
Joan Scott, Santos e Izumino (2005, p. 157) argumentam que
pensar as relações de gênero como uma das formas de circulação de poder na sociedade
significa alterar os termos em que se baseiam as relações entre homens e mulheres nas
sociedades; implica em considerar essas relações como dinâmicas de poder e não mais
como resultado da dominação de homens sobre mulheres, estática, polarizada.
É desta maneira que se pensa na possibilidade de resistência das mulheres aos contextos de
violência. No Brasil, até as décadas de 1970-80, eram socialmente justificáveis as agressões sofridas
por mulheres no âmbito doméstico por seus maridos (SUÁREZ; BANDEIRA, 2002) por terem
descumprido regras de divisão sexual do trabalho ou terem “desviado” do papel de “boa mãe” e
“boa esposa” esperado pelo seu marido, que, na época, era legalmente e moralmente seu
responsável. O assassinato de mulheres sob a justificativa de traição frequentemente isentava o
companheiro de punição (Cf. CÔRREA, 1983). Atualmente, mesmo ocorrendo os balanceamentos
morais quanto ao comportamento de agressor e vítima, as “justificativas” apresentadas no passado
não são acolhidas a ponto de determinar a isenção do homem sobre o crime praticado (cf.
ZAMBONI; OLIVEIRA 2016). Isso porque os preceitos morais que influenciam na construção da
relação familiar também passam por suas mutações:
[...] a moral não pode ser tomada como um conjunto claramente definido e estanque de
comportamentos e valores, falar em moral implica falar em produção, veiculação e embate
de significados; implica retraçar dinâmicas entre representações, bem como entre os
agentes sociais que produzem ou se apropriam de tais representações e das estratégias ou
contextos nos quais elas são postas em ação (VIANA, 2001, p. 24).
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No mais, como a vivência entre homens e mulheres ocorre segundo um caráter relacional, é
possível que num certo momento a ação da mulher se sobreponha a ação do homem, com vistas a se
isentar dos contextos de violência afetivo-conjugal. Segundo Foucault (2014, p. 270-271),
[...] para que se exerça uma relação de poder, é preciso que haja sempre, dos dois lados,
pelo menos em certa forma de liberdade, mesmo quando a relação de poder é
completamente desequilibrada, quando verdadeiramente se pode dizer que um tem todo
poder sobre o outro, um poder só pode se exercer sobre o outro à medida que ainda reste a
esse último a possibilidade de se matar, de pular pela janela ou de matar o outro. Isso
significa que, nas relações de poder, há necessariamente possibilidade de resistência, pois
se não houvesse possibilidade de resistência – de resistência violenta, de fuga, de
subterfúgios, de estratégias que invertam a situação –, não haveria de forma algumas
relações de poder. Sendo esta a forma geral, recuso-me a responder à questão que às vezes
me propõem: “Ora, se o poder está por todo lado, então não há liberdade”. Respondo: se há
relações de poder em todo o campo social, é porque há liberdade por todo lado. Mas há
efetivamente estados de dominação. Em inúmeros casos, as relações de poder estão de tal
forma fixadas que são perpetuamente dessimétricas e que a margem de liberdade é
extremamente limitada.
Nesses termos, Foucault deixa claro que o poder se exerce em relações dinâmicas pautadas
na existência das liberdades. Portanto, mesmo quando a morte ocorre, quero dizer, quando o
feminicídio acontece, é ainda possível a interferência da biopolítica com vistas a transformar os
valores que delimitam as relações sociais que permanecem.
As mobilizações feministas que denunciam práticas de violência masculina e clamam por
políticas públicas que transformem as condições de vulnerabilidade das mulheres é uma ação de
resistência. Resistência à omissão do Estado, a ineficiência das políticas públicas existentes, aos
preceitos morais arraigados às instituições sociais que reproduzem uma cultura de misoginia, etc.
Continuamente devem ser reavaliadas as políticas do fazer viver, pois as mutações sociais também
exigem uma ressignificação das ações governamentais. As dinâmicas de poder transformam a
sociedade; e novos poderes regulamentadores aparecem. Diante disso, gostaria de descrever um
pouco do contexto de inserção da categoria social feminicídio no aparato da instituição de Justiça
brasileira, o tribunal do júri, como uma expansão de política pública de combate à violência contra a
mulher.
2 A lei como estratégica para o ‘fazer viver’
O crescente número de violências contra a mulher, identificado por meio das mortes e
registros médico-legais, de registros policiais e processos judiciais, entre outras fontes, impulsionou
uma avaliação sobre a aplicabilidade e eficácia da lei nº 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da
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Penha. Para tanto, o Senado Federal criou a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI), em
2013, com o intuito de avaliar as políticas de combate à violência contra a mulher e,
consequentemente, a eficácia da lei brasileira que define e pune as violências domésticas e
familiares contra as mulheres.
Até então, não havia figura jurídica na legislação penal brasileira que identificasse e
classificasse os assassinatos de mulheres; e a lei que cuida da violência doméstica e familiar não
fazia referência a este fenômeno e suas circunstâncias. Do mesmo modo, segundo Wânia Pasinato
(2011, p. 234), “a maior parte dos países da América Latina possui leis especiais para a violência
doméstica familiar, mas essas leis não enquadram a morte de mulheres de forma diferenciada”.
A classificação universal da categoria jurídica homicídio (simples ou qualificado) dificultava
a distinção do conjunto de registros policiais e/ou processuais que envolviam as mulheres. Esta
classificação aplicava-se a qualquer assassinato, independentemente de terem sido cometidos contra
homens ou mulheres. Contrário a isso, o relatório da CPMI considerou a necessidade de distinguir
os assassinatos de mulheres perante outros homicídios e de maximizar da punição para os contextos
de morte em razão do gênero (SENADO FEDERAL, 2013b; BUZZI, 2014).
Ainda, havia o propósito de evitar interpretações jurídicas anacrônicas e moralmente
inaceitáveis, como o de terem cometido “crime passional”3, ocorrido por provocação da vítima,
quando o parceiro tem o “choque” emocional de descobrir que foi traído pela companheira (conduta
moralmente reprovada pela sociedade), ou por essa mulher decidir terminar a relação amorosa, por
exemplo. Nessa perspectiva, o significado jurídico do feminicídio evitaria que as discussões
ocorridas nos órgãos de justiça viessem ofender a dignidade da vítima ao desqualificá-la; ao criar
discursos de responsabilização da própria vítima.
Assim surgiu o Projeto de Lei n. 292/2013, com a proposta de inserir o assassinato de
mulheres como circunstância qualificadora do crime de homicídio. O termo feminicídio foi acolhido
de acordo com a tendência de outros países da América Latina e indicação de organizações
internacionais, como a Organização das Nações Unidas (ONU), conforme exposto no Relatório
Final (SENADO FEDERAL, 2013b, p. 1004).
3 O termo “violenta emoção”, presente nos argumentos de operadores jurídicos, é uma simplificação da interpretação
atribuída ao art. 121, do Código Penal Brasileiro, a saber: Mata alguém: Pena – reclusão, de seis a vinte anos. Caso de
diminuição de pena. § 1º. Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o
domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz reduzir a pena de um sexto a um
terço. Décadas atrás, por exemplo, a suspeita de infidelidade da mulher e de atentado à honra masculina era suficientes
para justificar o crime e absolver o réu. Assim, a prática feminicida era frequentemente legitimada pelas instâncias
judiciais (CORRÊA, 1988). Atualmente, a impunidade não chega a ter o mesmo acolhimento pelos juízes leigos
(jurados).
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Lembro que o significado atribuído ao crime de feminicídio aponta para a perspectiva de
omissão do Estado diante das violências contra as mulheres. Portanto, parece que a relatoria da
CPMI optou por dar essa ênfase de significado político ao novo crime, o feminicídio. Isso também
foi resultado de ponderações advindas de audiências públicas com a participação de representantes
do movimento feminista brasileiro, e a sociedade civil, em geral. De forma semelhante, o secretário
geral da ONU opinava:
Quando o Estado falha em responsabilizar os perpetradores, a impunidade não apenas
intensifica a subordinação e impotência dos alvos da violência, mas também manda uma
poderosa mensagem à sociedade de que a violência dos homens contra as mulheres é
simultaneamente aceitável e inevitável (SENADO FEDERAL, 2013b, p. 1003).
Quando o Estado falha em sua atribuição política de fazer viver, a quem resta o biopoder?
Pensando o exercício do poder na perspectiva relacional, apresentada por Foucault (1988; 2005;
2013), que abrange todas as relações entre indivíduos e destes com as instituições sociais, no
momento em que a biopolítica não é eficaz no objetivo de transformação dos preceitos morais e
culturais em favor da construção de igualdade de gênero nas relações afetivo-conjugais, entre
outras, quem se arvora do poder sobre a vida da mulher é seu suposto agressor, o companheiro.
Nessa circunstância, o feminicídio traz à tona possíveis vestígios da noção de biopolítica pensada
antes do Estado moderno, isto é, do deixar viver e fazer morrer, só que numa perspectiva de ação
individual e não estatal; o que se contrapõe à dinâmica do fazer viver e deixar morrer é o que
representa a biopolítica contemporânea. Segundo Rabinow e Rose (2006, p. 28):
[...] podemos usar o termo ‘biopolítica’ para abarcar todas as estratégias específicas
e contestações sobre as problematizações da vitalidade humana coletiva, morbidade
e mortalidade, sobre as formas de conhecimento, regimes de autoridade e práticas
de intervenção que são desejáveis, legítimas e eficazes.
O feminicídio seria o ápice do controle da mulher pelo homem, isto é, o controle da vida e
da morte. E, segundo as conclusões do Relatório Final da CPMI, esse controle do homem sobre a
mulher é apresentado de forma irrestrita, “simplesmente” pelo fato da vítima ser mulher. Isso
significa que a legislação abrangeria qualquer mulher, em qualquer circunstância; o que também
definiria os homens como machistas, dominadores, em sua “totalidade”. Entretanto, será que,
realmente, todos os casos de morte de mulheres provocadas por homens, em contexto íntimo ou
não, dizem respeito a crime em razão do gênero? Diante das incidências dos assassinatos de
mulheres e da necessidade de criar uma legislação que cuide da punição dos feminicidas, parece não
haver, ainda, uma preocupação em responder essa questão. Até porque, para alcançar a resposta,
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imagino que seria necessário avançar no esforço de diferenciar os contextos e circunstâncias dos
assassinatos de mulheres.
Após algumas ponderações no sentido de aperfeiçoar o Projeto de lei nº 2924, durante seu
trâmite no Senado Federal, ao ser remetido para avaliação da Câmara dos Deputados, estes
legisladores votaram pela alteração do termo “em razão do gênero” para “por razões da condição do
sexo feminino” – uma restrição que resulta no afastamento dos casos de morte em que a vítima é
uma transexual feminina. Assim, foi aprovada, pelo Congresso Nacional, a lei do feminicídio (n.
13.104/2015), que classifica o assassinato de mulheres cometido em razão do sexo como crime
hediondo.
CONCLUSÃO
Neste trabalho busquei realizar uma breve reflexão sobre o exercício da biopolítica, isto é,
sobre as atribuições políticas do Estado para garantir o bem viver dos seus cidadãos ao intervir em
conflitos sociais que ameacem a existência de indivíduos e grupos sociais. Diante de diversas
possibilidades de me aproximar do tema da biopolítica5, adotei o estudo sobre a segurança pública e
a implementação de políticas e de exercícios de poder estatal a fim de evitar práticas de violência e
assassínio de mulheres.
Questionar sobre a quem cabe o biopoder sugere verificar quais sujeitos – ou quais práticas
masculinas – estão exercendo o poder sobre a vida e morte de mulheres, em detrimento do dever do
Estado de garantir a vida. Ainda, quais artifícios de biopolítica (as políticas previdenciárias e
punitivas) são ressaltados no sentido de se contrapor à predominância das práticas misóginas e
machistas – que são os contextos socioculturais que historicamente contribuem com o
acontecimento dos feminicídios (Cf. SANTOS & IZUMINO, 2005; PASINATO, 2011).
Na interface de relações de poder que agem sobre as relações afetivo-conjugais, o ideal de
construção de identidade e reconhecimento social de autonomia das mulheres e igualdade de gênero
se contrapõe ao imaginário “passional” de posse do homem sobre a mulher. Nesse sentido, as
4 Conferir, especialmente, os pareceres das então senadoras Gleisi Hoffman (Parecer nº 224/2014) e Vanessa Graziottin
(Emenda nº 2 PLEN, ao substitutivo da CCJ ao PLS nº 292/2013). 5 Por exemplo, Foucault (2005) dá aulas sobre biopolítica considerando os mecanismos de exclusão e seleção social por
meio do racismo (a fim de deixar morrer) e do fazer viver por meio do saber da Medicina, com vista à higiene pública e
a medicalização da população.
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reivindicações feministas possibilitam uma contínua ressignificação das políticas estatais a fim de
reforçar a discussão sobre as garantias de vida digna a esse sujeito social, as mulheres.
Portanto, considero importante ressaltar a elaboração e implementação das políticas públicas
para as mulheres, no caso, as relacionadas à segurança pública que alcança os espaços de intimidade
para salvaguardar o fazer viver. Foi o que fiz aqui ao descrever parte dos passos e motivações para
atribuir ao feminicídio a condição de categoria jurídica, assim, diferenciando os contextos de
assassinato de mulheres de outros casos de homicídios.
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State, biopolitics and femicide: considerations about the power of life and death for women
Abstract: The murders of women in Brazil are mainly linked to the incidence of violence arising
from marital-affective relationships. The fatal conduct would be the apex of violence that were
occurring along the coexistence between the victim and your attacker. Statistics show that among
young women and adults (victims in the range of 18 to 59 years), 50% of recorded murders were
committed by spouses, former spouses, boyfriends and ex-boyfriends; and, at 71.9% of cases the
crime took place at the residence of women (WAISELFISZ, 2015, p. 48/50). This social problem
has aroused discussions and relevant claims of State policies to implementations that Act on
prevention and punishment (or correction) of men offenders. But because so many murders occur?
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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11& 13thWomen’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017,ISSN 2179-510X
Who is the power of life and death of women? Here I turn especially to the teachings of Michel
Foucault on biopolitics – the power to make live (action) and let it die (omission) – to reflect on the
movement of focusing public policies aimed at protecting the lives of women, that is, the
Government bodies in order to make live. To do so, I take as object of study the law of femicide (n.
13.104/2015), which throws lights to differentiated circumstances from deaths of women: intimate
violence arising from domestic and family relationship and/or circumstances of contempt or
discrimination of the condition of being a woman – say, of female.
Keywords: State. Biopolitics. Femicide.